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Hudson Ribeiro

Lucidez Renitente
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Patrícia Esteves

REVISÃO
Vitor Cei

EDIÇÃO
Jana Lauxen

Lucidez Renitente

Ribeiro, Hudson

1ª Edição
Abril de 2013
ISBN: 978-85-8273-124-6

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais
sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
Hudson Ribeiro

Lucidez Renitente

EDITORA MULTIFOCO
Ilha de Vitória, 2013
Agradeço à dona Maria Dulce Alves Ribeiro, (minha
mãe, já encantada), que em conversas interminá-
veis me ensinou a plenificar a sapiência do dito que
diz, “se não tem tu, vai tu mesmo”. À Maria Alice
Pimenta Hübner, minha companheira de jornada
muito amada pela cumplicidade demonstrada desde
sempre. E a todos os meus familiares e amigo (a)s que
suportaram com paciência o tempo de estiagem que
consumi para me plenificar.
Aos que ousam serem lúcido (a)s
mesmo em tempos obscuros...
“Só um sentido de invenção e uma necessidade
intensa de criar, levam o homem a revoltar-se, a
descobrir e a descobrir-se com lucidez”.

Pablo Picasso
apresento à ação

A presente obra locomove-se entre os rigores da reflexão filosófica


e a suavidade da licenciosidade literária. Por conseguinte, o que é
instaurado é uma prosa filosófico-literária fundamentada e coesa,
todavia não enrijecida.
Antes, até pela própria dinâmica de locomoção, nos remete ao
balé das cabeças bailarinas. Firmeza nos pés e serenidade na cabeça.
Uma suavidade exata que, apenas o pensamento consciente de
si mesmo, incluso de suas próprias limitações é capaz de alcançar.
A licenciosidade literária é concebida como um plano de fuga sob
os grilhões da liberdade. E a reflexão filosófica é a própria fuga desen-
contro encontrado do aniquilamento abrupto e da absorção paulatina.
Se ocorrem captações de fatos, coisas, pessoas de modo inusi-
tado, não é a intenção de o autor capturar, como um insaciável
predador, a inesgotabilidade do real.

? ! ...?!...? !
Que somos nós afinal?
Senão respostas tornadas indagação?
O alvo tornado tiro
O mar transformado rio
O sonho metamorfoseado ilusão?

O vento gélido da morte


Nos lançou e nos alcançou
A brisa cálida da vida
Em um momento abrupto
Quando sumamente admirados
Geramos das entranhas caóticas
Do silêncio consagrado

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Hudson Ribeiro

A palavra mais visceral


Que nos tornou libertos
Um ao outro acorrentado.
Que somos nós afinal?
Senão resposta tornada indagação
Serena e plena
Posto que já fomos resposta
Assombrada com tantas vias
Em sua maioria sem acesso.

É nesse ventre profícuo que o “Lucidez Renitente” foi tecido, com


a calma frenética dos que se dispõem a tecer uma colcha de retalhos
magnífica mediante pensamentos-paradoxos e palavras inusitadas.
O resultado é uma obra que pulsa em muitas direções, mas com
um cuidado extremo de não perder o sentido próprio das direções.
A contundência elegante insufla e perpassa todo o conteúdo da
obra, constituída por contos indeléveis como relâmpagos majestosos
iluminando noite sombria.
E a elegante contundência, orientadora de sua forma, onde as
prosas se oferecem plenificadas àqueles íntimos da linguagem concei-
tual, ou seja, as imagens se presentificam, exatamente, quando as pala-
vras certeiras delimitam a ausentificação dos fatos, coisas, pessoas.
Assim como um enorme prato... Vazio; ou ainda, a cena sempre
pungente de uma multidão de recém-nascidos... Senão mortos.
De maneira que, há um entrecruzamento da contundência
elegante da forma com a elegância contundente do conteúdo no
“Lucidez Renitente”. Se aquela almeja evitar a arrogância juvenil,
esta objetiva futilizar a complacência senil.
E no sentido de dirimir qualquer dúvida, urge sempre lembrar
de que, nem o método cartesiano e nem o delírio machadiano preen-
chem os inúmeros vácuos que nos aguardam, assim como as searas
férteis e inexploradas. Por isso, o “Lucidez Renitente”.

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Lucidez Renitente

Ora! Se a Lucidez famigerou-se como apenas ornamentação


e ostentação, e como consequência tudo foi fechado para ela, a
proposta é alçar voos longínquos e encetar mergulhos profundís-
simos na direção do sentido da “Lucidez Renitente”.
De tal maneira que, o “Lucidez Renitente” revela a mais íntima
convivência com o rio da vida e os seus mil mistérios. Pois, na
Lucidez Renitente se vive é do pão e do vinho; do vinho é gerada
a Prosa e do pão floresce a Filosofia. Enquanto a Prosa traduz o
silêncio instigador das coisas da causa, a Filosofia rebusca a causa no
silêncio enigmático da causa das coisas.
Uma vez que, não há possibilidades de dicotomizar pensador de
pensamento; escritor de escrito; prosa de prosador, o alcançado se guia
apenas pelos indícios do pensar, do escrever e do prosear, reconhe-
cendo na expressão da obra, fatos, coisas, pessoas, dos mais triviais.
Ora! Se o labirinto do escrever não é o sair, mas é o entrar, aten-
temos para o fato de ao relacionar o escrever, como repercussão do
percurso, consequentemente a relevância do como e, não apenas o
que nós pensamos... Desorientação sagrada.
Havemos de nos consagrar à tarefa de lapidar a palavra no afã de
traduzir o inexprimível, tarefa para titãs, e por isso mesmo, sempre
irrealizada, mas não irrealizável.
Nesse momento devemos privilegiar o dito que nos alerta de
que, o caminho percorrido pela metade, não é necessariamente o
caminho errado, ou seja, a tarefa irrealizada do escrever, não nos
remete a um horizonte niilista, por carência de total efetivação.
Posto que a própria dinâmica do escrever se plenifica dessa
forma. Revelando-se e no que se revela, vela cada vez mais e melhor,
nos convidando a nos tornar correspondentes com o que nos provoca
a pensar.

Hudson Ribeiro

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Hudson Ribeiro

propedêutica

“Fomos maus espectadores da vida, se não vimos também a mão


que delicadamente – mata”, observa Nietzsche em Além do bem e do
mal, §69. De modo, então, que é possível se observar mal. Gozado...
Sempre trabalhei com a graduação “olhar, ver, enxergar, observar...”.
Agora ocorre o acréscimo: mal. Logo, apenas a observação não é
garantia alguma. E tu, estás observando bem ou mal?
E se o objeto da observação é a vida, aí a porca torce o rabo, se
contorcendo juntamente, pois a observação não ocorre dicotomi-
zada do observador nem tão pouco do que é observado.
Uma observação bem feita alcança descobrir a mão que mata
delicadamente. Descobrir a vigência e o vigor da mão e mostrar
os dedos cobertos de pedras preciosas. Todas, signos de prêmios e
postos, impostos por (im)posturas hipócritas.
Pois a mão delicada provoca mortes silenciosamente – matando,
primeiramente, os deuses das pessoas, que são os seus sonhos, para
depois sugar a vida lentamente em conta-gotas.
Observei bem a vida e descobri a mão que mata semeando
fomes colossais – fomes nas barrigas, fomes nas cabeças.
São mãos gorduchas, rosadas, pele fina, unhas e cutículas bem
tratadas. No dedo indicador reluz um calo, reflexo das muitas dela-
ções premiadas e das chacinas reiteradamente negadas.
O que mais despertou em mim a compreensão de que a lucidez
não basta por si, além de tudo o mais, é que ela deve ser fundamen-
talmente renitente, como forma de driblar tanto o aniquilamento
brutal, como também, a absorção paulatina, que vem como ondas
gigantescas e invisíveis.
Por onde andarão as cabeças pensantes, será que todas já jazem
satisfeitas e alienadas?

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Lucidez Renitente

desencontro encontrado

Áfrico, poeta negro retinto como ébano, quase dois metros de altura,
corpo coberto de músculos bem definidos, que o tornam semelhante
a uma cordilheira negríssima e majestosa; causando espanto e tenta-
ção aonde quer que vá, é possuidor de uma gargalhada retumbante,
contagiosa, capaz de suavizar a mais raivosa ira.
Todo o seu enorme corpo balança como se estivesse sofrendo
convulsões e dos olhos brilhantes escorrem lágrimas; nesse ínterim
distribui formidáveis tapas nas costas do incauto interlocutor e, na
ausência deste, aplica sonoras palmadas em suas próprias coxas.
Áfrico sonha (e anuncia em alto e bom som) encontrar uma
mulher que entenda o seu trejeito poético de ser. Vive rindo e rimando,
se compara a um velho marujo, pois sempre ouve o mar marejando,
até mesmo quando se encontra no sertão da mais sólida solidão.
Renitentemente vive a repetir muito bem humorado: “eu sou poeta,
detesto a linha reta, quem desfaz da poesia não presta”, e por aí ia, distri-
buindo singelas poesias, retumbantes gargalhadas e solidárias palmadas.
Áfrico é cônscio de que quando o ser humano ousa conjugar a
razão mais a intuição, livre de todo preconceito disseminado pelo
raciocínio, o que é alcançado é a plenificação da vida. Não há na dinâ-
mica dessa conjugação a pretensão da presunçosa previsibilidade.
O que ocorre é a vigência da projeção das inúmeras possibi-
lidades, engendrando a eternidade do momento presente por ser
singularíssimo, e mesmo que inevitavelmente venha a ser repetido,
jamais será do mesmo modo.
Isso entende as crianças em suas muitas sérias brincadeiras
(relembra Áfrico, dialogando com os seus jardins), isto concebe o
adulto ao ousar viver uma vida autêntica, é por isso que os pressu-
postos exigidos para ser um “poetisa-a-dor”, se traduz como tarefa
nem pouco e nem fácil.

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Hudson Ribeiro

Posto que seja tarefa para o dia todo e todos os dias, onde o que
se perfaz não é nem o excesso da carência infantil e nem tão pouco a
carência do excesso senil, onde o bastante nunca se basta a si mesmo,
na busca da concepção poética.
Perpassando todo o processo do labor poético há a latência do
nada, sempre presente, irrealizado, mas não irrealizável, desafiando
o poetisa-a-dor, a trazer a linguagem apropriada à fala, uma vez que
é notória a parcimônia das palavras que apenas se presentificam
quando a experiência já se ausentificou.
Para um poetisa-a-dor, como Áfrico, viver é vivenciar a experi-
ência que nada mais é do que trazer à fala a linguagem apropriada,
tanto no sentido de vivenciar a experiência, como também, provocar
a experiência a ser vivenciada. “A minha palavra não me voltará vazia,
mas realizará tudo aquilo para o qual foi enviada. Emunah!”; recita
Áfrico, subitamente tomado por uma espécie de encantamento.

Bertha Lorenz é o nome dela, filósofa recém-pós-graduada,


loura dourada como luz solar, mede um metro e sessenta centíme-
tros, os cabelos cortados rentes os óculos de fortíssimo grau que a
enfeiam, ou melhor, escondem a sua exuberante beleza pomerana.
Vive a ler e a ruminar (no sentido nietzschiano), nunca ri de
bobagens, evita as fúteis conversas-fiadas como uma peste – para
ela, as conversas devem ser afiadas no alto forno das profundas refle-
xões. Desde adolescente sonha (mas esconde de todos) encontrar
um homem que compreenda o seu jeito filosófico de ser:
“Entre ser e pensar, o que há pra sentir? Entre pensar e sentir,
o que há para ser? Entre sentir e ser, o que há para pensar?”; e
assim ia ela, nunca só, posto que sempre acompanhada de nobres
pensamentos.
Quando olha para trás e se recorda dos inúmeros percalços
enfrentados, se intensifica ainda mais o seu desejo de saborear o
amor à sabedoria, como quem bebe água com gosto e por neces-

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Lucidez Renitente

sidade, e não causa nenhuma estranheza que, com a sua mania de


investir todo o seu pouco dinheiro nessa busca sem bússola, vive
passando apertos financeiros.
Ora é o aluguel do quarto de dona Maricota, ora é a prestação
do carro comprado em um ferro velho, ora são as inúmeras revistas
especializadas que ela assina com a sofreguidão de uma náufraga,
ora... Ora bolas!
Às vezes nem margarina tem para o pão no café tomado apressada-
mente na cantina da biblioteca pública, mas o seu semblante decidido
parece reafirmar: “Eu roo um osso menor, eu uso roupas de outros, eu
passo necessidades, mas não mudo o sentido da minha direção”.
Vivendo desse modo, onde a meta e o caminho se identificam
como o alvo e o tiro, não fica difícil de entender, a exemplo daquele
personagem do Bernard Shaw, a sua alcunha de “socialista insoci-
ável”, pois vivendo em incessante ruminação, a sua atitude destoa,
as suas inúmeras indagações se revelam como um esbofoteamento
na cara da hipocrisia das pessoas, que há muito desistiram da busca,
mas se disfarçam com belas palavras.

Deu-se que as forças do universo tramaram suas teias invisíveis


e possibilitaram aos dois desencontrados se encontrarem; o conju-
gador do sagrado e a nomeadora do ser, lado a lado em um ônibus
Transcol que de tão lotado se assemelha a uma lata de sardinhas.
O poeta olha a filósofa, que olha o poeta, e se veem a si próprios
de maneira invertida, os opostos se atraindo inexoravelmente.
O toque das coxas transmite arrepios eletrizantes, os cora-
ções disparados, o cotovelo esquerdo dele no seio direito dela; e
ela, imprensada e impressionada por aquele homenzarrão... Uma
avenida de mau caminho.
Para disfarçar o seu evidente estado de tensão, Áfrico recita
baixinho um trecho do seu mais recente poema – “quisera encontrar

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Hudson Ribeiro

uma mulher, desejosa de ser amada, uma Afrodite encarnada, para


ser o sol da minha estrada, e tornar a minha vida alada...”
Enquanto utiliza uma das suas imensas pernas para conter um
branquelo sardento, parecendo norte-americano, suando às bicas
dentro de um terno todo amarrotado, trazendo em uma das mãos
centenas de panfletos de uma dessas seitas adventistas, e que a cada
curva que a lata de sardinha executa, ameaça desabar os seus cento e
tantos quilos sobre o conjugador do sagrado e a nomeadora do ser.
Bertha, para dissimular reação tão esquisita, pois se sente como
uma vítima ansiosa em ser devorada, tenta se concentrar na leitura
do livro Crítica da Razão Pura, de I. Kant, enquanto cada vez mais
se delicia com aquele cotovelo impertinente em seu seio direito que
já se encontra intumescido.
E a lata de sardinha, semelhante a um cemitério voraz, vai rece-
bendo pessoas e mais pessoas em tão grande número, que parecem
ratos saindo de bueiros, pessoas juntadas, mas paradoxalmente
isoladas, tendo em comum as costas arqueadas e o olhar turvo.
Áfrico curte a viagem, adora viajar de ônibus, misturar-se com
o povão. O odor de suor misturado com perfume barato já não lhe
causa náuseas, certamente devido ao uso esporádico que faz de certa
substância química o seu olfato não é lá essas coisas. Olha o movi-
mento da rodoviária e enxerga o bom combate por uma vida melhor
a se desenrolar.
Sempre que passa pela ponte se sente como um invasor europeu
usufruindo o elemento líquido para dominar outros elementos
sólidos, nunca deixa de se enternecer ao passar pela pedra em
forma de sapo, onde um coração exaltado moveu a mão mal alfa-
betizada para escrever com tinta azul, atentando contra a língua
portuguesa, mas alcançando toda a pujança da paixão anunciada:
“EU TI ÃMU”.
Agora é o vai e vem da estação ferroviária que lhe traz doces e
amargas lembranças, afinal, foi em uma brincadeira infantil que o

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Lucidez Renitente

seu irmão, o Rubens, encontrou a morte. “Por que criança morre?” às


vezes Áfrico se pergunta, mas rapidamente recupera o bom humor.
O estádio de futebol àquela hora deserta, não desanima a sua
imaginação a se ver no próximo domingo, batendo surdão e gritando
como um louco, torcendo pelo seu time do coração, afinal é a decisão
do campeonato, pô! Esse motorista é dos meus, constata satisfeito
Áfrico, percorreu a BR rapinho, vai dar até pra tomar uma...
Bertha detesta multidões, aprendera com um primo mineiro,
que mais de dois já é comício e que o ditado mais certo é: “antes só
do que mal acompanhado”.
Também, bem feito pra ela, ninguém mandara não resistir ao
impulso quando se vira diante das obras completas e, lindamente
encadernadas, do filósofo do dever categórico; resultado, gastara
todo seu dinheirinho e o carro ficara sem gasolina.
Até Áfrico se sentar ao seu lado e desviar a sua atenção para
o bico do seio direito, o seu estômago dava reviravoltas, devido ao
forte odor exalado daqueles corpos mal alimentados com comida e
bebida de péssimas categorias.
Não só de pão vive o homem, pensa Bertha, antes de se lembrar,
subitamente, de que houvera um presidente do país, que dissera em
rede nacional, para desespero dos seus assessores, que preferia o
cheiro de cavalos ao odor exalado pelo povo. Ela se estremece toda,
pois por alguns segundos se compara ao ditador cavaleiro.
Bertha avista a rodoviária e vislumbra apenas as idas e vindas de
sonhos e desilusões; atenta, como boa kantiana, percebe que ultimamente
o número de desesperados vem aumentando vertiginosamente, mesmo
com a irreversível disseminação de religiões que apregoam a mansidão
de suas ovelhas como pagamento antecipado para um camarote no céu.
Os furtos, os roubos, os sequestros, o tráfico, o estupro, o fratri-
cídio, o matricídio, o parricídio e tantas outras selvagerias tem
deixado a úlcera do secretario de segurança pública imune ao leite
com couve batidos.

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Hudson Ribeiro

Quando a lata de sardinha passa pela ponte, que balança como baila-
rina bêbada, ao sabor do vento de junho, Bertha fecha os olhos, medo
incontrolável de altura, mas se visse a declaração de amor escrita tão
incorretamente na pedra do sapo, imediatamente elaboraria uma carta de
desagravo endereçada ao ilustríssimo ministro da educação, responsabili-
zando-o por atentado tão grave à flor do Lácio, que de tão esculhambada,
pela população mal alfabetizada, já se encontrava à míngua.
A estação ferroviária ressoa nela os mesmos pensamentos que a
rodoviária despertou: o estádio de futebol, ora adormecido, arranca
dela um profundo suspiro de resignação: “êta povo besta, meu
Deus!”; este motorista só pode estar doidão, vai ver encontrou uma
barata em sua magra marmita... Olha só como ele conduz, ultra-
passou até o sinal fechado.
Áfrico salta no ponto da pracinha sem olhar para trás uma
única vez, já ocupadíssimo em cometer mais um poema, dessa feita
homenageando o povo que é sacaneado diariamente pelo transporte
público – chamar-se-á “Lata de Sardinha”:

Lata de sardinha
só a usa quem se alinha
as pessoas como coisas
amontoadas mantidas na linha.
Lata de sardinha
é sempre a mesma ladainha
o político mendiga votos
depois joga o povo na latrina.

Findo o translado, necessita urgentemente tomar uma com mel


e limão, “dar um tapa no gogó”, como dizia o velho Dite, o comu-
nista mais autêntico que Áfrico conheceu; precisa estar em forma,
pois será a atração principal no sarau promovida pela Selma. Quem
sabe, reencontraria o seu velho parceiro Nuel.

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Lucidez Renitente

O olhar de Bertha segue Áfrico, dissimuladamente, ao mesmo


tempo sente um comichão que se inicia no fundo do coração e vai
explodir por inteiro, bem no fundo do seu útero, sente-se até umede-
cida, depois de tanto tempo na seca, apenas às voltas com o estudo
da Estética e da Analítica transcendentais. Lutando contra as fortes
sensações eróticas.
Bertha salta no ponto defronte à biblioteca municipal, precisa
preparar a bibliografia do seu mais recente projeto de pesquisa, inti-
tulado pomposamente de “Kant e os descaminhos da nação brasileira”.
É que desde o primeiro período, ainda no seu curso de gradu-
ação, que a Bertha era fanática pelo pensador de Königsberg e
quanto mais se aprofundava em seus estudos mais decidida ficava
em estabelecer um diálogo entre a exatidão kantiana e os absurdos
que regem o modo de ser do povo brasileiro, que por mais dissi-
mulações usadas pelos pouquíssimos mandatários, a calça de veludo
não consegue esconder a horrenda bunda.
Bertha expandiu o seu horizonte de reflexão ao atender os conse-
lhos da dona Maricota, a sua muito boa senhoria, digna represen-
tante do ideal católico apostólico romano, assídua leitora de Jackson
de Figueiredo e de Alceu Amoroso Lima, que a convenceu de incluir
em suas leituras os jornais populares como maneira de conhecer a vida
tal qual ela é, esses mesmos jornais que quando os torcemos, esvaem
cachoeiras caudalosas de sangue, deixando-nos com a sensação de que
a nossa vida é uma maravilha, pois afinal, miséria pouca é bobagem:
“trocou virgindade por uma quentinha”, “matou a sogra
e foi jogar futebol”, “marido esquarteja a mulher e comer-
cializa a carne”, “ofereceu as vísceras do filho caçula em
despacho na encruzilhada”, “morto com quinze tiros de
escopeta na saída de baile funk”.
Bertha possui a consciência filosófica de que toda essa errância
que impregna a vida do ser humano é consequência direta da morte
do pensamento.

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Hudson Ribeiro

Ora, quanto menos o ser humano pensa, mais ele se animaliza,


isto é fato incontestável, afirma ela enfaticamente, em seus raros
momentos de prolixidade, no estado em que o ser humano se perde,
a ideia de felicidade jaz condenada sob o enganador ditame da
não-tristeza.
De modo que é fato corriqueiro ouvirmos dizer, contrariamente
à expectativa salutar: “E aí, como vai a não tristeza?”. É assim que
vemos na maioria das casas, afinada com os tempos atuais, diz ela
com o rosto vermelho como pimenta malagueta madura, a sua
farmácia particular e na maioria das vezes, tudo produto da insana
automedicação, inclusos até mesmo inúmeros remédios que exigi-
riam prescrição médica, as sinistras tarjas pretas.
Bertha sabe que o ritmo alucinante da vida urbanoide, em
parceria com a politicagem gananciosa dos laboratórios multinacio-
nais fomenta, cada vez mais e melhor, tal círculo vicioso.
O ser humano está sempre a trocar uma doença por outra: vistas,
coluna, estômago, rins, próstata, coração, psique... Para cada especi-
ficidade do corpo vigora uma enfermidade correspondente.
Bertha também desconfia que, em uma rede maquiavélica como
esta, toda proposta que acene para a plenificação do ser está conde-
nada ao ridículo, pois o sistema, quando não absorve paulatina-
mente, abruptamente aniquila.
“Que conversa mais sem cabimento! Só podia ser coisa de quem
conjuga o sagrado ou nomeia o ser!”
Afinal, conclui sarcasticamente a filósofa, quem está afinado
com os tempos hodiernos sabe muito bem que a felicidade mais
feliz se traduz como a tristeza menos triste; você é esquizofrênico,
psicopata, maníaco, depressivo? Eu tenho uma leve disritmia. Você é
aidético? Eu carrego apenas uma gonorreiazinha. Você já está com o
pé na cova? Eu tenho mais uns seis meses de vida, e por aí vão, vãos...
O estado de muita miséria alheia nos tornando enganosamente
abastados.

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Lucidez Renitente

Antes de entrar na biblioteca, Bertha ainda sente e se delicia com


a sensação de um cotovelo em seu seio direito, quando de repente
uma rajada de trovoadas ensurdecedoras e relâmpagos cintilantes
precedeu a uma dantesca tempestade de granizo e os ventos come-
çaram a uivar como toda uma alcateia no cio.
Dizem que o cataclismo foi tão portentoso, que as entranhas
da Terra regurgitaram violentamente corpos de poetas e filósofos,
ilustres e desconhecidos, em suas formas mais plenas.
Espantados e amedrontados com o brado furioso do universo,
ambos, o conjugador do sagrado e a nomeadora do ser se sentiram
estranhamente responsáveis por tudo aquilo.
Áfrico, alertado para a necessidade de desvelar a enigmática
causa originária das coisas característica maior da lida filosófica, e
Bertha, irrequietamente instigada a decifrar o desafiador silêncio
das coisas da causa, se identificando como labor poético.
Ah, e aqueles cabelos de ouro! E aquela cor de ébano! E aquele
seio duríssimo! E aqueles lábios carnudos feitos para o beijo eterno!
Ah, e aquela pele macia! Ah!...
Lá fora a natureza injuriada com a idiotice da filósofa e do poeta
punia severamente toda a humanidade.

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Hudson Ribeiro

inocência

Aparentava não ter mais de oito anos, idade em que o ser humano,
muito raramente, anda como um reles mortal, sempre preferindo
pular, rolar, pois achava andar como todo mundo faz, muito cha-
to, aproximou-se do senhor, que morava no apartamento vizinho, o
1984, “o senhor é casado?” momento de surpresa.
Do final do corredor vem um som de uma briga de casal, “fui
casado há muito tempo, mas por que você quer saber?” “nada, é que
a minha mãe vive sozinha e tão tristonha, que pensei, seria bom se
você fosse meu pai”.
Agora o som dos palavrões trocados pelo casal beligerante
corta o ar com uma força tremenda, chega até a doer os ouvidos. O
vizinho do 1984 pega aquela mão minúscula e faz o convite costu-
meiro, “vamos tomar um sorvete?”
Os olhos do menino brilham de contentamento, nem parece
que ouviu o barulho da briga entre os cônjuges, até porque já se
tornara rotineiro.
Ele bem se lembra do dia em que o vizinho do 1984 fora prestar
ajuda e fora escorraçado pelo casal, além do mais o que o garoto
mais queria era um esposo para a sua mãe e um pai para si.
Já sentados no banco da praça ambos silenciosamente saboreiam
o sorvete, o menino arquitetando sensacionais planos matrimoniais,
e o senhor de meia idade, chegando à conclusão de que, mais uma
vez, deveria mudar-se de cidade, e pensa entre raivoso e impotente:
“Êta país pra ter criança bonita, meu Deus!”.

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Lucidez Renitente

dia de prova

Caramba! Hoje é dia de prova e eu não sei nada, tô igual àquele filó-
sofo, xará do ex-jogador que faleceu com problemas no fígado. Nada
sei da matéria que vai cair.
Gozada a expressão “cair na prova”, e de fato é assim mesmo, vai
cair bem sobre a minha cabeça, e mesmo se eu tivesse estudado daria
no mesmo, não sei como é que alguém pode guardar tantas datas e
tantas fórmulas.
Certa estava àquela professora do primário ao dizer que eu era
burro de pai e mãe – coitada da minha mãe, semelhante a um burro
no trabalho pesado, do meu pai nunca soube de quem se tratava.
Chego a ficar tonto e tão ansioso que preciso urgentemente ir ao
banheiro, o nervosismo alagando a bexiga.
Gozado que guardo com facilidade os nomes das garotas que já
peguei e as que pretendo pegar, e olhe que não são poucas; memo-
rizei com facilidade todas as letras do Racionais Mc’s.
Quando o assunto é futebol me chamam até de enciclopédia
ambulante, pois sei escalações completas, os nomes dos técnicos dos
times e até os nomes dos jogadores que estavam no banco de reserva;
mas quando o assunto é matéria de escola, sei lá, dá um branco...
Quando consigo entender o exemplo, chega a prova, cai uma
exceção à regra e aí me quebra, isso já é perseguição, no fundo não
acredito naquela professora primária.
Como era mesmo o nome dela? Ah! Dona Gertrudes, o comentário
na escola era que ela era assim toda ranzinza, por ter sido abandonada
no altar pelo noivo. Quantas Gertrudes ainda existem na educação?
Melhor voltar aos meus problemas, que não são poucos e nem
fáceis, pior que eu não posso dar mole, reta final e eu tô cheio de
notas vermelhas, tudo bem que o sistema dá uma forcinha com
tantas notas de recuperação e notas de projetos, mas não sei o que

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Hudson Ribeiro

acontece comigo na hora da explicação, o meu pensamento fica


voando alto.
Hoje, por exemplo, vai ter uma rodada quente pelo brasileirão,
antes tem o capítulo da novela, êta novelinha sinistra! A galera nem
desconfia que eu curto uma TV, escondo direitinho, até critico publica-
mente a Nádia, por só ler o jornal atrás de notícias das novelas, pois não
sou besta e não quero ser alvo de zoação praquele bando de manés...
O professor de Física está tentando falar a respeito de uma
descoberta recente, um negócio de uma partícula, um tal de neutrino
que consegue se locomover mais rápido que a luz, caramba, se for
mesmo verdade, parece que haverá uma revolução nos para... Para...
Paradigmas, acho que é essa a palavra, esses caras descobrem cada
coisa, o elixir da juventude e a pedra filosofal pelo jeito foram defi-
nitivamente esquecidos, né?
De repente o meu pensamento fica planando sobre umas nuvens
de formas indefinidas e de cores que eu nunca vi, ouço os sons e até
reconheço alguns, mas é como se nada me dissesse respeito, o meu
próprio corpo me aparece estranho, todo desengonçado.
A Nádia, a minha ficante atual, diz que quando fico assim chego
até a babar e também fico como se fosse vesgo, credo...ela precisa me
beliscar com força pra eu voltar pra sala.
Veja só... Todo enrolado e ainda querendo ficar viajando. E
aquela mina, será que vai ao baile sábado? Pelo sim, pelo não, vou
dar-me um trato, ficar nos conformes da beleza, que tá assim cheio
de marmanjos de olho grande.
Domingo vou ao estádio, semana passada, maior clássico do
capixabão e eu perdi, também, durinho, durinho igual a um coco,
dessa vez não posso dá mole, vou arrebentar nessa prova vocês vão
ver, pô, mas o que se passa aqui neste exato momento?
Assim já é demais, professor! Professor! O senhor tem certeza
de que deu essa matéria pra turma? Gozada essa expressão, se ele
deu por que eu então não recebi?

26
Lucidez Renitente

opostos

Então você quer saber se os opostos se atraem... Estranho esse dito,


né? E todos o repetem sem perceberem a errância do repetir sem pen-
sar. O mais correto é dizer “os opostos ora se atraem, ora se repelem”.
Tome como exemplo o caso dos ímãs, ou o do soro, o próprio
veneno sendo o antídoto. Mas me diga sem meias palavras, qual a
sua real curiosidade mesmo? Ah, se as pessoas diferentes se sentem
atraídas? Mas vamos com calma, então, as pessoas podem ser dife-
rentes, mas não são necessariamente opostas, né?
Parece-me que no seu modo de entender, uma relação miscige-
nada entre um homem de pele negra e uma mulher de pele branca,
ou vice-versa, seria uma relação entre opostos.
Eu defendo que se trata de uma relação entre diferentes, porque
opor a cor branca à cor negra ou a cor negra à cor branca só se
é possível quando o intuito é categorizá-las ideologicamente, e
sempre com intenções racistas.
Tudo bem quando essa classificação é aplicada às coisas, mas
tratando-se de pessoas tudo muda de figura, uma vez que as cores
das peles das pessoas são indícios de todo um processo histórico
percorrido por esta ou aquela etnia.
E a pele, sendo o maior órgão do corpo humano, para cobri-lo,
ironicamente se expõe de modo despudorado, ocasionando situa-
ções desde o mais trágico ao mais cômico.
Agora, quando o assunto é gente, o que atrai ou repele são os
modos, e os modos, já dizia o grande Aristóteles, o dizemos de vários
modos, mas nenhum modo alcança dizer o modo do ser, pois são
vários e variantes e que variam incessantemente, mesmo mantendo
a sua identidade permanente.
Se isso ocorre em nosso país, é muito comum por dentro de
uma pele negríssima latejar vigorosamente vestígios de um senhor

27
Hudson Ribeiro

de escravo, orgulho encarnado; como também, por dentro de uma


pele alvíssima latejar vigorosamente indícios de uma escrava fugitiva
reincidente, a liberdade corporificada.
No mais, desejo a vocês muito axé!!!

28
Lucidez Renitente

acorda amor!

Devia ser umas duas e meia da madrugada, horário em que todos os


gatos assumem as mais diversas cores e o relógio chumba os pontei-
ros para dar tempo de todas as coisas mais inconcebíveis acontece-
rem, que o digam os trabalhadores noturnos.
Quando a Cromínia acordou sobressaltada, andava muito
nervosa com a proximidade do concurso público que se aproximava,
afinal se preparava há mais de dois anos, com um barulho monótono
que ela não conseguia identificar, era mais ou menos assim: tututu-
tutututchuchuchuchu... tututututuchuchuchuchu...
Depois tudo silenciava por uns cinco minutos para recomeçar
exatamente como antes.
Imediatamente, ela começa a rezar, com a cabeça tão preocupada
em memorizar datas, fórmulas e leis, que há muito custo tenta se
lembrar das orações aprendidas na longínqua cidadezinha onde fora
criada no ditame católico, apostólico e baiano, mas mal pronunciava
a primeira frase, a cabeça pensava coisas que não tinha nada a ver.
Ao rezar a Ave Maria, lembrou-se que precisava jogar fora a
calcinha vermelha de rendinhas, posto que o tanquinho de lavar
roupas fizera um buraco enorme, logo no lugar mais estratégico.
Tentou rezar o Salve Rainha e veio à sua mente o sorvete de
chocolate que estava na geladeira, chegou até a sentir o gosto gelado
e saboroso da guloseima. Mudou para o Pai Nosso, nem chegou à
segunda frase e sentiu um arrepio, ao se lembrar de que ainda naquela
tarde desejara que o seu esposo fosse aquele ator famoso, o mesmo que
o noticiário noturno propagara ter descoberto um câncer maligno.
O esposo ressonava a sono solto ao seu lado, já o avisara que não
era saudável jantar tão fartamente, ainda mais costelinha de porco
cozida, frita e refogada, com couve, feijão e angu com pimenta, mas
ele não tinha jeito mesmo, mas também não tinha câncer.

29
Hudson Ribeiro

Lá fora o barulho continuava, agora mais surdamente, abafado


pelos pingos da chuva. Todo tipo de chuva mexia com os recônditos
selvagens da Cromínia, ela sentia um medo enorme, ainda quando as
nuvens se formavam pesadas, ela sentia o recado nos ossos, como se
o ar se solidificasse e se transformasse em medonhas assombrações.
O maior medo dela era do esposo perder o emprego e ela
voltar a conviver com a fome, aquilo a deixava com ar de demente,
olhando para as paredes como a indagar se seria dessa vez que
a desgraça ocorreria, por que depois de tanto tempo podendo
usufruir de calcinhas vermelhas com rendinhas e sorvete de choco-
late à farta na geladeira, não se acostumaria ao pão sem manteiga,
se houvesse pão...
De repente, sentou-se na cama, mas não conseguia abrir os
olhos, por mais força que fizesse, como se as pálpebras estivessem
pregadas, a escuridão dentro dela se fez enorme, a ponto de fazê-la
tremer e choramingar feito cria desmamada fora de hora.
O marido se mexeu e falou com voz de sono: acorda amor!
Roncou um som de assovio e voltou a ressonar profundamente, na
certa, sonhando com o bacalhau que já estava no molho para ser
retirado o excesso de sal.
Lá fora o som continuava, agora parecendo mais alto, uma vez
que a chuva cessara.

30
Lucidez Renitente

você leu o cartaz?

No meio da escadaria, uma aluna pergunta-me com ar de peralta:


professor, você leu o cartaz?
Respondi-lhe que não, pois com esse negócio de apenas uma
aula semanal para “certas” matérias, venho pouco à escola, mas agora
ela me deixara curioso, qual a importância do cartaz para estar tão
interessada, logo ela que vivia alheia, cuidando apenas da bela cabe-
leira e pendurada ao celular, ali tinha coisa...
Como sempre, para no patamar próximo ao portão de entrada e
contempla a cidade muito bela em sua combinação de terra e mar;
aspira profundamente o ar prenhe de verde da mata circundante e
termina a penitência dos degraus.
E pensa que é raro a escola pública estar localizada em local de
fácil acesso, ou é em buracas terríveis ou em aclives descomunais,
enfim, isso por si só é bastante sintomático, mas mesmo assim, quando
o professor inicia a sua lida didático-pedagógica nunca está preparado
pelo desinteresse demonstrado pelos alunos por coisas que durante
anos, na faculdade, eram tidas como verdadeiras e certas...
Quando o professor ainda se recupera do susto e reinicia novos
rumos, é menos mal, muito pior é quando a cegueira teimosa o leva
a ficar acusando os alunos como culpados por tudo, inclusive pelo
baixo valor do bônus recentemente pago como forma de incentivar
a educação no Estado.
No pátio, vários grupos de estudantes discutem calorosamente
acerca de algo, de passagem ainda pode ouvir: tá certo, mas precisava
ter sido desse modo? Ao chegar à sala dos professores depara-se
com uma reunião, onde o assunto é o famigerado cartaz, ao seu bom
dia, umas três vozes responderam em uníssono: você já leu o cartaz?
Pensou em perguntar algo, mas sentiu o clima pesado, a sensação
de constrangimento comedida pela boa educação. Um professor

31
Hudson Ribeiro

continuou a expor a sua posição: (...) como nem todos leram o


cartaz, proponho então fazermos um levantamento para saber quem
leu e quem não leu, para daí tomarmos a medida mais indicada.
Não quero influenciar ninguém com o meu posicionamento,
mas eu mesmo não vi nada demais no cartaz, as palavras esco-
lhidas podem até terem sido fortes, mas aqueles desenhos lúdicos
amenizam bastante e dão outro tom, além do mais estamos em uma
democracia, onde a liberdade de pensamento e expressão é garantida
pela constituição.
Começando pela direita: Psiu! Você leu o cartaz?

32
Lucidez Renitente

a cadência do ato

O grande líder negro dorme o sono dos santificados pela batalha


travada na guerra contra a miséria, luta tenazmente, contra a miséria
de farta comida e a miséria de nobres pensamentos.
Dorme um sono tranquilo e reparador, a ressoar como criança
e sonha, sonhos coloridos, belos e magníficos. Acorda com o canto
dos galos, sente o bocejo da manhã, reflete os primeiros raios de
sol e reza, fervorosamente, agradecendo ao grande Astro por toda a
energia que propicia a vida na Terra.
Toma um banho frio e louva a maleabilidade da água, que faz
o sangue pulsar mais vigorosamente e toma um café bem quente, a
bebida dos orixás africanos e serenamente projeta o seu dia, sepa-
rando a lã que irá tecer.
Certifica-se da ferramenta adequada que utilizará e pisa suave-
mente a terra como se acariciasse a sua amada no dia do seu aniver-
sário, consciente de ser um pedaço dela, portanto, sabe que ele é ela
também. Por isso, irmanado, rega as plantas e dá de beber e de comer
aos animais.
Consuma o trabalho que traz a realização e não o que causa
dor, posto que aliene e embrutece o homem, transforma a terra,
tornando-a mundo e, concomitantemente, transforma-se também,
humanizando-se.
E admira aprendiz, a teia da aranha, a perseverança da formiga
e a cantoria da cigarra.
Ao sol a pino agradece a manhã vivida e pede ao Arcanjo Miguel
proteção e orientação, proteção contra os que o concebem como
adversário e orientação para fazer a coisa toda acertadamente.
Só então sacia a sua fome e a sua sede, que já se fazem espessas,
enquanto reflete a magnífica metáfora que assemelha o pão à filo-
sofia e o vinho à poesia.

33
Hudson Ribeiro

Agora é descansar por pelo menos quarenta minutos, para quem


possui a aura verde é o quanto basta. Repõe as energias e se sente
novo em folha para encarar a solicitude da lida vespertina. Tecerá lã
até à tardinha.
Quando a tarde cai e a noite se ergue, soa o momento de reco-
lher as ferramentas e dimensionar a quantidade de trabalho reali-
zado, tanto na terra como em si mesmo, agradecer aos deuses pela
tarde consumada e retornar ao aconchego do lar como retorna um
guerreiro vencedor.
À noite, a lua cheia espanta, com a sua enternecedora beleza,
qualquer tipo de assombração.
As labaredas da fogueira acendida no fundo do quintal, baila
a dança milenar da celebração, a viola soa como um lembrete de
que para se ser sábio há de se cultivar a solidão, contanto que seja a
frutífera solidão solidária.
E nada melhor do que um dia após o outro com a noite de
intermédio, para o tempo essencializar as suas maturações. O grande
líder negro projeta um sono pacífico, o seu corpo cansado precisa
repousar sem se aterrorizar com visões absurdas advindas da vã
imaginação.
Depois de fazer amor com a sua muito amada, dorme perfeito,
a cadência do ato torna todo momento exato, o tempo e o espaço
acumpliciados na feitura de coisas extraordinárias.
E o grande líder sacramenta o seu éthos, vivendo a vida como
criança brincando, seriamente. Tudo fruto benéfico da cadência do
ato.

34
Lucidez Renitente

tal gabriela

Ela não perde tempo, parece uma metralhadora giratória, tanto com
as palavras como com o próprio corpo, “fale agora o que ele disse de
mim”, sorriso provocativo, emoldurado por um olhar brilhante, neste
momento direcionado à pedagoga, mas dá pra perceber que amplia a
abrangência para, também, colocar a coordenadora em sua circunvisão.
Esta leva alguns segundos para entender o que se passa, até se
lembrar de que comentara com a colega de como aquela aluna o
impressionava pela inteligência, sociabilidade e por uma implicância
irritante com a presidente da república, acusando-a de homossexual,
de querer liberar a maconha, de querer acabar com o seguro desem-
prego, de querer colocar os presos na rua.
Em relação a essa última acusação, a aluna, que estava toda
sorrisos, chegara ao requinte da falácia, ao dizer que se era assim,
então, cometeria assassinato na pessoa da presidente, depois se
beneficiaria da lei que solta os presos
“Ah, comentei com a colega aqui a seu respeito, acho você
brilhante, pena ainda ter necessidade de brincar”, como em um jogo
de tênis, resposta como rebatida, “não é nada disso, pô! É que esse
negócio de ficar pensando muito me dá dor de cabeça e ânsias de
vômito, sem brincadeira nenhuma, mas eu faço as coisas direitinhas,
pode perguntar aos professores”. “Claro que você faz, o fato é como
se você fosse um carro com capacidade de 180, mas só vai até os
120”, a pedagoga é mais contundente, “por que você faz assim?”.
Por milésimo de segundo, ela parece acuada, mas é só impressão,
surpreendentemente, pois conta com apenas dezesseis anos, sai
pulando e cantando a música de Gabriela, “eu nasci assim, eu cresci
assim...”; a pedagoga, iniciante na profissão olha abismada, enquanto
a coordenadora com mais de vinte anos de experiência, sorri bene-
volente e comenta; “essa menina é assim desde a época do primário”.

35
Hudson Ribeiro

cabeção

Tinha uma cabeça enorme, daí que desde criança poucas pessoas
sabiam que se chamava Arnaldo das Graças, na verdade, até os que
sabiam o seu nome ou apelido de família, “Naldinho”, o chamavam
mesmo era de Cabeção.
Quando criança, nas brincadeiras em um bairro da periferia da
Grande Vitória, entrou em várias escaramuças por causa do apelido.
Tudo era culpa da sua enorme cabeça; e a meninada não tinha
piedade, se o time perdia na pelada jogada na rua mesmo, algum
engraçadinho logo dizia, “também, com esse cabeção”, na hora do
jogar pião, se o pião não rodava, “também com esse cabeção”; no
jogo de bolinha de gude, se ficava preso na barca, “também, com
esse cabeção”.
Quando iam tomar banho na maré e ele ficava com medo de se
afogar, “também com esse cabeção”.
Até na escola onde a sua enorme cabeça poderia fazer algum
sucesso já que era um lugar onde guardar coisas na cabeça era impe-
rativo, a professora não perdoava, “não dá pra entender, você com um
cabeção desses e nada”.
Demorou muito até aprender que quanto mais se zangava, mais
atraía as gozações, algumas de um mau gosto incrível, como daquela
vez em que tomou uma geral da polícia e o sargento invocou com o
tamanho descomunal da sua cabeça, mas isso ele preferia nem lembrar.
O que importava é que com o passar do tempo ele descobriu o
seu talento como ritmista da escola de samba do bairro, e realmente
ele era um exímio tocador de cuíca.
Com isso ganhou o respeito da comunidade, até trocaram
o “Cabeção” pela forma mais amena de “Cabeça”, com algumas
pessoas, na tentativa de serem carinhosas exagerarem até o “cabe-
cinha”, o que convenhamos, é demais, né?

36
Lucidez Renitente

Mas nos ensaios realizados aos sábados na quadra da escola,


quando ele arrebentava, fazendo a cuíca gemer como criança esfo-
meada, algum visitante sempre perguntava admirado com tanta
habilidade, “quem é aquele Cabeção ali”?

37
Hudson Ribeiro

firme e forte?

E aí meu irmão, como vai essa força? Sentindo você meio à deriva,
o que tá pegando?
Ih cara, quando é assim... Comigo é a mesma coisa, a nega véia
acorda mal, o meu céu pode está o mais límpido que for, nubla na
hora; o passarinho verde que cantava exuberante em minha cabeça
emudece de repente.
É duro! Menos mal que a sua nega ainda fala, e a minha que faz
um silêncio tão grande e tão profundo que chega até doer dentro da
gente... Pergunto mais de cem vezes e a resposta é sempre a mesma,
dita em uma voz sem tom, “foi nada não, agorinha mesmo passa”.
Ora, me diga, então, meu irmão de rocha, se não foi nada, como é
que vai passar? Aí é a minha vez de ficar amuado, ela tenta disfarçar com
sorriso, mas é difícil um disfarce com sorriso atravessado, esforço-me
para fazer as minhas tarefas como forma de me distrair, dê uma olhada
aqui nas minhas meias, tá vendo? Cores diferentes e não tô seguindo
nenhuma moda não; cheguei aqui com a camisa vestida pelo lado do
avesso e toda amarrotada, a passadinha ficou bem em cima da cama.
E não é só isso mano, antes de sair me confundi e temperei a salada
com detergente, também, embalagens parecidas dão nisso, ao vir pra cá,
acabei pegando o ônibus errado, ao invés de pegar o Jardim da Penha,
peguei o Bairro da Penha, quase que me meto em uma confusão das
grandes, ainda bem que um dos rapazes lá já foi aluno meu e me indicou
o caminho, recomendando-me ter mais cuidados, porque os tempos estão
doidos, mas sei que tudo isso vai passar mano meu, podes crer que vai.
Veja só que coisa, você se lembra de quando jurávamos que casa-
mento era pra homem cansado de viver? Pois então, cada besteira
que a gente fala...
Hoje nem me imagino sem a minha nega veia, você veja que só
foi ela se entristecer, para o meu céu nublar, imagina o resto.

38
Lucidez Renitente

atalho

Conhece tão bem aquela cidade como as linhas da própria mão,


afinal nascera ali há mais de cinco décadas e acompanhara toda a
medonha transformação que dela se apossara.
Ainda era um garotinho, preocupado apenas com escola e bate-
-papos intermináveis na esquina, quando houve aquele grande escân-
dalo envolvendo rapazes de famílias ricas em um crime hediondo
contra uma estudante adolescente, em um assassinato cinemato-
gráfico com direito às orgias, cumplicidade materna, entorpecentes,
tentativa de destruição do cadáver, subornos, muitos outros assassi-
natos cometidos como queima de arquivo.
Foi com essa barbaridade que a pequena cidade portuária perdeu
o seu ar provinciano, as pessoas mais religiosas dizem que foi uma
punição dos espíritos protetores das crianças.
Por outro lado, a maioria dos cientistas sociais, do alto dos seus
inúmeros títulos acadêmicos, afirmavam categóricos, que o ar de
província se perdeu como consequência direta do desenvolvimento
do Estado, sempre planificado para a exportação do minério de ferro.
E que o preço era esse mesmo, em todo lugar do planeta por
onde o desenvolvimento passa, a resultante nefasta e irreversível é a
troca do Espírito Santo pelo Espírito de porco.
Conhece tão bem aquela cidade e já transitou pelas suas
avenidas, ruas, alamedas, vielas e becos, ostentando ou ocultando
tantas identidades diferentes, que atualmente se locomove como um
guerrilheiro com a cabeça a prêmio.
Mas hoje de nada adiantou. logo ao sair do prédio a primeira
pessoa que viu foi o Almeida, um antigo conhecido dos tempos em
que era evangélico e que, atualmente, vivia pregando a Palavra nos
pontos de ônibus, aí não deu outra, teve que ouvir a pregação do
Almeida enquanto o ônibus não chegava.

39
Hudson Ribeiro

E olhe que naquele dia, por causa de uma passeata de estudantes,


o ônibus demorou um tempão...

40
Lucidez Renitente

louca

Não se lembra mais do nome dela, na verdade nem das suas feições, era
muito pequenino e aquelas coisas eram reservadas ao mundo dos adultos.
Sabe que durante alguns dias ela agiu feito louca agressiva,
atacando todos os que passavam na estrada, bastava portarem qual-
quer bolsa ou embrulho. Também... Doaram os seus filhos, todos
ainda no período da amamentação.
Lembra-se que ao final do dia de trabalho, após o apito da fábrica,
os homens se reuniram na quitanda da dona Lícia, a maioria compa-
receu, exceto o seu Alvarenga, que não abandona a sua pescaria por
nada desse mundo e o seu Tavares, sexta-feira era dia de forró na
capital e ele não perdia um, para desgosto de dona Aloir.
Lá estavam o Sérgio da Leda, o Besouro da Celi, o Bruno da
Olga, o Oswaldo da Aldir, o Alberto da Dora, e até seu Francisco,
recém-separado de dona Marly. Bem que tentou entrar na quitanda,
mas foi barrado pelo Laurão, com seu inseparável radinho de pilha
grudado à orelha e as suas pernas de elefante.
De onde estava podia ouvir frases soltas trazidas pela corrente de ar,
que mais o confundia do que esclarecia: “já esperamos demais”, “ e se ataca
uma das nossas mulheres?”, “pior, e se ataca uma das nossas crianças?”.
Ao final da reunião, alguns ficaram jogando bisca e bebendo
catuaba, traziam um semblante sério, até tristonho, nem o seu
Besouro, que gostava de fazer presepadas para o delírio da garotada
estava para brincadeiras.
No outro dia, de manhãzinha, um sábado nublado, de uma fresta
da janela mantida fechada pela mãe, viu quando os homens esti-
caram uma corda e um deles ficou por detrás de uma árvore, sob a
qual colocaram bebida e uma sacola cheia de panos velhos.
A partir daquela data o respeito que tinha pelos adultos nunca
mais foi o mesmo.

41
Hudson Ribeiro

a carta

Quando Bernardo finalmente conseguiu entrar na biblioteca do seu tio,


irmão caçula do seu pai, Jeremias Antenor Almeida, após ter arromba-
do a porta com a ajuda de um pé de cabra, já que o tio não responde-
ra aos seus insistentes chamados, duas coisas lhe chamaram atenção, a
primeira foi a expressão de paz angelical estampada no rosto do morto,
ainda bonitão para um solteirão convicto de setenta e seis anos.
A outra foi a carta que o tio segurava, sentado em sua poltrona
predileta, como se ainda estivesse vivo. Impulsionado por uma força
tremenda, Bernardo se pôs a ler a carta, com uma sofreguidão digna
de quem decifra um código ultrassecreto, e a comparação não era de
toda má, pois o seu tio fora exatamente isso, um código ultrassecreto
para toda a família, amigos, vizinhos e colegas de trabalho.
Enquanto invadia a privacidade do falecido, Bernardo sente
uma euforia semelhante a que sentia naquelas tardes da sua infância,
quando devorava inúmeras revistas em quadrinhos de heróis
norte-americanos.

Budapeste, 11 de Abril de 1954


Olá!
Como todo canceriano eu sou extremamente ciumento, e me
causa ciúmes quando quem eu muito gosto não me dá a devida
atenção.
Saiba que eu gosto imensamente de você, a sua maneira de ser
mexe com a minha inspiração, às vezes fico perdido por não saber
onde desaguar tanta boa querência.
É um gostar de conhecido, de colega, de companheiro, de amigo,
de camarada, de amante, de irmão, de estrelas distantes que nunca
terão as suas órbitas em conjunção?

42
Lucidez Renitente

Saiba que eu gosto muito de você e às vezes sinto ciúmes, eu sei


que é um sentimento feio, e isso causa até raiva em mim, afinal, não
sou o seu dono, ademais, o seu trejeito especial de ser só floresce,
plenamente, no jardim da liberdade.
O que eu mais amo em você é o seu lado juvenil ainda não apri-
sionado pela cruel senilidade.
Quisera poder levá-la nas palmas das minhas mãos e passear
com você no deserto fértil da imaginação e contar tudo o que eu fiz
com o que a vida me fez. Quisera, ao menos uma vez, fazer amor
com você, beijar o seu umbigo em um ato atrevido, explodir a paixão.
Às vezes a vontade é tão grande que chega até doer a alma,
esquisito esse sentimento. Amo o seu voo soberano e, ao mesmo
tempo, tenho imenso ciúme das suas asas. Volta e meia você me
reclama, “o mundo não poderia ser diferente?”.
E eu fico pensando que o mundo é assim mesmo, pois ele é
feito por nós e mais as forças invisíveis que adoram promover
desencontros.
É a encruzilhada do contratempo contradizendo: nada, nada,
nada. O que nós queremos, ainda não podemos e o que nós podemos,
já não mais queremos.
Saiba que eu gosto muito de gostar de você, torço, temo, rio,
choro por você, pois amo o seu voo soberano, mesmo tendo ciúmes
imensos das suas asas, já que um dia elas poderão leva-las para bem
longe de mim.
As forças invisíveis adoram propiciar desencontros e mesmo
quando ocorrem os encontros as nossas carências inconscientes e os
nossos excessos prepotentes causam a dissolução.
É quando nos identificamos com os voos vãos, é quando você
passa e não me olha e se olha não me vê e se me vê não me enxerga
e se me enxerga não me prevê, gostando imensamente de você, e
como todo bom canceriano, sentindo enormes ciúmes de suas asas,
não obstante, amando imensamente o seu voo soberano.

43
Hudson Ribeiro

Bernardo leu a carta até ficar tonto, depois a recolocou no lugar


e só então, telefonou para casa, avisando da morte do tio, não sem
antes apagar cuidadosamente o nome da destinatária de carta tão
amorosa e apaixonada, que coincidentemente era Wanda Carla
Albuquerque, o mesmo nome de solteira de sua mãe.

44
Lucidez Renitente

sapiência

Eu sei, você sabe, por maior o saber não alcança o mais fundamental
e inadiável, refiro-me à origem das origens, se não sabemos de onde
viemos, todo o pensado sobre nós mesmos sofre deformações com-
prometedoras da nossa finalidade, afinal.
Então, por não saber, ainda não viemos ao mundo, e pelo fato de
não termos ainda vindos, o nosso modo de ser não é o modo nosso;
o que implica admitirmos a total ignorância da nossa finalidade.
Além da consumação dos tempos, a finalidade acena com vertigens
absurdas de tão dantescas.
O pensamento pensando a si mesmo, galgando uma espiral
inusitada, círculo que não se repete, mesmo realizando tudo de novo.
Muitas vezes o pensamento se recusa a pensar e fica boiando em
um mar desconhecido e a sensação de desamparo é tamanha, que
o menor barulho soa como um tiro de canhão em pleno mosteiro.
Sei que você sabe, todo saber ainda é insuficiente para responder
a questão – o que reinava antes do antes de tudo se constituir? E o que
restará após o após, quando tudo e todos tiverem se desintegrado?
Ah, eu sei, você sabe... E não me olhe com essa cara de besta não,
querendo dá uma de “Mané sem braço”, desde a primeira vez que a
vi sorrindo e o brilho dos olhos emitiram um brilho velho conhecido
meu, eu soube que você sabe, a não ser que...
Não, isso é doideira da minha parte, certo que Eles estão bem
sofisticados, mas a esse ponto seria impossível.
Quanto a sua proposta de termos um caso sinto muito, mas a
minha resposta deve ser não, estou casado há pouco tempo e amo
imensamente a minha mulher, aliás, para o seu governo, a gravidez
dela foi confirmada a semana passada, mas de todas as razões, sem
dúvida alguma, o fato de você ter apenas catorze anos é o que pesa
mais em minha decisão de me transferir de escola, antes que a carne

45
Hudson Ribeiro

fraca se traia na tortura diária dos seus gestos e olhares convida-


tivos, as suas cruzadas de pernas então, faz o meu coração quase
sair pela boca e as equações que eu explicava subitamente ficam
in-equacionadas.

46
Lucidez Renitente

muralhas intransponíveis

Saímos da sala dos professores e nos sentamos em um banco com-


prido localizado defronte à escada que dá acesso ao segundo andar.
No alto, um grupo de alunas da série final conversa alegremente,
afinal de contas mais um trimestre vencido e não importava se a
nota na média só tenha sido possível, em muitos casos, graças à polí-
tica de distribuição de pontos.
O professor de Literatura interrompe a explicação que fazia
sobre as transformações ocorridas na sociedade e de como isso
afetava o cotidiano da vida escolar, para provocar o grupo: “estão nas
alturas aí, pertinho do céu, hein?”.
Elas correspondem com sorrisos e acenos. O professor de Filo-
sofia pensa em perguntar qual era o sexo dos anjos, se contém a
tempo ao se lembrar do triste fato ocorrido o ano passado na outra
escola onde lecionava, tudo por culpa de uma brincadeira besta sua
envolvendo os anos de juventude de Jesus Cristo, ainda bem que
vinha aprendendo a segurar a língua dentro da boca.
“Estamos aqui entrando no mundo da filosofia e da literatura,
professor dá uma luz pra gente, não foi o Carlos Bandeira que
escreveu o poema, E agora João?”, diz uma aluna que perdeu quase
todas as aulas do trimestre, mas a poder de trabalhos retirados da
internet ficara com notas muito acima da média.
Ela estava exuberante, mesmo confundindo os poetas e o próprio
nome da poesia.
Outra aluna, esta sim, faltosa como a outra, mas sem dúvida
alguma, com um potencial diferenciado, se manifesta enquanto
desce a escada pulando os degraus de dois em dois, com tanta energia
parecendo incendiar o ar, “meus dois professores prediletos!”.
Uma professora passa, ouve o elogio e faz cara feia, engole em
seco e a censura “fica aí à toa, olha o meu trabalho hein mocinha...”,

47
Hudson Ribeiro

resposta afiada na ponta da língua, o corpo todo dança, enquanto


fala quase cantando, “já vou, só vou dá uma ideia a esses dois profes-
sores que eu aaaaaaaaaammmmmmmmmmoooooooo”, exagero
sarcástico, erguendo muralhas intransponíveis contra um relaciona-
mento mais franco, direto e aberto.

48
Lucidez Renitente

assombração

Quem confirmou presença? O Dani, a Lalá, a Didi e o Hur, três


casais, ótimo, vibrações garantidas na medida exata. O que eles dis-
seram sobre o lance de ficarem nus? O que? Você nada falou sobre
isso? Você só pode tá brincando...
Olha, já combinei com o seu Aílton, ele pediu para chegarmos
uns vinte minutos antes, podemos ficar até às duas, mas se desco-
larmos mais cinquentinha, ele libera mais uma hora, taradão por
dinheiro como ele...
lembrar de entrar pelo portão principal, nos misturar com os
familiares do defunto e discretamente, no macio do disfarce, cada
um seguir por uma trilha já sinalizada até o ponto de encontro.
O meu número é o 22 e o seu é o 03, Dani é o 18, Lalá é o 09, a
Didi é o 12, e o Hur é o 15. Agora preciso ir, providenciar as bebidas,
as comidas e outras coisas, o Sr. Aílton me deu a lista hoje de manhã
quando fui levar o pagamento, o mercado fecha às dezoito, preciso voar.
Na hora marcada, todos compareceram, exceto a Lalá, que mais
tarde diria o motivo fantástico, ao olhar-se no espelho para pentear
o cabelo o que viu no lugar da sua imagem foi algo tão aterrador
que por maior a insistência do grupo não conseguiu arrancar dela
nenhuma palavra.
Neste ponto o sr. Aílton foi bastante enfático, para dar tudo
certo só poderia casais.
O que fazer? Chico propôs um sorteio a ser realizado entre os
homens presentes, quem ganhasse ficaria de guarda. O Dani é tão
azarado que a única vez que foi sorteado, resultou não participar do
evento.
No fundo ele até que gostou, apesar de haver financiado a maior
parte do evento, estava era quase fazendo as suas necessidades fisio-
lógicas ali mesmo.

49
Hudson Ribeiro

O grupo se pôs em marcha, quanto mais subia, mais o frio


tornava-se intenso e um silêncio sepulcral tomava conta de todos.
Quando estavam na metade do caminho, abruptamente surgiu
uma velhinha, encurvada sob o peso da idade indefinida, trajando
uma roupa estranha, andando apressadamente, enquanto gesticulava
ora apontando para o próprio ventre, ora apontando para o centro
da terra.
A Lalá e a Didi juram que a ouviram rir baixinho quando
apontou para eles, depois para o lugar aonde se dirigiam. O Chico e
o Hur, dizem que as meninas estavam hipersensibilizadas por causa
do evento.
Caminharam um bom tempo em silêncio, mas era um silêncio
estranho, igual a quando colocamos algodão nos ouvidos, os sons não
nos chegam, mas todo o tempo sabemos que ele estão lá, rondando
sombrios.
A uns cinquenta metros, avistaram o que parecia ser uma
criança se balançando no ar, decidiram se aproximar para averiguar
melhor do que se tratava, eram movidos mais pelo temor do que
pela coragem.
Principalmente que todos perceberam que por mais esforços
que fizessem, não conseguiam articular um único som.
Aumentaram os passos ao encontro da criança, já estavam
suados e cansados, não obstante não terem avançado um centímetro
sequer, era como se toda a terra tivesse se transformado em uma
enorme esteira ergométrica.
Ao decidiram sentar um pouco, por detrás de uma árvore
surgiu um bando de saguis, que imitaram os gestos da idosa vestida
estranhamente.
Quando o senhor Aílton os alcançou, encontrou-os em estado
lastimável, o que arrancou um comentário irônico dele: “o combi-
nado era vocês tirarem a roupa e as confissões, não a pele e os olhos
uns dos outros, agora terei problema com a polícia”.

50
Lucidez Renitente

a culpa é da dialética

- Você não se sente culpado?


- Culpado de que?
- Ora, o que todos dizem é que você estava tão extraordinário
naquela noite que acabou engravidando a mente da garota, por isso
que ela se suicidou. E então?
- Então o que?
- Não dê uma de Mané Sem Braço, eu quero saber se você sente-
-se responsável pelo suicídio da Guta, afinal, o que você falou para
ela? Quando ela saiu do seu quarto parecia que estava doidona, com
o andar cambaleante e os olhos esbugalhados, balbuciando algumas
palavras desconexamente. A Irene, a minha noiva, jura tê-la ouvido
dizer, “a culpa é da dialética, a culpa é da dialética”, depois disso se
jogou janela abaixo.
- Não foi nada disso!
- Como não foi nada disso? A Irene contou-me tudo, mas ande,
dê a sua versão...
- A Augusta se matou por saber que estava grávida e aidética, o
que a sua noiva ouviu, deve ter sido, “eu sou aidética, eu sou aidética”.
- Mas o que você tanto falou para ela deixar seu quarto tão
transtornada?
- ...

51
Hudson Ribeiro

purificando a estirpe

Wesley Fonseca Junior, anão de um metro e meio, ruivo legítimo,


barba vermelha, espessa e revolta, impressionantes olhos verdís-
simos, que fazem lembrar a gudera da bola de gude, com muito
esforço conseguiu chegar ao posto de segundo tenente.
Durante a infância, no violento bairro Esquina do Paraíso,
ganhou o sugestivo apelido de “troca-tapas”, o caracterizava
como belicoso, era raro o dia em que não se envolvia em uma
escaramuça.
E, devido ao seu porte musculoso e com uma agilidade surpre-
endente para alguém da sua estatura, quase sempre saia vencedor
das contendas.
Toda essa íntima convivência com a violência, ainda em idade
precoce, tornou o tenente Júnior um homem mal humorado e
descrente das coisas do além, o seu único credo era a ordem e o
progresso, para ele ordem era cumprir as determinações superiores
sem se desviar um triz sequer e progresso era concebido, apenas,
pelo parâmetro da sua conta bancária.
O primeiro ser humano que matou foi um ladrão de bicicletas,
um garoto de quinze anos com várias passagens pelo juizado de
menores.
Depois teve aquele nordestino que em uma batida policial fez
um movimento suspeito, como se fosse sacar uma arma, Wesley não
deu sorte para o azar e alvejou o Zé Pernambuco três vezes e mortal-
mente, um tiro na testa, outro no coração, e o mais certeiro perfurou
o umbigo e estraçalhou uma vértebra.
- Se não morresse, aleijava, consolou-se o tenente, ao lembrar
que o Zé segurava era uma carteira de trabalho recém-assinada,
como ajudante de serviços gerais daquele enorme shopping multi-
nacional, que se instalara na cidade.

52
Lucidez Renitente

Para documentar as suas façanhas, a cada vítima que extinguia,


marcava a sua pistola com traço na coronha, um vertical para morto
masculino e um traço horizontal para morto feminino, crianças ou
adultos não havia distinção.
Essa prática era uma homenagem aos pistoleiros do velho oeste
norte-americano, dos quais, o Wesley era um fã ardoroso.
Atualmente conta com trinta e cinco anos e as marcas em sua
pistola chega ao número de quinze, dezesseis se incluirmos aquela
sindicalista, a Elvira Camargo, que jaz em coma a dois anos, viti-
mada por um tiro traiçoeiro na cabeça, quando fazia o seu Cooper
diário.
Ás vezes o Wesley enveredava pelo caminho das explicações de
sua conduta:
- Para mim pouco importa quantas pessoas eu matei, na verdade,
como o velho sargento Wesley, meu sábio pai dizia, não fui eu que
matei, mas sim, as balas da minha pistola.
E continuava, parecendo acreditar no que dizia, deixemos os
mortos descansarem em paz, a minha preocupação é com os vivos,
porque para mim, todo vivo é um morto em potencial, ainda mais se
for um vivo desordeiro e sem conta bancária significante, faço uso da
minha pistola cantiga de ninar e, tranquilamente, assinalo mais uma
marca na coronha, para efeito de documentação. Pouco me importa
se é na vertical ou na horizontal.
Homem prevenido nunca dorme com os dois olhos, e quando
vai ao templo presbiteriano para fazer o gosto da sua mulher, o
menos que olha é o culto, os dois olhos vidrados no pastor, afinal,
como ele mesmo gosta de dizer:
- Nenhum herói da história universal acreditou no acaso, não
serei eu a contrariar tão salutar regra, pois dentro da meta que tracei
para minha vida, considero-me um herói.
Junior não era de chorar pelo fim das estações e repetia o livro
dos Eclesiastes, ao seu modo:

53
Hudson Ribeiro

- Há tempo para viver e há tempo para morrer, o meu tempo


é de viver para promover o tempo de morrer dos desordeiros e dos
sem contas bancárias significativa. Desse modo, se para os outros a
morte é um estorvo, para mim, a foice ceifadora sorri e eu sorrio de
volta para ela, enquanto disparo certeiramente e documento vertical
e horizontalmente a façanha.
A sua prevenção se revela em toda a sua pujança ao aconselhar
o seu único filho, o Wesley Fonseca Neto, um rapagão enorme para
a idade de quinze anos.
- Meu filho, aconteça o que acontecer, nunca vire as costas para
um amigo, pois a amizade verdadeira é rara, quase inexistente, de
modo que, antes de virar as costas para um amigo, torne-se antes
inimigo dele e aos inimigos não se vira as costas, você está me enten-
dendo meu filho? Você sabe que eu tenho belos planos para você,
né? Tudo o que a minha baixa estatura e a minha infância naquele
bairro horroroso me impediu de realizar se abre para você como
as portas escancaradas da felicidade. Você tem tudo do bom e do
melhor, é por isso que eu vejo um futuro brilhante, quem sabe, você
chegando a major, o futuro Wesleyzinho chegue a comandante e,
assim, nós consigamos expurgar, definitivamente, o sangue ruim da
nossa estirpe.

54
Lucidez Renitente

nos conformes

Sinto muito mesmo minha senhora, mas quem tem poder de de-
cisão aqui é o Dr. Pereira, e hoje ele saiu mais cedo, agora só na
segunda, deixou até recado para não ser importunado sob hipótese
nenhuma. Parece que foi pescar lá nas terras da filha.
A senhora diz isso porque não conhece o doutor, com ele basta
escrever errado para o couro comer solto, pra senhora ter uma ideia
ele chegou a ocupar uma alta patente na época da invasão dos gafa-
nhotos, tem muita gente por aí que treme só de ouvir o nome dele,.
Outros tremem devido às sequelas deixadas pelos interrogató-
rios mais enérgicos, por essa época o doutor tinha um cão mastim
napolitano enorme, que o ajudava na difícil tarefa que exercia. A
senhora podia fazer o seguinte, falar comigo qual é o assunto, deixar
um meio para eu contatá-la e na segunda-feira mesmo, logo cedo
repasso o seu recado.
Se a senhora soubesse como ultimamente vem gente atrás do
doutor Pereira, só vendo pra crer, ainda mais agora, com as elei-
ções se aproximando, até pessoas que queriam a prisão dele, hoje o
chamam de exemplar da civilidade patriótica.
Ontem mesmo, parou um carrão aí na frente e saltaram uns
figurões, todos rosados, barrigudinhos e sorrisos largos, conver-
saram a tarde toda com o doutor Pereira, tive até que cancelar vários
compromissos.
Mas o doutor é cobra criada, a senhora acredita que o patrão é
capaz de ouvir toda a bajulação e só responder com um sorriso inde-
cifrável no olhar, como se medisse o tempo que o tempo vai gastar
para desenhar a nova cena?
Apenas quando a senhora entregou-lhe o cartão de visita, onde
se lia o nome de uma firma de exportações, que ele pôde notar o
quanto as mãos dela tremiam.

55
Hudson Ribeiro

bonde

Estava cada vez mais irritante o modo daquele funcionário público


federal externar a sua alegria, pelo fato do seu time liderar o campe-
onato nacional de maneira invicta.
Os colegas de repartição já não aguentavam mais tanta prepo-
tência, soberba e empáfia juntas, mas como tudo o que sobe, desce; e
tudo o que é sólido evapora no ar, como também, por mais veloz que
seja o bonde, em algum momento os trilhos se revelam traiçoeiros
e vingativos, o seu time do coração caiu de quatro, diante de um
oponente médio.
Em consequência desse desastre tremendo, que o funcionário
fanático tomou como uma agressão pessoal, tanto que cortou rela-
ções com todos da repartição, até com aqueles que torciam pelo
mesmo time do seu coração, na sua concepção, torciam muito frou-
xamente, já que ninguém o apoiou no intento assassino contra o
único torcedor do time que goleou o seu.
O plano era empurrar o colega de trabalho do alto do décimo
segundo andar, e depois todos, de comum acordo, dizer que ele havia
sido vítima de um mal súbito, perfeitamente cabível, uma vez que
ainda se encontrava impactado pela perda da única filha, naquele
assalto ao mais belo shopping da cidade.
O fato é que ninguém achou estranho quando o torcedor faná-
tico foi conduzido a uma clínica de repouso, devidamente contido
por uma vistosa camisa de força, nas cores do sangue e da noite.
Em sua mesa agora trabalha um jovem que nem de futebol
gosta, a sua preocupação principal é salvar o planeta da destruição
iminente e nos finais de semana se embrenhar nos matos para
observar a diversidade da fauna nativa, é claro que a turma sente
falta do colega enlouquecido, principalmente, nas segundas feiras,
dia da gozação e do orgasmo futebolístico.

56
Lucidez Renitente

mediana

Entra na sala, coloca ordem na turma, manda uns três pra coor-
denação, faz a chamada não se utilizando dos nomes, mas sim dos
números, pois assim fica mais imparcial e eficiente.
Cobra o dever da aula passada, tira pontos de quem não fez,
indica a página da lição do dia, manda uns dois alunos pra coorde-
nação, não trouxeram o livro, começa a explicação do assunto, fala
de rios, montanhas, lagos, mares, vulcões, vegetações, formatos de
nuvens, placas tectônicas, limites fronteiriços, nomes de continentes,
países, cidades, distritos; em uma voz que já denuncia a formação
calosa nas cordas vocais.
O sinal bate, os alunos respiram aliviados, mas ela utiliza ainda uns
dez minutos da aula da outra professora para passar o dever de casa.
Ao fundo da sala, dois alunos repetentes, com trejeitos dos
que já ultrapassaram a linha sensata da moral e dos bons costumes
conversam baixinho, respeitando o acordo tácito que tem com a
professora:
“Essa professora é gozada, na matéria dela não entra o ser
humano não né?”, “coube a nós uma baita de uma mediana, isso sim,
lembra-se do professor Coelhão?”, “Ih, nem te contei, encontrei com
ele lá na praia de Anchieta, estávamos a Keila e eu, ele estava com
uma rapaziada do barulho, um monte de negrões com cabelos rasta-
fari, chegou e me deu a maior moral, com aquela risada escandalosa
dele, segurou a mão da Keila e falou pra ela cuidar de mim, que eu
era uma pessoa de muito valor”.
“Você acha que eu sou uma pessoa de muito valor, parceiro?”,
“Bem, medíocre você ainda não é, mas pelo andar da carruagem, com
esse tipo de aula que nos aplicam, não sei por quanto tempo não”.
“E por falar nisso, você sabe quais são os afluentes do rio
Amazonas?”.

57
Hudson Ribeiro

espera

Esperou por ele até muitas horas depois da hora combinada, da va-
randa da sua casa viu e ouviu cenas, tão habituais, que até se fechasse
os olhos enxergaria e ouviria tudo nitidamente, apenas com os sen-
tidos lapidados pelos muitos anos passados naquela sacada.
Ao entardecer a fábrica apitou como um animal agonizante e a
rua defronte, deserta até àquela hora, viu-se subitamente povoada
por operários de expressões cansadas, cobertos de minério de ferro,
alguns poucos pedalando a bicicleta sem quadro e com freio contra
pedal, a maioria vinha caminhando com passos apressados
Em uma ansiedade marcante, não como quem vai ao encontro
de algo ou alguém, mas como quem foge desesperadamente de algo
e de alguém, nos ouvidos de todos, o uivo do animal agonizante
aterroriza ao lembrar que amanhã tudo recomeça...
Logo após a rua mergulhar outra vez no silêncio, antes mesmo
de ouvir, ela pressentiu, com o arrepio dos cabelos do corpo, as bada-
ladas do sino de cobre da paróquia, sob a responsabilidade do padre
Edmilson, e a rua foi tomada por inúmeros fiéis que iam ouvir a
palavra de Deus, através do seu servo, obeso e soberbo.
Muitos já dormiam quando ela começou a sentir as pálpebras
cansadas, ainda pode ouvir as conversas esparsas dos retardatários
dos frequentadores do bar da Leonor. Como sempre fazia, esperou
por mais meia hora, após o grupo de trabalhadores passar se enco-
lhendo devido ao frio noturno para encarar o turno da zero hora.
Dá um profundo suspiro e balbucia quase sem emoção: É,
alguma coisa deve ter acontecido de novo, para ele não vir.

58
Lucidez Renitente

piripaqui

Acorda e sente se aproximar, como uma nuvem indesejada, aquela


sensação de opressão e de vazio em seu interior, tão imenso que os
olhos se enchem de lágrimas, mas não as deixa escorrer – pra que
preocupar ainda mais a mulher que dorme a sono solto ao seu lado?
Já basta aquele chefe de maus bofes, que trata a todos conforme
a flutuação do seu humor.
Levanta-se, tentando não fazer barulho, toma o seu diurético e
o remédio para a pressão e começa a se sentir melhor, apenas aquela
sensação de uma saudade esquisita, pois sente uma saudade palpável
de coisas, fatos e pessoas, dos quais não se lembra de nunca ter
ouvido sequer falar.
Será que Platão estava certo?
Acerca-se da janela e contempla a baía, do outro lado um
enorme navio vomita carros em um ritmo tão monótono que dá
ânsias de vômito.
Precisa descobrir o que é aquilo, logo depois do ataque cardíaco
que sofreu em plena repartição, vivia sobressaltado com qualquer
sinal emitido pelo corpo, prestava atenção ao menor detalhe, o
funcionamento das glândulas sudoríparas, a quantidade de fezes
e urina, a frequência dos arrotos e das flatulências, dores no peito,
então, até que se convencesse não passar de gás preso, não sossegava
e ficava pensando em como seria morrer, o que será que a pessoa
pensa um segundo antes?
Esse martírio durou por volta de uns seis meses, volta e meia tem
uma recaída, principalmente, quando quer acompanhar o pessoal
sarado, que faz caminhada na orla de Camburi.

59
Hudson Ribeiro

o incendiário romântico

A delegada de polícia, Vanessa das Dores, muito estranhou a carta


que estava no bolso da calça do delinquente, tombado morto em
confronto com a polícia militar.
Um garoto ainda, que fora se engraçar a besta ao incendiar um
ônibus logo em um dos bairros mais nobres da capital, e aí não deu outra,
serviu de exemplo para a música do João Bosco, “Tiro de Misericórdia”.
A Vanessa se tornara policial mais por imposição da família
do que por vocação, na verdade, a sua grande paixão era a poesia,
especialmente, a poesia romântica; em suas madrugadas insones de
mulher divorciada arriscava cometer alguns versos e trovas.
Por isso, independentemente do tamanho da tragédia ela sempre
arrumava um jeito de descobrir o lado humano da sujeira toda, mas
de vez em quando quebrava a cara e era motivo de gozação de toda
corporação.
Como daquela vez que esteve, frente a frente, com o escorre-
gadio Valdivino “Pisa Macio”, mas o malandro apresentando carteira
profissional chorou um miserê tão grande, entremeado de citações
bíblicas para demonstrar que era um assíduo frequentador daquele
templo localizado na Avenida Fernando Ferrari, que chegou até
mesmo às lágrimas quando descreveu o estado de penúria que sofria,
juntamente com a mulher, doente dos nervos, e mais cinco filhos
ainda pequenos, o que foi demais para a das Dores.
De tão sensibilizada com “um-sete-um” do salafrário que, não
apenas dispensou aquele exemplo de trabalhador brasileiro, de nome
tão auspicioso, Alvares de Castro Drummond, muito parecido com
o famigerado Valdivino “Pisa Macio”, mas as aparências enganam e
todos os afrodescendentes se parecem, como também lhe deu todo
o dinheiro, que reservara para comprar a coleção completa do Poeta
lusitano.

60
Lucidez Renitente

Quando saiu da delegacia, agradecendo aos céus por haver esca-


pado de forma tão surpreendente, a primeira coisa que o malandro
fez foi roubar um Fiat cor de prata, justamente o carro de Vanessa,
que ficou uma ou duas semanas tentada a abandonar aquele senti-
mento tolo, que a fazia enxergar por trás do ato delinquente o sofri-
mento e a alienação do povo sofredor.
E aos sábados, quando tomava o seu pilequinho com a sua
amiga, a Monique, gostava de brincar com a questão: o povo sofre
por que é alienado ou o povo é alienado por que sofre?
E de nada adiantava a Monique demonstrar o seu sólido conhe-
cimento da lógica aristotélica, exímia promotora pública que era,
afirmando que, na realidade, a questão estava sendo muito mal colo-
cada. Por tudo isso é que a das Dores, na primeira oportunidade, se
pôs a ler o conteúdo do envelope, ensanguentado, encontrado no
bolso da calça jeans desbotada do ex-futuro-incendiário.

São João de Antão, 11 de abril de 2012


Querida Malvina;
Olá, como vai? Espero que bem e que a presente a encontre
esperançosa na crença cristã de que a fé remove montanha, prin-
cipalmente, aquela que mais nos assombra e nos aterroriza, por se
encontrar bem diante da nossa porta, ameaçadora e imponente nos
impedindo de viver a vida verdadeiramente viva.
Naná, se você soubesse o quanto penso e oro por você... oro
para que a sua fé se firme e a sua esperança se renove, fazendo com
que você brilhe cada vez mais, de modo que a cada segundo você
possa se preparar melhor para cumprir o plano divino reservado
para você.
Naná, eu oro te abençoando, oro te exortando, oro pedindo
sabedoria para nós, minha vida, e não se engane, toda desarmonia,
todo ódio, toda mentira, toda injustiça, é falta de sabedoria.

61
Hudson Ribeiro

Nos falta sabedoria ao agirmos de forma diferente quando


estamos sem dinheiro, nos falta sabedoria ao adiarmos, constante-
mente, a conversa que nos ligará em uma união compromissada, nos
falta sabedoria para anunciarmos qual é a expectativa que nos move,
como também, qual a perspectiva que orienta a nossa pretensão.
Nos falta sabedoria para realçar as coisas que nos harmonizam,
nos falta sabedoria para admitir a nossa ignorância ao não ultrapas-
sarmos as muralhas que nos separam.
Nos falta sabedoria para não apenas tocar, mas também, dançar
a mesma música, nos falta sabedoria para orar para o mesmo Deus,
nos falta sabedoria para nos relacionar sexualmente com audácia e
pudor, nos falta sabedoria para nos drogar com nós mesmos.
Naná, o que há de mais importante do que os nossos sorrisos,
nossos prantos, nossos pensamentos, nossos sonhos, nossos pesa-
delos, nossos... Nossos?
É isso que mais me enleva e, ao mesmo tempo, mais me obscu-
rece; enleva-me quando penso que podemos realizar todo o nosso
amor de maneira livre e soberana, me obscurece quando penso no
quanto falta caminhar para atingirmos um ponto satisfatório da
nossa relação.
Observe bem, Naná, quando digo que falta muito para atin-
girmos o ponto ideal, não estou esquecendo o quanto já cami-
nhamos, pelo contrário, em momentos onde tudo fica nublado, é
nessa conquista que eu me fixo e me regozijo.
Por isso oro com fervor, pedindo sabedoria para você, para mim
e para nós, perceba Naná, que a sabedoria que peço em oração é a
sabedoria divina e não a humana, querida, eu oro e consigo visua-
lizar um belo futuro.
A das Dores interrompeu a leitura quando o celular vibrou:
- Hoje não minha amiga, estou com uma enxaqueca horrível.
- ...
É, depois dos quarenta, surge em nós outra mulher.

62
Lucidez Renitente

- ... Não se preocupe, vou ficar bem, tomei um lexotan, diz que
eu mandei um beijão para todos.
Vai até à varanda e contempla os poucos carros, que passam em
alta velocidade, enquanto saboreia um cigarro, resolve acabar de ler
a carta antes de tomar banho.
As outras páginas da carta se parecem mais com um rascunho
e trazem a data do dia de ontem, sem referência alguma acerca da
localidade.
Eu gostaria de saber se ela percebe que se eu agir conforme ela
deseja isso significará a minha morte.
Então, estou diante de duas possibilidades, ou ela de tão fixada
em seu próprio umbigo e aprisionada pelo vício do crack não percebe
as exigências de um relacionamento ou o que seria terrível, a convi-
vência com uma pessoa tão sem escrúpulos, como o seu ex-compa-
nheiro, tornou-a insensível aos sonhos dos outros.
Eu me conheço muito bem e sei que se alguém chegar a ler esta
carta é que tomei a decisão definitiva; ou eu aceito esta situação
como natural e, por conseguinte, decreto a morte do meu sonho de
viver da música, ou eu admito que os meus músculos são poucos e,
mesmo com o coração sangrando, siga o meu caminho muito longe
do dela.
O que eu não posso mais é ficar impressionado por promessas
de mudanças que nunca se realizam, tanta gente precisando de luz e
a minha sendo desperdiçada debaixo da estreita cama dela...
Muitas coisas não foram ditas, mas confio em sua perspicácia
para compreender nas entrelinhas alguns dos fatos que chegaram às
raias da humilhação, atos tão cruéis que me sinto envergonhado de
contar a você, afinal você é a minha cunhada, o que eu sinto, é uma
espécie de nó no peito, chego a tremer com a perspectiva do futuro,
o peso da decisão me assusta, mas...
A carta se interrompia neste ponto; naquela sexta-feira, a das
Dores custou a dormir, dispensou o lexotan dela de cada noite e

63
Hudson Ribeiro

exagerou no Martini com vodca e azeitonas, e tentou assistir a um


filme pornô, mas não conseguia deixar de pensar naquele garoto
varado por balas de chumbo e no conteúdo da correspondência.
E a Malvina? O que estaria fazendo àquela hora da noite?
Ninguém viera reclamar o corpo, porque ficara com uma sensação
de que o jovem escolhera a irmã errada?
Que pena, autor de carta tão amorosa transvasado por tiros ao
tentar arranjar dinheiro, o bastante para sustentar o vício daquela
desgraçada da Malvina.

64
Lucidez Renitente

roubada

Então, o que deu errado para a barca naufragar? O “Caolho” bateu


pra mim que dois de vocês ficaram na horizontal e outros dois foram
grampeados, antes tomaram um sacode ali mesmo, em plena praça
pública.
Eu avisei, eu avisei, não vão de olho gordo não, que é furada,
pensar que o Barão iria retirar aquela bolada toda na cara e na
coragem? Ele contratou foi uma escolta inteira.
O comissário Décio ligou pra mim agorinha, até o pipoqueiro
da esquina era homem do Barão, aliás, foi ele quem deu o tiro de
misericórdia em Zulão, coitado, esse deixou mulher barriguda.
Agora vem a pior parte, como eu vou explicar pro Alfredão, que
você escapou e os outros todos se ferraram?
Tô quebrando cabeça aqui e até agora nada, mandar você pra
área do Marreco, com essa movimentação toda dos canas no morro,
nem pensar.
Deixa de ser burro, rapaz. A queixa que o barão prestou na
delegacia foi algo em torno de uns milhões, mais joias de preços
incalculáveis.
Outra coisa que você precisa saber, até aquela garotinha que
fingiu ser a sua namorada era carne do Barão, e o tempo todo você
pousando de cowboy, é rapaz, se eu não tivesse prometido à sua fale-
cida mãe...
Essa seria uma boa hora de entregar você aos urubus, eh? Pera
aí! Acabo de ter uma ideia que pode dar certo.
Vá lá dentro e pega lápis e papel, vamos torcer para que o seu tio
ainda esteja dando as cartas lá no lixão.

65
Hudson Ribeiro

cego

E como você faz para pegar ônibus? Sei... Quero ver o dia em que
seguir um conhecido e acabar em um lugar sinistro. Como assim?
Você já foi parar no bairro “Cantinho do Céu”? Como é que está
tudo aquilo lá agora?
Porque na minha época era uma barra pesada danada, eu mais os
companheiros de guerra, Olindo treme-treme, Brown da colina e o
Bebé da Matilde, mas agora deve ter mudado tudo mesmo, também,
já faz tanto tempo, tanta coisa se passou, tanta gente desaparecida.
Eu mesmo já não sou nem a metade do que eu era, com essa
perna entrevada, se não fosse essa dúzia de filhos que tenho espa-
lhada pelo morro, ninguém acreditaria que esse frangalho que está
aqui, trata-se do ex-temível Zequinha fura-olho. Às vezes penso se
não teria sido melhor eu ter afundado também, naquela confusão
desembestada, tudo por causa daquela paranaense caolha, bons
tempos aqueles eh, eh, eh.
Volta e meia sinto uma saudade arretada; o Bebé, o Olindo e o
Brown, depois fiquei sabendo, que a tal paranaense era uma tremenda
de uma Drag Queen, fugitiva do seu estado natal por envenenar os
seus desafetos com uma moqueca irresistível de baiacu, os corpos
dos meus companheiros ficaram tão deformados, que quase não os
reconheci; me deu um trabalho danado, mas alcancei a desgraçada
já em terras paraguaias.
A briga foi feia, além de tudo a bicha lutava capoeira igual a
baiano, acabou me acertando a perna de jeito, mas ela não vai enve-
nenar mais ninguém, isso o José Moraes Mota garante com toda
certeza.
Agora, voltando ao assunto, por que você não aprende a ler e
para de ser teleguiado pelos outros?

66
Lucidez Renitente

torcida

Jogo da seleção, clima festivo, televisão de muitas polegadas colocada


no quintal, com direito a um telão e tudo mais. Um freezer lotado de
cervejas, um garrafão de pinga da boa, a carne farta na churrasqueira e
o pagode comendo solto, “morreu a minha alegria, minha companhei-
ra de orgia”, bom, ninguém prestava atenção à letra mesmo...
A um sinal do Seu Bibi, o grupo fez um silêncio surpreendente,
hora do hino nacional, o senhor Fabiano Souza Lima, oficial da
aeronáutica, viúvo e aposentado, exigia de todos os que vinham
assistir os jogos em seu sítio, que seguissem as normas da casa, hora
do hino todos de pé e cantando, para quem não sabia a letra, ao
senhor Bibi providenciava cópias, e era na postura militar e com o
semblante contrito, que todos entoavam o hino.
Juntamente com o acorde final era o Seu Bibi que puxava o coro:
“Viva o Brasil, país como este não há!” Com a autoridade de quem
havia sido adido militar durante décadas e em vários países, estra-
nhamente todos do chamado Terceiro Mundo.
O clima de festa reinava com toda a força e o Seu Bibi, orna-
mentado dos pés à cabeça nas cores verde, amarela, azul e branca,
não parava um segundo: “Vai pelas pontas, pelas pontas, eu falei pelas
pontas, seu filho de uma égua. Agora, vai, vai, vai, vai tomar no...”.
Domingo que vem tem jogo da seleção e todos estão preocu-
pados, pois da última vez o Sr. Bibi teve um ataque de nervos e se
engasgou com uma espinha de peixe e quase veio a falecer.
O Isaque, aquele grandalhão que coloca ordem na casa, teve
que dar um tapaço em suas costas pra ele cuspir a espinha longe,
o Vinicius, que não vale um tostão, confessa que viu um olhar de
satisfação no olhar do Isaque – sem dúvida foi uma ótima opor-
tunidade para ele se vingar de tantos maus tratos protagonizados
pelo seu chefe, que em momentos de fúria parecia mais um grande

67
Hudson Ribeiro

senhor de escravos, querendo tudo do modo e na hora que o


apetecesse.
Por conta desse contratempo, muitos dos visitantes assíduos já
haviam arranjado desculpas para não assistirem ao jogo na casa do
Sr. Bibi, vai lá que em vez de jogo acabam assistindo a um óbito?

68
Lucidez Renitente

aconchego

Ao entrar no prédio onde reside desde início do ano, já emite sinais


de satisfação, entra no elevador, se está sozinho, batuca um sambi-
nha das antigas, aparentemente ingênuo, mas prenhe de sabedoria,
“que a nossa vida é nascer e florescer para mais tarde morrer”, salta
do elevador e antes de percorrer o corredor contempla a cidade, que
jaz adormecida, após mais um dia de agitação.
Hoje mesmo surraram um rapaz que tentou roubar a bolsa de uma
jovem senhora grávida, apanhou até não mais poder, quem o salvou
foi a chegada da viatura de polícia. Percorre o corredor a passos largos
e antes de adentrar no apartamento dá três batidas firmes na porta,
anunciando-se e abençoando a todos os que vivem ou visitem ali.
Imediatamente o coleiro til-til inicia o seu canto de saudação,
e como em todas as noites pensa em como é gozado como alguns
animais parecem conversar com a gente, chega-se mais e faz a festa:
“E aí Sebastian, como é que vai essa força?”, nomeou-o Sebas-
tian em homenagem à Bach, depois ficou sabendo que o nome de
batismo do grande Tim Maia era também Sebastião, com muito
gosto ampliou a homenagem.
De repente para e se sente inebriado por algo que sempre o
encanta, de tardinha quando saiu para trabalhar, a sua morada não
possuía aquela luminosidade dourada que agora todos os recantos
refletem, e nem essa fragrância inconfundível, sem a qual viveu por
mais de três décadas, mas que nunca se esqueceu.
E, certamente, a lembrança daquele aroma indescritível e, ao
mesmo tempo, tão íntimo, que foi a sua bússola, para a busca que
empreendeu durante todo esse tempo, chamada por muitos de
comprovada insanidade.
Quando ela caminha em sua direção, o coração dispara e as
pernas ficam trêmulas, afinal não é comum um sonho vivo enca-

69
Hudson Ribeiro

minhar-se em nossa direção, disfarça, dá um beijo de leve em seus


lábios, com uma vontade de engoli-la e olhando-a atentamente para
ver se descobre algum resquício de tristeza.
Sobre a mesa algumas páginas do livro que começou a escrever,
ainda sem nome; na cama a mais nova integrante da família, a Jana,
tudo tão harmonizado que a afinação instaura um clima de paz,
capaz de suavizar todas as iras pelas quais já passou.

70
Lucidez Renitente

a sogra do oseias

Noêmia era o nome dela, para ser mais exato, Noêmia Romana
Nogueira, que após o casamento com Frederico Helsen, filho de
legítimos prussianos, teve o Helsen acrescentado ao seu sobrenome.
Uma bela mulher no alto dos seus quarenta e cinco anos, bibliote-
cária por formação acadêmica e dona de casa de fato.
Com um corpo de formas perfeitas, vasta cabeleira ruiva, olhos
repuxados de gata siamesa, seios opulentos e pontudos, parecia desa-
fiar a erosão do tempo e fazia inveja a muitas jovenzinhas. Das gravi-
dezes que tivera no curto período de três anos, uma foi frustrada em
consequência de uma eclampse, e a outra vingara bela e maravilhosa
e respondia pelo nome de Lorena Romana Helsen.
Frederico Helsen era um homem fisicamente insignificante,
magérrimo e altíssimo, com sua cara de coruja compunha uma figura
tão desgraciosa quanto uma garça manca, posto que o Fred, como os
familiares o tratavam, andava mancando com a perna direita, vítima
de uma poliomielite herdada dos tempos de criança em cidade do
interior.
Enquanto a Noêmia era pura labareda enlouquecida, um poço
inesgotável de sensualidade, que apenas com o seu gingado caden-
ciado e a sua gargalhada fácil e envolvente fazia até o padre respon-
sável pela paróquia local contestar veemente o voto de castidade,
masturbando-se freneticamente todas as vezes que a via.
Fred, entretanto, refletindo a sua profissão de exímio economista,
era metódico como um prussiano e até casmurro. De fato, durante
os seus cinquenta e sete anos de vida poucas pessoas privaram de
um sorriso de Frederico Helsen, é que ele tinha um desejo e uma
suspeita que lentamente o carcomiam.
A diferença entre os cônjuges determinou em grande parte
oacerto da relação. Por ter se dedicado inteiramente aos estudos,

71
Hudson Ribeiro

Fred já se casara na idade madura de quarenta e dois anos, apenas


quando a sua mãe, que nascera Frida Schwarz, morrera vitimada por
um fulminante ataque cardíaco.
Frederico Helsen desposou Noêmia Romana quando ela contava
com a idade de vinte e sete anos, quinze anos dos quais curtidos na
cidade grande, onde a arte e a expansão da mente foram a tônica
da sua vivência e autores como Aldous Huxley e Carlos Castaneda
eram tidos como o suprassumo do conhecimento extrassensorial.
Lorena Romana Helsen era uma Itália aprisionada pela
Alemanha, alta como o pai e cheia de carnes como a mãe, herdou
os olhos azuis piscina da família Helsen. Apesar da maior parte do
tempo ser introspectiva como o pai, tinha os seus momentos de hila-
ridade como a mãe, de tez acetinada, enfim, a Lorena ou apenas Lo,
era o encontro de Roma com Berlim na terra brasilis.
Depois de casada, Noêmia mudou-se com o esposo para a
cidade natal dele e, para combater o marasmo de uma vida insípida,
desenvolveu um costume que muitos julgam ser vício – colecionar
revistas eróticas e se masturbar com os objetos dos mais estranhos,
o último deles era um pepino de bom tamanho, muito maior que o
flácido pênis de Frederico.
Esse costume se tornou mais intenso desde que a Noêmia fixou
os seus olhos e a sua mente nas grossas coxas do Oseias, noivo da
sua filha e seu futuro genro, um rapagão da cor do pecado, moreno-
-jambo, com uma cabeleira índia e os lábios grossos e apetitosos de
ancestrais negros.
Por uns seis meses, a Noêmia viu-se no dilema de se manter
casta, até por gratidão ao bondoso Fred, que a alçara a uma melhor
condição social, ou dar vazão aos apelos da sua carne esfomeada e
substituir o pepino pelo próprio sexo do seu estupendo genro.
E quanto mais a Noêmia viajava nas leituras eróticas mais se
imaginava fornicando com o seu genro em posições inusitadas que
causariam inveja a qualquer contorcionista. E quando caia a noite,

72
Lucidez Renitente

tinha que se contentar com a frigidez e a flacidez do Frederico Helsen,


que a cada noite tornava-se mais frígio e mais flácido, consumindo-se
no seu desejo irrealizado e na sua suspeita nunca revelada.
Lorena, que uma vez até flagrou o olhar libidinoso que a mãe
lançava sobre as grossas coxas do seu noivo, tranquilamente decidiu
se entregar a ele como maneira eficiente de prendê-lo e dar um fim
naquela história incestuosa, e tudo ocorreu conforme o planejado,
casaram-se e se mudaram para o exterior.
Do alto dos seus sessenta anos, ainda traente, Noêmia relembra
tudo isso serenamente, agora faz uso do pepino apenas uma vez por
mês, sempre que retorna do asilo para alienados onde se viu obri-
gada a internar o pobre Fred, após ele ter sofrido um ataque de
loucura e pôr-se a gargalhar estupidamente, enquanto nos intervalos
do acesso discursava furiosamente:
- Eu odeio este país de misérias e regressos, por que Deus não
me fez nascer na minha mãezinha Alemanha? Mas não, os imbecis
dos meus avós tinham que vir logo pra essa terrinha cheia de negros
bêbados e mulatos preguiçosos, por aqui as coisas mais sérias são o
carnaval, o futebol e o jogo de bicho. E você, dona Noêmia Nogueira,
a famosa “Mimi língua quente”, por que este espanto? Você acha que
eu não pesquisei a sua vida pregressa? Quer saber mais? Desconfio
até que a Lorena, a sua filha cheia de carnes e andar rebolante como
fêmea no cio nem minha filha é, oh, oh, por que fizestes isto comigo?
Após o quê tombou catatônico, esvaindo uma baba gosmenta pelo
canto da boca e piscando o olho esquerdo assustadoramente.
Em um país do chamado primeiro mundo a Lorena realizava
todas as fantasias eróticas da sua mãe e em cartas, cada vez mais
escassas, relatava minuciosamente os orgasmos alcançados e os
gozos propiciados.
Saindo do seu devaneio, Noêmia se certifica pesarosa que hoje
é dia de visita e, como olhar lânguido grita em direção à cozinha:
- Maria, lembrou-se de trazer o pepino?

73
Hudson Ribeiro

satisfação

Uma vez a cada vinte e seis mil anos, o senhor do universo enviava
o seu emissário para averiguar as quantas iam os mundos habita-
dos galáxias afora. Dessa vez o clima de expectativa era imenso,
por conta de um dos planetas, que apesar da sua beleza exuberante
em tons azulados, contando com uma diversificada flora e fauna,
era conhecido por todo o universo como a favela do cosmo, tal a
miséria reinante em suas fronteiras permanentemente em estado
de guerra.
Também era excessiva a carência de comida e de pensamentos,
a falta de comida tornava os seus habitantes animais violentos e
imprevisíveis; e a falta de pensamento tornava o aprisionamento,
o egoísmo e a desigualdade os sustentáculos da convivência belige-
rante, que imperava naquele planeta.
O responsável em administrar aquele lugar era alguém que
percorrera todos os degraus da ascensão funcional, com a peculiari-
dade de ter sido um dos mais iluminados incendiários sociais que as
galáxias tinham notícias, no seu tempo de militância nos sindicatos
e nas associações de bairro. E hoje executava o ofício de bombeiro
da maneira mais fleumática possível.
O dilema que ele se encontrava dizia respeito aos relatórios, que
deveria entregar ao emissário universal, pensou, pensou, pensou,
relembrou do seu tempo de incendiário e elaborou a solução, que
considerou extraordinária, batizada de “ajuste de rota”, na verdade,
era uma reedição mais sofisticada da medida que tomara quando há
alguns anos atrás, era diretor de um grande condomínio e conven-
cera ao seu chefe amenizar os dados catastróficos do relatório anual,
e para tanto, usou e abusou do que chamava de ”eufemismo ativo”.
De modo que o emissário ficou muito impressionado com aquele
planeta, que em tão curto espaço de tempo, passara de favela do

74
Lucidez Renitente

cosmo a paraíso universal, alcançando a excelência da convivência


pautada na fartura do pão, da liberdade e da fraternidade.
Logo após a despedida do emissário, satisfeitíssimo com os
resultados apresentados, o administrador do planeta achou por bem
convidar o seu grupo de apoio mais próximo para o chá da meia
noite, e fez questão da presença do seu secretário particular, que fora
tenazmente contrário à ideia do plano, porque como se sabe, cautela
e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

75
Hudson Ribeiro

saudades

Vem cá, dê-me um abraço, puxa quanto tempo...


Nossa! Já faz isso tudo mesmo? Sabe que em mim a saudade
se presentifica com toda a sua força apenas quando ocorre o reen-
contro? Aí é que eu sinto o peso de todo o tempo passado longe do
amigo ou da amiga, deve ser porque carrego comigo todos os que me
são caros, bem juntinhos.
A minha mãe me ensinou que o nome disso é rente, então já
olho o meu entorno transfigurando-o para ficar semelhante ao meu
povo, uma estirpe que foi trazida lá do outro lado do mar.
Uma amiga psicóloga me alertou que isso poderia ser um
indício de esquizofrenia, fiquei olhando pensativamente para ela, o
que ela entendeu como concentração da minha parte, na verdade,
era a minha imaginação colocando a bela cabeça dela no corpo do
Jô Soares, depois no corpo do Marco Maciel.
Depois a imaginei como stripper, cheguei até a ouvir a música
sensual e ela já tirando a última peça de roupa, uma calcinha preta
rendada e um sabor de framboesa.
A voz dela me obrigou a retornar à conversa, como sempre
retorno dessas viajadas com as mãos trêmulas, coloco-as nos bolsos
da calça para preservar um pouco da minha dignidade.
Se bem que nada posso fazer a respeito do meu olho esquerdo que
gira incontrolavelmente, parecendo querer sair de órbita, “fica com essa
cara não, no histórico médico há tantos indícios que não se confirmam...”.
Então, trago todos os que eu amo rente a mim, os mortos, os
vivos e até os ligeiramente vivos, quando reencontro os que eu não
via há muito tempo, a minha primeira preocupação é perguntar,
“onde que nós paramos?”.
Mas com você a minha alegria é mais exultante, afinal pegamos pesado
para expulsar os gafanhotos esfomeados vindos com a última invasão.

76
Lucidez Renitente

juca

Melhor é o Juca ir lá, falar com ele, afinal cursaram a faculdade jun-
tos, moraram na mesma república, dizem que até namoraram a mes-
ma Lika da Pedagogia.
lembra-se daquele mulherão? Então, o Juca e Essezinho aí,
socializaram-na, se bem que naquela época era um vale tudo danado.
Por isso é melhor mandar o Juca, se a Lika pudesse ir, seria melhor,
mas não no estado em que ela se encontra...
Diga ao Juca para pegar de leve, mas deixar claro que o caldo pode
engrossar a qualquer momento. E que já fomos pacientes demais.
Pô! Não é a primeira nem a segunda vez que essezinho tenta
nos ferrar, e já tem gente nossa com o dedo coçando na direção dele.
Tome, leia essa carta aqui, do nosso colega Gonzales, leia com
calma, digeres devagar, que é indigesta.
Beba essa aqui, é lá do interior do Espírito Santo, alambique artesanal,
a minha cunhada trouxe ontem. Leu? Entendeu como é o esquema?
Essezinho fica aí pousando de galã comportado de braços dados
com a tradição, família e propriedade, mas está afundado até o
pescoço na merda.
O imbecil nem desconfia que o gerente do hotel onde ele vive,
à custa do contribuinte e dos favores concebidos pela esposa do
patrão, dono do jornal onde milita, publicando esses panfletos trans-
vestidos de matérias sérias, é o nosso prestimoso colega Gonzales,
um venezuelano porreta que veio para o Brasil pelo amor da passista
Maristela, destaque da escola de samba Novo Império.
Então é dizer para o Juca, use o seu charme e no meio da
conversa, deixe escapar quantas vezes achar necessário a expressão
“beijinho doce”.
Ele vai entender tudo, caso se faça de besta, o jeito então é
convocar os nossos rapazes mais resolutos.

77
Hudson Ribeiro

ficante

Bem dizem, quem vê cara não vê coração, a menina, o maior delírio


e na hora da gente ficar numa boa, ela veio com uns papos de tantas
curvas, que estou com dor de cabeça até agora.
Para começar, você acredita que ela ainda é virgem? Disse-me
que se filiou, quando morou no exterior, a uma comunidade de
adolescentes, defensores da virgindade até o casamento. Nós fomos
praquele lugarzinho ali na enseada.
Eu todo eufórico, levei umas garrafinhas de ice para relaxar, o
céu estava tão estrelado que parecia cair sob o peso das estrelas, e
a luz do luar incidia sobre as águas, formando caminhos etéreos,
convidando as pessoas apaixonadas ao delírio extremo.
Isso eu falei para ela, quando a abracei e senti o calor do seu
corpo, para o meu espanto ela deu-me um beijinho no rosto, acari-
ciou os meus cabelos com um sorriso bondoso nos olhos, e levou-me
pelas mãos até à beira da praia e ficamos assim por um longo tempo.
Ora admirando o brilho das estrelas, ora contemplando as rotas de
fuga formadas pela claridade do luar sobre o mar, ondulando mansa-
mente acariciado pelo vento vindo das bandas das terras africanas.
Já era por volta da meia noite quando ela parou de me exortar,
após falar de Deus, do mundo, do absurdo, da revolta, às vezes se
emocionava a ponto de chorar, outras vezes ia abrindo um sorriso
que virava riso até se transformar em uma gargalhada contagiante.
Confesso uma coisa, durante todo esse tempo me senti total-
mente fora de mim, embora de modo estranho, nunca tenha me
sentido tão de posse de mim mesmo.
Depois ela ligou para certo número e um chofer albino, devida-
mente uniformizado, veio nos buscar, durante todo o trajeto ela veio
conversando com o chofer em uma língua eslava que eu não pude
identificar, deixou-me aqui em casa com um olhar de desapontamento.

78
Lucidez Renitente

lista

Quem você colocaria em sua lista? Espere, deixe-me anotar para não
confundir. Da última vez você falou Pedro, eu pensei que fosse o da
padaria, mas era mesmo o Pedro Xarope, serei mais cuidadoso dessa vez.
Vamos lá, Silvinha, sua irmã, você me disse que ela foi a primeira
pessoa a falar em disco voador com você; vê se isso é coisa pra se
dizer a uma criança, pior que você acreditou...
Dona Odília, não foi aquela vizinha sua que tentou se matar
cortando o próprio pulso? Também, suportar um esposo tão violento
como aquele... Não sabia que você tinha queda para suicida, ainda
mais mal sucedida.
Seu Felisberto, o que matou o próprio irmão por uma questão de
amor? A vida é cheia de curvas, com tantas mulheres no mundo e o
Felisberto tinha logo que se apaixonar pela própria cunhada?
É, você tem um critério bem estranho.
Ah, esse não podia faltar, Dinho Tril, que um dia desfilou doidão
pelas ruas do bairro, peladão, peladão, segurando uma bandeira, onde
se lia: “todo mundo nu, oba!”; Até que enfim um bem humorado.
Ainda hoje no bairro a história contada é que ele ficou doido de
tanto estudar. O velho Onofre, esse eu também levaria, sofrer como
ele sofreu na época da invasão dos gafanhotos.
Dizem que tomou tantas pancadas na cabeça, que passa o tempo
todo repetindo: “martelo foi-se, retornaram com o açoite!”, “martelo
foi-se, retornaram com o açoite!”, “martelo foi-se, retornaram com o
açoite!”. Você sabe que ele é o tio da Renata, né?
Estamos chegando ao derradeiro, ah sim, claro, o Tonico! Êta
menino mais levado da breca, inteligente como ele só, dizem que
puxou ao avô, um marinheiro africano.
Sabe o que ele me perguntou um dia desses? Por que o padrinho
não ligava mais pra ele, só metido em fazer listas e mais listas...

79
Hudson Ribeiro

Deixa de ser besta, sujeito, como eu ia explicar para uma criança


de sete anos, que você agora brinca de Noé e prepara listas das
pessoas que levará na arca?
Cada uma que você me arranja...

80
Lucidez Renitente

contingências necessárias

Funcionário concursado, onde logrou alcançar o primeiro lugar e


por isso mesmo pudera optar por trabalhar próximo de onde residia.
Homem meticuloso em suas tarefas, Aldo sempre fora assim, do
alto dos seus trinta e três anos vividos confinados naquela ilha que há
tempos fora chamada, por um polêmico jogador de futebol, de província.
Aquilo o magoara profundamente, magoara tanto que não mais se
dignara a assistir aos jogos do time do jogador falastrão e para os poucos
íntimos, pois não privava de muitas amizades, explicara lacônico:
-Estou em greve, em defesa da minha deliciosa ilha.
Assim era o Aldo Gonçalves Lisboa, que trazia em seu currículo
afetivo dois casamentos desfeitos por causa de traições.
No primeiro, com a Rosinei, ela o traiu com o vizinho; no
segundo, ele traiu a Helen com uma colega de trabalho; a respeito
dessas experiências viscerais, ninguém tinha acesso a como elas
foram digeridas por Aldo.
O que ninguém suspeitava era que o Aldo acreditava haver
desvendado o mistério do universo.
Após estudar exaustivamente o livro da cabala e realizar
complexas operações, onde inverteu todo o processo ortodoxamente
preconizado, concluiu que deveria buscar a arké diretamente na
origem mesmo da numerologia.
Matriculou-se, via internet, em um curso de filosofia por correspon-
dência, cujo pomposo nome era, “Os Pensadores Originários” e, tendo
lido no livro de Bertrand Russell a tese de que Pitágoras foi mais impor-
tante do que Platão, catalogou o pensador da “República” como idealista.
E Aldo, como homem de extrema meticulosidade, queria
distância do idealismo, mal sabendo ele que no “Banquete”, o amor
platônico está mais é para uma orgia desenfreada do que o idílico
namoro à distância, apologizado pela hiperorexia ocidental.

81
Hudson Ribeiro

Foi assim que o nosso Aldo se aprofundou, com afinco juvenil,


na tarefa de entender os mistérios da numerologia pitagórica.
O feto prematuro gerado desse estudo, estapafúrdio, foi algo tão
inusitado que, só contando algumas passagens dessa odisseia para se
entender como o pensamento desembestado pode nos pregar tantas
peças e nos trazer até a morte.
Durante mesmo a leitura da cabala, Aldo adotara o número
dezenove como SEU número, pela simples conta aritmética de
somar as letras do seu nome.
Não era apenas isso, tudo em sua vida passou a girar em torno
do número dezenove, desse modo é que somava um mais nove e
o resultado dez, era o outro número sagrado, diminuindo chegava
a menos oito, multiplicando alcançava o número nove e dividindo
resultava em zero vírgula nove.
Com esse zero vírgula nove, e o menos oito o Aldo implicara,
afinal, como poderiam ser sagrados números quebrados ou negativos?
Passou alguns dias mais intratável que de costume, até que em
uma manhã antes de sair para o trabalho, sentado na privada, o
seu trono predileto para realizar suas profundas reflexões numero-
lógicas, percebeu que se invertesse o processo matemático, se safava
daqueles números tão inconvenientes.
E de fato foi assim, o resultado da recontagem, agora invertida,
era dezenove, dez, oito e nove.
Isto foi apenas o começo de uma série de elucubrações que
acometeu o Aldo Gonçalves Lisboa, mas também implicou com o
número dezenove arredondou, o que implicou em novos cálculos e
novos números sagrados.
Do vinte chegou ao dois, dois, zero e zero; simples, bonito e
prático como era muito do seu gosto.
Aldo despertava às quatro horas da manhã, mas não se levantava
de pronto, na cama mesmo escrevia em uma espécie de diário as suas
reminiscências dos sonhos que tivera.

82
Lucidez Renitente

E quanto mais se profundava em seus estudos, mais seus sonhos


se tornavam vívidos, como não dormia sem assistir o jornal da noite,
era tiro certo, que nas brumas etéreas do sono, as imagens colo-
ridas do noticiário, agora distorcidas, vinham imiscuírem-se em seus
sonhos.
E mais inacreditável era que o Aldo participava, ativamente, das
tramoias que se desenrolavam.
Dessa maneira, era ele que se encontrava na cabeceira do Papa,
quando esse deu o último suspiro, o gozado é que ora Aldo era o
padre responsável em administrar a extrema unção, ora era o médico
que, com uma expressão tristonha, diagnosticava a inflexibilidade da
morte, mesmo se tratando de alguém tão importante como o Papa.
De repente, como em um passe de mágica, Aldo dançava frenetica-
mente ao lado do Presidente da República, em um distante país africano.
De novo no Vaticano, nesse momento ele é o Cardeal respei-
tabilíssimo convencendo os seus pares da necessidade do próximo
Papa ser um homem já idoso, para ser assegurado um papado de
curta duração e também, um homem sectário, linha dura mesmo,
para que o seu sucessor mesmo sendo um homem moderado, fosse
considerado um progressista.
A mesma tática empregada pelo mercado, aumenta-se o preço das
mercadorias e depois se retorna aos preços anteriores, mas se propaga
que houve uma baixa nos preços, tudo para iludir o povo, como a
fumaça branca que sai pela chaminé anunciando, “ já temos Papa!”.
Agora Aldo corre espavorido pelas matas de uma floresta tropical,
pois acabara de assassinar uma missionária norte-americana...
O primeiro ônibus que passa o desperta dos seus sonhos, deva-
neios, desvarios, nem sabe mais como os chamar, o que sabe e faz é
anotar tudo que sua lembrança lhe traz, em uma prática psicanalí-
tica, chamada de “pegar sonhos”.
Quando o galo canta exatamente às quatro horas e trinta
minutos, Aldo se levanta, bebe três copos duplos de agua mineral

83
Hudson Ribeiro

com gás, realiza os seus exercícios abdominais, pula corda, afinal,


deve manter a silhueta conforme a resultante da conta entre o seu
peso, a sua altura e a sua idade; toma banho e se entrega à tarefa da
meditação, onde o seu mantra é “harmonia, amor, verdade e justiça”.
Às cinco horas e trinta minutos toma o seu desjejum, tudo á
base de alimentos naturais, e das seis às sete horas e trinta minutos
estuda, diligentemente, como interpretar corretamente os indícios e
vestígios numerológicos.
Se for uma segunda-feira, acende uma vela para as almas,
mas incipiente nessas artes, não sabe que lugar de velas para as
almas, nunca deve ser acesa dentro de casa, vai ver que é por
isso que os seus estudos não estão avançando, tão rapidamente,
como desejava, e nem ganha mais no jogo de bicho, já tentou
as várias composições com seu número sagrado e nada, mas ele
é paciente... Cachorro, águia e vaca, um dia a sorte vem... Ulti-
mamente de tão tranquilizado com o estudo da numerologia,
tem respondido cortesmente aos cumprimentos dos colegas de
repartição.
Vai para o trabalho de ônibus, mas só entra na condução se o
número desta tiver alguma coisa com o seu número sagrado, como
toda gente sabe os números se prestam para se chegar a qualquer
lugar, assim dois mil setecentos e noventa e quatro, dão vinte; o
mesmo resultado com o número mil cento e dezessete; se somarmos
os números entre si, e elevarmos ao quadrado o resultado e depois
dividirmos por quatro, também dá vinte.
E assim ia Aldo, contando todas as coisas que lhe apareciam,
realizando contas fantásticas: quantas pessoas haviam no ônibus?
Que dia era hoje? Para efeito da sua contagem domingo era o
primeiro dia da semana, segunda-feira era o segundo... Na segunda
semana domingo era o oitavo dia, segunda, o nono...
Que data era hoje? Em sua contagem não havia primeiro de
fevereiro, mas trigésimo segundo dia, isso facilitava seus cálculos.

84
Lucidez Renitente

Na repartição onde trabalhava, simpatizava ou antipatizava com


o contribuinte conforme o número da senha apresentada, alguma
relação com seu número sagrado? Atendimento VIP, com direito a
agua gelada e cafezinho quente; nenhuma relação com seu número
sagrado? Um chá de espera seguido de um atendimento menos que
precário.
Quando não tinha nada para fazer, Aldo ficava contando quantas
vezes a colega de trabalho, aquela linda loura, passava as mãos pelos
cabelos em cascatas para logo em seguida, disfarçadamente, enfiar
o dedão no nariz numa operação popularmente conhecida como
“limpeza de salão”; ou quantas vezes o colega, o Edson, elogiava a
nova camisa do chefe da repartição, o Doutor Almeida.
Na hora do almoço, quantas garfadas eram necessárias para
limpar o prato, e quantas vezes mastigava a comida corretamente;
dono de uma memória prodigiosa, Aldo gravava tudo em sua mente,
para mais tarde, no sossego do seu escritório, especialmente cons-
truído para esse fim, calcular as relações entre as constatações nume-
rológicas do dia com o alinhamento dos planetas, as fases da lua e o
que dizia o horóscopo chinês.
Dessa forma transcorreram cinco anos de dedicação obsessiva,
naquela sina de desvendar o enigma do universo mediante a nume-
rologia, e já ousava espalhar algumas máximas pelas paredes da sua
casa, “Deus é mais que geômetra, Deus é o próprio número, e com
certeza, é o número vinte”.
Ora, quem não puxa aos seus é monstro, nos ensina o velho
ditado; o que Aldo não aprende com o ditado é prestar atenção na
loura que fica dando mole para ele, e já nem enfia mais o dedão no
nariz, continua apenas com o gesto de levantar os fartos cabelos,
mostrando a nuca suada e revirando os olhos com um sorriso sedutor.
As coisas iam desse modo, sem perspectiva de mudança alguma,
quando por conta de um desses acasos, o Dr. Almeida o incumbiu de
realizar o recadastramento dos funcionários. Foi ao realizar tal tarefa,

85
Hudson Ribeiro

que muita coisa se esclareceu. Como ele iria adivinhar se obrigado


não fosse, que o nome da exuberante loura era Ilka Barbacena Barata?
O leitor mais perspicaz perceberá que o nosso Aldo exultou,
quando descobriu o mesmo número de letras do seu nome no nome
da loura. E naquele dia tudo combinava; a lua cheia, o alinhamento
dos planetas favorecendo cúmplice, e até os seus sonhos, na noite
anterior, foram bem mais tranquilos.
E no dia seguinte, qual não foi a surpresa de toda a repartição ao
ser anunciado o casamento do Aldo com a Ilka.
Caso o leitor ache muito apressado esse enlace, lembre-se de que
apesar de suas esquisitices numerológicas, e até por isso mesmo, o
nosso Aldo sempre fora um bom partido, não apenas por sua parci-
mônia nos gastos pessoais, como também, devido a uma herança
farta, que uma tia, residente na terrinha do Tejo, o dotara, com o
único compromisso de Aldo chegar aos quarenta anos casado com
uma moça de fina estirpe.
Nada dessa mulatada e negrada de bundas grandes e risadas
escandalosas, tão abundantes nessas terras selvagens.
Assim, a tia escrevera em seu testamento, antes de se admi-
nistrar uma dose mortal de cianureto, impulsionada pela profunda
saudade que sentia do finado comendador, Diogo Fernandes Costa
de Alcântara Neves.
Pronto! Você leitor já tem o motivo da fome, agora lhe dou o
motivo da vontade de comer. A loura era loura, mas não era nada
burra, e percebia que já estava na hora de largar aquela vida postiça
de se fingir inocente na repartição e, nos finais de semana, fazer
programas com executivos escolhidos à dedo, respondendo pelo
sugestivo nome de “Kaká Cataclismo”.
A necessidade faz o sapo pular e o ser humano sorrir, ou no dizer
do Aldo, estava tudo escrito nos números.
Não precisa nem dizer, mas o digo para maiores esclarecimentos
do caso.

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Lucidez Renitente

O casamento foi marcado para o dia vinte do segundo mês do


ano dois mil e dois, apesar dos protestos da noiva, que acalentava se
despedir da sua vida de solteira libertina, curtindo o verão adoida-
mente, mas para o que não tem remédio, remediado está.
O casamento foi realizado com a parcimônia de gastos costu-
meira, e veio a lua de mel, Aldo, achando ser a sua obrigação, reservou
uma semana em um hotel na montanha capixaba, o friozinho seria
um bom argumento para que os corpos se procriassem, já que não se
esquecia do testamento deixado pela tia, que exigia a existência de
filho, no prazo máximo de um ano após o casamento, a questão não
admitia perda de tempo.
Mas Aldo não contava com a sagacidade da numerologia,
querendo se exibir para a esposa, contou em pormenores todas as
suas peripécias de estudioso pitagórico e, tomando o arregalar de
olhos da Ilka como admiração, foi fundo nos detalhes, inventou até
algumas passagens para tornar a sua narrativa mais vívida.
Ilka nada falava, acompanhava boquiaberta, o Aldo falando,
somando, subtraindo, multiplicando, dividindo, racionalizando,
potencializando, equacionando...
Até que chegou à numerologia do nome dela e do porquê de a
ter escolhida para ser mãe dos seus filhos, espertamente, omitiu os
detalhes do testamento deixado pela tia. Foi quando, já nus na cama,
que sucedeu a tragédia.
Segunda-feira na repartição, o doutor Almeida encontrou um
Edson esbaforido, com um jornal nas mãos:
- Chefe! Chefinho! O senhor já viu a notícia?
- Que notícia, Edson, qual a razão desse escândalo todo?
- Está aqui, bem no cantinho da página policial.
- Ah, eu vi a manchete, mas não dei importância.
- Chefinho, mas é do nosso Aldo, que o jornal está falando, olha
aqui!

87
Hudson Ribeiro

numerologia causa morte em lua de mel!

“A recém-casada e, também, recém-viúva, Ilka Barbacena


Barata, assassinou o seu recém-esposo, Aldo Gonçalves Lisboa,
utilizando para cometer o estranho delito um alicate para unhas, em
sua defesa, Ilka afirmou que não se lembrava de nada, do pouco de
que se lembrava, era do seu ex-esposo falando, falando e falando de
números, números e números.
Quando ele disse que Deus era número, exatamente o número
vinte, ela, ofendida em sua crença adormecida, mas ainda existente,
se armou com o alicate e quando ele assumiu que a escolhera por
conta da coincidência no número de letras dos seus nomes, ela não
aguentou mais e, decidida, enfiou o alicate na jugular do seu querido
Aldo, que nos estertores da morte, ainda balbuciou, os números, os
números, os números...”.
Nesse momento a entrevista teve de ser interrompida, pois a
acusada de crime tão bárbaro, motivado por tão banal causa, olhando
para as anotações, que o jornalista fazia, atacou-o ferozmente, dessa
vez com unhadas e dentadas, enquanto gritava histericamente:
- O meu nome é com dois “eles” seu burro! Você merece o
mesmo destino do meu querido Aldo. É Illka e não Ilka seu boçal!
Comprou o seu diploma, é?

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Lucidez Renitente

augusta

Eu a conheci naquela época louca, quando o chumbo espalhado pe-


los gafanhotos se derretia formando um cenário psicodélico
A liberdade planificada pelos nossos enormes irmãos esver-
deados em nada se diferenciava do aprisionamento mais abjeto,
posto que fosse originada e perpassada pela nefasta libertinagem, as
músicas de maiores sucessos naquela época eram: “eu quero é sexo!”
e “tem bumbum de fora pra chuchu, qualquer dia todo mundo nu”.
A Augusta morava em uma casa espaçosa, com quintal coberto
de árvores frutíferas, ali na rua sem saída, vivia de vender sanduí-
ches naturais pelas praias capixabas, havia trancado o seu curso de
arquitetura.
Depois perdi o contato e apenas notícias esparsas me chegavam
através da Giovana, a minha ex-esposa, que ela havia se convertido
ao espiritismo, que ela havia sido mãe de produção independente
aos trinta e sete anos, que o filho nascera com problemas sérios de
saúde, que o filho não havia sobrevivido, que ela estava cursando
novamente a faculdade, que ela havia se formado em ciências
contábeis.
Que ela ganhara uma herança de um parente italiano e comprara
uma mansão na beira do mar, que ela reatara a relação com o pai do
seu filho, que o esposo dela havia assumido a homossexualidade e a
trocara por um cliente da loja de ração para cachorro que possuíam.
Que ela estava enchendo a cara de bebida e dando vexames
gigantescos, o último foi quando desfilou nuazinha em pelo pelas
ruas do bairro, protestando contra o aumento da violência no mundo.
O Tavares que viu, e como continua o mesmo cínico de sempre,
disse-me com cara sacana que ela ainda era uma fêmea tentadora.
Eu só estou achando é muito estranho, ainda ontem falei com a
Giovana e ela nada me disse sobre essa tragédia, logo agora que ela

89
Hudson Ribeiro

estava se tratando, dizem que aquela clínica utiliza os mais modernos


procedimentos psiquiatra-psicanalíticos.
Lembra-se do doidão do Magnus? Então, ele se curou lá, se
curou tanto que vive por aí dando testemunho de como venceu a
dependência química, desculpe a minha divagação, é que notícia
como essa sempre pega a gente de surpresa.

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Lucidez Renitente

ofício arriscado

Como fazia em todas as manhãs, acendeu um cigarro, e meio que


deitou sobre a grande pedra e ficou contemplando a cidade.
Nunca ia à cidade à luz do dia, o seu ofício desde tempos imemo-
riais era mais bem executado na calada da noite, quando a uniformi-
dade das cores de todos os animais e a lassidão provocada pelo uso
desregrado de tantas substâncias nocivas, embotavam os sentidos e
ficava difícil distinguir o ainda vivo do já aparentemente morto.
Desde criança gostava de tomar banho de sol, sentia-se cari-
nhosamente abraçado, uma sensação deliciosa, quase igual a quando
estava nos braços da Paloma.
Nunca iria entender aquilo, ela quase adolescente, louríssima,
olhos de um azul profundo que até tonteavam, filha de gente grã-
-fina, querer ficar grudada nele, já chegando aos vinte e três anos,
com uma pele de cor indefinida resultado de tantas miscigenações.
Só não se julgava um completo miserável graças aos trocados
conseguidos com o seu ofício realizado na boca da madrugada.
Se bem que, ultimamente, a concorrência andava acirrada. Havia
até uns universitários entrando com tudo na concorrência.
Fechou os olhos e voltou a cabeça em direção ao sol, gostava
disso, trazia tantas boas lembranças...
O gosto saboroso dos lábios da Paloma, o doce de jaca que a
dona Etelvina fazia seguindo receita antiga, a moqueca de aratu que
comia todos os sábados no bar do Lídio...
Quando percebeu os passos apressados muito próximo já era
tarde, o que sentiu mesmo foram dois pés em seu peito, quando
tentou se levantar para pegar a sua arma debaixo da camisa do
Flamengo, presente da sua namorada, que ficara sob o pé de abacate.
Caído, mal viu o pé enorme calçado com bota de motoqueiro
vindo em direção a sua cabeça, ainda virou o corpo e fitou a cidade

91
Hudson Ribeiro

lá embaixo e lembrou-se de que nunca havia a conhecida sob a luz


do sol.
Depois os tiros, alguns vizinhos disseram que foram muitos,
outros disseram que nem foram tantos, a maioria mesmo perma-
neceu calada, o que todos comentavam era o choro histérico e,
aparentemente sincero, de uma loura espetacular que desceu de um
carro de luxo já gritando que queria morrer também.

92
Lucidez Renitente

direita

Na rua em que Pedro morava, tinha um cara assim também, qual-


quer coisinha ele arranjava encrenca, o povo dizia que puxara ao pai,
um peão mato-grossense, habilidoso na arte de domar cavalos.
Mesmo com o seu temperamento difícil, por uns tempos o Pedro
e ele foram como carne e unha, isso deve ter durado mais ou menos
uns seis meses, depois a amizade foi se definhando pelo enorme
ciúme que ele sentia e pela imensa curiosidade que o Pedro trazia
no peito e o fazia aproximar-se das mais diversas pessoas, principal-
mente, das mais vividas.
Tinha o seu Clóvis, responsável pela limpeza da praça e pregui-
çoso pelo corpo todo, possuía um tom de voz tão grave que parecia
ter um contrabaixo na garganta, espertamente fazia a garotada
trabalhar para ele, a troco de balas e sorvetes, comprados na padaria
da dona Inácia.
Enquanto ele ficava sentado sob a árvore mais antiga e frondosa
lendo o jornal ou contando casos dos tempos em que era soldado da
cavalaria no estado do Rio de Janeiro.
Tinha também o seu Nicolau, que sobrevivia confeccionando
sacolas de papel grosso para vender no mercado, foi com ele que Pedro
ouviu pela primeira vez o nome de um país chamado União Soviética.
Um dia o seu Nicolau sumiu sem deixar um adeus sequer.
E finalmente, a dona Rosinha, essa era danadinha, sentava-se à
porta de sua casa azul e branca, enfeitada com um jardim perma-
nentemente florido, e enquanto tricotava roupinhas para os netos,
contava com muita vivacidade e humor, as peripécias que ocorreram
na época da invasão do mangue, que dera origem ao bairro atual, tão
importante que recebera até a visita do santo padre.
Mas o que ela gostava mesmo de contar eram as proezas do
seu homem, Deus o tenha em bom lugar, o famigerado Toinho da

93
Hudson Ribeiro

Rosinha, um sertanejo de uma força e braveza descomunais.


Um dos líderes da comunidade e que por várias vezes encarou
mais de meia dúzia de homens, mandados pelos que se diziam donos
do mangue, fazendo uso da sua arte capoeirista, mas em muitos
casos teve que apelar para o seu fiel punhal, presente do avô Nonato,
cangaceiro sob as ordens do capitão Virgulino.
Houve uns dois ou três casos que não teve remédio a não ser usar
a velha garrucha, relíquia de família, mas nunca para cometer crime
de morte, era apenas para assustar os mais afoitos, como gostava de
dizer sussurrando ao ouvido da Rosinha, enquanto pensava consigo
mesmo que já era hora de aprender a atirar direito e arrumar uma
arma melhor.

94
Lucidez Renitente

geração abortada

A noitada havia sido de rachar, o aniversário da Cris fora comemora-


da com todos os requintes pela geração frustrada com a abertura lenta,
gradual e segura, sob o comando férreo do general mal humorado.
E como já era de costume a turma toda se esbaldou, fiz uma
referência à política, mas por essa altura, até pelo efeito pernicioso da
cannabis sativa a turma contava agora com inúmeros antimarxistas
que jamais haviam lido Marx, mas eram radicalmente contrários
às ideias dele – é o ultrapassar sem passar, algo tão descompassado
como uma febre sem enfermidade.
A maior parte da turma apregoava o desbunde total como
solução para aquele festival de libertinagem que assolava o país,
tudo mascarado pela euforia provocada pelo suposto fim da
censura, a reorganização de vários partidos políticos, o retorno dos
exilados, menos os mortos, é claro, mas a ponta do iceberg eram as
revistas pornográficas expostas desavergonhadamente pelas bancas
do país.
Pedro, Heraldo e Jones, nunca satisfeitos com nenhum final de
festa caminhavam pela Avenida Mascarenhas de Moraes, relem-
brando por entre brumas etéreas do álcool e do fumo o que se
passara na festança.
Pedro, o mais sensível às substâncias tóxicas ou como ele mesmo
dizia: “não esquenta, estou dando um brilho no meu cristal”.
Quem o visse pulsando intensamente vivo, com passos tortos,
mas sempre seguindo adiante, jamais imaginaria que ele seria assas-
sinado anos depois em um assalto a banco.
Calma apressado leitor, ele estava na fila para pegar a última
parcela do seu seguro desemprego, quando os assaltantes chegaram
e Pedro, que já havia fumado unzinho acompanhado e três doses de
conhaque Presidente, resolveu prestar solidariedade aos assaltantes:

95
Hudson Ribeiro

- É isto aí rapaziada, mete bronca nesta merda toda, mas só


queria ensinar a vocês que isto não é assalto não, assalto quem pratica
é o banco com as suas taxas exorbitantes, o que vocês estão fazendo é
apenas uma justa desapropriação. É isto aí, podes crer!
Enquanto todos os clientes e funcionários ficavam cada vez mais
pálidos, o chefe do bando, um estranho brasileiro de pele cafuza, cabelos
lisos negríssimos e olhos verdes parecidos com os de alguns gatos, que
naquela manhã já havia descido a porrada na sua companheira sem
motivo algum, era como ele mesmo dizia para os seus comparsas:
- Devo fazer jus à música, “mulher de malandro rapaz, apanha
de dia e de noite quer mais”, e enquanto a companheira choramin-
gava em um canto da miserável cozinha, um choro tornado monó-
tono pela rotina da tortura cotidiana, ele, o “Malandro Elegante”,
cheirava umas cinco carreiras de cocaína, das longas e grossas e
regava a chafurdação com doses caprichadas de cachaça com mel
e limão:
- A minha voz deve soar forte quando eu anunciar o assalto,
pois já havia decidido enquanto espancava a mulher, hoje seria o dia
de entrar na bolada, por isso suspendera repentinamente o suplício.
Foi o “Malandro Elegante” com os olhos verdes faiscando, que
falou para o psicopata do bando, o terrível “Deixa Comigo”, na
verdade, José Soares de Souza, mas nem ele mesmo se lembrava de
mais disso, com ele o negócio era, deixa comigo, e ia lá, cometia as
maiores atrocidades com um sorriso torto nos lábios.
- O que você está esperando, “Deixa Comigo”? Dá logo um
jeito nesse professorzinho de araque, mas use a faca para não causar
tumulto.
Pedro foi o primeiro a desencarnar, se bem que o mais correto é
dizer que foi desencarnado pela faca curtida no tronco da bananeira
de “Deixa Comigo” e da ordem tranquila do “Malandro Elegante”,
desencarnação propiciada por uma conjuntura social que torna os
homens fascinados pelo poder do dinheiro e pelo o que ele pode

96
Lucidez Renitente

comprar, e ele pode comprar de tudo. Pelo dinheiro se morre e se


mata sem a menor cerimônia.
Mas, retornemos ao Pedrão ainda vivo, eu dizia que quando
estava ligadão era o que mais arrombava as portas da percepção e
bobamente repetia: “É, podes crer...”, e nessa ladainha de “podes
crer”, a turma ainda passou no bar do Júlio “traíra braba”, jogaram
uma partida de sinuca, tomaram uma batida de pêssego, menos o
Jones, o mais comedido do grupo.
- Há tempo para tudo, eu não misturo, sou um cara fiel, há dia
para a cocaína, há dia para a maconha, há dia para o álcool, há dia para
o arrebite. Só não embarco nessa de agulhada porque o meu corpo é a
morada do espírito, é essa a estratégia que me segura, sacaram?
Pois esse Jones estendeu a vida por mais quinze anos, viajou
mundo afora como marujo taifeiro, acabou por se viciar no ópio em
um país asiático e morreu do coração.
- O coração cresceu tremendamente, disse um obeso médico malaio.
O Jones foi enterrado em terras estranhas, como indigente. A
sua mulher, a Marluce, vendo-se liberada assumiu publicamente a
sua homossexualidade e foi morar com a Tati, a Marluce fazia o
papel masculino, também, com aquele corpão de atleta da antiga
Alemanha Oriental, mas naquela noite o Jones quis saber:
- Alguém tem alguma coisinha aí?
Os amigos responderam em uníssono:
- Qual é Jones, está nos estranhando?
E o Pedro para enfatizar a negativa: É, podes crer.
- Bom, já que é assim, vamos até à rodoviária tomar um sorvete
e assistir o vai e vem de sonhos e desilusões.
O Heraldo era um líder nato, filho de pai assumidamente comu-
nista, combatente da ditadura Vargas, cresceu convivendo com os
manuais marxistas revolucionários.
A abertura política o atropelou quando pensava em ir para a
América Central, juntamente com a Suzana, sua namorada, atual-

97
Hudson Ribeiro

mente casada com um rico industrial do ramo bélico, aprenderem


guerra de guerrilhas.
Um dia se enturmou com força total, seria por assim dizer
uma alma semelhante a do “Deixa Comigo”, em uma versão inte-
lectualizada, a psicopatia habilmente reprimida sob o educado
comedimento.
- Devemos ser prudentes como as pombas e espertos como as
serpentes.
Passado o desbunde místico, a consciência política o obrigou a
ir para a região norte do país com o afoito plano de justiçar fazen-
deiros, grileiros, madeireiros e pistoleiros a serviço dos exploradores
do povo, como ele mesmo escreveu em sua carta de despedida, e que
daquele dia em diante não responderia mais pelo nome de Heraldo,
mas sim pelo de Latrino, explicava laconicamente:
- É uma homenagem à minha querida América Latina, latida e
mordida selvagemente pelos cães ferozes e sempre vigilantes, com as
suas veias cada vez mais abertas e sangrando abundantemente, por
isso Latrino. É isso aí, daqui por diante, assumo a minha promiscui-
dade terceiro- mundista, mas não como aceitação submissa, assumo
o imundo da latrina do mundo para melhor dimensionar o meu
ódio e para a minha vingança ser perfeita.
Do Heraldo ou do Latrino nada se sabe até hoje, muito prova-
velmente, tenha sido morto pelas forças que ele planejava combater
ou quem sabe, cansado da ideia de vingança não realizada, mudou a
rota do seu voo, se adaptou e casou com uma rica moça da região, e
hoje vive conforme tudo o que dizia odiar.
Mas naquela madrugada sentados tomando sorvetes, os três
amigos, como crianças, viajavam na multidão de viajantes que vão
e voltam, mas nunca se revoltam em uma constância monótona e
doentia, que os tornam despersonalizados.
Apenas viajantes em busca de sonhos, sempre fugindo de alguma
desilusão.

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Lucidez Renitente

esclerose

Lá em casa sou eu e mais minhas duas irmãs.


Estou com oitenta e três, sou nascido dia 07 de junho de 1928,
a Dina, que é a mana do meio é de 20 de outubro de 1926, e a mais
velha, a Leda, é de 14 de março de 1923.
As duas estão lá, mais pra lá do que pra cá, eu é que resolvo tudo,
os médicos se admiram muito com a minha saúde de ferro. Oitenta
e três anos bem vividos.
Se for a vontade de Deus chego aos cem, firme e forte, as manas
não sei não.
A Leda depois do derrame fica na cadeira de rodas, vendo o
tempo passar e conversando com os falecidos, a cada dia ela vem com
uma profecia diferente, a última foi de que o mundo vai se acabar no
último dia do ano em que todos os primogênitos nascerão gagos.
A Dina, diabética, anda tateando pela casa, de teimosa que é,
colada na televisão dia e noite, de vez em quando alguns vizinhos
vem reclamar do som alto, parece que eles não entendem, que com o
passar do tempo tudo se definha, até mesmo a audição.
Coitada, a gente fala panela, ela houve favela, deve ser trauma da
época que se enrabichou por um pobretão e o desgraçado a levou pra
morar em um cortiço miserável lá pras bandas do Pará.
Hoje eu vim à farmácia para pegar os remédios delas. Olha só
quantas receitas, não sei como o médico sabe diferenciar o que faz
bem do que faz mal.
Pra mim mesmo só o de pressão, mais por prevenção, sabe como
é, né? Pois se tem uma coisa que nunca deixei de apreciar é uma
comidinha bem temperada, acompanhada de um limãozinho capri-
chado no mel.
Tô vendo que, pela sua aparência, você deve ter uns trinta,
trinta e cinco anos, não? Ora vejam, da idade da minha neta caçula,

99
Hudson Ribeiro

quarenta e três anos...


Você tá muito bem, parabéns, eu já disse né?
Lá em casa sou e mais as minhas três irmãs, estou com setenta
e três anos, sou nascido a 14 de março de 1933....

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Lucidez Renitente

frenesi

Entra no elevador falando ao celular: “menina, acredita que ele falou


mesmo assim? Então, cheguei em casa, abri o computador e lá esta-
vam as fotos, eu sozinha, ele sozinho, nós juntos, tinham até algumas
indiscretas, e no fundo aquelas musiquinhas bacanas.
Onde eu estou agora? No elevador, vou desligar e depois ligo”.
Uma garotinha dos seus seis anos olha espantada para aquela cena
despudorada.
A mulher do celular não se faz de rogada, pisca um olho e fala
para o ascensorista, um gay muito bem humorado, que todos tratam
de Juju, “depois te conto as novidades”, e faz um beicinho junta-
mente com um meneio de corpo em um gesto grotesco, que ela julga
muito charmoso.
Salta no próximo andar e vai diretamente ao apartamento da
amiga e confidente, a Laudicéia, Céia para os mais íntimos, toca a
campanhia umas três vezes, como ninguém atende, retorna ao seu
apartamento, localizado logo no início do corredor.
E agora, o que fará? Retornar a ligação não dá por que até os
bônus acabaram com essa falação toda, também, essas operadoras...
A gente não sabe qual nos engana mais e melhor, ligar a cobrar
também não dá, da última vez que fez isso teve que ouvir horrores
da Dodô.
Na verdade Maria Dolores Mattos, operadora de caixa da loja de
utensílios domésticos mais famosa da cidade: “VEM QUE TEM!”.
O jeito que tinha era esperar o turno do Juju acabar para ela
poder contar como pensava em fazer uns filminhos bem significa-
tivos chegar até à casa da esposa do seu ex-namorado, aquele cafa-
jeste, prometera mundos e fundos e acabara abandonando-a em
pleno feriado do dia de nossa senhora Aparecida.

101
Hudson Ribeiro

maura

Encostou-se no balcão, fez um sinal com os dedos, o de sempre


Augusto.
Todo dia, ao cair da noite, o ritual se repetia, já fazia bem uns vinte
e cinco anos, ele foi um dos primeiros fregueses do Augusto, na época,
o que hoje é um bar espaçoso, com opções variadas e freguesia seleta,
não passava de uma birosca mal acabada, um verdadeiro copo sujo.
Tudo mudou quando o Augusto, seguindo um palpite dele,
acertou o terno, a quadra e a quina de grupo, isso em um tempo
em que o jogo de bicho não enfrentava a forte concorrência das
loterias patrocinadas pelo governo, significava uma pequena fortuna,
que possibilitou ao Augusto pôr a birosca sem nome abaixo e erguer
o muito bem vistoso, “MARÉ MANSA”, com ele trabalhando de
pedreiro e ajudante de obra.
Costumava chegar por volta das seis e meia e ficava até às dez. A
sua cadeira cativa era uma bem próxima da televisão, um aparelho de
última geração que fascinava os telespectadores, de onde ingerindo o
seu álcool diário e comendo cajá verde ou maxixe na conserva.
Assistia ao jornal com interesse, às novelas com um olhar desgos-
toso, principalmente se tratava de estórias de amor com final feliz.
Às vezes jogava algumas partidas de dominó com os vizinhos,
era um jogador mediano, desatento, não dava conta de contar todas
as pedras conforme o andamento do jogo, preferia falar de futebol
e do seu time do coração ou atacar todas as medidas governamen-
tais, principalmente às medidas que reiteravam os privilégios do
judiciário.
Quando pedia a conta, e o Augusto sabia que era para anotar
na velha caderneta, já havia bebido meia dúzia de cerveja morna,
que era pra sentir melhor o gosto, como ele dizia, e o mesmo
tanto de Conhaque Presidente com Martini Bianco, mantinha a

102
Lucidez Renitente

mente estranhamente lúcida, o andar um pouco trôpego e os olhos


avermelhados.
Antes de sair trocava um longo olhar com a Maura, esposa fiel do
dono do bar e dava um meio sorriso, lembrando-se dos números que
fizera o Augusto bem de vida e casado e ele mal de vida e solteiro,
quase fala em voz alta, vinte e dois, três, nove, quinze e doze, tigre,
burro, cobra, jacaré e elefante.

103
Hudson Ribeiro

praça

As mulheres da praça gostavam de ver o Lilico Cachaça passar,


todo empinado, parecia que tinham enfiado uma estaca no lugar
da sua coluna, uma das mulheres já observara, que o Lilico andava
quase em linha reta e a cada poste que encontrava, parava e fazia
um discurso.
A distância do bar até sua casa era coisa de cem metros, um poste
a cada vinte metros, logo, cinco discursos garantidos toda noite, se
bem que ultimamente, ele parecia estar inovando e aderindo à gesti-
culação no lugar das palavras, a criançada adorava.
“Lilico Cachaça!”, ele acenava e respondia eufórico com a sua
voz fanhosa inconfundível: “viva as luzes do mundo!”, um dia em
que um menino ousou jogar uma pedra em sua direção, não acertou,
mas se a mãe não acode, teria sido linchado pelos outros garotos e
até por alguns rapazes do bairro.
Lilico era patrimônio da comunidade, na verdade Alberico
Santana na juventude era um belo rapagão, tendo despertado
paixões incontroláveis, inclusive em algumas daquelas mulheres que
se reuniam todas as noites na praça, um dançarino incomparável e
com um vozeirão digno de um Altemar Dutra, de quem, aliás, era fã
incondicional, “sentimental eu sou, eu sou demais”.
Foi interpretando Altemar Dutra, que fez fama no programa de
calouros em rede nacional, aonde chegou a concorrer até a rodada
final, perdeu para um cantor nordestino que soltava uns gemidos,
parecia estar com fome de três dias.
Até hoje o Lilico não entendeu por que no exato momento de
alcançar a nota mais alta, com o público já gritando: “já ganhou,
já ganhou!” sentiu uma pontada aguda no coração, as vistas escu-
receram e o que saiu de suas poderosas cordas vocais foi um som
gutural, totalmente fanhoso e desafinado.

104
Lucidez Renitente

Pior que o período de convalescença, passado em um hospital


da rede pública, foi a Tereza, a sua querida Zinha, acabar o noivado
com ele, mandando recado pelo Adamastor, antigo verdureiro do
bairro. “Sentimental eu sou (...)”.

105
Hudson Ribeiro

mandinga

O técnico Alfredão não entendia o que se passava com o seu centro-


avante, Ruivão, craque do time que demonstrava uma rara habili-
dade em todos os fundamentos, passava e driblava com perfeição,
batia falta no estilo folha seca do mestre Didi, exímio batedor de
pênalti, era sempre bola para um lado e goleiro para o outro sem
direito a sair na foto, no cabeceio aprendeu a cabecear no tempo
certo da bola, a bola saía como um torpedo.
Pois então, esse era o Ruivão, que estava irreconhecível, dando
canelada na bola, perdendo gols cara a cara, o time só não estava
levando uma goleada histórica por que o arqueiro, Zé Estica, estava
fazendo a sua melhor partida, e já tinha realizado umas três pontes
sensacionais.
Alfredão olha desalentado para o banco de reservas, o jeito é
tentar o Pezão mesmo, o centroavante reserva estilo brucutu, pior
que o Ruivão estava hoje, não podia ser, para o aquecimento Pezão,
você entra logo depois desse lance. A bola bateu na barriga do
zagueiro adversário, o juiz mal colocado viu mão na bola e marcou
pênalti.
Espera aí Pezão. Ruivão ajeita a bola como sempre faz, um
pouquinho à frente da marca de cal para evitar o buraco, toma uma
distância enorme e chuta forte e no meio do gol, não quer arriscar
tentando colocar a bola no ângulo, inexplicavelmente isola a bola
para fora do estádio.
Ruivão desmonta de vez, o Alfredão fica vermelho igual a
um camarão, quase a beira de um ataque; tentando evitar o pior,
Pezão aproxima-se dele e fala meio que temeroso, seu Alfredo, isso
de Ruivão tá mal pode ser coisa de mulher, é que ele namorava a
minha irmã, a Zulmira, e sem mais nem menos acabou o namoro
na semana passada, e ela jurou que jogaria uma praga terrível nele.

106
Lucidez Renitente

E dessas coisas ela entende muito bem, desde quando nós morá-
vamos em Nazareth das Farinhas, e ela teve a cabeça raspada pela
grande mãe de santo, Sinhazinha de Ogum.

107
Hudson Ribeiro

doutor adamastor

Já perdera a noção de quantos clientes atendera ao longo de quase


duas décadas, atendendo sempre no mesmo local, esquina da rua
“Das Dores” com “Esperança”, da maioria retinha alguns poucos
traços e falas, que com o passar do tempo se misturavam resultando
em algo difuso, impalpável.
De alguns poucos se lembrava com uma nitidez assustadora, às
vezes chegava a vê-los em sua frente, cada qual com o peso da sua
história. É Adamastor, a idade já te embaraça, já começa a ver coisas,
melhor é voltar para as palavras cruzadas, enquanto tá tudo calmo.
Pô, esses caras são gozados, como vou saber o nome da palavra
no plural que acaba em erre? Há tempos venho observando os erros
de impressão dessa revista, hora dessas me aborreço e envio uma
carta bem desaforada para eles, deixe estar, a gente quer se divertir e
nem pode, diacho, que danado de plural será esse? Será que terei de
apelar para o Tavares outra vez?
Já não aguento mais aquele ar almofadinha, sem contar que da
última vez ele me deu a dica errada e ainda por cima me serrou um
Campari com soda na maior cara de pau, esse Tavares, se não fosse
filho do saudoso compadre Aírton, já teria perdido a paciência com
ele, rapazinho mais imprestável.
O melhor a fazer mesmo é caçar palavras, divertimento certo
e garantido, preciso estar com a cuca fresca para explicar para os
clientes que a cerveja está quente por que o caminhão atrasou na
entrega.

108
Lucidez Renitente

itinerário

Hoje tem cada vez mais e melhor consciência de que aquele tempo foi
uma dádiva em sua vida, no primeiro ano da década de oitenta, o país
ainda vivia sob o espectro do derretimento da enorme camada de chumbo,
erguida e solidificada na época da invasão dos gafanhotos sedentos e esfo-
meados, a liberdade tão ansiada, embora concedida em um ritmo lento,
gradual e seguro, alcançava o modo de ser dos brasileiros de maneira
vertiginosa, abrupta e consequentemente semeando a insegurança.
Lembro-me das bancas de revistas como reflexos mais visíveis
dessa época onde o chumbo se derretia, mas o país não contava com
líderes forjados em material mais nobre, daí que a política estava
entregue a homens de feitio do mais ordinário.
Coletivamente, o seu grupo de atividade política sentiu profun-
damente a abertura política como uma lufada de vento tão forte,
que pôs por terra todas as bandeiras deles erguidas em nome da
liberdade, e até o irmão do Henfil ao retornar do exílio, revelou-se
muito menor do que na música, eternizada pela pimentinha gaúcha,
cristalizada em nossa imaginação, e assim também com todos os
outros, os heróis dele, de carne e osso, não eram os mesmos acalen-
tados durante anos em seus sonhos e petições.
Particularmente, após dois anos de tentativa de manter um relacio-
namento miscigenado, em uma época que até era politicamente correto
ser racista, tanto os seus como os músculos da Amanda demonstraram
ser frágeis diante de tantas intrigas, tramoias e escorregadios.
Foi um tempo em que viveu com o espírito afastado de si, e
nesse estado aprendeu muitas coisas extraordinárias, e até por isso
mesmo, o tempo todo esteve flertando com a loucura.
O seu encontro com a Alma Grande de um Pássaro Soberano
significou para ele o início da retomada de si mesmo, claro que isso
durou décadas.

109
Hudson Ribeiro

hilário dos santos neto

Hilário dos Santos Neto, trinta e cinco anos de idade, funcionário


público federal da receita, um metro e sessenta centímetros de altura,
setenta e oito quilos, diz que se mantém em forma com as peladas
dominicais disputadas na orla marítima com a turma da repar-
tição, mas como é essa mesma turma, que após a acirrada pelada,
cai matando com gosto na gelada acompanhada de farto churrasco
gorduroso.
De uns tempos para cá, começa a apresentar uns pneuzinhos na
linha da cintura, por conta disso, o Eustáquio, seu amigo de longa
data e padrinho do seu filho mais velho, apelidou-o e a turma adotou
o apelido de “Firestone”.
Desde os tempos de noivado com a Ana Clara, cultiva um
bigode à Clark Gable, promessa que fizera para conquistar o amor
de sua amada. A sua pele era branca, mas dessa brancura, que ao
ser exposta minimamente à luz solar adquire um tom amarelado,
típico dos povos do mediterrâneo, dos quais, aliás, o Hilário dizia ser
descendente por parte do avô materno.
De temperamento sereno, advindo de uma credulidade inacre-
ditável, bem humorado na maioria das ocasiões, prefere se xingar
a extravasar a sua raiva no próximo, mantém um saco de pancada
no quintal de sua casa para as sessões que chama de “terapia da
porrada”. É um método simples e eficiente, consiste em mentalizar
a causa do seu dissabor e gritar a plenos pulmões, por exemplo: “eu
amo minha sogra”, e tome porrada no saco.
Desse modo, já havia sublimado satisfatoriamente o leão da
receita, a corrupção do país, seu time do coração, o seu chefe da
repartição, etc. O grande sonho do Hilário dos Anjos era um dia ser
reconhecido como talentoso compositor de carnaval; os seus amigos
e, principalmente, a Ana Clara gozavam da cara dele, lembrando

110
Lucidez Renitente

que marchinha de carnaval já era, o negócio agora era hip hop, funk,
brega ou axé.
Ele até que tentara, conseguira com um amigo, que tem um
estúdio, gravar um CD demo, primeiramente mostrou à Ana Clara
e depois aos amigos da pelada, em ambas as ocasiões, anunciou com
ar de mistério, que havia descoberto um talento excepcional, desco-
nhecido da mídia. Em ambas às vezes os ouvintes foram duros em
suas críticas: “as letras estão até bonitinhas, mas esse ritmo tá mais
pra marchinha de carnaval...”, a sua mulher foi mais taxativa, “Lalá,
você já havia me prometido largar mão disso, deixe disso homem!
Eu amo você desse seu jeito mesmo”. Mas quando a Ana viu aqueles
olhos de bebê desmamado, concordou que ao menos ele participasse
do concurso anual de marchinhas carnavalescas, promovido pela
prefeitura local.

111
Hudson Ribeiro

a terra é doidona

Afonso Lima estava impossível naquela noite, tudo porque a sua


peça “Rua da Lama”, havia sido escolhida para representar o Brasil
em um Festival Internacional de Teatro, na cidade de Madri, e ele
bebemorava juntamente com alguns amigos, todos representantes
da mais fina flor da cultura capixaba.
- É por isso que eu digo meus prezados, o mundo é quadrado e
a Terra é prafentrex! O mundo é caretão e a Terra é doidona! Isso
porque o mundo segue a lei estúpida da sociedade, lei que os pode-
rosos criam para ferrar ainda mais os explorados, enquanto a Terra
baila harmonizada com a sinfonia universal, agora fica o homem aí
todo besta, repetindo petulantemente “ergo sum”, quando não passa
mesmo é de um depósito de merda e mijo, essa que é a verdade, ai, ai,
ai, parece que todos se esquecem do que houve com os dinossauros.
- O que houve com os dinossauros? Pergunta uma de suas tietes,
que de tão alcoolizada já nem liga para o fato de um dos seus seios
estar à mostra.
O Lima, mais exaltado do que nunca, dá vazão a sua famosa
verborragia:
- Ah, minha querida Glorinha, então você não sabe? Para, olha
em torno com o olhar turvo e com o corpo balançando conforme o
vento primaveril e torna a indagar com a voz já pastosa:
- Você não sabe o que houve com os dinossauros? Vocês todos,
a mais fina flor da estirpe cultural capixaba, nem ao menos descon-
fiam do que houve com esses majestosos animais?
O Elias, músico profissional, tenta se mostrar informado:
- Não foi a queda de um enor...
- Que queda o quê! Agora ouçam todos vocês com bastante
atenção, na verdade, os dinossauros foram sequestrados por extra-
terrestres vindos diretamente de Saturno.

112
Lucidez Renitente

O grupo de amigos o olhou abismado, tá certo que o sucesso


sobe à cabeça, mas tudo tem limites...
- De Saturno? Saturno não é aquele planeta lindinho que exibe
até uns anéis? Tem até uma música da Rita Lee, “por você vou bus...”.
- É este mesmo! Corta Lima, continuando enfático, o que
ocorreu foi que os sartunianos atravessavam uma terrível crise de
alimentos e de combustível, então, eles vieram a Terra, sequestraram
todos os dinossauros e, desse modo, mataram dois coelhos com uma
cajadada só; carne em abundância e as fezes dos gigantescos animais
serviriam de combustível, depois de processados por um avançado
sistema tecnológico.
O Elias estava de queixo caído e para dizer algo exclamou
surpreendido com a explicação tão inusitada:
- Poxa, como é que você descobriu tudo isso?
- Eu já suspeitava, diz o Lima subitamente lúcido, desde a época
em que li o Eric Von Düniken e fiquei abismado com algumas ideias
expostas por ele. Há uma passagem, inclusive, que ele cita textual-
mente o pensador originário, Heráclito de Éfeso.
- Você se lembra em qual livro Lima? Interessa-se a Lígia, a filó-
sofa do grupo, afinal, Heráclito era Heráclito, valia a pena conferir.
O Lima pareceu não ouvi-la ou se a ouviu evitou respondê-la
por charme ou por ignorância mesmo.
- Mas a passagem mais instigante é quando o autor especula
acerca de nós humanos sermos frutos de um processo de evolução
controlado. Fui influenciado, também, pelos livros de Charles Berlitz,
principalmente o, Triângulo das Bermudas, ponto de passagem para
outras dimensões ou vocês nunca não sabem que a marinha norte
americana conseguiu tornar invisíveis um navio juntamente com a
sua tripulação? Lobsang Rampa dotou-me da terceira visão e muitos
dos segredos do oriente.
Tudo bem, já estou vendo que vocês não me acreditam, que tal se
eu citar um intelectual respeitado por todos vocês? Que tal ninguém

113
Hudson Ribeiro

menos que o Umberto Eco? Não o do Nome da Rosa, mas o do Pêndulo


de Foucault, existe ali uma afirmação deveras estarrecedora a respeito de
o universo ser habitado por entidades invisíveis em quantidade tão exor-
bitante, que o ser humano não suportaria conviver com tal sapiência.
E se vocês estão espantados assim é porque domesticados pelos
ensinamentos da civilização ocidental acabaram por execrarem a
arké africana e os seus orixás.
O garçom se aproxima, avisando que o bar já vai fechar, Lima
o encara como se ele tivesse desembarcado de Saturno naquele
instante; aos poucos retorna à terra, contribuiu com a vaquinha,
passa o braço pelos ombros da Glorinha e aproveita para ajustar a
sua blusa. A sua mulher viajara par Brasília, fora acertar os detalhes
do embarque para Madri.
No carro da Glorinha, o Lima conserva-se estranhamente taci-
turno, o efeito alcoólico atingindo o patamar da introspecção, o que
leva a Glorinha tentar reiniciar a conversa:
- Você acredita que é mesmo assim?
Lima com uma das mãos enfiada entre as coxas da Glorinha,
responde categórico:
- É mesmo assim, eu vou te contar uma coisa, eu já viajei em
disco voador, mas não me lembro de nada, eu estava acampado
sozinho na reserva floresta de Rio Bonito, quando tudo aconteceu,
isso foi no ano de 1976, ano em que as pessoas antenadas sabem que
houve uma invasão de UFOS, desde essa época é que a imensidão
do céu me fascina.
- E aquele lance da religião afro? Lá em casa todo mundo bate
tambor, só eu que sempre me esquivei, afinal sou uma bióloga pós-
-graduada fazendo mestrado e tenho um nome a zelar, mas ultima-
mente tenho pensado muito em fazer a cabeça para o meu santo,
você entende dessas coisas mesmo? Ai, para com isso, você sabe que
quando estou ligada atinjo o orgasmo rapidinho, espera chegarmos
a sua casa querido.

114
Lucidez Renitente

- Olha só, eu já conversei com parentes mortos, eu já vi copo


andar sem ninguém tocar, eu já vi no fundo de uma bacia com água
uma cena que se desenrolava a quilômetros de distância, mas não me
sinto capacitado para orientá-la, é como os espíritos mesmo dizem,
nessas coisas cada um cuide de si.
Silêncio de novo, o carro transita pela Avenida Nossa Senhora
dos Navegantes, passa pela Beira-mar, atravessa o centro da cidade
e se dirige para a ladeira São Bento, é ali que o Lima alugou um
confortável apartamento, a mensalidade é bancada juntamente com
a Isabela, filha única de um desses políticos salafrários.
Naquela noite depois de muitos anos, Afonso Lima decep-
cionou uma mulher, a última vez fora há muito tempo, quando
o laureado diretor teatral ainda era um incipiente ator de teatro
estudantil. À Glorinha restou apenas satisfazer-se solitariamente
enquanto assistia a uma das fitas que encontrara no fundo da gaveta
da cômoda.
Enquanto ela abafava os gemidos de prazer, o Afonso Lima,
renomado teatrólogo capixaba, ressoava de forma espalhafatosa,
balbuciando entrecortadamente: O Mundo é careta e a Terra é
doidona!

115
Hudson Ribeiro

a chuva

Quando sentiu os primeiros pingos da chuva, a sua primeira reação


foi da mais pura euforia.
A chuva daquele tipo, pingos grossos e espaçados entre si, dando
a impressão de que seria possível transitar por entre eles sem se
molhar, respirou profundamente, aspirando ao aroma forte da terra
escondida pelo asfalto.
Como em um filme, a sua infância passada na roça veio-lhe com
uma força de realidade estonteante, os cavalos, os bois, o café feito
de garapa e a varredura feita no enorme quintal com uma vassoura
feita de galhos secos.
Abriga-se sob a marquise de uma instituição financeira, que
até pouco tempo ocupava as manchetes dos jornais do país sendo
acusada de lavagem de dinheiro do crime organizado; bem fizera ela,
que trocara o curso de economia pelo de artes plásticas.
Apenas quando sentiu o vestido branco de tecido fino grudar
em seu corpo de belas formas, lembrou-se de que estava sem sutiã
e de que naquele dia, ousara usar a sua calcinha mais despudorada.
Ao compreender a sua real situação, as lembranças da roça
cessaram abruptamente, como um televisor que repentinamente
explodisse.
Ela deu-se conta de estar praticamente nua e exposta aos olhares
famintos de homens, idosos e até de crianças.
Assustou-se ainda mais quando um senhor negro veio em sua
direção, tirou o próprio casaco e lhe entregou e apenas disse como
despedida:
“- Por aqui, em outubro, o tempo fica doido mesmo, né?”.

116
Lucidez Renitente

pressão

Isso é jogo de caipira meu jovem, antes mesmo do cara assumir, ele
é obrigado a se comprometer a não mexer em nada, ou melhor, se
compromete em mexer em tudo só pra deixar como era antes, quan-
do não pior...
Lembra-se das promessas? Viu quantos problemas e todos
dizendo que tinham a solução? Pois então, eleições passaram e os
problemas continuam aí, crescendo cada vez mais.
Às vezes dá vontade de chorar, não só com o tamanho do sofri-
mento desse povo, mas também pela idiotice, todo mundo sabe
muito mesmo é de novela e de futebol, todo o restante jogam nas
costas de Deus, e isso sem a menor cerimônia.
Um dia desses fui visitar uns amigos do meu antigo trabalho,
você acredita que eu fiquei plantado quarenta e cinco minutos espe-
rando o ônibus?
A semana passada mesmo, a dona Eulália, vizinha nossa aqui no
morro, precisou ser internada e ficou jogada no corredor do hospital
por mais de um dia, se não fosse a doutora Lao Tsé, aquela chine-
sinha boazinha, hora dessas a dona Eulália estava morta.
E a segurança, nem me fale, o Claudino foi assaltado em plena
luz do dia, como é que pode uma coisa dessas?
A minha filha é professora e me explicou direitinho como é esse
negócio de você finge que me paga eu finjo que trabalho, um monte
de estudantes que não sabem patavina de nada, serão trabalhadores
subalternos com um belo diploma do ensino médio para exibição.
Olha meu jovem, se a praça não tivesse tomada pelos usuários de
crack, bem que eu apreciaria o seu convite para um passeio.

117
Hudson Ribeiro

lucidez renitente

Sente-se aqui filho da minha velhice, chegou a hora de eu repetir o


gesto do seu avô e contar algo da história da invasão dos gafanhotos,
sei que você nunca ouviu falar nada sobre isso, né? A não ser que
os gafanhotos invadiram a nossa lavoura para impor a ordem e o
progresso.
Hoje sabemos que a ordem preconizada demonstrou-se a mais
desordenada desordem e o progresso tão propagado não passou da
miséria mais abjeta, posto que tornou-nos miseráveis tanto no estô-
mago vazio, como na cabeça oca.
Claro que você não tem culpa desse estado de coisas, afinal
quando você nasceu o plano de idiotização da nação já estava a pleno
vapor, e por todos os cantos do país os livros foram queimados e o
endeusamento da televisão era uma coisa inacreditável.
Você é o filho caçula de uma família, que traz em sua estirpe
o sangue sagrado da lucidez, por isso que você deve saber dessas
coisas, depois você decide o que fazer com informação tão valiosa.
Sinto que está chegando o meu fim, ainda ontem mesmo acordei
sobressaltado, com uma falta de ar terrível, e senti literalmente o que
o povo diz, vi a minha vó pela greta, procurarei ser o mais claro
possível, embora a minha memória já não seja como era antes.
Devo alertá-lo da tentação que é o momento e o espaço da
madrugada, quando a aflição agônica semeia prodigamente uma
indiferenciação entre tudo e todos que é até difícil distinguir a cor
marrom, e a estrada da vida adquire formas indescritíveis como uma
reta curvilínea ou uma curva retilínea.
Há de se tomar cuidado com o alívio provocado pelas composi-
ções químicas, o café, o cigarro, o álcool, dão um alívio imediato, mas
depois cobram o seu quinhão, por isso é comum vermos inúmeros
seres praticando o suicídio à prestação de modo tão paulatino e

118
Lucidez Renitente

distraído que nem se percebem disso, os mais corajosos pensam em


suicídio, como uma tentação inadiável, uma abelha a procura de flor.
Você deve ter um cuidado extremo em relação ao uso das pala-
vras, pois elas são escorregadias, e nem todas são grandiosas, mesmo
sendo palavrões, isso as tramas realizadas na madrugada hão de
ensinar, quando você for acometido pela insônia mais desperta e
desesperada, sentirá a sua alma sequiosa de beijos sinceros, e o seu
sangue escorrendo fervente pelas suas veias dilatadas, e na maioria
das vezes a boca da madrugada permanecerá em um silêncio atroz...

Mas você vai se acostumando com esses dissabores, que é a


forma do tempo essencializar a renitência na lucidez das pessoas que
trazem essa qualidade na estirpe sanguínea, porque a luta da lucidez
é contra a loucura que se apossou dos homens desde a invasão dos
gafanhotos esfomeados.
Então se atente para o fato de nunca confundir o seu desejo de
comunhão com a realidade da reificação do egoísmo, e aprenda a
perceber que todas aquelas baboseiras que foi aplicada a você em seu
tempo de meninice, agora que você deixa de ser criança, revelam-se
como de fato são, estórias para toda a manada dormir e deveras nem
sentir o quanto somos explorados e mal pagos.
Os gafanhotos pegam pesado meu filho, futebol, novela, reli-
gião, tudo usado para tecer uma paisagem surreal, onde a inversão de
valores é tão constante que causa e efeito perdem o sentido, por isso
é muito comum vermos gente oprimida fazendo discurso defen-
dendo o opressor. Lembre-se sempre que nem todos os passos na
calçada são marchas revolucionárias e nem todo canto do galo traz
em seu bojo o bocejo solar.
Filho muito querido, ao longo do seu percurso de vida, encon-
trará pessoas indelevelmente marcadas por cicatrizes terríveis, refle-
tindo reações passadas, mas não ultrapassadas, e até tornadas mais
árduas pelas invenções da vã imaginação.

119
Hudson Ribeiro

É de vital importância você compreender as ciladas erguidas


pelos gafanhotos esfomeados, algumas vezes eles fazem parecer
a entrada como saída, e mais ainda, fazem o parecer aparecer
como o próprio ser, quando no máximo, não passa de um pseudo
mais reles.
Não se espante com isso, é como já disse, isso tudo faz parte da
grande inversão de valores, eles conseguem convencer a população
de que o espaço é o tempo e o tempo é a própria memória, desse
modo toda a sua contestação será ridicularizada como algo que se
um dia existiu, não faz mais sentido nem sequer ser lembrada.
Por isso que a sua lucidez deve ser lúcida, mas também reni-
tente, pois em alguns momentos a insanidade das pessoas será de
tal maneira grandiosa, que você se verá assombrado pela vontade
de desistir e pela ânsia de resistir, agora não de modo mais pacífico.
Por isso há de se ter serenidade e firmeza para continuar a ser lúcido
apesar de tudo e de todos, mesmo você tendo a certeza absoluta de
que o mundo é absurdo, mesmo que a sua alma coberta de cicatrizes
torne Jó um exemplo de saúde.
Após muito tempo decorrido, quando os ponteiros eternos
tiverem amarelados todas as bandeiras e signos, talvez você se
encontre sossegadamente se fartando do doce mel reservado para os
perseverantes, ou não né?
Isso tudo é muito incerto. O seu tio Joaquim, por exemplo, lutou,
lutou, lutou e hoje vive amargurando o fel do hospício, após passar
anos em casa de detenção.
Mas quem sabe com você seja diferente, até o seu florescimento
o profano esteja sacralizado como um obséquio dos deuses, e o
sagrado esteja profanado num ato de cortesia da razão humana, pelo
fato de toda intermediação ter sido finalmente reconhecida como
de fato o fato é em si, e todas as versões em contrário sejam afinal
denunciadas como meios de manipulação para manter a população
idiotizada fixada apenas na novela, futebol e religião.

120
Lucidez Renitente

Filho meu, tome esse relógio que pertenceu ao seu bisavô, repare
que ele marca o tempo ao contrário, que é para sinalizar o quanto falta
para a consumação de tudo, até lá filho meu, se você decidir seguir
por essa estrada árdua, nunca abandone a lucidez renitente, e nem a
troque por nada no mundo, quando chegar a sua própria consumação,
escolha um da nossa estirpe e repasse para ele as palavras que acabei
de falar para você, agora vá chamar a minha mulher, devo explicar pra
ela por que escolhi você e não o seu irmão mais velho.

121
Hudson Ribeiro

vácuo

Ela tinha dessas coisas, era só beber qualquer destilado, depois da


segunda dose começava a inquirir Deus, pretendendo de um lance
entender todos os mistérios do universo e como se isso não bastasse,
adorava se vitimizar, todo defeito seu era explicado e justificado
como consequência da educação que recebera, por parte do pai, um
desprezo machista e por parte da mãe, uma atitude submissa disfar-
çada sob a virtude da humildade.
Naquela noite, no aniversário da Celeste, não foi diferente.
Chegou toda sorridente, falou com um e com outro, tirou fotos com
a aniversariante, dançou daquele jeito engraçado dela, até que sentiu
sede e tomou de uma talagada uma dose caprichada de vodca.
Do lugar em que se encontrava, o Wander viu como ela acusou o
golpe se arrepiando toda e retornando à dança, na verdade, um subter-
fúgio para encobrir a vertigem que sentia logo após a primeira talagada.
Deu mais uma volta na sala, dessa vez rebolando e agitando a
farta cabeleira de maneira sensual.
A Celeste trocou um olhar com o Wander, onde se lia “socorro”,
pois a Celeste, como a sua melhor amiga e o Wander, como o seu
ex-esposo, sabiam em que estado ela ficava após ingerir bebida
destilada.
Nem sempre fora assim, na verdade, na época da faculdade de
psiquiatria, ela era a mais resistente da turma, com o tempo o orga-
nismo foi se enfraquecendo tanto, que hoje em dia já ficava bêbada
apenas com o cheiro.
O Wanderson aproximou-se, puxando conversa, sobre um
assunto que sempre dava bons resultados: “E então, soube da desco-
berta da NASA?”.
Como se tomasse um choque de lucidez, ela para e o arrasta para
o canto da sala com os olhos arregalados de expectativa.

122
Lucidez Renitente

pesadelo

Detestava quando a chefia ordenava-o treinar novatos, na maioria


rapazes branquinhos, vindos de alguma universidade do noroeste
do país.
Preferia mil vezes estar no campo de ação, onde exibia o seu
profundo conhecimento psicológico e principalmente, anatômico.
Mas volta e meia a chefia, para fazer média junto aos patrocinadores
do projeto “Fale ou Cale-se Para Sempre”, aceitava aqueles rapagões
de olhos azuis, corpos atléticos e as mãos delicadas.
Nesses dias ficava com o humor tão abalado, que preferia nem
dormir em casa, fazia isso com muito sacrifício, uma vez que amava
muitíssimo a Gerusa, sua esposa, e as suas filhas trigêmeas: Maria,
Pinta e Nina.
As mãos delicadas daqueles rapazes eram o seu primeiro alvo,
o único exercício físico que praticavam no primeiro dia era pregar
tocos no terreno atrás do barracão de ferramentas, terra dura feito
ferro, com uma marreta de quinze quilos, a famosa “sexta-feira”, o
exercício era para arrefecer o ódio que ele sentia por aqueles rapazes,
filhos de família de bem.
Depois dessa catarse, aplicava o curso preparatório da forma
mais profissional possível, desde a captura dos Sem Tetos drogados
para serem cobaias, até as palestras bem humoradas que fazia, ao
término do curso, enfatizando tudo o que havia ensinado, princi-
palmente, detalhando pormenores do projeto e que as mãos, antes
finas e delicadas, agora grosseiras e calosas, até tingidas de sangue,
eram a maior prova de que podiam se orgulhar de serem afiliados à
corporação, e de terem feito o curso com o condecorado e lendário
mercenário, negro Tércio.

123
Hudson Ribeiro

ciganinha

A primeira vez em que a vi, eu estava preparando-me para subir a


ladeira que mais parece uma enorme serpente, ajustando o meu cen-
tro de gravidade e desassociando o pensamento da pisada o máximo
possível, quando estava mais ou menos no meio da tarefa hercúlea.
Primeiramente, fui impactado por uma explosão de cores
quentes, vibrantes, alegres, era ela trajando uma saia multicolorida,
uma sandália de couro trançado, uma camiseta azul piscina, com um
sol desenhando sorrindo.
Os cabelos revoltos soltos em cascata compunham a imagem,
que de imediato, remeteu-me às terras espanholas, mais preci-
samente ao povo cigano, cujos pés são estradas e os corações são
caminhos.
Quando ela passou ao meu lado, pude confirmar a sua beleza
serena que possuem aquelas pessoas afinadas de algum modo com
o povo cigano. Após ela passar, a ladeira ficou muito maior ou as
minhas pernas diminuíram.
Depois desse dia, sempre que vou subir uma ladeira, se instaura
em mim uma expectativa sufocante de reencontrá-la, na ladeira do
convento vi uma pessoa com uma saia parecida, na ladeira do meu
trabalho encontrei uma mulher com uma camiseta semelhante, mas
o sol não estava sorrindo.
E nas minhas férias no nordeste, juro que a vi descendo a ladeira
do Pelourinho, trajada da mesma maneira, refletindo o arco-íris,
com o mesmo andar de pantera saciada, mas naturalmente curiosa,
infelizmente com aquela multidão de turistas de todas as partes do
mundo, nem pude ver em qual porta ela entrou e mais uma vez saiu
da minha vida.

124
Lucidez Renitente

escolha difícil

Assim de cabeça é difícil dizer, olha, quem era bom pra essas coisas
de nomes e fatos era o mano Euclides, mas esse você sabe né? Pegou
uma agonia de conhecer o mundo, até que mainha o liberou, cho-
rando horrores pelos cantos, mas liberou.
Naquela época eu era garoto ainda, lembro-me por alto, tinha
um tal de Clério mãozona, que era o terror da garotada, onde hoje é
o aeroporto tinha um monte de campo de futebol, o prazer desse tal
de Clerizão, era dar uma de juiz só pra babar o jogo.
Apitava tudo invertidamente, inventava regras, ficava de costas para
o campo, fazendo gracinhas para a torcida, e ái daquele que reclamasse,
você acredita que ele fazia tudo isso com uma enorme peixeira na cintura?
Outro espírito de porco era o Zezão pescador, que de pescador
mesmo não tinha nada, o que sabia fazer era meter a mão nos
produtos da nossa pescaria, e se olhássemos de cara feia, nos jogava
dentro da maré morrendo de rir, indo em direção ao bar do Sr. Luiz
para fazer farra com o nosso trabalho.
O Boi Sonso gostava mesmo era de briga, dizia-se técnico de
luta livre, chegava ao ponto de espalhar mexericos só para criar um
clima de disputa, depois ele organizava as apostas, o apelido ele
ganhou por sempre andar sozinho, ninguém confiava nele.
Bem, até onde sei, o Clério foi morto enquanto tomava sol
banho de sol na praça, quando já contava setenta e oito anos, com o
saco do tamanho de um melão.
O Zezão caiu na besteira de jogar tarrafa embaixo da ponte,
inexperiente, acabou preso na corda e no fundo da maré.
O Boi Sonso abusou da sorte, mais de vinte jovens do bairro vizinho
se juntaram e deram uma surra nele de se ouvir os ossos quebrando.
Claro que existiram muitos outros, mas de cabeça assim é difícil,
por onde andará o mano Euclides?

125
Hudson Ribeiro

josué

Josué era conhecido e reconhecido por todos na região e dos povo-


ados vizinhos, conseguiu essa façanha por conta da sua habilidade
como alfaiate, profissão que herdou dos seus antepassados tão remo-
tos, que já se considerava como parte do DNA.
E já adestrava os seus netos na arte do corte, medida, etc. A outra
habilidade que muito contribuiu para a notoriedade do Josué era a
de leitor das linhas das mãos. Muitas das suas previsões tornaram-
-se famosas, como da vez em que leu a mão de um comerciante da
cidade e lhe deu a previsão em enigmas, como sempre fazia olhando
o fundo do olho do consultado:
“Longe daqui encontrará o remédio para os seus males. Após
certo tempo, esse remédio se transformará em veneno e você será
vitimado por ele”.
Ao ir à cidade grande a negócios, por distração jogou um bilhete
na loteria federal e foi um dos dois ganhadores do prêmio máximo.
A sua vida mudou tão radicalmente, que o seu próprio filho tramou
e executou a sua morte.
Quando a notícia se espalhou, todos da cidadezinha se
lembraram da profecia do Josué, só quem nada comentou sobre o
assunto foi o próprio vidente, atualmente convertido a uma seita
religiosa, que abominava sortilégios, aposentado do seu ofício pelo
cansaço das vistas, e envergado sob o peso da terrível dúvida que o
desassossegava desde tenra idade.
Tornada imensa, sufocante, agoniante, após a morte abrupta
da sua querida esposa, dona Jaciara, morta estupidamente ao se
engasgar com uma pequena espinha de peixe em um alegre almoço
dominical, nem para o pastor da sua congregação ousava revelar a
sua dúvida:
“Será que havia vida mesmo depois da morte?”.

126
Lucidez Renitente

mesmice domicial

George, como em todos os domingos, acorda cedinho e vai comprar


pães, quatro doces com creme e seis de sal, se bem que só de pensar
em pão de sal sente espanto, lembrança de Sodoma e Gomorra?
Compra também ovos de pata, queijo de cabra e apresuntado; o
jornal mais caro, dois maços do cigarro mais barato, pilhas alcalinas
para o gravador, onde está gravando o seu depoimento para o novo
livro da sua grande amiga, Helenize Vieira Torres, intitulado provi-
soriamente de Memórias de um Psicopata.
- Bom dia!
- Bom dia, responde jovialmente o dono do supermercado, que
não é ninguém menos do que o pai do famigerado pistoleiro “seis
dedos”, um rapaz de dezessete anos, que se jactanea de haver matado
uns dezoito safados, um para cada ano de sua vida e mais um de
reserva.
Cumprimenta a bonita esposa do comerciante, uma india-
zinha quase adolescente, que arranca suspiros dos consumidores ao
desfilar de shortinho e blusas tomara-que-caia, desnudando mais
que vestindo o seu jovem e belo corpo.
De volta para casa, faz o desjejum, calça o tênis e vai dar umas
pedaladas, no caminho encontra o Augusto “pudim de cachaça” e
o Hélio “sapo boi”, ambos já estão tomando cachaça em plena sete
horas da manhã. Ao grupo se junta o Eliomar “chimboca”, que vem
com o jornal do dia anterior debaixo do braço.
- E daí? O mundo continua a mesma merda, tanto faz o dia do
jornal.
- Bom dia!
- Bom dia!
Conversas triviais de domingo, a ressaca do sábado mais o
espectro da segunda-feira faz as ovelhas mansas, que de tão domes-

127
Hudson Ribeiro

ticadas a cumprirem ordens que à ausência dessas ficam perdidas


como alguém diante de um aparelho de última geração, que não faz
a mínima ideia do seu funcionamento.
E aquele botão vermelho, para quê serve? O que fazer no dia
reservado para o lazer, mas sem dinheiro?
- Toma uma aí e não enche o saco, pô!
- E o Chico Malaquias?
- Então não soube? Estava tirando cajás, bebão, na casa do “peri-
quito” e desabou como uma jaca. Morreu na hora. O enterro foi
ontem, lá no cemitério de Itanhenga.
- E o Luizinho “maré mansa”?
- Está internado outra vez, tá parecendo um calango velho,
dessa vez talvez consiga o benefício do INSS, coitado, a desgraçada
da mulher foi fugir logo com um palhaço, isso acabou com toda
graça dele.
- E o “marujo”?
- Passou lá em casa um dia desses, com um papo de estar neces-
sitando de dez reais para comprar remédios para a mulher, que sofre
dos nervos, desde quando ficou presa em um ônibus naquela onda
de incêndios que se alastrou pela cidade, mas eu acho que ele estava
era doidinho pra tomar uma, as mãos estavam tocando pandeiro
invisível.
- Então foi você que bancou a cachaçada daquele dia, rolou até
uns pés de porco no feijão, uma delícia! Nem cachorro comeu, e por
falar nisso, você não tem qualquer aí não? A cachaça já tá acabando...
Futebol, samba, algumas mulheres, cachaça, fofoca, o escar-
necimento não como afronta ao preceito bíblico, mas como única
maneira de suportar o sufoco de continuar subvivendo sem a menor
perspectiva positiva.
Amanhã a praça estará deserta e esses seres, que praticam o
suicídio à prestação há tanto tempo que já nem mais percebem,
estarão vendendo a sua força de trabalho em serviços subalternos.

128
Lucidez Renitente

Alguns até abjetos, em troca de uma miséria de salário, que não


provém nem o direito a uma alimentação adequada, muito menos
algum trocado para o lazer saudável.
Outros domingos virão, com as mesmas mesmices cada vez mais
as mesmas.

129
Hudson Ribeiro

labirinto

Eu não entendo você: jovem, bela, inteligente, bem sucedida, e, no


entanto, não consegue resolver a sua vida com aquele crápula.
No início até entendia, você fascinada com todo aquele glamour,
lembro-me como se fosse hoje, no dia em que ele foi busca-la de
limousine, com chofer uniformizado falando em inglês, e ofertou
uma cesta imensa contendo vinhos, chocolates, queijos, perfumes,
biscoitos, tudo produto de primeira.
E quando o chofer percorreu a orla, parando de quinhentos em
quinhentos metros para você contemplar os imensos outdoors com
declarações de amor em português e em francês, você já estava toda
derretida, mas a gota d’água foi ele dizer que finalmente encontrara
a mulher da vida dele.
Casaram, tiveram um casal de filhos e com o passar do tempo
tudo foi ganhando um outro sentido ao ponto de você duvidar se
realmente algum dia existira o sentido original. Agora que a Bebel e
o Esdras já estão crescidinhos, qual vai ser a sua desculpa?
Não acredito que você seja defensora do ditado “ruim com ele,
pior sem ele”, ah, minha cara Elisabeth, não fazia ideia de quanto
aqueles anos no conservatório católico deformaram a sua cabeça, a
ponto de traduzir a tortura machista como provação divina.
Uma empresária de sucesso como você, e, no entanto, com ideias
da época do feudalismo... Já enforcaram os reis com as tripas dos
padres, minha cara.

130
Lucidez Renitente

tocaia

Chegou ao Bar do Sussurro por volta das seis e meia, o movimento


começava a ficar vertiginoso, afinal era uma quinta-feira, véspera de
feriado, sentou-se em uma mesa afastada, lugar estratégico, de onde
tinha uma ampla visão de toda calçada e, principalmente, de um de-
terminado restaurante, que servia comida chinesa, localizada a uns
quinze metros do bar.
As orientações que recebera diziam que o fulano frequentava
aquele restaurante, todos os finais de semana. Acendeu um cigarro,
deu uma longa tragada e ficou tentando fazer bolinhas de fumaça,
enquanto pensava como os deuses gostavam de brincar com o
destino dos homens, quem diria que o fulano dessa vez seria um
amigão de infância, o Teófrio, que após duas décadas voltavam a se
encontrarem em situações contrárias.
Teófrio o salvara de um afogamento na represa do rio Profundo.
Aquela fora por pouco, com o passar do tempo, o salvamento perdeu
o vigor até ficar apenas embaçado na memória, que às vezes se
pergunta se de fato ocorreu. Melhor não pensar nessas coisas, senão
o coração esmorece e o dedo se recusa a fazer o solicitado.
Pede um gim, puro e sem gelo, finge não notar a cara espan-
tada do garçom, na mesa em frente sentam-se duas mulheres que
chamam a atenção, não apenas pela altura, no mínimo um metro e
oitenta, como também pela cor da pele.
A branca, de tão branca parece que teve todo o sangue succio-
nado, e a negra, de um negrume tão profundo e lustroso, que por
uns momentos ficou tentando lembrar se já havia visto semelhante
cor em pele de ser humano, e sentiu um comichão no baixo ventre,
quando a sua fértil imaginação levou-o a experimentar os corpos
esculturais daqueles exemplares femininos, mas teve que suspender
abruptamente a imaginação, pois do outro lado da rua, finalmente,

131
Hudson Ribeiro

o Teófrio estacionava o seu carro, exatamente como a informação o


orientara, agora era só chegar lá, fazer o serviço e subir na moto que
já o esperava por detrás de um poste.

132
Lucidez Renitente

jogo

A partida era disputada com a disposição das grandes batalhas.


Quando se encontravam o Atlântico Futebol Clube e o Indepen-
dente Atlético Clube, era sempre assim.
Esta era a terceira vez consecutiva que ambos disputavam a finalís-
sima do campeonato de várzea, inclusive, havia denúncias de que os times
se utilizavam de atletas federados, disfarçados de amadores, e por conta
dessa barafunda toda, a decisão havia sido adiada por mais de uma vez.
Mas finalmente, naquele esplendoroso domingo, dia de adiantar
o relógio em uma hora, a partida se realizava no campo do Taquaral,
que se afastara do campeonato como forma de protesto, mas que
cedera o campo em troca de uma pequena quantia em dinheiro.
Na verdade, os presidentes dos três clubes eram amigos de longa
data, se bem que no momento presente, o presidente da comissão que
organizava o campeonato, o Jordão Bom de Papo, tinha que demons-
trar a sua habilidade de vereador do município reiteradamente eleito:
“Que vença o melhor! Como cada time ganhou uma das
partidas, esta será a melhor de três, parabéns para o vencedor e para
quem perder, há condições de recuperação no próximo ano”.
Após a sua fala, o odor de vaselina era insuportável, quando uma
ventania mais forte fez com que um bloco de nuvens cinzentas e
pesadas se deslocasse, como que galopando celeremente para esta-
cionar exatamente sobre o campo do Taquaral.
O Nico, vendedor de picolés, que tinha platina na perna, lembrança
de uma mula chamada Carinhosa, ao sentir a fisgada deu o veredito:
“Vai cair um toró daqueles...”, e não deu outra, foi nessa enchente
memorável que ainda assombra os mais antigos moradores do bairro,
que veio a falecer o grande goleador Diógenes Crispim.
Vitimado por um raio fulminante que o atingiu aos 34 minutos
do segundo tempo.

133
Hudson Ribeiro

berta

Bem que a Berta sentiu uma vontade imensa de olhar para trás, mas
resistiu bravamente ao se lembrar da promessa que fizera a sua mãe
em seu leito de morte, seria cuidadosa ao extremo ao escolher o pai
dos seus filhos, porque o dela mesmo se revelou um grande canalha,
pois já era casado e pai de três filhos em sua terra natal.
A descoberta realizada através de uma carta anônima foi a causa
da morte da sua mãe, com a idade de 31 anos e cheia de sonhos
reprimidos.
Pisou com mais força ainda e entrou na biblioteca quase
correndo, com um enorme aperto no coração, procurou uma mesa
mais afastada e se afundou no estudo com uma vontade descomunal,
quando saiu já era final de tarde.
O retorno foi em um ônibus lotado, ela em pé preferiu fazer
baldeação e garantir um lugar sentada, precisava colocar a cabeça
no lugar, saber por que ficara assim, tão excitada com a presença
daquele negrão ao seu lado na viagem de ida, em uma mistura de
sentimentos, ao mesmo tempo em que se sentiu invadida por uma
sensação muito parecida com o asco que sentia pelo pai.
Também se sentiu protegida como o calor dos braços da mãe,
mas o que a deixava mais confusa era aquele formigamento pelo
corpo, principalmente no baixo ventre.
Precisava se acalmar, no dia seguinte teria entrevista com o
seu possível orientador para o mestrado, muito estranho aquele
professor, havia histórias no Campus, que falavam sobre o provável
homossexualismo dele, outras falavam que era chegado a uma orgia
estilo romano.
Algumas poucas afirmavam, que aqueles comentários maldosos
eram intriga da oposição, pois de fato, aquele professor era uma das
poucas cabeças brilhantes daquela instituição.

134
Lucidez Renitente

viva aníbal!

Fomos de ônibus, pois naquela época avião era pra gente rica e a
nossa situação estava precária. Depois de abandonar o jornal por
discordar da nova linha editorial, vivia de fazer jingles para o co-
mércio de médio porte, enquanto ela gerenciava uma loja de móveis
antigos.
Mal nos instalamos e as nossas línguas se soltaram, fomos
conversando daqui até aquela cidade do aço, ela falou mais do que
eu, lembrou-se do dia em que me viu, como pareci esnobe, com os
meus sapatos de bicos finos e o meu colete azul turquesa.
Confesso que em alguns momentos eu peguei no sono, o balanço
do ônibus mais aquele barulhinho de chuva fininha sempre foi irre-
sistível para mim, ela insiste em dizer, que eu dormi o tempo todo
da viagem, que cheguei até a babar, murmurando sorrindo: Viva
Aníbal! Viva Aníbal!
Lembro-me que teve um momento em que eu me recostei em
seu ombro e fiquei meio dormindo, meio sonolento e sonhei que
entrava na cabeça dela, tudo muito mais lindo do que a bela cabeça
que ela possui, depois eu subia em direção ao sol, cada vez mais alto
e ela não largava a minha mão, surpreendentemente o calor do astro
rei já não queimava e nem a sua intensa luminosidade causava-nos
cegueira, sentia-me completamente bêbado e lúcido.
Quando o ônibus parou para o lanche, descemos para esticar
as pernas e percebemos os outros passageiros olhando-nos com ar
de censura, ela sempre conseguiu sorrir com os olhos em situações
como essa, eu só lamentava ter cedido aos apelos dela e prometido
em não me envolver em brigas.

135
Hudson Ribeiro

fada

Despede-se da esposa, beijando-a de leve na testa e abençoando a


vida conjunta, que tecem com profunda serenidade e grandiosa fir-
meza, afaga o cãozinho pequinês, o Tio Ho, e prefere descer as esca-
das ao invés de usar o elevador.
Na portaria passa por um sonolento porteiro ansioso pelo
momento de ir para casa, atravessa o calçadão, reparando como as
pedras portuguesas formam desenhos ornamentais, até serem inva-
didas por inúmeros ambulantes vendendo de tudo. Passa pela banca,
compra o jornal e vai para o ponto de ônibus.
A cidade começa a acordar, a enfermeira muito alta com traços
indígenas, o mendigo já com a garrafinha de cachaça na mão (conve-
nientemente batizada de pistolinha), a albina do restaurante com o
andar apressado.
Após uma meia hora de espera, embarca em um ônibus ainda
com lugares disponíveis, senta-se no lado da janela, gosta de contem-
plar o mar enquanto o ônibus passa sobre a ponte e lembrar-se da
sua época de garoto pescador de tainhas.
No ponto em frente ao museu embarcou uma jovem mulher que
se sentou ao seu lado, retirando lápis e papel da bolsa e começou a
desenhar o que pareciam ser traços fisionômicos, ele preferiu fechar
os olhos e relembrar da sua muito amada, incrível como a cada dia
a amava mais.
Quando o ônibus passou em frente ao aeroporto abriu os olhos
e não mais viu a desenhista, o que viu sobre o banco ao seu lado foi
o desenho do seu rosto muito mais formoso e abaixo dele escrito:
“prazer, eu sou a Sulamita, fui incumbida de guardá-lo e protegê-lo
nessa fase da sua vida. Tenha um belo dia!”.

136
Lucidez Renitente

loura, linda e inteligente

Cabelos louríssimos, lisos e compridos, ela não é apenas bonita, mas


realmente linda. Olhos cor de mel que parecem abençoar tudo o que
veem. Com cerca de trinta anos, é uma liberal consumada, com uma
biografia digna de quem advoga para si tal enquadramento.
Em sua vida pregressa conta desde a militância política subver-
siva até estudos esotéricos, passando por todos os modismos ditados
pelo pós-modernismo, até que escolheu o underground como
morada definitiva.
Com toda essa vivência de experiências exorbitantes, a Larissa
herdou uma personalidade atrevida, que de tão contagiante, muitas
vezes é confundida com puro egoísmo. O que enseja tal julgamento,
sem dúvida, é a sua eterna ondulação de humor, que nesse aspecto se
parece por demais com uma adolescente mimada.
Há dias em que acorda doce como uma fruta madura colhida
na época propícia, quando é um mantra de cordialidade e de boa
educação, cumprimenta a todos carinhosamente e, por incrível que
pareça, se lembra e se interessa, sinceramente, pelos planos secretos
acalentados por todos os que privam de sua intimidade.
Porém, há dias em que acorda com as cachorras, xinga a empre-
gada, deixa os animais e as plantas sedentos, é escandalosamente
depravada com todos os que cruzam o seu caminho e asperge com
violência a sua sentença preferida:
- Você pode fazer o que quiser, vai se dar mal de qualquer jeito.
Ou ainda quando algum incauto tenta acalmá-la:
- Sai fora seu escroto, eu sei qual é a sua, você quer é comiseração
e apoio para as suas ignobilidades!
Na longa estrada da sua vida sentimental, ela contabiliza
inúmeros corações arrebentados pelo seu amor assumidamente
efêmero, havia pelo menos dois suicídios comprovados, um preten-

137
Hudson Ribeiro

dente preterido ingeriu uma dose cavalar de veneno para ratos, o


outro se jogou da Terceira Ponte no segundo dia de carnaval.
E um jovem havia corrido da paixão avassaladora não corres-
pondida internando-se em um convento, convencido de que a
mulher é o diabo de calcinha vermelha com um sorriso sedutor nos
lábios pintados.
Nos bastidores do underground, Larissa é chamada de “donzela
de ferro”, como ela mesma gosta de dizer:
- O homem que é comido pela mulher, até a anatomia nos dá
prova disso, prestem atenção, pois é a vagina que abocanha o pênis,
alimenta-se do sêmen e depois de lavada está nova em folha, talvez
um pouco alargada, mas nada que uma operaçãozinha não dê jeito.
Musicista profissional é professora de música alternativa, inspi-
rada nas bandas da Europa Medieval e no rock n’ roll dos anos
setenta, também canta em bares e é especialista em participar de
festivais. Toca flauta e violão de doze cordas, como higiene mental e
defesa pessoal pratica o caratê:
- Uma mulher prevenida vale por três, gostava de repetir triun-
fante. Pela dona de casa, pela prostituta e pela religiosa que habitam
em nós.
A beleza da loura escultural causa tremores até em corações
femininos, havia pelo menos um caso de uma aluna sua, que mesmo
depois de terminar o curso, reiteradamente se matriculava, apenas
para dividir o mesmo ar que tão extraordinária mulher respirava.
Para os que tinham coragem de questioná-la sobre essas paixões
que provocava, ela respondia, quando de bom humor, com um olhar
enfadado, como que fazendo um favor por comentar alguma coisa:
- Que importa? Nesse estado de humor o querer de Larissa
se transformava em vontade de poder, o leão nietzschiano reinava
soberano. Quando mal humorada, apenas olhava para o nada e
alguns interlocutores juravam terem vistos lágrimas furtivas escor-
rendo pelos cantos dos olhos cor de mel.

138
Lucidez Renitente

Para os que admiram a sua insaciável energia sexual, respondia


com uma gargalhada sensualíssima, erótica mesmo:
- Gozo, logo existo! O prazer de uma boa trepada é a prova
inconteste da nossa existência, pensar apenas não basta, para existir
é preciso gozar e gozar fartamente, por todos os poros.
Aos que a acusavam de descontrole emocional, consequência de
sua vida desregrada, adquirindo um tom profissional, que utilizava
em aula, a loura, linda e inteligente, explicava pacientemente:
- Descontrole é o que adquirimos por querer controlar a vida dos
outros, agindo desse modo o que se consegue não é a tão sonhada
paz, mas sim a guerra disfarçada.
Apesar de parecer amalucada, Larissa leva muito seriamente os
seus estudos autodidatas de filosofia e o interessante é que pretende
adaptar as várias concepções filosóficas a seu modo underground de
viver.
- O meu filósofo preferido é o Friedrich Nietzsche, o meu
querido “Nini”, que se danem os catedráticos da filosofia, pois o meu
querido “Nini” escreveu foi pensando na libertação dos homens em
geral e das mulheres em particular. O famigerado super-homem é
necessário pra fazer jus à supermulher, que existe desde os primór-
dios e eu sou prova cabal desse fato. E naquela passagem em que
“Nini” fala em uso do chicote quando encontrar uma mulher é justa-
mente para ser usado pelas mulheres no intuito de dobrar a hipo-
crisia masculina.
As pessoas que a conheceram jovem e sabem em quantas esta-
ções ideológicas já se fixou, afirmando ser a última, apostam entre si,
por quanto tempo o underground conseguirá contê-la.
- Que importa! Ela pensa, pisca um dos olhos e franze o nariz,
fazendo aparecer a covinha do seu aristocrático queixo, no ato mais
charmoso do seu imenso arsenal de conquistadora voraz:
- Eu quero é poder! Eu quero é querer! Gozar é poder! E poder
é gozar! Gozar fartamente e por todos os poros!

139
Hudson Ribeiro

roda de fogo

As labaredas coloridas dançavam enlouquecidas ao som da música


cigana, Pablo contemplava o grupo, vestido de maneira colorida e
alegre, girando em torno da fogueira no sentido horário, confor-
me girava mais se sentia parte de tudo: da fogueira, da mesa com
oferendas lindamente arranjadas, da imensa palmeira secular que
balançava suavemente ao sopro do vento primaveril de outubro.
Quando já não sentia o próprio corpo, intuiu através das figuras
formadas pelas labaredas, como se o espaço também se contorcesse
e abrisse uma minúscula janela por onde era possível enxergar além
do mundo, uma vez que o tempo agora estava suspenso, permitindo
ao Pablo se ver tanto no passado, quanto no presente e no futuro.
Reviu a sua amada com seus lábios carmesim e os olhos negros
profundos, sofreu com a rebeldia do seu primogênito e acusou o
golpe fatal, que o vitimou, mas também se alegrou com o filho
caçula, que nascera pronto e reconduziu o primogênito ao caminho
perfeito.
Agora estava ali, enorme, sendo homenageado em uma festa
que era para ele e o seu povo, gente com as estradas nas veias e os
caminhos nos corações, gente pródiga em decifrar as várias linhas
das mãos e tantos outros sinais, gente continuamente perseguida
por uma civilização escandalosamente sedentária e que discriminou
o nomadismo do seu povo como vagabundagem. Ano que vem, ele
retornaria paramentado, convenientemente, como convém a um
grande líder tribal.

140
Lucidez Renitente

palhaçada

Horário do rush, a cidade tomada por carros, na maioria da cor cin-


za, como uma invasão de ratos, de passagem aconselho a um ex-
-aluno a atravessar no sinal, ele responde que o sinal mais próximo
está muito longe. Dois rapazes passam ao meu lado, vindos em sen-
tido contrário, ainda ouço algumas palavras: “colocou duas pontes de
safenas, agora tudo muda (...)”.
Estranhamente as pessoas estão com os semblantes mais rela-
xados, de súbito, me lembro que hoje é sexta-feira, o dia mais ansio-
samente esperado, e início da primavera, a estação mais promissora
de boas novas.
Penso que as pessoas nem se percebem dessa forma, atravesso na
faixa para pedestres, do outro lado uma movimentação de palhaços,
vestidos de Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Chico Bento,
Rosinha, até o Louquinho.
Quando o sinal fecha, duas assistentes estendem uma faixa com
alusão à semana do trânsito, por alguns minutos o ar fica alegre, mas
é só o sinal abrir para o ar se entristecer novamente.
Bem que os palhaços se esforçam, alguns demonstram destreza
sobre as pernas de pau, mas o rush é horário dos adultos, e palhaçada
sem repercussão risonha, de preferência infantil, é velório disfarçado,
como a me socorrer o pensamento no momento em que a palhaça
me felicitou por eu haver atravessado na faixa, passa um ônibus
trazendo uma turma do ensino fundamental de algum passeio.
Aí de fato, o trânsito parou e a palhaçada ganhou a condição de
seriedade com a repercussão risonha da criançada, sempre disposta
a brincar.

141
Hudson Ribeiro

corina ataca novamente

O telefone tocou quando eu estava iniciando a aula, explicando a


crítica feita por Nietzsche à proposta socrática, tento ser o mais
rápido possível ao desligar o celular, mas não o bastante a ponto
de impedir a picardia de alguns alunos, lembrando que o uso do
aparelho é proibido em sala de aula; verifiquei a chamada, número
desconhecido, fui até às mensagens, havia um total de doze com o
mesmo insistente texto, assim que puder ligue para mim, só, então,
fiquei sabendo que era da Corina, velha conhecida de rock na ilha
do Boi e na Rua da Lama.
Tomo um cafezinho sem açúcar, devido a minha dieta, e vou
até à área externa conferir o número e não deixo de achar curiosa a
sequência de números 051866, tratando-se da Corina tinha de ser
um número daquele...
Alô! Neste número eu consigo falar com a Corina? Aguardo
alguns minutos, ouço ao fundo um alarido abafado por sons de
pacotes sendo vendados com fita adesiva, até que uma voz seca e
estridente responde:
Só quero avisá-lo, em nome do nosso amor do passado, que
agora está mesmo confirmado, o mundo acabará em dezembro do
ano que vem, a notícia veio do sul e está se espalhando. Ainda penso,
muito gozado isso, os demônios vieram do norte para espalharem a
notícia de que o mundo iniciaria o seu fim a partir do sul.

142
Lucidez Renitente

metamorfose

Quer dizer, então, que aquele professor confuso entre a rigorosidade


e a rigidez, que até tornava as suas aulas um verdadeiro martírio,
agora é o queridinho dos estudantes?
Pra você ter uma ideia, na época em que estudava para o douto-
rado, desenvolvendo uma tese em Sartre, assumiu a aula de metafí-
sica, uma confusão danada..
Bom que ele tenha mudado, o casamento deve ter feito bem para
ele, sabe se parou de fumar cachimbo? Ele com aquele cachimbo
de fumo perfumado era um negócio sério. Assim que eu tiver um
tempinho vou enviar um e-mail para ele.
Como são as coisas, né? E pensar que uma vez eu impedi o
brutamontes do Ademar de dar umas porradas nele por questão de
notas, acho que ele nunca soube disso.
Tempos depois o Ademar abandonou o curso, ninguém entendeu
o porquê, a mim ele revelou e pediu segredo, o motivo foi uma aluna
adolescente da escola onde ele lecionava, que o estava infernizando
com tantas insinuações, que ele, antes de provar a fragilidade da
própria carne, preferiu retornar para a sua cidade natal, que passava
por um período de prosperidade, com a descoberta de petróleo e gás,
mesmo havendo denúncias de que com a prosperidade da cidade a
roubalheira aos cofres públicos aumentara em mil por cento.
Ele preferia pensar que tudo era intriga dos habitantes despei-
tados das cidades que não tiveram a felicidade de produzirem a rica
matéria prima.

143
Hudson Ribeiro

tão exata

Queria escrever uma coisinha para você, maneira de revelar toda a


minha querência, sei lá, às vezes penso que nem devo, sabe como é,
palavras ditas o vento leva, palavra escrita vigora indelével.
Primeiro pensei em escrever uma poesia, mas triste escritor que
sou, o máximo que alcanço é escrever poemas, qual a diferença? Há
um abismo gigantesco entre as duas formas de expressão.
O poema ainda transita no horizonte da linguagem denotativa,
necessidade de se manter os pés no chão; a poesia lança a âncora
fora e se perfaz perfeita mediante todas as conotações possíveis,
como um ressoar das coisas que nos rementem à causa.
Depois pensei em escrever uma carta, oras, em tempo de correio
eletrônico falar em carta traz um gosto tão amarelado que, certa-
mente, a minha mensagem se perderia ao abdicar da urgência do
momento.
Na verdade, cheguei até a rascunhar alguma coisa, mas acabei
por jogar fora, tanto tempo sem escrever cartas, que perdi o senso da
coisa, por fim, decidi-me por escrever sem me preocupar com estilo,
você acredita que eu escrevi trinta páginas em apenas vinte minutos?
Cheguei a ficar com a mão doendo, mas o resultado final causou-
-me a maior surpresa, o que eu escrevi nasceu de você, perpassou-a
e continuou pulsando em todos os sentidos da direção indicando a
existência dessa nova mulher, guerrilheira com aura de criança.

144
Lucidez Renitente

conselho

Eu ainda acho que você deveria ir até lá dar uns conselhos praquele
cabeça de vento, a comadre Gina tá num estado de fazer dó, desde
que o caçula dela voltou da cidade grande, ela não teve mais sossego,
o que será que tem nesses lugares, que viram as cabeças das pessoas?
Lembra-se quando ele saiu daqui? Um rapagão bonito, cheio
de sonhos, o orgulho da comadre Gina e do compadre Nestor, esse,
coitado, desde que soube da notícia não sai da birosca do Manuel,
será que foi o orgulho deles que botou tudo a perder?
Às vezes eu penso que a vida é assim mesmo...
Falei com a comadre que pediria a você para falar com ele, sei lá,
dar uns conselhos, afinal, você viveu dois anos na maior cidade do
país, é um homem vivido, conhece até as estranjas, por que você não
pensa sobre o assunto? Depois me dê a resposta, eu por meu lado
fico aguardando e rezando por sua concordância.
Sei muito bem ser imperdoável o que ele fez, mas intercedo é
pela comadre Gina, coitada dela, com dois homens em casa sem
valor nenhum. Após a irmã sair, o homem de meia idade finalmente
acendeu o cigarro que girava pelos dedos durante todo o tempo da
fala da mana.
Levantou-se, chegou-se à janela e contemplou a imensidão do
céu, gostava tanto daquela mana, que por alguns minutos sentiu-se
tentado a concordar com o seu pedido, mas de repente o seu pensa-
mento voltou-se para si mesmo, e ele se deu conta de que jamais
faria aquilo.
Como dizer ao jovem uma mensagem esperançosa, se há mais
de uma década carregava uma cicatriz monstruosa bem no fundo
da alma, fruto de uma mordida cruel que a cidade grande lhe dera?

145
Hudson Ribeiro

mentes repartidas

Valquíria comprimiu fortemente as têmporas em um gesto elétrico


de puro nervosismo, era a sua enxaqueca que se presentificava, crue-
líssima em sua pontualidade britânica.
A ponto de fazer com que a Val, no ataque do dia anterior
mordesse a própria língua, tentando, desse modo, desviar o foco
da dor; de nada adiantara, resultara apenas em uma sensação de
duas dores desencontradas e contundentes, ambas tão intensas que
tornavam tudo confuso.
Enquanto a dor na língua oferecia a ela todos os desgostos possí-
veis, juntamente com um filete de sangue que escorria pelo canto de
sua boca, a dor de cabeça vigorava terrível, como se alguém estivesse
martelando-a de dentro para fora, tambores infernais, anunciando
o que?
Mas naquela tarde primaveril de outubro, tudo seria diferente,
pois decidira por em prática a recomendação da “Mariazinha vai
com as outras”: inspirar profundamente e mentalizar paz e harmonia.
Toda tarde era o mesmo drama, depois de todo um dia passado em
meio a tantas cabeças repartidas, o ar ficava pegajoso, solidificado
por tanta miséria humana.
A própria “Mariazinha vai com as outras”, uma negra esquá-
lida de seus trinta e poucos anos, que aparentavam mais de sessenta,
devido à dureza da vida passada em seus áureos tempos nas calçadas
da praia de Camburi e, depois, nos arredores do Parque Moscoso,
até se tornar uma moradora de rua.
O seu ponto de pernoite era debaixo da Segunda Ponte, até que
em um dia, tendo apenas um pouco de óleo na hora do almoço e
o choro insistente do seu filho caçula, o Masque Ralph Kennedy,
reclamando comida, bebida e carinho, a deixou tão alucinada que
entornou o óleo quente na ouvido direito do filhinho.

146
Lucidez Renitente

Despiu-se de suas roupas maltrapilhas antes de sair correndo


e o gritando em direção à rodoviária: “Jesus está morto! Jesus está
morto!”.
Havia também a Suzanka, uma descendente oriental de estra-
nhos olhos cor de mel, ex-policial que ferira mortalmente a sua
parceira, grávida de três meses, em uma batida “nervosa” em um dos
inúmeros morros da cidade.
O que a Suzanka mais temia era aquele tipo de operação poli-
cial, quando uma mansão de algum bacana era assaltada e o alarido
da imprensa comandado pelo poder econômico da suposta vítima
fazia com que o alto comando da segurança pública fosse acometido
por um frenesi indescritível.
Nessas ocasiões os morros capixabas apareciam no cenário da
cidade que, a cada dia, mais se traduzia nos bairros nobres, de onde
se vê o mar enquanto se dá as costas para a miséria do país.
Fora uma fatalidade, mas a Dolores era a melhor amiga da
Suzanka, desde os tempos da escola de formação, Suzanka é que
seria a madrinha do Mauricinho ou da Patricinha...
“Santa Cruz” era quase uma menina, a sua mente se repartira
durante uma disputa de um “racha”, na Avenida Santo Antônio, o
fusquinha que dirigia perigosamente, já com os pneus carecas se
espatifou no muro do cemitério, causando no ato a morte de sua
irmã caçula, que contava com apenas nove anos incompletos.
A Andira sempre fora ladra, encontrava-se ali por um pedido
do pastor ao juiz da comarca, que ficou sensibilizado ao saber que a
iguaria predileta da “Andira coco” eram as suas próprias fezes, que
não apenas ingeria com ar satisfeito, como também, passava o excre-
mento por todo o corpo, exclamando infantilmente: “que delícia,
que delicia”.
A Desdeth chegou em camisa de força, o motivo do seu surto
foi o ápice de uma carreira homérica na área da educação, exatos
trinta anos de intensa labuta diária, de auxiliar de serviços gerais à

147
Hudson Ribeiro

diretora escolar, passando pelos cargos de professora, coordenadora,


pedagoga e, finalmente diretora.
Foi nessa função que o vigilante Carlos a encontrou rasgando
todo o dinheiro da caixa da cantina, após ter estourado a cabeça do
aluno mais rebelde da escola, com uma pedra de bom tamanho, que
servia para escorar a porta.
A Linda era realmente possuidora de uma beleza estonteante,
olhando para aquela lindeza toda, ninguém diria que aquele anjo
em forma de gente fora capaz de decepar o pênis do namorado,
enquanto fingia lhe proporcionar prazer com a sua tentadora boca
de lábios carnudos, tudo por ciúme da própria mãe.
Pelo tempo passado ali, já era para a Val ter se acostumado
àqueles corpos rotos de olhares vagos, de mãos trêmulas, os sons
das vozes cada vez mais estranhos, devido aos inúmeros remédios
pesados.
O pior era o finalzinho da tarde, parecia que todas sentiam a
proximidade dos braços negros da noite, ainda mais se fosse noite
de lua cheia, as mentes repartidas se tornavam mais repartidas e não
raro, nesses momentos os apelos sexuais se tornavam imperativos.
A própria Valquíria sentia algo diferente em seu humor, pois
há tanto tempo não sentia a virilidade de um homem penetrando
esfomeado as suas carnes, que só de pensar ficava tonta e, apesar
de mentalizar paz e harmonia, os tambores tornavam-se resso-
nantes, agora acompanhados de algumas motocicletas, fazendo os
seus ouvidos purgarem um fétido líquido esverdeado e o seu olfato,
surpreendentemente apurado, quase não suportar o acre odor de
borracha queimada.
Por alguns segundos pensa em apelar para a mordedura da
própria língua, mas ao lembrar-se da dor misturada com os vários
dissabores, desiste.
No fundo ela sabe o que deve fazer, já não suporta mais aquele
lugar, todas aquelas mentes repartidas mexiam com ela de uma

148
Lucidez Renitente

maneira que nunca suspeitara, parecia até que com o passar do


tempo ela fora assumindo, sutilmente, mas de forma inexorável, as
personalidades daquelas figuras humanas tão diferentes e, ao mesmo
tempo, tão iguais no tocante à demência.
“Mariazinha vai com as outras”, Suzanka, Desdeth, Linda,
“Andira coco”, e ela própria, por que não?
Quando a dor se torna insuportável, Valquíria corre em direção
à porta e começa a bater, enquanto grita desesperadamente:
Enfermeira! Enfermeira!
Uma jovem enfermeira, mascando chiclete e exibindo uma tatu-
agem de uma borboleta na altura dos seios, após alguns minutos
que parecem uma eternidade, atende aos chamados com um ar de
enfado, pois fora interrompida da leitura de sua novela romântica
preferida, “O Burguês Bondoso e a Proletária Cruel”.
O que houve doutora? Trancou-se sozinha outra vez?
Os tambores começam a diminuir lentamente, apenas o barulho
das motos insistem em se fazer ouvir.

149
Hudson Ribeiro

promessas

O encontro foi rápido, o sobressalto do coração, provocado pela tro-


ca de olhar, perdurou por toda a semana, ambos participavam da-
quela formação profissional, “A Educação na Atualidade”.
Ele professor de ensino religioso, e ela, professora de física.
O encontro ocorreu no momento do lanche, cem pãezinhos com
presunto e queijo mais um galão de cinco litros de café para mais de
quinhentos profissionais da educação, famintos e sedentos, o que se
viu foi o caos esfomeado dando banana para a etiqueta.
No meio do empurra-empurra generalizado, o professor se viu
diante dos olhos cor de mel da professora, ambos querendo se afastar
do carrinho das guloseimas, tão cobiçado e, que devido à algazarra
se viam lançados no olho do furacão mal educado, apesar de ser
formado por profissionais da educação.
O professor aproveitou-se de uma brecha aberta por um segu-
rança estilo guarda-roupa de quatro portas e, puxando a professora
de física, conseguiram sair do redemoinho e respirarem aliviados.
A professora agradeceu e juntou-se a um grupo de amigas que
a esperava.
O professor perdeu-se ao olhar o movimento dos quadris da
professora. E agora estava ele ali, após uma semana... Suando nas
palmas das mãos, dentro do bolso da camisa o poema que escrevera
pensando nela, e no bolso da calça um bombom de fino chocolate.
Foi quando o seu olhar fixou-se na mão esquerda da amada,
onde brilhava uma vistosa aliança, que na confusão daquele dia, ele
nem notara.

150
Lucidez Renitente

estiagem

Ela viaja sempre?


Sim, passagem comprada, tempo de estiagem vindo, nos tempos
dos porões transmutei a solidão solitária em solidão solidária.
Agora depois de quase dois anos convivendo rentemente com
a amada... Será um teste violento para mim, costumo dizer que é
como mergulhar sob uma pedra.
Vi o meu pai, o grande Raphael Ribeiro, fazer isso lá na Praia da
Costa, na época ele possuía um fuscão 75 verde-abacate.
Até me lembro do número da placa, 5279, houve uma época de
maré baixa que andei perseguindo esse peru fanaticamente, depois
desisti, iludido por outro sonho.
Então, para o mergulho ser bem sucedido depende da quan-
tidade de oxigênio reservado. Muito oxigênio estoura os pulmões,
pouco oxigênio morremos afogados.
Qual a quantidade de oxigênio exata? Tá de brincadeira ou você
não sabe que “exata” nesses casos é o que não cabe em si?
E, portanto transborda em infinitas possibilidades, incluso,
àquela alardeada como impossível, tem receita não meu filho, vai
por osmose mesmo, porque no momento apoteótico do mergulho, o
que vale mesmo são as tramas dos Deuses, tecidas com os fios tênues
da eternidade, que decidem essas coisas.
É claro que a rigidez do momento presente, também tem a sua
participação...
Tempo de estiagem vindo.

151
Hudson Ribeiro

consulta

A sala de espera para a consulta médica é ampla, mas sem ventilação.


Para piorar, a televisão está com problemas, agora fica ali silen-
ciosa, lembrando a falta brutal que faz para as pessoas que há muito
perderam a arte e a manha da conversa afiada no bom humor e na
presença de espírito.
Depois da invasão dos gafanhotos, o máximo que as pessoas
conseguem é articular alguns grunhidos, completando-os com uma
gesticulação frenética.
Entra uma jovem mãe, trazendo a filhinha tristonha, pois
contraiu catapora.
Uns dez minutos depois entra outra garotinha, que traz nos
olhos o fogo inerente à idade dos seis anos, acompanhada por
alguém que, se os queixos valem mesmo como herança genética,
parece ser o seu irmão.
Demonstrando bom senso, a mãe da enferma solicita, não a
deixe se aproximar, pois a Lindinha pegou catapora.
Em meio ao silêncio pesado, entrecortado pelo barulho de
folhas do jornal que são lidas atenciosamente por um homem de
meia idade, elegantemente vestido, exibindo cãs grisalhas de um
tom saudável, contrastando com a pele negríssima.
As duas pequenas tentam uma comunicação através de gestos
e olhares.
Uma enfermeira vendo a cena comenta: “são iguais aos bebês,
onde se encontram, tentam se comunicar”.
O leitor de jornal pensa consigo, alminhas que acabaram de
chegar a esse planeta, trazem ainda viva na memória, o frescor de
onde se encontravam, e uma imensa incompreensão com o entorno.

152
Lucidez Renitente

intervenção

Não precisa ter medo não menina, só de serviços prestados neste


bairro lá se vai pra mais de vinte e cinco anos, uma geração intei-
ra passou por essas mãos com o dom que possuo desde novinha,
quando lá em Riacho Azul eu brincava de enfermeira com o meu
priminho da cidade grande, que vinha passar as férias de final de ano
com a gente.
Depois tomei gosto em cuidar de animais, eu adorava aquilo,
mas quando eu abri o peito do papagaio do meu mano pra ver se
coraçãozinho dele era um gravador, todo mundo foi contra mim, só
o tio Lucas me defendeu, dizendo que ali estava uma futura cien-
tista e que aquele fim de mundo não era lugar para alguém como a
querida sobrinha, tão promissora.
Depois a crise dos anos oitenta se alastrou como um tsunami,
transformando a vida de todos em uma comédia sem graça.
O pequeno armazém que o meu pai possuía em associação com
o meu tio Lucas faliu, por essa época eu trabalhava na casa de dona
Margarida Boa Ventura, uma senhora de muito respeito, que habi-
tava um casarão na entrada da rua principal, foi com ela que aprendi
a profissão, da qual muito me orgulho e que me possibilitou reaver o
armazém e pagar a faculdade dos meus três filhos.
De vez em quando ocorre algum debate sobre a minha profissão,
mas posso te garantir uma coisa, os que mais fazem alarde são os que
mais se utilizam dos meus préstimos.
E você fique tranquila, como está no quarto mês, a intervenção
será tranquila.

153
Hudson Ribeiro

ela

Quando a vi, meu coração disparou tanto, que atrasei o passo só prá
ninguém notar o quanto ela mexeu comigo, mais tarde ela se aproxi-
mou com um sorriso que fez as minhas pernas tremerem medrosas
daquela sensação maravilhosa que tomava conta de mim.
Perguntou-me se eu gostava de música e se eu já tinha ouvido
Milton Nascimento, respondi que sim à primeira, e não à segunda.
Ela tinha mania de conforme conversava mais se aproximava, e eu
já sem saber o que fazer, fui salvo pelo chamado da Patrícia, pois
domingo iríamos todos ao monte Moxuara.
Naquele dia voltei para casa com o coração aos saltos e com
o disco “Milagre dos Peixes” embaixo do braço, passei em frente
ao clube Desportiva, troquei de calçada para evitar um grupo que
saía, ainda suado e eufórico, comentando lances da partida, de longe
ainda ouvi falarem de mim: “aquele ali jogou prá caramba!”
O meu irmão disse que foi esse negócio da política que acabou
com ele. Chego em casa, coloco o disco no aparelho e vou parar em
um lugar que a muito tempo não ia achando muito incrível ainda
me recordar, borboletas passeiam em meu estômago e mesmo de
olhos fechados e viajando para dentro consigo enxergar cenas que
de algum modo são íntimas embora não me lembre de ter sido apre-
sentado a elas.

154
Lucidez Renitente

se falas... evaporas

Pois então, inspiração é um negócio danado de difícil de explicar, já


tentou segurar água? É mais ou menos assim, diferença crucial é que
a água é ainda mais palpável que a inspiração, esta é tão etérea que
desconfio mesmo que ela nem exista.
E a sua pretensa existência foi inventada e é cultuada por alguns
artistas, como um meio de se privilegiar o meio, quando o fim mesmo
já se perdeu em meio às inúmeras possibilidades, assim como quem
tem o mapa de um tesouro e demora tanto tempo a procurá-lo, que
a cristalização torna o mapa muito mais importante que o tesouro.
Alguns escritores assumindo o ar de sinceridade propagam que
em lugar da inspiração existe mesmo é a transpiração, sendo que é
sabido o fato de alguns transpirarem tão copiosamente, sendo viti-
mados por desidratações irreversíveis. E agora vem você do alto dos
seus impetuosos nove anos querendo saber o que é transpiração?
Sei... Sei... Sei que é inspiração a palavra, mas depois da última
desidratação que peguei, o seu tio anda tendo a sonseira de trocar as
palavras. Inspiração... Isso é lá tema de pesquisa?

155
Hudson Ribeiro

janela

Ninguém no lugarejo se lembrava de ter visto os cabelos pretos da-


quele homem.
Possuía um cabelo branco escorrido sobre o seu rosto ossudo,
muito semelhante ao poeta maranhense Ferreira Gullar, todos os
moradores afirmavam que ao chegarem ali o homem de cãs esbran-
quiçadas já se encontrava, sempre afável com todos, mas nunca
convidando ninguém para visitá-lo e nem aceitando convites de
ninguém.
Igreja não frequentava, mas todos os meses contribuía com uma
quantia significativa para várias instituições religiosas, o que apazi-
guava padres, pastores, pais de santos e afins.
Houve apenas um caso de um pastor mais insistente, que tentou
uma aproximação maior e teve a contribuição suspensa sem maiores
explicações.
O que ele gostava de fazer era ficar da janela do sobrado onde
residia olhando uma luneta apontada para o céu, afinal de contas,
aquele lugarejo era o lugar mais indicado para observar a conste-
lação que abrigava a estrela Capela.
Motivo pelo qual o Capitão de Fragata, Teobaldo Guimarães
Neto, largara o posto, a família, e uma vida altamente adaptada em
uma grande metrópole, depois de ter um sonho revelador onde uma
entidade garantiu que ele fazia parte da nobre linhagem do valoroso
povo Viux.
E que só teria verdadeira paz quando fosse a uma localidade
onde a aparição de Capela se presentificava com maior nitidez.

156
Lucidez Renitente

aqui se faz, aqui se paga

Pele alva como leite, olhos e cabelos negríssimos, medindo mais de


um metro e oitenta, barbas negras e bem aparadas, acredita que o ato
ético deve subjugar o ato religioso e o ato estético.
Herança daquele curso de verão que fizera com o professor
Fleury Mauzio, que apesar do nome desabonador, se vangloriava de
semear em seus cursos sementes de rigor, de rigidez e de seriedade,
alardeando aos quatro ventos ser um homem justíssimo.
Wendell cursara Direito, sendo desde o primeiro período iden-
tificado como uma cabeça em busca de alguma ideia, um exemplo
invertido das personalidades fortes, compactou em número, gênero
e grau com a ideia de sobrepor o ético ao religioso e ao estético,
embora sem saber bem o que significava.
Utiliza até hoje a lealdade e o comedimento para atravessar com
segurança uma estrada de fartas ideias incompatíveis e, como hábito
comprovadamente eficaz, para se parecer com um homem reflexivo,
volta e meia confia à barba alguns minutos antes de responder às
perguntas mais embaraçosas:
- E então, Wendell, o que você pensa sobre esse assunto?
Confiando à barba com o olhar distante e superior, falava vaga-
rosamente, como se estivesse fazendo um favor ao responder:
- Cada um paga o preço da sua própria audácia, entendeu?
Frequenta a Igreja Jesus Cristo das Almas Serenadas, se diz
cristão protestante, pois indeciso como ele só, ao se deparar com as
ideias de Calvino, amou-as e as elegeu como sua bússola.
Afinal, de uma cacetada só aquele arremedo de teologia expli-
cava o estado de miséria da maioria da humanidade, como também,
o estado de abastança da minoria, tudo se encaixava como uma
perfeita transação comercial.
Com o seu alto posto na secretaria de segurança pública poderia

157
Hudson Ribeiro

participar de inúmeras chacinas, das quais tomava conhecimento com


antecedência, mas a sua titubeação constante o impedia, o excessivo
medo da matança dos periféricos alcançar repercussão na mídia.
A mesma autoridade que ele ostentava e que, efetivamente,
poderia ser utilizada para deter o processo de extermínio, princi-
palmente de adolescentes afrodescendentes analfabetos ou mal alfa-
betizados, mas novamente o mesmo medo o paralisava, desta feita,
o temor era dos próprios subordinados que, revoltados com a sua
não cumplicidade, decidissem torná-lo alvo das suas atrocidades,
operação queima de arquivo.
Era casado com a dona Virgínia Guimarães Itapemirim, filha de
um rico pecuarista de uma cidade próspera do sul do estado. Mulher
vigorosa, fria como uma geladeira de última geração e feia como a
fome após jejum forçado de uma semana inteira.
Talvez até como vingança por não ter gerado filhos, mesmo após
tantos sofrimentos penando de médico em médico, até que desco-
briu que o infértil era o varão, com os seus espermatozoides insufi-
cientes e frágeis.
Ela também apaziguava a mente vacilona do Wendell, dizendo
ser autorizada por ter tido aulas de filosofia em um dos anos em que
cursara o ensino médio, quando fizera o curso de magistério.
Tudo bem que a professora era a de História, mas que em seu
curriculum constava a matéria filosofia, constava! E era com entu-
siasmo que exortava o esposo, após mais uma matança e a inevitável
ressaca moral.
- Oh, meu ingênuo Wendell, quem mata para praticar a justiça
sempre é perdoado, já que é para o bem dos cidadãos de bem, antes
fazê-lo do que não fazê-lo. Você devia é se orgulhar, se sentir um
exímio cirurgião de nossa cidade, está vendo como a violência tem
diminuído? E quanto a essa besteira de virtude você precisa deixar
entrar na sua cabeça, de uma vez por todas, que esse tipo de virtude
é pura armação daqueles bispos gulosos e tarados de Roma, é assim

158
Lucidez Renitente

desde a Idade Média. Siga os grandes Lutero e Calvino, principal-


mente o Calvino, na verdade, a virtude está é nas ações e não neces-
sita de muitas palavras nem de muitos conhecimentos, o seu próprio
caso é um exemplo disso, a sua não ação perfaz a ação mais virtuosa
possível.
- Mas eu poderia, ao menos, falar mais, me impor mais...
- Nada paizinho! Apenas os tolos se empolgam com as palavras,
ah, meu bem, se você soubesse que foi esse magnífico silêncio que
me fez derreter toda por você, por fim, uma coisa que guardo das
aulas de filosofia, é que se a palavra vale ouro, o silêncio não tem
preço; relaxe, hoje a mãezinha vai fazer aquele bolo de aipim com
creme de leite que você gosta tanto.
E assim o casal Guimarães viveu tranquilamente até o dia
do fatídico acidente, que vitimou a ambos, quando voltavam do
culto dominical no carro importado e novíssimo, fruto espúrio das
propinas recebidas pelo Wendell para se manter calado. Quando um
caminhão desgovernado, carregado de mamão papaia, transformou
a bela máquina e os seus ocupantes em uma massa disforme de
frutas, plásticos, carnes, ossos e aço.

159
Hudson Ribeiro

chove lá fora

“Olha a chuva pessoal, tira a roupa do varal”.


Os pingos grossos produziam um som íntimo à garotada, que
alvoroçada sempre arrumava um jeito de burlar a vigilância para ir
brincar no campinho, localizado ao fim da Rua Saigon, apelidada com
esse nome porque seus moradores eram mais pobres que os da rua
Principal, enquanto os chefes de família desta trabalhavam na enorme
fábrica de sabão, os moradores daquela exerciam serviços subalternos
Era nessa rua que morava o Zéu, juiz de futebol profissional que
só apitava os jogos com uma garrucha na cintura
No início da rua morava o Ribas, um homossexual que numa
noite fora atraído numa cilada e tomou a maior surra dos rapazes
da rua principal, mais para o final da rua morava a Dudu, os garotos
não entendiam como uma mulher tão bonita podia morar sozinha,
beber, fumar e falar palavrão tal qual um homem.
Exceto o casal Ildo e Alísia, ambos vendedores ambulantes de
apetrechos domésticos, o clima das casas na rua Saigon fazia jus
ao apelido, toda noite havia alguma escaramuça, algumas vezes até
derramamento de sangue, muitas vezes foi preciso o irmão Nestor
intervir com sua voz poderosa e seus quase dois metros de altura.
O prazer de jogar bola na rua era tão imenso, que valia a pena
desafiar a ordem familiar, mesmo com a sentença certeira de serem
surrados com a infalível espada de São Jorge manipulada com
destreza por suas irmãs mais velhas.
O ritual era sempre o mesmo, em fila indiana cada um curtia o seu
castigo, abrindo berreiro, mas os olhos faiscavam de satisfação pelo
futebol na lama. À noitinha quando os pais retornavam do trabalho
parecia que farejavam no ar: “Quem foi que bateu em vocês”?

160
Lucidez Renitente

vá cuidar do seu avô!

- Você sabe da última? Estão dizendo que uma moça novinha se


jogou do décimo andar.
- Coitadinha
- Deixe-me vender o meu peixe, mais assombroso que a queda
ou salto, o Dr. Fragoso está apurando, foi o fato de a velhinha cair
pairando suavemente, pousando exatamente nas costas daquela
estátua do cacique defronte ao mar.
- Cruz e credo! Minha bisavó dizia que seriam os fins dos tempos
quando mulheres de meia idade começassem a voar como pássaros.
- Mas a senhora mesmo disse que toda família é um tanto
quanto estranha... Que o patriarca, apesar de não ser mudo só falava
se utilizando de sinais, que ele mesmo inventara e estava permanen-
temente alterando. E que o filho mais velho, mesmo sem problema
de audição, vivia como se nada ouvisse, como um Bethoven em final
de carreira e sem talento musical. E que o filho caçula vivia trope-
çando nas coisas e nas pessoas, pois insistia terminantemente em
andar de olhos fechados, na certeza de que, desse modo, alcançaria
a terceira visão.
- É isso mesmo, agora vá olhar o seu avô e pare de fazer essas
caretas horríveis, assim você só vai poder casar com algum primo seu.

161
Hudson Ribeiro

tá melhor?

Telefone toca após o almoço, feijão manteiga, rabada gorda com


batata e agrião, uma ginipapina feita com álcool e muita paciência.
Telefone toca, a distância de poucos metros parece agora colossal,
qual o horário do próximo ônibus espacial?
Telefone toca insistentemente, a irritação maior que provoca
não é pelo soar da campainha, mas sim pelo silêncio ameaçador
gritante entre um toque e outro. Telefone toca, não pode esquecer-se
de tomar o diurético, o tempero do pirão estava puxado, segunda-
-feira tem consulta, a mesma ladainha: parou de beber? Parou de
fumar? Parou de foder? Parou de viver?
Telefone toca, caramba, esse é insistente, cinco sequência de
toques deve ser algo urgente, mas em pleno sábado à tarde?
Alô, como vai tudo por aí compadre? Que bom você estar gostando
da cidade, sim, cidade do interior é assim mesmo, dá um tempo aí,
espere tudo acalmar por aqui, depois você pede transferência. Por aqui
vai tudo na mesma, quem foi atropelado e morreu foi o Pagu, lembra-
-se dele? Aquele que jogava de ponta direita em nosso time?
Pois é, quem pergunta por você volta e meia é a Tina, está envol-
vida com uma seita que recebe espíritos de extraterrestres, mas está
tudo bem, falando em voltar aos estudos.
Não, as gêmeas nunca mais as vi, depois do escândalo todo e da
surra que os quatro irmãos delas aplicaram em você, nunca mais,
também, quase não vou mais praquelas bandas.
Quem ficou muito zangado foi a sua ex, e todas as vezes que
toma um foguinho, espalha pelos quatro ventos ter colocado os
nomes das gêmeas na boca de um sapo e costurado, rapaz, pode ser
coincidência, mas o Célio, que as vê com frequência, garante que
elas estão sumindo de tão magras, ele pensa que estão viciadas em
crack, vai saber né?

162
Lucidez Renitente

Dizem que esse negócio de nome na boca do sapo é tiro e queda,


às vezes a queda ocorre lentamente, de modo que o penalizado sinta
o dolorido a conta gotas e em câmara lenta, pra deixar mais sabo-
roso o prato da vingança do desafeto. E você tá melhor? As dores de
cabeça diminuíram? As sensações de vertigem...
O que? Claro, não falarei nada a ninguém, mas me explique isso
com calma. Sei, sei... Sei... Aquela pontezinha logo após a curva,
sim, o que? Quando você ia passando o Deleuze cruzou com você
no caminho? Rapaz, que extraordinário!
Que pena! Então você não vai me adiantar nada por ora, devo
esperar pela obra? Sim, claro, aviso a todos por aqui.
O gato Xogum passa pela grade da janela, pula para a cama e se
espreguiça até não poder mais, e isso lhe lembra da própria leseira,
provocada pela rabada e a genipapina.
Emite uns sons de chiados e grita dizendo, este telefone está
horrível, mais tarde ligo pra você, bom saber que você está melhor,
não me deixe de ligar caso encontrar-se com Marx tá? Você está
melhor né?

163
Hudson Ribeiro

o craque

O senhor com ataduras enfaixadas em suas duas pernas, tão incha-


das que pareciam que iriam explodir a qualquer momento.
Não parecia se incomodar com o péssimo aspecto que compunha
e falava bastante alto, para quem quisesse ouvir, podem dizer o que
quiserem, mas ninguém jogou mais do que o Badé Azulão, eta
crioulo bom de bola.
O campo era bem ali, onde hoje é um templo religioso, grama-
dinho que era uma beleza, isso posso garantir, porque quem cuidou
daquele tapete durante uma década e meia foi esta pessoa que vos
fala.
Vi muitos craques jogarem naquele campo, o Robertinho, que
tinha um chute potente como um coice de mula brava, mas essa
história de que ele matou o próprio irmão, goleiro do time adver-
sário, é conversa fiada de quem não tem o que fazer.
O que eu vi foi em um lance de falta o zagueiro se distrair na
barreira e a bolada pegar nos países baixo lá dele – vocês já viram um
andarilho que anda por aí, e a garotada implica com ele, chamando-
-o de Saco nas Costas?
Então... Depois disso, o Robertinho abandonou o futebol e
montou um varejão de carros usados com o irmão goleiro. E mesmo
o Robertinho não jogou como o Badé, se não fosse o seu vício pelo
álcool, a jogatina e o mulherio, chegaria à seleção fácil, fácil.
Agora vem vocês me enchendo o saco com esse tal de Cris-
tiano e de Lionel, dá para ver que vocês comem sardinha e arrotam
bacalhau.
Dona Maricota! Me vê mais um rabo de galo aqui, pro nego
Badé espantar as lembranças, que essas malvadas estão mais terríveis
do que nos outros dias.
Será pelo fato de eu fazer aniversário hoje?

164
Lucidez Renitente

a escadaria

Deixa uma avenida movimentada para trás, na entrada de um beco,


de um lado uma padaria, de outro, um restaurante.
Raro o dia em que o pequeno beco não está abarrotado de moto-
ciclistas, pois esse lugar é ponto de encontro dos motoboys, profissão
aventureira e cruel. Vale a pena assistir o filme “Os Doze Trabalhos
de Hércules”.
Ao final do beco, um sobrado em precárias condições exibe um
placa de identificação “Associação dos Ex-Combatentes”.
Sempre que passa por ali reouve as palavras do seu pai,
contando como que na época da segunda guerra mundial, quando
eles viajavam de trem até o Rio de Janeiro para embarcarem até o
palco de operação de guerra, muitos homens barbados choravam
amedrontados, saudosos das esposas e dos filhos.
À direita do sobrado decadente, surgem os primeiros degraus da
escadaria, agora decide como tarefa contar quantos degraus a esca-
daria possui, uma coisa é certa, pode possuir quantos degraus for,
mas com certeza é mais de mil, mil aqui, representando o limite
metafísico da resistência humana.
É por isso que em alguns lugares se diz “suba mil degraus e
depois me conte”.
Uma coisa é certa, para subir com dignidade uma escadaria
como aquela, antes de tudo se faz necessário tornar-se amigo dela,
quanto mais você conhecê-la, mais ela se tornará cordata.
De nada adianta subir na correria como se fosse um cabritinho
desgarrado e nem tão pouco subir na moleza, imitando os movi-
mentos do bicho preguiça, a estratégia é tornar-se íntimo de cada
lance, sendo a melhor maneira para isso é subir os degraus em zigue
e zague.

165
Hudson Ribeiro

vitória da periferia

Chegara o grande dia da finalíssima partida de basquetebol. Em


disputa, o campeonato estadual e, como consequência, o direito do
time vencedor representar o Estado no campeonato nacional.
O ginásio poliesportivo lotado, torcidas organizadas com lindas
garotas exibindo as coxas, cobertura da imprensa, pois a grande
expectativa não era apenas o jogo, mas também pelo duelo parti-
cular que seria travado entre José Jorge Juarez, mais conhecido como
“negron”, melhor jogador do time representado pela cor negra, e o
Klauss Kampis Kluss, codinome “alemão”, o craque do time repre-
sentado pela cor branca.
O ambiente no vestiário do time de negro estava que era uma
tensão só, o técnico Adamastor, sempre brincalhão, estava nervoso
que até as suas mãos tremiam:
- É isso aí, rapaziada! Hoje é o grande dia, este é o momento,
perto do jogo de hoje o da semana passada é fichinha; o time da
semana passada foi o de amarelo, gente nojenta também, mas dentre
eles havia gente boa, nesse time de branco não tem um que preste,
do técnico ao roupeiro, todos querem mais é nos ferrar e depois ir
para a imprensa dizer que o basquetebol aqui no Brasil não é pra
favelado, vocês estão me entendendo? Então vão lá com toda a gana,
dediquem esse campeonato ao pai de vocês que está entrevado inerte
em uma cama, depois de tantos anos e mais anos carregando peso
para o doutor; dediquem esse campeonato à irmã de vocês, que se
tornou meretriz após ser violentada pelo patrãozinho naquela bela
mansão do bairro mais nobre da capital; dediquem esse campeonato
ao irmão de vocês que se desencontra encarcerado por ter tentado
lavar a honra manchada da irmã e, acima de tudo, dediquem esse
campeonato a vocês mesmos, caso contrário, a caminhada até aqui
de nada valeu. Ah, e não se esqueçam da promessa que vocês fizeram

166
Lucidez Renitente

para a vovó Dulce; depois, parecendo recuperar um pouco da sua


calma habitual, disse em tom professoral:
O time entrará com Manuel, Joaquim, Pedro, João e Negron.
Formação na defesa, dois, um, dois; e formação de ataque, três, um,
um. Pedrão faz pêndulo e o Manel, a cabeça. Nos primeiros minutos
não forcem as flutuações, marcação por zona, apenas o Quinhão
terá a missão de marcar o alemão, por pressão a quadra toda, evitem
cometer faltas desnecessárias, e que Deus nos dê a vitória!
- E o contra-ataque, professor?
- Conforme o que nós treinamos. Manoel e Pedrão no rebote
defensivo, bola no meio da quadra para o João ou para o Quinhão e,
então, um dos dois faz a bola chegar ao Negron que ele se vira.
No vestiário do time de branco a preleção era bastante seme-
lhante, o que diferia eram os nomes dos jogadores; Franco, Fritz,
Michell, Andréas e Klaus. Até a cumplicidade com o sagrado:
- Eu não tenho que dizer nada a vocês, tenho? Não aceito um
placar menor que uma carroçada nesse time de pés-de-chinelo,
eu até apostei com o roupeiro que a diferença será de no mínimo,
uns trinta pontos, afinal de contas o nosso time representa a fina
nata da sociedade capixaba, não é possível que vá dar mole para
uns joãos ninguém que desceram das favelas, só porque viram os
desenhos animados dos globe-trotters, achando que aqui é como
os Estados Unidos. Vamos mostrar para esses macacos que no
Brasil a escravidão acabou, mas os escravos não. Vamos colocá-los
em seus devidos lugares, derrotando-os magnificamente, até para
fundamentar a nossa petição de expulsá-los do campeonato e da
federação, eles com aquela fedentina insuportável, e onde já se viu
praticar o nobre esporte com tênis nacional?
O jogo desenrolado com táticas semelhantes favorece ao empate
no placar. Se de um lado, o Alemão barbarizava com penetrações
espetaculares, de outro o Negron acertava noventa e cinco por cento
de seus arremessos da zona morta, sua maior especialidade.

167
Hudson Ribeiro

As jogadas se sucedem com a pontualidade de relógios suíços.


Jogada um; o armador passa a bola para um dos alas, corre atrás
da bola e faz um corta-luz para o ala arremessar sem marcação.
Jogada dois, bola passa pelo pivô de cabeça que gira e arremessa.
Jogada três, bola passada para o pêndulo que arremessa de
gancho.
Jogada quatro, o armador arremessa sem preparação alguma.
E, finalmente, a jogada cinco, é quando os endiabrados, Alemão
e Negron revelam as suas excelências, com total domínio dos funda-
mentos realizam bandejas mirabolantes culminando com enterradas
sensacionais.
A torcida vai ao delírio a cada lance da partida, o técnico do time
de negro não para um só instante e tanto para um lance feliz como
para um lance mal sucedido, a sua exclamação emocionadíssima é a
mesma: “seus monstros!”.
É claro que com entonações diferentes, afinal há maneiras e
maneiras de falar monstros e monstros.
O técnico do time de branco mantém a fleuma, digna de um
lorde britânico observando pássaros, frio e distante, de terno, gravata
e óculos escuros – “como é que ele aguenta com esse calor infernal?”.
Quase término do jogo, o time de branco demonstra cansaço,
estão surpresos com a disposição do time de negro.
O Alemão já não é mais tão exato em suas jogadas; nervoso,
xinga, esbraveja, reclama seguidamente dos seus companheiros, já
está vermelho como um camarão, em uma entrada mais violenta
é advertido pelo árbitro, enquanto o time de negro parece ganhar
oxigênio com os gritos inflamados do seu técnico: “Seus monstros!
Seus monstros!”.
O placar luminoso informa 99 X 99, e um lance livre para o time
de negro, falta fora da jogada de Alemão em Negron, para deses-
pero do técnico Sinclair Niger Illions, que dá os primeiros sinais de
nervosismo, suando abundamente e roendo as unhas freneticamente,

168
Lucidez Renitente

o ginásio emudece de repente, o que torna ainda mais selvagem o


grito de uma torcedora do time de branco:
- Vai errar seu King Kong!
Pois quem vai arremessar é o Negron, com seus gestos felinos
e glaciais, segura a bola apenas com uma das mãos, inspira fundo
e prende o ar, neste momento lembrou-se da vovó Dulce, poucos
segundos que parecem eternos, quando finalmente arremessa, a bola
faz o seu percurso sonorizado com o sinal eletrônico do final da
partida.
Devido ao efeito que o Negron intencionalmente imprimiu a
bola não entra de chuá, caprichosamente bate na borda interna do
aro, executa dois rápidos rodopios, ameaça desistir de sua trajetória
e lentamente encontra o seu objetivo maior.
O técnico racista recolhe o seu time às presas, não permitindo
nem os cumprimentos habituais. Do lado do time de negro tudo é
alegria e até a torcida entoa o cântico do técnico vitorioso:
- Seus monstros! Seus monstros!
No dia seguinte, um belo domingo de sol, lá no alto do morro, o
samba correu solto, todos se fartando com a feijoada, preparada com
esmero pela vovó Dulce, octogenária muito querida pelos mora-
dores da comunidade.
Em um canto do enorme quintal sob uma frondosa mangueira
tendo a negra Léia sentada em seu colo, Negron não se cansava de
ler o jornal, em sua página esportiva, que trazia em letras garrafais:
TRAÍDOS PELA SOBERBA, TIME DA ELITE É DERRO-
TADO MAGNIFICAMENTE.

169
Hudson Ribeiro

hilário vai às compras

Primeiro sábado do mês, ainda não são sete horas e o Hilário


já está de pé, confere os apetrechos – bloco de notas, calculadora,
páginas de jornal com anúncios das promoções.
Apesar de já ter passado quinze anos de vida conjugal, a Ana
Clara não se acostuma com essa mania do marido, promove uma
verdadeira batalha para o que ele chama de conduta do consumidor
consciente, o C.C.C.
Ele levava tão seriamente aquilo, que ultimamente vinha traba-
lhando até tarde em uma cartilha com dicas para o consumidor não
ser enganado facilmente.
Nos primeiros cinco anos, até que a Ana ia junto, mas depois
que o Hilário bancou o fiscal do governo federal e fechou a merce-
aria da esquina, sendo necessária a intervenção policial para garantir
a sua integridade física.
Porque o povo mesmo, na ânsia de fazer compras, foi contra o
Hilário e por pouco ele não toma umas bolachas.
Agora ela preferia fingir que dormia, enquanto ouvia os seus
passos impacientes para lá e para cá, esperando dar sete e meia para
sair em disparada fazer a romaria pelos supermercados da cidade,
nunca mais entraria na mercearia do Euclides, não iria se sujar
naquele “antro de corrupção”.
E lá ia ele todo afoito em seu fusquinha 68. Começava pela
parte sul da cidade, fazendo o levantamento de preços, acontecia
muitas vezes dele retornar para comprar o produto mais em conta, e
este já haver esgotado, o jeito então era começar tudo de novo.
Ao longo desses quinze anos, muitas vezes foi preciso a Ana
Clara ir atrás do esposo, metido em alguma escaramuça envolvendo
preços ou a qualidade dos produtos ou do atendimento.

170
Lucidez Renitente

bebum

A sua música preferida era um sucesso reconhecido na voz marcante


de Elizete Cardoso, “eu bebo sim, estou vivendo, tem gente que não
bebe e está morrendo”,.
Quando se cansava de cantar, assoviava, a sua mente enfra-
quecida pelo uso constante das mais variadas bebidas alcóolicas
já não se lembrava mais das coisas, ou melhor, quando lembrava,
com clareza, eram apenas recortes inseridos em um contexto total-
mente diverso.
E quando a memória se recordava por inteiro dos fatos passados,
estes vinham obscurecidos por uma densa névoa de álcool etílico.
Cerveja, Uísque, Campari, Bacardi, Genebra, Martini, cachaça
pura, cachaça em suas várias misturas, pau pereira, carqueja, cipó
cravo, boldo, salsa da praia, losna.
Os olhos sempre lacrimejantes e o nariz de batata atestam a sua
relação suicida com a bebida. Em sua letal ignorância se vangloriava
de nunca sentir dor no fígado e era isso o que importava.
Se o seu interlocutor insistisse em admoestá-lo, largava-o
falando sozinho e se punha a assoviar, às vezes baixinho como se
estivesse orando reza oriental, às vezes em alto e bom som como se
estivesse orando reza ocidental: “eu bebo sim (...)”.
O bar que frequentava, ficava de frente para a avenida, gostava
de beber em pé, apoiado no balcão, próximo ao banheiro para evitar
a caminhada inútil, bem debaixo da televisão, pois já fora para o bar
em busca de paz e não para ouvir asneira que a televisão propaga.
E nunca dá as costas para a rua, antes não ligava para isso, até o
dia em que, distraído, foi atacado por um homem armado com uma
peixeira que, sem mais nem menos, o atacou, gritando enlouquecido:
- Isto é pra você aprender a não fazer mal à moça de família seu
crápula, eu vou te capar e dar os seus bagos para os porcos, “não jogue

171
Hudson Ribeiro

pérolas aos porcos”, ainda pensou antes de desmaiar se esvaindo em


sangue com uma enorme brecha aberta nas costas.
Por sorte, o seu Antunes, o dono do bar, usando da sua expe-
riência de quando era um famoso leão de chácara de um daqueles
inferninhos que compunham o cenário do centro da cidade,
desarmou o agressor com um potente soco “treme-terra”, bem no
alto da cabeça, fazendo-o desabar como um saco de farinha vazio.
Depois dessa ficara esperto, às vezes a cicatriz, em forma de
lagartixa, coçava bastante, incomodava, mas lhe lembrava da neces-
sidade de se estar sempre atento.
Ainda mais dentro de um bar, terra de todos e ao mesmo tempo
de ninguém, pois quem está no comando, ouriçados, são os espíritos
perversos e obsessivos . Não que ele acreditasse nisso, mas pelo sim,
pelo não, “eu bebo sim...”.

172
Lucidez Renitente

amor

Ah! Pra mim ela é tudo, quando sorri, ouço sinos tocando em minha
cabeça, muitas vezes só de pensar em suas belas formas o desejo se
apossa de mim como uma febre terçã.
Do que mais gosto dela? Olha é difícil dizer, mas penso que é
algo que nem está nela, tão pouco em mim, é o campo energético
instaurado quando estamos rentes, o silêncio discursando tranquilo
e calmo, verdades milenares.
Bem sei o que Sartre disse acerca do outro, mas o caso aqui
que é outro, porque o caso trata-se de outra, que na verdade é a
mesma desde quando fui gerado nas entranhas caóticas do universo
em formação.
O sabor saboroso do beijo dela é como manga desfrutada em
dezembro. Às vezes o meu coração bate meio que contraído, pode
ser que seja pelo fato de algum modo perdê-la novamente, mas
prefiro pensar que foi causado pelo meu esquecimento de tomar o
remédio que afina o sangue.

173
Hudson Ribeiro

arte e manha

Relaxe, preste atenção em mim, tá vendo? Deixe o corpo livre, leve


e solto.
Vou dizer uma coisa pra você nunca mais esquecer, jogar futebol
é executar a noção de tempo e espaço com maestria, então relaxe,
chame a bola de amada muito querida, olha que ela quica, olha que
ela rola, por isso mesmo foge ao controle, não tente prever, entre em
cumplicidade com ela, torne-a uma extensão do seu corpo, é isso aí
moleque!
Agora vamos para os pezinhos, quinhentos em cada pé é o nosso
objetivo, vamos começar com cem, isso, relaxe a musculatura senão
fica tudo entrevado e a bola cai magoada e rebelde.
Vamos sentar ali um pouquinho, estamos com um sério problema
de manutenção para a continuidade das nossas aulas.
Olha só, temos que dar um jeito e arrumar meias para as nossas
bolas, com esse negócio de alisamento de cabelos, tá cada vez mais
difícil, eu estava pegando as da minha mulher, mas ela deu falta e
ameaçou matar o meu gato siamês, o Sultão, então, a coisa é séria.
Podemos treinar com bola de borracha ou de couro, mas aí você
não vai aprender nada, quer dizer, irá aprender algo só pra dizer
que nada aprendeu, e que ao final será pior do que se nada tivesse
aprendido.
Vamos ver o que o Esdras conseguiu dessa vez, quem sabe?
Aquilo é um poço de arte e de manha.

174
Lucidez Renitente

escrito

Li o seu texto, que você me enviou.


Da próxima vez, por favor, formate-o e faça a correção ortográ-
fica, o título escolhido deu muito que pensar – “O dia em que deixei
de ser a menina que sou”.
Tantas vias de interpretação me desorientaram, por isso apro-
veito o ensejo e proponho um encontro hoje à tarde às quinze e
trinta para você me explicar melhor a sua intenção com um título
tão longo e grandioso, passível de inúmeras interpretações.
Em relação aos contos, todos muito bons, alguns com um grau de
excelência admirável, menciono aqui três deles, “Noite de Arromba”,
“Como a Professora Beija Bem” e “Desaparecida”.
Há tempos vaticinei que esse seu estilo novelístico bem que a
aproximava de um romance de fôlego.
Ah, afinal, a personagem Esther assumiu a homossexualidade
ou não? Parabéns pelo suspense do quilate de Capitu.
Cabe dizer que no meu modo de pensar você exagerou em um
ou dois contos, a raiva ainda te consome né?
Sei como é, custa a passar mesmo, tire por mim, em todo livro
que eu escrevo “mato” um personagem estrangulado, enquanto o
assassino confessa: “te amo, te amo, te amo”.

175
Hudson Ribeiro

lugar porreta

Tá pensando o que? Tá vendo tudo abandonado assim, mas este


lugar já foi porreta.
Gente que não acabava mais, conta-se que no auge do progresso
recebeu pessoas até do exterior, todos cobiçosos da riqueza que
brotava da terra, fartura de desperdiçar, era só chover dois dias
seguidos e logo em seguida fazer um sol de rachar para a terra se
oferecer como uma ama de leite e derramar riquezas no estado
sólido, líquido e gasoso.
Sendo o líquido mais abundante por estar mais de acordo com
o vente da terra, pois era das suas milenares entranhas que a riqueza
era expelida tão suavemente, mais semelhante a um riacho sereno do
que um mar revolto.
Foi quando alguns homens descobriram a sucessão de eventos
que culminava na explosão de riquezas que tudo começou a se
perder. Contrataram um velho índio, que se dizia pajé, possuidor de
bela estirpe e com fama de fazer chover, depois de fumar umas ervas
de odor adocicado e invocar inúmeros espíritos de antepassados.
Como a pajelança demorava a surtir efeito, os homens ambi-
ciosos contrataram uma empresa aérea especializada em apagar
incêndios, a “Chove e Molha, com Certeza”, para fazer às vezes da
chuva natural, mas também não deu certo.
Alguém se lembrou do Ambrósio, o único morador daquele
lugar, que não havia aderido àquela febre de progresso e conhecia
as manifestações da terra como ninguém, apenas com o auxílio de
um galho de uma árvore específica, o seu veredito foi curto, grosso e
instalou esta leseira no lugar.
Depois disso, tudo foi minguando, minguando, minguando... Só
restei eu e o meu galho de árvore, agora já sem serventia.
]

176
Lucidez Renitente

rango

Esse negócio de escrever tanto ainda vai me tirar do ar, você acredita
que eu peguei o ônibus errado outra vez?
Ainda conferi, Av. Vitória, bem feito, ao menos aprendi que
os caminhos se alongam ou se encurtam, não obedecendo a nossa
vontade e é melhor nem saber a que ordens obedecem.
Saltei na Praça de Maruípe e decidi completar o caminho
andando, mas mudo de ideia, quando calculo a distância, o horário e
as nuvens pesadas se formando tenebrosas.
Peguei outro ônibus, dessa vez por garantia, um velho conhecido
meu, dos tempos de estudante, fui à loja, comprei o que precisava e
retornei, ao me sentar sobre os óculos, que já se encontrava bastante
danificado, partiu-se ao meio.
Bem, daqui diretamente para a loja da Chescka, preciso que ela
me dê um help aqui, na volta cumprimento o Gabriel, ex-jogador
profissional de futebol, que após um dissabor na vida nunca mais foi
o mesmo.
Passei por ele e acelerei os passos, mas o seu grito me alcançou,
parei já sabendo que seria alvo de algum pedido.
Aproximou-se meio constrangido, encaro os seus olhos e vejo as
pupilas dilatadas e um semblante apático de derrotado, nem parece
o grande artilheiro que fazia a torcida do time mais querido enlou-
quecer com as suas jogadas habilidosas.
Quanto tempo que não nos vemos? Na verdade, recentemente
nos vimos e eu até o cumprimentei há coisa de uns quinze dias,
prefiro ouvir o pedido. Olha só, essa greve dos bancos me quebrou,
eu tô precisando almoçar.
Cato umas moedas, e ainda falo, é só subir aqui e já está no
restaurante, ele a guisa de despedida diz soberbo,:
Eu vou lá subir escadaria nada.

177
Hudson Ribeiro

euletério

Eleutério chegou à clinica de fisioterapia por volta das 7h30, vinha


com o ar distraído e preocupado, ficava até difícil de saber se estava
preocupado porque distraído ou distraído porque preocupado.
O fato é que deixara o livro que trazia desleixadamente na mão
esquerda cair por duas vezes, “A Caverna” do Saramago, nem o peso
do premio Nobel aliviara o descuido e quase caiu em um bueiro
sem a tampa de proteção. Com essa crise, nem as tampas de bueiros
escapam...
O que mais preocupava e distraía ou distraía e preocupava ao
Eleutério, homem ligado aos presságios e crente fiel dos seus vários
significados era que estando ainda no ponto de ônibus, o primeiro
transeunte que avistou foi o Ramon
O mesmo Ramon que há quase um mês lhe emprestara a quantia
de vinte reais, uma vez que o Euletério atravessava os seus seis meses
de miserê.
Estava Eleutério na praça, juntamente com o Antônio e o
Carioca mais o Ramon, quando veio do mercado o Roberto; sacola
nas costas e um sorriso superior do consumidor apto a fazer despesas
em supermercados. Eleutério o viu e não pensou duas vezes:
- E aí Betão! Vai me pagar aqueles trinta? Estou a fim de passar
o feriado na casa da nega.
A resposta do Betão foi a esperada, de acusado assumiu o papel
de acusador, até com certa ignorância, certamente confiando em sua
estatura privilegiada.
- Qual é Elê? Tô cansado de bancar você, e outra coisa, vou a
cortar a sua, sacou?
Euletério, que com dinheiro era homem generoso, mas quando
estava duro tornava-se até irascível, rebateu no mesmo tom:
- Que bancar o que? Você é engraçado, na hora da cheiração é

178
Lucidez Renitente

um tal de pedir dinheiro emprestado e na hora de pagar vem com


esse papo de administrar o nosso dinheiro.
Vendo que o Eleutério não estava pra brincadeiras, Roberto
achou melhor tirar o seu time de campo, afinal, tinha quatro filhos
ainda pequenos e ninguém nunca sabe onde um bate boca como
aquele pode culminar.
Roberto bem o sabia, segredo revelado pela própria irmã, que o
Eleutério de manso só tinha a aparência, pois nos tempos em que
viveu no interior da Bahia havia jogado dois pra trás.
Um se engraçou com a sua namorada em um forró da pesada,
Eleutério treinou pontaria bem no meio da testa dele, foi bater e cair.
O outro foi um branquelo metido a besta, que além de contar
várias piadas racistas exigiu que Eleutério risse.
Logo Eleutério, legítimo filho de pai negro e de mãe índia.
Dessa vez, como havia muita gente no barzinho, Eleutério preferiu
usar o “Socorro”, um punhal, longo e afiadíssimo, envenenado nos
conformes de um segredo indígena e golpeou com gosto e com
vontade, sempre na altura do umbigo, enquanto dizia calmamente:
- Me deixa ver se o seu sangue é azul, seu branquelão racista!
Isso a mana do Eleutério contara havia já alguns meses, fora na
festa do padroeiro do bairro, o glorioso São Sebastião das flechas
certeiras, é certo que ela já estava de foguinho, mas pelo sim pelo
não, nunca era bom brincar com esse pessoal que envenena a arma
branca segundo a tradição indígena.
Mas pagar os trintinha não pagaria! Já sabia o que fazer, cortaria
a do Elê, é isso! Ficaria de mal e não falaria mais com ele.
Afinal essa tática sempre dava certo, quantos livros, CDs e
DVDs possuía, apropriados desse modo...

179
Hudson Ribeiro

sagrado

Mexo com essas coisas não, amada.


Olha, vou te confessar uma coisa, sou do tempo onde se fazia
romaria pelos bares da Grande Vitória sem medo e sem alarde, uma
época em que não havia tantos sem tetos, nem tão tantos depen-
dentes químicos, principalmente de crack, tão esfomeados de tudo,
que mesmo na intenção pacífica sempre nos aparecem assustadores,
como um filme de ficção científica.
Os órgãos públicos dizem que nada podem fazer. A população
acuada, oito horas da noite já se encontra em casa há muito tempo,
quem trabalha ou estuda à noite, se movimenta como em uma zona
de guerra.
Agora eu pergunto a você, qual o tamanho do pecado dessa
gente para penarem tanto assim? Ouvi dizer que lá embaixo da
ponte seca os indigentes encaram até moqueca de rato. E vem você
me convidar para a sua igreja, me desculpe, mas não tenho a mínima
condição de aceitar o seu convite.
Se eu tenho algo contra a oração? Claro que não, Deus me livre
e guarde.
Na verdade, todas as noites eu oro fervorosamente para que
o Senhor dos exércitos celestiais envie os seus anjos vingadores e
extermine todas as religiões da face da terra, então a ligação com o
sagrado se fará de modo direto e não com tantas suspeitas mediações.
Compreende por que não posso aceitar o seu convite, amada?
Calma, não precisa lavar as mãos e nem sacudir a poeira dos pés,
a minha casa está limpinha.

180
Lucidez Renitente

memória

O que você fazia em março de mil novecentos e sessenta e quatro?


Desde que eu ouvira de um tio, que fora naquela data que se iniciara
a invasão dos gafanhotos, sempre que podia lançava a indagação, e
ficava na expectativa, como um jogador de dados à espera do resultado.
Já obtivera as mais variadas respostas desde cala boca, você é muito
novo pra querer saber dessas coisas, até respostas bastante prolixas e
extraordinárias, que pareciam mentiras. Interessante é que ninguém
falava em gafanhotos e muito menos em invasão, ninguém é exagero.
Nesses dois anos de pesquisa, ouvira duas respostas sumamente
personalizadas.
Uma foi de um senhor já de idade, fazendo a sua caminhada na
praça do bairro Jardim da Penha, respondera-lhe que se encontrava em
casa, por àquela época localizada na vila Rubim, quando eles chegaram
trajados de verde e a primeira coisa que fizeram foi anunciar a invasão,
iniciada no estado de Minas Gerais e avançando rapidamente por todo
país, para ato seguinte fuzilarem o seu gato com um tiro bem entre os
olhos, coitado do Mao Tsé Tung, tombara sem sequer um miado.
A outra resposta fora de um professor de OSPB, que pra começo
de conversa negara-se dizer invasão dos gafanhotos, preferira
referir-se ao fato como visita necessária dos ortópteros. Inclusive,
no justo momento do noticiário noturno, ele olhava pela fresta da
janela o seu vizinho sendo levado e se parabenizara pelo serviço que
executara com todo sucesso.
Afinal, dera um trabalhão se aproximar do seu vizinho e do seu
gato ciumento, além de combinar a sua atividade de professor com
a de delator.
Por falta de amostragem confiável suspendeu a sua pesquisa.
E você, o que fazia em março de mil novecentos e sessenta e
quatro?

181
Hudson Ribeiro

carona

Sentaram no banco da praça, chamando a atenção de todos que pas-


savam, os que estavam dentro do ônibus chegavam a se contorcerem
para tenta ver algo que não era visto apenas com os olhos, pois só
podia ser algo oculto a explicação para a beatitude que aquele casal
exalava.
O homem inclina a cabeça para ouvir melhor o que a mulher
murmura e aponta para o alto do morro e ambos sorriem como
crianças.
Silêncio da paz comungada.
Do outro lado da avenida, um carro luxuoso para e espera o sinal
fechar para que o casal possa atravessar.
A mulher aponta um jornalista televisivo que passa com a sua
inseparável bengala e diz ainda sorridente, olha quem vai ali. Sinal
fechado, caminho aberto.
Embarcam no carro. Bom dia! Bom dia! Nem bem a viagem
começa e a conversa ganha tons de seriedade. Estou pensando em
readmitir o Léo.
Ele permanece em silêncio, por dentro uma vontade tremenda
de cair na gargalhada, lembra-se da conversa que teve com a amada.
Todo Léo é leléu da cuca.
Imediatamente ela capta o brilho do seu olhar risonho, estende
o braço e engancha no seu, como dois vagões magnificamente
acoplados, pronto, agora o trem pode partir.
Já quebrei a cabeça com vários outros nomes, sempre esbarro
com uma impossibilidade. Já falei com o nosso conselheiro mais
antigo, agora estou falando com vocês.
Ao olhar pela janela de identificação de uma construção ler ASS
de Deus, nem sempre as abreviaturas abreviam os caminhos.

182
Lucidez Renitente

tá na hora

Quem foi o último a falar com ele? Foi o irmão Kroztcs, mas fez
voto de silêncio quanto ao assunto da conversa, agora só nos resta
aguardar até o término do tempo combinado.
E o Borges, será que não poderia sondar o Kroztcs, sei lá...
adiantar alguma coisa, afinal, em pleno setembro não podemos ficar
nesse impasse.
Então você não sabe que o Borges está se bandeando para o lado
do Pierre? Não foi à toa que ele exigiu um encontro reservado com
o Kroztcs, certo que se o Sebastian estivesse ainda na ativa, seria ele
o confidente, mas agora, vive no campo, cuidando de cabras e reali-
zando suas pesquisas astrológicas, sabia que ele descobriu uma nova
estrela e batizou-a de Alice?
Mas não contou o motivo a ninguém, nem ao Morrison, que foi
o seu secretário particular por décadas. O que você vai fazer até ser
anunciada a decisão? Só mesmo você, debruçar-se sobre a obra de
Agostinho...
Eu por meu lado vou pra minha terrinha matar saudade daquela
carne espetacular e daquele vinho sensacional, mas no fundo mesmo
vou é preocupado com as repercussões que uma decisão dessas pode
causar.
Veja bem, se ele decidir sair, será uma trabalheira para conseguir
um substituto à altura, por outro lado, se ele não sair, ficaremos reféns
dele, e se ele tiver uma recaída e promover o retorno do Sebastian
com aquelas ideias progressistas?
Nem quero pensar na hipótese.

183
Hudson Ribeiro

diagnóstico

Se eu vi esse seu amigo uma vez foi muito, quando ele nos deu caro-
na durante aquela longa greve de ônibus, caracterizada por quebra-
-quebra, incêndios e tudo o mais.
Nada posso afirmar baseado nesse fiasco de encontro.
Depois teve o meu gesto de boa vontade e de agradecimento
presenteando-o pelo aniversário com o livro Ser e Tempo.
Tá certo que me lembrei de um professor sarcástico do pós-
-doutorado, sempre dizia acerca de presentear alguém com uma
obra de Platão ser uma forma elegante de chamar essa pessoa de
camelo, sempre a procura de mais peso e mais culpas para funda-
mentar a finalidade de tudo.
Se a obra presenteada fosse um Nietzsche, estaríamos nos refe-
rindo ao estágio do leão, refletindo o transitar dessa pessoa, e muitas
vezes, nem sequer percebe-se fascinada com a vontade de poder
engendrando mais poder da vontade.
E, finalmente, quando o presente fosse um livro do Heidegger, o
ato seria tão audacioso, tornando o Manuel, da canção do Toninho
Horta, recatado, posto ser tal presente uma referência explícita à
criatividade da criança hospedada em todo ser humano.
Esse professor, depois de trinta e cinco anos de cátedra enlou-
queceu lentamente, como acontece com a maioria das pessoas.
Hoje ele vive em uma casa de repousos, lendo revistas em
quadrinhos e livrinhos de faroestes.
Soube pela Layza, que o seu amigo classificou o meu presente
como pernóstico, confesso não entendi bem o porquê.
Agora você vem me dizer que ele é candidato e vem pedir o meu
voto...

184
Lucidez Renitente

coisas do além

Josiel sentiu um forte impacto em seu corpo, que foi lançado a mais
de quinze metros, enquanto os postes passavam em alta velocidade
como cartas de baralho manipuladas por hábil jogador, ainda sentiu
um gosto doce escorrendo vermelho de sua boca, antes que uma
escuridão horrenda encobrisse tudo.
Aos poucos a escuridão foi se dissipando e Jadiel sentiu a sua
alma se desencarnando, utilizando o cordão umbilical como ponto
de passagem desse mundo para aonde ninguém sabe.
O cordão de cor prateada flutuava cada vez mais alto, não
obstante, Jadiel poder acompanhar detalhadamente o que ocorria
com a sua carcaça despedaçada lá embaixo.
O desespero do motorista adolescente, completamente fora de
si, que esbravejava com a namorada, uma linda garotinha de uns
dezesseis anos se muito, um ano mais novo do que o infortunado
motorista.
- Merda, merda, matei o cara pô! Também, onde já viu atra-
vessar na frente do ônibus, ainda mais em fila dupla? Tá certo que eu
estava a mais de cem, mas o cara tinha que atravessar logo na minha
frente? E eu, que estou todo errado? Papai nem sabe que eu peguei
o carro, o melhor a fazer é fugir.
Em volta do corpo de Jadiel, caído no asfalto, molhado por um
sereno intermitente, o burburinho dos curiosos se avoluma.
- Este já era, diz um gorducho com fisionomia de oriental e,
taxativo, como um expert no assunto, bateu com a cabeça no meio
fio, já era.
Um magricela com cara de fuinha demonstra curiosidade esté-
tica sobre o atropelamento fatal:
- Por que será que apenas um dos sapatos voa longe quando
alguém é atropelado?

185
Hudson Ribeiro

Pergunta sem resposta, cochicho lamentoso e aliviado, certo que


a morte se apresentava ameaçador, mas era certo também, que era
no corpo de outro, graças!
- Ninguém conhece o falecido?
- Nossa mãe, parece tão novinho... Cadê a carteira dele?
E a alma de Jadiel Capistrano Novaes viu sua própria autópsia, o
médico legista, que de tão acostumado, dava-se ao luxo de saborear
um refrigerante, enquanto tranquilamente retalhava o seu corpo e,
ao mesmo tempo, assoviava, alegremente, uma tocatta.
Assistiu seu próprio enterro e o choro convulsivo da Bebel, sua
noiva, quando a última pazada cobriu o seu caixão, abruptamente, o
cordão umbilical se partiu e Jadiel voou pela imensidão do universo,
em direção a um enorme túnel negro com uma luminosidade eston-
teante em seu final, que bem poderia ser fruto da sua imaginação.

186
Lucidez Renitente

pensar

Como você pensa então? Caramba!


Sempre me ensinaram que pensar é somar dois mais dois pra
dar quatro, se dá quatro, o pensamento tá certo, se não dá quatro o
pensamento está errado.
Também me ensinaram a fazer a prova real, dois mais dois dá
quatro, quatro menos dois dá dois, é isso!
E olhe que não foi fácil para eu entender esse negócio de
números, ainda mais quando a professora Dália retirou os feijãozi-
nhos, aquilo ajudava bastante.
Vou confessar uma coisa, só estou ouvindo essa lengalenga toda por
consideração a você, meu brother, meu irmão, meu camarada, tenho uma
dívida com você do tamanho de um caminhão, desde daquela vez que
você me salvou do afogamento certo lá na praia de Itaparica, mas vai
com calma aí, que o meu tico e teco é lento e você sabe muito bem disso.
Não me diga... Então pensar é perceber como o pensamento
vai pensando, pensando, pensando e cada vez mais criando outros
pensamentos? Pô! E você vem me dizer isso agora?
Eu faço isso desde criança, na verdade, quando as pessoas me
viam com cara de bobo, olhando para tudo, mas parecendo não
enxergar nada, acharam por bem me levarem a um neurologista.
Como os exames nada constataram, este aconselhou aos meus
familiares procurar um psicólogo, na consulta fui cair na besteira
de falar como ficava fascinado com o pensamento pensando a si
mesmo a ponto de se abstrair das coisas, dos fatos, das pessoas e até
de si mesmo, solidificar os pensamentos em imagens tão vívidas que
podia senti-las e até me comunicar com elas.
O psicólogo enviou-me sem demora ao psiquiatra, que achou
por bem receitar um remedinho pra relaxar, tudo começou assim,
agora preciso ir, é hora de tomar as amarelinhas.

187
Hudson Ribeiro

a ordem

A ordem foi bem taxativa, nada de se aproximar do quintal do vizi-


nho, então vamos brincar por aqui mesmo.
Podemos brincar de pular corda, amarelinha, rodar pião, roda,
sela, pique de se esconder, cabra cega, o que é o que é?
Morto e vivo, queimada, cozinhado, chicotinho queimado, bola
de gude, perna de pau, carrinho de rolimã, pipa, ferrinho, até médico
e enfermeira, mas nada de ir para o lado da cerca do vizinho.
Ali no cantinho tem sal, caso chova desenhamos um sol bem
bonito e jogamos o sal em cima para a chuva parar.
Vamos até o pomar? Abacateiro, bananeira, macieira, pereira,
cerejeira, laranjeira, mangueira, pessegueiro, goiabeira, tudo em
grande fartura.
Por que nada encanta você? Poxa, você podia ser, ao menos,
melhor agradecido, afinal, vivia jogado na lama coaxando com os
sapos do brejo e se a ordem foi dada tão taxativamente deve ter a
sua razão, além do mais, dizem que há muito tempo atrás um casal
acercou-se em demasia do quintal do vizinho e nunca mais foi visto.
Eu até entendo que as serpentes sejam animais fascinantes e a
maçã ser fruta apetitosa, só não concordo que isso justifique deso-
bedecermos a ordem.
Agora, se você topar se aproximar do quintal do outro vizinho,
sou capaz de ir junto, é só você me prometer que não tocará em
nenhuma daquelas coisas espalhadas por todo quintal, todas de
forma muito estranhas, a mais de todas é aquela em forma de pirâ-
mide com escadarias em todos os seus lados.
O que será que vem a ser aquilo, hein?

188
Lucidez Renitente

o caso

Agora que o culto acabou, conte aquele caso da vez em que você
ficou pendurado no pau de arara de cabeça para baixo.
O Lino não está acreditando não, de como você foi viver debaixo
da Segunda Ponte, depois que o Vilson, o dono da casa onde você
morava de favor, flagrou-o tentando comer a sua galinha de esti-
mação, ainda por cima, crua mesmo.
Conte pra esse descrente do Lino, de como a sua vida sempre
foi uma tragédia, criado pelo favor dos moradores do morro, que
perderam a paciência quando você se envolveu com drogas e até
com assaltos.
Envolveu-se tanto que acabou sendo vítima do grupo de
Gilsinho Cruel, que o obrigou a tomar uma mistura de cachaça com
areia, depois o levaram para o alto da pedreira, onde o comerciante
Luisinho, que viu você nascer, intercedeu junto ao Cruel, pagou o
valor do resgate e se responsabilizou pela sua conduta doravante.
Conte pra ele como você se casou com uma mulher chegada à
cachaça e a dar escândalos, e de como você venceu todas essas bata-
lhas, que pena, já está na hora do outro culto, mas o senhor promete
contar pra acabar de vez com a descrença do Lino?
E já vai ser em boa hora, pois ultimamente ele anda dando muita
trela pra aquele falastrão do pastor do bairro vizinho, e não ficaria
bem o seu próprio sobrinho frequentar outra congregação, né?
Afinal de contas, as igrejas estão disputando os fiéis literalmente
às tapas, não sei se o senhor ouviu dizer que lá pro lado do estado
do Sergipe, dois pastores foram às vias de fato porque um acusava o
outro de desrespeito ao curral religioso de cada um.
Não podemos chegar a esse ponto aqui, o senhor não acha?

189
Hudson Ribeiro

o este é aqui

Quando Billy avistou a fazenda onde havia sido criado, o seu cora-
ção passou a bater descompassadamente.
Incrível! Por ali o tempo parecia ter parado e até as pessoas
envelheciam mais lentamente.
O xerife Goody, por exemplo, desde que se entendia por gente,
lembra-se dele exibindo a mesma silhueta, que agora exibe, ao
receber os passageiros da diligência que chegavam de Chicago, atra-
ídos pelos poderes criativos da fonte de água Santa Clara.
Dessa vez vieram Billy, de retorno ao lar, formado em advo-
cacia, uma senhora com problema de reumatismo acompanhada da
sobrinha, tão magra e tão branca, que até causava espanto, um bispo
mórmon, que durante todo o percurso da viagem viera relatando
as suas peripécias durante a corrida do ouro; e mais um casal, ele,
elegantemente vestido, fazendo questão de ostentar as mãos finas
e bem tratadas; ela, bem recheada de curvas, seios opulentos, que o
decote generoso realçava ainda mais.
Para alívio do xerife, o mórmon e o casal apenas fizeram a parada
para a troca de animais, aproveitaram e tomaram uma limonada.
Apenas a garota magricela viu a troca de olhares suspeitos entre
o xerife e o bispo, mas como era de seu costume, logo depois duvi-
dava do que tinha visto.
Só voltou a lembrar-se do fato, quando dias depois teve notícias
do assalto realizado ao banco da cidade.
Mas o que não saía de sua cabeça era a imagem da mulher de
seios opulentos, ah ela com um corpão daqueles...

190
Lucidez Renitente

chiclete para os olhos

A coordenadora Leiliana se aproximou do professor Eliseu e como


sempre fazia quando estava nervosa se pôs a rir, um riso curto muito
parecido com um grunhido.
É que aquele professor lhe causava uma admiração tão grande
que a deixava desorientada quanto ao tratamento que deveria lhe
reservar, logo ela que era tão desinibida e tratava todos os outros
professores com um carinho genuíno, uma mistura de irmã mais
velha e de mãezona.
Esforçou-se para controlar o riso e anunciou com uma voz que
pretendia ser firme, mas não escondia completamente a tensão que
sentia:
- Professor Eliseu, a diretora Rita pediu para o senhor fazer o
favor de ir até à sala dela.
Eliseu era um dos poucos professores efetivos da Escola Esta-
dual de Ensino Médio “Paulo Freire”, encontrava-se no pátio externo,
fumando e pensando, pois era a hora do recreio e ele tinha verdadeiro
pavor das conversas fúteis que empesteavam a sala dos professores.
- Minha nossa, acho que na vida passada eu fiz uma fogueira
com a cruz sagrada, só pode, quem aguenta aquele menino do
primeiro ano H? Esbravejava a professora, responsável por lecionar
Ciências Biológicas.
- Eu não estou nem aí, o Estado finge que me paga e eu finjo
que trabalho, diz um jovem professor de Educação Física.
- E por falar nisso, alguém tem notícias do abono? Novamente
a professora de Biologia, afora interessada, o fato é que é recém-
-casada e se endividou toda para montar o apartamento de quarto
e sala.
- E ainda tem professor falando em trabalhar com projetos, é
ser muito puxa saco, destila veneno a sectária professora de inglês.

191
Hudson Ribeiro

Longe do falatório inconsequente, o Eliseu encontra a paz


necessária para fumar os seus dois cigarros diários, enquanto pensa
na inter-relação do tempo e do espaço e a apreensão da realidade
pela consciência.
- Posso terminar de fumar, Lili, ou é algo de muita urgência?
- Pela expressão da dona Rita a coisa parece séria, o que será que
você andou aprontando dessa vez professor?
A pergunta faz referência velada ao sucedido no trimestre
passado, quando o Eliseu utilizara em suas aulas de Sociologia um
texto bastante polêmico chamado “Futebol e Sexualidade”, aquilo
criara a maior celeuma, principalmente com o professor de educação
Física, que levou tudo para o lado pessoal e até tentar agredir o
Eliseu, tentou.
Em consequência de o professor Eliseu ter solicitado aos seus
alunos que entrevistassem os outros professores acerca do assunto
abordado pelo texto, quando chegou a vez do representante da
cultura física, a coisa fedeu...
- Pelo que me consta nada, a não ser que a carona oferecida para
uma estudante sofrendo cólicas terríveis seja considerada algo grave.
- Mas logo a Aninha? Você sabe o que todos dizem...
- Pô, até você Lili? Precisa ler os textos que ela escreve, a menina
leva jeito pra coisa, por isso eu defendo a necessidade de implan-
tarmos o projeto na escola, com esse esquema de giz e cuspe estamos
apenas estuprando a mente dos alunos.
- Bom, já dei o recado, eu que conheço bem a Aninha sei muito
bem e até demais para o que ela leva jeito, quanto essa ideia de
projeto, você sabe que tudo o que for bom para os alunos conta com
o meu apoio irrestrito, quanto aos seus colegas...
- O que têm eles? Pergunta Eliseu, já agastado com o rumo que
a conversa tomava e, injuriado consigo mesmo, por ter caído mais
uma vez na tentação do debate estéril.
- Ah, professor, o senhor é tão inteligente... Alguns poucos acre-

192
Lucidez Renitente

ditam no sucesso da iniciativa, mas a maioria murmura pelos cantos


que isso não passa de manobra política do senhor para concorrer à
próxima eleição para o cargo de diretor da escola. É isso que dá o
senhor ficar afastado, só fumando e pensando.
- Está bem, eu vou lá saber o que a diretora quer comigo.
Uma sala perfeitamente ordenada, discretamente sóbria refle-
tindo a própria personalidade da autoridade maior, que se encontra
sentada ao lado de uma senhora de uns cinquenta anos.
- A senhora deseja falar comigo? Bom dia!
- Bom dia! Esta é a dona Guiomar, a mãe da Aninha, ela insiste
em agradecer pessoalmente ao senhor pelo favor prestado a sua filha,
aliás, pelo que eu ela diz, a Aninha adora o senhor.
- Muito obrigado, professor Eliseu, ainda mais no mundo de
hoje, tão raro encontrar alguém solidário, e a Ana Cláudia é uma
menina complicada, mas tem um coração de ouro, o senhor sabia
que ela é a minha esperança? Porque o irmão, Tiago, depois que o
pai foi assassinado por engano naquele bar da esquina enquanto
jogava uma partida de dominó, se tornou irreconhecível, de
menino respeitador, que trabalhava naquele supermercado em
Alto Lage, se transformou em um monstro sem coração, as más
línguas dizem até que está envolvido com o tráfico de drogas, pra
dizer a verdade ao senhor desde que ele se enrabichou com aquela
baiana dos infernos, que eu não sei mais dele. Mas a Ana não, é
covardia o que fazem com a pobre, será que é por que ela é linda
daquele jeito? Os olhos azuis ela puxou do pai, as carnes fartas foi
de mim mesma.
O sinal do reinício das aulas salvaria o Eliseu daquela situ-
ação constrangedora ou pelo menos foi o que pensou quando
ouviu o soar, insensível e autoritário, ledo engano, pois a dire-
tora após se despedir da dona Guiomar, que depois do desabafo
parecia ter rejuvenescido uns vinte anos, o reteve com um gesto
gracioso de cabeça.

193
Hudson Ribeiro

- Ah, professor, tem outro assunto que gostaria de tratar com o


senhor, não se preocupe com a sua aula, a Lili já tomou as providên-
cias necessárias.
Pronto, pensa um apreensivo Eliseu, será que a Aninha revelou
para alguém o seu amor maluco que sentia por ele? Ou era aquela
história do texto “Futebol e Sexualidade” de novo?
- Professor, os seus esforços foram recompensados, a secretaria
aprovou o projeto e a verba chega à semana que vem, já podemos
botar o bloco na rua.
Eliseu por alguns instantes fica como em suspenso, notícia
ouvida depois de muito tempo de espera causa esse efeito, seme-
lhante ao fato de que por mais farta que seja a água, jamais sacia a
sede de quem por longo tempo errou sedento pelo deserto.
Em meio à confraternização pela boa notícia, a coordena-
dora Liliana veio anunciar a presença de uma comissão de pais de
alunos, que injuriados, vinham tomar satisfação com a diretora e
com o professor irresponsável, que estava virando as cabeças dos
seus queridos filhinhos ao apregoar que a televisão é uma fábrica de
produzir idiotas em série.
- Mas logo a pobrezinha da televisão dona Rita? Isso é coisa
de professor que não tem o que fazer, disse uma mãe, que parecia
ser a líder do grupo, uma matrona com cara suína, obesa de
tanto comer e beber, tanto os alimentos e bebidas nocivos, como
também, as programações alienantes, enquanto engordava o seu
ressentimento pelo fato do casamento não lhe ter trazido toda a
felicidade que sonhara.
- E o meu Henriquinho, que tentou explodir a televisão lá em
casa? Ainda bem que o aparelho é dos antigos, aguentou bem o
tranco, não me deixou na mão, deu pra assistir ao último capítulo
da novela das oito, mas o Henrique está de castigo até o pai voltar
de viagem, diz uma jovem mãe, com trejeitos de quem foi “telede-
seducada” por programas de uma dessas apresentadoras louras, que

194
Lucidez Renitente

abundam a televisão brasileira, fazendo com que o Brasil pareça um


autêntico país nórdico.
- O que nós queremos saber da senhora é qual providência a
senhora irá tomar, diz o único representante masculino daquela
comissão, um magricela com cara de quem apanha da mulher.
- Calma minha gente, tudo será resolvido satisfatoriamente, por
coincidência este é o professor Eliseu, enquanto eu vou à coorde-
nação tomar algumas providências, garanto que ele explicará direi-
tinho a razão disso tudo.
A conversa foi longa e difícil, o professor Eliseu utilizou todo o
seu conhecimento sociológico para convencer os pais de seus alunos
da mazela que é a programação televisiva, especialmente as novelas.
Quando a diretora Rita voltou à sala, pensando que iria encon-
trar um clima caótico de guerra, qual não foi a sua surpresa ao ver o
grupo dialogando amigavelmente sobre a maneira dos pais partici-
parem do projeto idealizado pelo Eliseu. Coube à matrona com cara
suína, parecendo adivinhar os pensamentos da dona Rita, explicar a
situação:
- Pois é diretora, o Eliseu tirou o chiclete dos nossos olhos.

195
Hudson Ribeiro

autonomia

O sol já não é mais o mesmo, o tonel já não é mais o mesmo, Ale-


xandre já não é tão grande e nem Diógenes é mais tão cínico, mas
nada disso me impede de impedir alguém ou alguma coisa de tentar
obscurecer a luz solar.
Cuidado com as suas mãos em mim, pois podem me libertar,
como também podem me aprisionar.
Ficar vigiando os meus passos, até cheirar o meu sovaco, procu-
rando razões para me incriminar, olhe que o ciúme é letal, mesmo
quando já é normal eu fazer relatórios da minha movimentação com
tanto esmero.
Há uma peça escrita pelo Rodrigues que fala de uma transmu-
tação, nem um pouco absurda, de como uma serpente inofensiva
transforma-se em uma víbora peçonhenta de tanto ouvir o som da
flauta tocar da maneira mais abjeta.
O homem falava ao telefone fixo, daqueles antigos, capaz de cair
no pé do sujeito e fraturá-lo em vários lugares.
Andava de um lado para o outro até onde a extensão do fio
permitia-lhe, fumando e bebendo.
De repente, parou de falar e só então prestou atenção ao som
da festa, embalada com jazz da melhor qualidade, burburinhos,
risadas, vindo de por trás dessa balbúrdia civilizada, ouviu uma voz
alegre saudando “à todos os poetas insepultos”, como uma martelada
no coco da cabeça percebe o seu engano e pergunta, já sabendo a
resposta:
Alô Jurema é você Jurema? Fale alguma coisa mulher!
Do outro lado, uma voz rouca e sedutora responde meio sarcas-
ticamente, a única Jurema que tem em nossa festa é a jiboia de esti-
mação, que o Dudu trouxe para dar um charme, serve?

196
Lucidez Renitente

cotidiano

Quinta-feira, manhã livre, hoje nada de fazer compras – sentir-me


tentado pelos inúmeros produtos de rótulos reluzentes, nada de pa-
gar contas, são tantas as contas, que tontos até nos esquecemos de
que pagamos pra viver, viver não, mas, subviver, assim por baixo.
Como dizia o filósofo aposentado, Nicanor, um velhinho muito
simpático, que acompanhava a história do Brasil desde tempos idos,
mas afirmava enfático que nunca vira ninguém amarrar cachorro
com linguiça.
Nada de consulta médica, exames de sangue, urina, fezes; neces-
sário se faz controlar as taxas, todas de nomes muito gozados, medir
a pressão, reafirmar o propósito de parar com o tabaco, o álcool, as
noitadas.
Nada de telefone tocando com alguém pedindo urgentemente a
sua atenção, nada de caixa de entrada de e-mail abarrotada daquelas
mensagens lindas e otimistas, beirando ao patético.
Nada de trabalhar com pautas, por um momento sente um cala-
frio ao se lembrar de que são tantos filhos da pauta, que de um
súbito compreende a orfandade da educação, sem pai, nem mãe, sem
direção e sem sentido.
“Prá onde tu vais?” Cumprimento de praxe do velho Nicanor.
Decide ler o jornal na praça, sentir o calor do sol, tentar enxergar
o colorido das pessoas.
Neste momento a cidade começa a despertar como um imenso
monstro se espreguiçando de maneira estabanada, bancas de revistas
ainda fechadas, padarias abertas, mas o pão de queijo que é bom, só
fica pronto mais tarde.
Bem que a sua amiga carioca deu o veredito, que cidade mais
dorminhoca.

197
Hudson Ribeiro

reflexão sob o sol do meio dia

Ainda sob o peso de notícia tão entristecedora ligou o gravador e


pôs-se a ouvir a última aula da professora Leila Ramos, sua orien-
tadora do doutorado, dessa vez a gravação havia sido bem sucedida,
de modo que podia ouvir claro e em bom som a voz tão conhecida e
que certamente deixaria muitas saudades.
E o antes do antes? Quantas cabeças pensantes tentaram
desvendar o enigma que é o mundo quando despertados somos ao
comparamos o nosso eu e o eu do mundo?
O máximo conseguido foi a resposta bastante frágil, propagadora
da inexistência do enigma, uma vez que haveria a ocorrência da unidade
incondicional do nosso eu com o eu do mundo, resposta verdadeira-
mente fabulosa posto não alcançar a explicitação cristalina de como
ocorre tal fusão de eus nos desdobramentos das vidas dos seres humanos.
De onde viemos? Esta questão que clama a respeito das nossas
próprias origens é relegada a um plano anterior ao próprio pensa-
mento questionador e, portanto, não passível de reflexão.
Desse modo o antes do antes é simplesmente ignorado, mas é
um ignorar deveras inusitado, uma vez que tal conduta é tida como
sapiência, quando a simplicidade da vida já nos alerta plena de
lucidez, de que se não questionamos de onde viemos como responder
a seguinte indagação, o que fazemos aqui?
Se à primeira indagação, o silêncio melindrado é a resposta
contumaz, à segunda pergunta todos os seres humanos se acham
com prerrogativas para respondê-la afoitamente.
E encontramos desde ser ovelha-mansa, de olho no camarote do
céu. O ser macaco-gargalhador, utilizando a ironia abundantemente
para esconder o próprio espanto diante da questão apresentada.
O ser-leão, onde a vontade de poder é tamanha que promove
através de inúmeros subterfúgios o poder da vontade.

198
Lucidez Renitente

O ser-formiga, que faz o seu trabalho numa ânsia dantesca,


como que tentando dissimular a sua própria ignobilidade.
O ser-cigarra, que advoga para si a tarefa de se imiscuir com
o sagrado, mesmo que também não ouse alcançar alguma resposta
para a indagação das origens, de tão fascinado com as suas elucubra-
ções nem percebe que em suas concepções pretensamente universais.
O que vigora mesmo são apenas pontos de vista afiados na
vivência cotidiana, elaborados e sacramentados pelo tempo presente.
Dessa estirpe fazem parte os artistas e os filósofos.
A terceira indagação nos petrifica dada a sua objetividade, para
aonde vamos?
Claro que esta indagação nos remete não apenas ás vísceras da
problemática, mas também a atentarmos ao caminho percorrido até
aqui.
Quando nada sabemos do antes do antes, e, por conseguinte,
livre-arbitrariamente receitamos curas para os males dos outros,
mesmo que o nosso ser se encontre seriamente enfermo, como nos
comportamos diante da indagação acerca do após do após?
Não é preciso ser um cético confesso para constatar que até a
mais bem fundamentada filosofia, diante dessa indagação, trans-
forma-se em profecia e que se não fosse pela autoridade da erudição
imposta por ditames ideológicos seria até risível.
Interrompe a gravação quando após a fala da professora irrompe
uma salva de palmas estrondosa.
Acende um cigarro, se acerca da janela de onde avista o quintal
e as galinhas que o mano caçula cria, dá uma longa tragada e pensa,
amargo e impotente, como sempre, que a morte é arremessada
contra ele.
Desastre de automóvel, que maneira besta de morrer...

199
Hudson Ribeiro

entre o postular e o pustular

Emmanuell, um moreno claro quase branco, de estatura mais baixa


que alta, mas musculoso como um touro saudável e que tem em seu
olhar a sua maior peculiaridade.
É que o Emmanuell sorri com os olhos; se os olhos são os espe-
lhos da alma como querem alguns poetas, os dele se parecem mais
com uma enorme vitrine espelhada devido à capacidade de refle-
tirem hiperbolicamente os sentimentos mais recônditos e as sensa-
ções mais longínquas.
Quando concordantes ganham uma luminosidade esverdeada
distribuindo solidariedade e esperança a tudo o que fitam, quando
contrariados um véu castanho escuro nubla qualquer tentativa de
aproximação, olhos castanho-esverdeados de moleque sarará.
Emmanuell anda nervosamente de um lado para o outro,
fumando cigarro e mais cigarro compulsivamente, a sua marca
preferida é a de sabor mais forte e sintomaticamente a de preço mais
barato, mas o motivo da sua opção é aquele e não este.
Emmanuell, homem parcimonioso com as coisas relacionadas
ao inconsciente consumo, advoga pra si ao menos a prerrogativa de
gozar de algumas tragadas do seu cigarro predileto, o que em sua
opinião o ajuda a segurar o rojão que a cada dia se torna mais estron-
doso e pesado em consequência das tramoias acordadas na boca da
madrugada.
Encontra-se defronte ao Memorial da Cultura de sua cidade
natal, uma fachada realmente muito bonita, mármores, vitrais,
chafariz, pedras portuguesas, exposição de quadros dos artistas da
terra.
Tudo combinado com um equilíbrio sereno que em nada faz
lembrar a miséria e a violência, que como doença contagiosa e incu-
rável, carcome indelevelmente a periferia da cidade; realidade facil-

200
Lucidez Renitente

mente constatada quando não fixamos o olhar e, por conseguinte,


não cegamos as vistas, em sua bela orla marítima.
De volta ao memorial, onde ocorre uma movimentação agitada
de artistas de todos os ramos da cultura: filósofos, poetas, jornalistas,
músicos, atores, diretores...
Nos primórdios de tudo o que se constituiu os homens viviam
comunitariamente, a vontade de cada vez mais poder desembocou
no aparecimento do Estado como gerenciador dos interesses do
agrupamento humano mais forte.
Os fenômenos, céleres e apavorantes, da natureza propiciaram o
surgimento das explicações metafísicas realizadas por homens que
se jactaneavam de ouvirem e verem o próprio Criador de tudo.
E entre o pensar e o ser, a pulsão sempre latente da possibilidade
realizável, mas constantemente irrealizada, tornaram os homens
aptos para se expressarem eximamente acerca de coisas que nem
o poder gerenciado pelo Estado e nem as explicações metafísicas
alcançavam, esses são chamados artistas.
De modo que a tão famigerada inspiração como sopro genial
não passa de justificativa mítica para esse fato, verdade que a maioria
dos artistas tem uma extrema dificuldade de admitir.
É que hoje se encerra o prazo para quem deseja postular aos
benefícios da lei de incentivo à cultura.
O vocábulo postular traz em sua paronímia a palavra pustular, o que
sempre enseja em Emmanuell uma reflexão acerca de se dimensionar
até que ponto a postulação se equipara a uma pustulação. De modo
que postular em sua sinonímia de suplicar, imbrica-se ao pustular mais
medonho, posto que a pústula se forma é na alma do artista.
Como já se tornara corriqueiro nos últimos cinco anos, o projeto
cultural de Emmanuell dependia, e muito, da colaboração dos outros
para ser corretamente protocolado.
Uma hora é a digitação, outra é a impressão, outra é a xerox,
outra é a encadernação. Ainda tem as declarações, os orçamentos,

201
Hudson Ribeiro

enfim... E o seu primo que havia prometido ajudá-lo, sentara sober-


bamente na curva deixando-o a ver navios onde nem havia mar.
Tantos são os percalços que Emmanuell dos Santos Hilário, pensa
muitas vezes em desistir, chutar o balde e ir vender churrasquinho
de gato nas praças, depois se dá conta de que tal atitude significaria
condenar as pessoas do mundo à ignorância dos esclarecimentos
fundamentais e inadiáveis, de que trata a sua mais recente obra.
Esta mesma que espera ansiosamente protocolar, intitulada
com o sugestivo e prepotente nome de, “REBUSCANDO A
CAUSA ORIGINÁRIA NO SILÊNCIO ENIGMÁTICO DAS
COISAS”.
A causa originária para o Emmanuell, não é apenas o início
de um princípio, pois se este se divide em começo, meio e fim, em
momentos estanques e, por conseguinte, desarticulados, àquela, para
fazer jus ao próprio nome é o que vige todo o processo da rebusca.
Temos então, segundo o autor, o ponto diferencial entre buscar
e rebuscar.
Enquanto buscar refere-se a um princípio qualquer, força causa-
dora passível de se extinguir no desenrolar do percurso ao se perfazer
em começo, meio e fim, o rebuscar é insuflado pela causa originária
sempre vigente e perpassante, impassível ao fenômeno inexorável da
extinção, posto que até mesmo a extinção do processo é regida pela
causa originária.
O silêncio enigmático desvelar-se, não significa o silêncio
correlacionado ao jazer calado, se na enfadonha caluda, as mônadas
reificam imperativas e intransponíveis, o silêncio é falante na
medida em que é nele que se preparam as possibilidades da fala falar
e nomear tanto o sagrado com o pensamento.
O enigma aqui referido se traduz em muito mais do que mistério,
enquanto o mistério sempre propicia o seu desvelamento, ao menos
para os iniciados, o enigma, semelhante à latência do nada, quase
sempre nos devora em nosso afã de decifrá-lo.

202
Lucidez Renitente

As coisas são tudo; as pessoas, os fatos, nós mesmos, todas


aquelas pessoas que já passaram, que passam e que passarão por
essa estranha ruela que desemboca abruptamente naquele sinistro
cemitério.
As coisas são os fatos que se apresentam genuínos, mas que na
linha do tempo que essencializa ou nadifica o ser, se representam
como acontecimentos constituintes do eterno retorno; e as coisas
somos nós mesmos, o que fomos, o que somos, e o que seremos,
o que sabemos e, até de forma mais visceral e abissal o que não
sabemos, pela razão de ser o que realmente somos.
Emmanuell acende outro cigarro e se senta na mureta que
protege o caminho de acesso ao saguão, enquanto olha ansiosa-
mente para o ponto de ônibus. O ponto de ônibus é um reflexo fiel
do estado de errância em que se perdem os seres humanos em um
mundo onde o imundo domina o formoso de maneira tão insidiosa
que a inversão de valores parece naturalíssima.
O quadro de pessoas muito próximas, apinhadas em pontos
de ônibus, não se traduz como proximidade alguma, muito pelo
contrário, as pessoas se esforçam por demonstrarem semblantes
satisfeitos e, não raro realizados, mesmo que por dentro ressenti-
mentos jorrem incessantemente com efervescência de inúmeros
vulcões. A cabeça de Emmanuell começa a girar com a força de mil
megatons.
A sua cabeça é como um bailarino enlouquecido dançando em
corda bamba, adora brincar com as possibilidades que o real oferece,
e desse modo, funde, confunde, transfunde a realidade.
Ora é um poderoso rei de exércitos invencíveis, abundante
sangue azul, manto vermelho escarlate cravejado de brilhantes rarís-
simos e, como rei, nunca necessitou ceder a vez a ninguém.
Ora é o mais ignóbil mendigo, jazendo em uma sarjeta, implo-
rando misericórdia alheia em orações insistentes e hereges.
Ora ainda é um escritor de sucesso estrondoso, champanha,

203
Hudson Ribeiro

caviar, time de futebol, mulheres colossais, belas e gostosas, moradia


em triplex em avenida disputadíssima.
Ou ainda, um pobre poeta que acabou de se suicidar engolindo
o seu manuscrito original, preterido pelas diversas editoras e pelas
leis de incentivo à cultura do país.
E se ela caiu no chuveiro e bateu com a cabeça no bidé? E se
ela encontrou com a Scheila e estão conversando até agora? E se o
ônibus que ela vinha furou o pneu? E se ela esqueceu-se de reco-
nhecer firma da assinatura da sua irmã? E se...
E os “ses” vãos se acumulando com a celeridade dos lucros das
firmas multinacionais. Os lucros das empresas multinacionais são
tão exorbitantes, que fica difícil para um pobre mortal, desconhe-
cedor dos meandros da ciência econômica, concebê-los.
É como imaginar uma constelação mais distante e gigantesca ou
o corpúsculo mais minúsculo das entranhas da Terra.
Resolve retornar a sua andança de um lado para outro, quando a
avista ainda dentro do ônibus. Espera ela saltar para se certificar da
veracidade da sua visão. Pois, em sua espera desesperada, já tomara
vários vultos femininos como se fosse o dela. Ufa! Agora era ela
mesma.
Esperar por alguém já é difícil, torna-se ainda mais insuportável
quando a espera é sem horário previsto, convenhamos que a, espera
do inesperado heraclitiana, é tão grandiosa que não deve ser apli-
cada a fato tão trivial como aguardar alguém defronte ao Memorial
da Cultura de sua cidade natal.
Era ela mesma e vinha mais bela que nunca em um vestidinho
justo com detalhes em amarelo-ouro e azul-piscina.
- E aí, demorei muito?
- Nada! Cheguei agorinha mesmo. E aí, tudo em cima?
- Tudo tranquilinho, eu me atrasei um pouco devido a um
acidente de percurso.
- Algo grave?

204
Lucidez Renitente

- Não, tudo besteira, primeiro fui vítima daquela mania besta do


meu filho, o Jean, de deixar o sabonete caído no chão do banheiro,
depois, quando já ia fechando a porta o telefone tocou, era a Sheila
exigindo audição para as suas aventuras amorosas na última festança,
e aí você sabe como é né? Tive que fingir que a linha estava com
problemas e desliguei. E para finalizar o ônibus em que eu vinha deu
um troço, foi aquela pagação de mico em pleno centro da cidade.
- Só um instantinho... Mas a firma da assinatura da minha irmã
você reconheceu? (tom de suspense na voz temerosa, às vezes os
presságios se realizam).
- Claro! Desde ontem mesmo, fique tranquilinho, vai dar tudo
certo.
Enquanto ela o tranquiliza, não para um só instante, grita o
nome de um, acena para outro, joga beijinhos para amiga cineasta e
professora do ensino primário.
- Olha lá a Margarida! Ela que é a mulher da secretaria, você
quer que eu a apresente? Ela é uma gracinha de pessoa.
Para que? Agora que levantou, percebe o quanto as suas pernas
estão dormentes, aquela palhaçada toda de inúmeros artistas mendi-
gando a ajuda governamental, aquilo tudo repercutia nele como uma
descomunal náusea, juntamente com a sensação de que iria vomitar
e vomitaria certamente, se a pieguice do ato não o lançasse em um
mar asqueroso, o impedindo até mesmo disso.
- Você está bem Nuell? Pergunta ela, preocupada com a palidez
dele. Senta um pouquinho aqui, eu vou buscar um copo com água,
também... Aposto que ficou debaixo dessa soleira toda, me espe-
rando... Espera aqui que eu volto logo.
Debaixo da soleira e das três bandeiras que tremulam nos
mastros. Toda bandeira é signo, todo signo se perfaz em função do
seu significado, as cores, os desenhos, os dizeres declaram coisas
óbvias, ao mesmo tempo, em que dissimulam outras coisas não tão
óbvias assim.

205
Hudson Ribeiro

O martelo martela as cabeças rarefeitas de ideias com pernas, e


por isso mesmo, facilmente roborificadas. A foice separa detalhada-
mente a cabeça do corpo. A suástica simboliza os inúmeros campos
de concentração não catalogados. A cruz cristã comemora o Deus
morto e não o ressuscitado.
A ordem planifica a desordem, o progresso dissemina a miséria,
o verde da mata extinto, o amarelo do ouro contrabandeado, o azul
do céu poluído, o branco da paz conspurcado.
O trabalho significa desemprego e a confiança se traduz em
desespero. Entre o signo e o significado transmuta-se o significante,
não consoante aos fatos, mas sim às versões condizentes com as
interpretações dos poderosos.
- Pronto! Está geladinha, vamos nos sentar debaixo daquela
árvore, eu já peguei a sua senha, o seu número é o 333. A espera será
longa.
- Longa e irritante.
- O que você disse?
- Não foi nada, estava pensando em voz alta.
A passagem do tempo acelera o movimento dos artistas no
saguão da repartição pública. Está ali um artesão de renome, que o
Emmanuell conhece desde o fim da ditadura, naquela época ele era
conhecido por sentir prazer em espancar mulheres e fazer esculturas
psicodélicas.
Aquela de cabelos pintados de vermelho e roxo e enfeitada
com inúmeros piercings é filha única de um milionário do ramo
do comércio, ela ainda quer mais incentivo para quê? Aquele outro
é dono de restaurante de comida natural, Emmanuell o conheceu
como Aurélio, mas parece que atualmente assina Auéio, coisas da
numerologia, consoante no nome dá azar...
O saguão parece até um festival, é flagrante o constrangimento,
pois há consciência mesmo que tênue da contradição existente de
se implorar auxílio governamental para criticar a política cultural

206
Lucidez Renitente

do governo. Um artista olha para o outro assim como se medem os


cavalos de corrida na linha de largada.
- Ih, olha lá a televisão! Eu vou lá, quem sabe eu não sou entre-
vistada? Você não quer vir?
- Eu vou comprar cigarros.
- Vê se não demora, o último a ser chamado possuía a senha de
número 315.
Bar elegante, cadeiras e mesas sofisticadas. O garçom com um
sorriso hospitaleiro e o dono no caixa, contanto o dinheiro prote-
gido por uma Bíblia aberta no salmo 3.
De volta ao circo, até que enfim o movimento vai diminuindo.
Interessante como a maioria dos postulantes é de descendência
branca... Será que o processo de embranquecimento da população
brasileira iniciada ainda na Primeira República conseguira o seu
intento à contento?
Ou seja, conseguira segregar todos os membros não brancos
aos porões promíscuos do sistema? Se para os brancos a margem
desvelava-se como um ventre fértil de artistas dos mais variados
matizes, para os não brancos a margem revelava-se, tão somente,
como reprodutora de violentos marginais.
Isso explica porque os hospícios, as casas de reclusão e as covas
rasas estão lotados de brasileiros não brancos. Dos “negões” nem
se fala; estão sendo abruptamente aniquilados, irremediavelmente
mortos ou, então, estão sendo paulatinamente absorvidos, ridicular-
mente embranquiçados.
- Vamos entrar que já vai chamar o seu número, fala arrastando-
-o pelo braço, mistura de carinho e firmeza, no caminho cumpri-
menta um e outro.
- Número 333! Grita o funcionário responsável pela chamada
e por conferir a documentação exigida, já cansado com a mudez ao
apelo do chamado luminoso que, modernamente, exibe o número
da senha da vez.

207
Hudson Ribeiro

Dirige-se ao guichê indicado, esforça-se para demonstrar calma,


firmeza, otimismo, em total sintonia com processo tão insidioso.
Não consegue evitar o que temia, por alguns segundos é capturado
pela câmera de tevê, agora se a edição não cortar, terá os seus quinze
minutos de fama colorida.
- A documentação está completa? O nada Consta também?
Pergunta o funcionário e explica solicitamente, eu pergunto pelo
Nada Consta porque é o mais esquecido pelos artistas postulantes.
- Está tudo tranquilinho, isso é o que se ouve dizer, enquanto
a sua cabeça já delira com a expressão Nada Consta, sendo que ele
sabe muito bem que Tudo Consta, desde a manhã em que em tenra
idade aprendera a ler e a escrever e ficou encantado com a mágica
das palavras.
Tudo Consta, desde a tarde que comparou umas coisas com
outras e percebeu as igualdades e as diferenciações entre elas.
Tudo Consta, desde a noite em que concebeu a indagação
visceral, que é saber a origem e a consumação de todo o que se
constituiu.
Tudo Consta, desde a madrugada em que percebera atônito por
detrás da mágica das palavras havia rondando sombria a capacidade
de mentir.
Tudo Consta, desde a manhã em que vira barracos precaria-
mente equilibrados nos altos dos morros e ficara imaginando qual o
tipo de vida viviam os seus invisíveis moradores.
Tudo Consta, desde a madrugada em que se pôs a imaginar
como seria Deus, se é a imagem e semelhança do homem, ou
havia a possibilidade da ordem dos termos alterar o produto final,
ou seja, o fato do homem ser a imagem e semelhança de Deus,
não significa necessariamente que Deus seja imagem e seme-
lhança do homem.
Tudo Consta, desde que fechou os olhos e viajou para dentro de
si mesmo e o que vislumbrou mais o ensimesmou do que esclareceu.

208
Lucidez Renitente

Tudo Consta, desde o dia em que concebeu o eterno como aqui e


agora.
Tudo Consta, desde a noite em que fundou a sua própria reli-
gião e entronizou a intuição como deusa-mor.
Tudo Consta, desde o dia em que percebeu que as indagações em
sua cabeça eram respostas inadvertidamente invertidas e que tudo
dependia do lugar e do momento, inclusive o lugar e o momento...
Tudo Consta!
-Então está tudo O.K, aqui o seu comprovante e boa noite!
- Para você também boa noite!
Quando sai avista alguns artistas remanescentes espalhados
pelo saguão em conversas murmuradas, a maneira esfuziante de
se cumprimentarem com tapinhas calorosos nas costas ou beijos
rápidos que mal tocam as faces sempre acompanhados de um largo
sorriso e a indispensável expressão, servindo como senha combi-
nada: Grannnnnnnnnnnnnde!!! Transpira algo não verdadeiro.
Nas relações humanas quando há proximidade em demasia não
há intimidade, e quando há intimidade é porque a proximidade é
cuidadosamente metrada.
Por ali, a expressão sartreana acerca do outro ser o inferno
não alcançou a repercussão necessária, isso explica a presença de
tantos confetes e serpentinas – os fracos necessitam da proteção do
rebanho, martela Nietzsche.
Emmanuell vai a procura de um banheiro e a vê conversando,
entusiasticamente, com a Margarida, a mulher da secretaria. Passa
ao largo evitando contatos, cruza com o artesão sádico que o olha
fixamente, mas felizmente não o reconhece, também pudera, do
jeito que se encontra, com uma barriga enorme e uma careca
justificadora do apelido que ganhara dos sobrinhos “aeroporto
de mosquito”.
A longa mijada parece substituir o vômito, tal a sensação de
alívio que propicia, abre a torneira da pia, lava cuidadosamente

209
Hudson Ribeiro

as mãos imaginando estar lavando todo o processo da postulação


enquanto se assombra com a pustulação.
É quando vai fechar a torneira que a coisa se complica, gira para
um lado e nada, gira para o outro e o mesmo resultado insatisfatório.
Entra mais um artista, alivia-se rapidamente e sai sem fazer o higi-
ênico uso da pia, “esse tá com pressa, certamente, nem protocolou o
seu projeto ainda”.
Entra um outro com mais calma, olha de esguelha para um
Emmanuell envergonhado e cada vez mais aflito com aquela vexa-
tória situação. De repente a ideia vem a sua cabeça.
- Esta torneira funciona como descarga né?
- Acho que é, responde o outro sem muita convicção e, subita-
mente, apressadamente como o outro, sai sem lavar as mãos.
Porco! Vai chegar lá e proclamar intimidade e proximidade
com tapinhas nas costas dadas com as mãos sujas. Simbolicamente
quanto mais efusivamente são os tapinhas nas costas mais delata a
sujeira impregnada na alma, assim quanto mais histérico é o choro
maior e a satisfação pela morte do ser. Ou ainda, assim como uma
risada escandalosa esconde o choro inocente.
É o jogo da sociabilidade, onde o contumaz é não sentir o que
se pensa e nem fazer o que se sente, tudo isso com vozes falseadas
e trejeitos contorcionistas que facilmente enganariam a um obser-
vador menos atento.
De retorno ao saguão, dessa vez não escapa à apresentação.
- Marga, este é o Emmanuell, Nuell para os amigos, poeta e
escritor de rara qualidade. Nuell, esta é a Margarida, Marga para
os íntimos, ela é quem coordena o processo de seleção dos projetos
postulados.
Postulados ou pustulados? O pensamento como cavalo selvagem,
apertos de mãos, firmes e gélidos, olhos nos olhos tentam captar o
vislumbre das retinas, a lenda pessoal habilmente dissimulada sob
o verniz da etiqueta avaliando o peso da inocência e a pertinência

210
Lucidez Renitente

da experiência de cada um, fração de segundo transformado em


milênio.
O sorriso hipócrita de Margarida subitamente congelado pelo
silêncio enigmático do Emmanuell, mas política que se preza torna
a palavra meretriz das ocasiões.
Em um mundo onde quem nasce brilhante sofre com as marcas
de tempos tão mórbidos, os eleitos são aqueles que demonstram
uma inofensiva mediocridade, revelada na instantaneidade com que
aderem à prostituição artística em um degradante vale tudo, desde
dizer que disse o que não disse até dizer que não disse o que disse,
sempre de olho na tentadora recompensa oferecida em anúncios
neonizados pela fortuita roda da fortuna.
- Pois é, é como estou falando para a minha xará, o negócio
é conhecer o caminho das pedras, acontece do artista ser agra-
ciado com o benefício da lei e não passar disso, a lei prevê apenas a
produção, a distribuição é por conta do artista.
- E a gente faz o que? Pergunta a sua fiel escudeira, com aquela
curiosidade das crianças inteligentes que tanto nos confunde e faz
Emmanuell desconfiar de que, debaixo daquela aparente superficia-
lidade se esconde uma profunda sapiência habilmente dissimulada,
afeita às regras escorregadias do jogo.
- Vamos fazer o seguinte, diz a coordenadora, com dicção de
corretora de imóveis e com um dos braços em torno do ombro dela,
enquanto com o outro acena para um cineasta transeunte, você me
procura semana que vem e aí a gente conversa direitinho.
Há conversas e há conversas, há monólogos, há debates, há discus-
sões, há uma gama enorme de ações apalavradas, inclusive, a ação onde a
palavra é usada como laço muito bem manipulado para enforcar o inter-
locutor com declarações óbvias e dissimulações não tão óbvias assim.
O discurso ideológico se efetiva em uma dinâmica onde as ideias
nunca se plenificam, posto que jamais se questionem, são ideias sem
pernas, que utilizam a sua deficiência para serem bem sucedidas em

211
Hudson Ribeiro

seu intento ignóbil de iludir, semelhante a um bailarino manco em


corda bamba repercute, engraçado em nosso imaginário.
E o pensamento se deixa conduzir por malabarismos cada
vez mais espetaculares promovidos pelas maleáveis palavras que, a
serviço do discurso ideológico castrador, enfia-nos um longo punhal
bem no meio do nosso coração, enquanto indaga solícito, se acei-
tamos um copo com água ou um suquinho quem sabe...
- Então está tudo consumado?
- Agora é só aguardar até a semana que vem e aí a gente vai lá
conversar com ela, maior gente boa viu só?
Indagação sem resposta, pois a cabeça de Emmanuell já foi
dar outra volta, volta ao início da pretensa civilização cristã: “Pai,
perdoa-os, eles são cientes do que não fazem”, mas também pudera,
nem todos contam com o daimon socrático a lhes aconselhar o que
não deve ser feito.
Por exemplo, mendigar incentivo para projetos culturais, esta-
belecer proximidade escusa para aumentar a chance de o projeto ser
aprovado, roer um osso um pouquinho maior e aplaudir extasiado.
- Vamos Nuell, decida o que vai fazer, eu tenho que dar um pulo
no escritório da Sheila, afinal, interrompi a narrativa das suas peri-
pécias na festa de aniversário da Carla, você vem junto?
- Não, não, por hoje a dose de hipócrita conivência social já foi o
bastante, se eu não me cuidar sou vitimado por uma overdose.
- Então está tudo tranquilinho, mais tarde eu ligo para você, dê
cá um beijinho.
Emmanuell caminha para o ponto de ônibus, onde encontra a
Célia, famosa bailarina de dança afro.
- Nuell, é você mesmo?! Quase que não reconheci, também com
essa barriga que Deus deu... Como é que vai rapaz, fiquei sabendo
que você lançou um livro...
- É verdade, foi uma coletânea e eu participei com dois artigos,
nada demais.

212
Lucidez Renitente

O ônibus o salva a tempo, senta-se no fundo, disposto a distrair-


-se com a paisagem, ledo engano, uma vez que a sua frente dois
artistas, um músico e um ator de teatro conversam acaloradamente
sobre a lei de incentivo à cultura.
- Mas ela disse assim mesmo, na dura? Pergunta o ator de
semblante circunspeto, cabelos cortados à moda militar.
- Eu não estou dizendo, mano? Primeiro ela me perguntou se eu
era filiado a algum partido político, respondeu o músico, um jovem
de farta cabeleira.
- Por que será que ela perguntou isso?
- Ora, que pergunta! Ela mesma explicou, dizendo que o nosso
maior problema é ainda acreditar no preceito socrático-platônico,
quando esses conjugam a beleza com a bondade e a benignidade.
Nisso ela foi taxativa, dizendo já ser hora de nós artistas acor-
darmos, a mulher é uma erudita cara! Olha só o poema que ela me
deu com a recomendação de eu ler e refletir com calma, porque o
jogo é assim, quem é filiado ao partido tem as chances da sua postu-
lação ser deferida aumentadas enormemente. Saca só, eu nem sei
que idioma é esse, pela época deve ser latim, o título é assim:

ABY TE SAVATA BOZANA OCHRANILA


Acordem! Raiou o dia
E a angústia tem direito de apossar-se
Do cristão, do judeu e do pagão
Houve indícios (não viram?)
Anunciados textualmente nas Escrituras
O sol recusa o brilho
E pelos caminhos a perfídia
Esparge vermes de todas as origens
O filho trai o pai
Irmão engana irmão
O clero engorda com o hábito

213
Hudson Ribeiro

Em invés de trazer bênçãos


arrastada pela violência
A justiça é expulsa do tribunal
Vamos, levantem-se!
Já dormiram demais.
Walther Von Der Volge Weide (séc. XI)

- Caramba, a mulher é mesmo um erudita! E quem é esse tal de


Walther?
- Não sei, terei que pesquisar, o que eu não entendi foi a exor-
tação final, devemos acordar para combater ou pactuar com esse
estado de coisas?
- Eu se fosse você me preocuparia é com a decisão de se filiar ou
não ao partido, é incrível tudo isso né?
- O que ela explicou foi que se eu fos...
Os dois se levantam para saltar no centro da cidade, o barulho
da freada permite apenas ao Emmanuell ouvir tenuamente o ator
dizendo para o músico:
- O negócio é saber o caminho das pedras...
Emmanuell pensa que, ironicamente, o caminho das pedras se
revela como as pedras no caminho, a de Drummond é apenas uma e
instigava o ser humano a vivenciar a própria experiência, no caso da
lei de incentivo à cultura as pedras são inúmeras e o mais propalado
é a subserviência indecente que conspurca o mais nobre ideal.
O mais indicado seria os órgãos públicos, responsáveis pela
cultura, realizarem concursos independentemente da influência
politiqueira, pois a continuar com essa prática indecorosa todos
sairão perdendo.
A instituição pública que vê o seu espaço transformado em
cenário para inúmeras falcatruas, o público-alvo, que será brin-
dado com obras cujo critério de avaliação sempre será passível de
suspeição, e por fim, o próprio artista, que na ânsia de se deliciar com

214
Lucidez Renitente

um osso maior se vê enredado em uma conjuntura onde a arte não


tem a mínima chance de sobreviver.
Na verdade, a ânsia dos artistas provoca a tentativa de se trocar as
pedras dos caminho pelo caminho das pedras, e Emmanuell, exímio
cartesiano, duvidando perenemente de tudo e de todos, se encontra
sempre a afundar igualmente ao apóstolo Pedro, através da dúvida
metódica transforma o caminho das pedras em pedras no caminho.
E a sensação de submersão é deveras torturante, como martelo
sem cabo atirado em mar revolto, os pulmões comprimidos jorram
sangue pelas narinas, olhos, boca e ouvidos, a tonteira é imensa, em
átimos de segundos toda a sua vida passada se descortina celere-
mente, apenas o tão afamado túnel escuro com uma luz brilhante
em seu final, Emmanuell não avista.
Será que só ele sente o quanto é atroz todo esse processo de dila-
pidação? Ou apenas ainda não aprendeu a fingir satisfatoriamente?
Deve urgentemente entender o que significa acordar...
Mas, se a coisa toda é tão evidente, por que ninguém diz e nem
faz nada? Calma aí cara pálida, a dissimulação mais esmerada é
aquela que, escancaradamente, tenta se dissimular, tudo é compa-
rado a um grande show, exaustivamente ensaiado, mas o ato traz em
si aquela pulsão forçada que é para dar um ar de vivacidade, quando
a vigência é de total subserviência.
Salta do ônibus e atravessa a rua como um sonâmbulo, quase
que é atropelado pelo caminhão que recolhe o lixo, sobe a esca-
daria correndo, o estômago sofrendo espasmos terríveis, vai direto
ao banheiro e vomita fartamente, não apenas o que comeu e bebeu,
vomita tudo o que pensou enquanto pensava sobre a lei de incentivo
à cultura.
Tonto, encostado na parede, tentando recuperar o fôlego,
sentindo o gosto de guarda chuva, ainda resmunga: o caminho das
pedras ou as pedras do caminho? Postular ou pustular?

***
215
Este livro foi composto em Adobe
Caslon Pro pela Editora Multifoco e
impresso em papel offset 75 g/m².

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