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INTERTEXTUALIDADE

Ivete Walty

Verbete do E-dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, disponível em


https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/intertextualidade

Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade significa


relação entre textos. Considerando-se texto, num sentido lato, como um recorte significativo feito no
processo ininterrupto de semiose cultural, isto é, na ampla rede de significações dos bens culturais,
pode-se afirmar que a intertextualidade é inerente à produção humana. O homem sempre lança mão
do que já foi feito em seu processo de produção simbólica. Falar em autonomia de um texto é, a rigor,
improcedente, uma vez que ele se caracteriza por ser um “momento” que se privilegia entre um início
e um final escolhidos. Assim sendo, o texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode
ser apontada e delimitada: um filme, um romance, um anúncio, uma música. Entretanto, esses objetos
não estão ainda prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores. Cada texto
constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída. A significação se dá no
jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor ativo no processo de
significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. A intertextualidade
se dá, pois, tanto na produção como na recepção da grande rede cultural, de que todos participam.
Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam com outros, propagandas que se utilizam
do discurso artístico, poemas escritos com versos alheios, romances que se apropriam de formas
musicais, tudo isso são textos em diálogo com outros textos: intertextualidade.
No sentido estrito, a palavra texto remete a uma ordem significativa verbal. Dentro dessa
ordem, a literatura vale-se amplamente do recurso intertextual, consciente ou inconscientemente. Em
razão disso, a intertextualidade faz-se operador de leitura. É importante marcar a primazia de Bakhtin
em relação a esses estudos, divulgados por Julia Kristeva. É dela o clássico conceito de
intertextualidade: “[…] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto.” (Kristeva, 1974, p. 64).
Por isso mesmo, Antoine Compagnon chama a atenção para o fato de que “escrever, pois,
é sempre rescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é
leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação”.
(Compagnon, 1996, p. 31)
Pode-se associar essas concepções ao estudo de Bakhtin sobre a
inerente polifonia da linguagem, na medida em que todo discurso é composto de outros discursos,
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toda fala é habitada por vozes diversas. Analisando a obra de Dostoiévski, o teórico russo afirma que
o romance seria uma forma dialógica por excelência, pelo fato de ser composto por discursos de
várias naturezas, tais como: o jurídico, o epistolar, o popular, o político.
Na verdade, a intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as
produções literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção
de autoria. Augusto de Campos, por exemplo, apropriando-se de variadas produções poéticas e
musicais, num processo de colagem metalinguisticamente confessado, constrói um de seus sonetos
em estilo non-sense, apontando desde o título para a forma em que será vazado. Tal composição
explicita o processo de construção de um texto apenas com recortes de outros.

Soneterapia 2*

tamarindo de minha desventura


não me escutes nostálgico a cantar
me vi perdido numa selva escura
que o vento vai levando pelo ar

se tudo o mais renova isto é sem cura


não me é dado beijando te acordar
és a um tempo esplendor e sepultura
porque nenhuma delas sabe amar

somente o amor e em sua ausência o amor


guiado por um cego e uma criança
deixa cantar de novo o trovador

pois bem chegou minha hora de vingança


vem vem vem vem vem sentir o calor
que a brisa do Brasil beija e balança

*para ser parcialmente cantado, agradecimentos a Augusto dos Anjos, Orestes


Barbosa & Sílvio Caldas, Dante Alighieri, Vinícius de Morais & Tom Jobim, Sá de
Miranda, Orestes Barbosa & Sílvio Caldas, Olavo Bilac, Noel Rosa & Rubens
Soares, Décio Pignatari, Mark Alexander Boyd, Ary Barroso, João de Barro &
Pixinguinha e Castro Alves (Campos, 1974, p. 349).

Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas
de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição. Tomás Antônio
Gonzaga retoma Camões. Drummond retoma Gonzaga. Adélia Prado retoma Drummond. Eça de
Queiroz relê Flaubert, relido também por Machado de Assis. Esse diálogo, no entanto, não se dá
sempre em harmonia. Se a tradição pode, de certa forma, ser reiterada com as diferentes retomadas
que dela se fazem, pode também ser relativizada ou mesmo negada.
Muitos dos romances de José Saramago, por exemplo, procedem a uma revisão crítica
das tradições históricas portuguesas em sua relação com os discursos político e religioso. Este é o
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caso de História do cerco de Lisboa, Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo.
Outro escritor português contemporâneo, que relê a história – o período salazarista – despindo-a de
seu caráter monumental, é Mário Cláudio em Tocata para dois clarins, por exemplo. Como o próprio
título do romance deixa entrever, a voz oficial é fraturada para alojar vozes dissonantes.
No Brasil, nos romances de Alencar – Iracema e O Guarani – e Antônio Callado – A
expedição Montaigne – que fazem do índio sua personagem principal, observa-se um tratamento
diferenciado do tema, em dois momentos distintos: a visão idealizada, mas redutora, do século XIX,
e a visão polêmica e crítica da atualidade. A tradição é, assim, sempre revisitada, tornando-se
diferenciada aos olhos dos escritores/leitores.
Um mesmo escritor pode reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que
resulta numa espécie de intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu
conhecido texto “No meio do caminho” para escrever “Consideração do poema”:

[...]
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski.
[...] (Andrade, 1978, p. 75)

Desvenda-se o mecanismo intertextual, na medida em que além de referir-se a si mesmo,


o poeta confessa o furto que faz a outros poetas, incorporando-os duplamente em seu acervo.
Embaralhando mais as fronteiras discursivas, a obra de Jorge Luiz Borges é exemplo de
um discurso híbrido que associa o ficcional e o teórico, evidenciando o papel da leitura na
composição dos textos. Observe-se, por exemplo, o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, em que
se propõe o nível máximo da apropriação: escrever, linha por linha, a obra alheia e, mesmo assim,
criar uma obra nova:

Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescer
que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha
copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra
por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes (Borges, 1995, p. 57).

Questiona-se o plágio, desqualificando-o como roubo. É o mesmo que, teoricamente, faz


Michel Schneider (1990) quando discute a questão da autoria:
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Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de atribuições,


por que então assinar um texto defendendo essa intertextualidade absoluta? Se o
texto moderno, segundo Barthes, essa “citação sem aspas”, por que deveria ficar
ligado a um nome, uma vez que esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou
indicar a origem? (Schneider, 1990, p. 43).

Borges, em outro texto – “Kafka e seus precursores” –, inverte o processo de produção


textual quando transforma Kafka em modelo para aqueles que escreveram antes dele, criando,
regressivamente, uma tradição. Tudo isso porque o leitor ativa sua biblioteca interna a cada texto lido,
estabelecendo nexos relacionais entre o que lê e o que já foi lido. Atente-se, então, para o fato de que
a intertextualidade, centrada também na figura do leitor, perturba qualquer possibilidade de
cronologia rígida para a historiografia literária, na medida em que as associações feitas são livres.
Até mesmo o conceito de tradução é revisto, numa perspectiva intertextual, como uma
leitura da obra, uma recriação. Relativizam-se também as noções de cópia e modelo, fonte
e influência. Isso porque a cópia pode levar a uma releitura desconstrutora do modelo. A crítica
literária brasileira contemporânea, valendo-se de tais relativizações, produziu textos que nos
permitem reler a própria história da colonização com novos olhos. Ensaios como “Nacional por
subtração”, de Roberto Schwarz (1989); “O entre-lugar do discurso latino-americano”, “Eça, autor
de Madame Bovary”(1978) e “Apesar de dependente, universal” (1982), de Silviano Santiago; e “Da
razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, de Haroldo de Campos (1992)
integram esse debate.
Em qualquer nível, a produção simbólica é, pois, sempre uma retomada de outras
produções, perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores. Apropriando-nos, então, de
Schneider, podemos afirmar:

O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma “primeira” vez,


depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página com um
novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras
cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a invenção, nunca
tão nova que não se apoie sobre o já-escrito (Schneider, 1990, p. 71).

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São
Paulo: Hucitec, 1981.
BAKTHIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1973.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. 6. ed. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1995.
CAMPOS, Augusto. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
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CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. Ed. São
Paulo: Perspectiva, 1992.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
PAULINO, Maria das Graças Rodrigues, WALTY, Ivete Lara Camargos, CURY, Maria Zilda
Ferreira. Intertextualidades: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora Lê. 1997.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento.
Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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