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TÍTULO: entremilênios, de

Haroldo de Campos -
pinturas escritas/escritos-
pinturas.

"Brinde em Agosto" parabeniza Decio Pignatari: "pignatari ceramista de versos


torneados à mão…" e por alusão ou citação, transtextualiza seus versos: "assim
pignatari/oleiro de poemas/perfeitos como aquela/ ânfora grega onde negras
silhuetas de heróis/heteras deusas/encenam suas legendas sobre o liso/ polido bojo
lúcido - magenta/ou como esse marajoara/vaso construtivista de espontâneos/ -
motivos geométricos - concreto: feito a poesia"…

Tensionando significados entre texto e imagem, Haroldo posiciona-se com relação


às afinidades entre poesia e outras artes, através da imagem, do diagrama e da
metáfora. Por diagrama compreende-se o ícone de relações. Segundo Décio
Pignatari "o diagrama embora apresente traços simbolóides, bem como traços que o
aproximam da natureza e dos índices é, antes de mais nada, um ícone das formas de
relação na constituição de seu objeto". In: Semiótica e Literatura. S.P: Cortez e
Moraes, 1987, p. 43.

Produto do efeito pictural, o poema se expande através da figuração. Haroldo


tematiza suas escolhas pictóricas: "Max Bense desenha épuras/puríssimas a
giz/sobre a ardósia verde-lisa/...
(ler p. 25 de Entre milênios).
As imagens da escrita são referenciadas pela imagem verbal. As formas do desenho
aguçam o verso e a "poesia: lúcida/como um diagrama nítido/concluso em sua
álgebra/de diamantes"… (p. 25) se faz escrita pictural.

"O lance de dados de Monet" (p.33): cores e formas se transladam para o verso
com transferência de sentidos, tradução intersemiótica. Correspondência entre
figuração, entre metáforas.

O vocabulário de Haroldo tenta traduzir a projeção gráfica ou plástica das imagens.


O que se tem aqui é a matéria pictórica. Intertextos.

Para Helder Macedo, "toda pintura é uma arte de organizar alfabetos". Os versos de
Haroldo dizem que a poesia é uma arte de organizar imagens que antes de tudo são
visuais para depois se expandirem em outras formas.

O Monet de Haroldo está em Efeito do Outono em Argenteuil (1873) e as Ninféias.


As cores do quadro nos versos do poeta têm o sentimento vivo da cor e os olhos
presos na tela do pintor. Assim como Baudelaire tinha os olhos nos quadros de
Delacroix, podendo mesmo desenvolver suas ideias cromáticas. Dá-se uma
importância a Monet pelos efeitos de transfiguração da cor. Os quadros das
Ninféias recolocam para o poeta a questão da ruptura: da descoloração dos tons
pelo sol, e o reflexo sobre os objetos, são cores-luzes, mistura optica, mistura de
pigmentos - ou seja, decomposição dos tons em seus elementos constitutivos.

Se o pintor debe saber ver, saber antes de ver, saber para melhor ver, Haroldo
apreende pelo verso, pelos signos ali olhados essas modificações da luz e da cor,
daí tentar com a letra, com o verbo, traduzir: "sombra áureo-satúrnea"/"azul pantera
sub-aquática"/"ecos do roxo do violeta do cianuro do cítreo -blan mitileno; turquese
tirante"/"a ônix… verdeazul…" (…) "gigante barbibranco" (ler p. 33, 34, 35, 36).
Lembro Bachelard, quando diz:
"Claude Monet compreende essa imensa claridade do belo, esse encorajamento
dado pelo homem a tudo que tende ao belo, ele que durante toda a vida soube
aumentar a beleza que caía sob seu olhar […]. Em todos os atos de sua vida, em
todos os esforços de sua arte, Claude Monet foi um servidor e um guia das forças
de beleza que conduzem o mundo". (Bachelard, "As ninféias ou as surpresas de
uma alvorada de verão", In: O direito de sonhar, p. 7).

Em "Origo Vitae" (origem da vida, do mundo), (p. 37) é Coubert a referência


icônica - a "aranha genesíaca" lembra dois textos do próprio Haroldo: "Ponge e a
aranha em sua teia" (Arco Iris Branco) e a "Retórica da aranha", em que focaliza a
expressão "textos visuais":
"Textos que, em essência, se desenvolvem de maneira bidimensional, cujo fluxo de
signos e de informação deve ser considerado como um acontecimento sobre o
plano, não sobre a linha, e que, portanto, precisam ser vistos, observados, para
serem percebidos e compreendidos".
(Max Bense, apud Haroldo de Campos. In: O Arco Íris Branco, p. 201).

Trata-se do poema cartaz L' araigné em que a visualidade do texto e a sintaxe


ideográfica se aproximam do poema concreto.

O que Haroldo, nessa fase de sua obra Pinturas escritas/escritos picturais, nos
mostra é que a visualidade pode ser feita pela letra, sem ser no poema concreto, não
só pela imagem visual e não-verbal. No poema citado, Courbet (d' origine du
monde, 1866), a tela famosa: a imagem repercute no espírito de Haroldo que a
descreve assim:
"aranha genesíaca"
"felpa veludínea"
"cabelos intonsos"
(…)
"e depois de gerar
ei-la a vaginada aranha
canibal
devolta ao seu mister de
vênus
ao seu monte de pelúcida
alfombra e clitorides ninfa…" (ler p. 39).

Trata-se de um poema erótico com características de experiência interior.


Perturbador o quadro de Courbet e o poema de Haroldo de Campos abalam o leitor
e o espectador do Musée d' Orsay. É uma ordem expressiva de uma realidade
parcimoniosa, de uma realidade fechada. Origem da vida, gozo e pequena morte.

A pletora do órgão genital da mulher, a fenda, a energia do prazer suscita e acentua


a transgressão, pensemos em Duchamp e seu ready mead. Aí o sentido último do
erotismo, a supressão do limite. O erotismo se exprime assim pela posição do
objeto do desejo. Imagem do erotismo, o corpo feminino mostrado por Courbet é
para Haroldo o objeto erótico, "a mulher nua está próxima do momento de fusão
que ela anuncia (Bataille, O erotismo, p. 204). Mas o objeto que ela é, embora
sendo signo de seu contrário, da negação do objeto, é ainda um objeto (…) antes de
tudo, é a beleza possível e o charme individual dessa beleza que se revelam. É, em
uma palavra, a diferença objetiva, é o valor de um objeto comparável a outros".

Os palimpsestos parietais de Bruno Giovannetti é um dos city tellers mais


conhecidos em São Paulo. Segundo Massimo Canevacci em Museu de arte
contemporânea da USP - Museu Universitário (www.macvirtual.usp/br - 6/março
2010) Bruno Giovannetti tem "olho diaspórico" que escruta com olhar infantil e
sabedoria madura cada interstício da metrópole".

Muros, paredes como na gruta de Lascaux. Apontando para esse "olho-câmera" que
prescruta a cidade, através de suas tatuagens ou "destatuagens", o poeta Haroldo de
Campos alude em seus versos Picasso, Modigliani, de Chirico, Volpi.
Os olhos do poeta varam a cidade pelos muros grafitados pelo city teller. Conexão
forte da palavra com a dimensão verbal e significativa reflexão poética sobre a
condição contemporânea das artes que envolvem texto/imagem. Um índice ou um
esboço de certa teoria da intervenção.

A construção da visualidade no poema se dá através dos signos verbais. Olhar


combinado com certa articulação conceitual, deslocando percepções, entrecruzando
o verbal e o visual, este somente pela citação e transcriação pelo poema. Foto e
desenho na produção do poema - coisa que a letra reinventa.

Em 'Réquiem', o foco é Nestor Perlongher, este


"portenhopaulistanotietêpinheirosplatinoargentino-barroso"… que é descrito como
um retrato linguístico que reúne formas do verbal simbólico emprestando a ele não
só a propriedade visual e imagética, mas também a capacidade inventiva de criar
palavras poéticas em que o estatuto verbivocovisual se apresenta. Imagens
embutidas nas palavras, ou seja, signos visuais (icônicos) guardados em signos
verbais, ou mesmo signos verbais dentro de signos verbais.

Toda a invenção diante da morte de Néstor Pérlonguer partem de signos que se


engavetam para guardar os sentidos. Palavras-gavetas no corpo da língua poética,
como a mulher-gaveta de Salvador Dali.

Para Sacilotto/operário da luz, um poema que transcria/tra(ns)duz Vibrações


Verticais (1952); Concreção (1952), Ritmos Sucessivos e Movimentos
Coordenados (1952) e Articulação Complementária (1952) In: Grupo Ruptura, Arte
Concreta Paulista: Cosac Naiy 2002). O que podemos notar nesta transdução de
Haroldo é a descrição pictural que realiza. Movimento e luz do trabalho artístico de
Sacilotto se enlaçam nos versos e nas formas. Verdadeira orquestração semiótica
das artes, o texto de Haroldo de Campos se mostra uma poética da tradução
intersemiótica. Textos visionários que são escritos para ver sob a forma verbal e
não visual como no Poema Concreto.

Penetrar com a imagem a escritura/apropriação das artes visuais pelos signos


verbais. Fazer via através do texto, ilustrar às avessas, ou seja, fazer do signo-não-
verbal, signo verbal.

Ser poeta e ser artista visual implica um trabalho de transcriação verbal, um projeto
de tradução intersemiótica como poética. Se observarmos o texto para Sacilotto
ouviremos um poema cujo ritmo se aproxima do ritmo das linhas vibratórias de
Vibrações Verticais ou da Concreção, ou seja, organização do movimento da língua
poética (prosódia/entonação) e do sentido no texto.

Organização de subjetividade e da especificidade do texto poético ou ainda como


diz Meschonnic (Poétique du Traduire, p. 99): "l' objectif de la traduction n' est plus
le sens mais bien plus, et qui l' inchante? (não sei a palavra): le mode de signifier".

O ritmo do poema transpassa o ritmo da arte visual citada.

Finalmente, o poema Iole de Freitas em que "as asas invasoras assaltam o museu"
sobre Estudo para Volume e flecha 1 e 2. Estudo para superfície e linha. Mais uma
vez o ritmo e o movimento da arte visual/as esculturas/de Iole dão o tema para
Haroldo de Campos:

Como numa coreografia do espaço, Haroldo tenta captar esse movimento da linha
que corta o espaço com o policarboneto e o aço inox. Outra Ligia Clark, outro
Helio Oiticica… As asas dançam no espaço/tempo de Haroldo e ele vê borboletas
borboleteando pelo salão. Descreva o movimento dançado querendo apreender todo
o seu sentido. Inacessibilidade que o poema aponta.

Assim Entremilênios ou entreséculos mostra como a pintura escrita pode ser


traduzida no plano da linguagem e do pensamento (expresso por signos verbais). O
ritmo das artes visuais fricciona-se, atravessa o ritmo do fluxo das palavras.
Agenciamento de uma arte na outra - que se opera num ponto de contato e que tem
um efeito de ressonância sobre duas séries.

Tida Carvalho

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