Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Lucidez Renitente
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152
CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Patrícia Esteves
REVISÃO
Vitor Cei
EDIÇÃO
Jana Lauxen
Lucidez Renitente
Ribeiro, Hudson
1ª Edição
Abril de 2013
ISBN: 978-85-8273-124-6
Lucidez Renitente
EDITORA MULTIFOCO
Ilha de Vitória, 2013
Agradeço à dona Maria Dulce Alves Ribeiro, (minha
mãe, já encantada), que em conversas interminá-
veis me ensinou a plenificar a sapiência do dito que
diz, “se não tem tu, vai tu mesmo”. À Maria Alice
Pimenta Hübner, minha companheira de jornada
muito amada pela cumplicidade demonstrada desde
sempre. E a todos os meus familiares e amigo (a)s que
suportaram com paciência o tempo de estiagem que
consumi para me plenificar.
Aos que ousam serem lúcido (a)s
mesmo em tempos obscuros...
“Só um sentido de invenção e uma necessidade
intensa de criar, levam o homem a revoltar-se, a
descobrir e a descobrir-se com lucidez”.
Pablo Picasso
apresento à ação
? ! ...?!...? !
Que somos nós afinal?
Senão respostas tornadas indagação?
O alvo tornado tiro
O mar transformado rio
O sonho metamorfoseado ilusão?
11
Hudson Ribeiro
12
Lucidez Renitente
Hudson Ribeiro
13
Hudson Ribeiro
propedêutica
14
Lucidez Renitente
desencontro encontrado
Áfrico, poeta negro retinto como ébano, quase dois metros de altura,
corpo coberto de músculos bem definidos, que o tornam semelhante
a uma cordilheira negríssima e majestosa; causando espanto e tenta-
ção aonde quer que vá, é possuidor de uma gargalhada retumbante,
contagiosa, capaz de suavizar a mais raivosa ira.
Todo o seu enorme corpo balança como se estivesse sofrendo
convulsões e dos olhos brilhantes escorrem lágrimas; nesse ínterim
distribui formidáveis tapas nas costas do incauto interlocutor e, na
ausência deste, aplica sonoras palmadas em suas próprias coxas.
Áfrico sonha (e anuncia em alto e bom som) encontrar uma
mulher que entenda o seu trejeito poético de ser. Vive rindo e rimando,
se compara a um velho marujo, pois sempre ouve o mar marejando,
até mesmo quando se encontra no sertão da mais sólida solidão.
Renitentemente vive a repetir muito bem humorado: “eu sou poeta,
detesto a linha reta, quem desfaz da poesia não presta”, e por aí ia, distri-
buindo singelas poesias, retumbantes gargalhadas e solidárias palmadas.
Áfrico é cônscio de que quando o ser humano ousa conjugar a
razão mais a intuição, livre de todo preconceito disseminado pelo
raciocínio, o que é alcançado é a plenificação da vida. Não há na dinâ-
mica dessa conjugação a pretensão da presunçosa previsibilidade.
O que ocorre é a vigência da projeção das inúmeras possibi-
lidades, engendrando a eternidade do momento presente por ser
singularíssimo, e mesmo que inevitavelmente venha a ser repetido,
jamais será do mesmo modo.
Isso entende as crianças em suas muitas sérias brincadeiras
(relembra Áfrico, dialogando com os seus jardins), isto concebe o
adulto ao ousar viver uma vida autêntica, é por isso que os pressu-
postos exigidos para ser um “poetisa-a-dor”, se traduz como tarefa
nem pouco e nem fácil.
15
Hudson Ribeiro
Posto que seja tarefa para o dia todo e todos os dias, onde o que
se perfaz não é nem o excesso da carência infantil e nem tão pouco a
carência do excesso senil, onde o bastante nunca se basta a si mesmo,
na busca da concepção poética.
Perpassando todo o processo do labor poético há a latência do
nada, sempre presente, irrealizado, mas não irrealizável, desafiando
o poetisa-a-dor, a trazer a linguagem apropriada à fala, uma vez que
é notória a parcimônia das palavras que apenas se presentificam
quando a experiência já se ausentificou.
Para um poetisa-a-dor, como Áfrico, viver é vivenciar a experi-
ência que nada mais é do que trazer à fala a linguagem apropriada,
tanto no sentido de vivenciar a experiência, como também, provocar
a experiência a ser vivenciada. “A minha palavra não me voltará vazia,
mas realizará tudo aquilo para o qual foi enviada. Emunah!”; recita
Áfrico, subitamente tomado por uma espécie de encantamento.
16
Lucidez Renitente
17
Hudson Ribeiro
18
Lucidez Renitente
19
Hudson Ribeiro
Quando a lata de sardinha passa pela ponte, que balança como baila-
rina bêbada, ao sabor do vento de junho, Bertha fecha os olhos, medo
incontrolável de altura, mas se visse a declaração de amor escrita tão
incorretamente na pedra do sapo, imediatamente elaboraria uma carta de
desagravo endereçada ao ilustríssimo ministro da educação, responsabili-
zando-o por atentado tão grave à flor do Lácio, que de tão esculhambada,
pela população mal alfabetizada, já se encontrava à míngua.
A estação ferroviária ressoa nela os mesmos pensamentos que a
rodoviária despertou: o estádio de futebol, ora adormecido, arranca
dela um profundo suspiro de resignação: “êta povo besta, meu
Deus!”; este motorista só pode estar doidão, vai ver encontrou uma
barata em sua magra marmita... Olha só como ele conduz, ultra-
passou até o sinal fechado.
Áfrico salta no ponto da pracinha sem olhar para trás uma
única vez, já ocupadíssimo em cometer mais um poema, dessa feita
homenageando o povo que é sacaneado diariamente pelo transporte
público – chamar-se-á “Lata de Sardinha”:
Lata de sardinha
só a usa quem se alinha
as pessoas como coisas
amontoadas mantidas na linha.
Lata de sardinha
é sempre a mesma ladainha
o político mendiga votos
depois joga o povo na latrina.
20
Lucidez Renitente
21
Hudson Ribeiro
22
Lucidez Renitente
23
Hudson Ribeiro
inocência
Aparentava não ter mais de oito anos, idade em que o ser humano,
muito raramente, anda como um reles mortal, sempre preferindo
pular, rolar, pois achava andar como todo mundo faz, muito cha-
to, aproximou-se do senhor, que morava no apartamento vizinho, o
1984, “o senhor é casado?” momento de surpresa.
Do final do corredor vem um som de uma briga de casal, “fui
casado há muito tempo, mas por que você quer saber?” “nada, é que
a minha mãe vive sozinha e tão tristonha, que pensei, seria bom se
você fosse meu pai”.
Agora o som dos palavrões trocados pelo casal beligerante
corta o ar com uma força tremenda, chega até a doer os ouvidos. O
vizinho do 1984 pega aquela mão minúscula e faz o convite costu-
meiro, “vamos tomar um sorvete?”
Os olhos do menino brilham de contentamento, nem parece
que ouviu o barulho da briga entre os cônjuges, até porque já se
tornara rotineiro.
Ele bem se lembra do dia em que o vizinho do 1984 fora prestar
ajuda e fora escorraçado pelo casal, além do mais o que o garoto
mais queria era um esposo para a sua mãe e um pai para si.
Já sentados no banco da praça ambos silenciosamente saboreiam
o sorvete, o menino arquitetando sensacionais planos matrimoniais,
e o senhor de meia idade, chegando à conclusão de que, mais uma
vez, deveria mudar-se de cidade, e pensa entre raivoso e impotente:
“Êta país pra ter criança bonita, meu Deus!”.
24
Lucidez Renitente
dia de prova
Caramba! Hoje é dia de prova e eu não sei nada, tô igual àquele filó-
sofo, xará do ex-jogador que faleceu com problemas no fígado. Nada
sei da matéria que vai cair.
Gozada a expressão “cair na prova”, e de fato é assim mesmo, vai
cair bem sobre a minha cabeça, e mesmo se eu tivesse estudado daria
no mesmo, não sei como é que alguém pode guardar tantas datas e
tantas fórmulas.
Certa estava àquela professora do primário ao dizer que eu era
burro de pai e mãe – coitada da minha mãe, semelhante a um burro
no trabalho pesado, do meu pai nunca soube de quem se tratava.
Chego a ficar tonto e tão ansioso que preciso urgentemente ir ao
banheiro, o nervosismo alagando a bexiga.
Gozado que guardo com facilidade os nomes das garotas que já
peguei e as que pretendo pegar, e olhe que não são poucas; memo-
rizei com facilidade todas as letras do Racionais Mc’s.
Quando o assunto é futebol me chamam até de enciclopédia
ambulante, pois sei escalações completas, os nomes dos técnicos dos
times e até os nomes dos jogadores que estavam no banco de reserva;
mas quando o assunto é matéria de escola, sei lá, dá um branco...
Quando consigo entender o exemplo, chega a prova, cai uma
exceção à regra e aí me quebra, isso já é perseguição, no fundo não
acredito naquela professora primária.
Como era mesmo o nome dela? Ah! Dona Gertrudes, o comentário
na escola era que ela era assim toda ranzinza, por ter sido abandonada
no altar pelo noivo. Quantas Gertrudes ainda existem na educação?
Melhor voltar aos meus problemas, que não são poucos e nem
fáceis, pior que eu não posso dar mole, reta final e eu tô cheio de
notas vermelhas, tudo bem que o sistema dá uma forcinha com
tantas notas de recuperação e notas de projetos, mas não sei o que
25
Hudson Ribeiro
26
Lucidez Renitente
opostos
27
Hudson Ribeiro
28
Lucidez Renitente
acorda amor!
29
Hudson Ribeiro
30
Lucidez Renitente
31
Hudson Ribeiro
32
Lucidez Renitente
a cadência do ato
33
Hudson Ribeiro
34
Lucidez Renitente
tal gabriela
Ela não perde tempo, parece uma metralhadora giratória, tanto com
as palavras como com o próprio corpo, “fale agora o que ele disse de
mim”, sorriso provocativo, emoldurado por um olhar brilhante, neste
momento direcionado à pedagoga, mas dá pra perceber que amplia a
abrangência para, também, colocar a coordenadora em sua circunvisão.
Esta leva alguns segundos para entender o que se passa, até se
lembrar de que comentara com a colega de como aquela aluna o
impressionava pela inteligência, sociabilidade e por uma implicância
irritante com a presidente da república, acusando-a de homossexual,
de querer liberar a maconha, de querer acabar com o seguro desem-
prego, de querer colocar os presos na rua.
Em relação a essa última acusação, a aluna, que estava toda
sorrisos, chegara ao requinte da falácia, ao dizer que se era assim,
então, cometeria assassinato na pessoa da presidente, depois se
beneficiaria da lei que solta os presos
“Ah, comentei com a colega aqui a seu respeito, acho você
brilhante, pena ainda ter necessidade de brincar”, como em um jogo
de tênis, resposta como rebatida, “não é nada disso, pô! É que esse
negócio de ficar pensando muito me dá dor de cabeça e ânsias de
vômito, sem brincadeira nenhuma, mas eu faço as coisas direitinhas,
pode perguntar aos professores”. “Claro que você faz, o fato é como
se você fosse um carro com capacidade de 180, mas só vai até os
120”, a pedagoga é mais contundente, “por que você faz assim?”.
Por milésimo de segundo, ela parece acuada, mas é só impressão,
surpreendentemente, pois conta com apenas dezesseis anos, sai
pulando e cantando a música de Gabriela, “eu nasci assim, eu cresci
assim...”; a pedagoga, iniciante na profissão olha abismada, enquanto
a coordenadora com mais de vinte anos de experiência, sorri bene-
volente e comenta; “essa menina é assim desde a época do primário”.
35
Hudson Ribeiro
cabeção
Tinha uma cabeça enorme, daí que desde criança poucas pessoas
sabiam que se chamava Arnaldo das Graças, na verdade, até os que
sabiam o seu nome ou apelido de família, “Naldinho”, o chamavam
mesmo era de Cabeção.
Quando criança, nas brincadeiras em um bairro da periferia da
Grande Vitória, entrou em várias escaramuças por causa do apelido.
Tudo era culpa da sua enorme cabeça; e a meninada não tinha
piedade, se o time perdia na pelada jogada na rua mesmo, algum
engraçadinho logo dizia, “também, com esse cabeção”, na hora do
jogar pião, se o pião não rodava, “também com esse cabeção”; no
jogo de bolinha de gude, se ficava preso na barca, “também, com
esse cabeção”.
Quando iam tomar banho na maré e ele ficava com medo de se
afogar, “também com esse cabeção”.
Até na escola onde a sua enorme cabeça poderia fazer algum
sucesso já que era um lugar onde guardar coisas na cabeça era impe-
rativo, a professora não perdoava, “não dá pra entender, você com um
cabeção desses e nada”.
Demorou muito até aprender que quanto mais se zangava, mais
atraía as gozações, algumas de um mau gosto incrível, como daquela
vez em que tomou uma geral da polícia e o sargento invocou com o
tamanho descomunal da sua cabeça, mas isso ele preferia nem lembrar.
O que importava é que com o passar do tempo ele descobriu o
seu talento como ritmista da escola de samba do bairro, e realmente
ele era um exímio tocador de cuíca.
Com isso ganhou o respeito da comunidade, até trocaram
o “Cabeção” pela forma mais amena de “Cabeça”, com algumas
pessoas, na tentativa de serem carinhosas exagerarem até o “cabe-
cinha”, o que convenhamos, é demais, né?
36
Lucidez Renitente
37
Hudson Ribeiro
firme e forte?
E aí meu irmão, como vai essa força? Sentindo você meio à deriva,
o que tá pegando?
Ih cara, quando é assim... Comigo é a mesma coisa, a nega véia
acorda mal, o meu céu pode está o mais límpido que for, nubla na
hora; o passarinho verde que cantava exuberante em minha cabeça
emudece de repente.
É duro! Menos mal que a sua nega ainda fala, e a minha que faz
um silêncio tão grande e tão profundo que chega até doer dentro da
gente... Pergunto mais de cem vezes e a resposta é sempre a mesma,
dita em uma voz sem tom, “foi nada não, agorinha mesmo passa”.
Ora, me diga, então, meu irmão de rocha, se não foi nada, como é
que vai passar? Aí é a minha vez de ficar amuado, ela tenta disfarçar com
sorriso, mas é difícil um disfarce com sorriso atravessado, esforço-me
para fazer as minhas tarefas como forma de me distrair, dê uma olhada
aqui nas minhas meias, tá vendo? Cores diferentes e não tô seguindo
nenhuma moda não; cheguei aqui com a camisa vestida pelo lado do
avesso e toda amarrotada, a passadinha ficou bem em cima da cama.
E não é só isso mano, antes de sair me confundi e temperei a salada
com detergente, também, embalagens parecidas dão nisso, ao vir pra cá,
acabei pegando o ônibus errado, ao invés de pegar o Jardim da Penha,
peguei o Bairro da Penha, quase que me meto em uma confusão das
grandes, ainda bem que um dos rapazes lá já foi aluno meu e me indicou
o caminho, recomendando-me ter mais cuidados, porque os tempos estão
doidos, mas sei que tudo isso vai passar mano meu, podes crer que vai.
Veja só que coisa, você se lembra de quando jurávamos que casa-
mento era pra homem cansado de viver? Pois então, cada besteira
que a gente fala...
Hoje nem me imagino sem a minha nega veia, você veja que só
foi ela se entristecer, para o meu céu nublar, imagina o resto.
38
Lucidez Renitente
atalho
39
Hudson Ribeiro
40
Lucidez Renitente
louca
Não se lembra mais do nome dela, na verdade nem das suas feições, era
muito pequenino e aquelas coisas eram reservadas ao mundo dos adultos.
Sabe que durante alguns dias ela agiu feito louca agressiva,
atacando todos os que passavam na estrada, bastava portarem qual-
quer bolsa ou embrulho. Também... Doaram os seus filhos, todos
ainda no período da amamentação.
Lembra-se que ao final do dia de trabalho, após o apito da fábrica,
os homens se reuniram na quitanda da dona Lícia, a maioria compa-
receu, exceto o seu Alvarenga, que não abandona a sua pescaria por
nada desse mundo e o seu Tavares, sexta-feira era dia de forró na
capital e ele não perdia um, para desgosto de dona Aloir.
Lá estavam o Sérgio da Leda, o Besouro da Celi, o Bruno da
Olga, o Oswaldo da Aldir, o Alberto da Dora, e até seu Francisco,
recém-separado de dona Marly. Bem que tentou entrar na quitanda,
mas foi barrado pelo Laurão, com seu inseparável radinho de pilha
grudado à orelha e as suas pernas de elefante.
De onde estava podia ouvir frases soltas trazidas pela corrente de ar,
que mais o confundia do que esclarecia: “já esperamos demais”, “ e se ataca
uma das nossas mulheres?”, “pior, e se ataca uma das nossas crianças?”.
Ao final da reunião, alguns ficaram jogando bisca e bebendo
catuaba, traziam um semblante sério, até tristonho, nem o seu
Besouro, que gostava de fazer presepadas para o delírio da garotada
estava para brincadeiras.
No outro dia, de manhãzinha, um sábado nublado, de uma fresta
da janela mantida fechada pela mãe, viu quando os homens esti-
caram uma corda e um deles ficou por detrás de uma árvore, sob a
qual colocaram bebida e uma sacola cheia de panos velhos.
A partir daquela data o respeito que tinha pelos adultos nunca
mais foi o mesmo.
41
Hudson Ribeiro
a carta
42
Lucidez Renitente
43
Hudson Ribeiro
44
Lucidez Renitente
sapiência
Eu sei, você sabe, por maior o saber não alcança o mais fundamental
e inadiável, refiro-me à origem das origens, se não sabemos de onde
viemos, todo o pensado sobre nós mesmos sofre deformações com-
prometedoras da nossa finalidade, afinal.
Então, por não saber, ainda não viemos ao mundo, e pelo fato de
não termos ainda vindos, o nosso modo de ser não é o modo nosso;
o que implica admitirmos a total ignorância da nossa finalidade.
Além da consumação dos tempos, a finalidade acena com vertigens
absurdas de tão dantescas.
O pensamento pensando a si mesmo, galgando uma espiral
inusitada, círculo que não se repete, mesmo realizando tudo de novo.
Muitas vezes o pensamento se recusa a pensar e fica boiando em
um mar desconhecido e a sensação de desamparo é tamanha, que
o menor barulho soa como um tiro de canhão em pleno mosteiro.
Sei que você sabe, todo saber ainda é insuficiente para responder
a questão – o que reinava antes do antes de tudo se constituir? E o que
restará após o após, quando tudo e todos tiverem se desintegrado?
Ah, eu sei, você sabe... E não me olhe com essa cara de besta não,
querendo dá uma de “Mané sem braço”, desde a primeira vez que a
vi sorrindo e o brilho dos olhos emitiram um brilho velho conhecido
meu, eu soube que você sabe, a não ser que...
Não, isso é doideira da minha parte, certo que Eles estão bem
sofisticados, mas a esse ponto seria impossível.
Quanto a sua proposta de termos um caso sinto muito, mas a
minha resposta deve ser não, estou casado há pouco tempo e amo
imensamente a minha mulher, aliás, para o seu governo, a gravidez
dela foi confirmada a semana passada, mas de todas as razões, sem
dúvida alguma, o fato de você ter apenas catorze anos é o que pesa
mais em minha decisão de me transferir de escola, antes que a carne
45
Hudson Ribeiro
46
Lucidez Renitente
muralhas intransponíveis
47
Hudson Ribeiro
48
Lucidez Renitente
assombração
49
Hudson Ribeiro
50
Lucidez Renitente
a culpa é da dialética
51
Hudson Ribeiro
purificando a estirpe
52
Lucidez Renitente
53
Hudson Ribeiro
54
Lucidez Renitente
nos conformes
Sinto muito mesmo minha senhora, mas quem tem poder de de-
cisão aqui é o Dr. Pereira, e hoje ele saiu mais cedo, agora só na
segunda, deixou até recado para não ser importunado sob hipótese
nenhuma. Parece que foi pescar lá nas terras da filha.
A senhora diz isso porque não conhece o doutor, com ele basta
escrever errado para o couro comer solto, pra senhora ter uma ideia
ele chegou a ocupar uma alta patente na época da invasão dos gafa-
nhotos, tem muita gente por aí que treme só de ouvir o nome dele,.
Outros tremem devido às sequelas deixadas pelos interrogató-
rios mais enérgicos, por essa época o doutor tinha um cão mastim
napolitano enorme, que o ajudava na difícil tarefa que exercia. A
senhora podia fazer o seguinte, falar comigo qual é o assunto, deixar
um meio para eu contatá-la e na segunda-feira mesmo, logo cedo
repasso o seu recado.
Se a senhora soubesse como ultimamente vem gente atrás do
doutor Pereira, só vendo pra crer, ainda mais agora, com as elei-
ções se aproximando, até pessoas que queriam a prisão dele, hoje o
chamam de exemplar da civilidade patriótica.
Ontem mesmo, parou um carrão aí na frente e saltaram uns
figurões, todos rosados, barrigudinhos e sorrisos largos, conver-
saram a tarde toda com o doutor Pereira, tive até que cancelar vários
compromissos.
Mas o doutor é cobra criada, a senhora acredita que o patrão é
capaz de ouvir toda a bajulação e só responder com um sorriso inde-
cifrável no olhar, como se medisse o tempo que o tempo vai gastar
para desenhar a nova cena?
Apenas quando a senhora entregou-lhe o cartão de visita, onde
se lia o nome de uma firma de exportações, que ele pôde notar o
quanto as mãos dela tremiam.
55
Hudson Ribeiro
bonde
56
Lucidez Renitente
mediana
Entra na sala, coloca ordem na turma, manda uns três pra coor-
denação, faz a chamada não se utilizando dos nomes, mas sim dos
números, pois assim fica mais imparcial e eficiente.
Cobra o dever da aula passada, tira pontos de quem não fez,
indica a página da lição do dia, manda uns dois alunos pra coorde-
nação, não trouxeram o livro, começa a explicação do assunto, fala
de rios, montanhas, lagos, mares, vulcões, vegetações, formatos de
nuvens, placas tectônicas, limites fronteiriços, nomes de continentes,
países, cidades, distritos; em uma voz que já denuncia a formação
calosa nas cordas vocais.
O sinal bate, os alunos respiram aliviados, mas ela utiliza ainda uns
dez minutos da aula da outra professora para passar o dever de casa.
Ao fundo da sala, dois alunos repetentes, com trejeitos dos
que já ultrapassaram a linha sensata da moral e dos bons costumes
conversam baixinho, respeitando o acordo tácito que tem com a
professora:
“Essa professora é gozada, na matéria dela não entra o ser
humano não né?”, “coube a nós uma baita de uma mediana, isso sim,
lembra-se do professor Coelhão?”, “Ih, nem te contei, encontrei com
ele lá na praia de Anchieta, estávamos a Keila e eu, ele estava com
uma rapaziada do barulho, um monte de negrões com cabelos rasta-
fari, chegou e me deu a maior moral, com aquela risada escandalosa
dele, segurou a mão da Keila e falou pra ela cuidar de mim, que eu
era uma pessoa de muito valor”.
“Você acha que eu sou uma pessoa de muito valor, parceiro?”,
“Bem, medíocre você ainda não é, mas pelo andar da carruagem, com
esse tipo de aula que nos aplicam, não sei por quanto tempo não”.
“E por falar nisso, você sabe quais são os afluentes do rio
Amazonas?”.
57
Hudson Ribeiro
espera
Esperou por ele até muitas horas depois da hora combinada, da va-
randa da sua casa viu e ouviu cenas, tão habituais, que até se fechasse
os olhos enxergaria e ouviria tudo nitidamente, apenas com os sen-
tidos lapidados pelos muitos anos passados naquela sacada.
Ao entardecer a fábrica apitou como um animal agonizante e a
rua defronte, deserta até àquela hora, viu-se subitamente povoada
por operários de expressões cansadas, cobertos de minério de ferro,
alguns poucos pedalando a bicicleta sem quadro e com freio contra
pedal, a maioria vinha caminhando com passos apressados
Em uma ansiedade marcante, não como quem vai ao encontro
de algo ou alguém, mas como quem foge desesperadamente de algo
e de alguém, nos ouvidos de todos, o uivo do animal agonizante
aterroriza ao lembrar que amanhã tudo recomeça...
Logo após a rua mergulhar outra vez no silêncio, antes mesmo
de ouvir, ela pressentiu, com o arrepio dos cabelos do corpo, as bada-
ladas do sino de cobre da paróquia, sob a responsabilidade do padre
Edmilson, e a rua foi tomada por inúmeros fiéis que iam ouvir a
palavra de Deus, através do seu servo, obeso e soberbo.
Muitos já dormiam quando ela começou a sentir as pálpebras
cansadas, ainda pode ouvir as conversas esparsas dos retardatários
dos frequentadores do bar da Leonor. Como sempre fazia, esperou
por mais meia hora, após o grupo de trabalhadores passar se enco-
lhendo devido ao frio noturno para encarar o turno da zero hora.
Dá um profundo suspiro e balbucia quase sem emoção: É,
alguma coisa deve ter acontecido de novo, para ele não vir.
58
Lucidez Renitente
piripaqui
59
Hudson Ribeiro
o incendiário romântico
60
Lucidez Renitente
61
Hudson Ribeiro
62
Lucidez Renitente
- ... Não se preocupe, vou ficar bem, tomei um lexotan, diz que
eu mandei um beijão para todos.
Vai até à varanda e contempla os poucos carros, que passam em
alta velocidade, enquanto saboreia um cigarro, resolve acabar de ler
a carta antes de tomar banho.
As outras páginas da carta se parecem mais com um rascunho
e trazem a data do dia de ontem, sem referência alguma acerca da
localidade.
Eu gostaria de saber se ela percebe que se eu agir conforme ela
deseja isso significará a minha morte.
Então, estou diante de duas possibilidades, ou ela de tão fixada
em seu próprio umbigo e aprisionada pelo vício do crack não percebe
as exigências de um relacionamento ou o que seria terrível, a convi-
vência com uma pessoa tão sem escrúpulos, como o seu ex-compa-
nheiro, tornou-a insensível aos sonhos dos outros.
Eu me conheço muito bem e sei que se alguém chegar a ler esta
carta é que tomei a decisão definitiva; ou eu aceito esta situação
como natural e, por conseguinte, decreto a morte do meu sonho de
viver da música, ou eu admito que os meus músculos são poucos e,
mesmo com o coração sangrando, siga o meu caminho muito longe
do dela.
O que eu não posso mais é ficar impressionado por promessas
de mudanças que nunca se realizam, tanta gente precisando de luz e
a minha sendo desperdiçada debaixo da estreita cama dela...
Muitas coisas não foram ditas, mas confio em sua perspicácia
para compreender nas entrelinhas alguns dos fatos que chegaram às
raias da humilhação, atos tão cruéis que me sinto envergonhado de
contar a você, afinal você é a minha cunhada, o que eu sinto, é uma
espécie de nó no peito, chego a tremer com a perspectiva do futuro,
o peso da decisão me assusta, mas...
A carta se interrompia neste ponto; naquela sexta-feira, a das
Dores custou a dormir, dispensou o lexotan dela de cada noite e
63
Hudson Ribeiro
64
Lucidez Renitente
roubada
65
Hudson Ribeiro
cego
E como você faz para pegar ônibus? Sei... Quero ver o dia em que
seguir um conhecido e acabar em um lugar sinistro. Como assim?
Você já foi parar no bairro “Cantinho do Céu”? Como é que está
tudo aquilo lá agora?
Porque na minha época era uma barra pesada danada, eu mais os
companheiros de guerra, Olindo treme-treme, Brown da colina e o
Bebé da Matilde, mas agora deve ter mudado tudo mesmo, também,
já faz tanto tempo, tanta coisa se passou, tanta gente desaparecida.
Eu mesmo já não sou nem a metade do que eu era, com essa
perna entrevada, se não fosse essa dúzia de filhos que tenho espa-
lhada pelo morro, ninguém acreditaria que esse frangalho que está
aqui, trata-se do ex-temível Zequinha fura-olho. Às vezes penso se
não teria sido melhor eu ter afundado também, naquela confusão
desembestada, tudo por causa daquela paranaense caolha, bons
tempos aqueles eh, eh, eh.
Volta e meia sinto uma saudade arretada; o Bebé, o Olindo e o
Brown, depois fiquei sabendo, que a tal paranaense era uma tremenda
de uma Drag Queen, fugitiva do seu estado natal por envenenar os
seus desafetos com uma moqueca irresistível de baiacu, os corpos
dos meus companheiros ficaram tão deformados, que quase não os
reconheci; me deu um trabalho danado, mas alcancei a desgraçada
já em terras paraguaias.
A briga foi feia, além de tudo a bicha lutava capoeira igual a
baiano, acabou me acertando a perna de jeito, mas ela não vai enve-
nenar mais ninguém, isso o José Moraes Mota garante com toda
certeza.
Agora, voltando ao assunto, por que você não aprende a ler e
para de ser teleguiado pelos outros?
66
Lucidez Renitente
torcida
67
Hudson Ribeiro
68
Lucidez Renitente
aconchego
69
Hudson Ribeiro
70
Lucidez Renitente
a sogra do oseias
Noêmia era o nome dela, para ser mais exato, Noêmia Romana
Nogueira, que após o casamento com Frederico Helsen, filho de
legítimos prussianos, teve o Helsen acrescentado ao seu sobrenome.
Uma bela mulher no alto dos seus quarenta e cinco anos, bibliote-
cária por formação acadêmica e dona de casa de fato.
Com um corpo de formas perfeitas, vasta cabeleira ruiva, olhos
repuxados de gata siamesa, seios opulentos e pontudos, parecia desa-
fiar a erosão do tempo e fazia inveja a muitas jovenzinhas. Das gravi-
dezes que tivera no curto período de três anos, uma foi frustrada em
consequência de uma eclampse, e a outra vingara bela e maravilhosa
e respondia pelo nome de Lorena Romana Helsen.
Frederico Helsen era um homem fisicamente insignificante,
magérrimo e altíssimo, com sua cara de coruja compunha uma figura
tão desgraciosa quanto uma garça manca, posto que o Fred, como os
familiares o tratavam, andava mancando com a perna direita, vítima
de uma poliomielite herdada dos tempos de criança em cidade do
interior.
Enquanto a Noêmia era pura labareda enlouquecida, um poço
inesgotável de sensualidade, que apenas com o seu gingado caden-
ciado e a sua gargalhada fácil e envolvente fazia até o padre respon-
sável pela paróquia local contestar veemente o voto de castidade,
masturbando-se freneticamente todas as vezes que a via.
Fred, entretanto, refletindo a sua profissão de exímio economista,
era metódico como um prussiano e até casmurro. De fato, durante
os seus cinquenta e sete anos de vida poucas pessoas privaram de
um sorriso de Frederico Helsen, é que ele tinha um desejo e uma
suspeita que lentamente o carcomiam.
A diferença entre os cônjuges determinou em grande parte
oacerto da relação. Por ter se dedicado inteiramente aos estudos,
71
Hudson Ribeiro
72
Lucidez Renitente
73
Hudson Ribeiro
satisfação
Uma vez a cada vinte e seis mil anos, o senhor do universo enviava
o seu emissário para averiguar as quantas iam os mundos habita-
dos galáxias afora. Dessa vez o clima de expectativa era imenso,
por conta de um dos planetas, que apesar da sua beleza exuberante
em tons azulados, contando com uma diversificada flora e fauna,
era conhecido por todo o universo como a favela do cosmo, tal a
miséria reinante em suas fronteiras permanentemente em estado
de guerra.
Também era excessiva a carência de comida e de pensamentos,
a falta de comida tornava os seus habitantes animais violentos e
imprevisíveis; e a falta de pensamento tornava o aprisionamento,
o egoísmo e a desigualdade os sustentáculos da convivência belige-
rante, que imperava naquele planeta.
O responsável em administrar aquele lugar era alguém que
percorrera todos os degraus da ascensão funcional, com a peculiari-
dade de ter sido um dos mais iluminados incendiários sociais que as
galáxias tinham notícias, no seu tempo de militância nos sindicatos
e nas associações de bairro. E hoje executava o ofício de bombeiro
da maneira mais fleumática possível.
O dilema que ele se encontrava dizia respeito aos relatórios, que
deveria entregar ao emissário universal, pensou, pensou, pensou,
relembrou do seu tempo de incendiário e elaborou a solução, que
considerou extraordinária, batizada de “ajuste de rota”, na verdade,
era uma reedição mais sofisticada da medida que tomara quando há
alguns anos atrás, era diretor de um grande condomínio e conven-
cera ao seu chefe amenizar os dados catastróficos do relatório anual,
e para tanto, usou e abusou do que chamava de ”eufemismo ativo”.
De modo que o emissário ficou muito impressionado com aquele
planeta, que em tão curto espaço de tempo, passara de favela do
74
Lucidez Renitente
75
Hudson Ribeiro
saudades
76
Lucidez Renitente
juca
Melhor é o Juca ir lá, falar com ele, afinal cursaram a faculdade jun-
tos, moraram na mesma república, dizem que até namoraram a mes-
ma Lika da Pedagogia.
lembra-se daquele mulherão? Então, o Juca e Essezinho aí,
socializaram-na, se bem que naquela época era um vale tudo danado.
Por isso é melhor mandar o Juca, se a Lika pudesse ir, seria melhor,
mas não no estado em que ela se encontra...
Diga ao Juca para pegar de leve, mas deixar claro que o caldo pode
engrossar a qualquer momento. E que já fomos pacientes demais.
Pô! Não é a primeira nem a segunda vez que essezinho tenta
nos ferrar, e já tem gente nossa com o dedo coçando na direção dele.
Tome, leia essa carta aqui, do nosso colega Gonzales, leia com
calma, digeres devagar, que é indigesta.
Beba essa aqui, é lá do interior do Espírito Santo, alambique artesanal,
a minha cunhada trouxe ontem. Leu? Entendeu como é o esquema?
Essezinho fica aí pousando de galã comportado de braços dados
com a tradição, família e propriedade, mas está afundado até o
pescoço na merda.
O imbecil nem desconfia que o gerente do hotel onde ele vive,
à custa do contribuinte e dos favores concebidos pela esposa do
patrão, dono do jornal onde milita, publicando esses panfletos trans-
vestidos de matérias sérias, é o nosso prestimoso colega Gonzales,
um venezuelano porreta que veio para o Brasil pelo amor da passista
Maristela, destaque da escola de samba Novo Império.
Então é dizer para o Juca, use o seu charme e no meio da
conversa, deixe escapar quantas vezes achar necessário a expressão
“beijinho doce”.
Ele vai entender tudo, caso se faça de besta, o jeito então é
convocar os nossos rapazes mais resolutos.
77
Hudson Ribeiro
ficante
78
Lucidez Renitente
lista
Quem você colocaria em sua lista? Espere, deixe-me anotar para não
confundir. Da última vez você falou Pedro, eu pensei que fosse o da
padaria, mas era mesmo o Pedro Xarope, serei mais cuidadoso dessa vez.
Vamos lá, Silvinha, sua irmã, você me disse que ela foi a primeira
pessoa a falar em disco voador com você; vê se isso é coisa pra se
dizer a uma criança, pior que você acreditou...
Dona Odília, não foi aquela vizinha sua que tentou se matar
cortando o próprio pulso? Também, suportar um esposo tão violento
como aquele... Não sabia que você tinha queda para suicida, ainda
mais mal sucedida.
Seu Felisberto, o que matou o próprio irmão por uma questão de
amor? A vida é cheia de curvas, com tantas mulheres no mundo e o
Felisberto tinha logo que se apaixonar pela própria cunhada?
É, você tem um critério bem estranho.
Ah, esse não podia faltar, Dinho Tril, que um dia desfilou doidão
pelas ruas do bairro, peladão, peladão, segurando uma bandeira, onde
se lia: “todo mundo nu, oba!”; Até que enfim um bem humorado.
Ainda hoje no bairro a história contada é que ele ficou doido de
tanto estudar. O velho Onofre, esse eu também levaria, sofrer como
ele sofreu na época da invasão dos gafanhotos.
Dizem que tomou tantas pancadas na cabeça, que passa o tempo
todo repetindo: “martelo foi-se, retornaram com o açoite!”, “martelo
foi-se, retornaram com o açoite!”, “martelo foi-se, retornaram com o
açoite!”. Você sabe que ele é o tio da Renata, né?
Estamos chegando ao derradeiro, ah sim, claro, o Tonico! Êta
menino mais levado da breca, inteligente como ele só, dizem que
puxou ao avô, um marinheiro africano.
Sabe o que ele me perguntou um dia desses? Por que o padrinho
não ligava mais pra ele, só metido em fazer listas e mais listas...
79
Hudson Ribeiro
80
Lucidez Renitente
contingências necessárias
81
Hudson Ribeiro
82
Lucidez Renitente
83
Hudson Ribeiro
84
Lucidez Renitente
85
Hudson Ribeiro
86
Lucidez Renitente
87
Hudson Ribeiro
88
Lucidez Renitente
augusta
89
Hudson Ribeiro
90
Lucidez Renitente
ofício arriscado
91
Hudson Ribeiro
92
Lucidez Renitente
direita
93
Hudson Ribeiro
94
Lucidez Renitente
geração abortada
95
Hudson Ribeiro
96
Lucidez Renitente
97
Hudson Ribeiro
98
Lucidez Renitente
esclerose
99
Hudson Ribeiro
100
Lucidez Renitente
frenesi
101
Hudson Ribeiro
maura
102
Lucidez Renitente
103
Hudson Ribeiro
praça
104
Lucidez Renitente
105
Hudson Ribeiro
mandinga
106
Lucidez Renitente
E dessas coisas ela entende muito bem, desde quando nós morá-
vamos em Nazareth das Farinhas, e ela teve a cabeça raspada pela
grande mãe de santo, Sinhazinha de Ogum.
107
Hudson Ribeiro
doutor adamastor
108
Lucidez Renitente
itinerário
Hoje tem cada vez mais e melhor consciência de que aquele tempo foi
uma dádiva em sua vida, no primeiro ano da década de oitenta, o país
ainda vivia sob o espectro do derretimento da enorme camada de chumbo,
erguida e solidificada na época da invasão dos gafanhotos sedentos e esfo-
meados, a liberdade tão ansiada, embora concedida em um ritmo lento,
gradual e seguro, alcançava o modo de ser dos brasileiros de maneira
vertiginosa, abrupta e consequentemente semeando a insegurança.
Lembro-me das bancas de revistas como reflexos mais visíveis
dessa época onde o chumbo se derretia, mas o país não contava com
líderes forjados em material mais nobre, daí que a política estava
entregue a homens de feitio do mais ordinário.
Coletivamente, o seu grupo de atividade política sentiu profun-
damente a abertura política como uma lufada de vento tão forte,
que pôs por terra todas as bandeiras deles erguidas em nome da
liberdade, e até o irmão do Henfil ao retornar do exílio, revelou-se
muito menor do que na música, eternizada pela pimentinha gaúcha,
cristalizada em nossa imaginação, e assim também com todos os
outros, os heróis dele, de carne e osso, não eram os mesmos acalen-
tados durante anos em seus sonhos e petições.
Particularmente, após dois anos de tentativa de manter um relacio-
namento miscigenado, em uma época que até era politicamente correto
ser racista, tanto os seus como os músculos da Amanda demonstraram
ser frágeis diante de tantas intrigas, tramoias e escorregadios.
Foi um tempo em que viveu com o espírito afastado de si, e
nesse estado aprendeu muitas coisas extraordinárias, e até por isso
mesmo, o tempo todo esteve flertando com a loucura.
O seu encontro com a Alma Grande de um Pássaro Soberano
significou para ele o início da retomada de si mesmo, claro que isso
durou décadas.
109
Hudson Ribeiro
110
Lucidez Renitente
que marchinha de carnaval já era, o negócio agora era hip hop, funk,
brega ou axé.
Ele até que tentara, conseguira com um amigo, que tem um
estúdio, gravar um CD demo, primeiramente mostrou à Ana Clara
e depois aos amigos da pelada, em ambas as ocasiões, anunciou com
ar de mistério, que havia descoberto um talento excepcional, desco-
nhecido da mídia. Em ambas às vezes os ouvintes foram duros em
suas críticas: “as letras estão até bonitinhas, mas esse ritmo tá mais
pra marchinha de carnaval...”, a sua mulher foi mais taxativa, “Lalá,
você já havia me prometido largar mão disso, deixe disso homem!
Eu amo você desse seu jeito mesmo”. Mas quando a Ana viu aqueles
olhos de bebê desmamado, concordou que ao menos ele participasse
do concurso anual de marchinhas carnavalescas, promovido pela
prefeitura local.
111
Hudson Ribeiro
a terra é doidona
112
Lucidez Renitente
113
Hudson Ribeiro
114
Lucidez Renitente
115
Hudson Ribeiro
a chuva
116
Lucidez Renitente
pressão
Isso é jogo de caipira meu jovem, antes mesmo do cara assumir, ele
é obrigado a se comprometer a não mexer em nada, ou melhor, se
compromete em mexer em tudo só pra deixar como era antes, quan-
do não pior...
Lembra-se das promessas? Viu quantos problemas e todos
dizendo que tinham a solução? Pois então, eleições passaram e os
problemas continuam aí, crescendo cada vez mais.
Às vezes dá vontade de chorar, não só com o tamanho do sofri-
mento desse povo, mas também pela idiotice, todo mundo sabe
muito mesmo é de novela e de futebol, todo o restante jogam nas
costas de Deus, e isso sem a menor cerimônia.
Um dia desses fui visitar uns amigos do meu antigo trabalho,
você acredita que eu fiquei plantado quarenta e cinco minutos espe-
rando o ônibus?
A semana passada mesmo, a dona Eulália, vizinha nossa aqui no
morro, precisou ser internada e ficou jogada no corredor do hospital
por mais de um dia, se não fosse a doutora Lao Tsé, aquela chine-
sinha boazinha, hora dessas a dona Eulália estava morta.
E a segurança, nem me fale, o Claudino foi assaltado em plena
luz do dia, como é que pode uma coisa dessas?
A minha filha é professora e me explicou direitinho como é esse
negócio de você finge que me paga eu finjo que trabalho, um monte
de estudantes que não sabem patavina de nada, serão trabalhadores
subalternos com um belo diploma do ensino médio para exibição.
Olha meu jovem, se a praça não tivesse tomada pelos usuários de
crack, bem que eu apreciaria o seu convite para um passeio.
117
Hudson Ribeiro
lucidez renitente
118
Lucidez Renitente
119
Hudson Ribeiro
120
Lucidez Renitente
Filho meu, tome esse relógio que pertenceu ao seu bisavô, repare
que ele marca o tempo ao contrário, que é para sinalizar o quanto falta
para a consumação de tudo, até lá filho meu, se você decidir seguir
por essa estrada árdua, nunca abandone a lucidez renitente, e nem a
troque por nada no mundo, quando chegar a sua própria consumação,
escolha um da nossa estirpe e repasse para ele as palavras que acabei
de falar para você, agora vá chamar a minha mulher, devo explicar pra
ela por que escolhi você e não o seu irmão mais velho.
121
Hudson Ribeiro
vácuo
122
Lucidez Renitente
pesadelo
123
Hudson Ribeiro
ciganinha
124
Lucidez Renitente
escolha difícil
Assim de cabeça é difícil dizer, olha, quem era bom pra essas coisas
de nomes e fatos era o mano Euclides, mas esse você sabe né? Pegou
uma agonia de conhecer o mundo, até que mainha o liberou, cho-
rando horrores pelos cantos, mas liberou.
Naquela época eu era garoto ainda, lembro-me por alto, tinha
um tal de Clério mãozona, que era o terror da garotada, onde hoje é
o aeroporto tinha um monte de campo de futebol, o prazer desse tal
de Clerizão, era dar uma de juiz só pra babar o jogo.
Apitava tudo invertidamente, inventava regras, ficava de costas para
o campo, fazendo gracinhas para a torcida, e ái daquele que reclamasse,
você acredita que ele fazia tudo isso com uma enorme peixeira na cintura?
Outro espírito de porco era o Zezão pescador, que de pescador
mesmo não tinha nada, o que sabia fazer era meter a mão nos
produtos da nossa pescaria, e se olhássemos de cara feia, nos jogava
dentro da maré morrendo de rir, indo em direção ao bar do Sr. Luiz
para fazer farra com o nosso trabalho.
O Boi Sonso gostava mesmo era de briga, dizia-se técnico de
luta livre, chegava ao ponto de espalhar mexericos só para criar um
clima de disputa, depois ele organizava as apostas, o apelido ele
ganhou por sempre andar sozinho, ninguém confiava nele.
Bem, até onde sei, o Clério foi morto enquanto tomava sol
banho de sol na praça, quando já contava setenta e oito anos, com o
saco do tamanho de um melão.
O Zezão caiu na besteira de jogar tarrafa embaixo da ponte,
inexperiente, acabou preso na corda e no fundo da maré.
O Boi Sonso abusou da sorte, mais de vinte jovens do bairro vizinho
se juntaram e deram uma surra nele de se ouvir os ossos quebrando.
Claro que existiram muitos outros, mas de cabeça assim é difícil,
por onde andará o mano Euclides?
125
Hudson Ribeiro
josué
126
Lucidez Renitente
mesmice domicial
127
Hudson Ribeiro
128
Lucidez Renitente
129
Hudson Ribeiro
labirinto
130
Lucidez Renitente
tocaia
131
Hudson Ribeiro
132
Lucidez Renitente
jogo
133
Hudson Ribeiro
berta
Bem que a Berta sentiu uma vontade imensa de olhar para trás, mas
resistiu bravamente ao se lembrar da promessa que fizera a sua mãe
em seu leito de morte, seria cuidadosa ao extremo ao escolher o pai
dos seus filhos, porque o dela mesmo se revelou um grande canalha,
pois já era casado e pai de três filhos em sua terra natal.
A descoberta realizada através de uma carta anônima foi a causa
da morte da sua mãe, com a idade de 31 anos e cheia de sonhos
reprimidos.
Pisou com mais força ainda e entrou na biblioteca quase
correndo, com um enorme aperto no coração, procurou uma mesa
mais afastada e se afundou no estudo com uma vontade descomunal,
quando saiu já era final de tarde.
O retorno foi em um ônibus lotado, ela em pé preferiu fazer
baldeação e garantir um lugar sentada, precisava colocar a cabeça
no lugar, saber por que ficara assim, tão excitada com a presença
daquele negrão ao seu lado na viagem de ida, em uma mistura de
sentimentos, ao mesmo tempo em que se sentiu invadida por uma
sensação muito parecida com o asco que sentia pelo pai.
Também se sentiu protegida como o calor dos braços da mãe,
mas o que a deixava mais confusa era aquele formigamento pelo
corpo, principalmente no baixo ventre.
Precisava se acalmar, no dia seguinte teria entrevista com o
seu possível orientador para o mestrado, muito estranho aquele
professor, havia histórias no Campus, que falavam sobre o provável
homossexualismo dele, outras falavam que era chegado a uma orgia
estilo romano.
Algumas poucas afirmavam, que aqueles comentários maldosos
eram intriga da oposição, pois de fato, aquele professor era uma das
poucas cabeças brilhantes daquela instituição.
134
Lucidez Renitente
viva aníbal!
Fomos de ônibus, pois naquela época avião era pra gente rica e a
nossa situação estava precária. Depois de abandonar o jornal por
discordar da nova linha editorial, vivia de fazer jingles para o co-
mércio de médio porte, enquanto ela gerenciava uma loja de móveis
antigos.
Mal nos instalamos e as nossas línguas se soltaram, fomos
conversando daqui até aquela cidade do aço, ela falou mais do que
eu, lembrou-se do dia em que me viu, como pareci esnobe, com os
meus sapatos de bicos finos e o meu colete azul turquesa.
Confesso que em alguns momentos eu peguei no sono, o balanço
do ônibus mais aquele barulhinho de chuva fininha sempre foi irre-
sistível para mim, ela insiste em dizer, que eu dormi o tempo todo
da viagem, que cheguei até a babar, murmurando sorrindo: Viva
Aníbal! Viva Aníbal!
Lembro-me que teve um momento em que eu me recostei em
seu ombro e fiquei meio dormindo, meio sonolento e sonhei que
entrava na cabeça dela, tudo muito mais lindo do que a bela cabeça
que ela possui, depois eu subia em direção ao sol, cada vez mais alto
e ela não largava a minha mão, surpreendentemente o calor do astro
rei já não queimava e nem a sua intensa luminosidade causava-nos
cegueira, sentia-me completamente bêbado e lúcido.
Quando o ônibus parou para o lanche, descemos para esticar
as pernas e percebemos os outros passageiros olhando-nos com ar
de censura, ela sempre conseguiu sorrir com os olhos em situações
como essa, eu só lamentava ter cedido aos apelos dela e prometido
em não me envolver em brigas.
135
Hudson Ribeiro
fada
136
Lucidez Renitente
137
Hudson Ribeiro
138
Lucidez Renitente
139
Hudson Ribeiro
roda de fogo
140
Lucidez Renitente
palhaçada
141
Hudson Ribeiro
142
Lucidez Renitente
metamorfose
143
Hudson Ribeiro
tão exata
144
Lucidez Renitente
conselho
Eu ainda acho que você deveria ir até lá dar uns conselhos praquele
cabeça de vento, a comadre Gina tá num estado de fazer dó, desde
que o caçula dela voltou da cidade grande, ela não teve mais sossego,
o que será que tem nesses lugares, que viram as cabeças das pessoas?
Lembra-se quando ele saiu daqui? Um rapagão bonito, cheio
de sonhos, o orgulho da comadre Gina e do compadre Nestor, esse,
coitado, desde que soube da notícia não sai da birosca do Manuel,
será que foi o orgulho deles que botou tudo a perder?
Às vezes eu penso que a vida é assim mesmo...
Falei com a comadre que pediria a você para falar com ele, sei lá,
dar uns conselhos, afinal, você viveu dois anos na maior cidade do
país, é um homem vivido, conhece até as estranjas, por que você não
pensa sobre o assunto? Depois me dê a resposta, eu por meu lado
fico aguardando e rezando por sua concordância.
Sei muito bem ser imperdoável o que ele fez, mas intercedo é
pela comadre Gina, coitada dela, com dois homens em casa sem
valor nenhum. Após a irmã sair, o homem de meia idade finalmente
acendeu o cigarro que girava pelos dedos durante todo o tempo da
fala da mana.
Levantou-se, chegou-se à janela e contemplou a imensidão do
céu, gostava tanto daquela mana, que por alguns minutos sentiu-se
tentado a concordar com o seu pedido, mas de repente o seu pensa-
mento voltou-se para si mesmo, e ele se deu conta de que jamais
faria aquilo.
Como dizer ao jovem uma mensagem esperançosa, se há mais
de uma década carregava uma cicatriz monstruosa bem no fundo
da alma, fruto de uma mordida cruel que a cidade grande lhe dera?
145
Hudson Ribeiro
mentes repartidas
146
Lucidez Renitente
147
Hudson Ribeiro
148
Lucidez Renitente
149
Hudson Ribeiro
promessas
150
Lucidez Renitente
estiagem
151
Hudson Ribeiro
consulta
152
Lucidez Renitente
intervenção
153
Hudson Ribeiro
ela
Quando a vi, meu coração disparou tanto, que atrasei o passo só prá
ninguém notar o quanto ela mexeu comigo, mais tarde ela se aproxi-
mou com um sorriso que fez as minhas pernas tremerem medrosas
daquela sensação maravilhosa que tomava conta de mim.
Perguntou-me se eu gostava de música e se eu já tinha ouvido
Milton Nascimento, respondi que sim à primeira, e não à segunda.
Ela tinha mania de conforme conversava mais se aproximava, e eu
já sem saber o que fazer, fui salvo pelo chamado da Patrícia, pois
domingo iríamos todos ao monte Moxuara.
Naquele dia voltei para casa com o coração aos saltos e com
o disco “Milagre dos Peixes” embaixo do braço, passei em frente
ao clube Desportiva, troquei de calçada para evitar um grupo que
saía, ainda suado e eufórico, comentando lances da partida, de longe
ainda ouvi falarem de mim: “aquele ali jogou prá caramba!”
O meu irmão disse que foi esse negócio da política que acabou
com ele. Chego em casa, coloco o disco no aparelho e vou parar em
um lugar que a muito tempo não ia achando muito incrível ainda
me recordar, borboletas passeiam em meu estômago e mesmo de
olhos fechados e viajando para dentro consigo enxergar cenas que
de algum modo são íntimas embora não me lembre de ter sido apre-
sentado a elas.
154
Lucidez Renitente
se falas... evaporas
155
Hudson Ribeiro
janela
156
Lucidez Renitente
157
Hudson Ribeiro
158
Lucidez Renitente
159
Hudson Ribeiro
chove lá fora
160
Lucidez Renitente
161
Hudson Ribeiro
tá melhor?
162
Lucidez Renitente
163
Hudson Ribeiro
o craque
164
Lucidez Renitente
a escadaria
165
Hudson Ribeiro
vitória da periferia
166
Lucidez Renitente
167
Hudson Ribeiro
168
Lucidez Renitente
169
Hudson Ribeiro
170
Lucidez Renitente
bebum
171
Hudson Ribeiro
172
Lucidez Renitente
amor
Ah! Pra mim ela é tudo, quando sorri, ouço sinos tocando em minha
cabeça, muitas vezes só de pensar em suas belas formas o desejo se
apossa de mim como uma febre terçã.
Do que mais gosto dela? Olha é difícil dizer, mas penso que é
algo que nem está nela, tão pouco em mim, é o campo energético
instaurado quando estamos rentes, o silêncio discursando tranquilo
e calmo, verdades milenares.
Bem sei o que Sartre disse acerca do outro, mas o caso aqui
que é outro, porque o caso trata-se de outra, que na verdade é a
mesma desde quando fui gerado nas entranhas caóticas do universo
em formação.
O sabor saboroso do beijo dela é como manga desfrutada em
dezembro. Às vezes o meu coração bate meio que contraído, pode
ser que seja pelo fato de algum modo perdê-la novamente, mas
prefiro pensar que foi causado pelo meu esquecimento de tomar o
remédio que afina o sangue.
173
Hudson Ribeiro
arte e manha
174
Lucidez Renitente
escrito
175
Hudson Ribeiro
lugar porreta
176
Lucidez Renitente
rango
Esse negócio de escrever tanto ainda vai me tirar do ar, você acredita
que eu peguei o ônibus errado outra vez?
Ainda conferi, Av. Vitória, bem feito, ao menos aprendi que
os caminhos se alongam ou se encurtam, não obedecendo a nossa
vontade e é melhor nem saber a que ordens obedecem.
Saltei na Praça de Maruípe e decidi completar o caminho
andando, mas mudo de ideia, quando calculo a distância, o horário e
as nuvens pesadas se formando tenebrosas.
Peguei outro ônibus, dessa vez por garantia, um velho conhecido
meu, dos tempos de estudante, fui à loja, comprei o que precisava e
retornei, ao me sentar sobre os óculos, que já se encontrava bastante
danificado, partiu-se ao meio.
Bem, daqui diretamente para a loja da Chescka, preciso que ela
me dê um help aqui, na volta cumprimento o Gabriel, ex-jogador
profissional de futebol, que após um dissabor na vida nunca mais foi
o mesmo.
Passei por ele e acelerei os passos, mas o seu grito me alcançou,
parei já sabendo que seria alvo de algum pedido.
Aproximou-se meio constrangido, encaro os seus olhos e vejo as
pupilas dilatadas e um semblante apático de derrotado, nem parece
o grande artilheiro que fazia a torcida do time mais querido enlou-
quecer com as suas jogadas habilidosas.
Quanto tempo que não nos vemos? Na verdade, recentemente
nos vimos e eu até o cumprimentei há coisa de uns quinze dias,
prefiro ouvir o pedido. Olha só, essa greve dos bancos me quebrou,
eu tô precisando almoçar.
Cato umas moedas, e ainda falo, é só subir aqui e já está no
restaurante, ele a guisa de despedida diz soberbo,:
Eu vou lá subir escadaria nada.
177
Hudson Ribeiro
euletério
178
Lucidez Renitente
179
Hudson Ribeiro
sagrado
180
Lucidez Renitente
memória
181
Hudson Ribeiro
carona
182
Lucidez Renitente
tá na hora
Quem foi o último a falar com ele? Foi o irmão Kroztcs, mas fez
voto de silêncio quanto ao assunto da conversa, agora só nos resta
aguardar até o término do tempo combinado.
E o Borges, será que não poderia sondar o Kroztcs, sei lá...
adiantar alguma coisa, afinal, em pleno setembro não podemos ficar
nesse impasse.
Então você não sabe que o Borges está se bandeando para o lado
do Pierre? Não foi à toa que ele exigiu um encontro reservado com
o Kroztcs, certo que se o Sebastian estivesse ainda na ativa, seria ele
o confidente, mas agora, vive no campo, cuidando de cabras e reali-
zando suas pesquisas astrológicas, sabia que ele descobriu uma nova
estrela e batizou-a de Alice?
Mas não contou o motivo a ninguém, nem ao Morrison, que foi
o seu secretário particular por décadas. O que você vai fazer até ser
anunciada a decisão? Só mesmo você, debruçar-se sobre a obra de
Agostinho...
Eu por meu lado vou pra minha terrinha matar saudade daquela
carne espetacular e daquele vinho sensacional, mas no fundo mesmo
vou é preocupado com as repercussões que uma decisão dessas pode
causar.
Veja bem, se ele decidir sair, será uma trabalheira para conseguir
um substituto à altura, por outro lado, se ele não sair, ficaremos reféns
dele, e se ele tiver uma recaída e promover o retorno do Sebastian
com aquelas ideias progressistas?
Nem quero pensar na hipótese.
183
Hudson Ribeiro
diagnóstico
Se eu vi esse seu amigo uma vez foi muito, quando ele nos deu caro-
na durante aquela longa greve de ônibus, caracterizada por quebra-
-quebra, incêndios e tudo o mais.
Nada posso afirmar baseado nesse fiasco de encontro.
Depois teve o meu gesto de boa vontade e de agradecimento
presenteando-o pelo aniversário com o livro Ser e Tempo.
Tá certo que me lembrei de um professor sarcástico do pós-
-doutorado, sempre dizia acerca de presentear alguém com uma
obra de Platão ser uma forma elegante de chamar essa pessoa de
camelo, sempre a procura de mais peso e mais culpas para funda-
mentar a finalidade de tudo.
Se a obra presenteada fosse um Nietzsche, estaríamos nos refe-
rindo ao estágio do leão, refletindo o transitar dessa pessoa, e muitas
vezes, nem sequer percebe-se fascinada com a vontade de poder
engendrando mais poder da vontade.
E, finalmente, quando o presente fosse um livro do Heidegger, o
ato seria tão audacioso, tornando o Manuel, da canção do Toninho
Horta, recatado, posto ser tal presente uma referência explícita à
criatividade da criança hospedada em todo ser humano.
Esse professor, depois de trinta e cinco anos de cátedra enlou-
queceu lentamente, como acontece com a maioria das pessoas.
Hoje ele vive em uma casa de repousos, lendo revistas em
quadrinhos e livrinhos de faroestes.
Soube pela Layza, que o seu amigo classificou o meu presente
como pernóstico, confesso não entendi bem o porquê.
Agora você vem me dizer que ele é candidato e vem pedir o meu
voto...
184
Lucidez Renitente
coisas do além
Josiel sentiu um forte impacto em seu corpo, que foi lançado a mais
de quinze metros, enquanto os postes passavam em alta velocidade
como cartas de baralho manipuladas por hábil jogador, ainda sentiu
um gosto doce escorrendo vermelho de sua boca, antes que uma
escuridão horrenda encobrisse tudo.
Aos poucos a escuridão foi se dissipando e Jadiel sentiu a sua
alma se desencarnando, utilizando o cordão umbilical como ponto
de passagem desse mundo para aonde ninguém sabe.
O cordão de cor prateada flutuava cada vez mais alto, não
obstante, Jadiel poder acompanhar detalhadamente o que ocorria
com a sua carcaça despedaçada lá embaixo.
O desespero do motorista adolescente, completamente fora de
si, que esbravejava com a namorada, uma linda garotinha de uns
dezesseis anos se muito, um ano mais novo do que o infortunado
motorista.
- Merda, merda, matei o cara pô! Também, onde já viu atra-
vessar na frente do ônibus, ainda mais em fila dupla? Tá certo que eu
estava a mais de cem, mas o cara tinha que atravessar logo na minha
frente? E eu, que estou todo errado? Papai nem sabe que eu peguei
o carro, o melhor a fazer é fugir.
Em volta do corpo de Jadiel, caído no asfalto, molhado por um
sereno intermitente, o burburinho dos curiosos se avoluma.
- Este já era, diz um gorducho com fisionomia de oriental e,
taxativo, como um expert no assunto, bateu com a cabeça no meio
fio, já era.
Um magricela com cara de fuinha demonstra curiosidade esté-
tica sobre o atropelamento fatal:
- Por que será que apenas um dos sapatos voa longe quando
alguém é atropelado?
185
Hudson Ribeiro
186
Lucidez Renitente
pensar
187
Hudson Ribeiro
a ordem
188
Lucidez Renitente
o caso
Agora que o culto acabou, conte aquele caso da vez em que você
ficou pendurado no pau de arara de cabeça para baixo.
O Lino não está acreditando não, de como você foi viver debaixo
da Segunda Ponte, depois que o Vilson, o dono da casa onde você
morava de favor, flagrou-o tentando comer a sua galinha de esti-
mação, ainda por cima, crua mesmo.
Conte pra esse descrente do Lino, de como a sua vida sempre
foi uma tragédia, criado pelo favor dos moradores do morro, que
perderam a paciência quando você se envolveu com drogas e até
com assaltos.
Envolveu-se tanto que acabou sendo vítima do grupo de
Gilsinho Cruel, que o obrigou a tomar uma mistura de cachaça com
areia, depois o levaram para o alto da pedreira, onde o comerciante
Luisinho, que viu você nascer, intercedeu junto ao Cruel, pagou o
valor do resgate e se responsabilizou pela sua conduta doravante.
Conte pra ele como você se casou com uma mulher chegada à
cachaça e a dar escândalos, e de como você venceu todas essas bata-
lhas, que pena, já está na hora do outro culto, mas o senhor promete
contar pra acabar de vez com a descrença do Lino?
E já vai ser em boa hora, pois ultimamente ele anda dando muita
trela pra aquele falastrão do pastor do bairro vizinho, e não ficaria
bem o seu próprio sobrinho frequentar outra congregação, né?
Afinal de contas, as igrejas estão disputando os fiéis literalmente
às tapas, não sei se o senhor ouviu dizer que lá pro lado do estado
do Sergipe, dois pastores foram às vias de fato porque um acusava o
outro de desrespeito ao curral religioso de cada um.
Não podemos chegar a esse ponto aqui, o senhor não acha?
189
Hudson Ribeiro
o este é aqui
Quando Billy avistou a fazenda onde havia sido criado, o seu cora-
ção passou a bater descompassadamente.
Incrível! Por ali o tempo parecia ter parado e até as pessoas
envelheciam mais lentamente.
O xerife Goody, por exemplo, desde que se entendia por gente,
lembra-se dele exibindo a mesma silhueta, que agora exibe, ao
receber os passageiros da diligência que chegavam de Chicago, atra-
ídos pelos poderes criativos da fonte de água Santa Clara.
Dessa vez vieram Billy, de retorno ao lar, formado em advo-
cacia, uma senhora com problema de reumatismo acompanhada da
sobrinha, tão magra e tão branca, que até causava espanto, um bispo
mórmon, que durante todo o percurso da viagem viera relatando
as suas peripécias durante a corrida do ouro; e mais um casal, ele,
elegantemente vestido, fazendo questão de ostentar as mãos finas
e bem tratadas; ela, bem recheada de curvas, seios opulentos, que o
decote generoso realçava ainda mais.
Para alívio do xerife, o mórmon e o casal apenas fizeram a parada
para a troca de animais, aproveitaram e tomaram uma limonada.
Apenas a garota magricela viu a troca de olhares suspeitos entre
o xerife e o bispo, mas como era de seu costume, logo depois duvi-
dava do que tinha visto.
Só voltou a lembrar-se do fato, quando dias depois teve notícias
do assalto realizado ao banco da cidade.
Mas o que não saía de sua cabeça era a imagem da mulher de
seios opulentos, ah ela com um corpão daqueles...
190
Lucidez Renitente
191
Hudson Ribeiro
192
Lucidez Renitente
193
Hudson Ribeiro
194
Lucidez Renitente
195
Hudson Ribeiro
autonomia
196
Lucidez Renitente
cotidiano
197
Hudson Ribeiro
198
Lucidez Renitente
199
Hudson Ribeiro
200
Lucidez Renitente
201
Hudson Ribeiro
202
Lucidez Renitente
203
Hudson Ribeiro
204
Lucidez Renitente
205
Hudson Ribeiro
206
Lucidez Renitente
207
Hudson Ribeiro
208
Lucidez Renitente
209
Hudson Ribeiro
210
Lucidez Renitente
211
Hudson Ribeiro
212
Lucidez Renitente
213
Hudson Ribeiro
214
Lucidez Renitente
***
215
Este livro foi composto em Adobe
Caslon Pro pela Editora Multifoco e
impresso em papel offset 75 g/m².