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Ivete Walty
toda fala é habitada por vozes diversas. Analisando a obra de Dostoiévski, o teórico russo afirma que
o romance seria uma forma dialógica por excelência, pelo fato de ser composto por discursos de
várias naturezas, tais como: o jurídico, o epistolar, o popular, o político.
Na verdade, a intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as
produções literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção
de autoria. Augusto de Campos, por exemplo, apropriando-se de variadas produções poéticas e
musicais, num processo de colagem metalinguisticamente confessado, constrói um de seus sonetos
em estilo non-sense, apontando desde o título para a forma em que será vazado. Tal composição
explicita o processo de construção de um texto apenas com recortes de outros.
Soneterapia 2*
Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas
de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição. Tomás Antônio
Gonzaga retoma Camões. Drummond retoma Gonzaga. Adélia Prado retoma Drummond. Eça de
Queiroz relê Flaubert, relido também por Machado de Assis. Esse diálogo, no entanto, não se dá
sempre em harmonia. Se a tradição pode, de certa forma, ser reiterada com as diferentes retomadas
que dela se fazem, pode também ser relativizada ou mesmo negada.
Muitos dos romances de José Saramago, por exemplo, procedem a uma revisão crítica
das tradições históricas portuguesas em sua relação com os discursos político e religioso. Este é o
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caso de História do cerco de Lisboa, Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo.
Outro escritor português contemporâneo, que relê a história – o período salazarista – despindo-a de
seu caráter monumental, é Mário Cláudio em Tocata para dois clarins, por exemplo. Como o próprio
título do romance deixa entrever, a voz oficial é fraturada para alojar vozes dissonantes.
No Brasil, nos romances de Alencar – Iracema e O Guarani – e Antônio Callado – A
expedição Montaigne – que fazem do índio sua personagem principal, observa-se um tratamento
diferenciado do tema, em dois momentos distintos: a visão idealizada, mas redutora, do século XIX,
e a visão polêmica e crítica da atualidade. A tradição é, assim, sempre revisitada, tornando-se
diferenciada aos olhos dos escritores/leitores.
Um mesmo escritor pode reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que
resulta numa espécie de intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu
conhecido texto “No meio do caminho” para escrever “Consideração do poema”:
[...]
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski.
[...] (Andrade, 1978, p. 75)
Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescer
que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha
copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra
por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes (Borges, 1995, p. 57).
BIBLIOGRAFIA
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento.
Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1989.