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r ANTOINE COMPAGNON

O TRABALHO DA CITAÇÃO

Tradução Cleonice P. B. Mourão

1 ª REIMPRESSÃO

i
EDITORA UFMG
BELO~HORIZONTE
2007
O HOMEM DA TESOURA

Tenho uma biblioteca unicamente para meu uso e não


a apresento como exemplo. Movimento-me muito du-
rante O dia, e à noite gosto de descansar perto dos meus
livros. É meu refúgio, uma toca diante da qual apaguei
todas as pegadas - ali estou em casa. Há livros de todos
os tipos, mas se você fosse abri-los ficaria surpreso. São
todos incompletos, alguns não contêm .mais que duas ou
três folhas. Acho que se deve fazer comodamente o que
se faz todos os dias; então leio com a tesoura nas mãos,
de~culp~m-me, e corto tudo o que me desagrada. Faço
assim leituras ~ue não,me ofendem jamais. De Loups (Lo-
bos), conservei dez paginas, um pouco menos do que de
Vicoyageillau Bout de la Nuit (Viagem ao Fim da Noite) De
orne e, conservei t d p I .
De meu Racine não sºupº -? .º yeucte e uma parte do Cid.
'
conservei duzentos nm1quasenadª· De Baudelaire
De L versos e de Mu o '
E a Bruyere, o capítulo «Coeur" g um pouco menos.
HVrem~nd, a conversa do pai C (Coração); de Saint-
ocqumcourt. De Madan-. d an~y~ com o marechal d
..,e e SeVI , e
gne, as cartas sobre
processo de Fouquet; de Proust, o jantar em casa da
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duquesa de Guermantes; "Le Matin de Paris" (Manhã de
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Paris), na Prisonniere (A Prisioneira).

Assim respondia um guarda-florestal à pesquisa de


uma revista literária junto a seus leitores. "Eu leio com a
tesoura na mãos, desculpem-me, e eu corto tudo o que
me desagrada:' Confissão terrível, intolerável: declarar
cruamente e escrever preto no branco a retalhação a que
cada um se entrega na intimidade de seu gabinete, omitir
as formas a esse ponto. Que selvageria de homem da
floresta!
O anátema não se fez esperar, ele foi lançado por um
eminente crítico parisiense:
Admite-se muito bem que um intelectual tenha preferên-
cias definidas e escolha certos escritores entre outros, ou
mesmo que constitua uma antologia para seu uso. Mas
não podemos compreender esse homem que fabrica para
si mesmo uma biblioteca com despojos.13

E Céline retoma, com menos pretensão, sem dúvida:

Eis-nos aqui todos nós, grandes mortos e minúsculos


viventes, despidos pelo terrível guarda-florestal. Ele não
nos perdoa muito' na nossa magnífica vestimenta (con-
quistada com tantos sofrimentos!). Um pequeno nada!
Ah! o verídico! [... ] O homem da floresta não brinca. [... ]
Não se trata mais de brincadeiras, o homem da tesoura
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vai cortar tudo o que me resta.

De que se tornara culpado o guarda-florestal para que


sua carta fizesse tanto barulho na capital? Que diferença

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. kàveria
'
entre sua biblioteca e uma antologia, um
_, , escolar? Ele se desembaraçara do dejeto, criara a ,:ianuaJ
-- . - dºl - erdade
da leitura como exc1taçao
. e 11·aceraçao,
" apregoava essa
verdade bruta e a. praticava
- nos
d. 1vros.
- Oe verídico"' como
diz Céline. Pois isso nao se 1z, nao se 1az. Ler com u
lápis na mão, recopiar na caderneta de anotações, iss
mUito bom. Mas recortar e sobretudo jogar fora os resto e
lançá-los ao lixo, que inconveniência! Ora, no funJ;•
substancialmente, é a mesma coisa. O essencial da leitura ;
ó q'ue éu"recorto, o que eu ex-cito; sua verdade é o que m:
êómpraz, ii que me solicita. Mas como fazê-los coincidir? A
citaç-ão é a ilusão de uma coincidência entre a solicitação e
a e:KcitaÇâ0, ilusãó
.
levada ao extremo pelo guarda-florestal'
sintoma da leitura como citação. Era preciso fazê-lo calar,
. pois o homem da tesoura é o único verdadeiro leitor. Valéry
confessava: '~Leio com uma rapidez superficial, pronto a
agatrar minha presa." É verdade que logo acrescentava:
"Tento escrever de tal forma que, se eu me lesse, não
poderia ler como eu leio:' 15 Sem dúvida, ele também não
teria gostado que bancássemos o homem da tesoura nos
seus livros.

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REESCRITA

Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar.


A citação, graças à confusão meto_nímica a que preside, é
leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou
escrever é realizar um ato de citação. A citação representa
a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e da
escrita: citar é repetir o gesto arcaico do recortar-colar, a
experiência original do papel, antes que ele seja a superfície
de inscrição da letra, o suporte do texto manuscrito ou
impresso, uma forma da significação e da comunicação
lingüística.
A substância da leitura (solicitação e excitação) é a
citação; a substância da escrita (reescrita) é ainda a citação.
Toda prática do texto é sempre citação, e é por isso que
não é possível nenhuma definição da citação. Ela pertence
à origem, é uma rememoração da origem, age e reage em
qualquer tipo de atividade com o papel. Mas se o modelo da
citação está na origem - arcaica (o jogo de criança) e atual
(o incipit) - da escrita, ele está também, por isso mesmo,

.
f
r
1
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em seu horizonte: o texto
. ideal,
. utópico , aquele e
sonhou Flaubert, sena uma citação. A utiliza _ orn que
. - , e b . . Çao de u
c1taçao como ep1gra1e su stltu1 esse ideal defi rna
E na impossibilidade de realizar o ideal, 0 livroº;;aotlo-o.
·t d . - . contenta
em. ser a reescn
. a e uma c1taçao inaugural que por s1. só
sena suficiente. .
Se o modelo da citação, do texto, todo ele reescrit0
assusta, fascina ainda mais. Ele toca no limite em que ~
escritura se perde em si mesma, na cópia. Reescrever, sim.
"Mas copiar,: diz Aragon, "isso_é mal visto, observem que
todo mundo copia, mas há aqueles que são espertos, que
trocam os nomes, por exemplo, ou que <lã.o um jeito de se
apropriar de livros esgotados,: 25 E Françoise, cheia de bom
senso, prevenia o narrador de Em Busca do Tempo Perdido,
recriminava-o por dar as dicas de seus artigos antes de
tê-los escrito: : Todas essas pessoas aí são copistas. Você
26
precisa desconfiar mais:,
A obra de Borges representa, sem dúvida, a exploração
mais aguda do campo da reescrita, sua extenuação. Pois
se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos sutis de
regulação, variáveis segundo as épocas, trabalham para que
ela não seja simplesmente uma cópia, mas uma tradução,
uma citação. É com esses mecanismos que Borges organiza
a violação. "Pierre Menard, Autor do Quijote,,, um dos
contos reunidos sob o título de Fictions (Ficções), realiza
o ideal do texto e pretende que ele se distinga da cópia.
Pierre Menard

não queria compor um outro Quichotte - o que é fácil - mas


o Quij~t:. Inúti~ a_crescentar que ele nunca imaginou uma
transcnç~o, mecamca do original, não se propunha copiá-lo.
Sua adm1ravel ambição era reproduzir algumas páginas que

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coincidissem - palavra por palavra e linha por linha - com
as de Miguel de Cervantes.27

Esse é o ponto limite para o qual tenderia uma escrita que,


enquanto reescrita, se concebesse até o fim como devir do
ato de citação. Oportunamente, será necessário retomar
essa idéia.
Mas, por ora, se impõe uma questão: quais são os
textos que, ao escrever, eu desejaria reescrever? Aqueles
que Roland Barthes chamava de "escriptíveis" quando
perguntava: "Que textos eu aceitaria escrever (reescrever),
desejar, levar adiante como uma força nesse mundo que é
o meu? O que a avaliação encontra é este valor: o que pode
ser hoje escrito (reescrito) - o escriptível. "28 Há sempre
um livro com o qual desejo que minha escrita mantenha
uma relação privilegiada, "relação" em seu duplo sentido,
o da narrativa (da recitação) e o da ligação (da afinidade
eletiva). Isso não quer dizer que eu teria gostado de escrever
esse livro, que o invejo, que o recopiaria de bom grado ou o
retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria,
que o atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso
também não demonstraria o meu amor por esse livro. Não,
o texto que é para mim "escriptível" é aquele cuja postura
de enunciação me convém (o que cita como eu). É por isso
que esse texto não é nunca o mesmo livro, é por isso que o
Quijote, de Menard, é também um outro Quixote.

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