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Susanna Busato
INTRODUÇÃO
Antes de mais nada é preciso dizer que poesia é imagem. Este pressuposto é
condição para que deixemos de lado qualquer traço de interpretação que nos leve
para o âmbito das referências, para o âmbito do caráter simbólico no sentido da
convenção do signo lingüístico. Todas as referências que nos levem para um outro
universo que não aquele da imagem poética transformam nossa leitura da poesia em
falácia, em visão superficial, em percepção automatizada para com a linguagem.
A palavra, esse signo miserável, fadado a carregar como um karma o sentido, como
um corpo carrega sua sombra, esse signo torna-se uma pedra no meio do caminho
de nossas vidas ao lermos a poesia... Torna-se uma pedra no caminho do verso, pois
a palavra, imune ao mundo, traz sua condição nomeadora como desafio para o
poeta.
Por meio da concepção de arte como expressão do impacto, expressão que se revela
e se constrói pela e na linguagem, é que acredito que devamos roteirizar nossa
leitura de poesia. Sem isso, caímos no conteudismo dos letrados, das discussões
temáticas e acadêmicas sobre as influências ou sobre as estatísticas que mensuram a
incidência de palavras de tal ou qual categoria no texto do autor; tais preocupações
fogem do caráter central e essencial de que se nutre a arte: a linguagem e sua
arquitextura e os aspectos intermidiáticos com os quais mantém alguma relação.
Sobporos
Frederico Barbosa
noco
rpos
oboc
orpo
osso
pros
dosp
oros
sobp
oros
O que a leitura dos signos desse trajeto estranho, porque não reconhecido num
primeiro tempo, impõe ao olho e à mente daquele que viaja por esse caminho do
verso? Que percurso sedutor é esse que leva o olho a buscar o sentido na seqüência
espaço-temporal dos versos e o que encontra no caminho?
Ao iniciar a leitura do poema, o olho guiado pela mente segue adiante e pára no
meio do caminho, encontra a tal pedra do verso de Drummond, retorna, revisa o
trajeto e avança novamente. Procede o olhar a estabelecer escolhas e fazer recortes,
escolher entre pedras e caminho sólido e reunir em planos aquilo que se avizinha de
seu horizonte.
Os signos “corpo”, “osso”, “poros” e “sopro” estão no paradigma dos seres vivos
(homem/animal). A combinação entre tais signos em termos de sentido leva o
poema a promover um encontro entre os corpos aludindo ao sopro, como vida, aos
poros, como canal epidérmico por meio do qual a vida sopra. Um encontro cuja
sensualidade se mimetiza no enlaçar-se de corpos, e corpo aqui como letra, palavra
imersa num encadeamento regular de letras (quatro) em cada verso (em número de
10 no total). A regularidade dos versos, sua simetria gera um ritmo ondulatório, por
força do “enjambement”, da ligação fatal que o olho é levado a fazer por força da
trajetória das letras unidas e dissolvidas nos versos. Esse caminho do olhar traça o
roteiro da “passagem”, dos poros da leitura.
O que se esconde sob os poros do poema? O que os corpos sopram sob os poros? O
que sobra do sopro no entrecruzar dos corpos? O que se esconde por detrás e além
dos signos? A singularidade do poema está justamente no princípio do
deslocamento, da desreferencialização do signo, para revivificar seu poder de
nomear. O deslocamento se dá pela passagem daquilo que antes visualmente era
reconhecido como unidade lingüística para agora pertencer à outra margem, ou no
dizer de Octavio Paz, à “zona proibida”, do interdito: aquilo que habita o Outro, o
irregular, o que é estranho...
No plano visual, a repetição da grafia arredondada das vogais e das demais letras
como: o, b, p e c, além da sinuosidade da letra s, vão compondo o cenário
cinematográfico do movimento da leitura, que não apenas procura identificar,
reconhecer os signos como palavras da língua portuguesa e detectar sentidos neles,
mas percebe involuntariamente a presença de uma imagem que remete à idéia dos
poros da pele humana (poros: grego “poros”, passagem, pelo latim, “poru”, canal.
1. Cada um dos pequeninos orifícios do derma. 2. Cada um dos interstícios
hipotéticos entre as moléculas dos corpos.)
CONCLUSÃO
A grafia das letras sugere o primeiro plano e apela para o visível do poema: em
“poros” a poesia se constrói por um mecanismo metalingüístico; as palavras
enganam e ao persegui-las encontramo-nos com a linguagem, a única que se impõe
como camada porosa, existente nos corpos. Sem a linguagem, o corpo não
sobrevive. Sem os poros, o corpo não respira. Sem o movimento erótico do corpo,
não há vida ou significação para ele.
A poesia está sob poros, sob as camadas da linguagem, como revela a imagem
violenta do poema de Ana Cristina César:
A poesia de “Sobporos” está não nas palavras em si, mas na construção sintático-
cinematográfica do movimento das letras e da qualidade do aspecto gráfico que
impõe o dado visual ao poema, promovendo o singular no meramente
recitativo/lógico-discursivo de que se nutrem muitos outros poemas sem qualquer
compromisso com a complexidade da linguagem como invenção de si mesma. A
poesia aqui acontece por meio de uma razão crítica que permeia a percepção do
sujeito poético que lê o mundo como imagem.
NOTAS
1
Eikhenbaum, Boris. Et. al. Teoria da Literatura. Formalistas Russos. 4ª.ed. Porto
Alegre: Glogo, 1978.
2
Aqui eu me refiro à poesia como invenção e não como arremedo de estilos que
pouco revela em termos de informação, pois se inserem no paradigma da repetição
de fórmulas que deram certo, e esta por certo é uma consideração complicada que
faço porque a crítica que assinala como invenção uma poesia que se insere como
proposta nova deve ter muito bem alinhavados os seus critérios de poesia.
3
Cito aqui o filósofo Edgar Morin que lembra Pascal ao desenvolver seu raciocínio
sobre a articulação dos saberes na era contemporânea. Dizia Pascal (no século
XVII) que “todas as coisas estavam ligadas umas às outras, que era impossível
conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer
as partes. Para ele o conhecimento era uma vai-e-vem permanente do todo às
partes, que escapava à alternativa estúpida que opõe os conhecimentos particulares
não religados entre si ao conhecimento global, oco e vago”. (Morin,
Edgar. Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo:
Cortez: 2002, p.63)
4
Paz, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
5
Barbosa, Frederico. Cantar de Amor entre os escombros. São Paulo: Landy, 2002.
p.21
Referências Bibliográficas