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METALINGUAGEM

Ivete Walty

Verbete do E-dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, disponível em


https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metalinguagem

A palavra metalinguagem, formada com o prefixo grego meta, que expressa as ideias de
comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão, designa a linguagem que se
debruça sobre si mesma. Por extensão, diz-se também: metadiscurso , metaliteratura, metapoema
e metanarrativa.
Em seu estudo sobre as funções da linguagem, Roman Jakobson (1974)
considera função metalinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para si mesma.
Tal função reenvia o código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos. A gramática, por
exemplo, é um discurso essencialmente metalinguístico porque se trata do código explicando o
próprio código. Quando se faz análise sintática, faz-se uso dessa função.
Quando consultamos o dicionário para nos inteirarmos do significado da palavra
metalinguagem, estávamos nos valendo da função metalinguística, pois o dicionário é um repertório
de palavras sobre palavras, à disposição do falante, nativo ou não. É interessante registrar, contudo,
que o que parece ser uma mera lista de palavras no seu sentido denotativo, mais corriqueiro e
imediato, já contém potencialmente a múltipla carga de significações e, consequentemente, de
sedução da língua.
Mesmo no dia a dia, fazemos uso constante da função metalinguística sem, muitas vezes,
nos darmos conta disso. Ao interromper um falante para perguntar o significado de uma palavra,
estamos também nos utilizando desta função.
Mas há um conceito de metalinguagem mais específico e complexo porque envolve um
trabalho mais elaborado do código sobre o código. O cinema, os quadrinhos, a propaganda, as artes
plásticas e a própria literatura fazem amplo uso dessa função. Assim, quando um escritor escreve
um poema e discute o seu próprio fazer poético, explicitando procedimentos utilizados em sua
construção, ele está usando a metalinguagem.

Eu faço versos como quem chora


De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…


Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca


Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

Eu faço versos como quem morre.


(Bandeira, 1990, p. 119)

O poeta, no ato mesmo de fazer o poema, expõe seu conceito de poesia, explicitando sua
função catártica, ou seja, aquela de meio de vazão dos sentimentos, de alívio mesmo de sofrimentos.
Fundem-se, em seus versos, a ideia de poema e vida e, paradoxalmente, a de representação da morte.
Registre-se que, no caso desse texto, o poeta não se distingue do eu lírico, pois ele se declara o autor.
Essa característica que dá ao verso um toque pessimista pode ser considerada uma marca da poesia
de Manuel Bandeira. Por outro lado, o eu lírico/autor busca no poema transcrito a adesão
do leitor visando à compreensão do código, aqui visto no sentido mais específico de concepção do
poema. É como se o poeta quisesse fazer um pacto com seu leitor, dando-lhe uma chave do que
entende por poesia naquele momento. Este é o caso do poema “Os meus versos”, da poeta portuguesa
Florbela Espanca:

Rasga estes versos que eu te fiz, amor!


Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se o souberes de cor,


Que volte ao nada o nada dum momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!…

Tanto verso já disse o que eu sonhei!


Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente…

Rasga os meus versos…Pobre endoidecida!


Como se um grande amor cá nesta vida
não fosse o amor de toda a gente!…
(Espanca, 1987, p. 72)

O interlocutor expresso na poesia seria, num primeiro momento, o ser amado pelo eu
lírico, para, em seguida, tornar-se qualquer leitor que já tenha amado. É curioso observar que a
expressão “Pobre endoidecida”, no último terceto, opera uma ambiguidade em relação ao eu que
enuncia e ao receptor, pois pode ser vista como aposto ou como vocativo.
Como ressalta Décio Pignatari, vivemos uma infinidade de linguagens e o processo
metalinguístico é inerente ao trabalho criador:

A multiplicação e a multiplicidade de códigos e linguagens criam uma nova


consciência de linguagem, obrigando a contínuos cotejos entre eles, a contínuas
operações intersemióticas e, portanto, a uma visada metalinguística, mesmo no ato
criativo, ou melhor, principalmente nele, mediante processos de metalinguagem
analógica, processos internos ao ato criador (Pignatari, 1974, p. 79).

Drummond, no seu livro Farewell, publicado postumamente, toma como tema de alguns
poemas quadros famosos, apropriando-se inclusive de seus títulos. Assim fala de “O Grito”,
conhecido quadro de Edward Munch:

A natureza grita, apavorante.


Doem os ouvidos, dói o quadro.
(Andrade, 1996, p. 30)

Note-se que o escritor escreve seu poema enquanto lê o quadro: sua escrita é,
simultaneamente, leitura intersemiótica, uma vez que se trata de um poema voltado para um outro
código, no caso o pictórico.
Os processos metalinguísticos não são, porém, exclusivos da literatura. A metalinguagem
se faz presente muito frequentemente nos filmes e na propaganda. Desde o título, o filme Cinema
Paradiso evidencia o procedimento metalinguístico, uma vez que seu enredo trata do próprio cinema.
Na verdade, é um hino de amor ao cinema, que nos é apresentado como um forte elo entre o velho
operador Alfredo – responsável pela projeção dos filmes – e Totó – seu ajudante e futuro cineasta. É
interessante lembrar a cena final, posterior à morte de Alfredo. Totó, já adulto, retornando à cidade
para o enterro do amigo, recebe uma lata com um filme feito por Alfredo com todos os beijos cortados
pela censura na ocasião da exibição das fitas. São “beijos de amor” ao cinema. Além disso, pode-se
associar a figura do Totó, enquanto cineasta, à do diretor do filme a que assistimos, contando sua
própria história. Vale a pena ver ainda, nesse mesmo sentido, filmes como A Rosa Púrpura do Cairo
e Tiros na Brodway, de Woody Allen, A mulher do tenente francês, de Karel Reisz, Carmem, de
Carlos Saura, A flor do meu segredo, de Almodóvar e muitos outros.
Nas artes plásticas, tal recurso pode ser observado, por exemplo, no famoso quadro de
Velázquez, As meninas, onde o pintor se retrata pintando o quadro. Num jogo de olhares com o
espectador, ele o traz para dentro do quadro, deslocando lugares instituídos. É a pintura retratando o
ato de pintar, uma maneira mesmo de se encarar esse ato.
Uma forma especial de metalinguagem é justamente a crítica que nomeia procedimentos
do texto literário. Porque a análise literária trabalha diretamente com a função poética, ela se vale da
função metalinguística que lhe fornece a terminologia necessária: “[…] a crítica haverá de convocar
todos aqueles instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a realidade
sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem portanto” (Campos, 1992, p. 11-12).
Sobre a característica metalinguística da atividade da crítica nos fala ainda Haroldo de
Campos: “Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem. O objeto – a
linguagem-objeto – dessa metalinguagem é a obra de arte, sistema de signos dotado de coerência
estrutural e de originalidade” (Campos, 1992, p. 11).
Na verdade, enquanto o poeta faz a relação da linguagem com o mundo, o crítico faz a
relação com a linguagem do poeta, mantendo, assim, certa hierarquia entre os discursos. Registre-se
que, na crítica contemporânea, existe uma tendência a se abolir as fronteiras discursivas, isto é, a
linguagem do crítico mistura-se à do autor, erigindo-se também como um discurso criativo. Essa
crítica é chamada de escritural ou crítica-escritura por incorporar na sua a linguagem criativa para a
qual se volta.
Também o romance se faz ensaio e discute, não apenas sua própria construção, como a
construção de outras formas literárias em sua relação com a produção e a recepção. A esse tipo de
romance, que tem consciência de si mesmo, dá-se o nome de metaficção, já que ele relativiza e
dramatiza as fronteiras entre ficção e crítica. A esse propósito, diz Mark Currie na introdução de um
livro, Metafiction, coletânea de ensaios sobre o assunto: “O romance autoconsciente tem, assim,
o poder de explorar não apenas as condições de sua própria produção, mas as implicações da
explanação narrativa e da reconstrução histórica em geral” (Currie, 1995, p. 14).
Assim, vê-se que a metalinguagem atravessa formas diversas de linguagem de forma
recorrente e interativa já que a maioria das produções culturais vale-se desse processo autorreflexivo.

ANDRADE, Carlos Drummond. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996.


BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1992.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992.
CURY, Maria Zilda Ferreira e WALTY, Ivete Lara Camargos. Textos sobre textos: um estudo da
metalinguagem. Belo Horizonte: Dimensão, 1998.
CURRIE, Mark (Ed). Metafiction. London: Longman, 1995.
ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas. São Paulo: LP&M, 1997.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico. V 1. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1974.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974.
TODOROV, DUCROT. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. Trad. Alice Miyashiro et al. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
METALITERATURA
Hélder Gomes

Verbete do E-dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, disponível em


https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metaliteratura

Este termo tanto pode designar um qualquer texto pertencente a determinado gênero
literário que trata outros textos ou gêneros literários, sendo exemplo um romance que tem como
temática a poesia, como também as obras de um gênero literário que se voltam para si mesmas, ou
seja, para a essência do gênero onde elas próprias se inscrevem, adquirindo, assim um caráter
autorreflexivo, como são exemplo os romances que refletem sobre o próprio processo de escrita do
romance e a sua ficcionalidade. Estão assim contidos neste termo conceitos como os de metadrama,
metaficção e metapoesia.
Alguns críticos, nomeadamente Genette, ainda inserem nesta categoria os textos
pertencentes à crítica literária, considerando-os, em primeiro lugar, como pertencentes à categoria de
texto literário, e, em segundo lugar, como sendo um exercício crítico sobre outro texto literário. Se
esta segunda acepção não oferece grandes resistências, já a primeira é no mínimo discutível e será
desafiada pelos pós-estruturalistas.
Tendo como objeto a definição mais consensual, é de referir que esta surge exatamente
no contexto pós-estruturalista, marcadamente pós-moderno. De fato, todos estes conceitos de
metaliteratura, metadrama, metapoesia ou metaficção estão intimamente ligados ao conceito de pós-
modernismo, servindo mesmo como paradigmas deste conceito. Quando William Gass introduz no
final dos anos sessenta o conceito de metaficção, estando o de metaliteratura inerente, este remete-
nos claramente para os textos de ficção que têm como centro de reflexão a própria ficção.
Deste modo, o prefixo meta- oferece a este termo o seu caris existencialista, narcisista
(como lhe chamou Linda Hutcheon) e crítico. Existencialista, pois inserido num contexto de pós-
guerra, reflete o Zeitgeist contemporâneo: um espírito de ceticismo e pessimismo, uma descrença nos
valores do progresso sem limites, do homem que atingiria a perfeição, enfim, de uma filosofia
positivista que vingara no século anterior, mas que falira perante a cruel realidade que se apresentava
ao homem. Este via-se agora desprovido de sentido e certezas, vivendo numa realidade sem objetivos
nem verdade – absurda. Transpondo este espírito para a literatura, esta irá também mostrar ceticismo
e uma atitude profundamente antipositivista através de romances, que irão despir e desconstruir a
noção de romance que vingava desde a segunda metade do séc. XIX – o romance realista. Não se
trata de uma recusa da realidade, trata-se apenas de uma re-escrita da mesma, e de uma denúncia
ao artifício e à tentativa de fabricar realidades quase laboratoriais, que de reais quase nada tinham.
Esta re-escrita será pautada por uma dupla via que muitas vezes se cruza e se sobrepõe mutuamente.
Por um lado, este espírito existencialista leva a literatura à introspecção, fazendo um movimento de
fora para dentro, à procura de uma ontologia da literatura e explorando, assim, o fenômeno literário
como temática dessa mesma literatura. Assim, não será de estranhar que Linda Hutcheon proponha o
adjetivo narcisista para descrevê-la. Por outro lado, e muitas vezes associada à procura anterior, está
a crítica, que apresenta várias faces e alvos. Procurando-se a si mesma, a literatura vai tentar perceber
a sua essência muitas vezes por um mecanismo de recusa, ou seja pelo que não
é. Desdogmatizar, desconstruir, satirizar, parodiar, por um lado, limites sociais, políticos, religiosos
e científicos, e, por outro, limites estéticos e artísticos, será uma característica central da
metaliteratura. Aparecem-nos, assim, a título de exemplo, romances históricos metaficcionais, nos
quais se re-escreve a História, tornando-a histórias, apresentando-se as aporias e a inerente
ficcionalidade do discurso histórico dito científico e a inexistência de uma única verdade histórica,
emergindo assim a noção de verdades históricas, tantas verdades quantas possíveis vozes, ou seja, a
História muda assim que o contador da mesma também muda. A metaliteratura é, desta forma,
o espaço do outro, do marginal, daquele que não teve lugar como herói numa literatura dogmatizada
e ao serviço de uma ordem social cheia de pre(-)conceitos. São desta feita chamados para contar a
sua história gays, lésbicas, loucos, mulheres, nativos e até pequenos vermes. Ao mesmo tempo que
se parodia e critica qualquer tipo de dogma extratexto, também se desmascara e se puxa os limites do
dogma intratexto, rindo – refletindo acerca da sua própria condição, num movimento
dito autorreflexivo. Seja no metadrama, que se pode revestir de um caris experimental, onde muitas
vezes as barreiras entre teatro e realidade são a tal ponto tênues que se confundem (sendo exemplo
disso os múltiplos espaços inseridos “na realidade”, como estações de metrô ou autocarros, que são
já utilizados com espaços teatrais) ou explorando a função do teatro, dos atores, dos espectadores,
da linguagem, a própria essência do teatro face à (ir)realidade da vida, como são exemplo o Teatro
de laboratório, no qual a obra se vai construindo a si mesma durante ensaios e apresentações; seja
no Teatro do absurdo, que alia a crítica aos tempos contemporâneos à autorreflexividade; seja na
metapoesia, que tanto pode servir como manifesto ou tratado acerca de outro gênero literário, de que
são exemplos os diversos poemas de Brecht na sua obra A Compra do Latão, que mais não são que
reflexões acerca da dramaturgia, do teatro épico brechtiano; podendo também servir como forma de
autorreflexão acerca do papel do poeta, ou das funções da poesia, que têm, por exemplo, uma face
mais politizada na chamada literatura do pós-colonialismo. É exemplo disso o poeta sul-africano
Rampolokeng, que, em vários poemas-rap, tem como temática central o uso da poesia como arma
política a serviço daqueles que foram durante anos privados da sua identidade (tal como na
metaficção, para a qual a procura de identidade se tornou um verdadeiro Graal). A identidade literária
procura-se através de uma dialética crítica entre texto/outros textos, ou seja, a metaficção e
metaliteratura procuram, através da especulação e crítica do outro, o que eles são, ao mesmo tempo
que expandem os seus próprios limites para distinguir distâncias e semelhanças face ao outro.
Escritores como Barnes (o seu romance histórico metaficcional A History of the World in 10 ½
Chapters), Lodge (o seu romance acadêmico metaficcional Small World), Eco (o seu romance
histórico metaficcional O Nome da Rosa), Italo Calvino ou Saramago são exemplos de autores, cujos
romances desmascaram e desafiam a ficcionalidade da representação literária e do seu gênero,
expandindo os limites da sua gênese através, entre outras, de técnicas narrativas que contemplam a
intromissão autoral, estruturas narrativas não lineares no que concerne ao espaço, tempo e
discurso, pastiche e paródia intertextual, não só pela estilização crítica de textos pertencentes ao
mesmo gênero literário, como também de textos inscritos noutros gêneros literários, e até textos que
normalmente nem sequer são tidos como literatura, como é o caso dos documentos históricos. A
metaficção presente nestes romances, e como tal a metaliteratura, põe em confronto os paradoxos da
representação fictícia/histórica, o particular/geral, o presente/ passado, o eu/outro.
Embora tenhamos centrado este termo num contexto pós-moderno, seria redutor confiná-
lo num espaço-temporal limitado, pois são vários os exemplos de metaliteratura fora deste
âmbito. Tristram Shandy, de Stern, romance que data do séc. XVIII, desafia os limites e convenções
da escrita do romance através de um discurso não linear, pelas constantes intromissões da
“personagem” autor, por elementos pictóricos alheios às tradicionais palavras que constituem um
romance, ou pelo uso de outros gêneros literários que confundem a gênese do gênero em questão.
Este romance é exemplo máximo do paradigma metaficcional, que nós diríamos ser pós-moderno.
Mas como pode aparecer pós- modernidade, antes mesmo de esta se revelar como tal? A questão
passa pela complexidade do conceito, não explicável por uma simples definição, mas antes por uma
rede de paradigmas e atitudes estéticas que se interligam, mas que também não são exclusivas de uma
determinada época.
O Pós-Modernismo, e como tal, a metaliteratura, serve-se da reciclagem,
da colagem criativa e crítica, mas terá sempre de conviver com o espectro da ansiedade de ser
impossível ascender a uma originalidade imaculada, rindo-se desta e de si própria.

Bruce Sesto, Language, History, and Metanarrative in the Fiction of Julian Barnes, 2001; Carlos Ceia, O Que é Afinal o
Pós –Modernismo, (1998).
David Lodge, The Art of Fiction, (1992); Linda Hutcheon, A poetics of Postmodernism. History, Theory, Fiction, (1988);
Patrice Pavis, Diccionario del teatro. Dramaturgia, estética, semiologia, (1998).
METAFICÇÃO
Mário Avelar

Verbete do E-dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, disponível em


https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metaficcao

Designação pela qual se tornou conhecido um conjunto de escritores americanos do pós-


II Guerra Mundial (John Hawkes, William Gadis, Vladimir Nabokov, John Barth, Thomas Pynchon,
Donald Barthelme, entre outros ) que, apesar de possuírem estilos distintos, convergiam quer numa
dimensão experimental quer na busca de uma narrativa fundada numa metalinguagem,
uma ficção fundada na elaboração de ficções. A metaficção surge numa tentativa de superar o peso
das tradições regionalistas e realistas na literatura americana. Deste modo, conceberá como objetivo
imediato a subversão dos elementos narrativos canónicos – intriga, personagens, ação –, tendo como
estratégia final a elaboração de um jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e
artística. O termo metaficção foi introduzido por William H. Gass, vindo na sequência de outras
designações, como fabulation ou surfiction, que pretendiam definir esta nova atitude. Gass explora
aquilo que considera ser a ausência de conexão entre a linguagem e a realidade, e a dimensão sensorial
da leitura. Em Willie Master’s Lonesome Wife (1968), estes postulados teóricos e o experimentalismo
do autor conhecem o seu momento mais radical através da inclusão de inserts visuais (fotografias),
de diferentes cores e registos de impressão, assim como de diferentes texturas. Idêntica atitude face a
uma desconexão entre realidade e linguagem está no cerne das estratégias ficcionais de Thomas
Pynchon (The Crying of Lot 49, 1966), ficcionista que, negando a virtualidade positiva da linguagem
e do sujeito, se debate com a ausência de um centro unificador. Diferente será a postura de Donald
Barthelme, que tenta encontrar na imaginação o poder unificador que lhe permita superar a
fragmentação das sociedades contemporâneas. Em Barthelme, o humor com que utiliza personagens
e gêneros distintos poderá constituir uma forma de superação da dimensão trágica coeva.
Em Lolita (1955), sua obra emblemática, Vladimir Nabokov explora o carácter cómico da tragédia
humana através da de Humbert Humbert, simultaneamente denegando um vetor fundamental
da cultura americana, a inocência. Já John Barth fará da introspecção do sujeito o núcleo da narrativa.
Em todos eles, a noção de jogo será, afinal, o centro da estratégia criativa.

Inger Christensen: The Meaning of Metafiction: A Critical Study of Selected Novels by Sterne, Nabokov, Barth and
Beckett (1981); Larry McCaffery: The Metafictional Muse (1982); Frederic Jameson: “Metacommentary”, PMLA, 86
(1971); Linda Hutcheon: Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox (1980); Mark Currie
(ed.): Metafiction (1995); Margaret Rose: Parody//Metafiction (1979); Neil Schmitz: “The Hazards of
Metafiction”, Novel: a Forum on Fiction, 7, 3 (1974); Patricia Waugh: Metafiction: The Theory and Practice of Self-
Conscious Fiction (1984); Raymond Federman: Surfiction: Fiction Now… and Tomorrow (1975); Robert
Scholes: Fabulation and Metafiction (1979); W. Hicks: The Metafictional City (1981).
METANARRATIVA

Carlos Ceia
Verbete do E-dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, disponível em
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1. Forma textual de autoconsciência que ocorre no processo narrativo e que nos textos
de ficção também toma o nome de metaficção. Na prática textual, uma metanarrativa é todo
o discurso que se vira para si mesmo, questionando a forma como se está a produzir uma narrativa.
A técnica de construção de uma metanarrativa obriga o autor a uma preocupação particular com os
mecanismos da linguagem e da gramática do texto, como podemos ver em todas as obras romanescas
que se interrogam a si mesmas, como neste exemplo de Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett:
“Essas minhas interessantes viagens hão-de ser uma obra prima, erudita, brilhante, de pensamentos
novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não
cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou
outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da
espécie” (cap. II). A este tipo de narrativa que vira o olhar para a sua imagem especular chamou Linda
Hutcheon “narrativa narcisistica” ou uma forma de fundamentação da autoconsciência narrativa.

2. Na filosofia e na teoria da cultura, uma metanarrativa assume o sentido de uma grande narrativa,
uma narrativa de nível superior (“meta-” é um prefixo de origem grega que significa “para além de”),
capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de representar uma verdade absoluta sobre
o universo. A Bíblia e o Alcorão são exemplos de metanarrativas universalmente conhecidas; mas
toda a obra cultural e política vitoriana pode ser considerada uma metanarrativa, tal como Ulysses de
James Joyce ou as teorias feministas radicais ou as propostas marxistas do século XX. É esta crença
nas totalidades e na capacidade de uma metanarrativa para congregar todo o conhecimento possível
que levou Jean-François a proposição da condição pós-moderna como uma reação à confiança
nesta utopia: “considera-se que o ‘pós-moderno’ é a incredulidade em relação às metanarrativas. Esta
é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na.
Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde especialmente a crise da
filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia” (A Condição Pós-Moderna, 2ª
ed., trad. de Bragança de Miranda, Gradiva, Lisboa, 1989, p. 12). Linda Hutcheon reclama um lugar
diferente para as metanarrativas feministas, que não partem necessariamente de uma posição
pessimista perante as grandes narrativas: “Vários tipos de teoria e critica feminista convergem a partir
de um ângulo particular: a metanarrativa que tem sido sua preocupação principal é obviamente o
patriarcado, especialmente em seu ponto de imbricação com as outras narrativas dominantes de
nossos dias – o capitalismo e o humanismo liberal. Em seu modo específico de crítica, os feminismos
têm-se sobreposto às teorias marxistas e pós-estruturalistas e ao que tem sido chamado de arte pós-
moderna – arte que é paradoxalmente tanto autorreflexiva e historicamente fundamentada, quanto
paródica e política: as pinturas de Joanne Tod ou de Joyce Wieland, a ficção de Susan Swan ou de
Jovette Marchessault, a fotografia de Geoff Miles ou Evergon” (“A incredulidade a respeito das
metanarrativas: articulando pós-modernismo e feminismos”, tradução de Margareth Rago, Labrys —
Estudos feministas, nº 1-2, julho/ dezembro 2002).

Neste sentido, reclamar para as metanarrativas o estatuto de obra universal de carácter normativo —
aquilo que o Discurso do Método de Descartes começa por ser para a filosofia europeia do século
XVII — pode conduzir-nos à aceitação de que qualquer manual sobre o estado de uma ciência ou
campo de saber (feminismo, marxismo, informática, direito, economia, etc.) é uma metanarrativa que
representa a verdade conhecida sobre essa ciência ou campo de saber. Porque se trata de
uma visão utópica do conhecimento, porque se julga susceptível de ser unificado em uma só narrativa,
compreende-se que a crítica do otimismo modernismo neste tipo de representação do conhecimento
tenha sido um dos pontos de partida da condição pós-moderna das sociedades pós-industriais e pós-
capitalistas. O programa pós-moderno tem sido, portanto, a desconstrução do mito cartesiano de que
é possível construir uma narrativa capaz de explicar tudo o que se sabe sobre o homem e o mundo.

David Harvey: Condição Pós-Moderna (6ª ed., São Paulo, 1996); Linda Hutcheon: Narcissistic Narrative (1985); P.
Waugh: Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction (1984).

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