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LOREDANO
por não possuírem traços singulares.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA Ora, se a galeria de personagens é escolhi-
da por ser exemplarmente medíocre, mes-
mo banal, a linguagem que os define não po-
alton Trevi- de ser exuberante, muito menos barroca.
san (1925) é A repetição, tornada método de escrita,
D
a u t o r d e exigeumalinguagem sistematicamen-
u m a d a s te esvaziada, quase anônima.
obras mais Retorne-se ao conto. De novo, pe-
originais da loavesso, oautor explicita seu pro-
l i t e r a t u r a jeto linguístico e temático:
brasileira. “Quem leu um conto já viu
Com sabor todos. Se leu o primeiro pode
de parado- antecipar o último – bem an-
xo, essa originalidade foi conquistada atra- tes que o autor. (...) Mais de
vés da recorrência obsessiva de temas, de oitenta palavras não tem o
personagens, de situações e de uma fidelida- seu pobre vocabulário. O
de quase perfeita à forma do conto – em sua ritmo da frase, tão monóto-
extensa obra, a exceção é o romance A Pola- na quanto o único tema, não
quinha (1985). é binário nem ternário, sim-
Acrescente-se uma habilidade incomum plesmente primário. Reduzida
para ampliar os efeitos linguísticos de seus ao sujeito sem objeto, carece
textos a partir da redução aparentemente atédepredicado–todosospredi-
contraditória do universo das palavras, além cados. Presume de erótico e repe-
do emprego deliberado de chavões. O resul- te situações da mais grosseira por-
tado é uma estética da contenção; aliás, no nografia. No eterno sofá vermelho
duplo sentido da palavra: conciso e agônico. (de sangue?) a última virgem louca
O vampiro de Curitiba é um jogador de aos loucos beijos com o maior tarado
xadrez que sempre lança mão de idêntica de Curitiba. (...)”
abertura de jogo e adota um único sistema Naturalmente, o leitor deve inverter o
defensivo, porém nunca repete o xeque-ma- sentido das afirmações, a fim de avaliar a
te! Detalhe relevante, porque ele costuma superioridade dessa concepção de literatu-
vencer suas partidas. ra, compreendendo na repetição metódica a
Recordemos a trajetória fundamental do diferença almejada por Trevisan.
autor de Cemitério dos Escasseznãoéobriga-
Elefantes (1964). toriamente sinônimo
Com sabor de paró- ** deprecariedade.Afinal,
dia, Quem Tem Medo de A repetição empregada se literatura é a arte
Vampiro?, reunido em como método exige uma combinatória do pro- A breve menção à passagem bíblica, acer- san – isto é, o primeiro reconhecido, pois ele
Dinorá (1994), talvez priamente humano, 80 ca da beleza espontânea dos lírios do campo, renegousuaspublicaçõesanteriores. Refiro-
sejaumpontode parti-
linguagem esvaziada, palavras permitem a amplifica o efeito de dessacralização provo- me a Novelas Nada Exemplares (1959), cuja
da conveniente. Pelo quase anônima – não reinvenção infinita de cado pela sequência imediata: “bem que es- menção a Miguel de Cervantes não passou
avesso, o conto ofere- pode ser exuberante um núcleo restrito de tão gordinhas”! incólume.
ce um retrato da litera- ** histórias. Isso para não Deigualmodo,nasuaperegrinação,ovam- OttoMaria Carpeauxreagiucomambigui-
tura (e mesmo de as- mencionarosjogoslite- piro Nelsinho, na urgência típica dos 20 dade ao livro, que obteve o Prêmio Jabuti.
pectos da biografia) de Dalton Trevisan. O rários que Trevisan inclui com sutileza no anos, flerta não apenas com mulheres as No calor da hora, ele se viu compelido a res-
texto incorpora satiricamente as ressalvas “único” conto que reescreve sem parar. mais diversas, mas também com a literatura. salvar:“Apretensãoinédita dessetítulopare-
maiscomunsfeitasaseuestilo,transforman- Entre 1946 e 1948, ele foi editor de impor- Recorde-se outra passagem do conto: ce desafio à crítica.” A resenha não é exata-
do em matéria ficcional a incompreensão de tante revista, que assim definiu: “O movi- “Cedo a casadinha vai às compras. (...) Ó mentefavorável,mas temomérito deassina-
certos críticos. Leia-se a abertura: mento de renovação inventado por Joaquim bracinho nu e rechonchudo – se não quer laros eixos da literatura doautor deA Guerra
“Há que de anos escreve ele o mesmo con- não tem ambições modernistas: tem ambi- por que mostra em vez de esconder? –, com Conjugal(1969) –aliás, adaptadopara o cine-
to? Com pequenas variações, sempre o úni- ções modernas.” Por isso, no seu conto, me- uma agulha desenho tatuagem obscena. ma por Joaquim Pedro de Andrade.
co João e a sua bendita Maria. Peru bêbado nosésempremais.Estetadaconcisão, Trevi- Tempiedade, Senhor,sãotantas,eu tão sozi- No juízo de Carpeaux: “Os acontecimen-
que, no círculo de giz, repete sem arte nem san vislumbra no conto a possibilidade de nho.” tos nas novelas de Cervantes criam nos per-
graça os passinhos iguais. Falta-lhe imagina- um haicai narrativo. Malicioso, o narrador pisca um olho para sonagens um estado de alma próprio ‘para el
ção atépara mudar o nome dospersonagens. Leia-se, então, O Vampiro de Curitiba, pu- Machado de Assis, na alusão a Uns Braços. hombre salvarse’. Nas novelas nada exem- ● Do Suplemento
Aqui o eterno João: ‘Conhece que está mor- blicado no livro homônimo, saído em 1965. Nesse conto, Inácio, um rapaz de 15 anos, plares do Sr. Dalton Trevisan, os aconteci- Literário
ta’. Ali a famosa Maria: ‘Você me paga, bandi- O texto apresenta um personagem-síntese não resiste à visão dos braços nus de D. Seve- mentos criam nos personagens um estado Leia entrevista do
do.’” das obsessões do autor: “Nelsinho, o Delica- rina, “belos e cheios, em harmonia com a de alma para o homem perder-se.” ficcionista curitibano
O retorno de personagens em narrativas do”, definido com poucas, mas definitivas dona, que era antes grossa que fina”. Sem dúvida. concedida a Mussa
do mesmo autor não é exatamente novidade pinceladas:“Pobre rapaznadanaçãodosvin- Ao mesmo tempo, o narrador enfrenta di- A não ser que esse homem seja leitor de José Assis, um feito
nemprecisamos mencionaraHonorédeBal- te anos.” O nome do personagem não deixa lemasemelhante aoimpassedo poeta drum- Dalton Trevisan. raro publicado pelo
zac. Por exemplo, Quincas Borba surge co- de trazer à baila o universo de Nelson Rodri- mondiano. Leiam-se os versos iniciais de O Nesse caso, ele intui que a esperança de SL em 27/8/1972, já
mo personagem em Memórias Póstumas de gues. Ademais, o conto alude à linguagem Lutador: “Lutar com palavras / é a luta mais salvação ou o temor da condenação pouco na fase em que o ca-
BrásCubaseposteriormentevoltanoroman- bíblica, à obra de Machado de Assis, à poesia vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã. importam ao vampiro (que todos nós so- derno deixara de cir-
ce homônimo. de Carlos Drummond de Andrade: São muitas, eu pouco (...).” Basta substituir mos). cular aos sábados,
Contudo, Dalton Trevisan vira o recurso “Olhe as filhas da cidade, como elas cres- “palavras”por“mulheres”, e Nelsinho,o De- E não apenas em Curitiba. passando a sair aos
de ponta-cabeça. Nos casos de Balzac e Ma- cem: não trabalham nem fiam, bem que es- licado, não hesitaria em se engajar na porfia. domingos:
chado, os personagens que retornam são ti- tão gordinhas. Essa é uma das lascivas que O trânsito entre repetição, esvaziamento ✽ estadão.com.br/e/dt
pos excepcionais. Na literatura de Trevisan, gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na da linguagem e jogos literários se encontra JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR
“João” e “Maria” retornam precisamente meia de seda (...).” no título do primeiro livro de Dalton Trevi- DE LITERATURA COMENTADA DA UERJ
Tipo“nossa, eles sabem fazer (... preencha todo homem de juízo é fã da frase de Terên- camaradas, ele mora aqui do lado.
CAETANO W. GALINDO a contento...) lá naqueles matões!”. Mas aí cio que diz que a nós, humanos, nada do hu- ***
soa mornamente vingançoso dizer com to- mano pode (deve) ser jamais estranho, Mas, espera aí. Esta edição toda é em tributo
dos os foneminhas que, afinal, o maior escri- olhou em volta, viu o caos, a decadência, viu aoseu Vampiro. Issotudo será ditoem todos
maior escritor do tor do Brasil mora aqui, a poucas quadras da o amor pequenininho e adoentado, viu tesão os tons, por resenhistas muito mais sutis e
Brasil mora a pou- minha casa. Assim como soa muito agradá- tão mirradinho ou mais parrudo, viu a dor, a finos que eu (e enquanto eu escrevia esta
O
cas quadras da mi- vel lembrar que ele chegou aonde chegou, violência, o pasmo, o encanto e mesquinhez frase, soube que ele ganhou o Prêmio Ca-
nha casa. Soa con- atingiu o que atingiu, construiu a obra que de sermos eu, você e ele nós. mões!) E o que tinham me pedido era um
fortável dizer isso. construiu e tudo mais, sem jamais: O maior escritor do Brasil solta um livro texto sobre esta “vizinhança”, sobre convi-
Masvamos reelabo- 1. jogar o jogo do capiau e se bandear de por ano. O maior escritor do Brasil tem uma ver nas pertitudes de Dalton Trevisan.
rar, por justiça pro- mala, cuia, ideologia, temática e modelos obra de uma consistência e de um nível de E cá vou eu na dele mais uma vez, insis-
saica, até. Que seja. pro centro que o pudesse atrair. qualidade que só se renovam e se só refinam. tindo que o conto há de ser maior, e mais
Euéquemoroapou- 2. jogar o jogo do capiau mala e celebrar Se Truman Capote tinha direito de cutu- interessante, que o contista? (...)
cas quadras do alguma pretensa diferença ideológica, te- car Norman Mailer eGoreVidal dizendo que
maior escritor do Brasil. Ponha-me, eu, no mática ou ‘cuial’ que pudesse haver cá na eles podiam ser grandes, mas jamais haviam ✽
meu lugar. Soa ainda mais confortável. quinta comarca. inventado um gênero, o que dizer de um es- CAETANO W. GALINDO É PROFESSOR DA UNIVER-
Nós, paranaenses, nós, curitibanos, esta- O ufanismo e o deslumbre foram duas critor que inventou uma literatura? Que es- SIDADE FEDERAL DO PARANÁ E TRADUZIU, ENTRE
mos mais do que acostumados a nos sentir aves que jamais se empoleiraram no muro perou décadas até que todos (todos?) enten- OUTROS LIVROS, ULYSSES, DE JAMES JOYCE (RE-
periféricos, extra-jogo, descontáveis. Com coberto de lascas de vidro (“cacos” são dessem que ele não estava escrevendo con- CÉM-LANÇADO PELA COMPANHIA DAS LETRAS)
tudo, reconheçamos, que possa haver tam- coisas aleatórias; nosso hematófago não tos, não estava escrevendo livros? Mas que
bém de bom nessa posição, nessa situação. faz nada que não de caso pensado) da casa eleestavaescrevendoaobrade DaltonTrevi-
Se é verdade que temos de fazer muito do nosso escritor. san, seu maior personagem, seu maior livro. estadão.com.br
mais barulho para garantir qualquer aten- O homem cantou o rio da aldeia dele, o Cada conto pode até ser peça de um livro.
ção, é fato também que contamos por ve- nosso rio (literalmente, né), lembrando que Mas, como ele, cada livro é peça da obra, que A íntegra deste artigo está em:
zes com um fator “pasmo” que nos conce- ele era mais sujo e mais seu que qualquer continua, cada vez mais ativa. É necessário estadao.com.br/e/galindo
de certas benesses. outro e, assim, mais universal. Ele, que como lê-lo todo. E isso é novo. E isso é imenso. E,