Reflexões acerca do poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe
Análise crítica apresentada à disciplina Teoria da
Literatura 2, pertencente ao curso de Letras, Hbilitação: Licenciatura em Língua Portuguesa
Orientada pela professora: Maria Fernandina Batista
Faculdade de Letras / UFMG
Belo Horizonte Novembro de 2013 Incontestável é a amplitude de sentido que pode ser abstraída da arte poética e dos seus resultados. Um poema pode ser analisado sob diversas perspectivas, intenções, intensidades e eixos de interpretação. O poeta, no seu exercício criativo, lança o leitor à uma mareé de infinitos e profundos significados, sensações, conclusões. Algumas obras, porém, oferecem ainda que com forte teor de subjetividade, leituras universais e provocam reações inerentes e inevitáveis ao interlocutor. Um dos brilhantes e mais canônicos poemas da literatura ocidental, “O corvo”, (originalmente “The raven”), do americano Edgar Allan Poe, encaixa-se nessa série de produções. O clássico introduziu ao imaginário popular uma alta referência de cenários e figuras soturnas que ainda hoje causam forte impacto. Os métodos explorados pelo autor para atribuir a consistência e os efeitos de sentido ao seu texto são refinados e eficazes. Comecemos por observar o aspecto estético de “O corvo”. São 18 sextetos perfeitamente equilibrados, com rimas misturadas, posicionadas regularmente em todas as estrofes. O resultado do ritmo é bem evidente devido a cadência acentuada dos versos.
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais. E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de algupem que padia levemente a meus umbrais. “Uma visita”, eu me disse, “está batendo em meus umbrais. É só isso e nada mais”.
As rimas configuram-se pelas seguintes palavras: agreste/triste;
ancestrais/umbrais/mais; adormecia/parecia. Exatamente como no poema original, em inglês, essa distribuição é feita, com as seguintes palavras: dreary/weary; lore/door/more; napping, tapping.
Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore, While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of some one gently rapping, rapping at my chamber door. “Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door Only this, and nothing more”. O inteligente esquema rítmico, com as sílabas tônicas posicionadas alternadamente, confere ao texto intensa sonoridade, o que intensifica a dramaticidade que envolve o eu lírico amedrontado e inseguro. É importante ressaltar que a versão traduzida em português de “The raven” utilizada nesse estudo é de autoria do ilustre poeta português Fernando Pessoa, que com classe e maestria foi capaz de manter, além do aspecto semântico, as marcas de ritmo e musicalidade do poema, a presença do refrão “Disse o corvo, ‘Nunca mais’” e das anáforas, sempre ao final dos versos 4 e 5 de cada estrofe, como se pode verificar no sexteto anteriormente apresentado. Uma característica interessante quanto à forma do poema de Poe é o seu modelo semelhante ao de uma narrativa. Apesar de distante da estrutura livre da prosa, vemos aqui uma série de acontecimentos – o eu lírico é perturbado por um som misterioso, desconfia que seja alguma visita, abre a porta de seu aposento, é surpreendido com a presença de um corvo, que pousa em um busto de Atenas; marcação de tempo: ‘meia- noite”, ‘dezembro”, “na noite infinda está ainda”; sugestões de espaço, que é dedutível que se trata de uma casa ou mansão fria, sombria, silenciosa. Há também a representação da fala do eu lírico para com o corvo: “Tens o aspecto tosquiado”; “mas de nobre e ousado / O velho corvo emigrado lá das trevas infernais! / Diz-me qual o teu nome lá nas trevas infernais!” e para consigo também: “’Uma visita’, eu me disse, ‘está batendo em meus umbrais / É só isso e nada mais’”. É certo que tais características não são intrínsecas da prosa. Porém, considerando a construção poética de Edgar Allan Poe, sua reputação e talento como contista e a preocupação em produzir um efeito estético e semântico certeiro, é compreensível a aproximação de “O corvo” com aspectos da narrativa. Nádia Gotlib, em “O conto: um gênero?”, disserta a respeito da estrutura do conto, mas recorre a tal poema para explicar a lógica de execução artística adotada por Poe e inclusive para apontar questões relativas ao tamanho do texto, que por não ser um poema tão curto, precisa de mecanismos que prendam a atenção do leitor.
“O que pretende o autor? Aterrorizar? Encantar? Enganar? Já havendo selecionado um
efeito, que deve ser tanto original quanto vívido, passa a considerar a melhor forma de elaborar tal efeito, seja através do incidente ou do tom. [...] Poe ilustra este percurso com a sua própria experiência na construção do poema “The Raven”, determinando as etapas de execução de um projeto: a extensão ideal de mais ou menos cem versos, o tom de tristeza, os recursos necessários para se atingir esse tom: uso do refrão, tema da morte, espaço do quarto, símbolo do corvo, ambiente soturno, personagem sofrendo a ausência da amada morta, o desfecho com a pergunta final: ainda veria a sua amada no outro mundo? Se o poema - ou qualquer outra obra - for grande, haverá naturalmente uma divisão de leitura. No entanto, para cada período serão mantidas as mesmas exigências, com o objetivo de fisgar o leitor: manter a tensão sem afrouxá-la, para não dar ensejo a interrupções.” (GOTLIB, 1987)
As unidades de significado de natureza referente à forma não são apenas essas
apresentadas, pelo contrário, as nuances estilísticas usadas pelo autor estendem-se em múltiplas sutilezas, que a cada leitura atenta e investigadora podem ser descobertas. O conteúdo semântico, por sua vez, é provavelmente ainda mais vasto, uma vez que a abstração é um fluxo de interpretação influenciado pela capacidade cognitiva do leitor, o contexto sócio-cultural, as peculiaridades da escrita do poeta, entre outros fatores. Não limitemos “O corvo” a um parâmetro raso que enfatize o período histórico no qual foi produzido ou as ideologias do seu criador. Mas caso abordemos esses pontos, dando- lhes apenas a importância necessária, é possível enriquecer a leitura. Datado de 1845, o poema de Poe situa-se no período romântico da história da literatura. Traduz os sentimentos intensos e amargurados característicos da sociedade da época. Combina bem a atmosfera assustadora e sombria – que muito era apreciada pelos artistas, com o já exposto efeito rítmico bem marcado, resultando em uma eficiente fusão de artifícios textuais. A menção da noite gera sensação de angústia e melancolia, horror, mal estar, podendo evocar assim, o que o teórico Hugo Friedrich intitulou como “categoria negativa”. O corvo “nobre e ousado”, que no “olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha”, é a representação da tristeza, do tormento. Sua presença indesejada reforça a amarga lembrança da finada amante do eu lírico.
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, Reclinar-se-á nunca mais! A tortura da existência da ave demoníaca atinge o seu ápice na penúltima estrofe, repleta de verbos imperativos e pontos de exclamação.
“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte”
Torna à noite à tempestade” Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!” Disse o corvo, “Nunca mais”.
Arrematando o pesado clima desenvolvido ao longo dos versos, “O corvo”
termina com a conformidade e certeza do eu lírico sofredor da eterna companhia da ave, que “Libertar-se-á... nunca mais!”, que está então, imortalizada. Nas palavras pavorosas e na arte atemporal do genial poeta. Referências Bibliográficas POE, Edgar Allan. The Raven. Trad.: Fernando Pessoa GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. 7. ed. São Paulo: Ática, 1991. CÂNDIDO, Antônio. Cavalgada Ambígua. In: Na Sala de Aula – Caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1984. FRIEDRICH, Hugo. Perspectiva da lírica contemporânea: dissonância e anormalidade. In: Estrutura da lírica moderna. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991 GOTLIB, Nádia. O conto: um gênero? In: Teoria do conto. 3. ed. São Paulo, Ática, 1987