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FERNANDO PESsOA 1 § ANTÓNIO M.

FEIJÓ

FERNANDO PESSOA TEM A SINGULARIDADE de, na sua obra, convocar


e exceder as linhas de força decisivas da literatura dos dois séculos que
o precederam. Consideremos o verso de Alvaro de Campos «Fui até ao
campo com grandes propósitos». Um tópicomaior da poesia romântica
europeia, porventura o mais insistente, éaqui economicamente enun
ciado. Arelação entre a natureza e o sujeito, entre um campo e o poeta
que o visita, permite, descrições contraditórias. Tais descrições ora pri
vilegiam a força visionária do poeta, ora celebram a consolação que o
lugar natural de modo materno lhe dá, ora conciliam mente e lugar
de modos diversos. Que a vida campestre, descrita por Marx como um
coercivo coninamento privado, um lugar de idiotia, pudesse animar
«grandes propósitos» cedo pareceu a leitores contemporâneos, des
de finais do século xVIII, uma incompreensível imputação de virtu
de a um lugar natural. Entreter alguém um devaneio napoleónico de
glória num solitário lugar bucólico viria a parecer a outroS, um pouco
mais tarde,um movimento que só podia ser descrito como passional
mente perverso. Um muito citado poema do poeta romântico inglês
Wordsworth que descreve como a memória da viso de um campo
de narcisos,que ovento fazia dançar, Ihe levou ocoração asaltar de si e
adançar entre eles pôde, por isso, ser lido, por críticos do seu tempo,
como evidência de uma perturbação mental do autor. Rousseau, cuja
obra induziu uma alteração maior da sensibilidade europeia, foi expos
topor alguns como origem deste irracionalismo volúvel, desta ausência
de tónus temperamental, desta lábil emotividade perpétua. (Se aquela
critica ao poema de Wordsworth nos parece hoje excessiva, no seu
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o CÂNONE

sensibilidade gue
intimidatório tom clínico, é porque a estrutura da
irrelevante'.)Para uma
satura é a nossa, tornando o poema trivial, se não
longa tradição crítica contra-revolucionária, os devaneios de passeantes
solitários, de que Rousseau foi a influente figura modelar, ressurgiram.
devaneios
na procurade um objecto prático sobre que esses abstractos
literários pudessem incidir, no Terror revolucionário de Robespierre
Se, no verso de Álvaro de Campos, substituirmos «campo» por «Rua
dos Douradores», disporemos de uma descriço precisa do Livrodo
Desassossego, de Bernardo Soares. No versoe na prosa de ambos os nomes.
depara-se-nos a reiterada manifestação de uma mente muito em excesso
dos objectos sobre que incide. Esta incomensurabilidade entre mente e
objecto, agravada pela inquietude perpétua da primeira, induz ansiedade
no sujeito. Como, nos termos de uma distinção de Freud, aansiedade re
sulta de uma ameaça interna, e o medo, de um perigo externo, os modos
de evadir uma e outro diferem. Se um confronto directo ou a fuga podem
anular o perigo que motiva o medo, o objecto indutor de ansiedade é
transportado no interior do sujeito, sem que lhe seja possível evadi-lo.
Aliteratura de Pessoaé um
confrontoreiterado da ansiedade gue é a
estrutura elementar daconsciência de si. Os modos como a confronta
sãodiversos e inesperados. Antes deos
notar-se que este confronto nãoéumtraçodescrever, deverá, noentanto,
singular de Pessoa (embora,
muitas vezes,ele procure
exemplo, pretende que a persuadir-nos
de ser esse o caso,
virulência com que
quando, por
são interior, desse diálogo sofre os efeitos dessa ci
resulta da sua condição deinterno com conteúdos muitas vezes tóxicos,
origem desse confronto radical
da estrutura
«histérico-neurasténico»).
Mas, de facto, a
precede-o, na descrição romântica
da mente, tal como radica
elementar
em dois versos do ela se condensa, por
|«Overdugo de si
poema de Baudelaire exemplo,
ea face!» No mesmo»|:«Eu sou a «LHéautontimorouménos»
pathos destes versos ferida e afaca! / Bu sou abofetada
mesmo lugar se encerram,
osujeito partilhando precisamente
se denota como
a natureza de num
agressor objecto
e o
agredido. conteúdo mental,
'Umaaproprifoiaçãopararecente
«A privação deste poema de
for me what
daffodils
mim o
were
Wordsworth
que os narcisos foram
para
éado poeta
inglês Philip Larkin:
?Observer»,
«<e suis laRequi red for
Wordswort h»). Wordsworth» («Deprivation
Philip
plaie et leWriting, Je Pieces 1955-1982.Larkin, «An interview with The
was
Miscellaneous
couteau!/ suis le soufflet et la joue!»
Londres: Faber, 1983, p. 47
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A
implicação é aqui, como Freud fez notar, que essa cisão interior
da mente só pode ser reparada ou resolvida pela própria mente. Para
Pessoa, atentativa de resoluçãodeste dilema tem no poema «Ela canta,
pobre ceifeira» oseu lugar primeiro, e maior, se considerarmos omodo
excessivo como se lhe refere, quando escreve, numa carta de 1915, que
se ama asi mesmo por o ter escrito. Na ceifeira que, absorvida no traba
lho de ceifar, canta no camp0, ao longe, uma toada musical indistinta,
projecta opoeta um descjo: «Ah,poder ser tu, sendoeu!/ Ter atua ale
ore inconsciência/ E a consciência disso», Este desejo de submergir-se
numa absorção em si mesmo idêntica à da ceifeira, e ao mesmo tempo
dispor da inteligência dessa absorção numa clausura interior intacta,é
um paradoxo insanável, «Ela canta, pobre ceifeira» cujo tempo de
escrita se prolonga entre 1914 e1924, alongevidade da execução fazendo
avultar a importância do que descreve não resolve ou repara a cisão
interior, apenas a nomeia de um modo memnorável.
Um modo mais eficaz de resolução deste dilema reside na
criação dos
chamados heterónimost. Apretensão de Pessoa de que esta criação radi
caria na sua natureza
histérico-neurasténica é afim de uma outra a que, de
modo igualmente insistente, recorre, a da impessoalidade
seria constitutiva da sua forma mental e literária. Esta dramática que
privando-o de qualquer identidade discernível, tornálo-ia impessoalidade,
alheio aos
impulsos e figuras que atravessam, como bólides de que não é
o palco vazio do seu teatro mental. Mas, responsável,
também aqui, a natureza evasiva
das suas autodescriçõesencobre afiliações
Omesmo diagnósticoclínico, literárias, reais ou prospectivas.
histérico-neurasténico, é,
atribuído por Pessoa a Shakespeare, a enfermidade de ambospor exemplo,
membros de uma pouco povoada classe de autores cujo traçotornando-os
genio. (Que, em alguns textos, Pessoa defenda que a obra de comum éo
Toi, na realidade, escrita por
Francis Bacon sugere que o nome Shakespeare
por que
30 poema de Pessoaé,
Ontary Reaper», poema de como em 1953 Jorge de Sena fez notar, uma versão de «The
bém ele, decisivo na vida Wordsworth que exprime uma indecisão análoga e é, tam
ela ve nos diversos textospoética do autor. Numa observação muito
de Pessoa sobre António arguta, orge de
oDre que mais escreveu) um exemplo Botto (o poeta contemporâneo
absorção em si adicional do interesse de Pessoa por uma intacta
mesmo
viver ahomossexualidade.que anularia aansiedade, que lhe parece ser o modo de Botto
4Em
passos deste ensaio transcrevo, sem os
publiquei sobre Pessoa ePascoaes.
assinalar, excertos de um livro que, em 2015,

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o CÂNONE

dramaturgo inglês, «Shakespeare», éode um heterónimo


conhecemos o uma meta-identidade comum ,
insinuando
de Bacon, deste modo se
e Bacon.) A pretensão de
ambos os criadores de «heterónimos», Pessoa arte éocasionalmente
uma forma de
que uma condição clínica determina escreve como escreve, por
plausível, mas nãoé aqui persuasiva: se Pessoa
explicar por que
ser determinado por essa sua condição, será necessário A heteronímia
escrevam.
não há histérico-neurasténicos que como ele
de Pessoa é, de facto, em vez disso, um modo singular de resolver a inte
rioridade estéril da consciência de si. Ser FernandoPessoa quem suporta
opeso do desacerto entre consciência e objecto mental, e oexprime, só
pode radicalmente diferir de ser um dos seus heterónimos, Alvaro de
Campos, por exemplo, quem esse mesmo peso suporta, e o exprime.
Em Álvaro de Campos, a estrutura dividida da consciência de si poderá
permanecer irreparavelmente cindida, mas o facto de ela ser objecto de
enunciação por um autor factício cuja identidade é intacta e indivisa, sem
anterioridade ou fundo, confina-a a umn mero tópico, encerra-a nos limi
tes de um poema, na monumentalidade de uma inscrição, não refluindo
sobre quem a enuncia, como ostensivamente reflui sobre Pessoa, com
consideráveis custos psiquicos, quando este a exprime em nome próprio.
Aorigem da heteronímia é, para além disso,
dade do seu impulso original parece ser o modopolémica. agressivi
A
ao pôr em prática o movimento de enérgico necessário
de si. Pessoa reconheceu, em erradicar os efeitos da consciência
diversos lugares, a natureza polémica da
heteronímia: numa carta de 1919, exXortando um amigo a enviar cola
boração para uma revista de autores
em Londres, projecto que portugueses
viria abortar como tantos
a
a publicar em ingls,
explica em que deve consistir um sistema outros, Pessoa
to, de um sistema de de «pseudonímia» (é, de fac
Pessoa, em 1919, de um«heteronímia»
nome para
que esta carta trata, não dispondo
seu primeiro uso da
palavra denotar essa peculiar criação sua: o
«heterónimo»
qualificar obras literárias escritas emn
data de 1928, e é usado para
delas.). Oteor dos textos nome de outrem, não OS autores
na carta, deverá desses «pseudónimos» a criar, explica Pessoa
começar por ser destrutivo, Pessoa
autores, vivOs ou mortos, que se reconheça valerconsistir num abattag
abrir com um a pena matar: «E ópu
estudo destrutivo de
disso, deverá dar-se,
mais amplo com este qualquer vivo vivente.» Para além
requisito sistémico: movimento, uma respOSta prática a um
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Éconveniente, no caso de se empregarem pseudónimos, fazê-lo


segundo um sistema, dando a cada pseudopersonalidade um
certo número de atribuições constantes; isto, simplesmente,
para não destruir a estética da pscudonímia, e, se os pseudó
nimos forem nomes portugucses, com aparência de nomes
reais, para manter o caráter dramático que essa obra impõe,
oentre-destaque das diversas 'pessoas's

Adescrição, nesta carta de 1919, do que deverá ser um sistema de


«heteronímia» recapitula o processo de criação dos heterónimos de
Pessoa, na Primavera de 1914. Aorigem polémica dosistema revela-se
em ter sido Alberto Caeiro, o mestre concertante do grupo, delibe
radamente criado contra Teixeira de Pascoaes,que Pessoa reconhecia
como o mais importante poeta do seu tempo. Na polémica de Alberto
Caeiro contra Pascoaes, cuja incidência mais flagrante éopoema xxvIII
de O Guardador de Rebanhos, Pascoaes éexemplo daquele excesso de
investimento da mente no objecto natural, o qual sem cessar satura de
sentimentoe emoções. Eeste excesso, que fora igualmente um dado
constitutivo de Pessoa atéentão, que acriação dos heterónimos visa su
perar. Contra oidioma poético de Pascoacs, Caeiro defende, de um modo
quase compulsivo, que oobjecto descrito seja privado de qualquer traço
de memória que afecte a sua percepção, ou de qualquer reflexão que o
exceda. Os heterónimos entretanto surgidos comno discípulos de Caeiro
irão elaborar aspectos que o ascetismo deste quis ignorar: Ricardo Reis
ponderando, em odes horacianas, as decepções do tempo e da memória,
Alvarode Campos fazendo proliferar os impulsos motores e psíquicos
mais instáveis.Os três heterónimos de Fernando Pessoa facultaram-lhe,
pois, modos de acesso àfala, «dicções adquiridas» (na expressão de Jorge
de Sena) que irão permitir uma larga produtividade poética futura.
Quando, em 1928, Pessoa os descreve como um «drama em gente», nã
Carta a Francisco Fernandes Lopes, de 26 de Abril 1919. Correspondência I, edição de
Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 276-277.
Luhoje quase duas páginas/Do livro dum poeta místico, / Ericomo quem tem chorado
muito. / Ospoetas místicos são flósofos doentes, / E os filósofos são homens doidos.
I! orque os poetas místicos dizem que as flores sentem/E dizem que as pedras têm
alma/ E que os rios têm êxtases ao luar. // Mas as flores, se sentissem, não eramn flores,
T Dram gente;/E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;/E se
0S Tios tivessem êxtases ao luar. /Os rios seriam homens
doentes.»

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o CÂNONE

em «actos», toma-os como os nomes


sucessivos de uma tripla
homóloga da de um drama em três actos, em que Alberto Caeiro & estrutura,
primeiro momento matutino, Ricardo Reis, omeio-dia, e Álvaro
Campos, o momento crepuscular da tarde ou da noite. No arranjo sis-
témico deste fixo dia compósito -que mostra como oss heterónimos só
podem ser três, e não a pletora de nomes que fascina muitos pescadoree
de pérolas-, a cada um dos heterónimosé conferido «um certo número
de atribuições constantes» que o distinguem dos seus comparsas e do
compère, Pessoa ele mesmo. Ofacto de esta construção de iguras poéticas
ser, em parte, manifestamente deliberada tem permitido críticas da sua
autenticidade ou valor. E o caso de uma polémica recente sobre uma
apologia do esclavagismo por Pessoa- a qual pode, de facto, ser textual
mente documentada , em que o debate parece, todavia, ter
ignorado
como essa apologia é, numa das suas ocorrências, um corolário sistémico
do paganismo de Ricardo Reis, logicamente por ele requerido, apesar de
ser repulsivo ao liberalismoconservador do próprio Pessoa. E igualmente
o caso da crítica de João Gaspar Simões ou de Herberto Helder à
dos heterónimos, em que o primeiro vê neles um fracasso
poética
cuja inautenticidade sóo reencontro do Pessoa dramatúrgico
ortónimo com a genuína
tradição lírica portuguesa faria desaparecer, e o segundo persiste em
chamar-lhes «pseudónimos», procurando deslegitimar a pretensão de
Pessoa de neles ter criado um modo de expressão
casos, mais indicativos da ansiedade dos críticos inédito. Em todos estes
do que da preciso do
que afirmam, se pretende que os nomes dos
de etiquetas subscrevendo heterónimos não passam
a este respeito invocável
conjuntos de textos. Mas a
contra-evidência
facilmente
vezes excedem a mera função de nome de expõe como os heterónimos por
autor. Alvaro de Camp0s, por
exemplo, foi instrumental no colapso da relação
Ofelia Queiroz, a quem apareceu, em amorosa de Pessoa com
indisfarçada frustração de Ofélia, sobmomentos capitais da relação, pard
a forma agressiva de um
misógino de Pessoa. Quanto a Ricardo Reis- o incub0
primeiro entreviu, em 1912, e, por heterónimo que PesSO4
após a criação de Caeiro, em 1914, insubstancial, se dissipou, e que
a existir
como autor -, viria aser pôde ser retirado desse limbo e pass
a mais persistente presença na vidade
Pessoa, acompanhando-o
filialmente até à morte7, Aúltima frase que, c
7José
Saramago intuiu exactamente isto, e
dramatizou-o em OAno da Morte de RRicardo Reis.
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Novembro de 1935, Pessoa escreveu antes de morrer, «I know not what


to-morrow may bring», versão de um conhecido verso de Horácio³, é do
estóicoRicardo Reis (que Pessoadescrevera, numa carta de 1924 a um
editor inglês, como «a Greek Horace who writes in Portuguese»). Evidências
deste tipo, que poderiam facilmente ser suplementadas, revelam como os
heterónimos excedem os estritos limites do literário,ou como literatura
e vida são em Pessoa, como em outros autores maiores, indistinguíveis.
Algumada incomodidade crítica com os heterónimos resulta do que
étido por construído, se não frívolo, nas descrições que Pessoa fez da
sua emergència. Ocaso mais evidente parece ser o da conhecida carta
a Adolfo Casais Monteiro, de Janeiro de 1935, sobre a génese dos he
terónimos, um dos grandes textos ficcionais de Pessoa, que, de facto,
se revelou um pouco fiável relato do que diz relatar. As descrições mais
pertinentes da heteronímia são, em vez disso, dois planeados prefácios
de Pessoa a uma publicação eventual da sua obra inédita: o
primeiro,
conjecturalmente datado da década de 1920, aum volume a ser intitu
lado Aspectos; o segundo, dadécada de 1930, a um livroque teria por
título Ficões do Interlúdio. A personalidade de cada um dos heterónimos
édescrita, no primeiro destes textos, como sendo
«perfeitamente una
consigo própria», como abolindo em acto a separação constitutiva da
consciência de si. Se uma personalidade em si surgida se veio a reve
lar <«mais demorada»,Pessoa reconheceu-lhe uma
«índole expressiva»
própria, e fez dela um «autor», Os heterónimos «estes homens todos
diferentes,todos bem definidos, que lhe passaram pela alma
damente»-são«´aspectos' da realidade, totalizados em pessoas incorpora
tivessem», Este movimento é descrito, num outro texto, como que os
a0 que um «supremo despersonalizado» como análogo
Se, em vez de criar uma Shakespeare teria feito
a que dáo nome, a tivesse
personagem como Hamlet no interior da peça
criado como uma «personagem, sem drama»
que, evadida dos limites do palco,
Sena, «um monólogo prolongadoeenunciasse, na expressão de Jorge de
analítico». (Alvaro de Campos seria,
pois, análogo a um Hamlet sem Hamlet.) Um dos poucos pares de Pessoa
na literatura do século xx, o
poeta irlandês W, B. Yeats, delineou
CIsamente este movimento, num passo de uma das pre
suas autobiografias,
«Quid sit futurum cras
Quotations fuge quaerere» (Odes ix. 13), que The Oxford Book of Literary
(3. edição, 1979) traduz
9
um Horácio grego que por «Drop the question what
escreve em tomorrow may bring:
portugues»
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The Trembling of the Veil (1922)o, Yeats descreveaqui comoas persona.


gens do poeta medieval inglês Chaucer, associadas, em The Canterbury
Tales,na convivialidade palradora de uma peregrinação exuberantee
vívida, se autonomizaram desse convívio, e reapareceram, dois séculos
mais tarde, no tempo de Shakespeare, como protagonistas singulares de
peças dramáticas (Macbeth, por exemplo), para, por fim, cm finais do
século xIl,se dissolverem nos fragmentos psíquicos da experiência in
terior de cada um dos poetas românticos. A passagem de uma comunid
de vitalde pessoas, em Chaucer, à singularidade de um herói dramático.
em Shakespeare, e, mais tarde, aos ténues movimentos de uma mente
talcomo eles são expostos numa meditação lírica, em Wordsworth, por
exemplo, descreve o curso da história literária que Yeats quer reverter.
A reversão consiste em passar da severamente interiorizada meditacão
lírica dos poetas românticos a um universo necessariamente mais com
plexo do que o dos peregrinos medievais de Chaucer, mas todavia afim
dele na sua arcaica exuberância vital: a criação de uma «procissão dos
Deuses», de uma mitologia moderna povoada de figuras".
E este, igualmente, o propósito da heteronímia pessoana. Alberto
Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são semideuses que, intactos
na sua monumentalidade, encarnam uma mitologia que Pessoa pretende
criar e repetidamente definiu como um reconstruído Paganismo Supe
rior. O paganismo de Pessoa éuma construção que se insurge contra o
que com insisténcia expõe como a morbidez do cristianismo e da mo
dernidade literária, cultural e política que dele deriva. Sem existência
corpórea, os heterónimos são incapazes de sentir, dividir-se ou sofrer,
embora exprimam, com inigualado brilho, a incidência em si das frac
turas que resultam de sentir e de sofrer. Se os tomarmos por aquilo que
o seu criador pretende que sejam, semideuses cujos interlocutores reais
são os desaparecidos deuses da Antiguidade clássica, Fernando Pessoa
ele-mesmo torna-se-lhes necessário como molde de encarnação, possi
bilitando que nele possam viver e ser afectados pela transiência e pela
experiência humanas a que como semideuses são alheios. A descriço
mais exacta do seu surgimento não é, por isso, a da célebre carta de
Pessoa aCasais Monteiro quando relata como, em8 de Março de 1914, n0
«dia triunfal» da sua vida, após aescrita de «O Guardador de Rebanhos",
1o W. B. Yeats, Autobiographies. Londres: Macmillan, 1956, p. 193.
"A mais forte delineação deste programa éados filósofos epoetas romå£nticos alemães.
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onome «Alberto Caeiro» lhe surgiu de imediato como o do autor da


sequência. É, antes, a que éfeita no prefácio de Pessoa ao planeado vo-
lume Ficções do Interlidio, em que apercepção interna dos heterónimos
sdescrita como uma intuição arduamente obtida num lugar interior por
vezes espessoe pouco perceptível:

Háacidentes do meu distinguir uns dos outros que pesam


como grandes fardos no meu discernimento espiritual: dis
tinguir tal composição musicante de Bernardo Soares de uma
composição de igual teor que éminha. Hámomentos em queo
faço repentinamente com uma perfeição de que pasmo; e pas
mo sem imodéstia, porque, no crendo em nenhum fragmento
da liberdade humana, pasmo do que se passa em mim, como
pasmaria do que se passa em outro dois estranhos. Só uma
grande intuição pode ser bússola nos descampados da alma; só
com um sentido que usa da inteligência, mas se não assemelha
a ela,embora nisto com ela se funda, se pode di[tinguir e[tas
figuras de sonho na sua realidade de uma a outra."

Otempo lento e a dificuldade de percepço da emergência destas


figuras explicam por que não deve considerar-se a heteronímia como
uma construção acessível a qualquer autor que decida isolar e pro
longar um modo expressivo próprio, e em seguida assine o texto de
aí resultante com um adventício nome de pessoa (como éo caso de
«Juan de Mairena» de Antonio Machado, ou de «João Bensaúde» de José
Régio). Uma refutação implícita de qualquer descrição da génese dos
heterónimos como tendo sido construída com esse grau de deliberação
éfeita por Pessoa num outro planeado prefácio, agora à obra poética
de Ricardo Reis. Em 28 de Janeiro de 1914, pelas onze horas da noite,
diz-nos,estivera a ouvir uma discussão sobre os excessos da arte mo
derna e, no semi-alheamento com que habitualmente participa nesses
inconclusivos colóquios, foi elaborando para si uma teoria neoclássica,
anti-romântica, da arte,que contrariasse aqueles excessos. Concluida
a elaboração da teoria, surgiu-lhe associada a ela um nome, um nome,
diz-nos, «grato ao meu ouvido, o nome do Dr. Ricardo Reis'». Aobra
"Fernando Pessoa, Teoria da Heteronímia, edicãode Fernando Cabral Martins e Richard
Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 239.

39
ocÁNONE

poética resultante é pública e partilhável: «O Dr. Ricardo Reis


onde nasceu, em minha alma. Istolivre do cripto éoseu solene morreu
enterro.o »3
Aalma de Fernando Pessoa éo cripto, ou cripta, de onde «isto»,
de odes de Ricardo Reis,,laboriosamente emergiu. Na transformação livrode
um objccto mental na figura de uma pessoa, no tentear cognitivo até à
emergéncia do nome um nome acusticamente agradável, como o de
todos os outros heterónimos, revelando este agrado eufónico a parte
de deliberação que houve na escolha do nome -e da diccão poÇtios
própria dessa figura reside a originalidade de Pessoa. Uma descricãn
muito arguta,e crítica, desta peculiaridade da heteronímia pessoana é
feita por José Régio, no posfácio àreedição, em 1969, do seu livro Poemas
de Deus e do Diabo:

A variadíssimos arti[tas seria fácil inventar heterónimos desde


que isolassem - e os desenvolvessem como quem desenvolve
personagens romanescas os diferentes aspetos da sua per
sonalidade. A invenção dos heterónimos pode relacionar-se
com a mais funda originalidade de Fernando Pessoa, sem que,
porém, fosse necessária para tal originalidade se afirmar.
Se a heteronímia de Pessoa actualizou, de modo original, um propósito
expressivo disponívela outros autores, dela viria oseu criador a progres
sivamente se afastar. De facto, na vida poética de Pessoa, os heterónimos,
àexcepção de Alvaro de Campos, tendem a silenciar-se. O dilema da
cisão interior a que eles foram a resposta prática foi perdendo a acui
dade mórbida inicial, e Pessoa passou a ocupar a objectividade de do
mínios mais amplos, na meditação negativa de um destino nacional em
Mensagem, por exemplo, ou na ponderação prática das condições iniciais
de enunciação da literatura, no Livro do Desassossego do semi-heterónimo
Bernardo Soares. Estes movimentos e impulsos prosseguem a
de uma mitologia, de um modo menos evidente, mas mais amplocriação e pro
fundo, do que o assegurado pelas figuras sedutoras dos heterónimos.
O resultado éa obra de um autor cujos pares, háque
constatá-lo, são,
no século xx, em qualquer idioma, porventura tão escassos como os
dedos de uma mão.

3 ldem, p. 301.

40
O CÂNONE
António M. Feijó
João R. Figueiredo
Miguel Tamen

(eds.)

FUNDAÇÃO CUPERTINO DE MIRANDA


EDIÇÕES TINTA-DA-CHINA
LISBOA, MMXXI

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