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ESCREVER GOTA A GOTA SILÊNCIOS NA FÍMBRIA DA VOZ

O título da minha apresentação, Escrever Gota A Gota Silêncios Na Fímbria Da


Voz, foi motivado por uma frase de efeito, da autoria de Conceição Cristóvão, dita numa
das Tradicionais Makas à Quarta-feira realizada habitualmente na União dos Escritores
Angolanos, dentro da década passada, num ano que infelizmente já não consigo
precisar. Apesar da eloquência que reconheço no autor, “ A minha poesia cai gota a
gota” é a única frase de que me lembro desse dia e, naturalmente, ao reencontrar-me
com ela numa das páginas do seu livro, decidi reconfirmar se este postulado poético
continua a nortear o seu exercício de criação. Digo se continua, porque quando ouvi
essa proposição pela primeira vez, voltei a reler a poesia de Conceição Cristóvão e ela
afigurava-se-me complexa, sendo portanto, esta a primeira ideia de “gota a gota” que
me sobreveio: uma poesia de incidências simbolista e futurista, caracterizada
sintacticamente pelo verso curto, cujo processo de desautomatização da linguagem, em
alguns casos, ultrapassa o tecto do enigma.

Organizada em três cadernos temáticos, Silêncios na Fímbria da Voz parece-me


reunir a poesia de Conceição Cristóvão produzida desde a década passada até o ano de
2023, por conta do indicativo cronológico do poema “poesia: eterna ilusão interna &
permanente redescoberta de vozes e silêncios”, página 31, produzido em 04/06/2012.

Relativamente ao título do livro, se porventura retirássemos a palavra mais


intrigante do título, “Fímbria”, ainda assim estaríamos presos, como diria o Grande
Mestre Jorge Macedo, às teias de ambiguidade que um oximoro como “Silêncios da
Voz” pode causar. “Fímbria”, do ponto de vista etimológico, provém do
latim fimbria, -ae, significando extremidade, ponta, franja, et.c. Por consequência,
Silêncios Na Fímbria da Voz pressupõe uma reacção, a revelação de um estado de
impostura que privilegia o silêncio externo e o brado interior, condição abordada
magistralmente no prefácio do livro pelo Dr. Manuel Muanza. Esta tese é passível de ser
confirmada sempre que o leitor se deparar com poemas que fazem lembrar o subtítulo
do livro “… falam das perdas das pedras às pedras”.

Não podendo analisar gota a gota cada poema constante no livro, por conta do
tempo, limitar-me-ei a estabelecer algumas linhas temáticas, a partir das quais abordarei
alguns poemas, sem, entretanto, seguir a linearidade triádica de um livro que se tende a
constituir em linhas temáticas relativamente coerente.

Embora, o maior teorizador da literatura angolano, Jorge Macedo, de boa


memória, no seu livro Poéticas Na Literatura Angolana, pregue a indefinição da poesia,
na verdade, defini-la ontologicamente sempre foi uma tentação para aqueles que se
inscrevem como poetas de referência nas mais diversas línguas mundiais. Para Oswald
de Andrade, “é a descoberta / Das coisas que nunca vi”; “Poesia, morte secreta”, para
Carlos Drummond de Andrade; para o concretista Décio Pignatari, “Design de
linguagem”; “ a eternização do momento” para Mário Quintana; “é voar fora da asa”
segundo Manoel de Barros; “um fingimento deveras”, de acordo com Fernando Pessoa;
“a precisão e a sequência rígida de um problema matemático”, na visão Edgar Allan
Poe; para Vladimir Vladimirovitch Maiakovski,“uma viagem ao desconhecido”, “É a
ficção retórica posta em música” nos dizeres de Dante Alighieri. Para Octavio Paz é
“uma erotização da linguagem”, na visão de António Jacinto, o poema está no que é e
como se vê e, para Stéphane Mallarmé, “se faz com palavras, não com ideias”. Agora,
Conceição Cristóvão vem ensinar-nos que,

poesia é isso mesmo!


lá fora: garças
cá dentro: graças
(…)
lavra. da palavra. …poesia é isso mesmo!
p.27

é a poesia
esse não território
de deslumbramentos
de (des)conseguimentos
permanentes
(des)encontros des
construindo sintagmas e paradigmas
e outros dogmas:
dialécticas
p. 2 8
O modo como colocamos a posição de Jorge Macedo relativamente à indefinição
da poesia não constitui um acto de crucificação epistemológica. Na verdade, fizemos
este exercício em gesto em corroboração, porque cada um dos poetas citados conceitua
a poesia de acordo como esta se lhe revela e grande parte dos conceitos presentes nos
livros de Teoria da Literatura só se devem aceitar como hipostasia ou mera abstracção.

Como quem define, por suposição, compreende ontologicamente o objecto,


Conceição Cristóvão no poema “ofício de quebrados ossos & desconstrução de
sentidos”, página 32, elabora um tratado filosófico sobre o processo de criação poética:

letras sinais morfemas


vertidos, gota a gota
para construir palavras, poemas
…desconstruir sentidos, à porta
da razão… ou quase fuga à emoção.
assim se faz poesia:
obra de deus em momento de inspiração
e transpiração. assim digo eu. mas já seria heresia
nela ver mero ofício de ócios
ou até ossos de outros ofícios.
mais se assemelha a ofício de ossos
quebrados à custa de mentais exercícios. …de bruços!

Destaco no poema os sintagmas “vertidos, gota a gota”, “…desconstruir


sentidos” e “inspiração e transpiração”, considerados por nós essenciais para determinar
a poética do autor. Por conseguinte, “vertidos, gota a gota” refere-se à paciência que se
deve ter no momento da criação literária, a drummondiana procura das mil faces da
palavra; “…desconstruir sentidos” aponta para o sentido metafórico que se deve dar à
combinação dos signos; os dois pontos anteriores desembocam num terceiro, que é o
binómio “inspiração vs transpiração”, como a equação para se alcançar textos bem
elaborados, consubstanciada na fórmula 10% inspiração e 90 % transpiração, muito
divulgada pelos poetas de 80, de onde descende Conceição Cristóvão.

A transpiração implica várias operações que se efectivam antes da construção do


texto. Ninguém se faz bom poeta sem bons poetas ler. Por consequência disso, há
sempre resquícios da poética de um autor de outra geração,e por vezes da mesma, na
poesia de um autor, pois a arte se dá por contágio. Neste quadro de dialogismo literário,
Conceição Cristóvão estabelece diálogos explícito com autores como Luís Vaz de
Camões,

…e aqui estou
só. experiência camoniana vivendo:
solitário por entre a gente
e o meu “não querer mais que bem querer”…
p. 31
e implicitamente, ainda no âmbito da intertextualidade, trava um diálogo implícito com
o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade:

nada mais há para dizer:


almas de pedra! almas das pedras
falam das perdas das pedras às pedras.
…só resta o podre silêncio do sepulcro. p.35

SILÊNCIOS NA FÍMBRIA DA VOZ revela-se como uma poesia cosmopolita


onde converge a cultura mundial. Desde os mitos da antiguidade grega aos saberes
africanos, passando pela música mundial:

só a leveza de temas
em músicas como moonlight sonata ou pathétique
com seus sons de piano águas e pássaros. como fonemas
de meus delírios e de minhas crenças que
agora descubro no forest spirit. álbum
de sonho. no the flwing river water viajo como aves
ao sabor de spring reflcting the moon
ou the great waves. P44

é orquestra em permanente procura


de harmonia na polifonia acordada
com zeus e outros deuses
como meros humanos, fiados.

mas sempre fonados


por natural diapasão:
o assobio azul da canjunja.
…meu orfeu. p.45

também me fertilizo ao ouvir


mbuenzena, kilapanga, reggae, blues, afrojazz,
classical music e demais sons mí(s)ticos. p. 7 0

no encalço do dikixide múltiplas cabeças e da devoradora cobra p.7 6

O presente livro é dominado por uma diversidade de temas e estes não se


esgotam numa única abordagem. Em virtude disso, convidamos os leitores a
descobrirem as diferentes cadeias de sentidos secretamente escondidas pelo autor.
Resta-nos, assim, seguir o seu conselho:

refundemos o uni verso com novos dogmas


novas hipóteses
novas lógicas
porque o logos é logo ali, pertinho, ao dobrar da esquina
entre centro e periferia: palavra. verbo. razão.
P.50

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