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MÁRCIA PINHO

A intertextualidade bíblica e Shakespeariana em

Dom Casmurro

SÃO PAULO

2012
1

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é o maior escritor brasileiro de todos


os tempos, reconhecido dentro e fora do território nacional. Fundador da Academia Brasileira
de Letras é alvo de constantes releituras devido ao caráter filosófico e atemporal de suas
obras.

Dom Casmurro narra a história de Bento Santiago, o Bentinho, um garoto prometido à


vida sacerdotal desde que nasceu, filho único e órfão de pai, é criado um ambiente bem
familiar. Ao chegar à adolescência vai para o seminário a fim de cumprir a promessa feita por
sua mãe D. Glória. Nessa época mantinha uma amizade especial com sua vizinha Capitu,
ambos estavam enamorados e juraram casar-se.

Frustrados pelo cumprimento da promessa unem-se ao agregado José Dias para que a
vida no seminário seja a mais breve possível. Fora do seminário Bentinho e Capitu casam-se.
Bento mantém a amizade com o colega de seminário Escobar, este por sua vez casa-se com a
melhor amiga de Capitu, Sancha.

No decorrer dos anos, os dois casais mantêm relações muito próximas. Bento, um
homem extremamente ciumento desconfia de que o melhor amigo e sua esposa são amantes.
A desconfiança cresce na medida em que o filho do casal, Ezequiel também cresce. O
narrador nos diz que seu filho tem uma grande semelhança com seu amigo Escobar.

Sem nunca adquirir provas concretas, aos poucos se afasta emocionalmente de Capitu
e do filho. Corroído pelo ciúme deseja a própria morte e a do filho, separa-se da esposa e
ajuda Ezequiel numa viagem sem volta, seu filho morre no estrangeiro.

Fechado em si mesmo, sem a esposa, sem o filho, sem o amigo que falecera, ganha o
apelido de Casmurro e decide escrever sobre sua tragédia para dar sentido a sua existência.

Dom Casmurro, de 1899 se tornou um dos livros mais lidos e discutidos em todo o
mundo, a obra mais celebre de Machado de Assis figura na lista das grandes obras da
literatura universal.

Nenhum livro gerou tantas discussões quanto Dom Casmurro, por conta de sua
ambigüidade tem feito com que milhares de leitores discutissem a suposta traição de Capitu.
Também inspirou diversos artistas, escritores e estudiosos a dissecar essa história
2

transformando-a em novas obras, peças de teatros e diversos trabalhos acadêmicos (tese,


ensaio, TCC).

Dom Casmurro é uma obra erudita, conseqüência da vasta cultura de seu autor.
Recheada de referências de obras clássicas, levando ao leitor o conhecimento de autores
consagrados como Shakespeare, Homero, entre outros; além das citações bíblicas.

Outro aspecto relevante é a intertextualidade e as figuras de linguagens (alegorias,


metáforas) utilizadas no decorrer do texto, e nada na construção da narrativa é por acaso, cada
item se desenrola numa teia de informações preciosas, uma cadeia bem construída para o fim
que se destina: a impossibilidade de um veretido em relação ao adultério.

Machado de Assis mantém um dialogo com o leitor, com o propósito de obter um


cúmplice, o que torna a leitura agradável.

Faremos um breve resumo das figuras de linguagem e da intertextualidade contidas no


texto.

Dom Casmurro é um romance dentro do romance, há dois Bentinhos, o personagem e


o narrador, configura-se a metalinguagem. 1

As metáforas estão presentes em diversas passagens, talvez a mais significativa seja na


descrição do olhar de Capitu por Bentinho: 2

“Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam
não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga
que se retira da praia, nos dias de ressaca.” 3

Essa metáfora foi alvo da publicação A metáfora do mar no Dom Casmurro, de


Linhares Filho (Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1978).

1
PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR.,
Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2001, p. 70
2
PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR.,
Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2001, p. 73
3
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.65
3

Ópera é a alegoria na qual o autor dedica um capítulo inteiro. 4

O capítulo nove concentra a maior figura de linguagem. “A vida é uma ópera” diz o
narrador na voz de um velho tenor. Essa ópera é a sua vida, já anunciada no capítulo oito, eis
outra fala do tenor:

—A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em
presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em
presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a
orquestração é excelente... 5

Segue as representações de cada elemento:

Tenor: a voz mais alta, Escobar

Barítono: entre o tenor e o baixo, Bentinho (personagem)

Baixo: voz masculina mais grave, Bento (narrador)

Soprano: voz feminina mais aguda, Capitu

Contralto: voz feminina mais grave, Sancha

Comprimário: cantor de papel secundário, demais personagens.

Agora vamos substituir os elementos da ópera pelos personagens para ter clareza sobre
essa analogia:

— A (minha) vida é uma ópera e uma grande ópera. O Escobar e o Bentinho lutam pela Capitu, em
presença do Bento e dos demais personagens , quando não são a Capitu e a Sancha que lutam pelo Escobar, em
presença do mesmo Bento e dos mesmos personagens secundários. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a
orquestração é excelente...

4
GOULART, Audemaro Taranto. Dom Casmurro, ainda e sempre. Disponível em:
www.ich.pucminas.br/.../Dom%20Casmurro%20-%20Ensaio.pdf

5
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.18
4

Além da extensa polissemia, encontramos na obra uma intertextualidade explicita. Da


arte de Machado de Assis floresceu The brazilian Othello of Machado de Assis, de Helen
Caldwell (Berkeley, University of Califórnia Press, 1960). Conhecida como o Othello
brasileiro, Dom Casmurro faz um paralelo constante com o texto Shakespeariano. Conforme
nos mostra o capítulo 135 (Otelo) do texto Machadiano:6

“Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o
assunto, e estimei a coincidência.”
. “... pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes
de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo.”
“Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do
mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
- E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; - que faria o público, se ela deveras fosse
culpada, tão culpada como Capitu?”
“Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir
o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a substancia na
xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o
espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã.”

Além de todas as citações de Otelo na obra do bruxo Machado, observemos algumas


“coincidências” entre os personagens que a autora Hellen Caldwell propõe:7

Bento Santiago: Otelo (Santo + Iago )

Capitu: Desdêmona

José Dias: Iago

Escobar: Cássio

6
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.235 e236
7
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Tradução de Fábio
Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
http://books.google.com.br/books?id=Q6kETzYptRMC&lpg=PA67&ots=dr9vc8d6Uq&dq=santiago%20santo%2
0iago%20helen%20caldwell&hl=pt-BR&pg=PA33#v=onepage&q&f=false
5

O personagem Bento Santiago se reveza no papel de Otelo e de Iago.

Podemos concluir que o romance em questão é uma paródia da tragédia inglesa.

Outra intertextualidade é no campo do discurso bíblico.

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no
conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na
distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros
condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. 8

Referência ao conflito celestial, o texto nos serve como um adicional para a alegoria
da ópera.

Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o
fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No momento de
fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: “Não faças mal algum a teu filho; conheci
que temes a Deus.” Tal seria a esperança secreta de minha mãe. 9

Nessa passagem a autor compara a mãe de Bentinho com Abraão, um exemplo de fé e


obediência a Deus, e se compara a Isaac (o filho da promessa), indo para o sacrifício
(seminário).

“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e
enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o
pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...” 10

Ainda na Ópera o dialogismo com o texto sagrado no Evangelho segundo S.João:

“No princípio era o Verbo, o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”
(João 1:1)

8
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011.p.18

9
Ibid. p.151
10
Ibid. p.20
6

A Ópera é a alegoria que traz infinidade de metáforas, dialogismo e é a síntese da


obra, pois é a sua ópera (obra).

O propósito do narrador ao escrever o livro era “atar as duas pontas da vida e restaurar
na velhice a adolescência”, na tentativa de resgatar sua própria história, no entanto o mesmo
se via perdido em lembranças das quais havia lacunas, sua memória o traia, como bem
declara:

“Não, não, a minha memória não é boa.” 11

Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se
o tédio já o não obrigou a isso antes tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a
12
pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor.

Nesta passagem Bentinho deixa claro que não devemos confiar em sua narrativa, ao
mesmo tempo coloca uma sentença que o contradiz logo em seguida:

“Todavia, não há nada mais exato.” 13

Nada é por acaso, como já dito, na obra do mestre da ambigüidade, como bem se
percebe neste caso e nas diversas situações em que o próprio autor deixa transparecer suas
dúvidas. Há um capítulo especifico intitulado Dúvidas sobre dúvidas.

O alto índice de ambigüidade que se reveste o texto é fruto da posição do escritor, que
para muitos estudiosos é um bruxo, pois a trama é tecnicamente perfeita, nenhum argumento
de defesa ou acusação se sustenta concretamente.

Segundo Proença Capitu é duplamente enigmática, para seu ex marido e para os


leitores. “Não se ouve, em nenhum momento, a voz de Capitu. Nada sabemos diretamente do
seu real pensamento, do seu amor e do seu desejo.” 14

11
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011, p.115

12
Ibid. p.91
13
Ibid. p.91
14
PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA, Lourenço e ABDALA JR.,
Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2001, p. 92
7

O mistério persiste e Capitu, a moça dos olhos de água, permanece indecifrável. Salvo
pelo autor Domício Proença que finalmente deu voz à suposta adultera. Em sua obra Capitu:
Memórias Póstumas, o membro da Academia Brasileira de Letras, permite que Capitu conte a
sua versão dos fatos.15

Dom Casmurro é leitura obrigatória nos vestibulares, o que o torna bastante


conhecido, porém, não o suficiente para declararmos que é uma obra popular, pois a
compreensão do romance exige do leitor conhecimento prévio, e para aqueles que não
possuem este requisito básico a leitura é estimulante. Para concluir, o clássico de Machado é
obrigatório, culturalmente, para todos.

15
Leitura dramática de Capitu: Memórias Póstumas, por Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras
http://mais.uol.com.br/view/5538xakjh4b4/leitura--fernanda-montenegro-capitu-
04026AD4B96327?cmpid=cmp-cfb-vdo
8

Bibliografia

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Orbis Editora, 2011.

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, a moça dos olhos de água. In: DANTAS MOTA,
Lourenço e ABDALA JR., Benjamin (Organizadores). Personae: grandes personagens da
literatura brasileira. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2001, p. 69-99

CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom


Casmurro. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
http://books.google.com.br/books?id=Q6kETzYptRMC&lpg=PA67&ots=dr9vc8d6Uq&dq=s
antiago%20santo%20iago%20helen%20caldwell&hl=pt-
BR&pg=PA33#v=onepage&q&f=false

GOULART, Audemaro Taranto. Dom Casmurro, ainda e sempre. Disponível em:


www.ich.pucminas.br/.../Dom%20Casmurro%20-%20Ensaio.pdf

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São


Paulo.Editora Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). 2005.

Leitura dramática de Capitu: Memórias Póstumas, obra de Domicío Proença Filho, leitura
realizada por Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras. Disponível em:

http://mais.uol.com.br/view/5538xakjh4b4/leitura--fernanda-montenegro-capitu-
04026AD4B96327?cmpid=cmp-cfb-vdo
9

Considerações Finais

Dom Casmurro é uma obra de extrema complexidade, é necessário mais de uma leitura para
que se comece a perceber além do que está escrito.

As inúmeras informações adicionais que o texto nos transmite é a ponta de um imenso


“iceberg”. Pesquisar a intertextualidade e as diversas figuras de linguagem é uma viagem
fascinante ao mundo machadiano.

Ao decorrer do romance, as descobertas de outros textos e discursos contidos nessa trama nos
permitem compreender o motivo de Dom Casmurro ser um clássico.

Os temas abordados na obra são atemporais e Machado de Assis soube brilhantemente tecer
de forma que faz com que há mais de um século as pessoas refletem sobre o que ele escreveu.

Dom Casmurro sim, ainda e sempre!

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