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Pelo canto do olho, Esquinas: poesia gráfica e marginalidade

Marcus V. Matias*1

Resumo:

Este artigo propõe uma análise do romance gráfico Esquinas (2016), de Robson
Cavalcante, cuja produção independente e sua representação estética caracterizam uma
obra segundo as concepções de literatura marginal. Para conceituar literatura marginal
trago como referência teórica as concepções de Sérgius Gonzaga (1981) e Rejane
Oliveira (2011). Trago também uma abordagem conceitual sobre a produção de
narrativas gráficas de vertente poético-filosófica, a qual define bem a estética de
Esquinas, pela perspectiva nietzschiana. Pretende-se, com este artigo, provocar uma
discussão sobre o que vem a ser a produção literária marginal e suas principais
características na contemporaneidade.

Palavras-chave: romance gráfico; literatura marginal; narrativas gráficas poético-


filosóficas

Esquinas não são apenas locais geográficos, são também palcos para
espectadores anônimos, voyeurs. Lugares de trânsito, onde as mais diversas histórias se
entrelaçam e se bifurcam seguindo destinos aleatórios. Também circundam as esquinas
os rumos em definição, caminhos partidos sob olhares de mendigos, andarilhos
perdidos, lúmpens e cachorros vadios. Leitores de enredos alheios, os habitantes das
esquinas observam o que Will Eisner chama de “o desfile da vida”.
Eisner, aliás, em seu romance gráfico intitulado New York (1986), ilustra esses
palcos urbanos onde cenas do quotidiano são o principal enredo, mas ele o faz pela
perspectiva das escadarias típicas de alguns dos bairros nova-iorquinos: “Arquibancadas
em um estádio são as escadarias de um cortiço, uma ponte levadiça, um bem comum,
uma plataforma com assentos muito seguros na arena da cidade, da qual assiste-se ao
desfile da vida.” (EISNER, 1986, p. 17)2
No lugar de escadarias nova-iorquinas, entretanto, este artigo propõe uma
análise das histórias mimetizadas pelo traço do poeta Robson Cavalcante sobre o que
acontece nas esquinas do município de Teotônio Vilela (situado na Zona da Mata de
Alagoas). Esquinas é justamente o título do romance gráfico de Cavalcante, o qual,

1
É doutor pela Universidade Federal de Alagoas, onde leciona Literatura em Língua Inglesa.
2
Bleachers in a stadium are the tenement stoops, a drawbridge, a common, a stage let too safe seats in the
arena of the city from which to watch the parade of life.
assim como Eisner, destaca enredos e dilemas existenciais e morais encenados na arena
da vida. Eis o foco de sua narrativa: as sutilezas da vida quotidiana.
O título desta obra, intrigante e curioso, já sugere a relação convergente entre
esse local de destinos cruzados e as várias temáticas que transitam em seu entorno. Suas
esquinas não são retas dobradas apenas pelas inconstâncias da geografia urbana, mas
também por tramas do quotidiano perpassadas por questionamentos sobre o verdadeiro
sentido da vida.
Talvez essa abordagem mais existencial e as temáticas de um realismo pungente
possam definir os princípios da obra de Cavalcante, ou, para além dessa obra, o próprio
conceito de romance gráfico, se compararmos estas produções de base literária às
comumente chamadas “histórias em quadrinhos”. Esquinas, em particular, traz sete
histórias em formato de contos em arte sequencial sobre o quotidiano periférico de um
município interiorano. Em cada uma delas é possível perceber como o conceito de
esquina pode ser metaforizado em diversos sentidos: escolha de um novo rumo;
caminho interrompido; transitoriedade; inconstância; fronteira; desvio (só para citar
algumas). Tais leituras que podemos fazer de Esquinas sugerem o olhar sobre algo que
de tão comum é estranho, ou melhor, nos mostra o estranhamento do comum.
As histórias nesse romance gráfico também nos provocam ao se apresentarem no
formato de arte sequencial: modo narrativo que por muito tempo foi considerado pela
crítica tradicional como inferior ou, na melhor das hipóteses, marginal. Nesse sentido,
se no formato ainda há o preconceito (mesmo que cada vez menor) sobre o seu meio de
produção narrativa, o que dizer quando o enredo retrata a vida quotidiana de uma
pequena cidade do interior nordestino?
O termo marginal parece ganhar mais relevo nessa obra quando observamos o
seu modo de distribuição: até o momento da escrita deste artigo, Esquinas ainda não foi
oficialmente publicada, mas distribuída em cópias artesanais para leitores e leitoras que
não reconhecem tal preconceito em relação ao gênero. Lembrando a “geração
mimeógrafo” ou de “fanzines”, a qual caracterizou a literatura marginal entre as décadas
de 70 e 80, a abordagem analítica que proponho de Esquinas se faz, portanto, pela
perspectiva da literatura poética marginal.
Embora “literatura marginal” seja um termo de definições complexas, já que traz
dois conceitos voláteis (literatura e marginal), há na crítica literária algumas tentativas
de se chegar a uma definição aproximada do que vem a ser essa produção literária que
parece correr ao largo das chamadas literaturas canônicas e oficiais. Sérgius Gonzaga,
por exemplo, em “Literatura marginal” (1981), faz um apanhado sócio histórico entre as
décadas de 60 e 80 para definir o que vem a ser esse gênero no Brasil.
Na busca por uma arqueologia do marginal na literatura brasileira, Gonzaga
acaba por definir três vertentes conceituais para categorizar tais produções: 1- a criação
editorial artisticamente diferenciada daquela das grandes editoras; 2- tipo de linguagem
apresentada nos textos, sendo esta mais próxima da realidade do dia a dia; 3- escolha de
protagonistas, cenários e situações presentes nas obras, que, preferencialmente,
representem os excluídos ou vítimas de preconceitos sociais (mulheres, velhos, negros,
gays e/ou pobres).
Tendo por base as definições de Gonzaga percebo que em Esquinas, pelo menos,
duas delas são mais marcantes: a linguagem; e a escolha dos protagonistas, cenário e
situações apresentadas. A primeira característica, a editoração diferenciada, também tem
sua particularidade na obra de Cavalcante, embora não se destaque tanto quanto as
outras.
Na primeira história de Esquinas, a qual chamarei de história número 1 3, um
homem (aparentemente um tipo lúmpen conversando com seu amigo) é tomado por uma
reflexão sobre dilemas existenciais ao observar que todo dia um velho passa pela
esquina carregando sacos de pão, sempre na mesma hora. Análogo ao movimento
divergente de ruas que se cruzam, o debate entre os dois amigos que observam o velho
é, ao mesmo tempo, perpassado por devaneios filosóficos e expressões mundanas e
interjeições coloquiais.
A linguagem utilizada pelos personagens de Cavalcante é tal qual se articula no
dia a dia de seus falantes, sem a interferência estilística, o pudor ou a preocupação do
autor em utilizar o vernáculo oficial e polido. Em vez disso, os diálogos simples e
diretos são construídos por expressões e vocabulários regionais, assim como trejeitos
típicos dos moradores daquela região, como podemos ver na sequência abaixo:
Imagem 1: fragmento de Esquinas – história 1

3
Nenhuma história tem título.
Fonte: Cavalcante, 2016.

A filiação de Esquinas com a literatura marginal, através da linguagem, é


marcada pelo uso de palavrões e de expressões como “setecranco”, dessacralizando o
lugar literário como sendo aquele da linguagem polida e contribuindo com o efeito de
realidade na obra, o qual aproxima a ficção da experiência histórica e sensorial do seu
público leitor.
Além da inserção do mundano nos diálogos entre as personagens, o cenário da
história também contribui para reafirmar o caráter de marginalidade na narrativa. Nesse
romance gráfico as esquinas se localizam em uma região periférica, realisticamente
representada pelo traço artístico de Cavalcante, o qual nos mostra balcões de
mercadinhos de bairro, casas humildes e terrenos baldios. Os detalhes das casas e as
panorâmicas das ruas conseguem provocar uma estranha sensação de familiaridade, nos
levando quase que instantaneamente para dentro da história, ao mesmo tempo que traz a
história para dentro de nós, confundindo realidade com ficção.
Não menos marginal, porém a menos expressiva, a primeira característica que
define a literatura marginal (a da editoração) é a que menos se destaca em Esquinas.
Apesar de o acesso a obra ser por meio de uma produção artesanal e seu traço ser de
grande personalidade, o que compõe um diferencial editorial das produções de grandes
editoras, sua edição ainda traz uma diagramação tradicional, com muitas sequências de
quadros fechados, por exemplo.
No entanto, a falta de numerações nas páginas e de títulos antes de cada história,
além de alguns desvios no formato tradicional de quadrinhos, os quais podem ser
observados na figura abaixo, garantem seu vínculo com a produção marginal:
Imagem 2: fragmento de Esquinas – história 1
Fonte: Cavalcante, 2016.

O espaço vazado na parte superior dos balões do primeiro e do último


quadrinho, sugerindo o rompimento nos limites do enquadramento, pode ser
interpretado como uma forma de transgressão com tradicional, além de indicar uma
divagação ou devaneio do personagem ao elaborar suas inquietações, contrastando com
uma forma mais objetiva e “fechada” de pensar.
A ausência dos limites nos quadros que emolduram a primeira e a terceira cena é
entendida nesta análise como a expressão de um pensamento formulado de forma livre,
por meio de uma espécie de divagação filosófico-existencial-mundana. Esses diálogos
se contrastam com o quadrinho do meio, o qual é totalmente fechado e ocupado por um
balão contendo uma expressão fática, caracterizando uma necessidade de confirmação
objetiva, uma função mais afirmativa em vez de uma elucubração do pensamento.
Além da utilização de recursos gráficos e diálogos simples, através dos quais
Cavalvante faz emergir um tema complexo como o sentido da vida, é interessante notar
também os elementos signicos contidos nessa história. O pão trazido pelo velho é um
alimento que remete a tempos remotos e, portanto, à ideia de perenidade em oposição ao
tempo de vida do velho. Outro elemento chave é o lugar onde se passa a conversa: uma
esquina. Isso também sugere a interrupção ou desvio de um fluxo, de uma constante,
nesse caso, a vida, por conta do destino ou da fatalidade, uma vez que uma esquina é o
encontro, o cruzamento ou interrupção de uma via com outra. É possível notar que além
dos termos linguísticos, o traço artístico também contribui efetivamente com o realismo
dessa história, estabelecendo uma relação dialógica e complementar na produção de
sentido entre imagem e palavra, em vez de uma simples tradução de uma por outra.
A história 3 é um bom exemplo de como tal plasticidade artística pode provocar
no público leitor a sensação de realidade. Ao mesmo tempo em que as imagens nos
trazem para dentro da história, a completa ausência de diálogos nos leva para dentro dos
pensamentos das personagens, como uma tentativa de adivinhá-los. Essa história é sobre
um casal, de idade já avançada, que está sentado à porta de casa: ele a fumar e a
contemplar “a vida” e ela a tricotar.
Imagem 3: fragmento de Esquinas – história 3

Fonte: Cavalcante, 2016.

Em um dado momento ele parece ser tomado por velhas lembranças, as quais o
fazem reavivar o sentimento de carinho e o amor que unira os dois, como se estivesse
chegado ao fim de uma longa reflexão sobre o que fizera de sua vida até então e como
os anos passados conseguiram amenizar seu amor. A tomada de consciência sobre como
aquele convívio entre ambos estava se tornando letárgico é representada por expressões
do homem e por meio de uma sequência dinâmica de imagens fragmentadas que muito
lembram a estética cinematográfica (enquadramentos ágeis). A narrativa sobre o
afloramento da consciência de seu amor pela esposa segue ao longo de seis páginas e é
organizada de tal modo que nos leva da apresentação de duas pessoas pacatas ao clímax
do redescobrimento de uma forte emoção, apenas no transcorrer da exposição das
expressões de ambos:
Imagem 4: fragmento de Esquinas – história 3
Fonte: Cavalcante, 2016.

Apesar de não haver diálogos “explícitos”, as expressões, os olhares e as


sequências bem dinâmicas nos enquadramentos (ora nas expressões, ora nos cenários)
nos levam a imaginar quase que involuntariamente o que elas estão pensando. A relação
icônica entre imagem e texto, aliás, é trazida de forma mais sutil, quando a narrativa
visual é focada na mulher. Ela está usando uma linha para tecer, o que remete tanto à
mitológica Ariadne (a qual tecia a linha da vida) quanto à linha da vida na palma da
mão (metáfora para o tempo e à vida do casal). Há também a metáfora para o texto
como fruto de um processo de tessitura da palavra, as tramas do texto materializadas
simbolicamente na sua forma mais representativa.

Imagem 5: fragmento de Esquinas – história 3

Fonte: Cavalcante, 2016.


Imagem 6: fragmento de Esquinas – história 3

Fonte: Cavalcante, 2016.

A sensibilidade poética com que se faz o desfecho da narrativa parece evocar a


idéia de que somos os principais responsáveis pelas mudança e de transformação das
situações nas quais nos encontramos: quebrar o automatismo de uma dada realidade. Há
nessa história uma indicação de que é através da tomada de consciência e de uma
reflexão existencial (e, por que não, do pensamento crítico) que podemos sair de um
estado de letargia (emocional e/ou social), por meio de um processo no qual a memória
tem papel fundamental.

Imagem 7: fragmento de Esquinas – história 3

Fonte: Cavalcante, 2016.

Não por acaso, este tipo de abordagem poético-filosófica em arte sequencial


surge no Brasil na mesma época em que a literatura marginal alcança sua maturidade:
década de 1980. Autores/as como os/as artistas Flávio Calazans, Edgar Franco, Gazy
Andraus, Henry e Maria Jaepelt (apenas para citar alguns) representam uma geração
que, por conta do hermético espaço editorial, produziam suas próprias obras. No
entanto, é à Calazans que se atribui o reconhecimento de precursor da vertente filosófica
nesse gênero.
Assim como Esquinas, Calazans lança suas primeiras histórias no formato
fanzine e sob o título Barata, diferenciando-se por sua abordagem poética e também
filosófica. Segundo Elydio Santos, em seu artigo O que são histórias em quadrinhos
poético-filosóficas? Um olhar brasileiro (2009), “[...] por seu caráter autoral e não-
comercial, [as HQs] encontraram seu espaço mais adequado de publicação nos fanzines,
editados e publicados pelos próprios autores” (SANTOS, 2007, p. 75). Mas como se
apresenta esse gênero? O pesquisador, editor e desenhista, Henrique Magalhães, define
a abordagem poético-filosófica da seguinte maneira:
[...] O ponto comum desses autores é a produção de quadrinhos de caráter
muito pessoal, que poderemos considerar como sendo poéticos e filosóficos,
pois aludem às questões mais interiorizadas de cada um. [...] O texto divide
com a imagem a função da comunicação, tornando-se inseparáveis e
complementares. [...] E formam um gênero à parte, os “Quadrinhos
Poéticos”. Nele, o autor trabalha sua subjetividade, aguçando a percepção do
leitor e propondo novas formas de leitura. Uma leitura centrada na imagem
que eventualmente é complementada pelo texto, que por sua vez apresenta-se
repleto de subjetividade (2000, p. 17-18).

No caso de Esquinas, sua produção poético-filosófica pode ser percebida no


processo de elaboração reflexiva do pensamento, oriundo da inquietação e
questionamentos das personagens sobre sua própria realidade: há um contraste entre a
representação de situações comuns (do quotidiano) e a forma como elas são vistas pelas
personagens. Tal aproximação entre a ficção e as situações quotidianas tem como
resultado o sentimento de familiaridade causado pelo efeito de realidade. O que mais
atrai nesse realismo é justamente essa familiaridade cúmplice de situações tão banais,
nas quais poderíamos ser nós mesmos os atores ou atrizes principais.
A filiação ao gênero poético-marginal é observada, portanto, pela própria
abordagem temática, ao trazer as vozes e as situações do quotidiano de pessoas muitas
vezes esquecidas ou invisíveis nos grandes centros urbanos; pela linguagem livre de
rebuscamentos e permeada por expressões e trejeitos regionais; e pelo cenário periférico
e a escolha de personagens excluídas socialmente, como o malandro, o velho, ou um
estuprador. Todos esses elementos estão estreitamente associados às estratégias
narrativas de obras literárias que caracterizam as produções marginais entre as décadas
de 60 e 80. No caso desse romance gráfico, ainda há a contribuição de uma linguagem
híbrida, na qual imagem e palavra se unem na elaboração estética e sensorial do sentido.
Outra inserção da obra de Cavalcante na tradição literária marginal, observada
em cada conto de Esquinas, é a exposição do modo de vida, das relações de troca e das
negociações de poder em uma comunidade interiorana. As personagens comuns, os
cenários periféricos e as situações transcorridas nas ruas são representadas de forma tão
precisa, que a própria expressão plástica das personagens confirma sua relação com um
realismo poético. No entanto, em alguns casos, tal poesia é ofuscada por um realismo
também cru e pungente.
Os dilemas morais contidos na história 2, por exemplo, são revestidos por uma
situação e por negociações sociais (e de poder) típicos de uma região que ainda mantém
tradições do regionalismo: a vingança com as próprias mãos para preservar a honra é
um ato praticado e aceito pela comunidade local.
Em uma sequência dinâmica, a história 2 começa com um homem em fuga e
uma turba de outros homens o perseguindo. Quem lidera essa turba é o pai de uma
menina que foi estuprada pelo homem que foge. Com um facão em punho o pai
consegue ferir o fugitivo na perna e o imobiliza para depois castrá-lo em plena rua, no
meio de uma multidão que não só observa, como também aprova o ato:
Imagem 8: fragmento de Esquinas – história 2

Fonte: Cavalcante, 2016.

No meio das pessoas que assistem a consumação da vingança, há dois amigos


que registram tudo com um celular e que são os únicos a levantar dúvidas sobre o
caráter moral dessa violência. Em seus diálogos, o que acaba sendo questionado é a
relevância das atitudes de um indivíduo em detrimento das leis sociais. Há uma sutil
aceitação da quebra das normas de convívio, quando questões de honra e de dignidade
ganham relevância moral ao serem ameaçadas pelos instintos animalescos de um
indivíduo. Tal passagem pode ser lida como uma crítica a fragilidade no modo cívico e
nos bons costumes que regem uma sociedade e sua tentativa de manutenção da ordem.
Ocorre que a violência, em muitos casos, não tem um fim em si mesmo. Antes
disso, a violência aparece como uma resposta, uma série de reações sociais como uma
forma de comunicação ou uma linguagem, e, sendo assim, o que ela poderia estar
querendo nos dizer? É provável que nessa história em Esquinas, mais do que dar uma
mensagem de fundo moral sobre o estupro, o que aparece aqui é um questionamento
nietzschiano sobre nossa capacidade de conseguimos ser “humanos demasiadamente
humanos”: “Toda crença no valor e na dignidade da vida se baseia num pensar inexato;
[...] porque cada um quer e afirma somente a si mesmo” (NIETZSCHE, 2000, p. 39-40).
Essa segunda história em Esquinas traz uma reflexão crítica sobre o mais íntimo
do humano, um instinto que se inflama com a animosidade sexual e se máscara com a
moral social do cidadão civilizado. De um modo geral, a violência que é retratada nesse
interior de Alagoas é também aquela que pode ocorrer em qualquer região, mas a sua
mensagem é incômoda: vinda, principalmente, das margens urbanas, esta é uma
resposta às rejeições sociais sofridas por meio do preconceito, da invisibilidade e da
impossibilidade de se inserir na sociedade de consumo que os cerca e seduz.
A violência física, psicológica, étnica e/ou de gênero é um fenômeno que ocorre
em todas as camadas sociais e em todos os lugares. No entanto, há uma
espetacularização da violência quando ela ocorre em regiões marginalizadas (à margem
dos centros urbanos ou frequentada por marginais), como que justificando a necessidade
de separação geográfica em nome de uma espécie de higienização social.
Imagem 9: fragmento de Esquinas – história 2

Fonte: Cavalcante, 2016.

No romance gráfico de Cavalcante, a violência assume um papel diferente, mas


igualmente questionador: ela leva dois rapazes a uma discussão moral sobre a condição
humana e a justiça. Apesar da linguagem simples e direta, o efeito de seu conteúdo
parece nos provocar a sair da cômoda posição de espectador e, junto com os dois
amigos, nos questionarmos sobre o quão animalescos seríamos em semelhante situação;
qual seria nossa posição moral diante de uma justiça ausente para muitos? A provocação
vem de uma velha frase popular: “E se fosse com a sua filha?”.
Essa abordagem mais violenta do realismo remete a outra vertente da literatura
marginal, aquela produzida pela segunda geração de escritores marginais, a qual se
firma nos anos 2000 e que tem como principais expoentes autores de zonas periféricas
como Ferréz, Marcelino Freire, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato e André Snat’Anna.
Com esses autores, o foco narrativo passa a incidir com mais nitidez sobre a
marginalidade no modo de vida nas periferias, destacando a violência e o preconceito
sofridos por seus moradores. Estas narrativas são, portanto, produções marginais por
retratar seu quotidiano à margem dos grandes centros. Segundo Rejane de Oliveira,
Numa acepção estritamente artística, marginais são as produções que
afrontam o cânone, rompendo com as normas e os paradigmas estéticos
vigentes. [...] Sob esse ponto de vista, a história da literatura e da arte
consiste nessa dialética de posições que se alternam entre o centro e a
margem, o que envolve não apenas transformações de ordem estética, mas
também social e política. Urbanisticamente a periferia abarca as regiões
afastadas dos centros urbanos, em geral habitadas pela população de baixa
renda. Trata-se, portanto, da periferia como um espaço também social, um
lugar ocupado pelas “minorias”, onde vivem os marginais e os
marginalizados da sociedade. A periferia também se reveste de uma
conotação política, definida em oposição ao centro, tomado como modelo de
desenvolvimento, seja econômico, social ou cultural. [...]Assim, falar na
condição periférica de um país significa situá-lo na relação com um modelo
hegemônico, cuja matriz é, via de regra, europeia, responsável pelo
estabelecimento de padrões culturais e estéticos [...]. (OLIVEIRA, 2011,
p.35)

Com base nessas definições de Oliveira, sobre marginalidade e periferia como


lugares de resistência política e cultural, percebo em Esquinas um efeito semelhante:
dar voz a uma comunidade interiorana e visibilidade à sua cultura através de uma
narrativa realista e com base literária.
Nas histórias que se seguem, continuamos a perceber a constante presença
dessas provocações. A história 4 também traz dilemas morais ao questionar, irônica e
criticamente, a hipocrisia e o machismo de um religioso que afirma ser a bíblia o único
livro verdadeiro, enquanto assedia uma jovem; a história 5 é sobre uma jovem
trabalhadora e seu convívio solitário com a mãe, o qual só percebemos através de
diálogos que vêm de dentro de uma casa de esquina. Nenhuma das personagens é vista,
o que pode ser interpretado como uma forma de crítica a exclusão social: ambas são
mulheres pobres e, portanto, sem visibilidade social, vítimas da rotina dura de trabalho e
da idade.
De todas as histórias, a sexta é a que foge um pouco do formato puramente
realista e acrescenta uma pitada de realismo fantástico. Trata-se de um grupo de
estudantes que se encontram em uma esquina para realizar um trabalho da escola. Como
o próprio local geográfico sugere, eles se encontram, porém, suas ações ganham novos
rumos, indo cada um para um lado. A história termina com um homem comum se tele
transportando por uma fenda temporal e um mendigo levantando voo com assas de anjo.
Em tais situações expostas no romance gráfico de Cavalcante há o
reconhecimento de um lugar comum, porém, renovado pelo olhar “de fora”, por uma
perspectiva situada naqueles breves momentos em que algo nos tira das ações
mecânicas do dia a dia. É pelo olhar curioso de um espectador-voyeur, que podemos
perceber e questionar a nós mesmos por meio dessas sutilezas da vida. Cavalcante nos
mostra um mundo através de frestas criadas por uma narrativa ágil, moldada por
pensamentos e linguagem simples, mas que nos leva a reflexões mais profundas sobre o
que somos e o que fazemos de nossas vidas.
Esquinas termina com uma sequência de imagens panorâmicas de ruas e casas
que se enfileiram em diversas perspectivas, como que em poéticos enquadramentos do
quotidiano, pequenas obras de arte impregnadas de vida.
Não posso deixar de considerar, contudo, que para um público leitor acostumado
apenas com Best Sellers, Esquinas pode parecer uma publicação de nível inferior, por
conta de sua forma de produção e de distribuição. No entanto, se apenas isso for levado
em consideração, o verdadeiro efeito de publicações marginais será subestimado. Se há
um diferencial nas obras marginais, este não reside apenas na sua forma física ou em
sua abordagem narrativa e linguística (embora estas sejam bastante expressivas), mas
também na sua própria condição de obra aberta. Desde a sua origem, tais obras já
propõem uma alternativa, uma forma diferente (em muitos casos, crítica) de contar uma
história, de compor seus personagens e ao representar o mundo histórico.
Em Esquinas, por exemplo, percebo um questionamento sobre o sentido da vida;
há também uma especulação moral sobre nossa capacidade de lidar com nossos instintos
mais primais; ou, como na história 3, uma alerta para os perigos do esquecimento de
nossas verdadeiras paixões, o apagamento da memória em detrimento de uma vida
autômata e letárgica. Essas foram as minhas formas de leitura sobre esse romance
gráfico, as quais, no entanto, são leituras individuais, não havendo uma única forma de
leitura dessas histórias. A verdade que vejo não está na história em si, mas no efeito que
ela provoca dentro de mim e, dessa forma, dentro de cada leitor ou leitora haverá efeitos
distintos (não há uma verdade lá fora, mas dentro de nós).
A maior força de uma obra marginal está, nesse sentido, em provocar essas
verdades, porém, com mais liberdade de expressão e de aprofundamento crítico nas
representações sociais. Quanto mais liberta dos compromissos e das condições
mercadológicas, mais uma obra pode oferecer ao seu público: dar voz a personagens
representantes das pessoas invisíveis e/ou marginalizadas para a sociedade; trazer
realidades apagadas da estética e dos modos de vida consumistas (do apelo comercial);
mostrar que sempre há formas diferentes de percebermos uma dada realidade: aí reside
o poder da literatura marginalizada. Esse talvez seja o verdadeiro propósito de uma obra
marginal como Esquinas: nos mostrar que não existe apenas uma forma de pensar,
assim como não existe apenas um caminho a seguir, mas que se o caminho escolhido for
com poesia, este poderá ser melhor.

Referências:
CAVALCANTE, Robson. Esquinas. Teotônio Vilela, 2016.

EISNER, Will. New York. Nova York – New York: DC Comics, 1986.

GONZAGA, Sérgius. “Literatura Marginal”. Em: FERREIRA, João Francisco (org.).


Crítica Literária em nossos dias e Literatura Marginal. Porto Alegre: Editora da
Universidade/ UFRGS, 1981.

MAGALHÃES, Henrrique. Poesia e Quadrinhos, Em: Revista Mandala, n. 12, junho de


2000, João Pessoa: Marca de Fantasia, p.17-18.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano - Um livro para espíritos livres.


São Paulo: Cia das Letras, 2000.

OLIVEIRA, Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária.


Em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011.

SANTOS, Elydio. O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar


brasileiro. Em: Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura
Visual/Faculdade de Artes Visuais/UFG. – V. 7, n.1 (2009). – Goiânia-GO: UFG, FAV,
2009.

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