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FEIJÓ
sensibilidade gue
intimidatório tom clínico, é porque a estrutura da
irrelevante'.)Para uma
satura é a nossa, tornando o poema trivial, se não
longa tradição crítica contra-revolucionária, os devaneios de passeantes
solitários, de que Rousseau foi a influente figura modelar, ressurgiram.
devaneios
na procurade um objecto prático sobre que esses abstractos
literários pudessem incidir, no Terror revolucionário de Robespierre
Se, no verso de Álvaro de Campos, substituirmos «campo» por «Rua
dos Douradores», disporemos de uma descriço precisa do Livrodo
Desassossego, de Bernardo Soares. No versoe na prosa de ambos os nomes.
depara-se-nos a reiterada manifestação de uma mente muito em excesso
dos objectos sobre que incide. Esta incomensurabilidade entre mente e
objecto, agravada pela inquietude perpétua da primeira, induz ansiedade
no sujeito. Como, nos termos de uma distinção de Freud, aansiedade re
sulta de uma ameaça interna, e o medo, de um perigo externo, os modos
de evadir uma e outro diferem. Se um confronto directo ou a fuga podem
anular o perigo que motiva o medo, o objecto indutor de ansiedade é
transportado no interior do sujeito, sem que lhe seja possível evadi-lo.
Aliteratura de Pessoaé um
confrontoreiterado da ansiedade gue é a
estrutura elementar daconsciência de si. Os modos como a confronta
sãodiversos e inesperados. Antes deos
notar-se que este confronto nãoéumtraçodescrever, deverá, noentanto,
singular de Pessoa (embora,
muitas vezes,ele procure
exemplo, pretende que a persuadir-nos
de ser esse o caso,
virulência com que
quando, por
são interior, desse diálogo sofre os efeitos dessa ci
resulta da sua condição deinterno com conteúdos muitas vezes tóxicos,
origem desse confronto radical
da estrutura
«histérico-neurasténico»).
Mas, de facto, a
precede-o, na descrição romântica
da mente, tal como radica
elementar
em dois versos do ela se condensa, por
|«Overdugo de si
poema de Baudelaire exemplo,
ea face!» No mesmo»|:«Eu sou a «LHéautontimorouménos»
pathos destes versos ferida e afaca! / Bu sou abofetada
mesmo lugar se encerram,
osujeito partilhando precisamente
se denota como
a natureza de num
agressor objecto
e o
agredido. conteúdo mental,
'Umaaproprifoiaçãopararecente
«A privação deste poema de
for me what
daffodils
mim o
were
Wordsworth
que os narcisos foram
para
éado poeta
inglês Philip Larkin:
?Observer»,
«<e suis laRequi red for
Wordswort h»). Wordsworth» («Deprivation
Philip
plaie et leWriting, Je Pieces 1955-1982.Larkin, «An interview with The
was
Miscellaneous
couteau!/ suis le soufflet et la joue!»
Londres: Faber, 1983, p. 47
32
FERNANDO PESSOA 16 ANTÓNIO M. FEIJÓ
A
implicação é aqui, como Freud fez notar, que essa cisão interior
da mente só pode ser reparada ou resolvida pela própria mente. Para
Pessoa, atentativa de resoluçãodeste dilema tem no poema «Ela canta,
pobre ceifeira» oseu lugar primeiro, e maior, se considerarmos omodo
excessivo como se lhe refere, quando escreve, numa carta de 1915, que
se ama asi mesmo por o ter escrito. Na ceifeira que, absorvida no traba
lho de ceifar, canta no camp0, ao longe, uma toada musical indistinta,
projecta opoeta um descjo: «Ah,poder ser tu, sendoeu!/ Ter atua ale
ore inconsciência/ E a consciência disso», Este desejo de submergir-se
numa absorção em si mesmo idêntica à da ceifeira, e ao mesmo tempo
dispor da inteligência dessa absorção numa clausura interior intacta,é
um paradoxo insanável, «Ela canta, pobre ceifeira» cujo tempo de
escrita se prolonga entre 1914 e1924, alongevidade da execução fazendo
avultar a importância do que descreve não resolve ou repara a cisão
interior, apenas a nomeia de um modo memnorável.
Um modo mais eficaz de resolução deste dilema reside na
criação dos
chamados heterónimost. Apretensão de Pessoa de que esta criação radi
caria na sua natureza
histérico-neurasténica é afim de uma outra a que, de
modo igualmente insistente, recorre, a da impessoalidade
seria constitutiva da sua forma mental e literária. Esta dramática que
privando-o de qualquer identidade discernível, tornálo-ia impessoalidade,
alheio aos
impulsos e figuras que atravessam, como bólides de que não é
o palco vazio do seu teatro mental. Mas, responsável,
também aqui, a natureza evasiva
das suas autodescriçõesencobre afiliações
Omesmo diagnósticoclínico, literárias, reais ou prospectivas.
histérico-neurasténico, é,
atribuído por Pessoa a Shakespeare, a enfermidade de ambospor exemplo,
membros de uma pouco povoada classe de autores cujo traçotornando-os
genio. (Que, em alguns textos, Pessoa defenda que a obra de comum éo
Toi, na realidade, escrita por
Francis Bacon sugere que o nome Shakespeare
por que
30 poema de Pessoaé,
Ontary Reaper», poema de como em 1953 Jorge de Sena fez notar, uma versão de «The
bém ele, decisivo na vida Wordsworth que exprime uma indecisão análoga e é, tam
ela ve nos diversos textospoética do autor. Numa observação muito
de Pessoa sobre António arguta, orge de
oDre que mais escreveu) um exemplo Botto (o poeta contemporâneo
absorção em si adicional do interesse de Pessoa por uma intacta
mesmo
viver ahomossexualidade.que anularia aansiedade, que lhe parece ser o modo de Botto
4Em
passos deste ensaio transcrevo, sem os
publiquei sobre Pessoa ePascoaes.
assinalar, excertos de um livro que, em 2015,
33
o CÂNONE
35
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39
ocÁNONE
3 ldem, p. 301.
40
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António M. Feijó
João R. Figueiredo
Miguel Tamen
(eds.)