Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ora, quando ocorrer que o traço unário não se inscreva, ou que ocorram per-
turbações na sua inscrição, a escritura L'autre produzida a partir dos significantes
será convocada a suprir e ser paliativo deste defeito. Será sempre produzida a
partir dos significantes, mas sua função será mais dramática: deverá sustentar
um sujeito inconscistente demais.
Neste caso, a solução é escrever uma carta. Escrever a letraorta é a solução
do enigma deste sujeito prestes a cair.
Ana Cristina César se suicidou em 1983, jogando-se pela janela. Dez anos se
passaram e sua obra breve e veloz continua fazendo trabalhar.
Se Ana Cristina César não tivesse se suicidado, estaríamos assistindo hoje a
tantos eventos e debates em torno de sua obra? Sem dúvida nenhuma, o suicídio
faz um ponto final que causa toda uma releitura da obra. É um último ato que re-
troage sobre todo o texto anterior. Este trabalho se propõe a pensar o seu suicí-
dio como um fracasso da suplência que o sinthoma deveria produzir. Não se trata
absolutamente de buscar na vida, no dado biográfico a decifração, a chave do
enigma do texto, mas sim de poder pensar o ato poético (texto) e a passagem ao
ato (suicídio) como atos, desconstruindo assim a dicotomia vida e texto. Como
disse antes, o analista lê não apenas aquilo que deviu literatura mas o próprio tex-
to do mundo.
O texto de Ana Cristina César se faz exatamente como um questionamento
da dicotomia vida e texto. Trata-se de diários, cartas e "cadernos terapêuticos"
onde se misturam explicitamente personagens reais e fictícios, fatos reais e fic-
ções. São portanto diários meio falsos, meio verdadeiros, cartas meio falsas,
meio verdadeiras. E aqui já começa a se produzir a estranheza de seu texto: o que
são, afinal, cartas "verdadeiras"? Note-se que aqui o verdadeiras já ganhou as-
pas. O eu da carta corresponderia ao eu verdadeiro? Sabemos que o autor não é
o sujeito nem mesmo quando escreve cartas verdadeiras. Mas a mistura que Ana
Cristina César faz de fatos de sua vida pessoal com a ficção propriamente dita lan-
ça o leitor de chof re no centro da questão: a verdade é f iccional. Cito Ana Cristina
César:9 "Autobiografia. Não, biografia." Neste verso, leio que seu texto não é
auto-biográfico. É ato biográfico. Construção de um eu que faria suplência, que
amarraria ou estabilizaria os três do nó borromeano. Ana Cristina César:10 "Preci-
so me atar ao velame com as próprias mãos."
Ana Cristina César publicou quatro livros em vida: Cenas de Abril, Correspon-
dência Completa, Luvas de PelicaeA teus pés. Postumamente foram publicados
Inéditos e Dispersos, Escritos da Inglaterra e Escritos do Rio.
Ao longo deste percurso opera-se uma perigosa fusão entre vida e texto.
Este processo se evidencia no endereçamento do texto. Tanto as cartas como os
diários são endereçados ao outro. Há um interlocutor sempre presente: "é pra
você que eu escrevo, hipócrita."11 O leitor fica profundamente implicado. Cito o
poema intitulado "Este livro"12: "Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que
106 DO SINTOMA AO SINTHOMA
você seduz, charmeur volante pela pista a toda. Enfie a carapuça. E cante. Puro
açúcar branco e blue." Convidado a conduzir um tea for two total, perigoso, ve-
loz, convidado a enfiar a carapuça, o leitor se vê privado da intimidade alheia
como se olhasse pelo buraco da fechadura como em "Arpejos"13: "Acordei com
coceira no hímen. No bidê, com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indí-
cios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais
tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) fi-
casse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta
à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez, decidi me dedi-
ca rà leitura."
Cito ainda "Fogo Final"14: "É pra você que escrevo, hipócrita. Pra você — sou
eu quem te segura os ombros e grita verdades nos ouvidos, no último momento.
Me jogo a teus pés inteiramente grata. Bofetada de estalo — decolagem lanci-
nante —baque de fuzil. É só pra você e que letra tán hermosa. Pratos limpos atira-
dos para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a tua ca-
beleira de um só golpe e o teu espanto!"
Nesta tentativa de fazer sua carta chegar ao destino, Ana Cristina César usa
duas metáforas principais: as chaves e as luvas. As chaves (a interpretação, o sen-
tido) estão com o leitor. No tempo do seminário sobre "A Carta Roubada" de
Poe, Lacan dizia que uma carta sempre chega a seu destino; depois de sofrer, de
circular, a letra-carta volta a seu lugar, ao emissor decifrada. Encontra sua signifi-
cação. Ana Cristina César não se dá a devorar ou decifrar pelo leitor com facilida-
de. Apela a ele, grita por ele, mas faz um texto difícil que obriga o leitor a colocar
algo de seu. Silviano Santiago15 diz que Ana Cristina César desalimenta e desmis-
tif ica os equívocos do leitor autoritário, não permitindo que o poema seja assassi-
nado por uma compreensão que faz dele um simulacro menos ambíguo. A carta-
letra de Ana Cristina César, extraviada, não chega nem com facilidade ao leitor
nem lhe retorna significada. Este endereçamento ao outro, esta entrega das cha-
ves caracteriza o feminino. Ainda no seminário da Carta Roubada, Lacan diz que
o significante se desprende da mulher, da rainha, e circula, extraviado, para a ela
retornar. A feminilidade é a melhor figura da castração porque na lógica do signi-
ficante sempre foi castrada e o que se desprende da mulher é, cito Lacan, "por
não tê-lo tido jamais: por isso a verdade sai do poço mas só meio corpo." 16 Diz
Ana Cristina César17: "Femininamente quer dizer falando sempre para alguém,
como uma carta imensa." Uma possibilidade de realização é no Édipo feminino a
catexia objetai ao pai. Comentando, numa resenha, o livro de Marilene Felinto
"As mulheres de Tijucopapo", onde a solução que a personagem feminina encon-
tra é: "eu posso, no máximo, seguir Lampião", Ana Cristina César18 diz: "Como
não sucumbir ao a-mais de loucura das mulheres? Prefiro acreditar que esta traje-
tória que ainda não sabe bem de si tem sim uma direção própria: a direção do de-
sejo por (um pouco) mais literatura." A saída são as letras. Onde amarrar-se? No
livro. Voltaremos a isso.
ANA CRISTINA CÉSAR: UMA CARTA NEM SEMPRE CHEGA... 107
Ficar louca e inteiramente solta neste pântano marco para mim o limite da pai-
xão e me tensiono na beira: tenho de meu (discurso) este resíduo.
A literatura como c/é, forma cifrada de falar da paixão que não pode ser no-
meada (como numa carta fluente e objetiva).
Para não ficar louca e inteiramente solta neste pântano, Ana Cristina César
se amarra ao velame com as próprias mãos que escrevem: "Me tensiono na beira
e tenho de meu este resíduo." A letra aqui resta real, apenas contorno e litter.
Esta opção pelo ficcional, pelo ato biográfico, marca a identificação com o
texto, com o livro real. Ana Cristina César quer ser um livro, hão aos pés, mas nas
mãos do leitor, ser objeto de desejo nas mãos do leitor. Cito20: "Amor, isto não é
um livro, sou eu que você segura e sou eu que te seguro (é de noite? Estivemos
juntos e sozinhos?) Caio das páginas nos teus braços, teus dedos me entorpe-
cem, teu hálito, teu pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia e chega — Toma
este beijo só pra você e não me esquece mais... Lembre de minhas palavras uma a
uma. Eu poderei voltar. Te amo e parto eu incorpóreo triunfante e morto."
Um eu "incorpóreo, triunfante e morto" é uma diluição no literário. O eu é o
livro. Como Joyce, man ofletters, Ana Cristina César woman ofletters. Num de-
poimento em abril de 1983 (suicidou-se em outubro) comentando este trecho,
Ana Cristina César diz:"... infelizmente ou talvez felizmente, um texto é só texto,
ele nejp é pele, ele não é mãos tocando, ele não é hálito, ele não é dedos, ele
não... Existe de repente uma consciência trágica, texto é só texto, nada mais que
texto. Que tragédia!" 21
Na publicação póstuma "Inéditos e Dispersos", acompanhamos a tragédia.
Um longo poema intitulado "Contagem Regressiva" começa a desamarração:
"Não, amor, isto não é literatura." Há uma primeira tentativa de suicídio. A cola-
gem com o texto insustentável: "Como terei orgulho do ridículo de passar bilhe-
tes pela porta. Esta mesma porta hoje fecho com cuidado altivo. Como não repe-
tirei a teus pés que o profissional esconde no índice onomástico os ladrões de
quem roubei os versos de amor com que te cerco..."
Surge a morte e a queda: "O que morre. Estou morrendo, ela disse devagar,
olhos fixos para cima... Caíam no canal as árvores do outono... Este céu ensurde-
cedor. Caem pedras de gelo... A luz se rompe através dos vidros... Não está mor-
rendo, doçura. Barca engalanada adernando mas fixa: doçura não afoga... Preci-
so me atar ao velame com as próprias mãos. Sopra, fúria... Estou sirgando mas o
velame foge."
Segunda tentativa de suicídio: "Escrevo para você, sim. Da cama do hospital.
A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes."
Ana Cristina César, ato biográfico, fracasso do sinthoma.
1. LACAN, J., "Joyce le symptôme I", in Joyce Avec Lacan, Paris, Navarin Editeur,
1987.
2. JOYCE, J., Ulisses, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.
3. GODIN, J.-C, "Du symptôme à son épure: le sinthome", in Joyce Avec Lacan,
Paris, Navarin Editeur, 1987.
ANA CRISTINA CÉSAR: UMA CARTA NEM SEMPRE CHEGA... 109