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BENEDETTO CROCE, «La philosofie du langage», in «Essais d'esthétique», Tel, Gallimard,
Paris, 1991, p. 234.
a transcende e transfigura no processo da sua actualização.
Esse processo não nasce de uma palavra, nem da simples
articulação de imagens, mas sim daquilo que Gadamer designa por
um tom, no sentido de «tónos, tensão, como a da corda tendida,
de que brota a eufonia». É esse tom que designa o aspecto
próprio do poema, aquilo que lhe confere uma individualidade
tal que permite distingui-lo de outras frases, palavras ou
sons, mesmo que correctamente enunciados, mas aos quais falte a
densidade lírica que «opera o milagre de que o poema fique de
pé, de que, para citar Hölderlin, algo permaneça no instante
passageiro.»2
Este é, então, o plano da anti-utopia: aquele em que o
homem, tomando consciência da sua condição mortal, procura a
sua sobrevivência que é, acima de tudo, a permanência na
memória que só existe na palavra que lhe dá forma. Isto implica
uma relação necessária entre o poema e a comunidade, de que
este é a voz; e explica, por outro lado, o conflito latente - e
sempre renovado - na tensão entre o individual e o colectivo,
ou seja, no facto de a voz poética ser, também, transportada
por um indivíduo que pode privilegiar a sua individualidade
sobre o seu ser colectivo, o lírico (canto da lira) sobre o
épico (discurso).
Enquanto a voz do poeta dependia da memória colectiva, que
obrigava a uma adequação do sentimento individual com o da
comunidade, tinha de se subordinar ao interesse comum. O texto
que vive na dimensão oral - facto que se verifica, em maior ou
menor grau, até à invenção da imprensa - comporta dois
sujeitos, locutor e auditor, que têm, como refere Zumthor, «o
mesmo mas não idêntico investimento de energia psíquica, de
valores míticos, de sociabilidade e de linguagem. Radicalmente
social tanto como individual, a voz assinala o modo como o
2
HANS-GEORG GADAMER, «Poema y dialogo, Ensayos sobre los poetas alemanes más
significativos del siglo XX», Gedisa Editorial, Barcelona, 1993.
3
homem se situa no mundo e para com o outro.» A autonomização
do escrito, com a distância do produtor em relação ao leitor, e
com a possibilidade que o produtor passa a ter de idealizar o
destinatário do seu texto, vai criar o fenómeno de afastamento
ou segmentação do público literário, além da crescente
separação dos géneros e da libertação do texto relativamente ao
factor mnemónico, para se centralizar na complexidade crescente
dos processos criativos.
Será aqui, então, que reside o primeiro momento doloroso
de consciência do facto poético como um drama, traduzindo o
corte do criador e do público, de que a imagem platónica do
poeta como o ser que a cidade deve expulsar já era um emblema.
Isto obriga, por outro lado, à criação de mecanismos de defesa:
o agrupamento dos escritores em «gerações» ou «correntes», no
aspecto corporativo que se verifica desde os trovadores; mas
também o esforço de codificação das regras de produção textual
- as «artes poéticas», o ensino da literatura - assim se
impondo tradições interiores ao próprio fenómeno literário que
contribuem para autonomizar e institucionalizar os géneros
poéticos, o que vai contrariar a deriva individual que ameaça o
estatuto do poeta. Essa deriva, então, só é autorizada em
função de um «génio» que possa impor as suas regras próprias,
caso contrário será vista como manifestação de loucura ou
desequilíbrio.4
É, curiosamente, a evolução da arte ocidental que vai
traçar um percurso em que essa individualização do estético,
ligada à emergência de um campo autónomo da criação literária,
desembocará no radicalismo de uma dupla ruptura - ética e
estética - a partir do instante final do Romantismo, com
3
PAUL ZUMTHOR, «Introduction à la poésie orale», collection Poétique, Seuil, Paris, 1983.
4
Esta oposição pode ser tipificada nas figuras «biográficas» de Camões e Bernardim Ribeiro,
no Classicismo português, tal como os leu a crítica positivista e, posteriormente, muita da nossa
História literária : o primeiro apresentado como emblema da Pátria, e o segundo como doente
mental, numa leitura que decorre exclusivamente do significado das suas obras, em que o génio
patriótico de «Os Lusíadas» se opõe ao sentimentalismo anómalo da «Menina e Moça».
Baudelaire e, posteriormente, o Simbolismo; regressando a Arte
à conquista do social, a partir do Futurismo, com as
vanguardas, mas desta vez numa situação em que não é o artista
a subordinar-se ao político mas vice-versa, até que a viragem
surrealista, com a sua tomada de posição política ilustrada na
fórmula «O surrealismo ao serviço da Revolução», voltou a
recolocar a subordinação estética no seu espaço conservador, em
analogia com a consagração jdanovista do «realismo socialista»,
na União Soviética de Estaline.
É este conflito que ilustra os extremos dentro dos quais
se inscreve a criação poética: por ou contra o social; e ele
decorre do antagonismo que nasce dentro da própria linguagem
entre a verdade suposta da palavra e os sentidos outros que ela
transporta, remetendo para o plano do mito a ideia de uma
«linguagem das coisas», como verifica Merleau-Ponty, situada
numa «idade de ouro da linguagem» em que o facto de as palavras
se ligarem às coisas mesmas retirava qualquer mistério à
comunicação5. Paradoxalmente, é a busca desse idade de ouro que
funda a poética moderna, a partir do momento em que o poema se
afasta mais radicalmente da procura de um sentido-no-mundo para
se centrar no sentido-na-palavra, recolocando no seu horizonte
a utopia daquilo a que Umberto Eco chama «o ideal de uma Língua
Mágica na poesia contemporânea, em Rimbaud, em Mallarmé, em
Christian Morgenstern; na linguagem trans-mental de Khlebnikov,
no Finnegans Wake de Joyce, e em qualquer concepção da poesia
em que o máximo de sentido é expresso pela ambiguidade da
reticência, da alusão, da neo-formação lexical de sabor
fatalmente glossolálico».6
5
MERLEAU-PONTY, «La prose du monde», Tel, Gallimard, Paris, 1992.
6
UMBERTO ECO, «La quête d'une langue parfaite dans l'histoire de la culture européenne»,
Collège de France, Chaire Européenne, Leçon inaugurale faite le Vendredi 2 octobre 1992,
1992
ALGUMAS QUESTÕES FORMAIS
(Anónimo,«Definição do amor»)
Há aqui uma supressão do como (amor é como um nada que
pode tudo, etc.) que se torna desnecessário porque o poeta já
sabe - e, por consequência, o leitor também - que o objecto
amor se define pelos seus opostos - e isto porque Camões
funciona como uma «autoridade» na lógica deste tipo de
raciocínio, a partir do soneto «Amor é fogo que arde sem se
ver».
De facto, a supressão do como corresponde à eliminação ou
à rasura da ideia de que, por detrás da imagem poética, pode
haver uma razão lógica. Assim, o poema passa a apresentar-se
apenas na sua dimensão analítica, reproduzindo ad infinitum
elementos descritivos do tema que, à medida que as imagens
comparantes se desenrolam, vai perdendo cada vez mais a sua
posição central, acabando por ser também ele um elemento
acessório - o que caracteriza, precisamente, a estética
barroca.
Estamos próximos do mecanismo do sonho, tal como é
analisado por Freud. Um sonho decorre de um tema que se
encontra substituído por toda uma série de imagens, de tal
forma que essa multiplicidade acaba por esconder o real. Por
isso, o poema precisa de encontrar uma lógica outra que a
lógica do real para se organizar, tal como sucede no sonho, que
se constitui numa «narrativa» sintética, como diz Freud: «o
conteúdo do sonho é muito mais curto que os pensamentos de que
eu afirmo que ele é o substituto»8.
O Romantismo leva este processo até um ponto extremo, ao
encontrar para a definição do objecto elementos mais objectivos
do que ele:
2.ESCRITA E POESIA
O processo constitutivo da imagem poética procede por
aproximações sucessivas do assunto, ou tema, do texto. Há uma
envolvência que contribui, a pouco e pouco, para dar a imagem
nuclear, sobretudo na tradição poética ocidental : no Oriente,
designadamente na China e no Japão, a imagem é dada de um modo
muito mais imediato - inspirando a escola dos imagistas que
exigem que haja um tratamento explícito e directo do tema,
rejeitando todo envolvimento meta-fórico, sendo, por esse
motivo, uma corrente exógena à nossa tradição.
De facto, o princípio analógico exige a presença de duas
imagens que, à partida, têm tanta importância uma como a outra.
Só o decurso do poema irá privilegiar uma delas, pondo o acento
tónico num tema que é o resultado, e não o princípio, do texto.
Se pegarmos no soneto de Camões «Alma minha gentil que te
partiste», o poema abre-se de facto a partir de uma dualidade
imagética : a amada e a morte ; sendo apenas no seu decurso
que se irá acentuar o retrato póstumo da amada, pondo a morte
como um tema secundário.
A evolução do poema a partir de uma imagem, assim, resulta
desse esforço de envolvimento imagético que é, de facto, o
resultado de um raciocínio cuja lógica podemos determinar a
partir da reconstituição do jogo de imagens, e da sua relação,
que o poema apresenta. Tomemos um exemplo prático : passando
junto a um bosque de ciprestes, num dia de vento, ouve-se um
ruído que lembra o barulho das ondas do mar. Assim, surge esta
associação:
l. bosque de ciprestes
2.ruído de ondas.
Se pensarmos em imagens ligadas a cada um dos dois núcleos
de imagens, podemos encontrar morte (ciprestes) e barco (on-
das), cuja ligação evoca um naufrágio. Assim, teremos uma pos-
sibilidade de tema poético a partir de:
Ciprestes como ondas:
barcos naufragados.
Trata-se do mais elementar raciocínio, que parte da com-
paração suscitada por uma impressão subjectiva provocada por
uma imagem real. Outros poderiam, no entanto, ser os processos
que conduziriam à formação da imagem poética. O que temos aqui,
então, não é mais do que um dos muitos «embraiadores» poéticos,
ou seja, a transformação de uma experiência de analogia (a
semelhança de dois ruídos vivida pelo sujeito) em imagem
poética.
Vivemos, neste caso, uma total subjectividade da imagem,
que depende de um acaso de aproximação para que seja possível a
sua concretização poética. Isso não impede que haja um
fundamento «experimental», ou seja, que a analogia tenha uma
hipótese de fundamento real que é, como se sabe, a base das
«metáforas de uso» : a «seara loura», que não desperta já
qualquer interrogação poética, por exemplo, nasceu sem dúvida
da analogia entre o amarelo da seara madura e a cor de uns
cabelos louros.
Note-se, por outro lado, a exigência de objectos da imagem
- isto é, quanto mais concreta é a impressão inicial do poema,
mais força terá a afirmação da imagem .Assim, não se deverá
sobrecarregá-la inutilmente - quer através do adjectivo, que
visaria reforçar características de um ou outro membro da
relação analógica, quer através de elementos redundantes, do
ponto de vista do sentido. Tais elementos só se justificariam
quer por razões rítmicas quer por razões decorrentes da
construção sintáctica. Se mudarmos o exemplo citado em:
1.«Ciprestes movendo-se como ondas»
2.«Ciprestes empurrados como ondas»
vemos, em 1, um acrescento perfeitamente inútil e
empobrecedor da força da imagem ; e em 2 uma alteração que se
torna possível porque ajuda à criação do clímax no verso
seguinte: «barcos naufragados».
Assim, a ideia de que a subjectividade é o factor
dominante do poema, e de que o lirismo corresponde a uma
entrega ao sabor das imagens ou das palavras, é a cada passo,
contrariada pela análise do poema e pela verificação de que
quanto mais rigorosa é a lógica que preside à elaboração da
imagem mais conseguido se torna o poema. Voltamos, então, à
verificação feita pelos imagistas de que se torna
imprescindível concretizar a regra de criação da imagem ; e que
desembocará nos princípios de F. S. Flint:
«1.Tratamento directo da «coisa» quer seja subjectiva ou
objectiva.
2.Evitar absolutamente qualquer palavra que não contribua
para a apresentação.
3.Quanto ao ritmo: compor na sequência da frase musical, e
não na sequência do metrónomo.»
São regras perfeitamente válidas para a definição da
qualidade do poema, a qual só se verifica quando se sustenta
num mínimo de rigor no equilíbrio entre o tema e a forma, ou
seja, entre a multiplicidade de sugestões desencadeadas por um
objecto e a forma de apresentação dessas sugestões de modo a
que resulte «evidente» a lógica da sua construção, que em caso
algum pode apresentar pontos fracos quer no plano imagético
quer no plano fónico.
3.NATUREZA DO POÉTICO
A linguagem poética não se caracteriza apenas pelas
características formais do texto - verso, estrofe, rima, métri-
ca, etc.- uma vez que estas não se encontram no texto em prosa
que, mediante determinadas condições, pode aceder ao estatuto
de poético. J. M. Magalhães chama a atenção para este aspecto
ao dizer:
«Qualquer texto em prosa, não deveríamos esquecer-nos
nunca, é tanto quanto um poema uma questão de ritmo. Isto
esquecem quase sempre os maus prosadores, que julgam a prosa um
mero equivalente do chamado discurso da troca comum, o que
nunca a atenção textual a que chamamos a prosa alguma vez foi.»9
Trata-se, sim, de algo que está inscrito num fundo
essencial a que se tem acesso a partir de toda uma série de
características que se nos tornam acessíveis através da
leitura, ao apercebermo-nos de repetições fónicas, de jogos
musicais, de estruturas rítmicas que organizam a estrutura
interna do texto na sua materialidade linguística.
Em que consistem, então, essas características, ou a que
necessidade respondem?
Vejamos, por ordem de resposta:
O ritmo, e as suas manifestações formais, são o elemento
que, no poema, traduzem a sua memória e a sua história. De fac-
to, esses aspectos formais são o que resta de uma instância
oral que, na origem do género, é determinante para o seu modo
de expressão - e de transmissão. O texto poético confunde-se,
aí, com o texto religioso, mítico, ou ritual, sendo o veículo
dessas formas do pensamento primitivo antes de se autonomizar
delas e ganhar uma existência própria. Subsiste, no entanto, um
vínculo ao sagrado ou ao divino na linguagem poética, sendo aí
plenamente justificada a intuição romântica de um corte entre
narrativa e lirismo, inicialmente confundidas no poético, que
resultam no épico e no lírico. Hölderlin constata a ligação
9
«Eugénio de Andrade II»,in«O Independente» 13-11-92.
profunda do poema épico ao real, nisto se diferenciado do
poético em si que ele descreve do seguinte modo:
«Essa atitude mental é no fundo carácter poético; nem
génio nem arte, mas individualidade poética ; por si só é dada
a identidade do entusiasmo, o génio e a arte no estado
realizado, o infinito tornado presente, o momento divino.»10
É óbvio que o lirismo corresponde a uma fase diversa do
épico - aquela em que o indivíduo encontra o meio de subsistir
espiritualmente desligado da comunidade, ou em oposição a ela ;
sendo este aspecto que aproxima a atitude lírica de uma «mar-
ginalidade» que faz do poeta lírico um factor de perturbação na
vida social/sociável - daí resultando a sua proscrição na
utopia platónica. Daí que a afirmação lírica exija,
normalmente, esse pé na tradição, que a autoriza e legitima,
como meio de «protecção» do estatuto do poético e do poeta ;
embora, como é evidente, os recursos formais que são o índice
mais forte dessa vinculação mnemónica precisem de mais alguma
coisa para que se torne possível sustentar o edifício poético.
Esse algo mais é o elemento do reconhecimento. Sabe-se, a
partir do romantismo e do final do século, que a luta primeira
do poeta não tem a ver directamente com a escrita, resultando
antes da consciência da sua marginalidade para com a sociedade.
Trata-se de uma luta para impor o seu estatuto - no Romantismo,
para que esse estatuto seja reconhecido, e o poeta não se veja
relegado para a situação tópica do proscrito ; no fim do
século, pelo contrário, o escritor pretende assumir claramente
essa marginalidade, reivindicando a situação do «poeta maldito»
como uma definição positiva de categoria social.
A coincidência destas atitudes com o século XIX não é
fortuita. Aí, entram em crise os valores fundamentais do
sagrado - e, com eles, essa ligação do poeta à função mítica da
mediação entre o homem e o divino. A marginalidade do poeta
resulta, então, de um afastamento ou proscrição do factor
10
Ensaios do «Período de Empédocles»,in «Oeuvres»,Pléiade.
religioso, que perde a sua utilidade simbólica em proveito do
político ou do económico.
Resulta esta atitude, por outro lado, do equívoco que
identifica, cada vez mais, poesia e lirismo. Não há dúvida de
que o lírico é um dos traços principais do poético ; mas, de
forma alguma, o único, como o demonstra a alternativa que o fim
de século XIX encontra para o exclusivismo da expressão lírica,
com o aparecimento do «poema em prosa». Voltando á origem da
Poesia, e à sua ligação ao sagrado, importa sublinhar o aspecto
«utilitário» ou pragmático do discurso poético na sociedade
primitiva - de forma alguma desligado, ou marginal, do
funcionamento social:
«Que a poesia não fosse originalmente considerada nem como
um simples passatempo, nem como o fruto de uma pura aspiração
ao gozo estético, demonstra-o a etimologia daquelas palavras
que têm relação com esta. A poiésis (poiésis de:poiéw=faço) foi
acção, se bem que hoje pareça contemplação ; unida ao canto foi
incantação; ligada à mímica foi drama (dráma de dráw=faço)
ritual, isto é, operação mágica, representação destinada a
realizar uma presença sacral.(...)Se percorrermos às avessas o
caminho da sociedade, atingiremos o ponto em que não saberemos
distinguir a inspiração poética de um ritual mágico, do mito,
da religião : vates é poeta e profeta. A leitura de centenas de
documentos etnológicos vai constantemente nessa direcção.»11
5.GÉNESE DO POEMA
A poesia decorre da linguagem em si, isto é, é um
fenómeno que nasce com a autonomização do discurso em relação
ao real que, à partida, a palavra designa. O processo pode
esquematizar-se de um modo elementar:
linguagem
---------_---+------+-
mundo a b
semas
7.POESIA E PERSPECTIVA
Há um fenómeno, na pintura, que é o da criação de um fundo
que introduz a ilusão de uma tridimensionalidade na superfície
do quadro. Esse fundo pode, no entanto, ser escondido através
de manchas, sombras, nuvens, que restituem o quadro às duas
dimensões, embora deixem subentendida essa profundidade.
Se procurarmos o equivalente deste fenómeno na poesia,
verificamos que também aí existe algo de análogo, expresso
através da presença de um fundo não visível, numa dimensão que
não é a da axialidade horizontal e vertical dada pelo sintagma
e pelo paradigma. Esse fundo corresponde a uma subjectividade,
visível através da presença, no texto, de marcas subjectivas,
mas que não é redutível a uma dimensão puramente linguística.
Explica-se isso dada a definição do lirismo através da relação
com um sujeito que se apresenta na primeira pessoa pronominal.
Assim, a relação que o poema estabelece com o leitor é directa,
dialógica, através da pressuposição de um interlocutor na
segunda pessoa cuja presença é obrigatória para justificar o
uso da afirmação pessoal do discurso poético.
Há, então, um carácter deíctico desse discurso poético que
remete para um plano profundo, além do nível superficial da
expressão linguística do poema. Nesse plano, que é equivalente
a uma cena inconsciente, tem lugar a «dicção» do poema com os
intervenientes, que são a voz do poeta e o destinatário dessa
voz, projectados numa situação performativa, realizando a ar-
ticulação dialógica texto-resposta. Se esta situação existe
apenas como arquétipo inconsciente, não verificável no plano do
texto, onde só a primeira pessoa se encontra explícita, a um
outro nível ela vai agir sobre a recepção do poema. Com efeito,
o texto interpela o leitor de uma forma directa, obrigando-o a
identificar-se com essa cena subjectiva, e a projectar-se nesse
«tu» a quem é exigida uma resposta . O leitor é, então, uma
figura necessária nessa cena inconsciente, aí figurando como o
único elemento capaz de «esclarecer» o mundo não visível do
poema e de conferir uma «presença real» ao sujeito poético.
A realização do poema passa, assim, pelo acto de pôr em
perspectiva o fundo inconsciente de uma relação comunicacional,
passando além da superfície material do texto com as suas
direcções linguísticas - significante e significado - bem
definidas. Vemos que a cena subjacente à concepção poética vai
além desse plano linguístico, embora decorrente dele. O poema -
sobretudo na sua vertente lírica - funciona por isso como um
mecanismo mediador do processo dialógico de que a deixis é o
instrumento nuclear.
Temos aqui, então, um aspecto sensorial decorrente dessa
deixis: o ver, implicando a resposta ao gesto de apontar na
direcção de um fundo não visível, que o poema realiza. É
evidente que o que é visível é esse gesto, esse apontar a
existência desse plano ; enquanto que o fundo não visível pode
nem sequer ser acessível ao olhar do leitor. A sua visibilidade
é ,por isso, algo que pertence apenas ao plano da
possibilidade, e não da realização, do acto poético.
É um facto que o que se dá a ver é, antes de mais, o
sujeito que dá a ver, isto é, o poeta como figura da mediação;
sendo essa presença - mediatizada e abstractizada, no entanto,
através da ficção pronominal - a primeira figura do poema. Por
figura, designa-se então o acto de passagem do modo
linguístico, verbal, ao modo visual, formal, ao mundo das
imagens que são o fundo do poema. Ora, verificamos que esse
mundo, embora presente, é a cada instante «rasurado», anulado,
escondido, pela dimensão linguística do texto, que constitui em
última análise a dificuldade que, na pintura, é constituída por
essas manchas, ou nuvens, ou sombras, que escondem o fundo,«
apagando» a perspectiva.
No poema, a perspectiva é algo que é intrínseco da própria
natureza do lirismo : o sujeito, omnisciente e omnipresente,
reduz-se a um expediente gramatical; e o mundo que ele põe em
cena não passa de um jogo articulatório de significações
decorrentes da dominante subjectiva. Assim, a primeira pessoa
introduz uma instância presente na produção do mundo ou
realidade do poema. O leitor é forçado a integrar essa
dimensão, vendo apagada a mediação «histórica», a distância de
um devir que impõe uma fronteira entre o real do texto e o real
do leitor, entre o tempo da ficção e o tempo real. Todo o
artifício do poema decorre, então, dessa anulação de
fronteiras, vendo-se o leitor envolvido imediatamente no jogo
dialógico, como parte necessária do fundo inconsciente do
texto.
A perspectiva é, portanto, o que confere densidade e
«presença», ao sujeito poético ; sendo que esse sujeito - a sua
realidade - é algo de essencial no género lírico. Assim, se o
sujeito não se impõe, e se a cena dialógica não se torna
visível, o poema falha ou, pura e simplesmente, não acede a
esse estatuto lírico, ficando a um nível descritivo ou
narrativo, que pertence a outra ordem de definição.
A RAZÃO DO POEMA
13
James A. W. Heffernan, «Ekphrasis and representation», in «New Literary History», 1991,
22:297-316.
entrar no texto, através da leitura, para descobrir o tema, o
leitor de poesia recebe, desde o momento em que «vê» o poema,
ainda sem o ter lido, a indicação do que ele é: soneto, se
apresenta uma dada disposição gráfica; quadras, se tem outra
disposição; ou poema épico, ou ode, etc.. Ou seja, o poema
funciona como um produtor da sua percepção estética
condicionando, à partida, o modo como a sua abordagem é feita
pelo leitor. Não há, assim, propriamente um efeito de surpresa,
no aspecto formal, sendo essa surpresa uma consequência
secundária dos efeitos estéticos da própria linguagem.
Isto significa, por outro lado, que há um ser - o poético-
como categoria formal e essencial - que precede a realização de
cada sentido concreto do texto, que deste modo se vê forçado a
adequar-se a esse modelo, mesmo quando o transgride, como ponto
de referência, enquanto género, da sua realização. Daí a
analogia com o processo religioso, dado que o instante de
reconhecimento da qualidade poética surgirá sempre como uma
epifania dessa origem essencial que existe para além das
contingências de cada poema como objecto singular.
De facto, facilitará a aproximação a este problema de
definição do poético o estabelecer a distinção entre poesia e
poema, em que o objecto de leitura e de percepção real é o
poema, enquanto que a poesia é algo que pertence à esfera do
virtual, à qual não existe acesso senão através de sinais que
se imprimem na esfera da subjectividade quer do texto quer da
leitura. É certo que há outras possibilidades de definir o
poema, que não sejam pela positiva mas por oposição - como, por
exemplo, decidir que o poema é tudo o que não é prosa14; mas, de
facto, o essencial encontra-se nesse aspecto essencialmente não
objectivo do objecto-poema.
14
A definição por oposição à prosa tem, no entanto, um complemento: o poema, ao contrário
do texto em prosa, tem qualidades formais (ritmo, rima, aliterações, etc.) que facilitam a
memorização - sendo esta, sem dúvida, uma especificidade fundamental, embora haja o caso
excepcional, e discutível, do poema em prosa e, em menor grau, do verso livre, em que os
factores mnemónicos contam menos.
Os valores poéticos não são, em todo o caso, puramente de
ordem formal, e estão antes ligados a uma interrogação acerca
da própria natureza do objecto - o poético - para que o poema
transporta. Neste sentido, ao contrário do romance que nos
prende antes de mais a questões de realidade ou de sociedade, o
poema será por isso o texto em que o que está no centro da
experiência de significação é a própria linguagem; e o facto de
o poema ser mais facilmente objecto de memorização resulta
desse aspecto em que, tal como na aprendizagem da palavra pela
criança, som e imagem estão de tal forma associados que a
fixação natural da imagem do poema pela memória arrasta,
inconscientemente, a própria memorização das palavras que
designam ou representam essa imagem , como se esse corpo
frásico não fosse mais do que um único signo
PENSAR A POESIA
15
G. STEINER, «Réelles présences, Les arts du sens, NRF Essais, Gallimard, Paris, 1989, p.
175.
que esse conceito arrastava (voz, presença, biografia, real,
etc.) - verifica-se uma revisão de tão radical eutanásia, sem
que, no entanto, se possa dizer que regressamos ao ponto
anterior, ou seja, àquele em que era a personalidade - e o mito
- do Autor que dava total legitimidade e autenticidade ao
texto.
Um conceito como o de estratégia enunciativa, que permite
verificar quais são os modos por que o texto procura
estabelecer, com o leitor, um pacto de leitura - de facto, todo
o texto precisa de seguir uma estratégia de envolvimento e de
«conquista» do leitor - permite detectar essa figura a que
podemos chamar, usando também um termo militar, o cérebro das
operações, mesmo que essas operações sejam apenas linguísticas.
Ora o que permite esse envolvimento é, antes de mais, o domínio
de toda uma série de recursos, retóricos e estilísticos,
capazes de desarmar a desconfiança que temos perante cada
texto: « isto é mesmo verdade?», ou «o que é que isto quer
dizer?» De facto, a leitura obriga a que o leitor não se
interrogue - caso em que o texto falha esse objectivo de captar
a atenção; e o texto ideal é, mesmo, aquele que consegue
prender o leitor do princípio ao fim, sem interrupções - o que,
no fundo, só dois tipos de texto conseguem, de facto: o poema
lírico, pela conjugação de duas características que são a
brevidade e a intensidade, e o texto policial, pelo efeito de
dilação da resposta à interrogação que lhe é subjacente desde o
início: «quem é o criminoso?», e que força o leitor a
concentrar-se inteiramente num universo em que, à partida,
todos os elementos são significativos.
Será por isso que todos os outros textos - os que não
possuem essas características, enquanto géneros literários -
precisam de ter algo de lírico (mesmo que apenas na mais ínfima
notação descritiva) ou de policial (a partir do momento em que
qualquer texto coloca uma interrogação ao leitor, a que ele
terá de responder em paralelo com a resposta dada pelo próprio
texto)? É essencial a percepção desse sentimento do texto para
que se estabeleça o pacto da leitura, que consiste na aceitação
de que, por momentos, as palavras representam uma realidade
partilhada com outros que nunca a viveram, ou não têm acesso a
ela. Por isso, nenhum texto é in-ofensivo, isto é, o texto
literário é aquele que tem a capacidade de romper as defesas do
indivíduo instalado no conforto das suas convicções e do seu
mundo, e de o forçar a uma prova de conhecimento que, segundo
Séneca, se pode comparar ao exercício físico (in «Epistulae
Morales ad Lucilium»). Isto implica, igualmente, roubar esse
alguém - o leitor - ao seu mundo próprio, e levá-lo para o
universo estranho (construído a partir da «estranhificação» do
real) que é o universo literário, como sucede a Quixote, levado
do mundo do real para esse universo que para ele, finalmente,
se confunde com a loucura.
Não temos, no entanto, de recorrer a esse caso extremo -
e, afinal, perverso - para descrever o acto de ler. Marcel
Proust, em «Jornadas de leitura»16, fê-lo com mais exactidão:
«Não há talvez dias da nossa infância mais plenamente vividos
do que aqueles que julgámos deixar sem os viver, aqueles que
passámos com um livro preferido.» Com todo o pormenor, Proust
descreve o dia de leitura até chegar ao epílogo, após o que
resta «(sentir) muito bem que a nossa sabedoria começa onde a
do autor acaba» para, então «(querer) que ele nos dê respostas,
quando o máximo que pode fazer é dar-nos desejos.» É claro que
um desses desejos pode ser o que conduz o leitor a dar o passo
para além do espelho - e a escrever. Mas é um passo
irreversível, esse que faz do leitor escritor, roubando-lhe a
possibilidade de, alguma vez, voltar a ter o puro gozo da
leitura, essa que termina no ponto final da última página. Para
quem escreve, é aí que começa, de facto, o tormento - quer sob
a forma da «angústia da influência, descrita por Harold Bloom,
16
Incluído no volume «Pastiches et mélanges»; editado em «Journées de lecture», 10-18, UGE,
1993.
fonte das rupturas e das inovações, quer no modo imitativo que
está na raiz do classicismo.
Não sei se ler nos rouba a vida, no sentido de nos impedir
de viver. Proust coloca as duas situações: «Enquanto a leitura
for para nós o estímulo cujas chaves mágicas nos abrem no fundo
de nós próprios a porta dos lugares onde nunca teríamos sabido
entrar, o seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigoso,
pelo contrário, quando em vez de nos acordar para a vida
pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se-lhe,
quando a verdade já não nos aparece como um ideal que não
podemos realizar senão pelo progresso íntimo do nosso
pensamento e do nosso coração, mas como uma coisa material,
depositada entre as folhas dos livros como um mel já preparado
pelos outros bastando apenas chegar até ele nas prateleiras das
bibliotecas e saboreá-lo depois passivamente num perfeito
repouso de corpo e de espírito.»
Por isso, o bibliotecário confunde-se, no imaginário
comum, com o rato de biblioteca, que está de costas viradas
para o mundo, ao contrário do leitor ideal que vive todos os
mundos, desde que há escrita. Mas também se podem confundir os
dois, como sucede na figura de Jorge Luis Borges, o
bibliotecário cego - que por isso se tornou um arquétipo ao
ponto de influenciar o monge bibliotecário do «Nome da rosa» de
Umberto Eco. A sua sabedoria identifica-se com a do poeta, na
definição que dele dá Maria Zambrano: «O poeta não trata de
fazer a contagem dos seus bens e dos seus males; o inventário
da sua fortuna. Porque o poeta não pode saber quem é; nem sabe
sequer que busca.»17 Como o poeta, o bibliotecário vive na
procura constante desse universo que não tem fim, porque a cada
instante é acrescentado pelos livros que se descobrem de um
passado inesgotável e pelos que hão-de vir da escrita de cada
geração que se sucede; e todas as ordens de descoberta do mundo
17
Maria Zambrano, «A metáfora do coração e outros escritos», Assírio & Alvim, Lisboa, 1993,
p. 98.
sem fim da literatura são arbitrárias, motivando essa
descoberta de La Palice do Autodidacta em «La Nausée» de Sartre
que, para devorar uma biblioteca pública, muito simplesmente
segue a ordem alfabética por que os livros estão classificados.
É por isso que, nesse caminho que se confunde com o
labirinto, só a cegueira que nasce do excesso de leitura pode
conduzir à sabedoria do essencial, que se resume à palavra
Livro. Para o descobrir, basta um sentimento - que pode ser o
tacto, através do qual se descobre a diferença entre os
materiais (papel, pergaminho, letras), o olfacto (o cheiro da
tinta, do pó, da impressão), o ouvido (o folhear das
páginas)...Por absurdo, isto leva-me a considerar que o
coleccionador de livros ideal será aquele que apenas acumula
alfarrábios descobertos desse modo sensorial - sem nunca os
chegar a ler, isto é, sem chegar a ter o contacto intelectual
com eles que só o leitor profano pode ter. Vejo assim -
mitificando, sem dúvida, o personagem real - um Inocêncio, para
quem o livro é, antes de mais e no fim de tudo, uma ficha que
se esgota na página de rosto e no cólofon, como o anti-Borges
que, não podendo ver o que estava entre esses dois limites, o
imaginava.
Uma reflexão sobre a descoberta da literatura levar-nos-á
então a reflectir sobre o papel desempenhado pela intuição
nesse primeiro instante de relacionamento com o texto; e leva-
nos a concluir que é o prazer, sem dúvida narcisista, da
confirmação dessa intuição na leitura do texto, que permite a
projecção do leitor no livro, conduzindo-o ao processo de
relação fusional que se pode verificar durante a leitura e que
está na origem do que designo como sentir o texto.
O ALFABETO DA CASA
20
Ver a este respeito o livro de Izabel margato, «As saudades da «Menina e Moça», col. Temas
Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 1987.
21
«vi salir a mi encuentro, por entre unos robledales do mi camino se hazía, un cavallero assí
feroz de presencia como espantoso de vista, cubierto todo de cabello a manera de salvaje; levava
en la mano isquierda un escudo de azero mui fuerte, y en la derecha una imagen femenil
entallada en una piedra muy clara, la qual era de tan estrema hermosura que me turbava la vista;
salían della diversos rayos de fuego que levava encendido el cuerpo de un honbre que el
cavallero forciblemente levava tras sí.» (Diego de San Pedro, «Carcel de Amor», ed. de Carmen
Parrilla, estudio preliminar de Alan Deyermond, Crítica, Barcelona, 1995.
22
« Ele estando assi neste pensamento, acertou-se acaso que um mateiro vinha do mato pelo
caminho que ia ter à ponte, e vinha em cioma d~a besta como deitado, mal coberto com um
enxalmo. Parece que andando ele despido cortando a lenha, ateara-se-lhe algum fogo perto do
seu vestido e queimara-lho; então ele, por lhe querer acudir, descuidara de si, e o fogo fizera-lhe
algum nojo por partes de seu corpo. E, direito do cavaleiro, topou com outro mateiro que pera o
mato ia, que lhe perguntou, vendo-o vir assi sem lenha, que pera que fora ao mato.
Respondendo-lhe o mateiro queimado, falando-lhe galego, estas sós palavras:
«Binmarder.» («Menina e Moça de Bernardim Ribeiro», ed. Teresa Amado, Textos
Literários, Ed. Comunicação, 1984, p. 107).
múltiplas interpretações de que o texto tem sido objecto.Antes
de mais, estamos perante uma narrativa «inexistente», uma vez
que ficou incompleta (a continuação sob forma cavaleiresca, a
partir do capítulo XVIII da edição de Évora, é de autoria
posterior à morte de Bernardim), deixando em suspenso o
conhecimento das duas figuras em diálogo no prólogo em que a
menina fala : a própria menina e a dona de negro. Há, no
entanto, um laço entre as duas - o facto de terem saído de
casa do pai: a «menina e moça» sem uma razão explícita; e a
«dona de negro» por motivos supostamente do coração 23. Uma
terceira figura se pode assemelhar a estas, por pertencer a um
tempo passado; a ama, que apenas surgirá na narrativa, cujo
paralelismo com estas mulheres vem de ter deixado a casa
paterna por ter sido seduzida por um rico mercador e pelo facto
de dispor de um conhecimento tradicional, como refere a Dona ao
dizer que das coisas que o pai sabia «~a só me lembra que dizia
meu pai que ele cantara, e ouvira-lha a Ama da menina»(p. 119);
sendo essa Ama quem memoriza o canto do pastor para o
transmitir a Aónia.
Estamos, então, perante um esquema narrativo construído a
partir de uma analepse, sobre a situação inicial em que se dá o
diálogo entre a menina e a dona num lugar que se apresenta como
o cenário deserto e abandonado dessa acção passada: «...lugares
sós como estes em que estamos, que já noutro tempo dizem que
foram de muito nobres cavaleiros e fermosas donzelas...». Este
conhecimento é dado através de alusões elípticas num processo
de passagem de uma narrativa primeira para uma narrativa
segunda, encaixada naquela:
1.a voz da menina, na abertura («menina e moça») descreve-
nos um lugar deserto;
2.a voz da dona, na segunda parte do prólogo, dá-nos uma
história pessoal, relativa ao seu próprio passado de que nos é
23
Também o pai da «dona de negro» transmite a esta um conhecimento sobre a terra em se
encontram: «Lembra-me que era eu menina e ouvi-a já contar a meu pai, por história.»
dada apenas a situação elocutória das narrativas que se vão
seguir;
3. a dona encaixa na sua voz as «histórias de cavaleiros
andantes» que ela diz ter ouvido a «~a molher de casa já velha
que vira muito e ouvira muitas cousas» a qual, «por mais anciã,
dezia sempre que para ela só pertencia aquele ofício».
Estes três planos enunciativos correspondem a três tempos
distintos: a juventude (a menina), a maturidade (a dona) e a
velhice (a ama), o que permite encontrar uma lógica cronológica
para a situação narrativa. Por outro lado, ao aparecerem-nos
três mulheres ligadas à personificação do Tempo, na sua
completude humana, vemos uma figuração das Parcas ou Moiras que
detêm o fio desse tempo, o que dá um enquadramento genológico
ao texto na tradição clássica. Temos ainda um conceito
progressivo desse tempo: a menina (o presente) é o Tempo de que
desapareceram os homens e os edifícios do Passado; a dona faz a
mediação entre este presente e um Passado, que corresponde ao
tempo dos «cavaleiros andantes», situado numa «idade do pai» 24.
A «dona de negro», então, protagoniza uma figura mediadoras,
uma vez que é ela que estabelece a ligação entre o presente e
esse passado, de que ainda guarda traços na sua característica
enlutada, ligada à morte do Filho25. Significativamente, o tempo
que se lhe associa é, então, o tempo do Filho, por oposição a
esse tempo mais antigo, que é o tempo do Pai; enquanto que o
tempo presente, o da menina, surge ligado á morte da Ave que,
em termos simbólicos, se pode considerar o tempo do Espírito.
24
Com a descrição da casa paterna, a dona de negro adquire o estatuto da «viúva primordial»,
iniciático, dado que ela irá fazer com que a menina saia do caos para um universo geométrico
que se encontra simbolizado no fuso, com a forma do losango, que é a espada da mulher.
Assim, Penélope, enquanto dura a situação de «viuvez» (ausência de Ulisses) é a tecedeira que
faz e desfaz o tempo do tear para prolongar esse tempo ad eternum (até à chegada do marido
ausente).
25
Um aspecto interessante da dona de negro é a relação com a mãe de Perceval, a exilada do
castelo do Graal que percorre o mundo lamentando o Filho morto, como figura crística,
mostrando ao mesmo tempo o fim da era cavaleiresca.
Assim, a menina vai surgir ligada ao tempo dos pastores,
significando uma época de renovação cíclica, em que a vida se
processa de modo natural, no meio das serras e dos vales. Logo
no início, encontramo-nos perante uma natureza que reflecte o
macrocosmos nas suas dimensões espacial e temporal. O espaço
abre-se entre uma verticalidade que apontam as serras, o monte
mais alto, ou os montes e outeiros, cujo contraponto se situa
nos fundos vales; há, igualmente, uma oposição entre a terra,
fixa e fixadora da memória (ela conserva os restos do passado),
e as águas do mar que nunca estão quedas, transmitindo a imagem
do elemento caótico, movente, que representa a imagem de um
infinito que se contrapõe ao mundo finito e terrestre: «ver a
terra como ia acabar ao mar e depois o mar como se estendia
após ela para acabar onde o ninguém visse» - segundo uma visão
tópica mais medieval do que moderna, dado que o mar significa
ainda o espaço sem limites numa geografia (re)conhecida pelos
navegadores.
Dentro deste quadro amplo, o olhar fixa-se num
microcosmos: o monte de onde corre um «pequeno ribeiro de água
de todo o ano». O simbolismo desta imagem remete para a idade
dos pastores (e da «menina») : a água de todo o ano é a que não
está submetida aos ritmos sazonais. A alternância cíclica
desapareceu, o que se exprime na atitude da menina que chora e
bebe as próprias lágrimas, segundo um movimento fechado e
circular, que desembocaria no gesto narcísico de uma estagnação
especular se ela não se decidisse a atravessar o rio,
recyuperando o percurso temporal, para se sentar na outra
margem sob a espessa folhagem de um verde freixo.
Esta passagem, que evoca o rito baptismal da cerimónia de
iniciação nos mistérios cristãos, inicialmente reservada apenas
aos adultos, e que se encontra em certas narrativas
hagiográficas representando a passagem para um outro mundo26,
26
Vide a analogia com a passagem do Jordão na lenda medieval de Santa Maria Egipcíaca, que
marca o corte com o mundo e a passagem ao espaço do deserto, que corresponde a um outro
põe-nos perante um símbolo central claramente pagão: o freixo é
o Ygdrasil, cujo radical é hydra (água), sendo a Arbor Mundi em
torno da qual tudo gira. Colocando-se sob a sua folhagem, a
menina e moça vai realizar a união entre o masculino e o
feminino, o primeiro ligado ao simbolismo masculino da Árvore e
o segundo ao corpo da mulher - união que é realizada fora do
contexto culpabilizante da «casa do pai», após a travessia do
rio que a leva para esse outro mundo que, centrado numa árvore,
é uma hipóstase do Paraíso terrestre. Esta imagem andrógina
vai, então, ao encontyro da própria ideia gnóstica de que o
Espírito Santo é feminino - a Sophia - e se movia «à superfície
das águas», sendo Maria (mar) o «navio físico» em que esse
conceito incarnou.
Os momentos seguintes correspondem a uma fase construtiva,
ligada ao próprio instante do Génesis. Um penedo no meio do rio
separa as águas, dando a conflitualidade que nasce da separatio
e desfazendo a perfeição paradisíaca, e a figura do Andrógino
por instantes sugerida:
«comecei a cuidar que também nas cousas que não tinham
entendimento havia fazerem-se nojo umas às outras». A
dualidade, porém, resolve-se numa nova unidade, dinâmica, no
momento em que as águas se voltam a juntar e correm com mais
força. Surge então o emblema alquímico desse processo : a ave
(o rouxinol), símbolo do volátil que, ao cair com o bico para
baixo, significa a concepção - colocando a memina no último
grau de uma linhagem «ficcional» cujo conhecimento lhe é
trazido pela «dona do tempo antigo» que surge logo após a morte
do rouxinol27.
mundo.
27
O episódio do rouxinol coloca claramente Bernardim no espaço da cultural medieval. Com
efeito, já aí surge este topos que Bernardim se limita a glosar, como se pode ver nesta passagem
do «Bestiaire d'amour rimé»: «Mais trop me fait desconforter/Li roxignols par sa nature/Qui
tout mest s'entente et sa cure/En chanter pour le tans serain/Ou dous moys de mai seur le rain,/Et
tant s'i delite et entent/Que seur le rain muert en chantant.» («Le Bestiaire d'Amour rimé, Poème
inédit du XIIIe siècle», ed. Arvid Thordstein, C.W.K. Gleerup, Lund, e Ejnar Munksgaard,
Essa morte introduz, então, uma importante definição dos
limites em que a narrativa vai surgir: todo o início do
monólogo nos prepara para a a descrição de um locus amenus,
cujo clímax é representado pelo ponto nuclear, paradisíaco, em
tornop do freixo, e onde se ouve o canto do pássaro; vindo a
morte do pássaro romper essa sensação de felicidade perene,
rompendo a fronteira tanto do espaço (o lugar divino, separado
do mundo humano) como do género (o monólogo «lírico»,
individualizado do espaço da H/história), fazendo com que por
essa «abertura» entre a dona de preto e, com ela, a dimensão
ficcional ou, melhor, épica.
Entramos aqui numa estrutura característica do esquema
narrativo da novela pastoril, que é a do duplo significado,
como nota Iser:
«The structure of double meaning is the ultimate flowering
of the schema that had always underlain pastoral poetry. In the
eclogues, the shepherds had been signs for something other than
themselves. Now in Arcadia this pattern comes to fruition: The
sociohistorical world of the protagonists shrinks to an image
that serves to illuminate what eludes perception. As a
metaphor, the sociohistorical world shapes what has to remain
hidden, and in so doing it inscribes double meaning into what
it brings to light.»28
Bernardim vai tornar explícito esse duplo significado,
através do modo como torna perceptível a dualidade semântica do
seu universo:
os personagens hetero-reflexivos (a menina reflexo da dama
e esta reflexo da ama através do elemento comum da memória e do
contar essa memória, que inscrevem eses personagens numa linha
isomorfa da voz narrativa);
os nomes próprios que são anagramas de outros nomes,
indicando a qualidade de máscara revestida pelos personagens da
Copenhague, s/d.
28
W. Iser, op. cit., pp. 62-63.
novela de cavalaria (Aónia por Joana, Bimnarder por Bernardim,
Arima por Maria, etc.);
o próprio texto, na sua verdade última e consequente desta
característica dupla da sua significação, remete para uma outra
imagem, que se poderá identificar com um fundo real,
constituindo o não dito daquilo que é dito, e cuja
impossibilidade de se dizer clara ou expressamente vai adquirir
uma figura dramática no segredo, representado retoricamente
pela elipse : supressão de partes do texto que o leitor deverá
entender; mas que adopta o contorno do zeugma no próprio
carácter incompleto do texto, em que essa supressão de partes
fundamentais do texto, que no fim é algo que será talvez
independente da vontade do autor, que terá interrompido a
redacção por motivos extra-literários, acaba por estar inscrita
desde o início no modo narrativo sob a forma de uma
narrativização suspensa, quer na história da menina, quer na da
dona; o que, no fim do livro, vai entrar de acordo com o
carácter incompleto da próprio ficção.
Poder-se-á, então, pôr a seguinte hipótese: não será o
carácter incompleto da novela uma consequência desse ponto de
partida ficcional, o que faz com que a impossibilidade de ter
um fim narrativo resulte de uma exigência estrutural do modo
como o género é concebido? Isto é, o fim do texto é, afinal, a
própria realidade que o funda, em que tudo é revelado ou
restituído ao primeiro nível da significação (o dos nomes
próprios, lugares reais, tempo histórico, etc.). O fim da
«menina e moça» seria, então, a sua negação enquanto ficção
literária, enquanto texto de criação. Daqui resulta, portanto,
a impossibilidade de Bernardim em dar um fim a esse texto,
simultaneamente deixando à vista o drama da sua criação,
enquanto processo de escrita, o que explica sem dúvida a
perenidade da novela e a sua actualidade que não é mais do que
uma actualização, a cada leitura, desse processo dramático.
A CODIFICAÇÃO DISCURSIVA EM BERNARDIM RIBEIRO
O início da história de Lamentor e Belisa põe-nos perante
as condições de expressão do texto literário, no instante em
que a «Menina e Moça» sai do plano da primeira pessoa para o da
narrativa impessoal. Bernardim apresenta, de forma nítida, a
ruptura entre os dois níveis dessa expressão:
no aspecto temporal, ao passar para a analepse (texto
referente ao passado da Dona de negro, que conta as histórias);
no encaixe formal, através da «mise-en-abîme» de cada uma
das histórias (no passado) da Dona na narrativa central da
Menina ( no presente);
no aspecto espacial, situando na dimensão da linguagem os
acontecimentos narrados.
É este aspecto espacial que, desde o início, o texto nos
apresenta claramente: dizem, contam, (se) soube e como digo são
as fórmulas que, por esta ordem não arbitrária, indicam esse
espaço em que a narração se concretiza. Há um percurso circular
de dizem a digo, decorrente de uma transmissão de tipo oral,
que vai ser reforçada pelo contam e pela natureza impessoal e
colectiva de (se) soube, que remete para o plano do saber
comum, conotado com a memória do conto.
Este início de carácter formular representa uma
convencionalização do discurso narrativo, saindo claramente do
plano subjectivo da primeira pessoa. Bernardim apresenta, então
uma oposição clara entre o discurso natural, «inconsciente»,
traduzindo de forma espontânea a percepção sensorial do mundo
que a subjectividade denota, e o discurso convencional,
balizado pelo cânone narrativo, que a passagem do dizer ao
contar representa. Depois de marcar o referente canónico, onde
se inscreve a fórmula medieval do romance de cavalaria (conta a
estorea), Bernardim pode voltar ao discurso na primeira pessoa
(como digo), dado que a inscrição canónica o esvaziou já da
componente lírica, ex-cêntrica, que escapa à convencionalidade
do conto.
Não se pode esquecer, com efeito, que este conto se insere
no espaço de uma relação comunicacional, de acordo com o
esquema de Ramon Jakobson:
dona ---- conto ---- menina
destinador mensagem destinatário
sendo que o contexto é descrito na Introdução e o código é
apresentado no início do conto pelas referências metatextuais
acima descritas (os verbos que designam a função fática, dizer
e contar, e o que remete para o conhecimento do código, saber).
Há, então, um redobrar da mensagem: além da primeira, que é
constituída pelo conto em si, há uma segunda, que se refere à
transmissão da chave que permite a descodificação da
circunstância narrativa, ligada ao saber. A aquisição desta
segunda mensagem é, de facto, fundamental para que o
destinatário se possa converter em destinador e, deste modo, o
conto adquira a possibilidade de sobrevivência, concedida pela
repetição e/ou recriação do cânone, tal como a Dona de negro
aprendera as histórias que conta à menina da boca da «molher de
casa já velha que vira muito e ouvira muitas cousas» e que
«contava histórias de cavaleiros andantes».
Este topos repete-se no início da História de Lamentor e
Belisa:
«Contam que elas eram filhas dum alto homem, como se
depois por tempo soube pelos muitos cavaleiros andantes que
pelo mundo foram espalhados naquela sazão. Mas esta é história
longa.»
O sujeito de dizem e contam, indeterminado, explicita-se
quando o se da construção passiva se soube surge referido aos
cavaleiros andantes, identificando-se o que eles dizem/contam
com a história longa, fórmula perifrástica da novela de
cavalaria. Assim, o regresso da primeira pessoa em como digo
adquire um valor de sublinhado de classe do locutor: a Dona
identifica-se com o discurso dos cavaleiros andantes,
integrando-se na linhagem do seu discurso e, daí decorrendo, do
universo de valores, bem como do seu estatuto social.
Reforça-se aqui o aspecto iniciático do texto, na dupla
aprendizagem:
do contar, como acção enunciativa que passa pela conquista
da voz (a primeira pessoa) de quem conta;
e do saber, que implica o domínio do mundo e dos códigos
ideológicos e cavaleirescos do universo da história longa.
Ou seja, o conto implica que o sujeito saia do espaço da
sua subjectividade (o eu caótico, inicial - a menina do
prólogo) para se confrontar com a alteridade do ele,
inicialmente abstracto, impessoal, e depois assumindo um
rosto, uma identidade social (os cavaleiros andantes), após o
que poderá reencontrar o eu, na forma afirmativa do como digo,
indiciando um absoluto domínio da palavra narrativa.
A este instante «genético» do conto, podemos acrescentar
agora uma acção que importa acompanhar em termos simbólicos. A
primeira sequência (a História de Lamentor e Belisa) descreve-
nos a conquista de um território por um cavaleiro que veio por
mar de reinos estrangeiros», em Abril, acompanhado por duas
«fermosas irmãs», uma grávida dele e a outra mais jovem. O
primeiro obstáculo que encontram é uma ponte, defendida por um
cavaleiro que impede a passagem a quem não reconheça que a sua
amada é a mais bela de todas, sem o que não poderia casar com
ela. Esta prova, que dura há três anos, está a oito dias do
fim, após o que o cavaleiro poderá receber a mão da donzela do
castelo.
A ponte é um símbolo de passagem29, asociado ao desafio e à
iniciação do herói, dado que implica a travessia de um mundo
para outro. O guardião da Ponte, por isso, é um obstáculo a
29
«Deux éléments se remarquent donc: le symbolisme du passage, et le caractère fréquemment
perilleux de ce passage, qui est celui de tout voyage initiatique.» in Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, «Dictionnaire de Symboles», Seghers, Paris, 1974, artigo «PONT».
vencer. O episódio vai confrontar em duelo Lamentor e o
cavaleiro, ficando este ferido de morte, dizendo-lhe Lamentor
ao vê-lo caído:
«Que é isso, senhor cavaleiro? (...) Esforçai! Que esse é
o passo verdadeiro para que vós tomastes a ordem de cavalaria.»
Lamentor surge, então, como adjuvante do cavaleiro na sua
passagem para o outro mundo - o passo verdadeiro - após uma
luta em que a Dona remete para a descrição que o Pai lhe
fizera:
«(...)meu pai contava muitas cousas de grande esforço e
valentia que vos eu não contarei (...) Mas contudo dissera-vo-
las, se me lembraram inteiramente, porém, não me lembram, senão
que contava meu pai que romperam três lanças, e à quarta caío o
cavaleiro da ponte...»
Após o processo dinâmico da luta, indicado pelo número
três da tríade dialéctica contava - não contarei - contava e
das três lanças que romperam, fecha-se o quadrado, a cruz
simbólica, com a queda do cavaleiro da ponte, à quarta lança. A
morte coincide, então, com o instante de abertura do espaço,
das direcções cardeais que o número quatro representa: e é, de
facto, o instante em que o cavaleiro recupera o sentido da
ordem de cavalaria, após os tês anos em que estivera desviado
dela ao serviço de um amor impossível, imposto pelo pai da
donzela do castelo à filha.
Há uma insistência na perda, significada pelo luto: a Dona
de negro que perdeu o filho, na Introdução, e nesta sequência a
irmã do cavaleiro morto, que já era viúva, redobrando o
significado da perda no gesto interdito de lançar os toucados
em terra perante o irmão morto, sendo que era «custume mui
guardado naquela terra, e ficara doutro tempo sob grandes penas
proibido, não se pôr molher nenh~a em cabelo senão por seu
marido»; e o próprio Lamentor, que irá perder Belisa, devido ao
parto. O final do episódio mostra-nos, então, a agonia e morte
de Belisa, o nascimento da menina e o pranto e a dor de
Lamentor e de Aónia, irmã de Belisa.
Mais uma vez, toda esta sequência resulta de uma fórmula
discursiva: o topos do mau presságio. É o sonho de Belisa:
«Sonhava, senhor, (...) que estávamos vós e eu presos por
um fio e eu cortava-o, e que vos não via mais.»
A função do sonho é a de introduzir um segundo significado
no plano da interpretação do conto. Portador de uma mensagem
cifrada, o sonho, pelo seu carácter de mediador entre o mundo
real e o mundo dos deuses, de onde vêm as respostas a que o
homem só pode aceder através da linguagem codificada do
oráculo, autentifica o carácter simbólico, da mensagem que
transporta. A leitura deste sonho é óbvia; mas o seu alcance é
maior se lembrarmos que as três mulheres, na Introdução,
remetendo para as Parcas, confirmam a imagem do fio da vida a
ser cortado, separando Belisa e Lamentor de forma definitiva,
como se refere nas últimas palavras dela : «Pera sempre... nô
mais».
AMOR, MORTE, INICIAÇÃO
vida morte
30
Heidegger, «Hölderlin e a essência da poesia», em «Approche de Hölderlin», Gallimard,
1968.
parece diluir-se no instante em que surgem as interrogações: a
quem agradecer a alegria? que nome dar ao Altíssimo? como
explicar o silêncio? Uma função do poeta parece ser indicada
neste termo do poema: a de dar forma à angústia do homem, assim
integrando na figura desse oxímoro, que consiste em abrir um
espaço de silêncio na plenitude da palavra poética, a
contradição do espírito que não pode resolver o enigma da sua
Criação.
Com efeito, o que Hölderlin apresenta neste poema é a
resolução do caos numa ordem cósmica, que acompanha o percurso
cíclico da natureza. As sequências dia - noite, tempo claro -
tempestade, alto - baixo, etc., correspondem a um enunciar da
alternância que estrutura o mundo sob o olhar cimeiro das
figuras do divino : o «pássaro da tempestade (que) sente a
passagem do tempo e paira/Alto sobre os montes e chama pelo
dia» ; ou «mais alto ainda, acima da luz (...) o Deus/Puro e
ditoso, deleitado pelo movimento dos sagrados raios». Por um
momento, esses seres supra-terrenos parecem ceder às figuras
mais reais do tempo : a «voz da cidade, da Mãe», os «Anjos do
Ano», os «Anjos da casa» - que procuram recuperar o poeta para
um espaço que se lhe impõe com a memória das coisas familiares
- quer da paisagem natural quer de uma vivência passada.
Ora, o que não é possível é o regresso a esse mundo
restrito - terra natal, cidade, «casa» - que anularia o
percurso que o poeta efectuou por um tempo ampliado à sua
dimensão cósmica. O que Hölderlin se recusa a aceitar é que não
seja reconhecida a realidade meta-física, cujo esquecimento
levaria à in-diferença do Poeta entre os homens, assim
inscrevendo o «cuidado» como a marca da sua diferença para com
os outros, formulada simplesmente sob a dupla forma da
interrogação e da negação.
Essa negação final, com que o poeta recusa que o seu
cuidado seja partilhado com os outros, torna-se tanto mais
«escandalosa» quanto o poema é dedicado aos «próximos», aos
parentes. O regresso é, assim, definido na sua acepção de
reencontro com o espaço natal, o espaço da origem ; o que
implicaria um retorno a um contexto familiar. Mas Hölderlin vai
introduzir a perturbação nesse espaço : ele anuncia uma chegada
outra, que se prevê apenas em sinais que não são perceptíveis
por qualquer discurso racional. É o silêncio, com efeito, que
anuncia essa vinda - o que se traduz por um messianismo
negativo, inquietante:
31
Ensaio do «período de Empédocles», «La démarche de l'esprit poétique», in Holdelin,
«Oeuvres», Pléiade, p. 610 e sq., Pléiade, Gallimard, 1967.
32
Martin Heidegger, «Approche de Hölderlin», Gallimard, 1968,p.60.
Caminha-se, por isso, para a crise da consciência do
sujeito, em particular do sujeito poético - vítima do conflito
entre o real e o ideal, ou entre a natureza e a arte, cuja
solução se pode caracterizar, pelas suas palavras, na expressão
«a união trágica dos dois»33. É um equilíbrio negativo, que
Hölderlin tentará sustentar até ao limite - sendo esse limite a
ruptura de que advirá a loucura e, com ela, o aparecimento de
Scardanelli, em quem se poderá ver uma prefiguração do outro do
poema, isto é, o sujeito da escrita que aponta para a solução
pessoana da heteronímia, através da qual a vivência da
alteridade a que o mundo moderno força o poeta - o vate - se
torna o modo de unir «harmoniosamente»,isto é, anti-
conflitualmente, essa dualidade que encontra, na reflexão de
Hölderlin, uma lúcida caracterização.
36
As citações são feitas a partir da edição de Rilke, «Les Elégies de Duino, Les sonnets à
Orphée», Garnier-Flammarion, 1992, trad. J. F. Angelloz.
temos essa visão da linguagem angélica, como se a voz humana se
limitasse a um sussurrar inaudível, não tanto pelo grau da
sonorodade, mas pela incapacidade dessa voz em atingir a nuvem
em que a palavra se afirma pela força poderosa da sua
exppressão entre as «hierarquias dos anjos.»
O que é indicativo, no apontar do grito como o modo de
comunicação com os anjos, é a característica inicial - «primal»
- desse som que se confunde com a afirmação de vida do recém-
nascido. É evidente que não há, aqui, qualquer intenção
psicanalítica que, no caso de Rilke, não me parece ter uma
excessiva operacionalidade; o que há, sim, é o paralelismo do
acto natal com essa ideia de ascensão à linguagem angélica. A
afirmação torna-se, então, o próprio gesto iniciático desse
renascimento que conduz a um domínio do código comunicacional
desse mundo perfeito, em que se revive o momento primordial da
descoberta de uma totalidade de sensações paradisíaca, no
primeiro contacto do recém-nascido com o mundo, antes de se
entrar no processo de decepção que culmina com o fim da
infância e a progressiva descoberta das frustrações
intelectuais e afectivas que marcam a vida adulta.
É de facto um renascimento aquilo a que se assiste nesta
1ª Elegia, como refere Philippe Jaccottet:
«C’est alors que, pour la première fois depuis des années,
il s’arracha - un instant - aux tourments irrésolus de
Malte comme à l’obsession de la chose d’art à laquelle il
n’avait abouti, dans les Nouveaux Poèmes, qu’en forçant
son regard, pour laisser libre passage, dans as voix, au
cri de l’être qui s’avoue perdu.»37
E é o percurso natal desse novo ser que tem lugar nas
Elegias, com todos os movimentos de avanço e recuo, de
descoberta e inquietação, que marcam a abertura de um novo
espaço - «espace total, transparent, qu’il appelera
37
In «Rilke par lui-même», Ecrivains de Toujours, Seuil, 1970.
bientôt l’Ouvert, un espace aussi intact que l’intérieur
d’une rose, un espace angélique», refere Jaccottet; ou,
como diz Bernard Böchestein38 , «ce que Rilke, reprenant le
mot de Hölderlin, qualifiera plus tard d’«ouvert» (das
Offene), «l’espace pur», le «nulle part», le
«pur/l’insurveillé que l’on respire et/infiniment sait et
ne convoite pas».
Há, nas Elegias de Duíno, uma libertação desse espaço de
todo o peso terrestre que se sente em Malte: a direcção do
poeta vai no sentido do imaterial, na percepção cósmica de
uma Abertura que não se reduz apenas ao mundo interior, o
que nos situaria na tradição romântica da aventura
individual da subjectividade, mas retoma as fontes
primitivas da própria Poesia, como género mediador do
humano e do divino. Citando, ainda, Böschenstein, é no
poema que perpassa a voz ininterrupta da natureza, uma voz
«que rien n’aurait jamais interrompue, et qui ne connait
pas la contingence du temps, ce son continu, d’une
puissance magique d’envoûtement, bien antérieur à l’homme
et dans lequel est sensible une monotonie sacrée et
primitive, c’est à n’en point douter pour Rilke la «langue
de l’Être».
Assim Rilke assume claramente uma direcção ascensional
nesses poemas em que procura evadir-se da condição mortal,
embora o saibamos preso a essa condição; e é sem dúvida no
conflito entre os dois polos, positivo e negativo, do
humano e do divino, que reside todo o drama desse Ser
poético que, em Rilke, como talvez nunca antes nem depois
dele, atinge a plenitude de uma máxima identificação. Não
surpreenderá que esse grito da 1ª Elegia nasça de um
silêncio - por muito encenado que esse silêncio possa
parecer. O que isso significa é que, como na iniciação o
neófito precisaou desse sil~encio para se purificar, e só
38
In «Les Lettres de Capri, «Europe, nº 719, pp. 47-60.
depois disso pôde iniciar essa viagem tantas vezes
reiniciada desde o instante fundador da tradição órfica.
Ao mesmo tempo, porém, o ppeta sabe que vai afrontar
forças que o transcendem, e que a sua linguagem terá de
estar à altura desses seres que o poema irá trazer ao seu
encontro.
A ideia do desafio é, assim, um dos tópicos chave deste
percurso rilkeano que culmina com as Elegias de Duíno. A
travessia do limiar, apesar do horror e dessa e sensação
de estupefacção que paralisa o homem, é indispensável para
se receber a revelação poética: projecto órfico, mas
igualmente o assumir da linguagem na sua dimensão mais
sublime, em que os mundos inferior e superior, terrestre e
celeste, encontram uma porta de comunicação, aindaque o
olhar não suporte esse contacto por mais do que breves
instantes - os que correspondem à duração do poema - após
o que se impõe o regresso à dimensão humana e, sobretudo,
o contacto físico com esses aspectos dela decorrentes: o
tempo, entre a árvore e o caminho, ou a alternãncia da
noite e da primavera, ou a presença tranquilizadora de um
som de violino através de uma janela aberta.
O conflito entre esses elementos de uma vida comum,
acolhedora, cujos traços quotidianos constituem um apelo
para que a alma não se evada em direcção aos espaços
dominados pelo «apelo gigantesco» do Alto, e o mistério
que envolve essa outra vida cujo centro reside na
eternidade de um Deus cuja manifestação é um rumor que se
confunde com «a respiração do espaço,/ a mensagem
incessante que é feita de silêncio», domina o poeta,
obrigando-o a uma constante invocação apelativa do canto,
na tentativa de superar esse conflito inerente à condição
humana.
No entanto, é precisamente aí que reside o pathos do
poeta, e a sua impossibilidade de descer até junto desses
que se satisfazem com a essa condição mortal. E, no texto
«Sur le poéte», aponta-se a explicação: od dezasseis
remadores, agrupados em grupos de quatro (número que
corresponde à terra e que pela reiteração do 4x4 reforça a
sua presença simbólica e impõe a presença dessa
contingência física cujo peso obriga o homem ao esforço de
remar, isto é, ao trabalho a que corresponde um movimento
binário, como o sopro da vida, feito pelos remos na água)
cedem ao «imediato e ao palpável»; pelo contrário, o homem
da frente entoa o canto que os remadores não podem deixar
de ouvir, mesmo que alguns o tenham de fazer contra
vontade:
«Je ne sais pas comment cela se fit, mais soudain
cette image me fit comprendre la situation du poète, as
place et son efficacité dans le temps. Je sus que l’on
pouvait tranquillement lui disputer toutes les positions,
hors celle-là. Mais là il fallait qu’on le tolerât.»
Como Orfeu, o poeta de Rilke, o que dialogou com o
Além, quer na descida ao inferno em busca da Amada, quer
nesse grito que abre o caminho das hierarquias celestes,
não se pode já sentar ao lado dos outros homens, nem remar
como eles, na conformidade com o ritmo da terra; pelo
contrário, o seu esforço vai no sentido de uma manifestação
dessa linguagem «angélica», de que a poesia é um eco,
anunciando um outro ritmo que nasce da vibração, nesse eco,
do que o ouvido humano não pode apreender porque pertence à
linguagem do divino.
Mas essa posição «marginal», afirma-o Rilke, é uma
conquista do poeta; e é por isso que o poeta de Rilke surge
vencedor no fim de um longo processo de luta contra o
preconceito de Platão contra os poetas na cidade: agora, se
a cidade continua sem saber exactamente onde colocar o
poeta, não pode já expulsá-lo mas, ao menos, toleras-o
nesse lugar da frente que Rimbaud visionara e Rilke pode
afirmar, com o grito triunfal dessa 1ª Elegia de Duíno.
O MODERNISMO DO «ORPHEU»
NA POÉTICA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
«Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...»
quer no espaço:
«O poeta é um fingidor.
mas finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.»
39
João Pinto de FIGUEIREDO, «A morte de Mário de Sá-Carneiro», Publicações Dom
Quixote, 1983.
40
António QUADROS, Introdução de «A confissão de Lúcio», Livros de bolso Europa-
seja mais do que um desenvolvimento pessoal do projecto
naturalista, actualizado pelos decadentistas, de tipificar os
comportamentos bizarros e extravagantes, até à perversão, de
figuras sociais que, se no naturalismo percorrem
transversalmente todas as classes, nesta última fase se referem
exclusivamente a franjas da elite intelectual ou da
aristocracia. Poderíamos dizer, então, que Sá-Carneiro é um elo
da evolução romanesca que conduz de Zola a Proust, muito aquém,
como é evidente, do imenso fresco da «Recherche» - mas dele se
aproximando através da exploração do eu subjectivo.
América.
SUJEITO E POESIA
Fernando Pessoa
É a criação linguística que está no centro do que se pode
chamar a «diferença» da poesia em relação a outras formas de
expressão: criação que passa por um processo de transferência
dos mecanismos de apreensão do mundo através da linguagem para
o interior dela própria, criando um meta-sistema linguístico de
que a retórica é uma das codificações possíveis. Dentro desse
processo, a metáfora desempenha um papel nuclear, enquanto
forma substitutiva de objectos semânticos. Neste sentido, a
metáfora não se limita ao simples plano de uma figura de
retórica, dado encontrar-se no centro de um raciocínio
cognitivo que decorre do sujeito, enquanto fonte última do
conhecimento do processo metafórico.
Estabelecido através de analogias, esse processo envolve o
jogo da semelhança entre objectos que implica uma nova
designação do mundo, superando a contingência nominal da
codificação linguística. Assim, um significante será utilizado
para designar um objecto (uma imagem) que se afasta
radicalmente do significado que lhe é habitualmente associado -
mas, no plano inconsciente, estabelece-se um nexo entre os dois
objectos, a que se pode chamar literal e figurado. Freud
descreveu esse processo em relação ao mundo infantil quando
verificou que uma criança substituía a presença da mãe por um
objecto quotidiano dizendo «está», «não está», quando abria e
fechava a mão, respectivamente revelando e escondendo a imagem
da mãe que, enquanto ela fazia isso, entrava e saía do quarto,
acompanhando o movimento da criança.
Este procedimento que é habitual no jogo - em que se
substitui objectos reais por outros (cartas, fichas, peças do
xadrez, etc.) - passa para a linguagem no plano da substituição
metafórica: no poema de Pessoa, o gato é uma metáfora do homem,
como o acto de brincar é uma metáfora do acto sexual, sendo a
transferência do literal para o figurado dada através do símile
rua-cama, que dá a conotação erótica ao «gato que brinca». No
entanto, esta atribuição similar só pode ser esclarecida
através da presença de uma articulação subjectiva dos dois
objectos que a fundamente num raciocínio lógico. O arbitrário,
em poesia, é uma excepção limitada à criação surrealista - e
mesmo esta, como se sabe, indo buscar à psicanálise uma das
suas fontes teóricas, remete para a lógica inconsciente o
«acaso objectivo» das imagens.
O jogo similar pode ir dos aspectos mais banais - caso das
metáforas de uso, que passam já desapercebidas, como a «seara
loura» em que a analogia subjacente trigo maduro-cabelos é algo
que não suscita interrogação - a casos mais complexos, como os
emblemas da Pátria (a bandeira, em que a significação
metafórica das cores ou dos emblemas é secundária em relação ao
símbolo). Assim, o quotidiano transporta, já, inúmeros desvios
em relação ao significado próprio, que integram um subcódigo
cognitivo dos sentido segundos. O próprio acto discursivo,
muitas vezes, joga com esses desvios, quer na exploração de
semelhanças fónicas entre palavras ( que está na base dos
trocadilhos, ou ainda dos equívocos que dão origem às gaffes ou
aos lapsos que Freud estudou), quer na subversão irónica do
significado integrando antinomias num contexto próprio (dizer
«que calor» num dia frio de inverno, ou «que inteligência» em
relação a uma afirmação nitidamente disparatada).
Vemos, então, que a metáfora exige a presença de um
contexto duplo: o de uma realidade, que se refere ao sujeito e
transporta uma relação «inconsciente» desse sujeito com ela no
seu todo ou em parte; e o de uma outra cena, em que uma peça
destacada desse real vai sofrer uma outra designação,
introduzindo um elemento de «estranheza» na percepção do real
pelo sujeito. É uma diferença que introduz uma ruptura no plano
da associação do sentido da peça com o real - implicando a
presença dessa outra cena (o «tabuleiro» do jogo, ou o
«significado» do poema) que exige, por sua vez, o conhecimento
dos códigos de acesso ao esclarecimento do sentido duplo do
significante, sem o que não é possível estabelecer a
comunicação necessária à sua compreensão - o que sucede, por
exemplo, na poesia dita «hermética».
Não é necessário, obviamente, o conhecimento total das
circunstâncias produtivas da metáfora para se aceder ao seu (ou
a um possível seu) significado: o universo subjectivo esvazia-
se a partir do momento em que o poema está criado, adquirindo
este uma capacidade própria de criar significado(s). Assim, o
gato de Pessoa passou a ser, no seu poema, não apenas o que deu
origem ao poema mas qualquer gato, na situação de cio em que
ele o terá visto, e a experiência da metaforização do gato como
o ser libertino que não tem pudor em realizar publicamente o
seu desejo é interiorizada pelo leitor do poema como se fosse
sua (o que só sucede, porém, e como é óbvio, no momento da
compreensão do jogo metafórico).
Essa compreensão decorre, igualmente, do facto de se saber
que um objecto, ou uma realidade, podem ser descritas através
de formas simbólicas, em que entre o objecto real e o seu
figurado existam relações de simpatia: a pomba e a paz, a
foice e a morte, o coração e o amor, etc. A teoria da
interacção vem dizer que essa relação de simpatia pode surgir
posteriormente à criação da metáfora, indo além da concepção de
Aristóteles segundo a qual entre os dois termos deve já existir
uma base comum que veicule o significado segundo. E se, nos
exemplos referidos, se pode encontrar essa base (a «brancura»
da pomba, a relação entre o corte da planta e o fim da vida, ou
a associação do músculo cardíaco ao sentimento amoroso), muitas
outras metáforas, em que à partida não temos essa relação,
acabam por impor nexos lógicos inteiramente arbitrários, como a
relação entre o gato e o nada de Pessoa em «Todo o nada que és
é teu».
Este processo de sucessivas deslocações do significado
metafórico resulta da própria natureza do objecto linguístico
que é utilizado no processo. Com efeito, se da designação
metafórica resulta um significado segundo que é fixo para o
objecto referido - caso da «seara loura» - temos a metáfora
morta, em que desaparece inteiramente a percepção do jogo
dinâmico da substituição. Uma metáfora precisa, então, da
movência plurissémica, ou seja, tem de evitar a sua conversão
em símbolo (um segundo significado próprio) ou alegoria
(inscrição do seu significado num contexto segundo, a história
alegórica). A metáfora é, antes de mais, singular e
substantiva. Escreve Pessoa: «Invejo a sorte que é tua/Porque
nem sorte se chama», e, de facto, a formulação paradoxal
(próxima do que Roman Jakobson e Luciana S.-Picchio designaram
como os «oxímoros dialécticos» de Reis) da sorte-não sorte
decorre da necessidade de esvaziar a categorização metafórica
gato-amante numa oposição inconciliável nos termos, assim
transferindo para o próprio objecto metafórico essa
impossibilidade de fixação de um novo significado. Mais: esse
esvaziamento semântico vai buscar a sua explicação no próprio
esvaziamento do sujeito que, assim, deixa de ser - «Eu vejo-me
e estou sem mim/ Conheço-me e não sou eu» - colocando num
plano branco a cena inconsciente de onde poderia vir a
explicação do processo substitutivo.
Em Pessoa, então, é radicalmente posta em causa a
subjectividade, implodida no instante do conhecimento através
da negação paradoxal até ao oxímoro. O que fica: o jogo, o acto
de brincar, gesto reflexo («sentes só o que sentes») em que
todo o sentido se torna uma pura redundância. A metáfora,
então, reduz-se também ela ao espaço vazio de significação do
objecto figurado, assim se materializando no objecto primeiro
(o gato) de onde se terá de partir para encontrar um referente
figurativo que está e não está, como a mãe que a criança vê,
não vendo, enquanto abre e fecha a mão.
Ora bem: é precisamente enquanto aproximação do sujeito, e
modo cognitivo da relação do sujeito com o mundo, que a
metáfora se apresenta no poema. Em Pessoa, a sua apresentação
paradoxal da imagem metafórica não podia deixar de estar
relacionada com a sua concepção crítica do sujeito poético, que
se anula para dar lugar aos outros sujeitos da heteronímia.
Assim, a figura confiante da metáfora que é protagonizada pelo
gato, sujeito do primeiro verso, é objecto da inveja do poeta
que transfere para ele o seu desejo narcísico («Invejo a sorte
que é tua»). Num segundo momento, o transfert é interrompido,
retirando ao sujeito a possibilidade de se re-presentar na
figura metafórica. Então, resta o elemento segundo da imagem:
rua-cama, erotização do mundo que é exterior ao poeta e, por
isso, se lhe torna estranho na segunda equação metafórica sorte
(«a sorte que é tua (...) nem sorte se chama») - nada («Todo o
nada que és é teu»).
Pessoa vem, então, eliminar a possibilidade interactiva: a
possibilidade de esclarecer o sujeito através da qualidade do
objecto metafórico. O sujeito fica exterior a esse objecto,
dominando o jogo cognitivo: como a criança, que abre e fecha a
mão com o objecto que metaforiza um elemento do real, o poeta
abre e fecha o significado - num gesto metafórico, por
excelência, de toda a criação poética: o acto mágico da
substituição de tudo por tudo; e a lógica da comparação que
decorre exclusivamente do olhar do sujeito susceptível de
captar as analogias.
Este processo fecha-se, então, num certo autismo de
funcionamento. Percebendo que a abertura dos processos
cognitivos, tornando o jogo metafórico perceptível e
conduzindo-o a uma segunda denominação do real, reduz a poesia
a uma simples linguagem cifrada, descodificável como qualquer
enigma, o poeta terá, em cada momento, de esconder da vista do
leitor (que ocupa o lugar de Freud na sua relação com a criança
que joga com o objecto substituto da mãe) esse pré-texto, o
objecto/sujeito real que vai desencadear o processo metafórico,
deixando apenas a imagem poética como peça de um jogo de que
falta o tabuleiro (a cena/contexto primordial).
No entanto, Pessoa sabe igualmente que não existe
realidade poética sem sujeito. Daí, a sua invenção dos
heterónimos, para que re-presentem esse sujeito «sem mim»: cada
um deles, finalmente, metáfora da própria realidade do poeta no
instante em que, concluído o poema, a revelação do seu «não
ser» real - esvaziado de si pelo sujeito poético - se dá:
«Conheço-me e não sou eu.»
A metáfora é, sem dúvida, o princípio fundamental da
criação poética. A possibilidade de multiplicar sentidos,
leituras, interpretações, que faz do texto poético um espaço de
permanente abertura à imaginação, resulta da flexibilidade do
signo, em contradição com o princípio da economia que Saussure
viu na estrutura do sistema linguístico. O valor plurissémico
do signo, que suporta os duplos sentidos, não pode, no entanto,
evoluir no sentido de uma deriva total que desembocaria
inevitavelmente no caos da arbitrariedade semântica. O mesmo
signo não pode ser e não ser: e é por isso que importa definir
um quadro hermenêutico que esclareça os limites dessa deriva.
Na poesia, então, esse quadro é definido, em última
análise, pelo próprio sujeito. O que Pessoa vem mostrar, neste
caso, é a possibilidade de levar às últimas consequências o
que, desde sempre, é visível na poesia: a capacidade que as
palavras têm de reflectirem o sujeito, devolvendo a sua
presença através de uma «irradiação subjectiva» que, como o
buraco negro do universo, dá a ver a sua existência através de
sinais invisíveis que são, finalmente, os núcleos ordenadores
do imaginário poético. A demonstração pessoana vem por absurdo:
a multiplicação, ou proliferação aparentemente caótica, de
sujeitos, que se autonomizam de um sujeito nuclear - Pessoa ele
mesmo. Figuras do não ser, esses sujeitos heteronímicos
reflectem, no entanto, essa realidade essencial do universo
poético: a presença do sujeito textual, substituto - ou
metáfora - do próprio Eu.
O ser do poema é, assim, a figura da delegação subjectiva
que está presente no jogo infantil, no processo de transfert do
Eu e do(s) Outro(s) para objectos metafóricos deles. E é esse
(outro) ser que ocupa o lugar pleno da existência subjectiva,
logo que o instante biográfico da sua criação desaparece. O
oxímoro expresso no «conhecer-se não ser», então, não é mais do
que a explicação lógica de todo esse processo, e a fórmula
genética da produção do sujeito poético.
41
Obras completas,Vol.V , Ensaios, In-CM,1992, p. 25.
42
Idem, p.29.
social da Arte, e do papel do artista na Europa de entre as
duas guerras. Os ensaios de Almada correspondem ao período de
fins dos anos 20, anos 30, em que os totalitarismos europeus se
impõem e exercem um fascínio indiscutível - quer na versão de
direita quer de esquerda - sobre os intelectuais. O texto
«Direcção única» procura dar uma resposta a esta questão:
«A nós não nos interessam as direcções proibidas pela
simples razão de que só nos importa a direcção única.»43
A fuga ao dogmatismo corresponde à proposta de uma ter-
ceira via, afastando-se da imposição de uma verdade única :
«Nem o individualismo morreu nem o colectivismo ganhou.
Nem o individualismo pode morrer nunca nem o colectivismo pode
jamais sair vencedor por esmagamento do individualismo».44
Há uma recusa clara da mística totalitária, que preside à
ideologia das ditaduras europeias ; mas essa recusa não impede
Almada de dialogar com os ditadores para tentar fazer passar a
sua ideia, procurando corrigir o lado pessoal e egoísta do
político que subordina à sua estratégia o interesse da
humanidade. Assim, a sua resposta à frase de Mussolini, que diz
: «a arte, para nós, é uma necessidade primordial e essencial
da vida, a nossa própria humanidade», consiste numa crítica
implícita ao maquiavelismo individualista do político que
insiste na primeira pessoa, excluindo a dimensão plural do ser:
«O indivíduo e a colectividade são as duas únicas
expressões humanas do mundo social como o homem e a mulher são
as duas únicas expressões humanas do mundo natural.»45
Esta ideia, que ele vai encontrar confirmada numa
entrevista de Salazar, para quem «nem a colectividade pode
43
Idem, p. 33.
44
Idem, p. 42.
45
Idem, p. 51.
prescindir do indivíduo, nem o indivíduo pode prescindir da
colectividade»46, tem o seu corolário na seguinte verificação :
«A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.»47
Começa então a tornar-se claro o que, para Almada, se
encontra por detrás da sua visão do Homem. A individualidade é,
sem dúvida, um elemento decisivo para fazer avançar a sociedade
no aspecto cultural ; mas ele não ignora o carácter colectivo e
o destino que esse carácter pressupõe. O que importa é saber
como integrar o individualismo na sociedade. Tal integração só
pode ser feita se o artista souber recusar a corte que a
política faz à arte, dado o carácter conflitivo destas duas
correntes:
«A arte não combate nenhuma política, resume-se a
colaborar ou a não poder colaborar com ela. E neste caso
ficarão imediatamente prejudicadas ambas: a política e a arte.
Entre arte e política não há oposição nem tão-pouco é possível
rivalidade. A rivalidade dá-se entre as diversas opiniões
48
políticas ou entre as várias opiniões de arte.»
É significativo que Almada tenha evitado transpor o passo
que António Ferro deu, com a adesão ao Estado Novo. Integra-se
neste contexto a sua declaração: «Mas eu não nasci para os
poderes públicos.»49 É certo que procurou conciliar a existência
46
«É
o conhecimento exacto de como funciona a máquina social.
Ninguém pode estar em desacordo com isto.E nós ainda menos do
que ninguém, pois cremos ter sido os primeiros a escrever e a
proferir publicamente esta mesma frase, com as mesmas palavras,
na nossa conferência «Direcção Única», em Lisboa e Coimbra,
Maio passado.» Obras completas, Vol Vi, Textos de intervenção,
IN-CM, p. 85.
47
Idem, p. 73.
48
Idem, p. 86.
49
Discurso pronunciado no banquete de artistas promovido pelo
da Ditadura com a prática artística, dando como precedentes do
divórcio entre o Estado e a Arte os suicídios de Antero de
Quental, Soares dos Reis e Mouzinho de Albuquerque . No
entanto, essa conciliação é facilitada pelo uso que, na sua
primeira fase - coincidente com a existência do Secretariado da
Propaganda Nacional, e até à realização da Exposição do Mundo
Português em 1940 - o Estado Novo fez da ideologia nacionalista
e imperial que se pode confundir com aspectos da pedagogia
estética do Modernismo. Com efeito, mesmo sem se pensar em
compromissos de ordem política, o que é um facto é que os con-
tinuadores de «Orpheu» - de que Fernando Pessoa e Almada são os
expoentes - vão situar-se na linha de Oliveira Martins, que
revaloriza as duas primeiras dinastias - a henriquina e a de
Avis - como modelos de uma afirmação portuguesa no Mundo.
É na «Histoire du Portugal par coeur», escrita em 1919 e
publicada em 1922, na «Contemporânea», sob a emoção patriótica
da travessia do Atlântico pelos aviadores Gago Coutinho e
Sacadura Cabral, que essa visão se torna explícita nos seus
traços essenciais. A história portuguesa começa em Afonso
Henriques e termina em D. Sebastião, último herói da época
imperial. A partir daí entra-se num hiato cuja solução está nas
mãos das gerações novas, como indica o «Ultimatum futurista às
gerações portuguesas do século XX»:
«Vós, oh portugueses da minha geração, nascidos como eu no
ventre da sensibilidade europeia do século XX criai a pátria
portuguesa do século XX.»50
Podemos, então, ver a influência que o Modernismo, embora
sem o explicitar demasiado, sofreu por parte dos homens da
geração de 1870. Não é outra, com efeito, a visão que um Antero
de Quental aponta acerca das «Causas da decadência dos povos
peninsulares», fazendo ele igualmente coincidir o fim da
50
Textos de intervenção, p.37.
história portuguesa com o desastre de Alcácer -Quibir. Há, no
entanto, uma diferença entre a geração modernista e a dos
Vencidos da Vida. Estes viveram a humilhação e a derrota da
crise do Ultimatum ; aquela sobrevive à experiência europeia da
Primeira Guerra, que vai de encontro à aspiração futurista do
«Ultimatum»:
«Ide buscar na guerra da Europa toda a força da nossa nova
pátria. No front está concentrada toda a Europa, portanto a
Civilização actual.»51
Há, portanto, um optimismo latente nesta geração que torna
possível a aspiração messiânica do sebastianismo. Apesar de
tudo, em Pessoa essa realização surge quase só como expressão
voluntarista de um desejo que não sabe se tem satisfação
possível, no poema «Nevoeiro» da «Mensagem:
É a Hora!»
51
Textos de intervenção»,p. 38.
Há, sem dúvida, uma contradição na atitude de Almada ao
dotar a geração estética com uma missão colectiva. Esse
paradoxo, no entanto, é comum à maioria das vanguardas e, em
particular, ao Futurismo - que, em Itália, se converteria mesmo
em partido político. Almada sente que a autonomia da Arte - e
do Artista - é uma utopia, impossível no presente , dado que «o
poeta representa com o santo os únicos casos humanos onde a
realidade não se sobrepõe ao homem» ; e assim, colocando o
poeta fora da dimensão temporal da História, ele identifica-o
com a condição de liberdade absoluta, designada pelo termo
ingenuus, nascido livre :
«É só a ingenuidade que representa em si o estado de
pureza em que é possível a vida do poeta.»53
Terá sido difícil ao homem manter-se no estado ingénuo que
só ao poeta pertence ; mas reconheça-se a Almada a extrema
virtude de ter sabido reconhecer essa fraqueza e, sobretudo, de
o ter feito num tempo histórico em que o último luxo que o
homem se poderia dar era o de ser ingénuo.
52
Obras completas, Vol. I-Poesia, IN-CM, p.119.
53
Ensaios,p.149.
O OLHAR EM ALMADA NEGREIROS
57
A.Negreiros, Obras Completas, Vol. IV, Contos e Novelas, IN-CM,1989, p.32.
58
Vemos que Almada realiza, primeiro, a identificação narcísica com a imagem que o espelho
lhe restitui, de uma beleza ideal, pela qual se apaixona - «eu era a minha Amante»; para, depois,
ceder ao princípio de realidade: «De repente o corpo começou a desmanchar-se-me como duas
metades mal coladas sempre cos movimentos dela interseccionados do meu corpo nu a regressar
lentamente de um desaparecimento» (Vol. IV,p. 32) - que é vivido sob a forma de uma
«desintegração agressiva do indivíduo», correspondente a toda a fase futurista de Almada.
A obra de Almada torna este aspecto particularmente
evidente, dado que esta atitude de ver se mantém, a partir de
«K4», como uma «metáfora obsessiva» do acto criador 59 . Assim,
na «Engomadeira», vamos encontrar também uma cena, no capítulo
V, que tem como motivo o «voyeurismo» do personagem - o senhor
Barbosa, que assiste a uma cena de amor lésbico entre a
Engomadeira e uma varina:
«A varina mexeu as ancas numa arrelia de que já não era a
primeira vez que lhe sucedia aquela chatice mas ela correu prà
varina e beijou-a na boca que até lha deixou magoada. Num ápice
correu a fechar a porta à chave por dentro e a cerrar de novo
as janelas sobre as obras ao sol. Quando o sol daí a pouco
bateu do lado de cá e entrou plo quarto até á cama já se não
sabia bem qual das duas era a varina - eram só pernas nuas e
seios a reluzir na saliva. Só se ouviam gemidos de cansadas até
que o gato entrou fortemente convulsionado nas agonias de uma
indigestão de sardinha.
Quando o senhor Barbosa meteu a chave à porta e achou o
silêncio abafado daquele quarto meio-iluminado teve a impressão
que ela tinha posto um espelho muito grande ao comprido sobre a
cama e que depois se tinha deitado toda nua co ventre pra
baixo. Achou estranho mas não quis bulir o silêncio; sentou-se
junto da porta a observar.»
A situação é, aqui, diferente da de «K4» : já não é a
dimensão fantasmática do desejo que está presente, mas a sua
dimensão real - embora transposta, agora, para uma imagem
metafórica do gesto criativo, através da figura do observador
das duas mulheres abraçadas, que reproduz ecfrasticamente a
situação do pintor projectado na tela. É como se Almada
59
Note-se, porém, que Almada estabelece de forma subentendida a distinção entre ver - que é
um acto de conhecimento profundo do sujeito, de esclarecimento do objecto do ver, conduzindo
à visão, com a conotação mística do substantivo - e olhar - que fioca pelo prolongamento do
acto de ver, numa experiência puramente sensorial desse acto e, por isso, absorvida de forma
mais superficial - ligado ao órgão físico, que são os olhos; isto numa relação que se pode
estabelecer com a relaçºão análogo entre ver e ser e olhar e estar, em que o ver é da ordem do
ser e o estar da ordem do olhar.
reescrevesse a cena de «K4» introduzindo-lhe a distância que,
agora, lhe permite desenvolver criticamente a primeira imagem,
através de sucessivas repetições que permitem, sobre os esboços
iniciais, chegar à verdade de um quadro, fixada no parágrafo
seguinte que, praticamente, repete o primeiro mas em que se
elimina a mediação ficcional - e, por isso, falsa - do
personagem, o senhor Barbosa, para regressar ao sujeito na
primeira pessoa:
«A porta estava encostada e estava escuro lá dentro.
Olhei. Tive a impressão que ela tinha posto um espelho grande
ao comprido sobre a cama e que depois se tinha deitado toda nua
co ventre pra baixo. Achei estroinice mas não quis bulir o
silêncio; sentei-me junto da porta a observar.»
Ver, observar - é através deste gesto sensorial que o
sujeito acede a uma realidade, que se lhe torna perceptível,
primeiro enquanto experiência fantasmática (em «K4»); depois,
enquanto representação dessa experiência no plano ficcional (1ª
sequência do quarto de «A Engomadeira»); finalmente, enquanto
retrato do próprio acto criativo, quando se dá a ver o sujeito
perante a imagem narcísica das duas mulheres abraçadas como se
se tratasse de uma única mulher deitada sobre um espelho, isto
é, uma situação em que o fantasma do desejo, que se deu a ver
em «K4», se sobrepõe à cena real para reproduzir o quadro
inconsciente que, como na cura psicanalítica, só se dá a ver no
processo repetitivo do discurso da memória.
E chegamos assim a essa que é a obra prima do Almada
ficcionista - e um dos grandes textos deste século XX - que é
«Nome de guerra». O jogo especular, aqui, tem um lugar de
evidência : no capítulo XVIII, «O protagonista não concorda com
o espelho»,dá-se o confronto de Antunes com o seu próprio
rosto, o que o obriga a assumir a sua imagem, indicando a
passagem à fase da maturidade, com o conflito interior que isso
implica, ao ver-se obrigado a renunciar à projecção narcísica
num Eu ideal:
De repente, o Antunes viu diante de si uma cara horrível,
espectral, parada, que não tirava os olhos de cima dele. Era a
sua própria cara que estava no espelho. Ele e a sua imagem eram
como duas estátuas de pedra voltadas uma para a outra. Nunca o
Antunes sentira na sua vida uma impressão mais desagradável do
que aquela!»
O homem que descobre o seu rosto adulto é, por isso,
aquele que vai ter de optar entre as duas imagens do feminino
que se confrontam no seu imaginário: a «mulher vestida e a
mulher nua» do capítulo XXI:
«A primeira era suave, tão suave que não apetecia acordá-
la no sono branco em que dormia; a segunda tinha as carnes
sequiosas e mordia com os dentes, e cuspia com a raiva, e
beijava com os lábios, e arranhava com as unhas, e acariciava
com as mãos, e defendia-se com os músculos, e juntava aos
músculos os nervos para se defender, para conquistar, para
abrir caminho, para não deixar nenhum estranho chegar-lhe ao
coração.»
O mundo não é já um reflexo do eu narcísico, que obedece a
esse imaginário fechado sobre si próprio; mas apresenta uma
dualidade, uma divisão polar antitética, que obriga o sujeito a
reagir perante uma realidade exterior, abdicando da sua
subjectividade e dos arquétipos de beleza que a condicionam.
Assim, a posição do ver afasta-se da passividade voyeurista de
«A Engomadeira» para nos apresentar uma reacção de afastamento,
de crítica, perante a própria situação, que ele descreve no
capítulo XXIX, «Primeiros ressaibos a provisório»:
«Mas o seu pensamento foi interrompido por uma discussão
que subia à porta da escada. A Judite saiu da cama
completamente nua e foi encostar o ouvido ao buraco da
fechadura. O Antunes ouvia as vozes crescerem, mas não sabia
senão que a Judite estava a escutar. Aquela posição da mulher
nua chocou-o. Viu segredos na vida, coisas escondidas, segundos
sentidos, combinações, mistérios.»
O que, no motivo do voyeurismo os outros textos, era
apreciado apenas no primeiro grau da atitude estética, do olhar
que se satisfaz com a imagem que se lhe apresenta, aqui vai
surgir complicado pelo facto de esse olhar sobre o outro que vê
- o olhar de Antunes que vê a mulher nua que vê/escuta o que se
passa do outro lado da fechadura - ser interrogado na sua
significação, isto é, no segundo sentido que remete para a
realidade subjacente a essa situação.
É evidente que a mudança não decorre apenas do contexto
narrativo em que a cena se inscreve. Essa mudança corresponde,
mais precisamente, á passagem de uma fase «experimentalista»,
isto é, em que é o gesto estético que comanda a escrita - e,
por isso, o olhar não ultrapassa a situação presente em que a
imagem se dá a ver, de forma expressa - para uma fase pós-
experimental, em que não basta a gratuidade da imagem mas
importa pôr em relevo a cena inconsciente para que ela remete,
e onde encontra a sua explicação.
Poderíamos, então determinar a diferença entre o Almada
futurista e o Almada «pós-futurista» a partir desse traço, que
se identifica com a pós-modernidade, de uma consciência do
carácter «realista» do texto, isto é, de uma implicação
ontológica da literatura, opondo-se ao carácter experimental
ou, para retomar a distinção de McHale60, à «poética
epistemológica» do texto modernista. Sintetizando, essa
diferença resulta da oposição entre a atitude de ver que se
encontra nos textos do período futurista, «K4» e «A
Engomadeira», com o imediatismo da acção expresso por esse
verbo, e a atitude do olhar, que substitui o ver, presente no
romance da maturidade «Nome de guerra», sendo o olhar algo que
implica um tempo reflexivo, em que não se encontra já uma
adesão imediata à acção mas um ponto de vista implicando o
investimento consciente do sujeito.
60
Brian McHale, «Postmodernist fiction», Methuen, New York, 1987.
Aqui, Almada é já, sem dúvida, um homem contemporâneo,
saindo do campo das certezas programáticas do Modernismo para
um campo do risco da proposta textual, que vive por ela mesma,
e cuja fundamentação nasce, antes de mais, do próprio universo
que o autor constrói. É nesse rumo individual, e
individualista, que «Nome de guerra» dá a ver o fim do
Modernismo - embora não o da modernidade - anunciando a época
da consciência crítica, o fim da credibilidadade afirmativa dos
manifestos e dos programas, e o regresso de um espírito criador
que se move a partir de um confronto com o outro, como o indica
a «moralidade» deste romance:
«Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar».
61
Teixeira de Pascoaes, «Os poetas lusíadas» (1919), Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p. 44.
62
Teixeira de Pascoaes, «A arte de ser português».
63
«T.de Pascoaes, «O Espírito Lusitano».
64
in «Os poetas lusíadas», p. 38.
polariza-se no movimento da «Renascença Portuguesa», com homens
como António Sérgio e Raul Proença, que pretendem um Portugal
europeu baseado no progresso técnico, a eles se opondo o
Integralismo Lusitano, com base na trindade Família-Região-
Nação. Contrapondo à tendência «racionalista e anti-nacional»
de «A Águia» a origem lusitana da «nação criadora de nações»
que é Portugal, os integralistas defendem os princípios da Fé e
do Império a partir de uma crença num país regionalizado numa
variedade de territórios que tem a sua origem no municipalismo
medieval, sendo a Nação que lhe dá uma unidade composta de
«terra, mar e gente portuguesa».65
Ora, é esta ideia da nação, que surgira, em finais do
século XIX, como idealização de um Portugal campestre e
paradisíaco - em particular nos últimos romances de Eça de
Queiroz - que vai ter em Fernando Pessoa uma radical
contestação, decorrente da vinculação europeia da sua estética
e, acima de tudo, do carácter assumidamente urbano do
Modernismo. Querendo, com «Orpheu», «criar uma arte cosmopolita
no tempo e no espaço», o projecto pessoano evolui para um
Sensacionismo, que seria a forma portuguesa do Futurismo, e que
representaria o apogeu do movimento de «reconstrução da
literatura e da mentalidade nacionais» iniciado em 1915 com a
publicação da revista «Orpheu»:
«Tudo isto representa - outro sentido não pode ter - uma
instância da Hora da Raça, que, sentindo a necessidade de
realizar Cosmópolis em si, se vira para o único núcleo de
artistas que, além de darem ao seu instinto de Chefes a
garantia primária de serem quase todos homens de génio, que
tomaram de nascença nas mãos o pendão da Raça (há tanto tempo
bolorejando no túmulo de Camões, de Garrett ou de outros bric-
à-brac), representam, manifestamente, uma plêiade luzida que
nas suas obras enfeixa, com o máximo utilizável do sentimento
65
Hipólito Raposo, «Dois nacionalismos, L'Action Française e o Integralismo Lusitano»,
Lisboa, 1929.
português, o máximo aproveitável nas actuais correntes
europeias.»66
Deve-se a Pessoa o assumir da separação pós-romântica
entre o artista e a sociedade. O individualismo, com que ele já
caracterizara os colaboradores de «Orpheu», determina essa
rejeição do sentimento colectivo:
«A indiferença para com a Pátria, para com a Religião,
para com as chamadas virtudes cívicas e os apetrechos mentais
do instinto gregário não são úteis, mas absolutamente deveres
do Artista.»67
Curiosamente, estamos perante uma atitude esvaziada de
catarse, a que a palavra dever acrescenta um toque
profissional, ligado sem dúvida ao aspecto técnico que envolve,
em Pessoa, a construção da sua obra - e sublinhe-se , de resto,
que o heterónimo Álvaro de Campos, que está por trás desse
projecto, é afinal engenheiro... Com Pessoa, a cultura
portuguesa pode, assim, aperceber-se de que a Nação é, de
facto, uma imagem construída, e que pode assumir os rostos que
os seus construtores lhe querem dar.
Encontramos, aqui, o aspecto talvez menos compreendido ou,
se se quiser, mais ambíguo do projecto nacional em Pessoa, que
tem a sua realização máxima no livro «Mensagem» - mas que tem o
início nos artigos sobre a «Nova poesia portuguesa», de 1912,
em que o poeta anuncia a vinda próxima do «super-Camões», que
nada tem de messiânico, sendo apenas o «poeta máximo» da nova
poesia portuguesa. Decorre, daqui, a justificação desta
característica nacional, que Pessoa identifica com a marca da
diferença:
66
Fernando Pessoa, «Obras em prosa de Fernando Pessoa, Textos de intervenção social e
cultural, A ficção dos heterónimos», Introduções, organização e notas de António Quadros,
Livros de bolso, Europa-América, 1986, p.76.
67
Texto dactilografado, provavelmente de 1916, in Fernando Pessoa, «Páginas íntimas e de
auto-interpretação», Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do
Prado Coelho, Edições Ática, s/d, p. 162.
«Em primeiro lugar, escusamos de perscrutar a
nacionalidade de uma poesia: se se prova a sua plena e
equilibrada originalidade, fica, ipso facto, provado o seu
carácter de absolutamente nacional. Porque se a poesia de uma
nação é em certo período em absoluto original, donde lhe poderá
vir essa originalidade, esse poder de ser diversa e outra do
que todas as outras poesias, se não de ser a genuína e suprema
interpretação do que esse país tem de essencialmente diverso e
outro do que outros países - e isso é ser tal país e não outro,
é a raça.»68
A caracterização dessa diferença, para Pessoa, virá,
então, dos protagonistas da História, esses que personificam a
Pátria, e que servem de tema aos poemas da «Mensagem»: os reis,
os navegadores, e um único poeta, D.Dinis, o rei trovador.
Neste sentido, Pessoa é um continuador do século XIX e, em
particular, de Oliveira Martins; mas a diferença reside nos
personagens a que Pessoa atribui relevo no seu poema e que são
escolhidos em função de uma opção esotérica que dá à Ordem de
Cristo um lugar destacado. Designadamente, no século XVI não
têm lugar nem o rei D. Manuel, que expulsou os judeus, nem D.
João III, que implantou a Inquisição; e não se refere a
Camões, num gesto que é, sobretudo, significativo da rejeição
de uma proposta de nacionalismo identificada com duas
categorias, a Fé e o Império, que Pessoa rejeita: a Fé, em nome
do seu neo-paganismo que o faz remontar às fontes gregas da
cultura europeia; e o Império, em nome de uma visão projectiva
para um futuro69 no qual Pessoa situa um Quinto Império mais
espiritual do que físico, o que justifica a referência a
Bandarra e a António Vieira, que dele foram os profetas, na
68
Fernando Pessoa, «A nova poesia portuguesa», Cadernos Culturais, Inquérito, Lisboa, s/d., p.
112.
69
« Uma nação em qualquer período é tr~es coisas: 1) uma relação com o passado; 2) uma
relação com o presente, nacional e estrangeiro; 3) uma direcção para o futuro.» in Fernando
Pessoa, «Obra poética e em prosa»», org. António Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, vol.
III, p. 595.
última parte do poema - em oposição ao império terreno que
resulta das Descobertas exaltadas em «Os Lusíadas».
Integra-se aqui a explicação da frase tantas vezes citada,
de que «a minha pátria é a língua portuguesa» 70. Pessoa, educado
em inglês na África do Sul, descobre a nacionalidade através da
leitura dos clássicos; e é através da língua que lhe surge a
diferença essencial do português em relação aos outros povos. A
originalidade que a Nação afirma, assim, é a que resulta da
afirmação literária - o «super-Camões» - o que coloca num plano
secundário o sentido passadista e mítico que se encontra na
exaltação patriótica; de onde a sua rejeição de doutrinas que
vão buscar o seu fundamento a esses valores, como é o caso do
Saudosismo, baseado na diferença da raça lusíada, ou do
Integralismo Lusitano, que representa um desenvolvimento
nacionalista dos princípios defendidos pelos saudosistas.
No mesmo sentido vai a proposta de uma definição nacional
avançada por Almada-Negreiros nos seus textos da revista
«Sudoeste» (1935). O tema cosmopolita fá-lo rejeitar a ideia de
uma diferença rácica, indo buscá-la ao plano civilizacional:
«Não é pela repetição em número dos mesmos caracteres
humanos que pode fazer-se resultar o conjunto para uma
nacionalidade. Pelo contrário, uma nacionalidade necessita de
abranger no seu conjunto único, a maior diversidade de
caracteres humanos, respectivamente ao seu carácter comum e
deduzido de entre todos; e sem o que não será possível nenhuma
espécie de unidade colectiva, nacional ou política que contenha
em si mesma a própria essência da vitalidade e da
perpetuidade.»
Almada retoma, por outro lado, o tema ibérico, que vinha
do século XIX, para defender a existência de uma «civilização
ibérica» composta por duas entidades nacionais:
70
«Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal,
desde que me não incomodassem pessoalmente.» Texto de Bernardo Soares, in Fernando
Pessoa, «Obra poética e em prosa»», org. António Quadros, Porto, Lello & Irmão, 1986, vol. II,
p. 573.
«A dualidade Portugal e Espanha é afinal o segredo da
vitalidade da Península Ibérica e da sua civilização.
Portugal e Espanha são dois opostos e não dois rivais. Os
opostos são complementos iguais de um todo. Este todo está
representado geograficamente pela Península Ibérica e em
espírito pela civilização ibérica.
A primeira parte da missão da civilização ibérica já foi
cumprida: o império colonial português e o império colonial
espanhol, a América Latina , e o sangue português e espanhol
espalhados pelo mundo inteiro..
A segunda parte da missão da civilização ibérica começa em
nossos dias: criar a cultura do entendimento português e a do
entendimento espanhol, não só para os actuais peninsulares como
também para todos os originários da nossa civilização comum e
dual.»71
Se o conceito de nação, em Almada, tem uma característica
mais restrita dado que envolve um elemento político - a
diferença portuguesa em relação a Espanha - o modo de afirmar a
nacionalidade, porém, vai ao encontro desse sentido espiritual
que Pessoa ligara à missão que conduz ao Quinto Império. No
entanto, Almada não partilha essa mística e, por isso, reduz
esse sentido espiritual ao plano cultural de um «entendimento
português». Nesta definição, o que é claro é a recusa do
preconceito rácico que, de certo modo, afectava quer o
saudosismo - ligado a uma «celticidade» mítica da nossa cultura
- quer o Integralismo - que retoma a «lusitanidade» do
Saudosismo de Pascoaes para afirmar uma superioridade
portuguesa face à decadência cosmopolita.
Há em ambos, Pessoa e Almada, uma interpretação dinâmica
da nação, como algo a construir, e em processo, ao encontro da
formulação de Pessoa:
71
Almada Negreiros, «Obras completas», Vol. V, Ensaios, Biblioteca de Autores Portugueses,
Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 1992, pp. 65-72.
«O nacionalismo é um patriotismo activo. Pretende defender
a pátria das influências que possam perverter a sua índole
própria, venham essas influências de dentro, como certos
regionalismos, venham de fora, como certos estrangeirismos ou
internacionalismos. Há porém regionalismos que não só não são
inofensivos mas proveitosos à nação; há também influências
estrangeiras e internacionais que são úteis e aproveitáveis. O
caso é que umas e outras sejam assimiladas, isto é, convertidas
na substância da índole nacional.»72
De facto, os dois representantes máximos do Modernismo são
testemunhas de um processo de desvio desse conceito de Nação
numa direcção conservadora, primeiro, nos anos 20, e
reaccionária depois, no sentido do autoritarismo das ideologias
totalitárias - nazismo e fascismo - nos anos 30. Quer num quer
noutro caso, tentam contrapor a esse rumo uma ideia moderna de
Nação, que implica a perspectiva cosmopolita da abertura às
influências estrangeiras, em Pessoa, e o diálogo intercultural,
em Almada. A morte de Pessoa, em 1935, dá-se no instante em que
o regime inicia o seu fechamento que se irá acentuar com a
guerra de Espanha. Almada, que vive até 1970, assiste à
definição da mitologia imperial do Estado Novo que culmina com
a Exposição do Mundo Português em 1940, afirmando uma visão da
História da conquista e colonização do Império. Pelo contrário,
os contributos de Almada para a arte oficial dos anos 40
exprimem-se nos painéis das gares marítimas de Lisboa
(Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos): em ambas, o que temos é
uma visão do povo na sua dimensão anónima e colectiva. Cenas e
figuras da vida popular ali surgem caracterizadas, não havendo
nada de épico nem tendo a presença de heróis que remetam para a
protagonização patriótica dessa História.
72
Manuscrito sem data publicado por Luísa Maria B. de M. de Brito Mendes, «Fernando
pessoa e a língua portuguesa», Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, vol. Apêndice, Lisboa, 1990.
O que Almada - na sequência de Pessoa - vem assim
demonstrar é a possibilidade de criar uma arte de
características nacionais, sem cair no patriotismo: algo que
será desenvolvido por homens ligados a outras correntes
estéticas, como o surrealista António Pedro, em «Apenas uma
narrativa», estabelecendo a articulação do texto à paisagem do
Minho. É, de resto, esta articulação entre a escrita e a
paisagem - e não é por acaso que Pessoa/Álvaro de Campos diz
que «só há duas coisas com interesse em Portugal, a paisagem e
Orpheu» - que vai funcionar como um sinal da diferença
portuguesa em relação a outras literaturas, em que este facto
se confunde com regionalismo. Não existe, ou existe em reduzido
grau, uma literatura regional em Portugal: mas houve grandes
escritores neste século - Raul Brandão, Manuel Teixeira-Gomes,
Miguel Torga, José Saramago - que olharam o país e procuraram,
através desse olhar, as raízes de uma diferença nacional, que
se encontram, como notou Almada, nos profundos contrastes entre
cada região, entre a maneira de ser das populações, e na
relação de amor-ódio entre o país e Lisboa, como nota Miguel
Torga:
«Seja como for, a nação não morre de amores por Lisboa, e
sabe-se que Lisboa lhe paga na mesma moeda. É uma mútua
hostilidade latente que os anos não suavizam.(...)Apesar desse
divórcio por incompatibilidade de feitios e de interesses, a
províncias gosta de visitar Lisboa e Lisboa gosta de visitar a
província.»73
Esta dualidade explica-se por um traço do carácter
nacional que é a sua capacidade de adaptação e de assimilação.
Isto virá dessa diversidade de paisagens e de maneiras de ser
que se encontram num país geograficamente tão pequeno, mas em
que coincidem características atlânticas e mediterrânicas, o
litoral e o continente, a Europa e a África e a Ásia através
das importações de raça, de cultura e de arquitectura feitas ao
73
Miguel Torga, «Portugal», 6ª ed., Coimbra, 1993, pp. 115-116.
longo dos séculos, sem esquecer os contributos mouro e judeu. A
heteronímia, que Pessoa irá consagrar como um dos aspectos mais
originais da sua personalidade literária, tem as suas origens
nesse aspecto da nossa cultura, que é a capacidade de viver
dentro dessas contradições, nem sempre de modo positivo, dado
que isso implica frequentemente a incapacidade de as superar, e
uma passividade ou fatalismo que são os pecados maiores do
temperamento português.
A nação surge, deste modo, como o antídoto necessário para
exorcizar os fantasmas que se ligam à imagem trágica da Pátria,
desde sempre associada a esse complexo de auto-flagelação que
terá começado com a catástrofe de Alcácer-Quibir e a
subsequente perda da independência. É, então, um dos grandes
méritos da geração modernista o ter conseguido libertar-se
desse complexo e apresentar uma reformulação do problema
nacional, também no que se refere à questão ibérica, que é
assumida de uma forma positiva, dado colocar Portugal e Espanha
em equilíbrio no plano da cultura e da civilização; e é sem
dúvida premonitório a importância dessa entidade múltipla que é
a Península Ibérica, no contexto de uma Europa que, para Pessoa
como para Almada, é o pólo com o qual a Península tem de jogar
o seu futuro, para isso dispondo desse trunfo decisivo que é a
sua cultura plural.
No caso português, a questão que se põe é a de saber se,
de facto, essa cultura correspondia de facto à consciência de
uma territorialidade, ligada ao Império que o Estado Novo
procurou impor como realidade «actual». Eduardo Lourenço, em «O
labirinto da saudade», reflecte de um modo exemplar as questões
colocadas por essa realidade e pelo seu desabar, com a
independência das colónias depois do 25 de Abril de 1974. Ora,
o que ele verifica é que o fim do ciclo colonial se dá sem um
drama colectivo, tudo se passando como se essa perda do Império
- para além dos problemas circunstanciais ligados ao regresso
dos brancos de África (os «retornados») - fosse um acidente de
pormenor da revolução democrática. O problema, aqui, é que um
drama histórico só existe se ele constitui problema para as
elites intelectuais ou políticas de um país; e o facto é que a
questão do Império se revelou, apenas, uma ficção, e das mais
frágeis ficções, talvez, da História portuguesa. O que sustenta
um Império - a força militar, o poder económico, a exploração
dos recursos - nada disso se reflectia na vivência portuguesa,
a não ser em aspectos superficiais do quotidiano; e se não
fosse a guerra colonial que, durante um breve - para o tempo da
História -período de treze anos, veio afectar de forma eruptiva
esse quotidiano, as colónias não teriam ganho a importância que
vieram a ter para a definição do rumo político do país.
Tema «pós-moderno», no sentido em que surge apenas no
momento da fractura da imagem imperial, com o início da guerra,
a questão do Portugal colonial reflecte-se no ressuscitar do
mito sebástico na poesia portuguesa das últimas décadas:
num Manuel Alegre, que retoma o esquema clássico das
«vidas paralelas» em «Crónica de el-rei Sebastião»74, acrescenta
a esse processo a colagem de citações literárias num jogo
complexo que deixa ver o presente à transparência desses
referentes histórico-culturais;
ou em João Miguel Fernandes Jorge, que procura a
destruição do mito com a banalização da imagem régia no
quotidiano de uma cidade apresentada sob o seu aspecto marginal
e sombrio75.
No entanto, esta actualização do mito sebástico tem
antecedentes na «mensagem» de Pessoa, e na sua utilização da
74
«O dia pois da infelicíssima batalha/quando se ouviu aquela voz: ter ter/ e o teu jeep
explodiu contra um rochedo/ aquele dia de não mais esquecer/ quando os tiros soaram em
Quipedro/ e ficámos cercados de metralha/ aquele dia de morrer morrer/ em que vi o teu corpo
sem mortalha/ no plaino abandonado trespassado/ por malhas do Império lado a lado.»
(«Atlântico», 1981) in «30 Anos de Poesia», Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995.
75
«Está o bravo Sebastião/ na fronteira africana. Está/ no café do 1º andar, na avenida/ junto à
estátua de Zarco. No/ escuro movia a língua/ era grande a velocidade/ como se fôra uma cobra.
(...)» (in «A jornada de Cristóvão de Távora, terceira e última parte», Editorial Presença,
Lisboa, 1990.
História como material do poema, naquilo que é, já, uma
superação do momento vanguardista do «Orpheu». Se a tónica na
oposição entre um passado de grandeza e um presente medíocre e
apagado tem implícita uma crítica à ideia do Império actual,
Pessoa não deixa, nesse livro, de realizar o programa
vanguardista nos dois aspectos que Dionísio Vila Maior descreve
como «a vontade de destruir a tradição, os símbolos e as
imagens da memória cultural (o que implica uma profunda revisão
da literatura nacional), por outro lado, o desejo de transpor o
passado, de saltar o presente e actualizar o futuro
(constituindo o Futuro, por isso, única dimensão válida do
tempo)».76 O verso do poema «O Infante» da «Mensagem»,
«Senhor, falta cumprir-se Portugal»,
é a transposição dessa imagem disfórica do presente que exige
uma atitude activa num processo de transformação que só no
Futuro terá a sua realização ideal - e, por isso mesmo,
utópica. Pessoa , no entanto, não se fica pelas boas intenções
estéticas; e o apelo messiânico que conclui a «Mensagem», ao
dizer
«É a hora!»
corresponde à vertente apelativa de uma tradição romântica que,
como reminiscência, se recupera nesse livro de 1935. A presença
desse traço já pós-modernista (e, de resto, contemporâneo do
movimento da «presença» que Eduardo Lourenço caracteriza
interrogativamente como a «contra-revolução do Modernismo
português) significa que Pessoa pretende assumir uma função
interveniente do Artista, no quadro de um diálogo com a
História; mas essa função leva-o mais longe, dado que ele se
assume como um criador dos parâmetros que irão determinar não
tanto o pensamento como o olhar da sua época sobre o passado.
Pessoa vem, então, lembrar o papel determinante da Poesia
na constituição de um elo entre passado e futuro, não
permitindo quer uma visão regressiva da História - ao encontro
76
Dionísio Vila Maior, «Introdução ao Modernismo», Almedina, Coimbra, 1994, p. 128.
do fatalismo saudosista e do estaticismo integralista - quer um
radicalismo centrado na pura utopia de um futuro nunca possível
no presente. Para isso, é fundamental a existência de uma
língua - condição necessária dessa Poesia; e aquilo que ,em
última análise, acabará por explicar a persistência da nação e
a unidade que ela conseguiu afirmar através dos séculos, é a
constatação, subentendida da frase pessoana que refere a língua
portuguesa como a sua pátria, da capacidade que essa língua
teve de se impor como o território espiritual, e talvez o
único, em que todos se reconhecem, funcionando como o
denominador comum da identidade pátria.
CAMILO E EÇA
77
Alberto Ferreira, «Bom senso e bom gosto», Vol. II (1866), Colecção Portugália, Portugália
Editora, Lisboa, 1968, p. 136.
78
in «Últimas Páginas».
«Deus nos acuda! Ora aquilo é comigo. O sr. E. Q.
desembestou aquela frecha apontada ao meu peito inocente; mas
alvejou com o seu olho míope, ou sacrificou a verdade a umas
pitorescas frases azedas e já bastante puídas que não valiam a
pena do holocausto.»
Assim, Camilo e Eça combatem-se por interposto equívoco,
fugindo com o corpo à confrontação directa - o que, na verdade,
apenas confirma a alta consideração que, apesar da querela
estética, ambos tinham um pelo outro - e que os leva a
polemicarem com luvas nas mãos e pinças de unhas em vez de
bengalas. É esse confronto que permanece ao longo do século XX
naquilo que se pode designar por duas linhas bem marcadas da
ficção nacional, correspondendo à separação entre a cidade e o
campo. Teixeira de Pascoaes (»O Penitente», 1942), Aquilino
Ribeiro («O romance de Camilo», 1961), Agustina Bessa Luís
(«Fanny Owen», 1979), dão conta dessa persistência do
imaginário camiliano na criação contemporânea. Pascoaes fala do
«drama camiliano, profundamente humano ou religioso», que
consiste na «luta moral entre o teísta, que pressente a
Divindade, e o ateu que a vê negada pelos acontecimentos
sublunares»; Aquilino, valorizando a ruptura que Camilo
introduz na língua literária, como grande renovador do idioma,
concentra o seu génio no vínculo entre vida e obra, apontando o
suicídio como «o selo que referendou existência assim
calamitosa», opondo a espontaneidade da sua prosa à
«voluptuosidade da expressão» de Eça cujo estilo é por ele
definido como «uma quermesse para o entendimento»; Agustina,
por fim, dá-lhe a consagração do deus-ex-machina do drama de
Fanny Owen e José Augusto, conferindo uma realidade absoluta ao
engenho da construção ficcional da sua obra.
O mesmo fenómeno não se dá com Eça, que como que esgotou a
via por ele próprio aberta. Quer isto dizer que o Portugal das
grandes tragédias do sentimento permaneceu bem dentro deste
século, enquanto que o Portugal queiroziano viveu já a sua fase
terminal. Isto não impede que seja ainda um lugar comum da
crítica ou do jornalismo falar-se de figuras políticas ou
literárias contemporâneas como se fossem personagens de Eça: um
tal é um Acácio, outro um Pacheco, etc., etc.; mas é um facto
que a realidade lisboeta de Eça envelheceu, sobretudo desde que
as referências intelectuais do Chiado e da Brasileira entraram
em decadência, com o advento de uma classe política que vive da
(e na) televisão e que aprendeu a cultivar uma imagem moderna,
que é como quem diz, europeia. Assim, a retórica e o culto do
discurso pelo discurso vão perdendo o distintivo de urbanidade
que tiveram até décadas recentes, trocados por um pragmatismo
que incarna no modelo do homem de acção.
Mas se esse envelhecimento é um facto nos seus aspectos
formais, como na realidade descrita, há no entanto uma dimensão
utópica no universo queiroziano, que tem sido posta em segundo
plano pelo lado mais ostensivo da ironia e do brilho
estilístico da sua prosa, e que é, em fins do século XIX, em
pleno apogeu da ideologia positivista e da confiança no futuro
sob o signo de grandes realizações do homem como a abertura do
canal do Suez, a que ele assistiu. Trata-se do primeiro sinal
de dúvida em relação a esse progresso científico, de que «A
cidade e as serras» é a expressão, antecipando uma solução
«ecológica» avant-la-lettre para o vazio e a angústia do
citadino. Numa comparação com o Júlio Verne apocalíptico de
romances como «O castelo dos Cárpatos», aí se encontra uma
crítica da mecanização do quotidiano e do irracionalismo que
ameaça o homem moderno, uma vez perdidos os valores antigos.
É evidente que este Eça - o do regresso à Tradição e ao
campo - não corresponde à imagem progressiva que a crítica
positivista e jacobina dele quis dar; mas esta dualidade mostra
que Eça não é um caso arrumado na prateleira da história
literária, e que há ainda um trabalho de re-leitura a fazer com
a sua obra.
A LINGUAGEM POÉTICA DE FLORBELA ESPANCA
ou «Torre de névoa»
79
A.B.Luís, «Florbela Espanca, a vida e a obra», Arcádia, 1979, p. 150.
80
Giulia Colaizzi, «Mujeres y escritura: una habitación propia?», in Àngels Carabi e Marta
Segarra (eds.), Mujeres y Literatura», Promociones y Publicaciones Universitarias, Barcelona,
1994.
«Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...» («O meu desejo» de
«Reliquiae»)
81
M.C.V., entrevista a F. Vale, JL 3-8-92.
Breton. O segundo aspecto é, sem dúvida, mais redutor, embora
não se possa pôr de lado aquilo que representou um aspecto
profundo do movimento surrealista: a sua historicidade, isto é,
uma relação quase sempre conflitual com a época, em particular
o período de entre as duas guerras (anos 20 e 30 deste século),
em que o debate político não deixou de interferir nos membros
desse grupo: heterodoxos (Breton, trocando a «revolução
surrealista» pelo ««surrealismo ao serviço da Revolução», como
diz Cesariny) e os ortodoxos (Aragon e Eluard, que ingressam no
Partido Comunista Francês), por outro lado.
As circunstâncias próprias ao nosso país não permitiram
que esse debate tivesse atingido, entre nós, a repercussão
pública que teve noutros países; embora certas clivagens se
expliquem pela cisão entre os partidários de uma acção
disciplinada por princípios ideológicos (os neo-realistas) e os
que recusaram sempre essa filiação. Mário Cesariny inclui-se,
sem dúvida, entre os críticos desde sempre do compromisso entre
a poesia e a ideologia, a partir da paródia neo-realista dos
poemas de «Nicolau Cansado Escritor» onde, segundo ele escreve,
«busca retratar o romanticismo idealista, «pré-hegeliano», dos
poetas do «Novo Cancioneiro». Inclui no retrato Adolfo Casais
Monteiro.» Trata-se de uma atitude sem dúvida corajosa, dado o
contexto da época em que, se por um lado era impossível para um
escritor estar de acordo com a Ditadura salazarista, por outro
lado não parecia menos impossível deixar de estar com a atitude
geral de Oposição a essa ditadura liderada pelos intelectuais
comunistas, ou pelos seus «compagnons de route».
Não havia, por outro lado, um relacionamento fácil com o
surrealismo na sua vertente francesa, apesar de relações
esporádicas entre um e outro membro dos movimentos português e
francês: António Maria Lisboa conheceu Benjamin Péret, Cesariny
Victor Brauner, mas o relacionamento com André Breton nunca
parece nunca ter sido fácil. Diz Cesariny que as relações dos
portugueses com o grupo de Paris «muitas vezes eram
entusiastas, mas muitas outras contrárias às «palavras de
ordem» emanadas de Paris. A última das quais, em 1969, a de
José Pierre e de Jean Schuster, contribuindo, com a sua noção
de «surrealismo histórico», para a mumificação progressiva do
surrealismo.»82
De facto, é difícil compreender certos caminhos do
surrealismo, em Portugal, sem vermos a recusa de caminhos
fáceis e a permanência de uma intransigente independência face
às modas e aos comodismos sociais por parte de Cesariny; o que
não quer dizer que, no seu trabalho poético, ele não tenha
evoluído no sentido da abolição de certas fronteiras
estéticas , procurando os antecedentes do surrealismo, por um
lado, no imaginário popular, por outro lado, numa tradição
erudita que remonta a Bocage, passa por Pascoaes e Pessoa, e
tem raízes profundas na estética barroca, como mostram alguns
processos experimentais83; mas que também vai ao encontro de uma
linguagem simbolista, como a de Francis Jammes: «uma poesia
objectiva e impessoal (que) faz criar noutro espaço uma coisa
bela»84.
É no entanto evidente que essa assimilação de outras lin-
guagens não é feita numa linha de simples influência literária
ou de uma concordância de gosto; pelo contrário, Cesariny vai
jogar com essas linguagens - como sucede na sua relação com a
poesia neo-realista, em «Nobilíssima visão», que é criticamente
reelaborada:
«Vamos ver o povo
Que lindo é
Vamos ver o povo
Dá cá o pé»;
82
Idem.
83
Ver Perfecto-E. Cuadrado, «Notas sobre a poesia surrealista portuguesa», Arq. do Centro
Cult. Port., vol XXXI, Fund. Cal. Gulb., Lisboa-Paris, 1992.
84
Entrevista em Semanário» de 26-11-88.
ou como sucederá ainda, muito mais recentemente, com Fernando
Pessoa, «relido» em «O Virgem Negra Fernando Pessoa explicado
ás criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. Who Knows
Enough About It seguido de LOUVOR E DESRATIZAÇÃO DE ÁLVARO DE
CAMPOS pelo MESMO no mesmo lugar».
A citação, em Cesariny, é sempre subversão ; e a
homenagem, paródia. Tomemos como exemplo o início dos «Dois
excertos de odes» de Campos:
«Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.»
85
Entrevista ao «Semanário», 26-11-1988.
No entanto, o próprio acaso vai obedecer a uma lógica
particular, que não é regida por um factor «subjectivo» mas
pela necessidade de estabelecer nexos casuais entre os objectos
do real. O «diário» apresenta um exemplo desse processo de
aproximação de um código simbólico rigoroso, quando Cesariny
refere que trocou Pascal por Stendhal na passagem a limpo do
poema III:
«este rio deitado construído ensonado
trazido aqui por Descartes daqui levado por Stendhal
não vai dar nem sequer para uma groselha comigo
quanto mais para o encontro com Deus que é católico
com mais fome no dente do que as baleias na tripa».
87
Ellen W.Sapega, «Ficções modernistas», Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa,
1992.
Pessoa, e mais tarde Adolfo Casais Monteiro e Miguel Torga,
propõe uma literatura intimista e subjectiva cujo modelo é a
«Nouvelle Revue Française», Segundo Fernando Guimarães, «a
linha seguida pelos presencistas recusava dois caminhos de
revolução que eram, talvez, complementares quando eles
propunham uma transformação radical da existência humana ou uma
nova imagem do homem: o marxismo e o surrealismo.»88
É do lado da direita que encontramos uma curiosidade maior
a respeito das vanguardas que é , talvez, um eco tardio da
repercussão portuguesa do futurismo de Marinetti. Com efeito,
encontramos uma passagem significativa num prefácio de
Agostinho de Campos a uma antologia de Afonso Lopes Vieira:
«Nem as «palavras em liberdade» de Marinetti, nem a
«estética nova» de Soffici, com a sua descendência raquítica,
de ultraísmos e dadaísmos, passaram a nossa fronteira, nem
parece que a passe agora o super-realismo francês do sr. André
Breton. »89
Publicadas em 1925, um ano depois da publicação do
«Manifesto do surrealismo de André Breton, estas palavras
provam que os portugueses estavam bem ao corrente da novidade
surrealista. De resto, na revista «presença» encontraremos
colaboradores cujo universo, por vezes, roça o automatismo ou o
imaginário dos surrealistas, como Vitorino Nemésio que, no
poema Carnaval, vê o Cristo crucificado sob a forma de um
«clown vestido de veludo».
A informação sobre o surrealismo chega, portanto, mas não
desperta interesse entre esses jovens escritores agrupados na
«presença», desconfiados de tudo o que se relacionava com
vanguarda. Não basta ver as pequenas coincidências temáticas,
ou constatar a proximidade da pintura de Júlio para com o
88
F. Guimarães, «A poesia da Presença e o aparecimento do neo-realismo», Ed. Inova, Porto,
1969.
89
Afonso Lopes Vieira (Prosa e verso), org. de Agostinho de Campos, Paris-Lisboa, Aillaud e
Bertrand, 1925.
onirismo dos quadros de Chagall, para encontrar semelhanças que
não podem ser senão superficiais. Herberto Helder tem razão
quando indica, no seu prefácio à poesia de Edmundo de
Bettencourt, as causas do nosso atraso cultural:
«Mas nós somos um povo infeliz, já que, logo após o
provincialismo presencista, surgiu o Novo Cancioneiro. Aliava
este, à reacção presencista, um humanitarismo sentimental
assente num complexo de culpa pequeno-burguês, que menos ainda
o inclinava para a compreensão do profundo revolucionarismo
orfeico. Deste modo se foi relegando para um futuro que nos
90
deseuropeizava a recuperação de uma modernidade viva.»
O caso de Bettencourt, cujos «Poemas surdos» são escritos
entre 1936 e 1940, é exemplar dessa aproximação talvez
inconsciente para com a estética surrealista. Helder fala de
«encontro com a imagem. A imagem (e tome-se o termo com o
sentido que uma moderna nomenclatura lhe possa dar) conduzirá o
poeta aos domínios da analogia, isto é, a uma nova noção das
relações entre os elementos do real. Digo: concepção nova da
realidade, consciência de inéditas dimensões dela.»
Mas será só em 1942 que o pintor e poeta António Pedro
publica um texto que se pode considerar como o primeiro signo
do espírito surrealista entre nós: «Apenas uma narrativa».
Pedro, de resto, tivera contactos com artistas parisienses; e é
um dos signatários do «Manifesto Dimensionista», publicado em
Paris em 1935, com, entre outros, Alexandre Calder, Vicente
Huidobro, Juan Miró, Hans Arp, Pierre Albert-Birot, Marcel
Duchamp, Francis Picabia, Sonia e Robert Delaunay e Sophie
Taueber-Arp. Este facto teve as suas repercussões em Portugal:
um crítico, Dutra Faria, publicou em 1936 «De Marinetti aos
Dimensionistas», em que o surrealismo é descrito como sendo já
uma coisa do passado:
«O futurismo, o cubismo, o dadaismo, o super-realismo -
foram movimentos de análise, de crítica e de recusa. De recusa
90
Poemas de Edmundo de Bettencourt, Portugália, 1963.
quase sempre violenta. Negaram mais do que afirmaram, se bem
que tenham afirmado muito.»
Trata-se de um exemplo quase único da atenção pelo que se
passava na Europa das vanguardas, tanto mais interessante
quanto vem de um meio de extrema-direita; mas o que se deduz
deste testemunho é o facto que António Pedro não era assimilado
ao surrealismo, cuja actualidade, enquanto movimento estético,
era mal compreendida.«Apenas uma narrativa», portanto, é um
texto que, como escreve José Augusto França no prefácio à
segunda edição, publicada apenas em 1978, «ficou como uma coisa
sozinha, sem filhos nem pais, graças a Deus e à Literatura. Um
furúnculo que a Faculdade irá agora, aposto, espremer em teses
e seminários.»
O texto combina um imaginário perfeitamente surrealista -
a rapariga, Lulu, que vê os olhos das pessoas que a olham
imprimirem-se no vestido, e que ao chegar a casa os prega com
alfinetes para os coleccionar - com páginas poéticas sobre a
paisagem do Minho, o que não deixa de lembrar uma certa leitura
«regionalista» do surrealismo que se encontra na América Latina
e, em particular, na pintura de Frida Kahlo.
Este lado «nacional» do surrealismo de Pedro ficará como
uma herança nos surrealistas pós-46, designadamente Alexandre
O'Neill, que dele irá tirar efeitos soberbos na sua poesia; mas
constitui uma limitação desse surrealismo que não consegue sair
das fronteiras onde a literatura portuguesa, com a «presença» e
o neo-realismo, estava já encerrada. No entanto, é um homem da
«presença», Adolfo Casais Monteiro, que revelará num texto de
1948, «Perspectiva do surrealismo», um conhecimento profundo .-
embora sob uma perspectiva algo académica - do que era o
surrealismo. No ponto «Artistas e videntes» situa Pessoa dentro
desse aspecto da filosofia do surrealismo:
«Pessoa dá-se ao ocultismo como uma última esperança de
salvação racional; outros regressam, como Eliot, a uma
plataforma religiosa da qual esperam uma salvação que não sabem
encontrar á sua frente. Rilke procura ouvir os fantasmas de
Duíno, mas são o eco da sua voz. Mas Pessoa, mais heroicamente,
mostra o pó em que todos os conceitos se esfarelam entre os
seus dedos, e deixa o caminho aberto para a reconstrução,
porque a sua recusa a aceitar a mistificação varre os fantasmas
dos caminhos da poesia.
Pode a aventura surrealista que vem depois deles ser, como
disse, um malogro, quando considerada em relação aos objectivos
que o movimento se propusera; mas foi através dela, isto é,
pela recuperação do mundo autêntico no fundo da consciência
humana, que foi possível a poesia não se afundar num mundo
valeriano de convenções formais, fechado sobre si, à espera do
fim do mundo.»91
A referência a Pessoa é central no nosso surrealismo.
Mário Cesariny publicou «Louvor e simplificação de Álvaro de
Campos, em 1953; e um dos seus últimos livros é uma mistura de
homenagem e paródia a Pessoa, que Cesariny considera como
«vítima» de todos os tipos de recuperações e mitificações92.
Esta condenação a uma dimensão puramente literária - ou
estética - do surrealismo português, impedido por razões
sociais de realizar o programa de Breton de um «não conformismo
absoluto», tem como consequência paradoxal fazer passar a
«mensagem» surrealista de uma forma mais subtil e profunda,
evitando a rejeição que uma afirmação provocadora teria sem
dúvida provocado. Basta ler os nomes que figuram numa antologia
da poesia surrealista portuguesa publicada por Natália Correia
para verificar que a maior parte dos poetas portugueses
contemporâneos aí figuram, mesmo neo-realistas como Carlos de
Oliveira ou poetas formalmente mais clássicos, como David
Mourão-Ferreira. Não se trata tanto de um ecletismo dos nossos
poetas como de uma leitura «não polémica», feita com uma
distância crítica e reflectida, do que no surrealismo toca a
91
A.C. Monteiro, «A palavra essencial», Verbo, 1972.
92
Trata-se de «O Virgem Negra...»
natureza do poético: esse ponto em que as fronteiras materiais
se diluem para deixar ver a unidade desse mundo possível em
que, segundo Breton, «a imaginação está talvez a retomar os
seus direitos»93
É preciso ver nessa disseminação do espírito surrealista a
especificidade da contribuição portuguesa para a herança de
Breton. É mais interessante prosseguir nessa via do que
procurar recuperar um movimento surrealista nacional que,
segundo a opinião demasiado radical de Almeida Faria, «não pode
produzir nenhuma personalidade universal, ao contrário do
primeiro modernismo na pessoa de Pessoa ou o naturalismo em Eça
»94. É verdade que o contexto português funcionou como um
obstáculo a uma realização total do projecto de Breton.
Jacqueline Risset define essa limitação de um modo muito
preciso:
«Enquanto as palavras-chave de textos surrealistas
franceses são «rêve», «désir», «amour fou», as dos textos
portugueses são «medo, «noite», - «noite sem nenhuma saída»
(enquanto para Breton a noite é central mas maravilhosa «nuit
des éclairs» cheia de luz e de electricidade).»95
A expressão «vanguarda inactual» usada por Jacqueline
Risset parece-me descrever excelentemente o nosso caso, no
sentido da observação feita por Fátima Marinho de que a
diferença das situações portuguesa e francesa acabou por
desligar a importância dos poetas que se reivindicam da
estética surrealista da vinculação estreita a um grupo ou
movimento96.
Tal facto representa, para a poesia portuguesa que
escapou aos dogmas do nosso século, o facto de saber que o
93
Primeiro manifesto do surrealismo, 1924.
94
«Almeida Faria, «Um surrealismo de trazer por casa», in Sema 1, 1979.
95
Sema, nº 1, 1979.
96
Maria de Fátima Marinho, «O surrealismo em Portugal», IN-CM, Lisboa, 1985.
único - e sem dúvida o último - espaço de liberdade para o
indivíduo é aquele em que a imagem poética lhe dá o poder de se
libertar de todas as contingências; e é a partir desse espaço
que o poeta fala e se dirige aos outros homens, de tal forma
que pode inverter o ponto de vista comum e afirmar, como o faz
Mário Cesariny num dos seus «cadáveres esquisitos:
(Nous) «Ne doutons pas un seul moment que LA RÉALITÉ
existe. Mais il ne nous sied pas de dire où.»97
POESIA PURA
97
Mário Cesariny com Petr Kral e marie-Claire Kral, in «Antologia do cadáver esquisito»,
Assírio & Alvim, 1989.
poderão ser considerados como exemplos dessa atitude. Stéphane
Mallarmé, Arthur Rimbaud e Paul Valéry. Não quer isto dizer que
não tenham sido lidos: o que importa é que não deixaram traços
visíveis, enquanto modelos estéticos, na produção poética
dominante a partir das décadas de 20 e 30, com excepções que
irei referir.
Uma das mais notáveis é o poema de Carlos Queiroz «Ode a
Arthur Rimbaud»98, que nos apresenta um paralelo entre o
percurso de Queiroz e a sua iniciação na obra de Rimbaud,
conduzindo-o à maturação simultaneamente humana e estética.
Queiroz procura superar o dilema «Moderno? Anti-moderno?» com a
categoria «Transmoderno!», que situa a Poesia num espaço para
além das querelas temporais da classificação histórica.
Rimbaud, por outro lado, é uma figura também ela intemporal:
«génio de mito inominado», deixando o seu «rastro na luz/ Que a
(s)ua Obra emana», a sua caracterização desenha uma figura
«hermética, inumana, monstruosa», que leva o poeta a esvaziá-lo
de identidade, reduzindo-o à «voz sem corpo» da Poesia; e é
nesta última definição, em que o texto se liberta de uma fonte
real (o Autor), que Queiroz indica concretamente a direcção
dessa poética que, noutros poemas, tem ecos de Valéry («Às
Parcas falando assim») e uma referência a Rilke («E se fosse
mentira?»)99.
Antes de Carlos Queiroz, já Vitorino Nemésio tinha aberto
um caminho nesta direcção, embora o seu lado açoriano venha,
por vezes, dar um acento regional à sua poesia. Em «La voyelle
promise» (1935), colectânea de poemas em francês, o lado do
poeta viajante, à maneira de Valéry Larbaud, coexistindo com um
olhar sensorial que as referências a Francis Jammes e Jules
Supervielle reforçam, não impedem a afirmação poderosa da
inspiração rimbaldiana do primeiro poema, «L'annonciation de la
98
in «Aventura» nº 2, Agosto de 1942)
99
in Carlos Queiroz, «Epístola aos vindouros e outrps poemas», Colecção Poesia, Edições
Ática, 1989.
voyelle», e mallarmeana de «Ennuyeux». É certo que a voracidade
intelectual de Nemésio o conduz a um ecletismo que,
constantemente, o faz vogar ao sabor de uma navegação literária
à vista, mesmo que em momentos mais felizes ele reencontre o
oceano profundo da poesia sem limites, que faz dele um caso
quase único ao longo desse período. No entanto, a contradição
em que o seu espírito se debate está lucidamente presente na
«Arte poética», que de certo modo responde à «Art poétique» de
Verlaine, de «O bicho harmonioso» (1938): «Nem o abstracto nem
o concreto/ São propriamente poesia./ Poesia é outra coisa./
Poesia e abstracto, não.»
A evolução política a partir de meados da década de 30 e
década de 40 (guerra de Espanha, 2ª Guerra Mundial,
intensificação da repressão política em Portugal) vai
contribuir para que esta corrente se limite a vozes isoladas, e
praticamente deixe de se ouvir. É uma poesia comprometida com o
conflito social que toma o ascendente, em muitos casos
regredindo em direcção ao lirismo tradicional, ao contrário do
uso do verso livre e do abandono do ritmo metrificado que
Nemésio, como os poetas da «Presença», em geral, tinham
vulgarizado, na sequência da lição pessoana que, no entanto,
parece ter pouca repercussão nesta época, apesar do seu
reconhecimento por parte de críticos presencistas como José
Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro.
A publicação dos «Poemas» de Rainer Maria Rilke,
traduzidos por Paulo Quintela100, dará um impulso importante ao
que Eduardo Lourenço designa como «angelismo poético
português»101, numa dupla vertente: negativa e desmitificante em
poetas como Raul de Carvalho, José Terra, Fernando Echevarria,
Vasco Miranda, Nuno de Sampayo, Vítor Matos e Sá e, até, em
José Fernandes Fafe, que « - «dizem», sobretudo, que já não há
100
Publicação do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1942.
101
Eduardo Lourenço, «Angelismo e Poesia», in «Tempo e poesia», Editorial Inova, Porto,
1974.
Anjo algum, que o olhar arquétipo do Homem que ele encarnava
explodiu, jaz em pedaços no coração de cada homem, infância
definitivamente extinta»;
e positiva, rumando para uma transcendência que o Anjo de
Chartres do soneto rilkeano incarna, desviando o homem da
dimensão real que o reduz à menoridade da matéria. Miguel Torga
inaugura um rumo que terá continuadores, em vozes e tonalidades
diversas, em Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner
Andresen. É o individualismo de Torga que desencadeia essa
empatia, inscrevendo o emblema angélico no coração de uma
pulsão poética que retoma a grande tradição do mito, depois do
período niilista quer do Modernismo quer da recusa presencista
do «Cântico Negro» de Régio em alinhar com as direcções
conhecidas, permanecendo na situação conflitual do embate
nietzscheano entre Deus e o Diabo.
Torga, no entanto, aproxima-se de Rilke para marcar a sua
diferença, como nota Maria António Ferreira Hörster:
«Desinteressado de toda a especulação metafísica tão
peculiar a Rilke, Torga opõe-lhe uma poesia do homem, que se
sente abafado pelo frémito da aspiração à eternidade, mas que
elege a terra como seu reino: «A sombra que fazemos/ No
chão...»102
Publicados, numa primeira série, de 1940 a 1942, e
retomados em 1951, os «Cadernos de Poesia» reúnem os poetas que
mais se aproximam de um conceito ideal de Poesia pura. Assinado
por Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Tomaz
Kim e José-Augusto França, o fascículo 6 da Segunda Série,
Lisboa, 1951, apresenta o editorial «A Poesia é só Uma (1940-
1951)» que procura indicar uma diferença em relação às divisões
necessariamente decorrentes do conceito de poesia comprometida.
Aí se escreve:
102
«De Rilke, dos anjos e da poesia portuguesa», in Rita Iriarte (coord.), «Ensaios de Literatura
e Cultura Alemã», Minerva, Coimbra, 1996.
«Se a expressão poética é (ou resulta de) um compromisso
- e sublinhe-se de uma vez para sempre que esse compromisso se
não destina a captar o «inexprimível»... - evidente se torna
que a poesia só existe como relação: a relação que relata e a
relação que relaciona entre si duas entidades.»
A formulação cautelosa impede, sem dúvida, que se possa
atribuir aos poetas signatários uma intenção de fuga ao seu
tempo; mas não deixa de reivindicar para a «Poesia una» toda a
expressão nascida do «compromisso firmado entre um ser humano e
o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência
sensível do mundo, que mutuamente se definem. Tudo o que não
atinge esse nível não é poesia.» Ou seja, põe-se de lado a
poesia marcada exclusivamente pela justeza do seu conteúdo e
pela consciência colectiva do que nela se exprime, e coloca-se
o acento no individual e na sensibilidade, que marcam um
regresso da componente lírica da criação poética.
Compreendem-se estas precauções; mas é de facto uma poesia
desligada do compromisso imediato com o real que os «Cadernos
de Poesia» propõem, a que a assimilação discursiva da lição de
Pessoa - o Poeta, e não o doutrinário ou o artista provocador
de «Orpheu» - em António Ramos Rosa ou Raul de Carvalho vai dar
uma dimensão estética profundamente inovadora: o primeiro,
através do papel nuclear da palavra no acto poético, esvaziando
o poema de um excesso do dizer que resulta do projecto
comunicacional; o segundo, através de um domínio da
discursividade que equilibra a tensão poética com a retórica
que a poderia anular. Há neles, no entanto, um excesso de
sinais do poético que acaba por ir num sentido oposto à
direcção mallarmeana, criando uma empatia dialogante com o
leitor que, no caso de Ramos Rosa, faz com que «aquilo que para
Mallarmé era um ponto de chegada de essencial necessidade, é
aqui o acaso contingente de um ponto de partida»103, ou seja, a
103
António Guerreiro, «António Ramos Rosa e o horizonte da palavra», prefácio a António
Ramos Rosa, «Obra poética», Vol 1, Fora do Texto, Coimbra, 1989.
palavra é o elemento mediador de um real a que o homem não tem
outro acesso possível. Raul de Carvalho, por sua vez, vai ao
encontro da ilusão lírica que, também ela, acaba por colocar o
real - embora idealizado e, no limite, visto como o quadro
transcendente da finalidade poética - no horizonte da sua
escrita.
Idêntica limitação se encontra na poesia de Ruy Cinatti,
que teria à partida a vantagem, sobre os outros companheiros de
revista, de se integrar no arquétipo rimbaldiano, tanto em
termos existenciais (o exotismo da peregrinação timorense, o
comportamento excêntrico) como na expressão em que se confunde
o plano religioso com o de valores estéticos que o absorvem até
ao ponto desse brilho negativo de onde, finalmente, o poema
irradia a luz negra das «Illuminations». Porém, a
referencialidade que, ao longo da sua obra, vai descendo ao
nível do quotidiano, acaba por reduzir essa memória literária a
um «topos» o que, sem diminuir o fascínio inegável do Poeta, o
afasta do radicalismo niilista de Rimbaud. Por outro lado, a
presença da religião acentua o lado «humano» da leitura
poética, apesar do excesso que só não é místico porque Cinatti
o equilibra com uma ironia subtilmente destrutiva do instante
da entrega.
De facto, o que se torna evidente no panorama desta época
é que o impedimento à realização plena de uma poesia pura
nasce, sobretudo, do arquétipo romântico da «poesia e verdade»
de Goethe, que aliás serviu de emblema a uma das colecções de
poesia que marcaram uma orientação da poesia portuguesa 104. Esse
arquétipo põe em plano igual ou superior ao da realidade do
poema a do poeta, com o fundo mítico que a envolve, decorrendo
provavelmente da necessidade de equilibrar com um referente
objectivo - essa realidade biográfica - o peso excessivo da
104
Colecção «Poesia e Verdade» de Guimarães Editores, a que se deverão acresecentar a
«Colecção Poesia» da Ática, a colecção «Poetas de Hoje» da Portugália e o «Círculo de Poesia»
de Moraes Editores: todas elas incluem como um dos aspectos principais da sua selecção poética
a aposta na qualidade da Obra, independentemente de opções estéticas ou ideológicas.
poesia social. Assim, aspectos como o empenhamento cristão, o
mito pessoal nascido do «Diário», o amor, a morte precoce,
conciliam-se numa obra que se torna o paradigma dessa atitude:
a de Sebastião da Gama, com uma pureza que advém da limpidez
solar do seu universo mas, ao mesmo tempo, indissociável da
figura do poeta que lhe dá corpo.
Esta junção verifica-se na estética da revista «Távola
Redonda» (1950-54), que transporta algo do espírito da
«Presença» na sua recusa de um «espírito unívoco», embora se
possa perguntar se, na década de 50, faria sentido ressuscitar
esse espírito. De facto, a novidade da «Távola Redonda» nascia,
segundo diz David Mourão-Ferreira no texto programático do 1º
número, «Lirismo ou haverá outro caminho?», da revalorização
lírica:
«Graças a essa involuntariedade urgente na origem e à
gratuitidade fundamental nos objectivos, é que toda a poesia
começa por ser lírica. Por outro lado, como o Lirismo é um
ideal de equilíbrio, ele é que dá, às grandes épocas da Poesia,
a razão de ser e a temperatura geral.»
O programa da «Távola Redonda» vem indicado num outro
texto deste primeiro número: «Um lugar para a poesia» de
Alberto de Lacerda. Texto notável, de resto, pela lucidez com
que situa a estética da revista, em termos históricos,
indicando as razões por que o lirismo puro tem um papel a
desempenhar no presente:
«O que atingem, afinal, leitores e criadores, com a
poesia: Será a fuga das realidades de todos os dias, da vida
com v irremediavelmente pequeno? Creio que não. Se for
autêntica poesia, coloca-os a ambos no próprio centro da
existência; «a arte é uma intimidade com o mundo», disse José
Régio, e para sempre. Um poema, além do prazer que dá - prazer
de modo nenhum frívolo - revela mais profundamente o homem e a
vida, obriga-o a viajar, e de uma viagem volta-se sempre
diferente. É uma fuga de que resulta uma integração.»
Implícito ao programa expresso por Lacerda de «servir,
acima de tudo, a Poesia», vem a preocupação de reencontrar o
elo com a Europa105. Com efeito, na linha de Eduardo Lourenço, de
quem cita o ensaio «Europa ou o diálogo que nos falta», de
«Heterodoxia», é o corte da nova poesia com a época, com o
«espírito do seu tempo», que produz a falta de sentido crítico
que leva a que a poesia seja julgada mais pela sua capacidade
de intervenção social do que pela qualidade estética. O que
levará Lacerda, na conclusão do seu artigo, a adoptar um tom
que, negando embora a intenção programática, não deixa de
vincular a revista a uma linha poética bem definida:
«Talvez seja possível apontar, até, algumas das suas
características, sem qualquer intenção programática: a
conquista do poético sem preconceitos de antigo ou de moderno,
de temas ou até de palavras, dentro da liberdade essencial
ligada à criação e à vida da obra de arte; variedade na forma,
sabendo, sobretudo, que ela existe, e desejo consciente de a
dominar com beleza; inquietação social sem desgosto estético;
revalorização do mito.»
O que se torna claro, neste projecto, é o abrir de um
caminho bem diverso do que se encontra nos «Cadernos de Poesia»
ou na «Árvore» (1951), isto apesar de muitos dos colaboradores
destas revistas também coincidirem na «Távola Redonda»,
restaurando o projecto de um lirismo sem rupturas, capaz de
superar as fracturas instauradas pelo Modernismo do «Orpheu» e,
depois, prolongadas no neo-romantismo106 da «Presença». Este
regresso a um modelo clássico, revisto pelos moldes formais de
105
Subjacente a esta tomada de consciência, está a divulgação de poetas como Pound, Eliot,
Dylan Thomas, além de poesia belga e italiana, e de brasileiros como Cecília Meireles, Manuel
Bandeira, Jorge de Lima.
106
Este neo-romantismo explica-se pela presença de um elemento central na caracterização do
fenómeno poético: o seu mistério genético, como é descrito por João Gaspar Simões. Eduardo
Lourenço, que aproxima Régio de Gomes Leal, refere que os valores dominantes na «Presença»
são a personalidade e o dramatismo, reflexos do que ele designa como a «inquietação
romântica» (in Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português, «Tempo e Poesia».
uma influência presencista que se manifesta em certos poetas do
grupo numa afirmação retórica do sujeito demasiado enfática,
tem um dos seus melhores exemplos no próprio David Mourão-
Ferreira, que regressa à tradição camoniana; e encontra, em
Sophia de Mello Breyner Andresen, uma linha de recuperação do
universo grego através de uma inspiração mediterrânica e
luminosa que envolve os objectos com uma precisão vocabular
nítida, dando a ressonância material de cada palavra com um
sentido apurado da língua.
Não se limita, porém, esta tradição clássica ao lado
luminoso e diurno com que Sophia celebra uma «Geografia»
mítica, em que se cruza essa reminiscência do arquétipo grego
com paisagens concretas do litoral. A tragédia contamina o
tempo com as suas marcas históricas, e obriga a uma descida
órfica ao mundo interior, para que o contacto com a memória
restabeleça o equilíbrio perdido. Nesse percurso, Sophia faz
ressurgir, com o seu domínio magistral da palavra, uma época
dourada cujas referências são a pintura, a poesia, a música. As
sombras adquirem o rosto das Musas na cintilação fónica do
poema, para depois serem restituídas ao seu espaço secreto, de
onde a voz do poema as conseguiu trazer de volta a um real cada
vez mais ameaçado pela corrupção das imagens.
Chegamos aqui à referência incontornável deste tópico
estético: Jorge de Sena. A sua importância advém dos múltiplos
planos em que a sua actividade se manifestou, como poeta mas
também como crítico e teórico da literatura. A ideia de uma
arte descomprometida é naturalmente assumida a partir de um
materialismo que está ligado às correntes formalistas, e que o
leva a defender, apesar do seu próprio instinto biográfico, que
«o poema deva valer por si próprio, como obra independente do
autor e da sequência da criação a que este se foi dando»107. Este
conflito entre o ser biográfico e a necessidade da libertação
poética constitui, de resto, o motor dialéctico da sua escrita,
107
Jorge de Sena «Poesia I», 2ª edição, Círculo de Poesia, Moraes Editores, Lisboa, 1977.
conduzindo-o no sentido de uma poesia profundamente existencial
que, em dados momentos, funciona como um registo diarístico da
sua peregrinação terrestre.
Fundamental na criação de um quadro perspectivo da poesia
portuguesa do pós-guerra é a antologia das «Líricas
Portuguesas, 3ª série». Publicada em duas edições (Portugália
Editora, Lisboa, 1958 e Lisboa, 1972, desta segunda edição
tendo saído apenas o 1º volume), é a primeira edição que se
pode considerar uma revisão crítica da Poesia do Século XX,
trazendo notas bio-bibliográficas sobre os autores que vão além
do simples registo circunstancial. Sena aponta de forma notável
o que define cada poética, individualizando o poeta e
destacando os traços pessoais da sua linguagem. . Nota-se que o
crítico fala de um período do qual, como ele diz, «possuía
aliás um vivido conhecimento directo»; e a síntese final
resulta de uma dupla exclusão: a do «equívoco de raiz
mallarmeana, que só poderá, em última análise, ter perfeita
realização no non-sense ou nas nursery rhymes», tal como o
ingénuo humanismo. É, de resto, neste último ponto que Sena
define o quadro referido:
«Por outro lado, a expressão do «humano», pressupondo
tacitamente uma idealística natureza humana transcendental -
sem a admissão da qual se não vê muito bem em que se apoiará um
individualismo que não leve em conta as suas próprias
circunstancialidades , é igualmente impossível, porquanto só
valeria na medida em que ignorasse o humano concreto que visava
exprimir e elevar à esfera transcendente; e é sobretudo
incompatível com a «poesia pura», porque, na hierarquia ôntica,
ou a «poesia-vivência-pura» precede a ideal natureza humana, ou
esta precede aquela, já que é um contrasenso que essas
entidades ideais coabitem no empíreo.»
Esta rejeição do esteticismo, quer o mallarmeano quer o da
«poesia pura», admite porém - e é nesta contradição assumida
que Sena estabelece a ponte entre o compromisso humanista e a
autonomia do poético - a «libertação das imagens», tanto a que
decorre da técnica do automatismo surrealista como a que advém
de um funcionamento da metáfora que, na linha de Sá-Carneiro,
«passou, generalizadamente, de estática a dinâmica, isto é,
comporta um desenvolvimento que às vezes se identifica com o
próprio poema.»
Estamos, então, no limite do equilíbrio que é possível no
jogo entre as correntes antologiadas - do neo-realismo de
Políbio Gomes dos Santos, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado
ou Carlos de Oliveira, ao surrealismo de António Pedro, Mário
Cesariny de Vasconcelos ou António Maria Lisboa, até poetas que
não se situam em nenhuma dessas órbitas, como Sophia, Eugénio
de Andrade, Luís Amaro, Sebastião da Gama, Alberto de
Lacerda... O mínimo denominador comum sendo esse lirismo que
condensa as pulsões da «metáfora dinâmica», isto é, a imagem
criadora e, nesse sentido, ganhando a autonomia da sua
individualidade.
Podemos encontrar na obra de poetas que se revelaram ao
longo dos anos 50 sinais deste novo conceito de poesia, a que
não será estranha a divulgação que, depois de o terem feito em
relação a Rilke, as traduções de Paulo Quintela fizeram
relativamente a Friedrich Hölderlin108, em paralelo com a
revelação plena que se ia fazendo, a partir das edições da
Ática, da importância capital de Fernando Pessoa. Tal
publicação vai dar os seus frutos nas referências que, a partir
da década de 50, Sophia, Alberto de Lacerda, Ruy Cinatti, Vítor
Matos e Sá, Fernando Guimarães, Vasco Graça Moura, Diogo Pires
Aurélio, em maior ou menor grau, são feitas ao poeta109. Não é
108
Publicados primeiro em 1944 e 1945, seguidos pela publicação de «A Vida e a Poesia de
Hölderlin», que foi a tese de doutoramento que Paulo Quintela apresentou na Universidade de
Coimbra, os «Poemas» de Hölderlin terão uma 2ª edição revista e muito ampliada em 1959,
Coimbra, Atlântica.
109
Cf. Fernando J. B. Martinho, «Ecos de Hölderlin na poesia contemporânea portuguesa», in
RUNA, Revista Portuguesa de Estudos Germanísticos, Colóquio Interdisciplinar Friedrich
Hölderlin (No 150º Aniversário da Morte do Poeta, Lisboa, 2 e 3 de Dezembro de 1993), nº 22,
apenas o peso da Grécia, que transporta o fulgor da fórmula
helénica da identificação entre poesia e filosofia, que esta
presença impõe na poesia portuguesa; mas é também o brilho
negro do poema que acende um reflexo mnemónico da situação
negativa do poeta numa época deprimida para Portugal, submetido
a uma Ditadura que colava bem a interrogação de Hölderlin: «e
para quê Poetas em tempo de Indigência?»
Situados numa outra esfera de influência, temos poetas que
vão buscar à poesia anglo-americana as suas raízes, como é o
caso de de Tomás Kim, tradutor de Shelley, de Maria Amélia
Neto, tradutora de T. S. Eliot, e de José Blanc de Portugal,
que adoptam um ritmo inteiramente livre, ao ponto, por vezes,
de revestir uma característica prosaica em ruptura chocante com
a tradição métrica portuguesa. Oriundo, como Kim e Blanc de
Portugal, da «Árvore» e dos «Cadernos de Poesia», Alberto de
Lacerda apresenta uma poética que antecipa, pelo depuramento
formal, e por um rigor absoluto na definição da imagem, certos
desenvolvimentos poéticos que ocorrem na sequência da Poesia
61, como é o caso de Gastão Cruz
Eugénio de Andrade, com um canto depurado na busca de um
amor que apresenta a face metamórfica do espaço cósmico, na sua
dualidade nocturna e luminosa, representa um dos mais
consequentes caminhos deste conceito de poesia pura. Se, numa
primeira fase, se encontram nele ecos que vão de Lorca ao
surrealismo, isso não impede que desde logo uma voz pessoal se
manifeste de forma nítida, como o desenho de um imaginário que
vai buscar à natureza, à terra, ao campo na sua materialidade
viva, os seus contornos sensuais. «Escrita da terra», a sua
poesia ascende, no entanto, a uma região pura, liberta das
confluências do real, construída com uma «matéria solar» em
que, no entanto, se faz sentir por vezes o «peso da sombra».
Significativos, com efeito, são os títulos de Eugénio de
Andrade, constituindo como que os sinais que permitem a
2/1994.
orientação por entre um espaço que, sem nunca se tornar
abstracto ou ideal, consegue atingir, muitas vezes, a perfeita
rarefacção do «branco no branco», a partir de uma escrita que
concilia o «ostinato rigore» de uma pesquisa formal sem
concessões com uma subtil poesia de amor - um amor afirmado
«rente ao dizer» ou, como diz Arnaldo Saraiva, com «o discreto
confessionalismo, a intimidade coloquial, a sugestão erótica, o
apuramento dos sentidos»110.
Fernando Guimarães, introduzindo uma dimensão narrativa no
poema sem, no entanto, abdicar de um lirismo que caminha no
sentido da abstracção conceptual, representa o lado mais
«expansivo» da evolução desta corrente. No limite, o poema
coincide com uma «voz» humana, que faz com que se entre no jogo
da representação, remetendo para a tradição romântica. No
entanto, ao assumir a máscara do real, denunciando esse jogo, o
poema recupera a sua identidade, reconduzindo essa voz ao
espaço da linguagem que lhe confere o seu sentido próprio sobre
uma figura provisoriamente assumida.
Fernando Echevarria, fazendo do poema o fecho emblemático
de um raciocínio metafórico sobre a condição humana, revela uma
face reflexiva do que Fernando Guimarães chama os «conceitos
puros», nascidos do que ele descreve do seguinte modo:
«O que a sua poesia melhor prefigurou foi a tendência para
a disseminação interior do próprio discurso, mediante a
incidência na imagem - que tende a antepor-se à metáfora - , o
isolamento vocabular ou a sua rarefacção elíptica através da
suspensão e da compressão, a recusa de uma expressividade
discursiva.»111
Esse jogo conceptual, que vai buscar as suas raízes à
tradição barroca, não se esgota porém nos jogos formais,
110
Arnaldo Saraiva, «Introdução à poesia de Eugénio de Andrade», Fundação Eugénio de
Andrade, Porto, 1995.
111
Fernando Guimarães, «A poesia contemporânea portuguesa e o fim da modernidade»,
Caminho, Lisboa, 1989.
procurando acender a chama abstracta do conceito a partir de
uma fricção verbal que se constrói sobre a extrema economia de
um descarnamento frásico, juntando a expressão elíptica de
Ricardo Reis com a música clássica da poesia pastoril ou do
soneto camoniano.
Eugénio, Guimarães, Echevarria: são estes, entre outros,
os representantes de uma linha que tem como pontos de
referência a natureza, recuperando o bucolismo da écloga
através de uma renovação temática e formal; o jogo
intertextual, recuperando o passado através de um trabalho
sobre a tradição que dialoga com o universo próprio do poeta;
ou um rumo filosófico que evita, no entanto, o empenhamento
quer doutrinário quer metafísico. Prolongando a atitude da
«poesia pura», trabalhando-a e fazendo-a evoluir, vemos no
exemplo destes poemas formas diversas de manter uma coerência
que fez com que se não tivesse interrompido, até aos dias de
hoje, uma linha estética que, em gerações mais recentes,
continuou a encontrar leituras atentas, tendo um ponto de
chegada naquilo que, em conclusão, se pode descrever como a
síntese entre o discursivismo, que marcou a poesia da década de
60 de um Herberto Helder ou um Ruy Belo, e se afirmou a partir
da década de 70, e um lirismo de raiz mais clássica, mas
liberto dos equívocos de carácter biográfico.
Constitui-se assim o sinal distintivo do que não foi nem
corrente nem movimento, mas tão só a procura de afirmação de
uma poesia construída sobre o princípio da sua autonomia face
ao real e ao humano, revelando a sua função mediadora com um
transcendente indispensável para que o poema não se esgote no
simples jogo formal. Foi sem dúvida um momento importante na
poesia portuguesa deste século, e consonante com a grande
tradição europeia nascida com o Romantismo alemão.
Bibliografia:
António Guerreiro, «António Ramos Rosa e o horizonte da
palavra», prefácio a António Ramos Rosa, «Obra poética», Vol 1,
Fora do Texto, Coimbra, 1989.
Arnaldo Saraiva, «Introdução à poesia de Eugénio de Andrade»,
Fundação Eugénio de Andrade, Porto, 1995.
Eduardo Lourenço, «Tempo e poesia», Editorial Inova, Porto,
1974.
Fernando Guimarães, «A poesia contemporânea portuguesa e o fim
da modernidade», col. Estudos de Literatura Portuguesa,
Caminho, 1989.
Fernando J. B. Martinho, «Pessoa e a moderna poesia portuguesa»
- do «Orpheu» a 1960», Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.
Idem, «Ecos de Hölderlin na poesia portuguesa contemporânea»,
in «Runa, Revista Portuguesa de Estudos Germanísticos»,
Colóquio Interdisciplinar Friedrich Hölderlin, 22, 2/1994,
Instituto de Estudos Alemães, Coimbra.
Maria Antónia Hörster, «De Rilke, dos anjos e da poesia
portuguesa», in Rita Iriarte (coord.), «Ensaios de Literatura e
Cultura Alemã», Minerva, Coimbra, 1996.
O CÂNONE NARRATIVO NA POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
112
Harold Bloom, The Western Canon, Harcourt Brace & Company, , New York, San Diego,
London, 1994, p. 17.
113
A canonicidade implica a aceitação colectiva, indiscutível, do Texto: «Do ponto de vista do
estudo literáreio (i. é, um estudo, «teórico» ou «histórico», da literatura), «cânone» segnifica
praticamente tudo o que é aceite como literário, merecendo a atenção dos estudiosos (...)neste
contexto, pensar os cãnones é, de facto, pensar sobre a «grande tradição literária». a
durabilidade de celebradas obras e figuras do passado, e a sua invocação e reestimativa com o
objectivo de estabelecer o valor dos contemporâneos (i. é, o «clássico)». Rakefet Sheffy, «The
concept of Canonicity in Polysystem Theory», Poetics Today, Volume 11, Number 3, Fall
1990, Duke University Press.
expressão, passado o momento das rupturas que foram o «Orpheu»
de 1915, o neo-realismo dos anos 40, o surrealismo português do
pós-guerra Poderemos incluir este movimento no contexto mais
genérico de uma situação pós-modernista (o que é diferente de
pós-moderna, embora aquela antecipe esta).
Um dos elementos centrais deste movimento é a recuperação
do que designarei por um cânone narrativo na poesia portuguesa
contemporânea; e, ao falar de cânone, importa obviamente
designar os antepassados - os modelos - que são,
fundamentalmente, dois: Camões e Pessoa, «Os Lusíadas» e a
«Mensagem». Entre os elementos que jogam, neste aspecto,
indicaremos então, por um lado a História como pólo dinâmico do
mundo poético; por outro lado, a referência intertextual, que
terá uma aplicação na presença, no poema, de uma outra História
- a da literatura - com as evocações, citações, influências e
denegações que no poema se encontram a partir da sua existência
problemática. Com efeito, o problema consiste na dupla
definição que o poeta terá de fazer perante o passado,
enquanto real determinante de atitudes e comportamentos
históricos, e também enquanto texto de onde podem surgir as
explicações do texto actual, que funciona como reelaboração
desse passado.
Isto implica uma ruptura em relação ao lirismo dado que
vamos encontrar no poema elementos estruturais do texto
narrativo, e em particular os «quatro aspectos de cada
acontecimento da narrativa (acção, pessoa, tempo, espaço)», a
partir da selecção que o poeta vai operar sobre o real para
compor o seu texto, num processo em que: «acontecimentos,
agentes humanos, uma fatia de tempo, e um específico espaço
tudo pressupõe uma macroestrutura a partir da qual esses
elementos são escolhidos e na qual os seus papéis na narração
são especificados (...) Isto é o que significa a bem conhecida
formulação de Jakobson, «A função poética projecta o princípio
da equivalência do eixo da selecção para o eixo da combinação.
Os representados acontecimentos, agentes, tempos e lugares são
seleccionados dos «paradigmas» de tais possíveis estruturas, em
ordem a serem combinados no «sintagma» do discurso».114
O que intervém, neste plano, é o que Noelle Batt designa
como «dois sistemas associados e concorrentes ao mesmo tempo: o
sistema linguístico e o sistema artístico, mas é preciso em
seguida ligar esta última série a todas as outras séries que
entram em interacção com ela (séries literárias - o género, as
suas leis, o seu estilo; os outros géneros da mesma época; de
outras épocas -, séries extra-literárias - artísticas (outras
artes) e extra-artísticas (mito, religião, outros discursos
sócio-económico-políticos da época ou de outras épocas, do
ambiente imediato ou mais distante).»115
São três os poetas que me parece poderem integrar uma
série em que este jogo pós-modernista se entrelaça com o
universo próprio de cada um deles: Jorge de Sena, Ruy Belo e
Manuel Alegre.
114
Justine Cassell e David McNeill, «Gesture and The Poetics of Prose», Poetics Today, Vo. 12
Number 3, Fall 1991, Duke University Press.
115
«Sémiotique littéraire et complexité», in «Théorie Littérature Enseignement pour Iouri
Lotman », automne 1995Presses Universitaires de Vincennes, Université de Paris VIII, 1995.
116
Do livro «Metamorfoses» (1963), in «Poesia II», Círculo de Poesia, Moraes Editores,
Lisboa, 1978.
espaço dramático. Temos, aqui, o primeiro problema: que teatro
é este? Com efeito, esta passagem da voz do poema para uma
outra pessoa não é inédita - Pessoa fizera-o através dos
heterónimos; e, em particular, o anúncio do «supra-Camões»
feito por Pessoa faz com que este regresso a Camões, esta
recuperação da voz camoniana, seja uma forma de «superar» a
profecia pessoana. O drama encenado por Sena, então, tem uma
dupla vertente:
a que resulta dessa encenação, e da teatralidade do Poeta
que dirige o seu discurso aos contemporâneos;
e a que resulta do diálogo Sena-Pessoa, por interposto
Camões, no palco da contemporaneidade, em que o jogo
heteronímico pessoano se vê superado pelo regresso da Grande
Voz do poeta, com a sinceridade da invectiva dramática, por um
lado, e com a recolocação do Cânone no passado, como é normal,
e não num Futuro que rejeita esse passado, como o faz Pessoa na
profecia do supra-Camões.
O discurso de Camões apoia-se na dupla reiteração
hiperbólica, de conteúdo antitético:
117
Do livro «Toda a Terra» (1976), in «Obra Poética de Ruy Belo», Volume 2, Editorial
Presença, Lisboa, 1981.
identificação. Sombra última - e única - do ser se torna, por
isso, a própria linguagem, absorvendo numa sedução vampiresca o
ser do poeta que sobre ela se debruça:
«Tu sabes que dizer só não é para mim mais do que ser
embora por morfemas e fonemas mesmo me condene
porque dizer e ser são para mim a mesma coisa
Sou o rei do inexorável reino das palavras
palavras que nomeiam que destroem
palavras matadouras mais do que punhais»
118
in «30 Anos de Poesia», Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995.
por uma cicatriz interior, ressentida pelo leitor a partir do
aspecto fractal dessa junção de linguagens;
o da citação, que cria por sistema patamares de acesso ao
texto: em «Babilónia», o livro tem uma citação do «Poema
Babilónico da Criação» e outra da «Epopeia de Gilgamesh»; como
«Um barco para Ítaca»(1971) tem duas citações de Homero,
«Atlântico»(1981) citações de Guilherme IX Duque de Aquitânia e
VII Conde de Poitiers, de Jaufre Rudel, de Gérard de Nerval, de
Ezra Pound, de T. S. Eliot e de Jorge Luís Borges; além de
citações que surgem nos próprios poemas ou capítulos dos seus
livros. Ora, o que é uma citação: apropriação da voz do Outro,
incorporando uma parte do que ele diz no discurso próprio, a
citação constitui um modo de contextualizar o espaço em que o
dizer próprio se realiza e de legitimar esse dizer a partir de
uma tradição. Assim, cada livro - ou poema - vai referenciar o
espaço dialógico da sua génese;
o da intertextualidade, que é o mais complexo, dado que é
onde se verifica essa incorporação da alteridade (assumida na
colagem e na citação) na identidade, e a maturação da voz
própria do poeta a partir de um processo de aprendizagem que,
ainda aqui, a referência a Pound - il miglior fabbro - explica:
é que o Poeta, como o Mestre dos antigos ofícios, tem de passar
um processo de aprendizagem para se tornar, ele próprio, o
fabro, dominando a matéria verbal que, como se lê em
«Letras»(1974), é a matéria-prima da Obra. O intertexto é,
então, o modo como Alegre passa a ideia de um progresso
histórico, através da incorporação pela sujeito dos grandes
gestos rituais da História como é o caso, em «Babilónia», da
descida ao Inferno de Dante, das referências apocalípticas, das
citações da «Divina Comédia», desde o título «In mezzo del
camin» até à indicação concreta de Dante e Virgílio em «O
sermão da montanha», passando pela absorção do próprio texto
dantesco:
A selva é escura e estás sozinho
com tua guitarra e tua memória
no meio do caminho.
O campo e a cidade
O mundo da poesia
Podemos separar nos aspectos da poesia e da ficção o
panorama da criação literária portuguesa actual. São percursos
diferentes, e que correspondem a um olhar também ele
diferenciado sobre o mundo.
A poesia, desde Fernando Pessoa, que fez a grande
revolução da linguagem que só com o tempo foi possível ir
descobrindo na sua totalidade, desdobrou-se em três grandes
linhas:
a primeira, que nasce com a geração que, em Coimbra,
fundou a revista «Presença» em 1926, põe a tónica no homem e
na expressão da sua inquietação perante um mundo em que o ser
corre o risco da dissolução. José Régio (1901-1969) é o autor
que enfrenta em primeiro lugar o desafio da solidão, vivendo
de forma trágica a recusa de seguir os caminhos que a
sociedade lhe pretende impor. Miguel Torga (1907-1995), pelo
contrário, empenha-se num regresso às raízes da mãe Terra,
construindo por dentro do seu agnosticismo enérgico uma
mitologia quase pagã, no seu primitivismo, dando alma ao
cenário grandioso do Douro na sua componente interior, quando
o rio serpenteia por entre as montanhas em que se colhem, nas
condições duras das encostas quase a pique, as uvas que
produzem o vinho do Porto;
a segunda, recuperando a herança clássica, vai encontrar
em Camões, o grande poeta lírico do século XVI, um dos seus
arquétipos. Jorge de Sena(1919-1978), Sophia de Mello Breyner
Andresen (n. 1919), Eugénio de Andrade (n. 1923), transportam
essa busca de um equilíbrio na estrutura do poema que serve
para traduzir os seus universos próprios: o exílio em Sena,
que viveu parte da sua vida no Brasil e nos Estados Unidos da
América, condenado a transportar pelo mundo a sua condição de
português universal; a nostalgia clássica em Sophia, que
procura na luz e no mar as fontes que lhe permitam beber a
inspiração que alimentou os antigos gregos; o amor nocturno,
mas iluminado pela proporção do ser, em Eugénio, atento às
pequenas coisas da natureza e da vida;
uma terceira linha inclui a preocupação ética, no sentido
mais aberto da expressão, quer na dimensão política que nasce
com poetas ligados ao neo-realismo, de que se pode referir um
Carlos de Oliveira (1921-1981), atento aos sinais do inferno
na terra oprimida e estéril dos anos da Ditadura de Salazar;
se prolonga nos surrealistas, em que importa referir Mário
Cesariny de Vasconcelos (n. 1923), que propõe o «amor louco»,
na linha de Breton, para fazer a revolução impossível no seu
sentido próprio, e Alexandre O’Neill (1924-1986), crítico
impiedoso do podre «reino da Dinamarca» português, que cada um
de nós teria de transportar como seu remorso pessoal; e tem um
prolongamento nos «vencidos do Catolicismo», como se auto-
designava Ruy Belo (1933-1978), procurando um contacto mais
directo com Deus, através da palavra humana do poema, do que
aquele que era permitido pelo discurso convencional e
hipócrita da religião oficial.
Há aqui, sem dúvida, uma relação com o mundo que tem por
trás uma concepção filosófica do homem. Essa filosofia não
precisa de ter uma expressão doutrinária, bastando o poema
para dar corpo a esse pensamento que exige, para ser expresso,
de passar pela relação sensual e subjectiva que só a
experiência poética permite. Não será um acaso que aquilo que
é designado, já no nosso século, como uma «filosofia
portuguesa» parta de um conceito como o de saudade, que o
romântico Almeida Garrett (1799-1854), no poema «Camões»
(1825), definira como «gosto amargo de infelizes, /Delicioso
pungir de acerbo espinho», para o apresentar como marca de
identificação do «ser português». É certo que Teixeira de
Pascoaes foi o fundador do «saudosismo»; e a sua vida, com
efeito, é iluminada por essa «luz divina da saudade» que, para
ele, estava na génese do «génio português na sua expressão
poética».
Pessoa, que também comungava da mesma necessidade de dar
forma conceptual ao seu pensamento, vai exacerbar o paradoxo
de Pascoaes que confundia no mesmo plano a obscuridade do
sentimento passadista e a luz do poema. Assim, opondo-se à
nostalgia de um passado sem regresso possível, Fernando Pessoa
fala de «saudade do futuro» para, numa reformulação do mito do
eterno retorno, pôr a esperança do renascimento português num
Quinto Império que ele entrevia, de forma messiânica, como
algo de puramente espiritual.
Estas concepções, sem dúvida datadas pela época - esta
nossa primeira metade do século, de grandes convulsões
políticas e ideológicas, desde a queda da Monarquia em 1910
até ao golpe militar de 1926 que abre caminho à Ditadura de
Salazar - não estão, porém, tão afastadas como isso de uma
tendência portuguesa para desvalorizar o presente em função
de uma Idade de Ouro definitivamente perdida, ou de uma
esperança num futuro tão grandioso que se sabe irrealizável.
Podemos encontrar a primeira atitude em autores que viveram
numa dessas épocas douradas da nossa História, como foi o
século XVI da Expansão e dos Descobrimentos, como Sá de
Miranda que se retira para a sua quinta do Minho, desgostoso
com a vontade de enriquecimento fácil dos seus contemporâneos;
e a segunda vemo-la, por exemplo, numa das gerações mais
fecundas da nossa cultura, como foi a de 1870, que escolheu
para se designar a expressão «os vencidos da vida», e que teve
o seu herói (ou «santo», como escreveu Eça de Queiroz), no
poeta e, esse sim, filósofo, que foi Antero de Quental (1842-
1891), que termina a sua vida com um suicídio na sua ilha dos
Açores, sentado num banco, num jardim público, sobre o qual
estava escrita a palavra «Esperança».
Dois fins de século
No labirinto da modernidade
«O amor,
Tempestade onde só se entra de guarda-chuva aberto.»
(p.36)
(p.50)
121
Entre o, talvez mais fiel, «Uma árvore subiu. Pura ascensão!/Oh, Orfeu canta!Árvore alta no
ouvido» de Paulo Quintela e o, sem dúvida transgressivo do original, «E uma árvore irrompeu.
Ó ascese pura!/Ó árvore no ouvido!Orfeu numa canção!» de Graça Moura (traduções do 1º
soneto a Orfeu de Rilke), claro que é sem dúvida o segundo que tem uma taonalidade mais
rilkeana!
uma reelaboração dessa primeira versão - e, neste sentido,
afastando-se cada vez mais do poema original, dado que não há
controle por parte da maior parte dos presentes da língua
original?
Por outro lado, a presença do autor nem sempre é uma
ajuda, dado que se verificam dois fenómenos:
o poeta que quer absolutamente manter as características
do poema original (ritmo, rima, sentidos - que podem não estar
de acordo com o espírito da língua de chegada), conduzindo a
impasses ou situações difíceis;
o poeta que se vê obrigado a explicar certas imagens ou
construções obscuras e que, ao fazê-lo, entra num processo de
(auto)interpretação que pode não conduzir necessariamente à
solução mais correcta.
É claro que é sempre um desafio vencer estas dificuldades,
além de que a discussão colectiva pode estimular o aparecimento
de saídas que representam achados literários no poema traduzido
- e, neste sentido, ele é de facto uma obra original. No
entanto, a necessidade do consenso pode, por outro lado,
favorecer o aparecimento de uma língua plana, impessoal, em que
é impossível esse toque de «génio» que se pode dar com a
tradução solitária, no confronto de duas subjectividades - a do
autor e a do tradutor - susceptível de desencadear um processo
que, na tradução colectiva, só dificilmente se verifica.122
Em poesia, por isso, não faz grande sentido a questão do
traduttore/tradittore: a tradução, para ser fiel , implica
necessariamente a traição. Também não é necessário um domínio
absoluto da teoria da tradução: há um grau de intuicionismo, ou
empirismo, no trabalho de traduzir poesia, que tem a ver com a
consciência linguística do tradutor. Um poema inglês do século
XVIII não tem uma tradução definitiva numa excelente tradução
122
Claro que certas soluções só aparecem depois do seminário concluído. No poema «O
elefante» do poeta holandês Herman de Koninck, em que surge a comparação entre a cara do
elefante e o sexo masculino, chegara-se à forma: «Como é que ficarias/Se te pusessem o pirilau
no nariz?» A solução que irei adoptar é outra: «O que é que achas/se tivesses a gaita no nariz?»
do século XIX ou de princípios deste século; de facto, essas
traduções, por boas que sejam para a época, obedecem a um
estado da língua e do conceito daquilo que é a linguagem
poética que, no presente, não corresponde ao sentimento actual.
Assim, esse poema, que na tradução segue regras métricas e
rimas análogas ao original, será melhor traduzido hoje se as
desrespeitar, indo ao encontro de uma «propiciação» mais
123
consonante com a poesia moderna.
Poderá então concordar-se com a afirmação de que a cada
época o seu Homero no sentido em que, na tradução literária,
não existe o fenómeno que se verificou com a tradução da
«Bíblia», fixa de uma vez por todas nos seus cânones grego e
latino. Este facto deve-se ao jogo dialógico que a tradução
constitui. O texto original vai inscrever o seu sentido num
horizonte que é o da cultura e da experiência linguística do
tradutor - sendo este o solo que vai determinar o progresso da
tradução. Não estamos perante um processo passivo, em que basta
aplicar uma grelha lexical para transpor uma língua para outra.
cada palavra, expressão, verso ou estrofe, vão desencadear
reacções que estimulam respostas diferentes, conforme a
subjectividade do sujeito/tradutor, no sentido de encontrar
soluções que, para um mesmo texto original, serão bem
diferentes consoante as épocas e o tipo de tradutores.
Há, no entanto, limites para esse processo de tradução -
que é, finalmente, uma transformação/recriação do texto
original. Esses limites são colocados pelo arquétipo que, em
relação ao texto traduzido, é o texto original: é necessário
que naquele subsistam, enquanto objecto, as marcas sémio-
formais deste. A produção de um sentido, que é desencadeada por
123
Veja-se a diferença na tradução de dois versos de Donne: «Come, Madam, come, all rest my
powers defie,/Until I labour, I in labour lie.»: na tradução de Yves Denis, temos: «Madame,
allons! la fièvre du labeur m'empoigne,/Et je meurs de besoin si je ne m'embesoigne!»; na de
Auguste Morel (tradutor francês do «Ulisses» de Joyce) temos: «Ça Madame venez, tout repos
mes ardeurs défient;/Jusqu'à ce que travaille, en travail je demeure.» (in A. Berman, «Pour une
critique des traductions: John Donne», Gallimard, 1995).
qualquer texto, no caso de uma tradução deve reconduzir a esse
arquétipo - e não ir no sentido de uma obra original na própria
língua. Isto é, enquanto que o sentido da leitura do poema
original é progressivo, o da leitura de uma tradução é
retroactivo; e impede-nos de saborear esse texto com a mesma
plenitude com que se lê um original - o que se deve à
consciência de uma realidade opaca, que é a língua do tradutor,
que se interpõe entre essa plenitude linguagem-conteúdo do
original e a forma traduzida, que se poderá descrever como
linguagem- /língua do tradutor/ - conteúdo. Este facto tem uma
outra consequência no acentuar da importância da dimensão
semântica sobre o plano significante no texto traduzido: uma
tradução de Mallarmé não pode, por exemplo, transportar a
«obscuridade» do original, sendo obrigada a resolver essa
obscuridade em soluções semanticamente perceptíveis sob pena de
o resultado se transformar numa algaraviada incompreensível124.
Qual, finalmente, a relação entre os dois textos, original
e tradução? Partindo do princípio de que a tradução tem de
funcionar com autonomia igual à que tem o original; e que,
apesar do reenvio para esse original, todos os processos
significantes e semânticos do original têm de estar presentes,
com maior ou menor incidência do que no original, no texto
traduzido, julgo que é o conceito de homologia, formulado por
Jakobson, que pode descrever o fenómeno com maior rigor
aproximativo125. E assim a tradução deverá ter como objectivo a
criação de uma realidade textual homóloga de um texto existente
noutra língua, quer a nível de características do objecto quer
a nível de efeitos produzidos.
124
Assim, o «Ses purs ongles très haut dédiant leur onyx,/L'Angoisse, ce minuit, soutient,
lampadophore» de Mallarmé dá o ainda obscuro «El de sus puras uñas ónix, alto en ofrenda,/La
Angustia, es medianoche, levanta, lampadóforo» em Octavio Paz e o mais explícito « «Puras
unhas no alto ar dedicando seus ônix,/ A Angústia, sol nadir, sustém, lampadifária» de Augusto
de Campos.
125
«Cf. Itamar Even Zohar, «Polysystem studies», in «Poetics today», Vol. 11, Number 1,
Spring 1990, capítulo «Translation and Transfer».
JOGOS DE TRADUÇÃO
126
Paul Gallimard, «John Keats, Poèmes et poésies», Poésie/Gallimard, Parios, 1996.
127
Fernando Guimarães, «Poesia romântica inglesa (Byron, Shelley, Keats)», Inova, Porto,
1977.
música que o poema exige: através da harmonia vocal, no
francês, e consonântica, no português.
Claro que este caso é demasiado bom para ser sempre
assim. O resultado na língua de chegada , com efeito, é tão
poético como o original, o que nem sempre será o caso. Mas é
este, também, o fascínio da tradução de poesia, que obriga a
uma descoberta da própria língua, e das suas possibilidades
semânticas e musicais, por parte do tradutor. É isto,
precisamente, o que não pode acontecer quando a tradução é
feita em segunda mão. Aí, com efeito, falta o elemento central
de referência que é o jogo fónico do original. A tradução é
uma mera transposição de conteúdos, o que esvazia totalmente
um dos aspectos da escrita poética; e qualquer tentativa para
encontrar uma forma de valorizar musicalmente o poema na
língua de chegada será, forçosamente, não só arbitrária como
forçada, dada que falta essa referência original que, mal ou
bem, no caso da tradução directa, será sempre um elemento
reflexivo e reflector dos efeitos da tradução.
SOBRE TRADUÇÃO POÉTICA
129
Júlio Pomar, no entanto, chama a atenção para um segundo significado do termo: o do
pintor que imita mármore ou madeira. Embora muito elaborada, não deixa de ser interessante
esta associação, talvez inconsciente, de poesia e pintura.
A questão da fidelidade, assim, está muito longe de ficar
resolvida com estes levantamentos comparativos. De facto, qual
é o Edgar Poe mais próximo do original: o romântico de Assis,
ou o simbolista de Pessoa? É certo que, hoje, uma nova
tradução de «O Corvo» já terá de divergir fortemente de
qualquer destas. De facto, não é de crer que se possam manter
os mesmos critérios de tradução, inalterados, mesmo em relação
ao mesmo poeta e ao mesmo poema. Qualquer nova tradução
implica, necessariamente, uma nova leitura; e isso reflectir-
se-á, sem dúvida, no texto traduzido, que corresponderá a um
novo estado da situação dessa leitura. Assim, a tradução pode
integrar-se num capítulo da recepção literária de um autor; e
a escolha de certos critérios, e não outros, para fazer passar
um verso para outra língua tem por trás de si todo uma
evolução dos ecos interiores provocados por esse verso em quem
lê, que projectam a subjectividade que tonaliza o horizonte
dessa recepção.
Se, na prosa, a escolha dos autores se deve, em geral, a
factores de ordem mais económica do que cultural - procura
traduzir-se o best-seller, o livro mais procurado pelo público
em função de um gosto dominante - e se, neste caso, o que
importa é dar o acesso pela porta mais fácil, que é a de uma
legibilidade correcta do texto, ao leitor, já na poesia isto
não funciona do mesmo modo. Com efeito, as escolhas não são
feitas tanto em função dessa procura, como se opções que têm a
ver com factores mais ou menos aleatórios. Assim, a tradução
de Seamus Heaney para português deu-se devido à escolha deste
poeta para prémio Nobel. Noutros casos, em que o tradutor
também é poeta, essa escolha fica a dever-se à sua preferência
por certos poetas, como sucede com Manuel Gusmão e Francis
Ponge. Circunstâncias particulares, como os seminários de
tradução em Mateus, conduzem à tradução de línguas «exóticas»
no nosso contexto, como o turco, o húngaro ou o romeno. Assim,
os caminhos que desembocam na tradução poética não obedecem,
em princípio, a uma lógica tão linear como a da ficção.
Mas isto sucede, também, devido ao preconceito que existe
de que a poesia não é fácil de traduzir, parta não dizer que é
intraduzível. Tal preconceito resulta da especificidade do
texto poético, em que o significante - o corpo fónico do signo
- tem uma função significativa na enunciação do poema. Assim,
ao ouvir o texto poético, não é apenas o significado que nos
transporta para o sentido do seu universo. A própria música do
verso, e o jogo de sonoridades da língua, podem ajudar a criar
sugestões sensoriais ou semânticas, como a tristeza ou imagens
de cor, de acordo com a ideia de Mallarmé para quem um seu
poema, o «soneto em ix» se assemelha a uma água-forte por ser
muito «branco e preto».
Como, então, se poderá traduzir um jogo deste tipo?
Vejamos o dístico
(Car le maître est allé puiser des pleurs au Styx
Avec ce seul objet dont le Néant s’honore.)»
A musicalidade complica-se com a ambiguidade s’honore e
sonore, intraduzível tal qual no português. Octavio Paz dá, a
seguinte versão, em castelhano:
«(El Maestro se há ido, llanto en la Estigia capta
Con ese solo objeto nobleza de la Nada.)»
A opção é a de criar uma rima toante (capta e nada),
totalmente oposta ao contraste do francês entre Styx e
s’honore.
Muito diversa foi a proposta de Augusto de Campos:
«Que o Mestre foi haurir outros prantos no Styx
Com esse único ser de que o Nada se honora).»
Mantém-se, com um critério discutível, a sonoridade do
original, idêntica no caso de Styx e dando origem a um
galicismo no caso de honorar. Assim, o que em francês tem uma
tonalidade harmónica, apesar do hermetismo da expressão, vai
adquirir em português um tom precioso, mais próprio do barroco
do que da estética simbolista. Registe-se, ainda, a diferença
semântica que existe entre o seul objet, literalmente
traduzido por Paz como solo objeto, e o único ser de Campos,
que resulta já de uma leitura interpretativa, conduzindo a
tradução para longe do original.
Trata-se aqui, então, de uma recriação, como é bem
expresso pelo próprio tradutor. Isto é possível - dentro de
certos limites - no contexto da poesia, e em função dessa
característica bem específica. A fidelidade ao original pode,
então, conduzir aos mais estranhos desvios, como sucede com a
primeira tradução de «Une Saison en enfer» feita por Mário
Cesariny de Vasconcelos130. Entre muitas outras escolhas
possíveis, capazes de darem um trabalho de fundo, veja-se
apenas o primeiro dístico do poema:
«Ô saisons, ô chateaux!
Quelle âme est sans défauts?
Na tradução de Cesariny temos:
«Esta cerveja! Essa rua!
A miséria que isto sua!»
Para explicar a sua tradução, Cesariny diz, em nota:
«Alguns exegetas viram nos termos «saison» e
«château» um sentido metafísico e esotérico. «Saison» é a
cerveja à moda de Charleville, «château» alude a uma rua
especialmente hospitaleira. O poema assume assim,
imprevistamente, um significado mais directo: «Ó cerveja, ó
meretrizes/ qual o coração sem mácula?»
Trata-se, então, de reconstituir o contexto biográfico em
que o poema surge e de o «re-escrever» nesse preciso contexto.
De facto, isto vai eliminar o sentido metafórico da imagem
poética, que foge a esse contexto e liberta o poema da sua
contingência pessoal. É evidente que a imagem de Rimbaud pode
perfeitamente existir - e existe! - sem que seja necessário o
130
Jean-Arthur Rimbaud, «Uma época no inferno», Versão portuguesa, prefácio e notas de
Mário Cesariny de Vasconcelos, Portugália editora, Lisboa, 1960.
prévio conhecimento dessa circunstância que um investigador
reconheceu; e as «saisons» e os «châteaux», numa tradução
literal, desembocarem em «estações» e «castelos», sem que isso
implique qualquer incorrecção ou infidelidade ao próprio
poema.
Sucede, no entanto, que nem sempre é possível fazer
acompanhar uma tradução de uma investigação deste tipo. É
óbvio que, para se fazer uma tradução há a necessidade de se
fazer acompanhar por instrumentos de trabalho fundamentais:
dicionários, dos mais comuns aos mais especializados,
enciclopédias, histórias da literatura ou obras críticas sobre
o autor, etc.. Isto no caso de autores que sejam mais
distantes da nossa época ou da nossa sociedade, e em relação a
cujas obras se coloquem problemas de interpretação. Com
efeito, as palavras mudam de sentido em função dos contextos -
e para se atribuir o sentido correcto é indispensável dispor
desse conhecimento, sem o que se incorre facilmente no erro ou
no anacronismo.
O que a tradução nos revela, antes de mais, é a
fragilidade da permanência do homem, na sua envolvência
quotidiana ou no seu presente. Com efeito, há toda uma série
de remissões - sobretudo as de carácter subjectivo - que
desaparecem com o seu autor. Algumas, podemos conhecê-las: é o
caso das alusões, nas «Folhas Caídas» de Garrett, a Rosa
Montufar e à Viscondessa da Luz, dadas pelas palavras rosa e
luz. Poderá o conhecimento dessa circunstância ser importante
numa tradução? Se, nalguns poemas, isso poderá ser
indiferente, noutros talvez seja importante guardar a
conotação da imagem com o seu modelo real - e envolver a forma
traduzida num ambiente que possa transmitir esse sensualismo
que o original transporta, sob pena de se perder, de facto, o
que é fundamental nessa obra lírica, ligado ao envolvimento
amoroso do poeta. Importará evitar, sobretudo, a referência
clássica que a imagem da rosa evoca, dado que isso limitará o
poema a uma construção tópica, artificial, quando no caso de
Garrett se verifica ter sido o poema feito com o sofrimento e
a paixão.
Deverá, então, uma tradução envolver o tradutor -
afectivamente - no seu trabalho? Não necessariamente. Isto é,
a distância em relação ao texto existirá sempre - e, acima de
tudo, a consciência de que existem duas línguas em cena, cada
uma das quais impondo as suas regras à arquitectura do mundo
descrito no texto. Mas também é um facto que, no processo de
tradução, surge um fenómeno de «apropriação» que acaba por
produzir não tanto uma terceira língua, como querem alguns
teóricos, como uma nova escrita (re-escrita) do texto. E é
isto que explica que, enquanto objecto traduzido, um texto
literário seja sempre outro do original, ou seja, dois
tradutores só muito dificilmente chegarão ao mesmo resultado,
mesmo com uma frase tão simples (aparentemente) como «O poeta
é um fingidor». De facto, o que o trabalho de comparar as
traduções nos permite verificar, é afinal a impossibilidade da
tradução literal: a que nos daria a verdade absoluta do
original. Mesmo essa tradução literal, a maior parte das
vezes, é já uma versão, alterando o original, pelo simples
facto de que cada língua, tendo uma individualidade própria,
obriga a que a passagem tradutória altere e transforme as
circunstâncias do que foi escrito de uma determinada maneira.