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LEITURA, INTREPRETAÇÃO TEXTUAL E HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Tema 2: Princípios básicos da leitura


Referência bibliográfica: A Arte de Ler
Autor: Émile Faguet
O destino dos homens é este:
Muitos são os chamados, poucos os escolhidos;
O destino dos livros é este aqui:
Muitos são mencionados, poucos são os lidos.
(autor desconhecido)
Princípios básicos de boa leitura:

1. Ler devagar: “é preciso ler com lentidão, o que quer que seja, se
perguntando sempre se compreendeu bem e se a ideia que você
apreendeu é de fato a do autor, e não sua”: — é isso mesmo? — é
mesmo o texto?

A. Não se pode ter preguiça de ler: não ler com os dedos, isto é, na
diagonal, como quem procura o essencial ou algo curioso...

B. Não se deve ter precipitação: deve-se ler com espírito atento


(quanto às informações do texto) e desconfiado de si mesmo (de
sua suposta compreensão).

C. Ler-se para se ter prazer na leitura, para instruir-se e para criticá-


lo.

NOTA: Texto, O DELÍRIO (Capítulo VII de Memórias póstumas


de Brás Cubas – Machado de Assis).

2. Ler da esquerda para a direita e da direita para a esquerda:

A. “É uma arte de comparação e de aproximação contínuas.


Materialmente, lê-se um livro de ideias tanto folheando da esquerda
para a direita quanto da direita para a esquerda; quero dizer que
tanto relendo quanto continuando a ler”.

B. “É preciso, então, à medida que se completa e se esclarece, levar em


conta, sem cessar, para compreender o que se lê hoje, aquilo que se
leu ontem, e para melhor compreender o que se leu ontem, o que
se lê hoje”.

Ir e voltar...
A cada recuo, um novo avançar,
Sempre em direção ao fim,
O qual – como num círculo –,
É o reencontro com o começo,
Onde tudo se recomeça.

Eis o estatuto da existência...


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Do todo...
Do texto da vida.
(Alexandre Rodrigues)

3. Ler como quem se transporta para outro lugar e se deixa viver


experiências alheias ou ideais: “É um tipo de embriaguez, sendo
tanto uma perda quanto um aumento de nossa personalidade. É um
estado sugestivo”.

A. O abandono de si (perda de personalidade):

B. O outrar-se (aumento de personalidade):

C. O momento do despertar: “Deixando o belo romance, nós


despertamos no sentido próprio da palavra, esfregamos os olhos,
espreguiçamos, sentimos claramente que passamos de uma vida
para outra e que diminuímos ou que caímos do alto. É uma alma
que estava ligada à nossa, à qual estávamos unidos e que nos
deixa”.

4. Ler como quem assume o controle da imaginação e da reflexão,


com vistas a julgar o conhecimento reflexo (da obra literária para
a realidade) para melhor compreender o mundo, o homem, a
existência:

A. A REFLEXÃO: “A leitura dos romances supõe assim como


condição necessária ao segundo momento, caracterizado pela
reflexão daquele que julga, um grande conhecimento dos homens,
e com isso quero dizer um hábito de observar os homens à sua
volta [...] de comparar o romance com a vida e de experimentar
sensações de admiração muito viva quando percebem que o
romance copiou a vida com precisão ou a deformou de maneira a
mostrar mais vigorosamente seus traços característicos.”

B. A PERCEPÇÃO: “Uma das mais fortes entre essas sensações é a


de ver no romance o que se viu na vida, mas vê-lo mais clara e
distintamente. O conhecimento que tínhamos de um caráter é sem
dúvida correto, mas geral, de conjunto e, por consequência, é ainda
flutuante. O que nos encanta é ter encontrado no romance esse
mesmo conhecimento sob um raio mais vivo que ressalta os traços
do detalhe, que coloca em relevo as particularidades significativas
e que nos faz dizer: Como é verdade! Tinha entrevisto isso, mas
não o havia visto; tinha a intuição disso, mas sem dela tomar
posse”.

Exemplo:

Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã.


Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do
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chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo,


cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água
quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em
outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que
era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista.
Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis,
que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a
casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e
para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo
entra na mesma sensação de propriedade.

“Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas”,


pensa ele. “Se mana Piedade tem casado com Quincas
Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não
casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de
modo que o que parecia uma desgraça...”

Que abismo que há entre o espírito e o coração! O


espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento,
arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa
que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a
bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o
canoeiro, que os olhos de Rubião acompanhavam,
arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez
que mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não
casasse; podia vir um filho ou uma filha... – Bonita
canoa! – Antes assim! – Como obedece bem aos remos
do homem! – O certo é que eles estão no céu.
(Machado de Assis, Quincas Borba – Capítulos I e II).

C. REALIDADE e FICÇÃO: “Vamos assim, da realidade à ficção,


e a ficção só tem valor para nós se a nossos olhos está inundada
de realidade, e a realidade nos é mais interessante quanto
voltamos de novo a ela depois de ter atravessado a ficção
inundada dessa mesma realidade”.

5. Ler obedecendo a pontuação, seguindo o ritmo e modulando


a melodia frasal:

A. A pontuação correta garante o sentido original da frase que o


autor deseja transmitir.

Um homem rico estava muito mal, pediu papel e caneta e escreveu


assim:
“Deixo meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga
a conta do alfaiate nada aos pobres.” Morreu antes de fazer a
pontuação.

A quem deixara ele a fortuna? Eram quatro concorrentes.


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1) O sobrinho fez a seguinte pontuação:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será
paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres.

2) A irmã pontuou assim o escrito:

Deixo meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga
a conta do alfaiate. Nada aos pobres.

3) O alfaiate puxou a brasa para sardinha dele:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será
paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres.

4) Aí veio a interpretação dos pobres:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será
paga a conta do alfaiate? Nada! – Aos pobres.

B. A leitura correta da pontuação determina o ritmo e a melodia


corretas que o leitor deve imprimir na voz.

Nota (1): “A leitura é a humanização da escrita” (Alexandre


Rodrigues): voz robótica x voz do Google x voz humana.

Nota (2): “Dos elementos constitutivos da voz humana é o


TOM, ou altura musical, o mais sensível às modificações
emocionais. Agrada-nos ou desagrada-nos o tom de voz de
uma pessoa. Percebemos imediatamente se ela fala em tom
alto ou baixo, ou se, pobre de inflexões, a sua elocução é
monótona, isto é, um “só tom”, o que vale dizer “enfadonha”.
A fala expressiva exige variedade de tons e sua adequação
ao pensamento” (Celso Cunha – Nova Gramática do
Português Contemporâneo).

C. “Entendeu ou quer que desenhe?” – O efeito de pintura de alguns


textos, sobretudo os poéticos, permite a visualização da
mensagem por meio de imagens, o que contribui para maior
apreensão do sentimento e do sentido do texto:

“Nasci, deusa de olhos azuis, de pais bárbaros, no seio dos


bons e virtuosos cimérios que moram perto de um mar
sombrio, repleto de rochedos, sempre fustigado pelas
tempestades. Nesse lugar se conhece pouco o sol; as flores
são os musgos marinhos, as algas e as conchas coloridas que
se encontram no fundo das baías solitárias. As nuvens desse
lugar parecem sem cor e a alegria é um pouco triste; mas as
fontes de água fria saem dos rochedos e os olhos das
meninas são como essas verdes fontes onde, sobre o fundo
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de ervas onduladas, se olha o céu” (Ernest Renan – Oração


na Acrópole).

“Como uma águia que se vê sempre lançar, seja por voar


no meio dos ares, seja por se colocar sobre o alto de algum
rochedo, a todos os lados seus olhares penetrantes, e cair
tão seguramente sobre sua presa que não se pode evitar
suas unhas mais que seus olhos; tão vivos eram os olhares,
tão rápido e impetuoso era o ataque, tão fortes e inevitáveis
eram as mãos do príncipe de Condé”

“Verás numa só vida todos os extremos das coisas


humanas, a felicidade sem limites tanto quanto as misérias,
um longo e pacífico prazer de uma das mais nobres coroas
do universo, tudo o que podem dar de mais glorioso o
nascimento e a grandeza acumulada sobre uma só cabeça,
que, em seguida, é exposta a todos os ultrajes da sorte;
primeiramente a boa causa seguida de bom sucesso, e,
então, súbitos retornos, mudanças inauditas, a rebelião por
muito tempo contida, ao final completamente dona de si,
nenhum freio à desordem; as leis abolidas; a majestade
violada por atentados até então desconhecidos, a usurpação
e a tirania sob o nome de liberdade, uma rainha fugitiva que
não encontra nenhum repouso em três reinos e para quem
a sua própria pátria é apenas um lugar triste de exílio, nove
viagens por mar feitas por uma princesa apesar das
tempestades, o oceano surpreso de se ver atravessado
tantas vezes por engenhos tão diversos e por causas tão
diferentes, um trono indignamente derrubado e
miraculosamente restabelecido”.

6. A releitura:

A. Relê-se para melhor compreender:

“Asseguro que relendo-os [os livros] pela vigésima vez se


encontra passagens que não se havia compreendido como
deveriam ser, mas que se entende na primeira vez”.

“Mas ainda frequentemente, quase sempre, com algumas


precauções tomadas, se compreende muito melhor um autor
quando se o relê do que quando se o lê pela primeira vez. Basta
desconfiar um pouco de si e de não ler no autor apenas o que
se coloca nele”.

“O método hermenêutico científico para Schleiermacher é


circular, pois ‘também dentro de um escritor particular o que é
particular somente pode ser compreendido a partir do todo, e
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por isso uma leitura superficial deve preceder a interpretação


mais detalhada a fim de que se retenha uma visão geral do
todo’; o conhecimento provisório constitui-se daquele
‘conhecimento do particular que provém do conhecimento
genérico da língua’, mas a intenção ‘é encontrar as ideias-
chaves segundo as quais as restantes devem ser medidas”
(Interfaces da Hermenêutica – Luiz Rohden).

“... o conhecimento completo sempre se dá nesse círculo


aparente, de maneira que cada particular tão-só pode ser
compreendido a partir do universal (todo) do qual ele é uma
parte, e vice-versa. E todo saber só é científico ao ser
formado desta maneira. Disso conclui que a obra a ser
interpretada não pode ser compreendida de uma só vez, mas
ao contrário, cada nova leitura nos leva a uma situação de
melhor compreensão na medida em que enriquece aqueles
conhecimentos prévios. É por isso que podemos dizer que
não lemos o mesmo livro quando o lemos duas ou mais vezes,
ou, então, não lemos apenas mais e melhor, mas de modo
sempre diferente, assim como não podemos nos banhar duas
vezes no mesmo rio” (Interfaces da Hermenêutica – Luiz
Rohden).

B. Relê-se para nos comparar conosco mesmo:

“Que efeito teria sobre mim tal livro, do qual fui fervoroso
na minha juventude? é uma coisa que se diz frequentemente
numa certa idade. Rever os lugares visitados outrora, os
amigos antes frequentados, os livros lidos outrora, é uma
paixão do declínio”

“Ora, isso é precisamente comparar-se consigo mesmo. É


experimentar se temos ainda tantas faculdades de sentir e se
temos as mesmas. O efeito da experiência não é sempre
muito consolador, nem muito agradável. Os belos lugares
vistos outras vezes parecem comuns e parecem ter sido
sobrevalorizados por não se sabe quem. Os velhos amigos
parecem um pouco entediantes. Os belos livros parecem um
pouco descoloridos”.

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