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Fortunato
Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de forma alguma
sem permissão das autoras (Lei 9,610/98), exceto pelo uso de trechos curtos
citados em resenhas ou artigos.
Esta é uma obra de alta fantasia. Os lugares citados são frutos da
imaginação da autora.

Revisão:
Patrícia Suellen

Diagramação e Lettering:
Larissa Chagas
(lchagasdesign)

Capa:
Alane Dantas (artesmedusa)

2ª Edição, 2023
SUMÁRIO

NOTAS DA AUTORA
EPÍGRAFE
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
A VIDA NA PIRATARIA
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
Para Teresa, que me apoiou durante todo o processo.
Maldito Pirata é o primeiro livro da série ‘’Entre Deuses e Monstros’’, que é
composta por enredos independentes de temática de fantasia com romance
entre humanos e seres místicos, focado em mitologias. O livro 1 é com o
tema de mitologia pirata.

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Nunca esqueça o que você é, o resto do mundo não esquecerá.
– TYRION LANNISTER
(As crônicas de gelo e fogo)
O mundo é cheio de mistérios. E a cada dia percebia não conhecer um
centésimo dele, principalmente por minha visão ficar restrita até onde as
muralhas do castelo me permitiam enxergar.
Minha última descoberta sobre o mundo foi a existência de bruxas, no
meu último passeio pela cidade, há dez anos. Lembro-me até hoje de seu
olhar compenetrado no meu e a mímica de seus lábios ao dizerem algo
antes de virar fumaça na frente de todos na praça pública. Ela foi condenada
à forca, mas sequer deu tempo de executarem sua punição.
Nunca me esqueci. Nunca. Muito menos meu pai, que intensificou
sua proteção comigo e me restringiu cruzar as muralhas do castelo. Passei
anos preso sem justificativas, mas um dia aproveitei que ele e seus homens
de confiança estavam fora e escapei.
Minha mãe desejou dar um passeio pelo mercado de tecidos e eu me
beneficiei de sua vontade para ir junto. Ela não era tão protetora quanto
meu pai, na verdade, pouco se importava por onde eu andasse.
Foi bom ter contato com outros ambientes e pessoas do que era
acostumado, ver as ruas e aprender mais sobre os hábitos da população,
como as feiras e entretenimento de teatro a céu aberto.
O passeio foi rápido, mas precioso para mim, afinal, não sabia quando
poderia ver a cidade novamente. Talvez após mais dez anos.
O verão havia chegado em Marnsala, o sol era intenso, mesmo no fim
de tarde. Eu sentia um mal-estar dentro daquela carruagem e me abanava
numa tentativa de melhorar.
Enquanto retornávamos para o castelo, avistei os plebeus alvoroçados
próximos à muralha, pareciam querer ver alguma coisa.
— Um sol escaldante desses e a plebe amontoada. Como podem não
desmaiar? — Fechei o leque, já que o objeto pouco adiantava no alívio do
calor.
— Eles não usam três camadas de roupa como nós, Lawrence. Talvez
por conta disso sintam menos. — Formou um bico com os lábios. Suas
sobrancelhas finas e arqueadas e os olhos estreitos com pálpebras
carregadas por sombra azul usualmente a deixavam com uma feição de
menosprezo.
A conjuntura inteira que a formava transmitia isso, na verdade. O alto
contraste de seus cabelos escuros e lisos com a pele muito branca, a
maquiagem forte e o corpo fino e reto, cujo pescoço era alongado até
demais.
— Faz sentido — ergui ligeiramente o queixo tentando bisbilhotar
mais sobre o que acontecia. — Eles sempre ficam assim quando você sai?
— Assim como?
— Com esses olhares curiosos. Não é todo dia que se vê alguém da
família real tão próximo, não é?
Ela riu e balançou a cabeça em negação com uma discreta revirada de
olhos. Minha mãe usualmente fazia isso, dando a entender que disse uma
grande asneira.
— Não, não ficam assim. Devem estar querendo ver outra coisa. —
Fechou a cortina da carruagem.
— A família real de outro reino, talvez?
— Não. Não estamos esperando visita alguma.
— Ah, sim. Nem mesmo de Victor Possey do reino de Acucci? Suas
visitas a Marnsala tem sido bem frequentes.
A rainha respirou profundamente.
— Por que está tão intrigado com o comportamento da plebe? —
Senti a aspereza em seu tom de voz.
— Nada, eu só... estou curioso.
— Eles são como animais, Lawrence. Qualquer coisa é
entretenimento para essa gente.
Quando estávamos perto de atravessar a muralha para a área do
castelo, abri as cortinas e os cavalheiros que nos acompanhavam tiveram
que ser mais ativos em manter o povo afastado. Contudo, aquela agitação
não parecia ser para ver o príncipe e a rainha, mas sim outra coisa. Suas
feições se decepcionaram quando avistaram pelos vidros quem estava na
carruagem.
Os cavalos pararam e a porta foi aberta para o desembarque. O
comandante das tropas foi quem veio nos recepcionar ao invés de um
criado.
Algo está acontecendo.
— Senhor Davos, que surpresa em ser recepcionado por você — falei.
— O que está acontecendo, Davos? Cadê o meu marido? Por favor,
não me diga que essa saída ao porto se tornou uma viagem.
O homem de cabelos grisalhos e barba cheia deu um sorriso de lado
para a rainha.
— O nosso rei está organizando uma comemoração. Vim recebê-los
para avisá-los.
— Comemoração? — arqueei a sobrancelha. — Comemoraremos o
que exatamente?
— A captura de Jake Rogers. O usurpador.
Ouvir aquele nome fez com que todos os pelos do meu corpo se
arrepiassem, e eu quase saltitei. Jake era como uma praga que corroía nosso
reino. Aquele maldito pirata passou sete anos sabotando nossos navios,
saqueando as embarcações com mercadorias e afastando aliados.
Eu era responsável pela administração agrícola do reino e sempre tive
prejuízos por conta daquele homem e sua tripulação desprezível.
Por ser muito restrito a sair muralha afora, nunca acompanhei uma
ação naval, então jamais o vi pessoalmente. A imagem que tinha do
usurpador era baseada apenas nas pinturas de seu rosto nos cartazes de
procurado. Seus cabelos em tons de marrom eram até que curtos demais
para um pirata, os olhos esverdeados desenhados sempre bem demarcados
por um contorno escuro e a pele queimada de sol. Lábios finos, nariz longo
de dorso alto e cheio de adornos nas orelhas.
— Já planejaram o dia do enforcamento? Conseguiram capturar
outros de sua tripulação? — perguntei.
Faria tudo que pudesse para sair do castelo e assistir a esse evento.
— Pegamos apenas o Jake. Ele se sacrificou pela tripulação. Não
temos a data de sua morte programada ainda, isso é com o rei.
— Entendo. Espero que seja em breve.
— E que horas será o baile? — A rainha questionou.
— O rei declarou que ao cair da noite. Suponho que daqui a umas três
ou quatro horas.
— Senhor Davos, antes de levar o pirata para o calabouço, pode
trazê-lo ao salão principal um pouco antes da comemoração? Quero vê-lo
de perto e poder falar algumas palavras.
— Claro, alteza.
— Obrigado. Traga-me o pirata daqui a duas horas, irei me arrumar
para a ocasião.
Adentrei no castelo e subi para os meus aposentos rapidamente.
Chamei dois criados para me auxiliarem no banho a fim de esfregarem
minhas costas, pés e massagear meus ombros.
Ao deixar a banheira, vesti a roupa debaixo e pedi para que a criada
que cuidava dos meus cabelos entrasse.
Sentei-me em frente à penteadeira e deixei que a mulher fizesse seu
serviço.
Encarei meu reflexo, notando a mudança de coloração na minha pele.
Os poucos minutos de sol a que me expus foram suficientes para me deixar
com o rosto avermelhado, em especial as bochechas.
Reparei na moça de longo vestido branco que parou de me pentear
para retirar um bolo de fios dourados presos da escova.
— Acho que já escovou meus cabelos o bastante.
Sempre que sentia altas emoções os fios se desprendiam da minha
cabeça com mais facilidade. Meu medo era de que um dia eles caíssem
demais a ponto de me deixar com o centro dos cabelos ralos iguais aos do
meu pai.
Eu e o rei nos assemelhávamos muito, na verdade. Exceto que seus
fios deixaram de serem loiros para se tornarem grisalhos, a barba que ele
cultivava era muito mais cheia e longa que a minha e as rugas ao redor de
seus olhos azuis se tornavam profundas a cada ano.
Usei os dedos para definir os cachos antes de me erguer da
penteadeira, dando um sorriso de satisfação para a minha imagem.
— Está lindo, príncipe Lawrence... como sempre.
Desviei o olhar do meu reflexo para a silhueta da mulher que estava
atrás de mim, e fiz com a mão um gesto para que ela se retirasse. Os outros
serviçais entrariam para vestir-me, e assim foi feito.
Duas mulheres e um homem apareceram na sala para pôr em mim o
longo sobretudo vermelho com singelos detalhes dourados, a alta moda de
1745, e calçar meus pés com as meias até os joelhos e sapatos com
pequenos saltos, a fim de aumentar minha altura.
Quando deixei o cômodo, os sons dos meus passos ecoavam pelo piso
de madeira do terceiro andar do castelo. Os saltinhos não me deixavam
passar despercebido.
De lá de cima dava para ouvir os murmurinhos e agitações, os
guardas deveriam estar muito orgulhosos de sua captura. Segurei no
corrimão e desci os degraus com certa pressa. A cada lance de escada a
euforia se elevava, quase explodia o peito e me fazia saltitar em emoção.
Assim que pisei no último degrau e avistei de longe o pirata sendo
contido por dois militares, um em cada braço, foi inevitável abrir o sorriso
largo de satisfação.
O rosto do homem era semelhante às pinturas, mas pessoalmente seu
corpo era mais forte do que pensei. Tinha a aparência desleixada, com a
camisa aberta mostrando metade do peitoral robusto, cabelos desgrenhados
e a barba por fazer.
Curiosamente, ele também sorriu ao me ver. Não entendi o motivo de
tanta felicidade ao olhar para a morte.
— Qual é a graça, Jake? — dei quatro passos para frente e dois para
trás após sentir o fedor de rum.
— Nenhuma.
— Sabe que vai morrer, não é? Eu não estaria sorrindo tanto assim se
fosse você. Esperei tanto tempo por isso. Sete longos anos e... — inspirei
fundo e soltei o ar levemente com satisfação. — Esse dia finalmente
chegou.
— Uau, fico lisonjeado de ser a obsessão do jovem príncipe solteiro
Lawrence Declaw — gargalhou.
— Isso, ria à vontade. Você está fazendo graça agora, mas seus dias
de glória acabaram e em breve será apenas história — ergui o dedo quando
ele relembrou o fato de eu ainda não ter me casado. — Solteiro por
enquanto, em breve irei me casar e assumir o trono — menti. Eu ainda não
tinha uma esposa, tampouco meus pais começaram o processo de arranjar
um casamento para mim.
— Será ótimo ver a sua cara de idiota quando eu estiver indo para
bem longe daqui.
Inclinei o corpo com tal afronta, encarando suas íris esverdeadas.
— Vai ser impossível escapar, traste. Boa sorte com seu plano
medíocre — retomei a posição. — Guardas, podem levá-lo para o
calabouço — ergui a mão para acenar apenas com os dedos, vendo os
homens arrastarem o pirata para longe. — Adeus, Jake!
Fui caminhar pelos arredores do castelo a fim de verificar como
estava o adiantamento das comemorações, e nada poderia estragar o meu
dia, bem, ao menos era naquilo que eu acreditava.
À noite, enquanto o som alto da banda tocava e os nobres convidados
festejavam no salão com um banquete regado a vinho, doces e carne suína,
eu estava escorado na parede observando a todos, ao mesmo tempo em que
bebericava um pouco do suco de uva.
Era ruim não conseguir se enturmar com tanta facilidade com os
outros. Na verdade, todos pareciam desinteressantes para conversas de
duração maior que cinco minutos. Sorrateiramente, deixei o salão para
caminhar sozinho no jardim aproveitando a brisa fria e o orvalho.
O contraste do silêncio lá fora com a agitação vinda do castelo faziam
com que minha mente divagasse acerca de como seria meu futuro naquele
reino, visto que meu pai não planejava ficar mais tanto tempo governando,
estava velho, portanto, a responsabilidade passaria para mim em breve.
Teria que me casar e aprender a governar toda a região de Marnsala.
A quietude que antes era tomada pelo som dos grilos logo foi cortada
por um grito estridente de um guarda vindo de longe, berrando e correndo.
Sua roupa ensanguentada e olhos esbugalhados de pavor fizeram com que
um frio me subisse pela espinha.
— Estamos sendo atacados! Estamos sendo atacados! — Ele alertava
enquanto se aproximava.
— Atacados? Por quem? Por quem?
— Pel...— Antes que o homem pudesse terminar de falar, uma flecha
atravessou toda sua carne fazendo com que ele cuspisse sangue, que
respingou no meu rosto.
Meu coração se acelerou e a reação instantânea foi virar para correr o
mais rápido que pudesse dali. Precisava contar para os outros e alarmar os
guardas sobre o ataque, a fim de que defendessem ao menos o castelo. Se os
invasores estavam próximos dos portões, era sinal de que conseguiram
tomar parte da cidade.
E o caos havia se instaurado.
Meu coração pulsava com tanta intensidade que pude sentir o sangue
passar com pressão até meu rosto. Por não ser uma pessoa acostumada a
fazer muitos esforços, aquela corrida de volta para o castelo parecia durar a
eternidade, e o fato das minhas pernas tremerem pelo pavor atrapalharam de
chegar mais rápido.
Devido ao desespero, passei por cima das flores do jardim,
esmagando-as com os passos pesados. Conforme me aproximava da
vidraçaria do castelo fui desacelerando. Arregalei os olhos ao notar aquela
imagem devastadora pela janela.
Dentro do salão haviam alguns dos meus guardas lutando contra
aquelas... pessoas? Se é que posso chamá-los assim.
— Não são piratas ou selvagens — murmurei. — São monstros.
Os homens que também utilizavam roupas semelhantes à da guarda
real, contudo, em tons de azul, brasões de serpente ao invés de uma rosa, e
possuíam uma força sobre-humana e não eram derrubados
independentemente de quantas espadadas tomassem.
Provavelmente, entraram pelo outro portão e o castelo deveria estar
cercado. Pressionei os dentes uns contra os outros em agonia, e minhas
pupilas não paravam quietas analisando o que fazer ao ver toda aquela
desgraça.
Apertou-me o peito ao lembrar de que meus pais estariam lá. Resolvi
dar passos largos e entrar no salão de forma discreta e com cuidado para
não ser notado, muito menos atingido. Mesmo com medo e uma vontade
instintiva de fuga, deveria salvá-los.
Lá dentro, alguns nobres estavam encolhidos no canto, enquanto os
guardas reais faziam uma contenção física com seus próprios corpos para
protegê-los. Em meio a toda gritaria e agitação, por mais que passasse meus
olhos por cada quina daquele lugar, não os encontrei.
Um soldado estava mais afastado dos outros, com as mãos unidas e
olhos fechados. Seus lábios pareciam sussurrar algo e as pálpebras tremiam.
Ao apressar meus passos até ele, percebi que seus murmúrios eram preces.
— Ei! — agarrei em suas ombreiras, balançando-o.
O homem arregalou os olhos como se estivesse vendo um fantasma.
— Príncipe Lawrence? O que está fazendo aqui?
— Onde estão o rei e a rainha? — olhei para os lados, tentando me
certificar de que os invasores estavam sendo contidos, entretanto, por mais
que os meus homens fossem bravos, os inimigos estavam em grande
quantidade e pareciam imbatíveis.
— Fugiram! Por não encontrarmos você, acabamos pensando no pior
e a rainha preferiu não perder tempo.
Aquelas palavras me atingiram com tanta intensidade que mal
consegui responder coisa alguma, era como se o tempo tivesse parado por
instantes e o silêncio tomasse conta dos meus pensamentos em meio ao
caos. Não sabia se poderia considerar aquilo como um abandono, afinal,
acreditaram que eu estava morto.
Meu estado de choque se rompeu quando as vidraçarias do salão
foram quebradas e os invasores tiveram mais uma via de entrada. A maioria
dos meus homens estavam no chão, colorindo o piso branco de vermelho,
não só pelas vestimentas, mas pelo sangue que jorrava.
Não vi outra escolha que não fosse fugir. Mas para onde? Meu reflexo
fez com que imediatamente subisse pelas escadas e alguns nobres me
seguiram numa tentativa de sobreviver.
O lado ruim de ser um monarca em fuga é justamente ser um monarca
em fuga. Eu não sabia lutar, não tinha defesa alguma, tudo que pude fazer
foi fugir feito um rato. No entanto, eles estavam no meu lugar, meu castelo,
sendo assim eu tinha a vantagem em conhecer cada passagem dali.
Enquanto os outros nobres iam para um lado dos corredores, fui para
o outro. Com um jeito desengonçado, tentei correr de forma discreta, mas
os sons dos saltos na madeira denunciavam meus passos, e como se não
bastasse, um deles quebrou. Tive que andar mancando.
— Droga de sapato! — Retirei o calçado, jogando-o longe, mas ao
chocar-se contra o vidro, e o estilhaçar por inteiro, o barulho foi tão alto que
escancarou onde eu estava. — Ai, não! — Tentei acelerar os passos, com
muita dificuldade devido às meias derraparem no piso. Meu objetivo era
chegar à biblioteca onde havia uma passagem secreta.
Faltava apenas um corredor. E o som dos gritos e discórdia eram mais
baixos, não sabia se pela distância ou por conta da maioria estar morta.
Eu ofegava enquanto fugia, as pernas formigavam por não
aguentarem mais. A minha jornada teve fim ao virar o corredor. Bati de
frente com um dos homens de roupa azul, mas com detalhes em dourado,
semelhantes aos meus. Ele era enorme, com longos cabelos pretos abaixo
dos ombros e um olho marcado por uma cicatriz, pelo jeito, pude notar que
era diferente dos outros invasores. Talvez um superior.
Ao tentar dar meia-volta percebi que estava cercado.
— Ora, ora...o que temos aqui. — O brutamontes se aproximou,
estendendo a mão na direção do meu rosto.
Ergui o braço para impedi-lo. Não queria que aquele homem sujo,
trajado como um lorde encostasse em mim.
— Por favor, não me toque. — A voz quase que falhou de medo.
Sentia os olhos arderem já anunciando um breve choro, mas tentei
manter a postura na frente daqueles monstros. Estava cercado e não sabia o
que aconteceria no momento, mas independentemente de qualquer coisa, se
fosse para perder, preferia que isso ocorresse comigo firme até o final.
— Olhem como ele é audacioso — gargalhou, apoiando as mãos na
cintura, levando os outros homens a emitirem o mesmo som. — Onde está a
sua família, princesa?
Ao me tratar como uma donzela em apuros demonstrou o quão baixo
era. Aquele invasor queria me humilhar antes da morte.
— Espero que esteja bem longe daqui — respondi, erguendo o olhar
para ele.
— Oh! Então quer dizer que foi abandonado? — Abriu um sorriso
largo. — Que pena.
— O que você quer?
— O que quero, acabei de tomar. O seu reinado, suas terras, tudo...
inclusive os aliados. — Ele ergueu a mão, fazendo um gesto, assim dois
homens me seguraram pelos braços, um de cada lado.
— E-ei! — berrei enquanto tinha o corpo sendo arrastado. — Pra
onde estão me levando?!
— Você verá, Lawrence!
Como um cão, fui arrastado até a parte mais baixa e suja do castelo, o
calabouço. Era para onde quase sempre enviávamos os nossos prisioneiros,
porém, nunca cheguei de fato a pisar lá, mas ao entrar pude ter a certeza do
porquê.
Era um local imundo, escuro e úmido. Arrepiei-me em aflição ao
observar o espaço onde as paredes de pedra acumulavam musgos e as
lamparinas penduradas deixavam a iluminação insuficiente. Havia alguns
nobres que estavam presentes na celebração presos uns aos outros por uma
corda, sendo escoltados por guardas invasores.
Acreditei que seria colocado junto aos meus semelhantes, mas, ao
invés disso, fui jogado numa cela pequena e intimidadora, feito um animal.
— Ei! — Engatinhei até as grades agarrando nelas. — Eu exijo que
não me deixem aqui! Se for para ser prisioneiro, que seja junto dos outros
nobres, onde eu pertenço!
— Shiu! Cale a boca, princesa. Você não está no direito de exigir
nada. — O homem aproximou o rosto da cela, de forma que pude sentir o ar
quente saindo de suas narinas. Percebi seu olhar vazio, onde as íris não
refletiam nada, nem luz ou minha silhueta.
Pressionei os dentes com tanta raiva que o rosto chegou a doer. Ele
estava certo. Eu não tinha mais influência sobre aquele lugar, sobre as
pessoas. Em pouco tempo perdi tudo e estava difícil de processar aquela
realidade.
— Então, se for para viver assim, prefiro que tirem minha vida. Nasci
para ser rei, não prisioneiro.
O guarda riu alto e cutucou o outro, apontando para mim como se
tivesse acabado de contar uma piada.
— Não se preocupe com a morte agora, garoto. Você é muito jovem
ainda, e será bem útil para o nosso rei.
Afastaram-se ainda com zombarias que ecoaram pelo espaço.
Útil? Para o que eu seria útil? Demonstração de poder? Assinar
burocracias? Comecei a formular em meus pensamentos as possibilidades
do que poderia acontecer comigo.
— Útil? Útil? — murmurei.
Aquele futuro tão incerto me apavorava e apertava o peito, de forma
que as lágrimas anuviaram minha visão, mas eu não poderia desabar
naquele momento, muito menos demonstrar fraqueza de forma alguma.
— Vindo de homens do Norte, a sua utilidade vai ser bem além de
papéis de reinado. Eles gostam de outros rapazes para aquecerem suas
camas.
Fui tirado daquele estado de melancolia pelas palavras ásperas do
pirata, que parecia ler meus pensamentos. Saltitei para o lado com os olhos
arregalados. Estava tão distraído que não percebi que fui colocado preso
junto do maior inimigo do meu reino.
— Por que está dirigindo a palavra a mim? — desdenhei.
— Como é orgulhoso. Mesmo numa situação de prisioneiro mantém a
pose de monarca poderoso. — Jake agarrou nas grades ao lado, erguendo os
cantos dos lábios. A meia-luz o deixava com uma aparência um tanto
assustadora com aquele sorriso malicioso. — Está gostando da estadia?
Recolhi as pernas, abraçando-as de forma que ficasse no meio da
jaula, na tentativa de me afastar o suficiente daquele pirata asqueroso com
odor de rum.
— Você tem algo a ver com tudo o que aconteceu?
— Pensei que fosse mais inteligente, príncipe Lawrence Declaw. —
Fazia questão de falar meu nome completo. — Acha mesmo que se eu
estivesse envolvido continuaria aqui? — Seus olhos rondaram o calabouço.
— Talvez — murmurei. — Aliás, como sabe que esses soldados são
do Norte?
— Pelo bordado de serpente dourada em suas vestimentas, que é o
mesmo de suas embarcações. Eles são do Norte, de Sávia. Uma terra
desértica, composta majoritariamente por homens e com comportamentos
que vocês aqui do Sul considerariam inapropriados.
Suspirei e levei as mãos aos cabelos, afastando-os das laterais do
rosto.
— Não acredito que minha querida Marnsala foi invadida por homens
selvagens e degenerados. Eu não sei como isso aconteceu, foi tudo tão
rápido. A gente tinha uma boa defesa.
Franzi as sobrancelhas e levei uma das unhas aos dentes.
— Calem a boca! — ordenou um dos soldados. Ele bateu tão forte
nas barras de ferro, que o som do metal fez meus ouvidos doerem.
Jake e eu nos calamos e ficamos em silêncio, sentados um de frente
para o outro, apenas ouvindo as lamúrias dos outros prisioneiros.
Demorou um tempo até que a maioria das lamparinas fossem
apagadas, deixando só uma acesa, fazendo com que o ambiente ficasse mais
escuro e o último guarda deixasse o calabouço.
— Posso te explicar como tudo isso aconteceu, Lawrence — disse um
timbre reconhecível na escuridão.
Ao direcionar minha visão no sentido da voz, arregalei os olhos ao
ver aquela figura na penumbra. O homem, de cavanhaque grisalho e cabelos
com curtos fios perfeitamente penteados para trás, deu mais alguns passos
se aproximando da cela onde eu estava. Ele era o comandante das minhas
tropas.
— Senhor Davos! — Puxei o ar, incrédulo. — Por quê?
Ali estava a explicação de como aqueles invasores conheciam tão
bem as passagens, saídas e entradas do meu reino. Um traidor, como não
pude enxergar algo tão óbvio?
O canto de seus lábios se ergueram, ele se curvou para ficar à minha
altura, visto que a jaula era tão pequena que eu mal conseguia ficar de pé.
— A sua arrogância e prepotência são tão grandes que não conseguiu
ver o que estava bem debaixo do seu narizinho — tocou a ponta do meu
nariz com o indicador. — O reino de Marnsala não merece um futuro rei
que tem fama de gato. Apenas come, brinca e dorme. Precisamos de um
líder forte, orientado por alguém mais inteligente e competente.
Eu tremia com tais palavras, meu corpo parecia arder em chamas.
Mordi o lábio com tanta força que pude sentir o sabor metálico do sangue
tocando minha língua. Fui traído pela minha própria guarda.
Jake deu uma gargalhada que ecoou pelo calabouço, de forma que
rompeu todo o clima tenso da conversa entre mim e Davos. Encarei o
usurpador.
— Qual é a graça, patife?
— Achei cômica a sua fama de príncipe gato. Enfim, continuem. —
Ele se sentou no canto de sua cela, cruzando os braços. — Estou adorando
essas revelações. Ao menos algo para me tirar do tédio.
Bufei e voltei a atenção para o traíra.
— Não é como se eu não fizesse nada. Posso não saber lutar, mas sei
administrar os recursos dessa terra como ninguém! E comigo fora do reino
não vai demorar muito para você e todos que tanto ama morrerem de fome
— praguejei.
— E é exatamente por isso que você será útil para o nosso atual rei.
Servirá a ele, oferecendo seus conhecimentos para a área administrativa, e
outras coisas também.
— Eu? Servo? — gargalhei. — Prefiro morrer do que servir a
alguém! Ainda mais a quem tomou minhas terras.
— Então tudo bem. — Ele se ergueu. — Será triste vê-lo definhando
de fome neste calabouço.
Davos sabia exatamente onde me atingir.
— F-fome? — engoli em seco e inspirei fundo, soltando o ar devagar.
Eu estava acostumado com fartura, e aquela era uma morte mais dolorosa
do que uma lâmina atravessando minha carne. — Quando posso encontrar
com o James?
Acabei por ceder à sua vontade, mas não desperdiçaria a chance.
Aquele encontro poderia me dar a oportunidade de fugir ou tentar negociar
com o tirano, porém, a primeira opção deveria ser a mais difícil, com
certeza ele me deixaria cercado por guardas.
O traidor desgraçado sorriu de forma presunçosa.
— Mudou de ideia tão rápido. — Ajeitou o sobretudo vermelho. —
Amanhã vamos buscá-lo para arrumá-lo e, em seguida, tomará café com o
rei. Até lá, aproveite a estadia, Lawrence. — Virou-se para deixar o
ambiente.
Fechei os olhos e soltei o ar devagar enquanto refletia o que fazer.
Quando ergui as pálpebras percebi que a resposta estava bem na minha
frente.
Assim que a área interna ficou livre de guardas, quase num silêncio,
se não fosse pelos choramingas dos nobres que também eram prisioneiros,
cheguei para perto da cela de Jake. Estava disposto a fazer uma proposta a
ele.
— Psiu! — chamei sua atenção de forma discreta.
— Diga. — O homem manteve a distância encostado do outro lado de
sua jaula.
— Venha aqui, não posso falar alto — sussurrei.
Aos poucos, o pirata foi se aproximando até ficar de frente para mim.
Ele estava tão perto que o cheiro me fez enrugar o nariz. As grossas barras
de metal não nos separavam tanto assim, conseguíamos passar até o
antebraço por elas.
— O que quer?
— Quero te fazer uma proposta. Lembra de quando você disse que
iria escapar assim que te capturei? Então, quero ajuda para uma fuga. Você
tinha um plano em mente, não?
O homem deu uma risada nasal.
— Isso não será possível, visto que o plano de escape contava com a
sua guarda tão corrupta. Mas... creio que há outra maneira. — Olhou para
os lados diminuindo o tom de voz. — Você vai se encontrar com o rei
invasor, não é?
— Sim. Foi justamente pela fuga que aceitei vê-lo.
— Então, necessito que faça duas coisas. — Ele ergueu a mão
fechada e levantou um dos dedos. — A primeira, é que cative o rei.
Precisamos que ele se importe com a sua vida de alguma forma, já a
segunda... — ergueu mais um dedo. — Roube uma faca e peça para ser
trazido de volta para o calabouço. Depois de fugirmos, arrumaremos um
jeito de você tomar de volta o que é seu.
Uma faca? De onde irei tirar a faca ou conseguirei trazê-la comigo?
Estreitei o olhar. Nada do que falava parecia fazer sentido, mas por
ele estar acostumado com essa vida de fugas, resolvi tentar o seu plano.
— E como terei certeza de que isso vai dar certo? Você nem falou
nada do plano!
— Não há certezas. É uma tentativa.
Suspirei.
— Tudo bem. Não é como se houvesse outra escolha.
— Mas tudo tem seu preço. Para que tenha minha ajuda preciso
ganhar algo.
Inspirei fundo, passando os dedos pelas têmporas. Havia chegado ao
fundo do poço negociando com um pirata trapaceiro.
— Está bem, eu posso te dar bastante ouro, caso consiga tomar o
reino de volta.
Jake contraiu os lábios e ergueu as sobrancelhas.
— Hum... só isso?
— Tudo bem, tá... — Comecei a pensar no que mais poderia oferecer.
— Uma terra também. Quer uma propriedade?
— Não. É completamente inútil. Eu quero algo a mais, além do ouro.
— Um cargo na realeza? — falei um absurdo.
— Não.
— Meu Deus, homem! Desembucha logo o que quer! Não há
absolutamente mais nada que eu possa te dar! — Abaixei novamente o tom
de voz ao perceber que me exaltei.
— Há sim. — Ele deu um sorriso de canto. — Quero um passe livre
para navegar perto desta costa sem que a marinha seja um empecilho.
Bufei. Aquele homem estava se aproveitando do meu desespero.
— Nada feito. Te dou ouro e... anistia de seus crimes contra a coroa
de Marnsala.
— Tá legal. Eu tentei... — riu e passou a mão pelas barras de ferro
para que eu a apertasse. — Aceito. Temos um trato?
Olhei para seus dedos, encarando-os por alguns instantes. Nunca
havia tocado a palma da mão de um plebeu, muito menos de um marginal,
como aquele pirata, mas não tinha escolha, então encostei minha mão na
sua, deixando que ele a apertasse e chacoalhássemos os braços.
— Fechado. Agora me conte mais sobre o plano.
— O plano é o seguinte...
A manhã havia chegado. Dormir no calabouço teve suas
consequências. Acordei com o corpo todo dolorido por ter adormecido de
mau jeito naquele chão sujo, e sentia-me podre, tanto externamente quanto
em minha alma. Mal podia esperar para aqueles dias acabarem.
Os guardas do rei tirano foram me buscar e insistiram em me levar até
o meu quarto para que me banhasse e vestisse roupas limpas, a fim de
encontrar o seu governante. Ao chegar lá, notei que meu aposento
permanecia intacto. As roupas estavam todas no lugar, a penteadeira
arrumada ainda com minha escova virada para cima e finos fios dourados
presos a ela.
Apertou-me o peito pensar em como as coisas mudaram
drasticamente de uma noite para a outra, e apesar de ter um plano para
recuperar o que era meu, ainda assim poderia dar muito errado.
Os meus antigos criados, que viraram os criados do rei invencível,
entraram para me limpar e ajudar a me vestir. Pentearam meus cabelos,
calçaram em mim as meias e pareciam me enfeitar com as minhas próprias
joias, feito um presente. Eu não entendia qual era a necessidade de estar tão
bem apresentável para um simples café da manhã.
— Para que isso tudo? — questionei a um dos criados que abotoava
minha blusa de fino tecido branco.
— Ordens do rei.
— O rei ordenou para que eu o encontrasse arrumado como se fosse
para um baile?
— Não. O rei pediu para te ver em sua melhor forma, pois interessou-
se na sua aparência na noite da invasão — respondeu um guarda apoiado na
porta, encarando-me de cima a baixo como quem avaliasse os detalhes do
visual.
— Como assim? Ele quer me cortejar? — Franzi as sobrancelhas.
Na hora, lembrei-me sobre o que o pirata havia falado a respeito dos
homens do Norte e seus costumes. Em Marnsala, um homem que se
deitasse com outro era mandado para a forca por indecência, mas
aparentemente em Sávia isso era o comum.
Apesar de considera-los selvagens, eles demonstravam mais
civilidade nesse aspecto. Amava Marnsala, mas as vezes desejava que
certas coisas nela fossem diferentes.
— Para bons entendedores meia-palavra basta, não é? — O guarda
deu um sorriso de canto. — Considere-se com sorte, princesinha, já que não
irá direto para a forca. — Virou-se, deixando o lugar.
Suspirei ao pensar na ideia asquerosa de estar com aquele homem que
não se contentou em invadir minhas terras e dominar meu povo, mas que
também queria a posse do meu corpo. No entanto, eu teria que ser agradável
em tal encontro. De acordo com Jake, deveria ser uma pessoa importante
para o rei a ponto de ele se importar com a minha vida. Fazia parte do
plano.
Assim que terminaram com as arrumações, andei pelo corredor e
desci as escadas acompanhado de quatro guardas que pareciam fazer muito
esforço para evitar, a todo custo, uma possível fuga. Meus sapatos faziam
barulho naquele piso de madeira durante a longa caminhada até o salão
principal, lugar onde havia uma enorme mesa com um banquete feito com a
minha comida.
Aquela ocasião tinha suas vantagens, a refeição e os talheres. Ali teria
a oportunidade de furtar a faca.
O invasor folgado parecia estar à vontade quando o encontrei.
Sentado desajeitado sobre a cadeira da ponta com as pernas abertas e braços
apoiados no encosto. Vestia-se confortavelmente com uma calça de couro e
blusa branca de tecido fino mal amarrada, que deixava parte do seu peitoral
peludo aparecendo.
Ele ergueu apenas um canto dos lábios, exibindo um sorriso de
intenções duvidosas.
— Sente-se, príncipe. — Sua voz ecoou no salão quase vazio.
Ao menos ele havia me poupado da humilhação de me ajoelhar em
sua frente como forma de respeito e cumprimento.
— Com licença, majestade. — Fui cínico e me sentei na outra ponta
da mesa, o mais distante possível dele.
O homem ergueu-se de onde estava e caminhou até a mim, puxando a
cadeira ao meu lado. Pegou uma das xícaras e bebericou enquanto me
encarava. Aqueles olhos muito escuros não eram comuns... pareciam
vazios, não refletiam nem mesmo a luz do sol advinda das janelas, não
tinham brilho. Algo de diferente, com certeza, havia naquela criatura
disfarçada de homem.
— Achei que você aceitou rápido me encontrar. Na primeira vez que
te vi, foi tão orgulhoso que acreditei que preferiria morrer ao me ver — riu
brevemente. — Bom saber que estava errado quanto a isso.
Sentia-me incomodado com tanta invasão de espaço pessoal. Achei
que ao menos durante o café iria me livrar de tê-lo tão perto, mas James não
parecia ser o tipo de pessoa que perdia tempo.
— Sim, como não aceitaria? — Desviei o olhar do dele, pois tais
olhos obscuros davam-me agonia. — Seria um momento único de encontrar
com um grande guerreiro. — Queria engolir tais palavras que me esforcei
muito para não saírem em tom de desgosto. — Mas ainda não compreendi o
que quer de mim.
Ele apoiou um dos cotovelos sobre a mesa, ignorando qualquer regra
de etiqueta, de um jeito que ficasse de frente para mim.
— Minha missão era invadir Marnsala e matá-lo, mas só ao estar
aqui, que descobri e vi muitas coisas que me interessaram bem mais —
sorriu sutilmente, tentando transmitir simpatia após revelar um absurdo. —
Seu reino tem terras muito férteis, e só você, jovem príncipe, sabe
administrar os recursos. Portanto, há duas coisas que quero de você.
Lancei um olhar de canto para ele.
— Como sabe do meu cargo na área agrícola?
— Um passarinho verde me contou. — Umedeceu os lábios com a
língua.
— Davos — bufei.
— A primeira coisa que quero de você é que me ensine tudo que sabe
sobre a gestão da terra. E a segunda é que se deite comigo. — Pegou na
minha mão que repousava sobre a mesa. — Algo forte me atraiu em você.
O achei gracioso e quero tê-lo em minha cama, príncipe Lawrence. —
Levou minha mão até seus lábios, beijando-a, e depois a colocou em seu
colo a fim de que eu sentisse seu íntimo.
Ao percebê-lo se enrijecer sob meus dedos, arregalei os olhos e puxei
o braço rapidamente, recolhendo-o. Apesar da imensa repulsa, tive que
dissimular para manter o plano.
— Você me deseja e, ainda assim, deixou que eu dormisse feito um
cachorro no calabouço?
No fundo, eu xingava aquele homem de todas as palavras baixas
possíveis, e só não praguejava, pois ele já deveria estar cheio de maldições.
Como poderia ter a audácia de invadir meu reino, exigir que eu o ensinasse
sobre as terras e ainda entregasse meu corpo?
— Tive uma boa razão. — Passou o polegar pela minha bochecha e,
delicadamente, a ponta de seus dedos apoiaram-se no meu rosto, deslizando
até o queixo. — Como eu disse, não esperava que aceitaria me encontrar tão
facilmente. Além disso, queria saber como seria o nosso contato antes de te
colocar na minha cama. — Ainda com a mão apoiada no meu queixo, levou
o polegar pelo meu lábio inferior, acariciando-o. Ele deu um sorriso de
canto. — E gostei bastante. Tem a pele macia, é manso e facilmente
domável.
Senti um frio subir pelo abdômen e tentei conter os tremores de medo.
Apavorava-me pensar nas possíveis maldades que ele poderia fazer comigo
se me tivesse. Mantive a postura, fingindo não me sentir afetado.
Decerto o interesse do invasor em mim, demonstrava que eu era
precioso para ele, só deveria manter esse seu desejo, essa parte do plano de
Jake até que foi fácil. Depois era só dar um jeito de retornar para o
calabouço com o item requisitado.
— Não estou certo se quero isso.
— O que exatamente? Ensinar-me a administrar as terras?
— Isso de me deitar com você. — Encarei-o, engolindo em seco.
— Está me rejeitando? — Ergueu as sobrancelhas suavemente.
Apesar de a pergunta sair como um corte, seu tom de voz permanecia
sereno.
— O quê? Não! — Apoiei as mãos sobre uma de suas pernas. — Eu
só preciso de um tempo para pensar. É difícil tomar uma decisão de
imediato, pois nunca estive com alguém antes. — Abaixei o olhar.
Não foi difícil demonstrar vulnerabilidade, afinal, estava assumindo
uma verdade.
— Está me dizendo que é virgem? — Ele passou a língua pelos lábios
e esfregou a mão na barba. O balançar de suas pernas denunciou a euforia
diante da minha declaração.
— Sim — afirmei com certa timidez.
— Não precisa temer, eu sou bem carinhoso. Mas entendo. Terá
tempo para pensar. — Ergueu-se da cadeira, entremeou a mão pelos meus
cabelos e os puxou, levando minha cabeça a se inclinar para trás. — Ainda
que não queira me entregar sua virgindade, será útil. Mas caso não deseje
nenhuma das duas propostas, não haverá uma boa perspectiva para você no
meu reinado. — Afastou-se. — Aproveite a refeição, príncipe.
De longe, devido à sala vazia, deu para ouvi-lo falar baixinho para o
guarda: ''depois leve-o de volta para o calabouço''.
Aproveitei a distração dos dois para colocar uma das facas apoiadas
sobre a mesa por dentro da roupa, ao lado na cintura.
Mal poderia esperar pelo momento em que James se arrependeria de
ter invadido minhas terras.
A tão esperada noite havia chegado. Estava nervoso, minhas mãos
tremiam e sentia um frio nas extremidades do corpo, não sabia se era
devido à cela úmida, e longe das lamparinas, ou por conta de toda tensão
presente em mim.
Tinha medo de dar errado, e aquilo poderia dar muito errado. Não
iríamos enfrentar homens comuns, mas sim seres que pareciam ter saído das
profundezas do submundo, já que eu vi o quanto tais soldados eram sobre-
humanos.
Porém, o que mais temia não era só a falha do plano, e sim quais
seriam as consequências que sofreria caso fosse capturado novamente. No
entanto, não havia como deixar para lá, era aquilo ou virar um mero objeto
nas mãos do rei tirano, onde ele me manipularia como bem entendesse.
Jake estava com a faca que eu havia roubado mais cedo da mesa de
café da manhã, ele a escondia para usar somente quando fosse o momento
apropriado. Permanecemos em nossas posições, fiz-me de desatento
apoiado nas grades que eram coladas com a do usurpador. Esperamos
apenas a troca da guarda para que colocássemos nossa fuga em prática.
Sem nem dar um sinal de aviso prévio, o pirata passou um dos braços
pela grade, prendendo-me pela cintura, enquanto o outro colocou a faca
pressionada contra minha garganta. Por um segundo havia me esquecido de
que tudo fazia parte da nossa encenação e, por conta disso, dei um berro de
desespero muito realístico.
De imediato, os guardas vieram correndo e nos encontraram daquela
maneira.
— Socorro! Alguém me ajuda! — gritei, entremeado a um
choramingo. — Ele quer me matar!
Um dos homens riu e deu de ombros.
— Que morra, menos um!
— Está louco? — questionou o outro guarda. — James não quer que
ele morra! — Retirou a espada da bainha e a apontou para Jake. — Solte-o
agora, pirata miserável, ou terá consequências.
O usurpador tinha noção de que estávamos longe o suficiente da
entrada da jaula para que não levasse um golpe. Desdenhou de toda situação
dando uma gargalhada que ecoou pelo calabouço. Os nobres encarcerados
ficaram sem entender coisa alguma e agitaram-se com medo de que eu
morresse
— Nunca! Ele quem me prendeu aqui, então merece nada menos que
a morte! — Pressionou ainda mais a faca. Comecei a acreditar que ele
realmente me mataria.
— Façam alguma coisa!
Os guardas se entreolharam, e no momento que um dos homens foi
abrir a cela de Jake, atirei-me ao chão numa tentativa de que minha jaula
também fosse aberta. E deu certo.
— Príncipe! — Um dos guardas foi até mim. A atenção dele foi
desviada quando o pirata golpeou seu parceiro e subiu em cima dele a fim
de sufocá-lo.
Meu coração batia com a aceleração de dez cavalos, nunca havia feito
aquilo antes, mas não tinha escolha. Passei minha perna entre as do guarda
para fazê-lo cair e imitei o movimento do usurpador, subindo em cima do
inimigo a fim de pressionar seu pescoço com toda força que tinha.
O homem agarrou nos meus braços para tirá-los. Entrei em desespero
a partir do momento em que ele começou a debater as pernas. Olhei
assustado para Jake.
— Pelo amor de Deus, o que eu faço?
— Continue apertando! — Ele respondeu com dificuldade e com o
rosto avermelhado, ainda montado no homem que, aos poucos, parava de se
debater. Deveria estar usando toda a força possível.
— Mas eles não morrem! A gente que vai morrer por conta disso! —
Estava muito desesperado.
Fui tolo em não ter pensado naquela possibilidade antes.
— Eles podem não morrer, mas, no mínimo, ficarão desacordados... é
o que espero.
— Espera?!
O homem aumentou ainda mais a agitação abaixo de mim. Segui os
conselhos do pirata e me mantive firme, pressionando mais forte meus
dedos contra aquele pescoço. Minha respiração com curtos intervalos de
tempo normalizou-se a partir do momento em que o guarda parou de se
mexer.
Ao olhar para a cela ao lado, percebi Jake terminando de tirar as
vestes de cima, e no mesmo instante o rosto ardeu, senti-me constrangido
em reparar tanto naquele abdômen brilhante de suor.
Era fato que o corpo masculino me atraía, e mesmo que eu soubesse
que não deveria me sentir assim, não conseguia conter a sensação. Sem
querer fui indiscreto, a ponto de o pirata perceber e estreitar os olhos com
um sorriso de canto.
— Você não vai tirar a roupa também?
— O quê?
— A roupa, príncipe! Pegue as roupas do guarda para sairmos! —
Terminou de despir o homem ao chão para colocar aquele sobretudo azul e
o chapéu preto por cima.
— Sim, claro... — Chacoalhei a cabeça e também me desfiz de
alguma das minhas vestes. Guardei as joias que trajava nos bolsos, elas
poderiam ser úteis futuramente. Agachei perto do corpo e retirei seu chapéu
e o sobretudo para me disfarçar.
Os outros prisioneiros começaram a se agitar. Coloquei o dedo sobre
os lábios para que fizessem silêncio.
— Voltarei por vocês. — Apoiei a mão no peito em sinal de que
confiassem em mim. E eles confiaram, dando sua quietude como resposta.
Jake saiu de sua cela e aproveitou as chaves para trancafiar os dois
homens por lá. Nós nos entreolhamos e inspirei fundo antes de darmos os
primeiros passos para fora, subimos as escadas e saímos no salão.
Precisávamos ser rápidos em nossos passos e raciocínio para
chegarmos até o estábulo, onde subiríamos nos cavalos para partirmos rumo
ao píer de SeVan, lá encontraríamos a tripulação do pirata que deveria estar
por perto.
Enquanto atravessávamos o salão principal, alguns guardas passavam
por nós dois, fazendo com que abaixássemos a cabeça e eu sentisse as mãos
geladas de medo.
Teríamos que trilhar todo caminho por dentro do castelo. Do lado de
fora havia ainda mais homens, além de que, ficaríamos muito expostos e o
destino longe demais de onde estávamos.
Por sorte, aquelas criaturas mal falavam uns com os outros, apenas
mantiveram-se firmes em suas posições, feito estátuas de mármore, mas
bastou eu e Jake nos aproximarmos dos corredores que eram caminho para
a adega, que um guarda nos chamou a atenção.
— Ei! Para onde estão indo?
Minhas pernas travaram no mesmo instante e quase quis voltar para
me entregar, mas o pirata foi rápido em sua resposta.
— Pegaremos vinho para o rei.
— Mas o rei não pediu vinho! — Ele respondeu, aproximando-se de
nós.
— Pediu sim, por isso buscaremos. — Apertou meu braço, puxando-
me para que fôssemos em direção à porta, mas eu não conseguia sair do
lugar.
O guarda ainda andava em passos lentos até nós, foi então que um dos
homens gritou de forma que ecoasse pelo salão e todos ouvissem: “O
príncipe e o pirata fugiram! O príncipe e o pirata fugiram”.
— Ei! — alarmou aquele que estava vindo em nossa direção,
acelerando o passo.
A mão de Jake deslizou do meu braço para segurar na minha mão,
pegando a ponta dos meus dedos, e me puxou para que corrêssemos.
Quando minhas pernas conseguiram sair do lugar, o guiei em direção à
adega.
Assim que atravessamos o corredor, encontramos com dois guardas
que sacaram suas espadas e foram de encontro a nós. Mal deu tempo de
virar para fugir, fui puxado pela gola e jogado ao chão. Minhas costas
estalaram quando bateram contra o piso e a dor da queda foi lancinante.
O pirata se desvencilhou rapidamente do outro guarda e num
movimento ligeiro roubou sua espada. Furtos eram sua especialidade.
Enquanto os dois lutavam, eu era imobilizado pelo peso do homem sentado
sobre minha barriga, que segurava meus braços.
Meu coração galopou as batidas quando senti o vibrar dos passos
sincronizados em direção aonde estávamos. Tentei me debater para reagir,
contudo, a cada movimento meu, mais os dedos do guarda se afundavam
em minha pele.
Selei os lábios para não gritar em reação. E o que antes percebia
apenas os tremores, passei a ouvir os passos, cada vez mais perto.
Desisti de lutar, como um bom covarde me entregaria, não tinha a
menor chance. Eu achei que estava condenado, até que com um golpe
abrupto na lateral da cabeça o pirata tirou o guarda de cima de mim.
Sua mão se esticou diante dos meus olhos e mesmo com asco de tocar
num homem tão sujo, a agarrei pela minha vida. Foram segundos entre eu
me erguer e mais guardas aparecerem no início do corredor.
Jake e eu demos as costas para seguir em direção à adega, e a cada
passo à liberdade, a sensação de que tudo daria errado se elevava.
Entramos rapidamente e puxei a trava.
Dentro daquele ambiente mal iluminado, onde havia apenas algumas
lamparinas, diversos barris, garrafas de vinho e rum empoeiradas, nos
unimos para pegar um tonel e colocar em frente à porta. Esperávamos que
aquilo nos desse tempo.
Peguei uma das lamparinas para nos guiar em meio à escuridão e
corri na frente, até que, ao perceber que não estava mais sendo seguido,
olhei para trás e vi o pirata roubando duas garrafas de rum, colocando
debaixo dos braços.
— Ei! Pirata! — gritei.
Ele soltou uma delas e veio até mim, ainda carregando a outra.
Começamos a andar por aquele labirinto até que de longe ouvimos o som de
algo quebrando. A porta havia sido arrombada e o barril derrubado.
Aceleramos ainda mais o passo e pude sentir minhas pernas
começarem a formigar e o ar faltar, mas não poderia parar, ou seria o meu
fim. Quando saímos da adega através de uma passagem secreta que ficava
atrás de uma estante e chegamos ao estábulo, só havia um cavalo.
— Droga... — O marginal resmungou, alternando o olhar entre o
animal e a bebida.
— Quer que eu conduza o cavalo? — questionei, enquanto
desamarrava o bicho.
— Não, deixa que eu faço. — Ajudou-me a retirar as cordas, pegou a
cela, jogou em cima do cavalo e subiu com muita praticidade. Tudo aquilo
com somente uma mão, a outra mantinha-se presa à garrafa de rum.
— Como você conseguiu fazer isso com uma mão só? — perguntei
enquanto montava, tentando me equilibrar com a lamparina.
— Hábito. Consigo fazer muita coisa com uma mão só. — Não
deixou de expressar a malícia da frase em seu tom de voz e piscadinha, o
que me fez revirar os olhos.
Para ele, ser galanteador parecia uma tática de provocação, que
preferi ignorar, pois a partir do momento em que fizemos o trato, deixamos
de ser meros rivais para nos tornarmos companheiros de fuga.
Assim que envolvi o braço por sua cintura, ele puxou as rédeas do
cavalo, levemente, para fazê-lo correr. Aquele foi o tempo perfeito entre a
chegada dos soldados no estábulo e a nossa saída.
Com sucesso despistamos os que corriam atrás de nós, mas só ao
estarmos na área externa, rumo ao portão dos fundos que dava caminho
para a cidade, que percebi onde foram parar os outros cavalos.
Aquelas criaturas disfarçadas de homens, cujas peles cintilavam sob a
luz da lua, cavalgaram atrás de nós. Jake agitou a nossa montaria para que
fôssemos mais rápido, mas não parecia o suficiente, eles estavam perto de
nos alcançar.
O trotar ligeiro do cavalo quase me fez soltar a lamparina, ele tentou
despistar os cavaleiros se entremeando entre as árvores altas do jardim.
Arregalei os olhos ao perceber que de pouco a pouco ficaríamos cercados.
— Pirata, vá em direção aos portões, não temos mais tempo!
— Quieto! Não vê que estou tentando despistá-los?
— E você não percebe que estão chegando cada vez mais guardas?
A contragosto ele puxou as rédeas do cavalo tão forte, que o animal
se empinou e eu tive que me prender mais à sua cintura para não deslizar.
Notei sua respiração acelerada pelo músculo das costas contraindo
rapidamente a cada esquiva que o bicho dava em direção à saída.
O plano seria perfeito, se não tivesse esquecido do portão de madeira
fechado, mas como meu pai sempre dizia: a sorte favorece os mais audazes.
E a nosso favor, naquela hora, eles estavam abertos.
— Fechem os portões! Fechem os portões! — Um dos homens
bradava do alto da muralha. No momento em que o portão começava a se
fechar, nós passamos feito uma lança pela brecha e, infelizmente, os dois
homens a cavalo que estavam atrás de nós também.
Jake se mantinha firme conduzindo a nossa montaria, mas tínhamos
que arrumar um jeito de despistá-los para que pudéssemos seguir até o píer
e esperar até que o navio chegasse. Foi então que pressionei minhas pernas
ainda mais forte contra a cela e retirei a garrafa de rum da mão do pirata.
— Ei!
— Pode deixar que não beberei tudo. — Puxei a rolha da garrafa com
os dentes e despejei todo o álcool pelo caminho, por seguida larguei a
lamparina que segurava. Assim que ela caiu, espalhafatando-se pelo chão, o
fogaréu subiu levando os cavalos dos inimigos a se assustarem e pararem
no meio do caminho.
— Não acredito que você desperdiçou o rum! — resmungou e o ouvi
murmurar um “estúpido’’.
— Você vai me agradecer depois. — Respirei aliviado e o cansaço me
acertou em cheio. Apoiei a cabeça em suas costas enquanto sentia o vento
frio da noite bagunçar meus cabelos.
Atravessamos a cidade para chegarmos àquela zona portuária
abandonada. Pelo horário, não havia ninguém nas ruas além de prostitutas e
homens mal-intencionados. Assim que descemos no píer, deixamos o
cavalo livre para ir para onde quisesse.
A brisa perto da baía era ainda mais gélida, e eu evitei ficar próximo
demais das águas. A ideia do mar me apavorava, era algo misterioso,
perigoso, que não havia onde se apoiar, e a noite ficava tão escuro que era
impossível de enxergar coisa alguma. Além disso, não sabia nadar, nunca
encostei minha pele em águas salgadas antes.
— Então é por aqui que você escaparia. Boa escolha. Esquecemos da
existência de SeVan, depois da construção da nova zona portuária — falei,
abraçando o próprio corpo numa tentativa de me aquecer devido ao frio que
sentia, não sabia se a sensação era oriunda apenas do clima ou o medo.
— Sim. — Ele deu um sorriso sagaz e abriu um pouco a blusa,
deixando que mais do seu peitoral aparecesse, dali puxou o cordão que
escondia e o ergueu de forma que a luz da lua o fizesse brilhar.
— Quando você falou que teria um navio nos esperando eu achei que
estaria de prontidão, mas pelo visto seremos capturados antes mesmo de
embarcar — resmunguei, devido à demora.
— Se tivesse um navio parado aqui não teríamos carona alguma! —
retrucou ele. — Ou você acha que ele é pequeno demais a ponto de passar
despercebido mesmo num píer abandonado?
— Talvez seja.
Ele bufou e passou a mão nos cabelos, afastando-os da testa suada,
lançou um breve olhar estreito de canto para mim e voltou a encarar o mar.
— Príncipe burro — murmurou.
— Pirata grosseiro. — Revirei os olhos.
De longe pude ouvir o som de cavalos se aproximando, virei-me
naquela direção, já começando a tremular de medo, como se fosse
desmoronar a qualquer segundo. Serei pego... acho que é melhor eu me
entregar. Elaborei um discurso mentalmente para quando fosse capturado
de novo.
Afastei meus pensamentos quando Jake me cutucou, fazendo com que
eu o olhasse e visse o enorme navio com bandeira hasteada de uma caveira
coroada, que saiu de trás de uma montanha e se aproximava de onde
estávamos.
Comecei a me sentir sufocado. Ao mesmo tempo em que poderia ser
capturado, também tinha medo de enfrentar o mar. Não sabia nadar,
certamente me afogaria, além de passar muitos dias dentro de um cubículo,
talvez sem comida.
A ideia da fuga já não me pareceu mais tão agradável assim.
— Vem, Lawrence — chamou-me o usurpador.
— E-eu não vou. Jake, obrigado pela ajuda, mas creio que a partir
daqui seguirei sozinho — falei, ao ver a rampa sendo lançada para fora do
navio de forma que pudéssemos subir.
— Ah, mas você vai. — Ele insistiu. — Preciso de você para ter o
ouro.
— Já tem a sua liberdade, não é o suficiente? — Abri os braços.
Os homens a cavalo da guarda inimiga haviam chegado, do final da
rua deu para notar os animais de pelagem branca se aproximando. Precisava
saber para onde iria correr e me esconder.
— Não.
O pirata agarrou o meu corpo de forma que ergueu meus pés do chão
e me colocou sobre seu ombro para subir, com dificuldade, a rampa daquele
navio. Comecei a me debater, quando fui jogado no piso de madeira
daquela embarcação.
— Bem-vindo de volta, capitão — falou a mulher de pele escura e
longos cabelos ondulados que usava um chapéu. Ela retirou o acessório e
entregou na mão de Jake.
— Obrigado, Arya. — Ele trocou o chapéu do disfarce pelo que lhe
foi entregue.
Respirei profundamente irritado por ter embarcado contra a minha
vontade. Levantei-me batendo nas roupas meio úmidas. Não havia mais
volta, àquela altura já estava cercado por água o suficiente, de modo que
não daria para retornar para a cidade.
— Você é um pilantra. — Passei a mão pelos cabelos. — Onde ficarei
nessa espelunca? Exijo uma cabine num bom posicionamento pelo menos.
Ele riu e apoiou a mão no meu queixo, erguendo-o levemente para
que eu encarasse aquelas íris esverdeadas em meio à escuridão.
— Lá fora você pode ser o príncipe, alteza. Mas aqui dentro, eu sou o
seu capitão. — Aproximou ainda mais o rosto do meu de forma que sentisse
o ar quente de suas narinas. Sua frase saiu em tom intimidador. — Certo?
— Sim. — Não havia como contrariá-lo, estava cercado por sua
tripulação. Aquele era seu espaço.
— Ótimo. — Afastou-se. — Só há uma cabine disponível neste
navio. — Ergueu o dedo. — E esta cabine é a minha.
— Então terei que dormir com você?
O canto de seu lábio se levantou.
Eu sabia no que estava me metendo a partir do momento em que
resolvi levar aquele príncipe para dentro do meu navio. O sacrifício foi
necessário, ele era a chave para minha anistia e o ouro de recompensa
deveria ser o suficiente para adquirir uma embarcação maior.
Lawrence Declaw era muito diferente do que eu esperava, sua
personalidade e aparência foram uma quebra de expectativa alta. Foram
anos apenas ouvindo falar de seu nome, mas jamais consegui ver seu rosto,
que sempre esteve escondido por detrás das muralhas do castelo.
O rei eu já conhecia, antes mesmo de eu entrar para a pirataria. Robert
era um homem aventureiro, devasso e dedicado ao reino, vale acrescentar
que era um bom guerreiro também. Por outro lado, seu filho se mostrou o
completo oposto. Lawrence era desengonçado, fresco, não tinha habilidades
para lutar e se atrapalhava numa simples corrida, nenhuma das boas
características de seu pai foram passadas a ele.
Contudo, parecia ser alguém muito observador. Enquanto me reunia
próximo às velas para conversar com os marujos, o curioso nobre de cachos
dourados andava pela embarcação, explorando cada canto, e não conseguia
ser menos expressivo, deixando claro o nojo em sua face.
Eu não sabia exatamente o porquê, mas desde que estive de frente
com aquelas íris azuis fiquei intrigado. Havia um certo magnetismo nele
que não dava para entender, porém eu sentia.
Minha atenção foi desviada do monarca quando começou o falatório
da tripulação a respeito dele. Eram tantas perguntas que me faziam ao
mesmo tempo, que não consegui responder a todas de imediato. Logo
questionaram sobre quanto ganhariam, o que deveriam fazer e se poderiam
jogá-lo em alto-mar.
— Gente, calma! — Ergui as mãos, fazendo com que todos ficassem
em silêncio. — Eu sei que vocês esperavam apenas por mim, mas fiz um
trato com ele e, por conta disso, é o meu dever protegê-lo e guardá-lo até ter
minh... — interrompi-me. — Quer dizer, nossa recompensa. — Dei um
sorriso sutil.
Nossa uma ova, pretendia ficar com a maior parte do ouro.
— Eu ainda não entendi. Você sequestrou o príncipe? — questionou
Gerald, meu marujo mais velho. Um homem barbudo com poucos dentes na
boca e um olho só.
Eu nem mesmo sabia se aquele era seu verdadeiro nome, Gerald era
misterioso, furtivo, se uniu à minha tripulação por pura imposição. Ele
entrou no meu navio junto dos outros piratas durante uma fuga do reino de
Astrid. O deixei ficar, afinal, ele era dedicado e sabia cozinhar com os
poucos recursos que tínhamos no navio.
— Não. Marnsala foi invadida enquanto eu estava no calabouço,
nisso prenderam a criatura esnobe ali. — Inclinei a cabeça na direção do
loiro. — E a gente fez um trato para que ele fugisse junto comigo, e caso
consiga recuperar o reino, receberemos muito, muito ouro.
— Tá, então é só nos reunirmos com alguns aliados para tomar o
lugar de volta. — Gerald ergueu os ombros. — Não deve ser muito difícil,
capitão. Marnsala é minúscula.
— A questão é que aqueles homens não são meros mortais. —
Suspirei. — Lawrence me contou que eles não morriam independente de
quantos golpes tomassem e que pareciam ser invencíveis. E eu vi suas peles
cintilarem sob a luz lunar.
Eu tinha um palpite do que se tratava aquela força sobrenatural dos
homens de Sávia, porém, não poderia expor meu conhecimento a respeito,
ao menos não naquele momento.
Boa parte da tripulação gargalhou e Strigói, o homem mais baixo e
bravo da tripulação, disse:
— Nem mesmo no meu maior porre de rum tive uma alucinação
dessas!
— Homens invencíveis, hum? — Arya cruzou as pernas com uma
expressão pensativa. — Isso me parece um feitiço.
— Começou a ciganinha a falar besteira... — resmungou um outro
marujo.
— Cale a boca, Bippo. Prossiga, Arya — disse.
Aquela mulher era a pessoa que eu mais confiava no navio. Além de
ser muito estratégica e precisa em seus posicionamentos, detinha vasto
conhecimento, principalmente sobre as coisas ocultas, devido ao seu estudo
de bruxaria com a manipulação de especiarias, dádiva essa que quase a fez
ser executada pelos moradores de seu vilarejo. Arya precisou fugir para dar
um fim à perseguição, e morou em diversas cidades, até decidir virar filha
dos mares.
— O jeito que você descreveu... parece que os homens foram
amaldiçoados. Sabe a origem deles? Algo que possa identificá-los?
— São homens do Norte. Sávia. Reconheci pela serpente dourada.
— Certo. Só há uma bruxa para o lado do Norte com habilidade de
amaldiçoar uma tropa inteira, e ela fica próxima às ilhas submersas de
Kunzel. Acha que devemos arriscar em ir?
— Sim. Não fica muito longe daqui... apenas algumas horas. —
Assenti com a cabeça. — Aproveitaremos para abastecer de suprimentos o
navio. Se importam se eu descansar ao menos duas horas antes de irmos?
Sentia o corpo tenso, dolorido e as pálpebras pesadas. O calabouço
era tão desconfortável que não consegui pregar os olhos por muito tempo.
— Pode ir descansar, capitão. Se o senhor quiser eu assumo a nossa
viagem até lá. — A mulher se dispôs.
— Obrigado, Arya. E vocês... — apontei para os outros homens —,
obedeçam-na. E poupem energia, traremos bastante coisa para o navio
amanhã. — Dei um sorriso sutil, fazendo com que os marujos se
animassem, saquear grandes lojas das cidades em que passávamos era o
combustível que os mantinha vivos.
Logo que terminei minha reunião com o pessoal, caminhei em direção
ao príncipe que estava sentado no meio da escada que dava acesso à minha
cabine e ao leme.
— Até que enfim, pensei que ficariam a noite toda de conversinhas.
— Sua voz expressou aquela arrogância presente desde a primeira palavra
que trocou comigo, acompanhada de um rosto que ficava entre o tédio e a
indiferença.
— Não era conversinha. Precisava colocá-los por dentro da situação,
e te salvei de virar comida de tubarão. Ingrato. — Coloquei a mão sobre o
corrimão. — Bem, creio que talvez tenhamos a solução para os seus
problemas. Na verdade, parte da solução.
— Ah, isso é bom! — Passou os dedos pelos olhos esfregando-os. —
Gostaria de saber mais amanhã. Agora, quero ir descansar. Quem vai me
ajudar a me banhar antes de dormirmos?
— Como assim, te banhar? — perguntei no momento em que Strigói
passava por perto. Ele não deixou de lançar um olhar de canto para o
príncipe e arquear a sobrancelha.
— Não é óbvio? Eu preciso de alguém para ao menos esfregar minhas
costas e secar os cabelos!
— Parabéns, capitão Jake, trouxe um bebê para o navio. Nem se
limpar sozinho ele sabe!
— Não estou acostumado a fazer as coisas como vocês, plebeu anão!
Por isso preciso e exijo que alguém faça para mim. — O príncipe
esbravejou para o marujo, que quase partiu para cima dele.
Coloquei o braço entre os dois. Do bolso detrás Strigói sacou seu
canivete e expôs a lâmina brilhante e afiada, o monarca de imediato
arregalou os olhos e se recolheu todo, agarrando no corrimão.
— Eu vou te enfiar a faca! Tu me chamou de quê?
— Strigói, ignore, por favor. Ele não tem senso, nem mesmo para
notar os absurdos que saem de sua boca.
O marujo ajeitou a bandana vermelha sobre a cabeça sem cabelos e se
afastou. Aqueles olhos enormes continuavam a me encarar de maneira fixa
e a expressão permanecia semelhante à de uma criança birrenta.
— Você não respondeu minha pergunta, pirata.
— Pirata? — Arqueei a sobrancelha.
— Jake.
— Jake?
No mesmo segundo notei o rosto do príncipe ser tomado por uma
coloração avermelhada e sua mandíbula ficou ainda mais marcada.
— Capitão. — Abaixou o olhar e soltou um suspiro longo. — Quer
saber? Deixa. Pessoas sujas como vocês piratas nem devem ter esse hábito,
então dormirei desse jeito mesmo. — Levantou-se e deu as costas. —
Deitarei em sua cama sujo de suor, mofo, poeira... — Começou a subir os
degraus, quando o impedi, agarrando em seu pulso.
O movimento repentino o fez estremecer sob meus dedos.
— Sim, você está certo. A maioria dos homens aqui não tem esse
hábito, mas espere aqui que pegarei algumas roupas para te levar até... até
onde nos limparemos. Tudo bem? O lugar é meio improvisado, porém
cumpre a função.
Ergui o olhar para ele. Lawrence me encarou por segundos com a
boca entreaberta, parecendo incrédulo de que aceitei banhá-lo, logo cerrou
os lábios e assentiu. Puxou seu braço num movimento abrupto e o recolheu
próximo ao peito.
— Certo.
Aquele príncipe desgraçado sempre reagia com expressão de repulsa
aos meus toques, o que me fazia arder de raiva, e pelo olhar que ele lançava
logo após parecia deixar claro que era proposital.
Subi os degraus e fui até a minha cabine, a que ficava no alto do
navio. Ela não era muito grande, porém, continuava a ser a mais espaçosa
dali. Tinha uma cama larga o bastante para que eu me esticasse, mas que
teria que dividir com outra pessoa, além de um pequeno armário com
gavetas onde guardava roupas, algumas joias roubadas e pistolas, todas
muito bem trancafiadas.
Acendi a lamparina e fui procurar por vestimentas que coubessem
nele e panos para nos secarmos. Cheirei os tecidos que não pareciam feder,
contudo, mantinham uma certa umidade e odor salgado. Esperava que
aquilo não fosse motivo de chilique por parte daquele príncipe mimado.
Quando desci os degraus agarrei em seu pulso a fim de guiá-lo até a
parte inferior do navio. Ele tentou se desvencilhar, mas segurei firme.
Foram dois lances de escadas para chegarmos até um espaço vazio,
que ficava abaixo do andar de armazenamento e dos canhões, onde não
havia nada além de alguns barris para apoiar as coisas e uma barra de
sabonete. O lugar era úmido, escuro e com cheiro de mar.
— A gente vai se limpar com água do oceano? — Lawrence
questionou enquanto caminhava pelo espaço vazio. Fez seu típico enrugar
de nariz que tanto me irritava.
Coloquei as nossas roupas limpas sobre os barris que estavam lá,
junto dos panos para nos secarmos.
— Você esperava que fosse com o quê? A água doce temos que
poupar para bebermos.
— Mas a minha pele é sensível! Essa água salgada vai deixar tudo
seco, áspero... terrível!
Rosnei. Minha paciência estava no limite com todas as exigências e
frescuras daquele príncipe. Aproximei-me em passos largos e punho
fechado, minha vontade era de golpeá-lo.
— Lawrence, preste atenção, você não está no seu reino, muito menos
tem seus súditos. Está no meu navio, sobrevivendo, porque onde você
morava não lhe pertence mais! E se eu não te ajudasse a fugir, sabe-se lá
quantos dias passaria no calabouço até te enforcarem. Então, pare — elevei
a voz — de querer que as coisas aqui aconteçam como no seu castelo! —
Enquanto eu falava, ele dava alguns passos para trás com as sobrancelhas
franzidas. Quando retirou o sobretudo e desfez o laço da camisa, abaixei o
tom de voz. — Até porque eu estou tent... o que tá fazendo?
Senti o rosto se aquecer.
— Eu já entendi, capitão. Se não há jeito, terei que aceitar essa água
fria e salgada na minha pele. — Deu de ombros. — Vocês piratas vivem em
condições tão insalubres que chega a ser triste.
No momento em que terminou de retirar toda roupa que vestia, fiquei
em conflito. Não conseguia decidir se desviava os olhos ou continuava com
a minha atenção fixa nele, que exibia sua pele alva e corpo de cintura
ligeirmente estreita sem pudor algum.
Não era do meu feitio ficar constrangido ao ver pessoas nuas na
minha frente, na verdade, estava acostumado pela vida libertina que levava.
Porém, naquela ocasião, por algum motivo fiquei tão desconcertado que
quase me perdi no que iria falar.
— Como eu estava dizendo, estou tentando o meu melhor. — Engoli
em seco e passei por ele para jogar os baldes amarrados pela pequena
fenestra que havia na parede e os enchi com água. Por ser noite, acreditei
que talvez o mar não estivesse tão gélido quanto Lawrence esperava. —
Seria bom se você fosse menos cretino e agisse de forma mais grata.
— Cretino?!
— É. — Apoiei o balde pesado no chão, que deixou parte da água
escapar. — Tudo que você tem feito desde que pisou neste navio foi
reclamar e enrugar esse nariz com desdém! Eu aceitei te ajudar e estou
tentando facilitar a nossa convivência enquanto você faz questão de criar
empecilhos mantendo essa postura de nobre arrogante.
Lawrence arregalou os olhos para mim e se calou. Eu já esperava por
aquilo, ele era orgulhoso demais para se redimir.
Peguei os dois baldes transbordando, um em cada braço, e trouxe para
perto dele.
— Obri...é... — Fez esforço para dizer. — Fico agradecido por isso.
Obrigado. — Sentou-se no chão, próximo aos baldes.
— Passe isso. — Entreguei o sabão em suas mãos para dar a
preferência a ele usar antes de mim.
Comecei a me despir. No mesmo segundo em que retirei a camisa,
percebi o rosto do príncipe se avermelhar por completo. Ele abaixou a
cabeça e se concentrou em si mesmo, molhando a mão no balde e passando
pelo corpo para umedecê-lo antes de se ensaboar.
Assim que fiquei nu, me sentei ao lado dele e fiz o mesmo. Por sorte,
a água estava em boa temperatura. Permanecemos num silêncio
constrangedor, onde apenas o som das gotas respingando no piso de
madeira era ouvido. Toda a água escorria de volta para o mar por um buraco
que foi feito abaixo da janela.
Minha respiração estava curta e a dele muito audível. A sensação de
desconforto era tão esmagadora que o espaço parecia encolher a cada
segundo.
— Jake... quer dizer, capitão. — Ele havia aprendido rápido a me
tratar como seu superior. Apesar de orgulhoso, Lawrence sabia respeitar
hierarquias. — Pode... hum... esfregar as minhas costas? Por favor —
perguntou sem sequer virar o rosto para o lado e me encarar.
Suspirei.
— Tudo bem. — Peguei o sabonete de suas mãos e ele se levantou,
também fiquei de pé e fui para trás dele.
Meus dedos deslizaram por seus ombros enquanto o ensaboava, era
uma sensação agradável senti-lo, a pele era macia, aveludada. Apoiei o
polegar bem no meio de suas costas e fui percorrendo todo caminho de sua
vértebra, fazendo com que ele estremecesse.
— Não faça isso.
— Por quê? — perguntei enquanto friccionava os dedos um pouco
mais para esfregá-lo, sem repetir tal movimento que lhe causou incômodo.
Queria me aproximar mais. Sentia uma súbita vontade de encostar
meu corpo no dele e foi inevitável apertar sua pele enquanto o limpava,
fazendo com que meus dedos deixassem rastros avermelhados que logo se
esvaíram. Aos poucos era como se uma pequena onda de calor tomasse meu
corpo e acelerasse as batidas do coração. Subi as mãos para os seus ombros,
apertando-os.
— Eu sinto uma sensação estranha. É, Jake, capitão, você tá
esfregando com muita força. Acho que já está bom. — Deu um passo à
frente, interrompendo meu toque.
Quando Lawrence se afastou, minha visão escorregou de suas costas
para a bunda. Era tão redonda, com pequenos e finíssimos fios aloirados,
feito um pêssego. Queria apertá-la, tomá-la, mas o príncipe sequer parecia
estar a par dos meus pensamentos luxuriosos.
Por que estou tentado por esse monarca azucrinante?
Recolhi os dedos, retomando a postura e peguei um dos baldes de
água para jogar sobre meu corpo a fim de tirar todo o sabão e qualquer
resquício de desejo que o príncipe tivesse despertado em mim.
Cogitei que talvez vieram tais pensamentos e sensações por ter
passado longo tempo sem me deitar com alguém, então qualquer coisa,
inclusive aquele intragável, serviria.
Logo que ele também se enxaguou, nos secamos e nos vestimos para
irmos até a cabine, tudo isso sem encarar um ao outro.
Durante o tempo em que subíamos as escadas só conseguia pensar no
quanto esperava que Lawrence não fosse tão espaçoso. Seria difícil
dormirmos juntos, caso ele se esticasse todo na cama, mesmo que ela fosse
grande, mas não o bastante para os dois.
A realeza era espaçosa, sufocante até. Dividir a cama com Lawrence
foi um desafio. Ele estava deitado de lado para a direção oposta à minha,
deixando que suas madeixas de odor cítrico ficassem próximas do meu
rosto e o traseiro numa distância muito arriscada do meu corpo.
Eu fiquei tenso. Ele parecia se afastar cada vez mais do canto da
cama, vindo para o meio, e para dar-lhe espaço eu quase caí da borda.
Aquela foi a pior noite que já tive, até mesmo o calabouço pareceu mais
confortável.
Conforme o leve chacoalhar da embarcação, pude ouvir, dentro do
quarto, um som muito conhecido por mim... o de ouro batendo em ouro,
joias, o som parecia vir do sobretudo que o príncipe trajou durante a fuga,
que estava pendurado na parede de madeira próxima a ele.
Um sorriso malicioso apareceu no meu rosto com a ideia.
Aproveitaria seu sono para roubá-lo. Aquela foi a única hora que tive
coragem de romper a distância entre nós dois.
Aproximei-me mais dele, colando meu corpo no seu para que
conseguisse esticar o braço e alcançar o bolso daquela roupa. De repente,
ele se mexeu um pouco e eu paralisei, mas suspirou profundamente
mostrando seu estado de sono.
Meu braço era curto demais para alcançar o que estava escondido
naquela vestimenta. Fiquei meio sentado na cama e me debrucei sobre o
príncipe, assim minha mão chegaria ao lugar desejado, até que tive o pulso
segurado com firmeza.
— Você é um pilantra, bandido, desgraçado, peste, traste... — O
nobre iniciou uma série de palavras chulas e até mesmo indecentes, que
nunca imaginaria que sairiam daquela boca.
Permaneci em silêncio, acreditando que ele estava sonhando, até que
me puxou de forma que rolei por cima dele e parei deitado no colchão com
a barriga para cima. Lawrence subiu no meu colo com as sobrancelhas
unidas e narinas abertas que pareciam estar a ponto de sair fumaça.
— O quê? Que isso? — perguntei.
— Você tentou roubar minhas joias enquanto eu dormia!
— Eu não tentei nada! Você deveria estar sonhando, majes...
— Alteza — corrigiu-me. — Acordei quando você encostou em mim,
mas fingi estar adormecido para saber até onde iria.
Arqueei a sobrancelha.
— Uau, confesso que não esperava tamanha sagacidade da sua parte.
Pelo visto só é tolinho quando quer. Agora saia de cima de mim... — Apoiei
as mãos na cintura dele, jogando-o sobre o colchão de forma que eu ficasse
por cima, entre suas pernas. Lawrence arregalou os olhos, aproximei meu
rosto do dele, quase tocando nossos narizes. — E não me xingue mais.
Como eu disse, sou a autoridade neste navio, mereço respeito.
— Se você exige tanto que eu te veja como superior, então aja como
um, capitão. Porque roubar de sua tripulação é uma atitude baixa. Até
mesmo para um pirata — disse, fixando seus olhos nos meus. Seus lábios
permaneceram entreabertos após me chamar a atenção.
Aquele príncipe não era tão ingênuo e bobo quanto eu pensava. Ele
poderia não ser bom em brigas e fugas, mas era um estrategista. De fato.
Falhei em subestimá-lo.
Ouvi três toques à porta e a voz de Arya.
— Capitão! Estamos próximos ao destino! Preparamos os botes para
ir até lá!
— Já estou indo! — gritei em resposta. Assim que voltei o olhar para
o príncipe, ele continuava sério, com suas íris fixas nas minhas e a
respiração curta. — Cinco minutos pra se arrumar. — Saí de cima dele e fui
para o canto da cabine próximo ao armário, puxei a porta a fim de fazer
uma cobertura para trocar as calças.
— Nós não vamos comer? — perguntou, sentando-se. — Não
comemos nada desde a fuga! Eu vou desmaiar de fome desse jeito.
Ouvir aquilo de forma tão dramática me fez respirar fortemente e
fechar os olhos por alguns segundos. Vesti uma camisa cinza de mangas
compridas e o chapéu de capitão.
— Somente ao entardecer de hoje — respondi, saindo do canto e
encontrando-o trajado com o sobretudo. — Já disse que pouparemos os
suprimentos do navio. No máximo são duas refeições. Não pense em fartura
durante a viagem, alteza.
Seus olhos sutilmente se reviraram.
— Tudo bem, capitão. Espero não morrer até a próxima refeição. —
Abriu a porta.
Quando saímos da cabine, o sol estava tão intenso que estreitei os
olhos. De longe dava para avistar a cidade onde iríamos procurar pela
bruxa. Alguns dos marujos permaneceriam dentro do navio, tomando conta
da embarcação, enquanto Arya guiaria a mim e ao príncipe até o lugar onde
a mulher ficava. Os outros homens se aprontariam para saquear.
Nós nos aproximamos da beirada do navio, que estava ancorado, onde
havia dois botes, um em cada canto. Entrei no pequeno barco de madeira e
olhei para Lawrence, que engolia em seco, encarando o mar.
Sua expressão com os olhos arregalados e testa franzida expressavam
todo seu pavor.
— E-eu tenho mesmo que entrar nisso aí? — questionou, dando um
passo para trás.
— Você tem! É para o seu interesse que estamos indo até aquela
cidade.
— Mas e se eu cair na água? Não sei nadar... e se ele virar?
Respirei tão profundamente que ele deve ter ouvido. Minha vontade
foi de puxá-lo pelo braço para que caísse no mar de uma vez, mas apesar da
vontade, eu deveria tornar nossa convivência suportável até o fim da
viagem.
— Ele não vai virar. — Estendi a mão. — Confie em mim.
Com um pouco de receio, o príncipe me encarou profundamente por
segundos, talvez se questionando se deveria realmente confiar. Sua decisão
foi feita em silêncio, entregando-me sua mão. Segurei em seus dedos,
dando apoio para ele entrar no bote.
Quando pisou os dois pés na madeira, chacoalhei seu braço de forma
que o bote se agitou, Lawrence deu um grito histérico e se agarrou em mim,
pressionando seus dedos contra meus ombros.
— Meu Deus!
Gargalhei.
Os olhos arregalados logo se tornaram estreitos e ele se afastou com o
punho fechado.
— Por que fez isso?!
— Foi pra te deixar atento.
— Não teve graça.
Ele resmungou e sentou-se. Encolheu as pernas, abraçando-as,
fechando-se feito uma concha. Assim que Arya e Gerald entraram também,
os marujos desceram as cordas para que chegássemos até a água, onde eu e
Arya tiramos os remos para remar até aquela cidade.
Os saqueadores vieram na outra canoa atrás de nós. A cada onda
maior que o mar formava, principalmente devido à ventania forte, o
príncipe olhava assustado para a água e sua respiração se tornava mais
curta.
O seu pavor me fez sentir uma pontada de compaixão.
— Calma. Foque sua visão na cidade, tudo bem? Olhe apenas para
ela, Lawrence — falei, tentando tranquilizá-lo.
Ele concordou com a ideia e manteve-se atento para o que havia atrás
de mim e de vez em quando seu olhar se concentrava no meu.
Chegamos às areias daquele lugar, saímos do barquinho e Gerald
ficou de prontidão perto da embarcação, enquanto eu, Arya e o príncipe
iríamos atrás da bruxa.
Retirei o chapéu que usava para colocar sobre a cabeça do monarca a
fim de disfarçar sua identidade. Por estarmos no Norte, não tão distante de
Sávia, provavelmente o rei invasor tinha contatos por ali, portanto, quis me
precaver.
Lawrence uniu as sobrancelhas em estranheza e colocou a mão sobre
o chapéu.
— Para que isso?
Ele parecia ter se esquecido de que sua cabeça deveria estar valendo
muitas moedas. Não quis apavorá-lo mais relembrando de que era um
foragido.
— Para te proteger do sol. Aqui é bem quente e a sua pele é sensível,
não é?
Ele deixou escapar um sorriso sutil e direcionou o olhar para o
caminho.
— Ela ficava perto do beco dos feirantes — falou Arya enquanto
caminhávamos por Istila, o local que ficava próximo às ilhas submersas de
Kunzel. Aquela cidadezinha árida nem parecia ter um governante, mal
víamos guardas passando e sequer uma bandeira com símbolo de quem
regia.
A maioria dos moradores andavam trajando chapéus e lenços sobre
seus corpos para se protegerem dos raios de sol, que eram muito fortes. Ali
não tinha cavalos ou carruagens, todos andavam a pé e carregavam seus
produtos nos braços ou sobre suas cabeças, já que se tratava de uma cidade
que era quase uma ilha.
Ao passarmos pelos becos, casinhas de pedra e pela rua dos feirantes,
era grito e agitação para todo lado, de vez em quando alguém esbarrava em
nós, passando com suas sacolas cheias ou empurrando carroças com os
produtos frescos para vendê-los.
Lancei um olhar de canto para observar a reação de Lawrence com
aquilo e até que ele não parecia incomodado, com sua típica expressão de
nojo ou desdém. Na verdade, estava deslumbrado com a movimentação e
pessoas, feito um bicho enjaulado que foi na rua pela primeira vez.
Os saqueadores não nos seguiram, não roubariam os feirantes. Eles
ficaram na parte do centro da cidade, onde havia as lojas e, principalmente,
adegas. Com vinho, hidromel e rum. Era preciso bastante álcool para
permanecer por tanto tempo no mar sem perder a sanidade.
— Por aqui — sussurrou Arya, nos chamando para dentro de um
lugar mais escuro e estreito com uma porta de madeira pintada de preto no
final do percurso.
Ela deu apenas três toques e só uma brecha foi aberta. Um homem
alto, careca e barbudo apareceu com somente a metade do rosto e foi rude
em nos receber.
— O que querem? Não quero comprar nada!
— Quero falar com Daliah. — A mulher deu uma breve pausa. —
Sou uma velha conhecida. É importante. — O homem somente bateu a
porta na nossa cara. Arya aproximou o rosto da madeira e disse: — Aishde.
Demorou um tempo, mas a porta se abriu e o homem pediu para que
entrássemos. Ergui as sobrancelhas, não entendi o que ela disse, não sabia
se era uma palavra secreta entre as bruxas, nome de alguém ou feitiço.
Aquela pirata era cheia de segredos. Mas, independentemente do que fosse,
deu certo.
Assim que entramos, fomos guiados até uma porta que estava coberta
apenas por um pano, ao passarmos por ele chegamos até onde deveríamos,
o covil da bruxa.
O cheiro de ópio era enfeitiçador, ela estava deitada de lado sobre um
sofá enquanto fumava seu cachimbo. A fumaça preenchia todo aquele
ambiente de pouca luz que havia somente algumas janelinhas estreitas,
deixando que finos raios de sol entrassem.
Nos arredores da sala tinha miçangas penduradas, armários com
vidros pequenos contendo alguma coisa, pergaminhos, papéis espalhados...
A mulher de pele bem escura e tranças compridas que caíam sobre
parte de seu rosto sorriu ao nos ver, e sentou-se, cruzando as pernas.
— O que desejam? — Ela encarou Arya. — Como sabia que eu
estaria aqui?
— Esqueceu que me disse para onde iria depois de fugirmos do
vilarejo?
— Você tem uma ótima memória. — A bruxa falou, soltando fumaça
por suas narinas. — Digam o que querem.
Aproximei-me, me sentando no banquinho que havia à sua frente.
— Preciso saber o que aconteceu com... — Esqueci o nome do
invasor, então Lawrence gritou:
— James!
— Isso, com James, um homem que invadiu Marnsala. — Enquanto
eu falava, foi possível notar a face da mulher se enrugar sutilmente.
— Aquele homem e sua tropa... — O príncipe deu um passo adiante.
— Não eram normais. Seus olhos pareciam serem desprovidos de brilho e
vida, as peles cintilavam sob a luz da lua, além de que, eu vi como apesar
de qualquer golpe que tomassem, não morriam.
A mulher encostou no sofá e levou o cachimbo à boca, sugando toda
a queimada. Liberou lentamente a fumaça pelo nariz e, em seguida, desviou
o olhar do príncipe para mim. Os cantos de seus lábios se ergueram
maleficamente.
— Por que se faz de desentendido se sabe o que eles são?
Tive a atenção toda direcionada em mim. Engoli em seco.
Eu sabia exatamente sobre o que ela estava falando. Tentei manter o
controle da respiração para que não aparentasse estar tenso.
— O quê? Não, eu não sei. Por isso viemos aqui pedir sua ajuda e
perguntar — menti.
Ela chacoalhou suavemente os ombros e a cabeça em negação.
— O que teriam a me oferecer caso eu lhes dê a solução?
— Gratidão — respondeu Arya.
A mulher riu.
— Eu não como com gratidão, não me visto ou pago o meu ópio com
isso.
Mordi o lábio pensando numa forma de persuadir aquela bruxa. De
repente, Lawrence jogou duas joias de ouro com pedras preciosas sobre o
colo da mulher.
— Isso serve?
A bruxa pegou os anéis e os colocou nos dedos, levando-os à altura
dos olhos. A luz do sol que entrava fazia com que aquelas pedras roxas e
vermelhas brilhassem, levando-a a sorrir em satisfação.
— Pelo que me dizem estes são homens desalmados. Os desalmados
fazem o feitiço da troca de suas almas por um desejo seu, e no caso, o deles
aparenta ser o de pior efeito, a imortalidade. Não morrem, porém respiram,
não sangram, mas é como se um veneno corresse por suas veias... o pior é
que só há duas coisas que podem reverter tal feito. — Encostou no sofá. —
E vocês não gostarão de nenhuma das duas.
— Quais são? — perguntei.
— A primeira, é a própria bruxa que fez o trabalho, desfazê-lo, coisa
que não deve acontecer. Somos poucas e vivemos às escondidas, então
dificilmente vocês devem encontrá-la. Além de que, eles devem ter pagado
muito bem pelo serviço.
— Achei que fosse você quem tivesse os amaldiçoado — comentou
Arya.
— Quem me dera. Estaria rica agora. — Apoiou o cachimbo sobre o
sofá e cruzou os braços.
— Tá, se não foi você, então a gente descarta a primeira
possibilidade. Qual a segunda? — disse.
— A segunda requer o néctar de uma fruta chamada Mskumi.
Somente uma gota dela é o bastante para que aos poucos o sangue circule
por suas veias e voltem a ser mortais. Podem envenenar a distribuição das
águas do reino com ela e aguardar que eles bebam.
— Está ficando um pouco difícil — disse o príncipe. — Se
envenenarmos os poços com a fruta... o que acontecerá com a população?
— Nada. Ela afeta somente os amaldiçoados.
— Certo. Onde a encontramos?
— Ela é muito rara, encontrada somente no alto da ilha B’hilla
— Mas essa ilha não existe — falei. — É uma miragem!
— Ela existe, mas não é em todo momento que conseguirá enxergá-
la. A ilha é vista somente durante os trinta minutos antes do fim do pôr do
sol até que seja submersa novamente. Então, terão que ser rápidos. A fruta é
bem característica, é arredondada, cheia de espinhos e de coloração
vermelho-vivo, feito sangue.
— Mas então... — mordi o lábio com medo da resposta. — Como
chegaremos lá?
A mulher se ergueu, foi para perto da prateleira que havia atrás do
sofá e mexeu onde tinha uns papéis enrolados, ela abriu alguns e os guardou
de volta, até que depois de ler uns três, jogou o quarto na minha direção,
enrolado feito um pergaminho.
Abri o papel e era um mapa mostrando a localização da ilha. O maior
problema era o percurso perigoso demais, passava pelo mar púrpura, e a
área obscura, um lugar que diziam haver até mesmo monstros marinhos.
Cocei a barba e olhei para o príncipe com as sobrancelhas franzidas.
Cheguei a repensar se realmente valeria a pena.
Vai ser um risco alto para a tripulação. Já tenho minha liberdade, a
anistia pode ser dispensável, porém o ouro... bem, precisamos de um novo
navio e mais recursos para munição.
Meus olhos rondaram pelo papel mais uma vez e os ergui para Arya,
depois para o príncipe.
— É o mapa, Jake, quer dizer, capitão? — perguntou ele, esboçando
um sorriso sutil.
Respirei profundamente.
Precisaria arriscar.
— Sim, é o mapa que orientará nossa jornada.
Eu, Jake e a bruxa-pirata havíamos acabado de sair do beco de onde
conseguimos todas as informações que precisávamos e, pelo visto, a viagem
seria longa. No fim das contas, aquelas joias realmente serviram para algo,
sem elas voltaríamos sem respostas.
Andar por aquela rua movimentada me levava a sorrir, gostava de ver
a vida além da muralha, sentir os raios de sol e ver cenários diferentes do
que estava acostumado. E aquela era a primeira vez em que fiquei próximo
dos plebeus e entrei numa feira, ao invés de só vislumbrar de longe.
A maior parte dos meus vinte e um anos foi presa ao castelo,
estudando e aprendendo a administrar os recursos da minha terra, mal saía
daquele espaço. Por algum motivo, nunca dito por ele, meu pai me
restringia de andar pela cidade ou acompanhar suas viagens.
Minha vida se resumia a burocracias, horas de leitura e curtos
passeios no jardim. A maioria dos nobres ficavam apenas com as funções
intelectuais, poucos exerciam trabalhos braçais. Portanto, não aprendi a
lutar, não sabia nadar e correr, talvez só conseguisse por ser algo inapto do
ser humano.
Mesmo que eu morresse durante a jornada para tomar o que me
pertencia, ainda assim sabia que valeria a pena, pois, enfim, estava vivendo.
Por mais que lá fora não tivesse os luxos e regalias do meu castelo, que
sentia muita falta, até que estava sendo divertido ver mais do mundo,
conhecer outras culturas e povos.
O cheiro de fritura me seduzia naquela feira. Ao olhar para o lado
havia uma mulher com uma barraquinha cheia de frutas, alguns legumes e
um tipo de massa frita que parecia ser deliciosa.
Imediatamente interrompi o passo.
— Eu quero — falei, salivando. Estava desesperado por comida.
Ainda tinha dois anéis no bolso, tudo bem que ele era muito mais valioso
que toda aquela bancada, porém era o que possuía. Eu não ousaria roubar
nada.
— Lawrence, a gente precisa partir. — Jake falou, segurando no meu
braço. — Os outros já devem ter pegado as coisas que precisamos e
levaram para o navio. Em breve os guardas aparecerão para procurar por
mais piratas.
— Mas estou muito tempo sem comer! Não aguentarei desse jeito,
ainda mais pelo sol!
— No navio tem comida.
— Eu preciso agora. — Tirei um dos anéis do bolso mostrando para
ele. — Então comprarei. — Comecei a andar em direção à barraquinha,
quando o pirata agarrou na minha nuca e me puxou, fazendo com que eu
desviasse do caminho.
— Guarda isso — sussurrou, ríspido. — Vou arrumar algo. Vá
caminhando na frente junto de Arya.
Bufei. Eu não sabia se deveria confiar nele, contudo não tínhamos
muito tempo e com certeza o capitão agiria como um empecilho, caso eu
tentasse algo. Não havia escolha.
— Está certo. — Segui o percurso e Jake desapareceu no meio
daquele amontoado de gente.
— Onde está o capitão? — A mulher perguntou.
— Comprando comida para mim.
— Comprando? — Ela ergueu a sobrancelha.
De repente, o pirata surgiu do meu lado e colocou uma fruta grande,
parecendo laranja, na minha mão. Olhei com estranheza. Nunca vi algo
assim antes, lembrava uma laranja, mas não era igual. Tinha casca grossa,
mais porosa, como uma cebola, além do cheiro ser forte.
— Aqui.
— Que isso?
— É uma fruta que tem alguns gominhos dentro para você comer.
— Mas isso não vai me alimentar.
— Foi o que deu pra roubar. Já disse, tem bastante comida no navio.
Suspirei e apertei a fruta, fazendo com que ela rachasse, consegui tirar
a casca e encontrar os pequenos gomos ali dentro. Levei alguns à boca,
apesar do sabor um tanto cítrico, ainda assim era adocicado.
Tudo ocorria nos conformes durante o nosso percurso, quando de
repente um homem esbarrou tão forte no meu ombro que fez com que meu
chapéu caísse.
— Desculpe, senhor! — falou o estranho e me encarou por um tempo.
— Ei... você é o príncipe de Marnsala.
— Quem? — Abaixei para pegar o chapéu. No mesmo segundo senti
o corpo gélido. — Eu não sou o Lawrence, não, nem o conheço. —
Coloquei o chapéu na cabeça e virei para andar com os passos apressados.
— Puta merda. — Jake resmungou, acelerando o andar ao meu lado.
Mas o homem não desistiu, inflou os pulmões e gritou a fim de
chamar a atenção.
— Eu encontrei o príncipe de Marnsala! Me deem a recompensa que
mereço! Ele está de chapéu junto daqueles piratas!
Olhei para trás e começamos a correr para sair dali. Achei que seria
fácil de despistar, mas àquela altura estávamos longe demais da rua da feira,
que era bem mais movimentada.
— Temos que nos separar! — alertou a mulher na nossa fuga.
— Tá legal! Nós nos encontraremos na praia! — Jake falou e segurou
no meu pulso, puxando-me para um lado e a pirata foi para o outro.
Não demorou muito para os guardas daquela cidadezinha aparecerem.
Eu e o usurpador tentávamos nos esconder dentre as lojas e em meio às
pessoas. Faltava pouco para chegarmos ao local de onde partimos, mas não
poderíamos ir direto para lá sem despistar aqueles homens.
Por dentro eu xingava e praguejava eternamente aquele maldito que
me delatou. E apesar de correr e sentir o sangue se aquecer, um súbito frio
de pavor subia pela barriga ao pensar que James, o invasor, colocou um
prêmio para quem me encontrasse.
Jake me levou para uma ruazinha estreita e pouco movimentada, onde
entramos num beco que mal cabia uma pessoa, que dirá duas, mas aquele
lugar úmido e escuro fez com que os guardas que nos perseguiam
passassem direto por nós.
Meu corpo estava colado no do pirata, era possível sentir o cheiro de
mar que ele emanava e nossas virilhas se atritavam pelo pouco espaço.
Inevitavelmente o rosto se aqueceu e a respiração se intensificou com a
situação.
Algo entre nós começou a me incomodar.
— Jake... tem uma coisa que tá entre a gente. — Tentei me ajeitar,
mas nossos corpos se esfregaram, e eu tive que parar de me mover para
conter a sensação. — Nem sei como sairemos daqui, acho que estamos
entalados.
— É a minha pistola.
— O quê?
— É a minha pistola que está entre nós.
— Você tá armado?!
Ele não respondeu, apenas caiu para o lado, de forma que
desencostasse nossos corpos e colocou somente o rosto para fora do beco, a
fim de verificar como estava a área. Jogou o braço para trás e mexeu a mão
para segui-lo.
Sorrateiramente, saí de onde estava para ir atrás dele. Corremos até a
praia, e chegando lá os piratas nos aguardavam um pouco distantes da parte
rasa. Enruguei o rosto numa cara de desagrado ao ver que teria que pisar no
mar.
Retirei os sapatos junto das meias e os segurei em apenas uma das
mãos. Minhas pernas travaram, me impossibilitando de sair do lugar, tive
que ser puxado pelo capitão e a cada passo adentro daquela água gélida,
meu corpo tremia. Não pela temperatura.
Assim que subimos no bote, os dois que nos esperavam começaram a
remar até o navio que estava parado no meio do mar.
Pensei que havíamos escapado com tranquilidade, até que ouvimos o
barulho de tiros. A primeira bala pegou na água, fazendo com que ela
respingasse em nós, a segunda passou de raspão pela madeira do barquinho.
A terceira me deu um susto tão grande que, inevitavelmente, me
joguei para o lado, fazendo com que meu corpo fosse para fora da
embarcação ao encontro do oceano.
Assim que caí, comecei a me debater e gritar em desespero, senti a
água entrar pelo nariz e boca, sufocando-me. Estava afundando. Meus
pulmões pareciam ser esmagados e o ar já não me era mais presente.
A visão pouco nítida da superfície fez com que eu enxergasse o que
parecia ser a silhueta de Jake, estendendo a mão para mim, mas por mais
que eu me debatesse, não conseguia alcançá-lo.
Chegou um momento em que minhas pernas não tinham mais força
para seguir meus comandos. Conforme engolia aquela água salgada, a
consciência já não era mais a mesma. Comecei a me sentir fraco e a última
coisa que ouvi antes de desfalecer foi o som de um corpo caindo dentro
d'água.
Meu corpo tremia por inteiro, foi como se eu tivesse morrido, perdi a
consciência por muito tempo. Despertei após tossir toda água que havia
engolido. Minha visão, ainda não muito nítida, dava para o céu azul e sem
nuvens, cheio de pássaros voando em círculos próximos à bandeira que
tinha hasteada no navio.
Eu repousava sobre o piso de madeira úmida, logo o rosto do capitão
apareceu à minha vista. Ele foi se aproximando, cada vez mais perto, até
que pegou no meu nariz e encostou sua boca na minha, dando um sopro tão
forte que me fez tossir mais água.
Quando veio com seus lábios em direção aos meus novamente,
coloquei a mão na frente do rosto, impedindo-o. O pirata me salvou, mas
depois acreditei que ele estava se aproveitando de mim.
— Tá tudo bem?
— Eu quase morri... — Sentei-me e abracei as pernas, tremendo de
frio, devido ao corpo molhado e à ventania. Involuntariamente, meus dentes
batiam uns nos outros.
— Mas agora já passou e você está aqui. — O pirata me segurou pelo
braço como quem quisesse que eu levantasse. — Vem, vamos vestir roupas
secas. — Olhou para a mulher. — Já devolvo o sobretudo, Arya. Obrigado
por me emprestar.
Assim que me ergui, ele retirou o casaco que estava sobre as suas
costas para pôr nas minhas. Agarrei a roupa para que o vento não batesse
mais.
— Capitão, podemos preparar a comida? — perguntou o anão
encrenqueiro que me ameaçou de facada na primeira noite no navio.
Só de ouvir a palavra comida meu estômago roncava.
— Eu quero comida... — falei meio desnorteado.
— Você vai comer. Vamos apenas trocar logo isso pra não adoecer,
tudo bem? — Jake respondeu. Fez um gesto para o cozinheiro e apoiou a
mão nas minhas costas para me guiar pelas escadas até a sua cabine
Quando chegamos lá, ele começou a abrir as gavetas daquele único
armário de madeira, cheio de divisórias, todas com fechadura. Pendurei o
sobretudo no cabide e retirei aquela roupa pesada de água, jogando-a no
chão.
Ainda nu, deitei-me na cama e fiquei a observá-lo de costas para
mim. Ele retirou a blusa, mostrando suas costas com algumas cicatrizes e
músculos saltados, logo que se desfez das calças para trocá-las; senti o rosto
quente.
Apertei as mãos e os dentes. Minha consciência repudiou a mesma
por me atrair por um homem, e não qualquer homem, mas um pirata.
Aquele ladrão que por diversas vezes me causou asco.
Ele se debruçou para dentro do armário a fim de encontrar roupas
para mim.
Eu não tinha vergonha de me despir na frente de alguém, era
acostumado a ter pessoas presentes na mesma sala de banho que eu para
lavarem meus cabelos, esfregar minhas costas, limpar os pés, mas o
contrário me deixava muito constrangido, nunca tinha visto outra pessoa
desnuda até a primeira noite no navio.
Não quis me permitir sentir atração por aquele homem, jamais,
precisava afastá-lo.
Logo que recuperei a noção dos fatos, indignei-me por tudo aquilo ter
acontecido por embarcar naquela canoa, coisa que nunca deveria ter feito, e
me lembrei da hora em que ele tentou se aproveitar de mim em um
momento de fragilidade. Eu havia acabado de despertar de um afogamento
e aquele pilantra teve a audácia disso.
Sentia que a única coisa que deveria cultivar por ele era repulsa.
— Sabia que não deveria ter confiado em você e entrado naquele bote
— resmunguei. — Poderia muito bem ter lhe entregado uma joia e
permanecido no navio, em segurança. Eu quase morri! Quase morri e você
ainda tentou me beijar enquanto estava meio desacordado!
— O quê? De que diabos você está falando? — Virou-se com as
roupas em mãos. Ao me ver, ele aparentava estar tão irritado quanto eu,
pois não só sua expressão era feia, as bochechas estavam avermelhadas. —
Você quem se atirou na água! — Aumentou o tom de voz, jogando as
vestimentas sobre a cama. — Eu te salvei, só isso!
— Você veio encostar sua boca na minha, mesmo depois de eu já ter
acordado. Invente outra desculpa. — Ajeitei-me sobre os lençóis, sentando-
me.
— Eu achei que ainda estivesse afogado! — berrou. — E não vou
ficar discutindo com você pelado! Vista as roupas que te dei. — Cruzou os
braços, virando o rosto em direção à porta. — Quanta autoestima, príncipe.
Realmente acredita que eu gostaria de te beijar? — Lançou um olhar
desafiador.
— Mas é claro. O que você esperava que eu fosse pensar quando
aproximou o rosto do meu, e... — interrompi-me quando, num passo rápido,
ele se sentou na cama próximo a mim.
Jake estava tão perto que me senti intimidado por ele, logo me calei.
— Quando foi a primeira vez que beijou alguém?
— Por que está me perguntando isso?
— Responda.
— E-eu... não lembro.
Eu nunca havia beijado, muito menos tinha me deitado com alguém.
A vida toda passei preso ao castelo e as minhas atividades restritas ao
estudo, administração e descanso, nada mais, então tampouco tinha tempo
para flertes.
— E alguma dessas pessoas que você um dia já beijou foi um
homem? — Deu um sorriso sacana. Ele, claramente, não estava acreditando
na minha mentira.
— Que pergunta estúpida. — Tentei esconder a insegurança. — Sabe
que em Marnsala é proibido homens beijarem outros.
— Só porque é proibido não quer dizer que não aconteça. — Ergueu
os ombros. — Já que não se lembra da primeira vez que beijou, então que
tal me contar da última? Como ela era?
— Ela?
— Sim. Você me disse que nunca beijou homens.
— Está bem, está bem! Eu jamais toquei nos lábios de outra pessoa,
tampouco dividi a cama com alguém.
— Sabia. Mentir não faz parte de suas qualidades, príncipe Lawrence.
— Irá me humilhar por ser inexperiente agora?
— Jamais. Todos fomos inexperientes um dia.
— Ah, sim. Agradeço por me poupar da importunação.
Ele riu brevemente e um silêncio preencheu o ambiente. Jake manteve
a curta distância entre nós, percebi como seu olhar alternava entre me
encarar e vislumbrar minha boca. Senti o coração bater um pouco mais
forte, as palmas das mãos suarem.
— Você quer saber o que é um beijo? — O pirata rompeu a quietude.
Franzi as sobrancelhas com a proposta. Ainda que aquele homem me
causasse tanta aversão, fiquei tentado em saber como seria beijar. Pelos
riscos da viagem talvez aquela seria a minha primeira experiência... e a
última.
— Sim — respondi baixinho, quase inaudível.
Jake aproximou ainda mais seu rosto do meu, e a agonia de tê-lo tão
perto fez com que eu fechasse os olhos. Senti o seu toque nos meus lábios,
eram macios, e pensei que ficaríamos daquela forma, apenas com os lábios
selados um no outro, até que notei sua língua, aos poucos, querendo invadir
minha boca. E deixei que o fizesse.
Conforme sua língua roçava na minha, permitindo que sentisse o seu
gosto suavemente alcóolico, percebia uma sensação diferente, algo como se
a minha respiração saísse do ritmo e estimulasse lugares ainda não tocados.
O pirata apoiou a mão fria na minha cintura e a outra sobre a lateral
do meu pescoço, como eu não sabia onde segurar, apenas pousei as duas
mãos na cama.
Nós nos afastamos por segundos, mas não foi tempo suficiente para
deixar aquela sensação passar, ele logo voltou a me beijar.
Jake desceu a mão que estava apoiada no meu pescoço para também
colocar na cintura, puxou-me para baixo com rispidez, fazendo com que me
deitasse na cama. O frio que sentia já não era o mesmo, meu corpo se
aquecia e percebia lá embaixo pulsar.
Os dedos do pirata percorreram a minha pele, enquanto nossos lábios
estavam grudados um no outro e pararam no meu mamilo. Senti quando o
circundou e o puxou suavemente, fazendo com que eu arfasse entre o beijo.
Jamais imaginei que teria qualquer sensação ali.
Sua mão desceu e percorreu toda minha barriga, até chegar onde
talvez não deveria. Assim que ele agarrou a minha rigidez, interrompi o que
fazíamos.
— O que você vai fazer? — perguntei, apreensivo.
— Aumentar as sensações de prazer do nosso beijo. — Ele não
mexeu a mão, porém, não o soltou.
Por mais que os outros nobres relatassem serem libertinos antes do
casamento, eu acreditava que não deveria me deixar ser tocado até que
estivesse com a pessoa certa, mas aquilo estava tão bom que entrei em
conflito sobre fazê-lo ou não.
— Mas... — Iria contestar, no entanto, aquela poderia ser minha
última experiência, resolvi permitir que Jake fizesse o que planejava. Calei-
me, assentindo com a cabeça.
Ele começou a movimentar a mão, deixando-me úmido e notei a
pulsação ainda mais intensa. Levei uma das mãos em seus cabelos para
puxá-los, a fim de aliviar a sensação que sentia.
Eu já não tinha mais controle, minhas pálpebras tremiam e meus
gemidos, ainda que baixos, não se continham mais. Meu corpo por inteiro
parecia queimar, sentia que estava derretendo sob seus dedos.
De repente, Jake parou e ergueu-se.
— Por que interrompeu? — questionei, ao vê-lo mexer numa das
gavetas do armário, tirando de lá um frasco com o que parecia ser azeite,
mas ao destampar, o odor preencheu o ar, lembrando flores. — Faz mais,
Jake, só um pouco mais! — implorei. Mesmo me sentindo envergonhado
por suplicar por aquilo, principalmente para um pirata, naquele momento
precisava demais da sensação de prazer.
— Farei. — Ele disse, à medida que retirava a camisa, deixando à
mostra seu peitoral com alguns pelos e um fino cordão dourado pendurado
no pescoço com uma joia. De pé pude notar o volume em sua calça,
aproximou-se com o frasco em mãos.
— O que é isso? — Sentei-me novamente, curioso.
— Óleo essencial.
— Pra que vai usar isso?
— Você já vai ver. Deite-se — mandou.
Assim que segui sua ordem, o pirata colocou um pouco de óleo em
uma das mãos, lambuzando os dedos, e a outra segurou nos meus pulsos,
colocando-os acima da minha cabeça. Apoiou um dos joelhos na cama entre
as minhas pernas e voltou seus lábios nos meus.
Enquanto sentia aquela onda de calor me tomar novamente, a mão
livre dele voltava a me tocar, fazendo um som molhado. Desceu com a
ponta dos dedos um pouco mais abaixo para o que havia depois da minha
rigidez.
Interrompi o beijo.
— Acho que você está no lugar errado.
— Nunca se tocou aqui? — Encarou-me pressionando um dos dedos
contra minha entrada, fazendo com que eu contraísse.
— Não. — Franzi as sobrancelhas. — Deveria?
— Posso fazer e você me diz se vai gostar.
Concordei. Ele apertou ainda mais meus pulsos, ao passo que sua
mão, ali embaixo, começou a deslizar com um dedo para dentro de mim,
fazendo com que todos os músculos do meu corpo se contraíssem devido à
sensação inicialmente ardente.
Choraminguei. Era estranho.
Jake começou a mexer devagar, levando-me a relaxar um pouco, logo
entrou com mais um dedo. Os movimentos continuavam lentos e aquilo
fazia com que eu me acostumasse com a sensação, que antes era incômoda,
mas depois se tornou melhor, aumentando a pulsação da minha rigidez.
Ele me encarava com um sorriso malicioso nos lábios, enquanto eu
mexia os quadris aos seus toques. Aqueles olhos tomados por luxúria
demonstravam satisfação em me ter entregue àquilo. O pirata conseguiu me
corromper.
Aproximou-se para me beijar e aumentou os movimentos de entra e
sai, de forma que eu gemesse dentre seus lábios.
Minhas batidas se aceleraram, e eu latejava tanto que queria me tocar
para aliviar toda tensão contida. Era como se eu fosse explodir, mas não
conseguiria fazê-lo, pois Jake segurava firme os meus pulsos sobre a
cabeça.
Ele voltou a estimular minha rigidez. Àquela altura, tornou-se
impossível continuar a beijá-lo, já que mesmo sem querer, meus gemidos se
tornaram ainda mais altos. Senti um formigamento que começou na ponta
dos dedos, fazendo com que eu recolhesse ainda mais as pernas e arqueasse
as costas do colchão.
Cheguei ao meu ápice, respingando sobre o próprio abdômen. Por
fim, soltou meus braços, que já estavam dormentes, e um súbito cansaço
tomou conta do meu corpo. Jake havia me deixado daquele jeito, ofegante e
melado apenas com seus toques.
Ele desapoiou o joelho da cama e se afastou.
— O que você fez comigo? — Aproximei as sobrancelhas,
encarando-o.
— Te dei prazer. Não era isso que eu disse que faria? — Sorriu
sutilmente.
— Disse que me mostraria o que era o beijo, mas foi muito além.
Também posso te dar prazer? — Sentei-me.
O pirata se aproximou da beirada da cama. O volume presente em sua
calça estava ainda maior, ele apoiou a mão no meu queixo, erguendo-o, para
que o encarasse de baixo para cima.
— Não creio que saiba fazer isso. Por isso não exigirei de você agora.
— Então me ensine, capitão.
O canto de seu lábio se ergueu e, ainda segurando no meu rosto, usou
a mão livre para abrir o primeiro botão de sua calça, e antes que
conseguisse abrir o segundo, ouvimos um toque na porta, seguida pela voz
do anão.
— Capitão, capitão, capitão!
Jake respirou profundamente e se afastou de mim, voltando a abotoar
a calça. Aproximou-se da porta para responder:
— É muito importante? — Chacoalhou a cabeça. — Quer dizer, já
estou indo. — Soltou um suspiro longo e apoiou a testa na madeira,
abaixando as pálpebras por segundos. Direcionou um olhar de canto para
mim. — Dependendo do que for, já volto para te buscar. De qualquer forma,
acho que talvez seja melhor que se vista o quanto antes.
— Está bem. Espero que seja comida. Não aguento mais morrer de
fome!
Jake riu e abriu a porta da cabine, deixando o lugar.
Bufei, jogando-me na cama novamente. Assim que a sensação boa
passou e tomei noção de tudo que havia acabado de acontecer, levei as
mãos ao rosto, arrependido.
— Eu não deveria ter me deixado levar, isso jamais poderia ter
acontecido. Que erro!
Eu tinha acabado de deixar a cabine num misto de irritação, por ter
sido interrompido, com confusão pensando em como eu e o príncipe esnobe
chegamos àquele ponto. Tentei abstrair meus pensamentos do que
aconteceu minutos atrás.
Era difícil não sentir tesão ao me lembrar dos sons manhosos que ele
fazia, o jeito que suas bochechas estavam coradas e como se contorcia aos
meus toques. Pena que não me permitiram acabar de vez com todo
puritanismo que havia nele.
Desci as escadas para ir até o convés onde os marujos estavam
reunidos. Arya colocou as mãos na cintura ao me ver.
— Achei que fosse trocar toda a vestimenta também, capitão. Não
entendi ter vestido apenas as calças.
Puta merda.
Os últimos momentos foram tão intensos, que me tiraram a atenção e
acabei por sair da cabine do jeito que estava. Pensei numa desculpa rápida.
— Eu procurava por uma blusa, só que o Strigói me chamou com
urgência e não deu tempo de achá-la. Quero saber qual é o problema. —
Tentei manter a postura, pedindo aos céus para que ninguém tivesse ouvido
os gemidos do Lawrence, senão ficaria bem mais difícil mentir sobre o que
eu estava fazendo lá dentro.
— Ah, sim. — Ela apontou para as escadas que davam para a parte
inferior do navio. — É para lá o problema.
Strigói próximo da descida acenou.
— Aqui, capitão!
Desci para ver o que aconteceu. A questão foi que as pessoas
responsáveis pela comida, que no caso eram ele e outros três homens,
perceberam que alguns alimentos não estavam cheirando tão bem, nisso
pediram para que eu avaliasse e permissão para atirar o que seria descartado
para fora do navio.
Era menos comida a bordo, mas o suficiente para conseguirmos
chegar até a próxima parada de abastecimento, isso se não passássemos por
nenhuma intercorrência. Acreditei que talvez fosse melhor ficar alguns dias
à base de água, em caso de dificuldades, do que comermos algo estragado e
adoecer.
Os rapazes estavam quase terminando de preparar os pratos com
carne seca, grãos e vinho para acompanhar nossa refeição. Subi de volta
para o convés e fui até o tombadilho, onde Arya permanecia na direção do
navio.
Aproximei-me dela para conversar a respeito do que faríamos.
Ninguém, além de nós dois e o príncipe, sabia o que havia no mapa.
— Mais tarde faremos o planejamento de toda a rota da viagem.
Quero que me ajude a cuidar deste navio durante o percurso. Parte da minha
atenção, infelizmente, está sendo desviada para aquele inútil.
— Inútil? — Ergueu uma sobrancelha com sorriso desaforado
estampado nos lábios. — Não fale dele assim, capitão, já que é xingamento
da boca para fora. Eu percebi a forma que olha para ele às vezes, já te vi
assim antes, sei muito bem o que significa.
Ri brevemente.
— Está interpretando errado, Arya. Eu não gosto do príncipe, mas
devo tratá-lo decentemente por negócios. Sem ele não teremos todo o ouro
que merecemos, muito menos a minha anistia — disse uma meia-verdade.
Poderia não gostar do príncipe, mas era inegável que algo em mim ele
provocava.
— Se está dizendo, quem sou eu para discordar. — Aproximou-se,
apoiando a mão no meu ombro e sussurrou: — Só peça para que os
gemidos sejam mais baixos na próxima vez, quem sabe assim você consiga
disfarçar melhor o que estavam fazendo. — Aquelas palavras fizeram meu
rosto queimar de vergonha.
— Arya... mais alguém além de você ouviu? — Desviei o olhar do
mar para encará-la.
— Creio que não. Só eu estava aqui em cima.
Fechei os olhos, soltando o ar aliviado.
— Ainda bem.
— Agora vá terminar de vestir a roupa, a comida já, já deve estar
saindo. — Piscou enquanto voltava a girar a roda do leme, mudando a
direção do navio.
Retornei para a cabine. Ao abrir a porta, Lawrence estava vestido e
deitado na cama, apoiando as mãos sobre a barriga, assim que me viu se
sentou rapidamente com os olhos bem abertos.
— É comida, capitão? — Sorriu esperançoso, sorriso aquele que me
fez querer refletir sua expressão tão contagiante.
Apesar de ele ter uma personalidade intragável na maioria das vezes,
eu conseguia reconhecer sua beleza e algo me fazia querer estar perto dele.
— Sim. Em breve estará pronta.
Vesti uma camisa e sobretudo, recolhi as minhas vestimentas
molhadas e as dele para que pudesse pôr para secar lá fora. Deixei a cabine
e estendi os panos, depois retornei e encontrei o príncipe de braços cruzados
e feição entediada.
— Na próxima vez que forem roubar algum lugar, bem que poderia
ser uma biblioteca. Não há nada para fazer aqui, além de olhar para o teto
ou encarar o infinito azul que nos cerca — resmungou.
Seu tesão havia passado, trazendo à tona as atitudes irritantes de
sempre.
— Não há nada pra fazer porque você não está trabalhando no navio,
mas se quiser te arrumo algo rapidamente. — Apoiei as mãos na cintura.
Lawrence gargalhou e veio para a beirada da cama, de forma que
ficava mais próximo de mim.
— Muito obrigado pela oferta, capitão, mas devo lembrá-lo de que
não estou aqui para exercer funções. — Abaixou as pálpebras até a metade
dos olhos, deixando-o com uma expressão de desdém.
— Então não reclame de tédio.
— Não tenho culpa se o único passatempo de vocês, piratas, é roubar
e beber.
Dei dois passos para perto dele e coloquei a mão em seu queixo,
erguendo-o para que me encarasse de baixo para cima, tendo a mesma visão
de minutos antes de nos interromperem.
— Esqueceu de mais um passatempo, alteza.
— Qual?
Ingênuo.
Curvei-me para que pudesse aproximar o rosto do dele, deixando que
nossas respirações se encontrassem.
— Foder.
Eu sabia que aquilo iria provocar o puritano.
O loiro franziu as sobrancelhas, deixando que uma coloração
avermelhada tomasse conta de suas bochechas, abaixou o olhar e recuou,
ligeiramente, o rosto em silêncio. Aquela reação tirou de mim um sorriso
maldoso.
Soltei seu queixo, e assim que Lawrence entreabriu os lábios para
dizer algo em resposta, bateram à porta, seguido por um: “a comida está
servida!”, rapidamente o príncipe saltou da cama e abriu a porta, deixando a
cabine sem me direcionar mais uma palavra.
Aquela foi a minha primeira refeição dentro do navio. Não era
sentado numa mesa grande e farta, seguindo regras de etiquetas e sob
iluminação de lustres caríssimos. Fiquei sentado sobre um barril, comendo
feito um bicho faminto com os talheres que me foram dados, sob uma meia-
luz de lamparinas que estavam penduradas nas paredes de madeira do
convés.
Não sabia se era a fome ou se realmente eles eram bons em cozinhar,
eu me alimentei pela segunda vez com aquele prato feito de carne salgada e
grãos cozidos. Assim que terminei, bati o talher sobre o prato.
— Gostaria de mais!
— Não! Você já extrapolou comendo pela segunda vez, se deixarmos
você comer tudo não sobrará comida para o resto da tripulação até o fim da
viagem — resmungou um homem com barba grande e tapa-olho.
— Não tem mais nada para comer?
Aquilo era um pesadelo.
— Agora só amanhã — falou Jake, aproximando-se com a garrafa de
rum nas mãos. — Precisamos nos desfazer de alguns alimentos, logo
teremos que poupar ainda mais. Se quiser beber, temos álcool de sobra. —
Riu, seguido por mais um gole, onde algumas gotas escorreram por seu
queixo e caíram no peitoral.
Naquele momento, pude compreender o motivo de ele ter um cheiro
forte de cachaça e como sua língua tinha sabor alcoólico. Sabor aquele que
eu não pretendia provar nunca mais.
— Já bebi dois copos de vinho e não pretendo tomar outro. Faço
vergonha quando estou bêbado. — Preferi não entrar em mais detalhes.
A primeira vez em que me embriaguei num baile foi também a
última, lembro-me de meu pai me chamar a atenção para ser mais discreto
quando dançava ou conversava com os convidados. Ele sabia que eu era
diferente e o quanto seria perigoso permitir que aquilo transparecesse. O dia
seguinte aquele foi ainda pior, não só a ressaca moral veio à tona, como as
dores de cabeça também.
O capitão se sentou no barril ao meu lado, dando um sorriso
maquiavélico.
— Nossa, mas você é tão fraco assim pra bebida? Dois copos é
pouquíssima coisa.
— É porque ele não é um pé de cana que nem você, Jake! — berrou o
anão, fazendo com que os outros tripulantes gargalhassem.
O usurpador apoiou a garrafa no chão e inclinou-se um pouco para
trás, o suficiente para que conseguisse colocar a mão no bolso e tirar de lá
um pequeno caderno com algumas anotações.
Os outros piratas se aproximaram de nós, formando uma roda.
— Estive com Arya fazendo o planejamento da viagem... — Quando
ele disse isso, a mulher logo se sentou no chão, no meio do círculo de
pessoas, e estendeu o mapa. — Como os senhores podem ver, é perigoso o
percurso e a viagem é longa, mas com o planejamento correto,
conseguiremos atingir nosso objetivo.
— Ah, até parece. Com certeza morreremos antes de voltarmos para
esse mar — bradou um dos homens, fazendo com que os outros
começassem com uma série de murmúrios com ''está louco?'', ''vamos
morrer!'', ''de quanto ouro estamos falando?''.
— Acho que dependendo da quantidade de pagamento é melhor
jogarmos esse príncipe no mar e continuarmos a saquear as outras
embarcações — sugeriu um careca.
Soltei uma gargalhada, mas ao ver que ri sozinho percebi que não se
tratava de uma piada. Arregalei os olhos com medo e pensei no quanto
aquelas pessoas me odiavam a ponto de querer me matar. A tripulação
começou uma discussão, até que o capitão gritou.
— Calem a boca! — Assim que todos se aquietaram, continuou. — O
pagamento será muito grande, fora que não se esqueçam de que a maior
parte dos saqueamentos vinham das embarcações que saíam ou entravam
em Marnsala. Além disso, o Maldição do Rei terá passe livre pelo território
dele. A marinha não nos atrapalhará mais.
— Passe livre pelo território? Mas eu nunc...— Antes que pudesse
terminar de falar, Jake colocou a mão por trás de mim, dando-me uma
beliscada. — Ai! — interrompi-me.
— Ah, então deve valer a pena — falou o anão e os outros homens
começaram a concordar.
— Exatamente, Strigói. Vale. A. Pena — disse Jake, todo mentiroso.
— Portanto, não jogaremos o príncipe no mar, aliás, não quero que o
machuquem de forma alguma. Ele deve ter a nossa proteção. — Pegou a
garrafa apoiada no chão para mais um gole, umedecendo a garganta. —
Enfim, mostrarei o planejamento. — Abriu o caderninho. — Primeiro,
passaremos na cidade de LeDovic para abastecermos o navio, então
seguiremos na rota que há atrás daquela cidade, para evitar a marinha deles,
e iremos pela baía de Sá até chegarmos ao mar novamente, ultrapassaremos
pelo mar púrpura, depois paramos na ilha Coeg, por último a área obscura...
— Passar pela área obscura?! Tem monstros marinhos gigantes por lá,
capitão! — berrou um dos homens.
— Isso é um mito. Eles não existem.
— Mas se existem bruxas e sereias, como que não vai existir monstro
gigante, senhor? Isso não tem lógica! Eles existem! — gritou o careca, que
provavelmente fazia uso de muito ópio.
Estreitei o olhar. Para mim era óbvio que alguém inventou a
existência de monstros naquela área para afastar os piratas de algo muito
valioso.
— Você já viu um, senhor Steve?
— Não.
— Então eles não existem. — Jake argumentou, fazendo com que os
outros dessem de ombros. — Continuando, após isso chegaremos perto da
ilha B’hilla, onde aguardaremos pelo pôr do sol para que ela apareça. Eu e o
príncipe embarcaremos nos botes para pegarmos a fruta. Depois de
retornarmos, só seguir pela rota contrária para voltar pra Marnsala.
Dúvidas?
Os outros balançaram a cabeça negativamente. Eu não havia
compreendido muito bem as paradas, idas, vindas e todas as rotas, mas a
tripulação entendeu e aceitou o planejamento sem protestar.
Aqueles homens não eram apenas selvagens em alto-mar que
badernavam e surrupiavam tudo por onde passavam. Eles conheciam todas
as rotas, lugares, faziam estratégias... eram tão, senão mais organizados que
uma marinha. Talvez aquele fosse o motivo pelo qual Jake conseguiu, por
tanto tempo, atrapalhar as minhas exportações sem receber nenhuma
retaliação.
Não só isso, o capitão se destacava dos outros piratas, ele era
diferente, e a cada dia que passava perto dele suas particularidades ficavam
mais evidentes, a começar pela aparência muito higienizada para um pirata,
com seus cabelos curtos e barba bem aparada. Ele era um homem bem
persuasivo, diplomático e o que mais me surpreendeu foi que sabia ler. Essa
última habilidade, em específico, me intrigou muito.
Olhei-o de canto pensando que seria bom ter aquele usurpador na
minha marinha, ninguém melhor para conhecer todas as estratégias de
roubo e navegação dos piratas do que um próprio pirata.
A lua cheia estava brilhante no céu, sua luz ajudava a manter o mar
não tão escuro e o clima menos amedrontador, estar no oceano era como se
estivesse parado no meio do nada, mesmo que racionalmente soubesse que
saíamos do lugar. Não ter referência era aterrorizante, perdia a noção de
espaço.
Os homens riam e se divertiam, embriagando-se e cantarolando pelo
convés. Jake permanecia em silêncio sentado ao meu lado, terminando
aquela garrafa de rum com seu olhar fixo no horizonte. Apesar da força que
ele fazia para manter a expressão neutra, pude notar o quanto estava
preocupado. Aquilo não parecia nada bom.
Arrastei o barril para perto dele a fim de extrair suas angústias.
— Acha que iremos morrer durante o percurso? — falei.
O capitão arregalou os olhos brevemente e direcionou sua atenção
para mim.
— Sempre há uma chance. Teme a morte?
— Não. Eu sei que ela é inevitável... — Desviei as íris dele para o
horizonte e soltei o ar devagar. — Apenas temo ir embora sem deixar um
legado, morrer sem antes experimentar como realmente é viver. E você, tem
medo do seu último suspiro?
Sua risada escapou pelo nariz.
— Não. Acho que passei na fila da morte mais vezes do que deveria,
na verdade. Então quando o momento chegar, estarei pronto. — Deu mais
um gole em seu rum.
— Mas e quanto à sua tripulação? Acredita que eles também estão
prontos para a morte?
— Eu não sei.
— Então por que resolveu arriscar?
Naquele momento ele se calou e permaneceu em silêncio por
instantes, apenas observando sua tripulação. As sobrancelhas se franziram e
os lábios se recolheram.
— Porque é isso que grandes líderes fazem. — Encarou-me. — Sem
riscos, não há ganhos. E sabendo o quanto a recompensa será boa para eles,
resolvi aceitar o desafio. — Tampou a boca da garrafa com uma rolha.
— Entendo — assenti, ainda que não concordasse.
Diferentemente do usurpador, eu não gostava de arcar com riscos,
muito menos quando os casos não dependiam apenas de mim. E isso me
amedrontava quando o assunto era assumir o trono, porque sabia que não
cuidaria apenas de plantações e suas distribuições, meus poderes
expandiriam para as tropas, guerras e defesa de território, portanto, assim
como meu pai e Jake, precisaria arriscar.
Desafios como estes me faziam pensar se eu realmente era digno da
sucessão do trono.
Mesmo que os piratas estivessem fazendo algazarra no convés, um
silêncio pairou entre mim e Jake, que manteve a expressão reflexiva.
— Posso provar um pouco? — perguntei, estendendo a mão para a
bebida apoiada no piso, a fim de manter uma conversa.
— Pode. Infelizmente você me pediu tarde demais porque só tem um
dedinho sobrando. — Entregou-me a garrafa.
— É só pra eu experimentar... — Destampei e assim que apoiei o
vidro na boca e o virei, senti o queimar na garganta e, apesar do gosto meio
adocicado, achei péssimo. Espontaneamente, meu rosto se contraiu numa
careta fazendo com que Jake risse. — Horrível! — expressei, pondo a
língua para fora.
— Você que não sabe apreciar uma boa bebida. — Tirou a garrafa da
minha mão, colocando-a no chão.
Conversamos um pouco mais sobre a viagem. Aos poucos o
usurpador me fazia mudar a percepção que tinha sobre ele, que antes achava
apenas um homem asqueroso e selvagem, depois passei a enxergar com
certa admiração sua liderança e pensei que por vezes gostaria de ser assim.
Permanecemos do lado de fora enquanto aguardava a hora de ir
dormir. Tudo mudou quando o homem de um olho só desceu do alto do
mastro e veio até nós com uma feição assustada.
— Capitão, capitão! Um navio à vista! Mas não é.... qualquer navio,
s-senhor... — A voz ficou trêmula ao fim da frase.
— Navio? — Jake se ergueu para pegar o instrumento, que parecia ter
uma lente, da mão do homem e o seguiu para ir até o alto do navio ver o
que era.
Levantei-me e tentei olhar na direção do que estavam observando. De
longe, percebi uma coisa de luz esverdeada, como um pontinho,
aproximando-se, mas a velocidade com a qual aquilo chegava mais perto
era rápido demais em relação a nós.
— Mas o que diabos é aquilo? — murmurei um questionamento.
Jake desceu de onde estava e voltou para o convés para falar com um
homem, o que parecia ser o mais velho da tripulação, e eles começaram a
conversar com muitos gestos, até que o capitão ouviu tudo que ele dizia, em
silêncio, assentindo com a cabeça.
Percebi o momento em que seu peito se encheu de ar e esvaziou-se
num suspiro longo, ele se voltou para os seus marujos desatentos e gritou:
— Atenção! O holandês voador está se aproximando!
Aquilo foi o bastante para que começasse uma agitação e corre-corre
pelo convés, além de murmúrios entremeados que mais pareciam
choramingos. Cheguei perto dele para questionar que raios era aquilo.
— Capitão, quem é o holandês voador?
— É um navio fantasma que tem como sina navegar pelos mares sem
rumo.
— E qual o problema de passarmos por esse navio? Não estou
entendendo! É só um barco abandonado.
— Não é apenas um barco abandonado. É, literalmente, um navio de
fantasmas. Se os tripulantes de lá nos virem, teremos que lutar contra os
mortos-vivos até o amanhecer — justificou. Apoiou a mão no meu peito
para que eu saísse de sua frente e gritou para a tripulação, que pegavam
suas espadas e pistolas. — Não precisaremos lutar se não quisermos. Basta
não nos mexermos ou emitir qualquer som quando eles passarem por nós!
— Eles estão mais perto! — berrou o homem dentro de uma cerca do
alto do mastro.
Todos tomaram uma posição e eu fui para perto do barril de onde
estava, ficando atrás dos outros piratas. Se fosse para morrer, preferia não
ser o primeiro.
O que era um ponto verde distante, aproximou-se de nós e, então,
enxerguei o enorme navio pirata que parecia um esqueleto, cujas velas
estavam esburacadas, navegando um pouco acima do mar. Flutuava. Dali
percebi o que era o ponto esverdeado e brilhante. Era a tripulação ali
presente.
Eles cantavam algo em um coro que fazia com que as garrafas
apoiadas no nosso navio trepidassem bem levemente, de maneira quase
imperceptível, e minhas pernas tremiam tanto de medo que não acreditei
que me aguentariam em pé até que eles passassem.
O tempo ali pareceu congelar. Todos ficaram parados feito estátuas no
momento em que o navio fantasma começou a parear com o nosso. Não se
mexa, não se mexa, calma, Lawrence, vai passar... mentalizei durante
aquele momento, sentindo meu coração bater tão rápido que era como se
fosse sair do peito.
Os homens que cantavam suas canções olhavam na nossa direção.
Suas peles acinzentadas e um tanto translúcidas eram rodeadas por uma luz
esverdeada que também brilharam em suas íris. Até mesmo o papagaio que
estava sobre o ombro do homem de chapelão e barba comprida, que parecia
ser o capitão deles, era um fantasma, percebia-se pela translucidez e asas
que mostravam os ossos através da pele.
O pássaro saiu de cima do ombro do capitão-fantasma e sobrevoou o
nosso navio de homens-estátua. O holandês voador parecia que seguiria seu
rumo sem mexer conosco, até que o papagaio passou tão perto do meu rosto
que dei um ligeiro passo para trás, que, aparentemente, passou despercebido
até mesmo pelos fantasmas.
O problema foi que encostei na garrafa de rum que tinha atrás de
mim, e ela rodou. Rodou. E caiu.
Nem mesmo nos meus piores pesadelos eu havia presenciado uma
cena daquelas. Os piratas-fantasmas aos poucos deixavam a transparência
de seus corpos para tomarem uma forma física, onde era possível notar,
através da pele, o branco dos ossos, além do cheiro fétido de carne podre.
A luz esverdeada que havia em seus redores se apagou, concentrando-
se apenas nos olhos, então o capitão do navio inimigo retirou a espada da
bainha e apontou para o nosso barco.
— Preparem-se! — berrou Jake.
Em seguida, a tripulação de mortos-vivos lançou cordas nos mastros
do nosso navio e se penduraram neles, pulando do lugar de onde estavam
para o nosso, exceto pelo líder, que voou até aterrissar perto do meu
capitão.
Eles iniciaram uma batalha, fazendo com que as espadas riscassem
uma na outra, o que formava faíscas enquanto lutavam. E por mais que Jake
conseguisse golpear o pirata-fantasma, ainda assim não surtia efeito algum,
ele parecia ser oco. Não havia sangue, os órgãos deveriam ser pó, eram
formados apenas por ossos e uma fina capa de pele cinza.
Todos os piratas do nosso navio atiravam, lutavam e enfrentavam o
inimigo. E eu só dava alguns passos para trás, pensando em como sair
despercebido de toda aquela confusão, não sabia lutar com humanos, muito
menos contra aquelas aberrações.
Peguei a garrafa vazia de rum para tentar me defender, caso alguém
viesse para cima, e comecei a andar devagarinho, porém, fui agarrado por
trás, tendo o corpo apertado fortemente na cintura.
— Surpresa! — falou a criatura, fazendo com que eu desse um berro.
O cheiro ruim de carniça entrando pelas minhas narinas me fez ficar
enjoado.
A minha única reação foi bater com a garrafa por cima do ombro, no
rosto do morto, fazendo com que ele me soltasse. Saí correndo, quase
escorregando, pelas madeiras do convés, enquanto era seguido pelo
monstro.
Desviei de facadas, tiros e espadadas.
Não sabia se era pelo frio da noite ou pelo medo, mas meu corpo
inteiro parecia gelado, e o coração batia tão forte que, por um segundo,
achei que morreria subitamente antes mesmo de alguém me matar.
Subia as escadas, quando caí por ter tido o tornozelo puxado. Meus
braços ardiam e a barriga doía pela queda, ao olhar para trás, o homem com
a metade do rosto em esqueleto começou a me puxar para baixo. Agarrei na
madeira gritando e tentei chutá-lo com a outra perna.
O monstro segurou no meu outro tornozelo e começou a me puxar
com mais força, quando ouvi o som de um tiro que o levou a me soltar.
Concentrei os olhos no que havia por de trás dele, era Jake, que me encarou
por segundos até desviar a atenção para o pirata que tentava atacá-lo.
Aproveitei a brecha para me erguer e terminar de subir as escadas até
a cabine, onde me esconderia até o amanhecer. Antes que pudesse fechar a
porta, um braço apareceu tentando me pegar. Comecei a bater a madeira
contra ele, até que aos poucos o braço foi se recolhendo e, por fim, ao
fechar com força a porta, ouvi um barulho angustiante de algo se
quebrando.
Percebi que o dedo do pirata-fantasma havia caído e ele andava feito
minhoca no chão.
— Santo Deus! — Não sabia se subia na cama, recolhendo os pés, ou
se batia naquele troço. Então, num surto de coragem, comecei a pisar em
cima do dedo, diversas vezes, até que ele parou de se mexer. — Ao menos
fiz alguma coisa — comentei, ao ver aquilo estatelado no chão. Segui à
risca o lema de ‘’se não for ajudar, não atrapalhe’’ e me mantive quieto
dentro do quarto.
De lá dava para ouvir o barulho abafado da confusão. Retirei os
sapatos e me deitei na cama para aguardar que tudo acabasse. O colchão
estava tão macio, e os lençóis atrativos, que acabei fechando os olhos um
pouco e adormeci.
Estava no meu terceiro sono quando ouvi um barulho alto vindo da
porta do quarto, sentei-me num pulo e esfreguei os olhos a fim de enxergar
melhor aquela silhueta de quem estava na minha cabine. Era o capitão que
havia entrado. Ele me encarou com as sobrancelhas unidas, lábios franzidos
e as narinas bem abertas, seu rosto estava avermelhado e os cabelos
bagunçados.
— Bom dia? — falei.
Jake caminhou em passos largos até mim, estava claramente furioso.
— Por que você fez isso?! — gritou.
— Por que você está bravo comigo? Eu não fiz nada!
— Você tinha somente um trabalho, Lawrence, um! — Ergueu o
dedo. — E nem mesmo ficar quieto você conseguiu. Tivemos que lutar até
o amanhecer enquanto você dormia feito uma donzela!
— Pare de gritar comigo! — Fiquei de joelhos na cama. — Não
chamei atenção dos fantasmas por querer, foi um acidente. E não sei lutar, o
que você queria que eu fizesse?
— Eu... sei lá, tentasse ser útil!
— Saia do meu quarto, por favor — retruquei, apontando para a
porta.
— Mas a cabine é minha! — Ele enfatizou a última palavra. — Então
quem teria que sair é você. — Rangeu os dentes. — Quer saber? Acho que
talvez seria melhor se eu te entregasse para o... qual o nome dele mesmo?
James! — Aproximou o rosto do meu. — Ele deve estar pagando muito
bem pela sua cabeça, talvez mais do que você pretende me dar, será um
bom negócio.
Estreitei os olhos.
— Você se acha muito esperto, não é, capitão? Mas aquele homem
está procurando por mim como um louco, não apenas por ser um fugitivo,
mas porque sou útil para ele. James tem interesse nas riquezas da terra de
Marnsala e não sabe administrá-las, precisa de mim para isso. — Dei de
ombros. — Então, quem você acha que ele vai matar? O príncipe que tanto
procura ou o cara que o ajudou a fugir?!
Jake bufou e agarrou no meu rosto, apertando-me as bochechas, de
forma que os lábios se assemelhassem a de um peixe.
— Talvez eu deva deixar que a tripulação te jogue ao mar, eles agora
querem mais do que nunca isso. — Deu um sorriso maléfico e me soltou.
— Antes vivo e sem ouro do que morto por conta de um nobre inútil.
Inútil. Aquela palavra que era repetida por minha mãe sempre que eu
falhava em algo. Ela não cansava de dizer o quanto eu não servia para nada
no reino e em como duvidava de que eu seria capaz de governar. Às vezes
eu concordava com ela.
Senti culpa. Tomei noção de que, desde que embarquei naquela
viagem, só havia trazido problemas e não me preocupava nem um pouco
em resolvê-los. No entanto, aquele homem bravo na minha frente era minha
única esperança de conseguir tomar o reino de volta, ser útil e deixar um
legado.
Parei de ficar somente de joelhos para também apoiar as mãos na
cama, demonstrando uma posição de submissão. Uma trégua. Era o
momento de deixar meu orgulho de lado por uma causa maior.
— Então me faça útil, capitão.
Jake levou as mãos ao rosto, esfregando-o e me olhou com uma
feição incrédula.
— O que quer dizer com isso? — Franziu o cenho.
— Quero que me ensine a lutar, nadar, navegar... não sou muito bom
em trabalhos braçais, mas sou ótimo em aprender as coisas. E se isso vai
melhorar nossa convivência e garantir a minha sobrevivência neste navio,
eu aceito.
Apesar de não querer fazer absolutamente nada, deveria me adequar
àquele ambiente e situação. Além de que, seria importante manter uma boa
relação com Jake, afinal, estávamos juntos num mesmo propósito. Nossas
diferenças deveriam ser deixadas para trás em algum momento.
— Ah, sim... — Sentou-se na cama e, em seguida, deixou que as
costas recaíssem sobre o colchão. — Bom saber. Se é assim, começaremos
amanhã mesmo. — Aos poucos desceu as pálpebras. Ele estava
visivelmente cansado, adormeceu daquele jeito.
Olhei para aquele pirata exausto enquanto dormia e pensei no quanto
ele havia feito por mim até então. Mesmo que fosse de seu interesse, Jake
não tinha por obrigação me colocar na melhor cabine, proteger-me do sol,
dentre outras gentilezas.
Soltei um suspiro longo.
Eu nunca tive o costume de agradecer ou retribuir coisa alguma para
ninguém, até porque no meu reino todos serviam a mim e a minha família
por imposição, eu era apenas simpático com os representantes dos reinos
próximos e nobres de Marnsala. No entanto, naquelas condições, deveria
começar a cultivar o sentimento de gratidão e retribuir as ações.
Então, mesmo que aprender a lutar fosse um esforço, seria benéfico
para deixar Jake em paz de ter que me defender o tempo inteiro, além de
melhorar a imagem de covarde que a tripulação, provavelmente, criou de
mim após aquela noite de terror.
Se sobrevivesse, voltaria ao meu reino como um novo homem, aquele
que a população se sentiria segura em se deixar governar.
Mesmo que eu tivesse adormecido durante o ataque, ainda assim
descansei bastante após minha discussão com o pirata. Ao abrir os olhos,
percebi que ele havia acordado primeiro que eu.
Jake estava sem camisa, na beira da cama com a cabeça abaixada.
Sentei-me e encarei suas costas por um tempo, mas ele sequer notou que eu
estava consciente. Com delicadeza retirei os lençóis de cima e fui
engatinhando, sorrateiramente, pelo colchão até ele.
Observei por cima de seus ombros numa tentativa de ver do que se
tratava, e eram apenas anotações de bordo em um caderninho numa mão,
enquanto a outra segurava uma maçã intacta.
— Bom que já acordou. Pensei que ficaria dormindo até a manhã
seguinte — falou sem nem mesmo virar o rosto na minha direção.
— Como soube que eu havia acordado? Sequer olhou para trás —
questionei, dobrando os joelhos para me sentar na cama.
— Senti a sua respiração na minha pele. — Levantou-se e virou-se
para mim. — Trouxe pra você. — Estendeu a mão com a fruta.
— Por que isso? — Franzi o cenho e peguei a maçã, passei o dedo
por ela e a apertei sutilmente. A casca ainda estava rígida, a fruta era quase
fresca. Olhei para ele. — Não está mais bravo comigo?
— Um pouco, mas nos acertamos, não é? Fizemos um trato, e isso
significa que devemos tentar nos dar bem. — Apoiou as mãos na cintura. —
Coma, é bom para os dentes. As maçãs ajudam a limpar a boca, além de
serem bem saborosas.
Ergui a sobrancelha. Aquela frase me pareceu bem sugestiva.
— Capitão... está sugerindo que tenho mau hálito?
— Não. Até porque da última vez que provei, sua língua tinha um
sabor cítrico de tangerina. — O canto de seu lábio se esticou.
Senti o rosto se aquecer ao me recordar daquele beijo e das coisas que
aconteceram após, como tudo havia saído do meu controle.
— E-está me cortejando?
Ele se aproximou ainda mais da beira da cama, de forma que sua mão
conseguisse alcançar meu rosto e a colocou sob meu queixo, erguendo-o
sutilmente.
— Não. Apenas respondi o que você me perguntou, mas se quiser
considerar isso como um cortejo...
Apoiei a mão sobre a sua para afastar seu braço do meu rosto, e
encarando firmemente seu olhar malicioso, resolvi falar:
— Pois saiba que se for, não obterá de mim o que deseja.
Aquela frase fez com que ele recolhesse o braço, cruzando-o frente ao
corpo.
— Como assim?
— Temos um trato de boa convivência agora, mas eu me arrependi do
que aconteceu depois do beijo, está bem? Aquilo foi um erro! Um erro! —
Desviei o olhar para a porta. — Falha esta que não pretendo cometer
novamente.
— Não entendi direito, o que foi um erro? — Apoiou o joelho sobre a
cama, de um jeito que pudesse se aproximar mais do meu rosto. Mesmo
sentindo sua respiração quente na minha bochecha, ainda assim me mantive
olhando para a porta. — O erro foi aquele momento em que deixou que eu
te dedasse ou quando suplicou por mais?
Puxei o ar com tamanha audácia e voltei a encará-lo, deixando nossas
faces numa distância perigosa. Ainda que dissesse não querer mais um
toque daquele pirata, sentia-me desconcertado com sua presença,
principalmente quando ele invadia meu espaço daquela forma.
— O erro foi eu ter me deixado levar pelas carícias de um homem,
principalmente de um pirata. Um plebeu, sem títulos, normas ou etiquetas.
Ele riu brevemente.
— Você esteve cercado toda a vida por homens e mulheres da mais
alta classe, alteza, todos nobres de sangue-azul, assim como você. Mas se
somente títulos e terras fossem tão importantes para despertar o seu
interesse... — Aproximou-se do meu ouvido e sussurrou: — Não teria se
mantido intocável por tanto tempo, não é mesmo? — Os seus sopros
enquanto falava baixinho fizeram com que todos os pelos do meu corpo se
erguessem. — Muito menos aceitaria, com facilidade, as carícias de um...
como você disse mesmo? Pilantra. — Voltou seu rosto ao encontro do meu,
onde nossos narizes quase se encostavam. — Então, todo esse
arrependimento é orgulho, não? — Sua voz era tão serena que me
amedrontava.
Afastou-se, ainda com a sua atenção fixa nos meus olhos.
Senti o coração acelerar as batidas, o rosto se mantinha aquecido e em
minha garganta era como se houvesse um nó. Os pensamentos se
embaralhavam, sequer consegui formular uma sentença de imediato para
respondê-lo. Depois de muito esforço consegui rebater.
— Não é apenas orgulho. Eu me sinto culpado pelo que fiz, como um
homem sujo... e de pouca honra.
O pirata franziu as sobrancelhas e soltou o ar devagar. Ele expressou
pena, o sentimento que eu odiava que tivessem por mim.
— Imagino que se sinta assim por conta de onde você veio, mas
estamos no mar, alteza, aqui nenhuma regra de reino se aplica. Então, quem
iria te julgar além de si mesmo?
Me faltaram respostas. Pressionei os dedos contra a maçã que
segurava e a levei à boca para comer. Jake diria mais alguma coisa, seus
lábios se entreabriram, mas antes que qualquer palavra saísse ouvimos um
toque à porta.
— Capitão? — Era a voz aguda do anão encrenqueiro.
— Já estou indo. — Jake respondeu, ainda me encarando. — Pense
nisso, Lawrence. — Pegou a camisa pendurada no cabide e a vestiu, depois
trajou seu chapéu. — Assim que terminar de comer, saia. Começaremos
seus treinamentos hoje.
Logo que ele fechou a porta, soltei o ar, aliviado. Estava em conflito.
Ao mesmo tempo em que me sentia tentado a provar mais dos toques
daquele pilantra, ainda assim era tomado por um profundo sentimento de
culpa, como se não devesse ceder. Não parecia certo.
Fui criado em um berço de ouro, segui por toda minha vida regras,
obedeci às hierarquias, nunca me misturei com a plebe e aquele maldito
pirata ia contra todos esses princípios. Primeiramente, se tratava de outro
homem. Segundo, ele vivia na ilegalidade, numa realidade sem ordem,
luxos ou títulos. Eram mundos totalmente diferentes que não se
combinavam e nem deveriam.
Nossa relação não era só imoral, mas um crime e incompatível.
Inspirei fundo e terminei de comer a maçã, arrumei os cabelos, vesti o
sobretudo e deixei a cabine. Estreitei os olhos quando encontrei com a forte
luz do sol.
O pirata direcionava o navio, mantinha-se concentrado no que estava
fazendo. Aproximei-me dele.
— Não disse que iríamos treinar, capitão?
— E você vai — respondeu, sem desviar os olhos do mar.
Antes que eu dissesse algo, ouvi um assobio vindo lá do convés, ao
olhar para baixo, a bruxa-pirata segurando uma espada, com outra presa à
cintura, acenou.
— Venha, príncipe! Já estou com as espadas!
Dei uma risada breve.
Enquanto descia os degraus para ir ao encontro dela, agradeci pela
distância disfarçar o meu sorriso presunçoso, acreditei que seria como tirar
doce de criança lutar contra uma mulher.
— Qual é a minha? — perguntei.
— Essa aqui.
A pirata me entregou o cabo, assim que o segurei, ela soltou e eu
quase me desequilibrei. Não esperava tanto peso.
— Meu Deus, essa espada é feita de quê? Chumbo?
A bruxa-pirata gargalhou.
— Não acredito que nunca pegou numa espada antes, alteza.
— Infelizmente, não... e nem tive curiosidade, ao menos não até
agora — falei enquanto tentava achar uma pegada boa para aquele
instrumento. Ela se aproximou para apoiar minhas mãos no lugar certo. —
Todos os meus treinos serão com você?
— Não, só alguns. A maioria será com Jake, mas ele está ocupado
agora, já que estamos em direção ao nosso próximo destino.
— Ah, sim.
— Vamos começar, então? — Ela retirou a espada da bainha. —
Primeiro, sempre antes da batalha, você deve se posicionar bem, atente-se
aos pés, isso lhe dará melhor equilíbrio, justamente por conta do peso da
espada. — Posicionou-se e refleti sua pose. — A luta consiste em
movimentos de ataque, onde você deve se ater aos pontos vitais e
movimentos de defesa. Vamos começar primeiro pela defesa, tudo bem?
Assenti com a cabeça. A mulher começou a mostrar com a espada
como se faria os bloqueios e, em seguida, pediu para que eu repetisse. Veio
até mim, simulando alguns ataques para que eu tentasse me defender.
E assim seguimos com os outros movimentos que faziam com que os
metais se atritassem e eu mudasse de lugar. Sentia as batidas fortes e a
respiração entrecortada, além de parecer uma criança tentando aprender a
andar, pois minha coordenação era lenta demais.
— Meu... senhor... — falei, ofegante. — É muita coisa! Pensar e
agir... — Sentia o suor se formando por debaixo dos meus cabelos, estava
cansado.
A mulher, no entanto, permanecia intacta e de postura impecável, o
que me surpreendeu muito.
Eu não deveria tê-la subestimado. Por Deus, que coisa difícil.
— De início é assim mesmo, depois se torna quase instintivo. — Deu
um sorriso sutil.
— Poderíamos continuar depois? — Deixei que a espada recaísse no
chão e me sentei sobre o piso úmido de madeira. Aquilo, certamente, não
era para mim.
Ouvi um som distante de risadas e ao olhar para cima era Jake
gargalhando.
A mulher assentiu, guardando a espada, e apoiou as mãos na cintura
para me observar quase morto de exaustão.
— Não é tão fácil assim, né, alteza? — falou alto o capitão.
— Eu nunca disse que seria fácil! — gritei. — Mas isso aqui... por
Deus! — Bufei.
— Você precisa se mexer mais, príncipe, desse jeito vai morrer cedo
— disse a mulher, aproximando-se de mim e bagunçou meus cabelos. —
Cuidado para seu coração não te matar. — Afastou-se.
Apesar da exaustão, fiquei com a sensação de dever cumprido.
Esbocei um sorriso e fechei os olhos.
Faziam três dias que iniciei meu treinamento. No primeiro, apanhei
bastante, no segundo... bem, não foi tão diferente do primeiro, mas consegui
notar certa evolução, principalmente por elogios vindos de Jake. No
terceiro, tive o tão merecido descanso, contudo, não fui deixado à toa, o
capitão quis que eu explorasse mais do trabalho da tripulação.
Eu estava no andar de baixo do navio, empesteado por vapor e um
cheiro que fazia meu estômago roncar. Lambi os lábios ao ver a panela
borbulhando com alguns alimentos dentro, dos quais não consegui
exatamente identificar.
— O que está cozinhando, anão? — perguntei.
Ouvi o pirata respirar profundamente.
— Caldeirada de peixe. Eu tenho nome, é Strigói, não anão —
respondeu de uma forma ríspida, jurei que a próxima frase seria um
xingamento, mas ele se calou e continuou a mexer a colher de madeira.
O homem mais velho da tripulação que exibia apenas um olho, onde o
outro permanecia tampado por uma faixa que cruzava seus cabelos
grisalhos, cutucou-me com o cotovelo.
— Você não sabe o perigo que se meteu o chamando assim. Sorte sua
que tem a proteção do capitão. — Ele gargalhou, uma risada grave com
pausas.
— Perdão, mas eu não sabia o nome dele. Muito menos sei o seu,
pirata. — Coloquei as duas mãos para trás e entrelacei os dedos, curvei o
corpo sutilmente para bisbilhotar mais da panela.
Minha boca salivava a cada mexida que o pirata cozinheiro dava no
caldo. Nunca valorizei tanto os momentos das refeições, isso porque tinha
direito a comer apenas duas vezes ao dia, então cada vez que conseguisse
me alimentar era como um presente dos céus.
— Steve — disse o homem ao meu lado.
— O quê? — Desviei a atenção da panela para seu rosto enrugado.
— Me chamo Steve. — Apoiou a mão no próprio peitoral robusto. —
Já que você não prestou atenção no nome de ninguém, além do capitão,
faço questão de me apresentar. Sou o mestre do navio, com a função de
vigiar as velas e a podridão do convés.
— Como assim a função de vigiar as velas? Você não cuida da
cozinha igual ao anã... Strigói? — Franzi as sobrancelhas.
— Não. Cada um aqui tem uma função, se todos fizéssemos a mesma
coisa, nada daria certo. Assim como na marinha, num navio pirata todos
tem seus cargos. Jake é o nosso capitão, eu, o mestre do navio, Strigói é o
cozinheiro, ele quem reparte os alimentos e prepara as comidas, Gerald
ajuda na cozinha e é o carpinteiro, qualquer coisa que perceber um
problema, pode falar com ele para que conserte.
— Certo — assenti, pensando no quanto eu havia ignorado a presença
dos outros tripulantes desde que pisei naquela embarcação. Eu passei dias
dormindo e acordando no mesmo lugar sem conhecer as pessoas que
estavam ao meu redor. — E Arya? O que ela é?
— A ciganinha é uma faz tudo — disse ao fundo um homem de
cabelos longos castanhos e barba cheia que descia até seu peito. Ele
segurava uma garrafa de rum e apoiava o corpo nos barris. — A bruxa não
é o braço direito do capitão à toa, é a imediata dele, a única capaz de
substituí-lo. Ajuda o capitão nas decisões estratégicas, muitas vezes cuida
da direção e da nossa saúde. A propósito, prazer, Bippo, homem de armas.
— Puxou a pistola presa à sua cintura e a rodou nos dedos.
Balancei a cabeça em afirmação enquanto absorvia as informações. A
cada dia que passava com os piratas, notava o quanto estava equivocado a
respeito deles, que aos poucos desfizeram a imagem que tinha de meros
selvagens em alto-mar.
Eles eram organizados, estrategistas, bons lutadores e atiradores, além
de conhecerem as rotas e perigos das águas muito mais do que qualquer
homem da marinha.
— A comida está pronta! — falou o anão. — Bippo, se puder se
levantar e ajudar a montar a mesa.
O pirata meio bêbado bufou e bateu forte com a garrafa no chão,
estremeci. Fiquei surpreso de que ela não se rachou. Sua expressão brava,
de olhos meio caídos deixou claro o quanto não queria fazer aquilo.
— Eu... eu posso arrumar. — Prontifiquei-me e esbocei um sorriso,
tentando ser mais prestativo. Foi uma forma que encontrei de tentar me
redimir com os piratas, pois sabia que não era bem-vindo ali.
— Como se você soubesse fazer isso, não lava nem os próprios pés
sozinho! — O pirata cozinheiro falou, fazendo com que os outros dois
gargalhassem alto.
Senti o rosto quente e pressionei os dentes com força.
— Pois vocês verão! Irei arrumar essa mesa como nunca visto antes!
— Dei as costas para eles, batendo os pés fortemente no piso em direção à
estante escura de madeira onde estavam empilhados os pratos e talheres.
Naquele dia, devido ao sol extremamente intenso, não comeríamos no
convés, e sim no andar debaixo do navio, onde os alimentos estavam sendo
preparados. Os tripulantes haviam improvisado uma mesa de madeira com
uma tábua apoiada em barris, forrado por um tecido verde de cortina
roubada.
Dispus os pratos com os talheres apoiados em ordem, como eram
colocados nos banquetes do castelo, e busquei por pequenos pedaços de
pano que servissem de guardanapos.
Percebi que enquanto arrumava a mesa, os piratas me encaravam de
braços cruzados. E o que antes eram apenas três, tornou-se quatro quando
um deles desceu, e por fim, a tripulação inteira, exceto pelo capitão.
Terminei a arrumação colocando uma fruta no centro e abri os braços
junto de um sorriso para eles.
— Acabei! O que acharam?
Um silêncio longo demais preencheu o espaço, até que o pirata mais
velho de um olho só disse:
— É, ficou bom. Só não tem espaço para colocar a panela, né? —
Cruzou os braços.
— E-eu não tinha pensado nisso. — Aos poucos desfiz o sorriso e
mordi o lábio.
— Não tem problema, cada um pega seu prato, se serve e depois senta
à mesa — falou a mulher-pirata. — Bom trabalho, Lawrence.
Os cantos dos meus lábios voltaram a se esticar. De repente, a última
pessoa começou a descer, o capitão. As botas pesadas de Jake faziam
barulho a cada degrau e ao ver a mesa, arqueou uma das sobrancelhas.
— O que está acontecendo aqui?
— Um almoço diferente — disse o pirata cozinheiro.
— Diferente... — Ele me lançou um olhar de canto. — Essa
arrumação pomposa foi ideia sua?
Comprimi os lábios e afirmei com a cabeça.
— Não gostou?
Jake se aproximou de mim e deu duas batidas com a mão pesada em
meu ombro.
— É... até que ficou bom. — Estreitou as pálpebras, porém sua
expressão séria não se manteve por muito tempo, logo um sorriso apareceu
em seu rosto e eu sorri igualmente.
Durante a refeição, a tripulação não poupou elogios ao cozinheiro,
que ficava de peito estufado de orgulho de si mesmo, especialmente quando
as palavras vinham de seu capitão.
Ao término do almoço, enquanto eu recolhia os pratos com a ajuda
dos piratas mais velhos, Steve e Gerald, notei pelo canto do olho as
encaradas que Jake me dava, como se quisesse dizer algo.
Chegou o momento de descanso pós refeição, e enquanto os outros
piratas estavam no andar debaixo conversando, preferi me afastar para
respirar ar puro. Subi as escadas até o convés.
O sol de fim de tarde já não estava mais tão intenso, seu calor foi
substituído pela ventania fresca que indicava o aproximar da noite. Sentei
num dos degraus que dava caminho para a minha cabine e fiquei a olhar o
céu alaranjado.
— Você tem me surpreendido, Lawrence. — Ouvi a voz do capitão,
que me fez abaixar o rosto para encará-lo.
— Por quê?
Ele se sentou ao meu lado e inclinou a cabeça para trás a fim de
vislumbrar o céu, da mesma forma que eu estava fazendo antes.
— Não esperava que você realmente fosse se dedicar às atividades no
navio, principalmente aquelas de cargos mais baixos. — Deixou uma risada
baixa escapar. — Quem diria que eu viveria o bastante para ver Lawrence
Declaw, o príncipe de Marnsala, mexer em pratos sujos.
Dei de ombros.
— É o mínimo que pude fazer para me redimir pelo que aconteceu na
noite do Holandês voador. — Tombei a cabeça de lado para encará-lo.
— Acho bom o que está fazendo, mas não quero que suas ações se
apoiem somente em culpa. — Jake abaixou o rosto e o virou para me olhar.
Vislumbrei o mar sereno presente em seus olhos.
Nossas respirações se encontravam e os dedos estavam tão próximos
que se esbarravam sutilmente.
— Não se preocupe com isso, capitão. Eu me comprometi em ser útil
e dar o meu melhor nesse navio, e é exatamente o que estou tentando fazer.
Se o que eu fizer der errado, ao menos posso me considerar um homem de
palavra por ter tentado.
Ele riu e apoiou a mão sobre a lateral do meu pescoço, deixando seu
polegar abaixo do meu queixo.
— O povo de Marnsala com certeza sentirá muito orgulho de você.
Aquilo fez meu coração vibrar.
— Eu espero que sim.
Notei a forma em que seus olhos se alternavam entre os meus e a
minha boca, eu fazia o mesmo, senti-me esmagado por uma sensação
pesada que apertava o peito. Jake afastou a mão de mim, apoiou os dois
cotovelos nos degraus e encarou o horizonte.
— O ruim é que vai perder o posto de príncipe gato.
Ri brevemente e dei-lhe um leve empurrão com o ombro.
— Príncipe gato, por Deus! Esqueça disso.
O pirata me encarou de canto e imitou com a mão as garras de um
gato, seguido por uma gargalhada.
Permanecemos sozinhos no convés até o sol se pôr, e ao chegar a
escuridão da noite os marujos subiram para aproveitar um pouco de seu
tempo livre sob a luz da lua antes do horário de recolher.
Virei para o lado na cama e respirei fundo sentindo o aroma cítrico e
salgado que os cabelos de Lawrence emanavam, mas ao abrir os olhos ele
não estava ali, somente seu cheiro nos meus travesseiros. O que me
surpreendeu. Ele não costumava acordar antes de mim.
Sentei na cama e esfreguei os olhos, por seguida vesti uma blusa, o
sobretudo e o chapéu. Antes de deixar a cabine, ouvi o som de metal contra
metal, e somente ao estar do lado de fora vi a luta de espadas que acontecia
no convés.
Apoiei ambas as mãos no apoio de madeira e do alto observei
Lawrence dar tudo de si num treinamento com Bippo, enquanto Gerald e
Steve ficaram apoiados no mastro cochichando algo.
Ao vê-lo assim, jamais diria que ele e aquele príncipe esnobe que
pisou em meu navio eram a mesma pessoa. De vez em quando Lawrence
deixava transparecer parte de sua personalidade azeda, mas era notório o
esforço que fazia para melhorar.
Creio que até mesmo a minha tripulação, que tinha tanta dificuldade
em aceitar novos membros, estava a gostar dele. A maioria pelo menos.
Senti um aperto em meu ombro e logo Arya se pôs ao meu lado,
deixando a direção do navio livre.
— Estamos começando a ficar sem recursos, capitão. Temos menos
de um dia para que toda a comida acabe — disse ela.
Respirei profundamente e a encarei. Os ventos fracos dificultaram a
nossa chegada rápida em LeDovic, que era para acontecer em apenas três
dias, mas se tornaram cinco. E mesmo que Strigói estivesse fazendo a
comida em porções menores, não conseguiríamos fazer render mais.
— Se continuarmos assim, teremos que pedir para os homens se
reunirem no remo. — Cocei a barba. — Não esperava que o tempo fosse
estar tão contra nós. Um dia de atraso além do previsto tudo bem, agora
dois...
— Vamos manter a calma. — Arya tirou uma bússola de seu casaco e
a olhou. — Acredito que de hoje não passa.
— Não diga nada ao príncipe, não quero que ele perca o foco dos
treinos pelo pavor do racionamento de comida — falei. Após essa frase, um
sorriso com os cantos dos lábios para baixo apareceu no rosto dela. — O
que foi? — Arqueei a sobrancelha.
Minha imediata olhou para o convés e observou o príncipe lutar.
— Você está começando a gostar muito dele, não é, capitão? —
Exibiu parte dos dentes.
Senti as maçãs do rosto se aquecerem.
— Não sei ao certo. — Pressionei mais meus dedos contra a madeira
de apoio. — Lawrence tem algo que me atrai, como se fosse uma força
externa que me puxasse para ele, e o que antes era somente essa atração,
agora se tornou uma coisa... diferente. Uma sensação morna que me faz
querer estar ao lado dele.
— Isso não seria amor? — Encarou-me.
Desviei a atenção do príncipe para ela.
— Acho que está muito cedo para dar nomes, mas é algo bom. —
Voltei a olhar para o monarca, que após derrotar o meu mestre de armas
ergueu o rosto em direção à roda do leme e sorriu, seguido por um aceno ao
encontrar comigo e Arya em seu campo de visão. — Algo um pouco além
de uma amizade, talvez.
Os ventos de meio de tarde logo se tornaram presentes e bagunçaram
meus cabelos à medida que abaulava as velas. Olhei para o alto, aquilo era
um bom sinal.
Retirei do bolso do sobretudo o caderno de bordo e preenchi com as
anotações a respeito do clima. Precisaríamos pegar muito mais mantimentos
não perecíveis do que o planejado para que não passássemos mais
dificuldades.
O tempo em que estive na marinha foram úteis para me ajudar na
organização da tripulação e planejamento dos saqueamentos, eu acreditava
estar em vantagem em relação aos outros piratas por ter esses
conhecimentos, mas o mar sempre dava um jeito de mostrar que eu ainda
tinha muito o que aprender e jamais deveria subestima-lo.
Deixei que Arya descansasse e tomei a direção do navio, precisava
seguir o fluxo dos ventos para chegarmos mais rápido ao nosso destino.
À noite, quando estava próximo do toque de recolher, e o convés
vazio, Lawrence subiu para o tombadilho e encostou na porta da cabine
com as mãos para trás.
— Falta muito para chegarmos em terra firme, capitão?
Eu não queria dizer a verdade para ele, porém, com certeza o atraso
em direção a LeDovic foi assunto entre a tripulação.
— Por que a pergunta?
— Strigói disse que passaremos fome em breve. Isso é verdade? —
Franziu as sobrancelhas, onde seu olhar transbordava pavor.
Creio que o que mais Lawrence temia além do mar era a fome.
Sempre que o assunto mexia com comida ele entrava em um desespero
nunca visto antes.
— Não. Amanhã pela manhã devemos estar chegando em LeDovic.
Houve apenas um pequeno atraso.
Ouvi seu suspiro de alívio. Ele desencostou da madeira e se
aproximou de mim, pondo-se ao meu lado, seus olhos se mantinham no
horizonte escuro, marcado apenas pelo rastro da luz da lua nas águas.
— Jake, se você pudesse escolher outra vida... qual seria? —
Encarou-me.
— Nenhuma. Já tive outra vida antes e esta é a que escolhi viver. —
Desviei os olhos do mar para suas íris.
— Escolheu viver como um marginal?
— Escolhi viver como um homem livre. E você? Qual vida
escolheria?
— Acho que a mesma, de príncipe. Mas um príncipe com liberdade...
e talvez de outro reino. — Voltou a vislumbrar o mar. — Gosto de
Marnsala, contudo, às vezes sinto que não pertenço a ela e jamais irei suprir
as expectativas de meu povo. Nunca serei como meu pai.
— Não precisa ser como seu pai para seu povo gostar de você,
Lawrence. Talvez só de governar bem já deve ser o suficiente. — Girei a
roda da direção. — A plebe fica ocupada demais tentando sobreviver para
se importar com a honra ou reputação que um rei tem entre os nobres.
Ele deu um sorriso discreto.
— Pode ser que sim. — Passou a mão pelos braços. — Estou exausto
de hoje, meus músculos doem, vou me deitar um pouco mais cedo. —
Afastou-se em direção à porta da cabine. — Boa noite, capitão.
— Boa noite.
Mais tarde, quando minha imediata despertou de seu descanso, ela
subiu para o tombadilho e tomou a direção do navio.
— Vá dormir, capitão. Deve estar exausto de ficar em pé por tanto
tempo.
— Obrigado, Arya. — Dei duas batidas em seu ombro e me recolhi
para a cabine.
Lawrence havia deitado na cama sem ter apagado a lamparina, onde a
luminosidade do fogo me permitia ver a parte de cima de seu corpo
desnudo. Ele abriu os olhos quando encostei a porta e virou-se de lado para
me encarar. Um sorriso discreto apareceu em seus lábios.
Tirei o chapéu e casaco e os pendurei no gancho próximo à entrada.
Por fim, desfiz do laço da minha blusa branca e a coloquei sobre o chapéu.
Sentei na cama, puxei os lençóis até a cintura e me deitei de frente para o
príncipe.
Nos encaramos por um tempo, em completo silêncio. Eu queria beijá-
lo, sentir novamente a suavidade de seus lábios e acariciar a pele macia, e a
forma que Lawrence me olhava demonstrava seu desejo de fazer o mesmo.
Tive a iniciativa de arrastar meus dedos por debaixo dos lençóis para
perto dele e timidamente encostei em sua cintura. Ele não recuou ou tirou
minha mão.
Cheguei mais perto, a cada vez que nos aproximávamos a tensão
entre nós se enlevava e meu coração pulsava rápido. Foi a primeira vez em
que me senti ansioso para tomar alguma atitude.
Lawrence fechou os olhos e eu selei nossos lábios calmamente. Aos
poucos ele entreabriu a boca, sendo mais permissivo ao beijo.
A primeira vez em que o beijei foi boa, mas a segunda se tornou ainda
melhor, pois não sentia somente tesão por aquele homem que estava em
minha cama, mas admiração por ele. Alguém que passei a gostar da
companhia.
Pressionei forte meus dedos contra sua pele e eu latejava
intensamente com o roçar das nossas virilhas, minha respiração se tornou
afobada. Quando deslizei a mão para dentro de suas calças, Lawrence
segurou meu pulso.
— Desculpe, Jake, eu não consigo.
Afastei a mão de perto dele e abri os olhos.
— Por que não? Já fizemos antes.
— E eu já expliquei que não deveríamos sequer ter feito a primeira
vez. — Ele chegou ligeiramente para trás. — Você é um pervertido, capitão.
— O quê? Por que só eu sou o pervertido, se você claramente também
quer?
— Vamos continuar apenas como bons amigos. — Deu as costas e
puxou os lençóis até a orelha. — Boa noite.
Aquilo estava bom demais para ser verdade. Respirei profundamente,
levantei da cama e apaguei a lamparina.
— Boa noite, Lawrence.
Na manhã seguinte acordei com batidas fortes na porta e a voz
entusiasmada de Arya que gritava.
— Capitão, capitão!
Olhei para o lado e o príncipe continuava adormecido, com os lençóis
tampando seus ouvidos. Coloquei ao menos a camisa e o chapéu e abri a
porta da cabine. Gerald estava com um monóculo no tombadilho e Arya
apontava para frente.
— Terra à vista! — gritou Strigói do convés.
Arregalei os olhos e desci as escadas rapidamente para chegar perto
da beirada do navio. Coloquei as mãos na madeira para que pudesse me
apoiar e senti a brisa morna de início de tarde bater em meus cabelos. De
longe, já dava para ver a cidadezinha que, diferente da outra, parecia mais
moderna. As casas e estabelecimentos com arquitetura de tamanho desigual.
Sorri, aquela seria mais uma etapa do percurso perigoso em que
conseguimos passar.
— Senhores! Chegamos ao destino! — berrei, apontando para frente.
— LeDovic!
Esperava que tudo desse certo durante nossa estadia.
Tudo parecia conspirar contra nós naquela viagem. O objetivo seria
ancorar o barco próximo a LeDovic e chegar até aquelas terras através dos
botes. Para o nosso azar, o mar que antes estava livre foi tomado aos poucos
pelos navios da marinha e, por isso, jamais passaríamos despercebidos.
Cocei a barba pensando em como faríamos. Precisávamos passar
naquela cidade para reabastecer o estoque ou passaríamos fome durante
muitos dias até chegarmos em outra.
— Não acho que iremos atracar sem sermos notados, capitão — disse
Strigói.
— Sei disso. Estou pensando numa forma de chegarmos à ilha sem
que nosso navio seja apreendido ou entrarmos em combate.
Arya subiu as escadas com o olhar fixo em mim, ela sabia do
problema e, com certeza, viria com uma solução. Aquela mulher tinha
muitas viagens em suas memórias e guardava detalhes sobre cada lugar,
arquitetando estratégias que muitas das vezes davam certo. Cada vez mais
ela se mostrava digna do posto que ocupava.
Ela quem deveria ser o capitão, ou melhor, capitã, mas os marujos
jamais se permitiram serem mandados por uma mulher, por mais
competente que ela fosse. Por isso a coloquei como minha imediata, assim
eles a teriam que respeita-la por obrigação.
— Capitão, ao que parece a ilha está sob vigia não só no mar, como
também deve haver guardas em terra. James com certeza espalhou bem a
procura pelo príncipe.
— E o que sugere?
Arya deu um sorriso de canto e olhou em direção à cidade.
— Que contornemos a ilha. Na posterior dela há uma floresta
próxima ao mar, onde podemos nos abrigar até o anoitecer. Com o cair da
noite ficará mais fácil de passarmos sem sermos percebidos.
— E essa área não fica isolada? Ou muito distante do centro?
Precisamos chegar à cidade para o reabastecimento.
— Não muito. Chegaremos à cidade em uns vinte ou trinta minutos
de trajeto a pé em meio à mata.
Assenti e pedi para que Steve, o marujo que estava na direção do
navio, parasse de se aproximar da ilha para fazer o contorno a fim de
ancorarmos atrás dela. Seguiríamos o plano de Arya e eu torcia para que
tudo desse certo.
Logo que o navio chegou à região posterior de LeDovic, foi ancorado
em alto-mar e resolvemos colocar daquela vez quatro botes em direção à
ilha, precisaríamos de mais homens para que a carga de suprimentos fosse
maior.
Durante as remadas até terra firme, o príncipe permaneceu com a
expressão de pavor, encolhido no meio da pequena embarcação, evitando
olhar para as águas à sua volta.
— Vou precisar te ensinar a nadar o quanto antes, ou não sobreviverá
até o final da viagem com essa fobia de mar.
Lawrence franziu as sobrancelhas e sua face expressou certa
melancolia.
— Para ser sincero, às vezes acredito que morrerei antes mesmo de
tomar Marnsala de volta. O mar é apenas uma das milhares de coisas que
poderão me matar.
— Se a sua falta de habilidade para nadar é somente uma das coisas,
iremos eliminá-la, assim como fizemos com sua pouca aptidão para luta.
Não morrerá, príncipe. Você irá aprender a superar os obstáculos um por
um. — Arya comentou, esboçando um sorriso. — Aliás, nesta ilha, na gruta
das meias-verdades há um pequeno lago, não muito fundo, onde pode
aprender sem correr riscos.
— Ela tem razão, mantenha as esperanças, alteza — falei numa
tentativa de alimentar um falso otimismo, pois eu mesmo às vezes sentia
que levava a minha tripulação à morte naquela viagem insana. — Aliás, eu
posso ensiná-lo a nadar nessa ilha.
Lawrence arregalou os olhos brevemente e ergueu o queixo,
desviando o rosto da minha direção.
— Só se for com roupas.
Aquela frase dita sem censuras criou um clima constrangedor. Arya
recolheu os lábios e ergueu as sobrancelhas, Strigói riu baixo e eu senti a
cara queimar de vergonha. Ele sequer fez questão de esconder o que
aconteceu entre nós.
— Mas é claro que seria com roupas. — Ri brevemente, sem graça.
— O que lhe fez pensar que nadaríamos sem?
Por favor, não responda. Não responda.
O príncipe permaneceu em silêncio por instantes e alternou seu olhar
entre mim e os outros dois tripulantes do bote.
Suspirou. Ele percebeu o que fez.
— Nada. Foi apenas uma suposição, capitão.
Após remarmos exaustivamente, desembarcamos na ilha. O sol já não
estava tão forte, deveria faltar umas quatro horas ou um pouco menos para
o anoitecer.
Alguns dos homens se sentaram na areia, outros foram explorar a
mata e Lawrence permaneceu de pé, olhando o mar longe da beira da praia.
— Para onde fica essa gruta das verdades? — perguntei à Arya.
— Gruta das meias-verdades, capitão.
Ri.
— Meias-verdades?
— É. Não é uma gruta qualquer. Quando se entra nela, os espíritos
presentes dizem coisas sobre você ou de quem está contigo lá dentro, mas
nenhuma das frases revela toda a verdade. Parte da informação dada se
completa apenas com a suposição.
Engoli em seco e olhei sobre seu ombro para o príncipe. Se aquilo
fosse verdade, por um lado seria arriscado levá-lo lá, por outro, interessante
para saber mais sobre ele.
— Isso é real ou apenas uma lenda?
— É real. Minha mãe já me levou lá quando criança, foi onde
descobri que ela guardava segredos de bruxaria.
Parei para refletir se realmente valeria a pena me expor. Fiquei tão
distraído, pensando se levaria ou não o príncipe na gruta, que não percebi
sua aproximação repentina.
— Iremos mesmo ao lago, capitão?
Olhei para ele e depois para Arya.
— Para que lado fica a gruta?
Ela expressou um sorriso e virou-se de costas, apontando para um
canto na floresta.
— Siga reto até chegar onde há uma pedra enorme com riscos, depois
só virar à esquerda e continuar até encontrar a gruta. Não é difícil.
— Certo. — Encarei Lawrence. — Vamos, não temos muito tempo
até o cair da noite.
Ele concordou e me seguiu em silêncio mata adentro. Enquanto
passávamos pela floresta, o príncipe afastava as folhas com o dorso da mão
e olhava assustado para todos os lados.
Ri baixo para que ele não notasse.
Quando encontrei a pedra riscada que Arya havia citado, parei para
esperar que ele me alcançasse e seguisse ao meu lado até a gruta.
O local parecia um castelo de rocha todo irregular com uma entrada
para a caverna.
— Que medo de entrar aí dentro. — Lawrence comentou.
— Medo? Não precisa temer o escuro, as grutas costumam ter pontos
de perfuração e espaços que deixam a luz do sol entrar.
— Não é medo do escuro, mas sim de criaturas que podem estar aí
dentro. Deve haver morcegos, cobras...
— E nenhum deles vai te matar. Quer dizer, talvez só as cobras, daí se
elas aparecerem é só pisar na cabeça.
O príncipe expressou uma cara de repúdio de imediato.
— Eu não vou entrar aí.
Respirei profundamente e revirei os olhos. Dei dois passos à frente e
coloquei um dos pés para dentro da gruta, estendi a mão para ele.
— Venha. Eu te protejo.
— Se algo acontecer comigo, eu...
— Não vai acontecer nada. Prometo.
Um pouco relutante, o príncipe decidiu assentir e segurar na minha
mão para guiá-lo pela gruta das meias-verdades.
Durante a caminhada pela área meio escura, de teto alto, que se
assemelhava a um labirinto de pedras, eu atentava a audição a possíveis
espíritos que me revelariam algo. Respirei aliviado em até então não ter
escutado nada, acreditei que as verdades eram ditas apenas para bruxas.
Bastou darmos mais alguns passos em direção ao lago que ficava logo
à frente, que ouvimos os sussurros.
Por quanto tempo vai esconder a verdade sobre você, Jake?
— Ouviu isso? — Lawrence perguntou, assustado.
— Eu não ouvi nada — menti.
Uma hora ele vai saber, do mesmo jeito que você saberá o que o
príncipe guarda.
— Eu não escondo nada! — gritou.
— Com quem você está falando? — disse, ainda fingindo não ouvir
os espíritos para não responder às perguntas que apareceriam sobre mim.
Olhei para Lawrence e estreitei o olhar pensando no que ele também
ocultava.
Sim, príncipe, você guarda segredos, mas não porque quer, e sim por
não saber da verdade.
— Que verdade?
O real motivo pelo qual seu pai o manteve protegido pela muralha.
Agora que está livre de suas amarras, em breve saberá quem é realmente.
Lawrence ficou visivelmente perturbado. As vozes cessaram, no final,
elas tinham mais a dizer sobre ele do que sobre mim.
Fiquei intrigado sobre o que o príncipe escondia sem saber.
— Vamos? O lago está perto.
Ainda atordoado, ele concordou e me seguiu.
Quando descemos as rochas, encontramos o lago azul límpido. O alto
daquela parte da gruta era mais fenestrado, permitindo que a luz do sol
batesse contra as águas e refletisse nas paredes. Era lindo.
Desfiz da parte de cima da minha vestimenta e o príncipe também
retirou a dele, mantendo a expressão de pânico.
— O que foi? — perguntei.
— Nada, eu só...estou pensativo sobre algumas coisas. — Balançou a
cabeça. — Não precisa se importar com isso, vamos logo.
— Tem certeza?
— Sim.
— Tudo bem.
Apenas com as calças no corpo, comecei a entrar na água e senti
como sua temperatura estava amena, ideal. O príncipe se aproximou,
colocando somente a ponta do dedo no lago e depois tomou a segurança de
se sentar na beirada e apoiar o corpo para dentro da água.
Ele se desesperou, a princípio, antes de perceber que seus pés
tocavam o fundo.
— A água está boa. — Com o auxílio das mãos molhou o rosto e
cabelos.
Cheguei mais perto.
— Sim, está. — Esfreguei a água no corpo. — Certo, é... para você
nadar, nada mais é preciso do que sincronizar o movimento dos braços e das
pernas pra que consiga sair do lugar ou manter o corpo próximo à superfície
quando os pés não alcançarem o fundo. Primeiro, observe, depois quero que
tente repetir.
— Certo.
Dei as costas para ele e inclinei meu corpo sobre a água, abrindo
caminho com os braços e batendo as pernas a fim de nadar até o meio do
lago.
Encostei os pés no chão e o encarei, indicando com a cabeça para que
fizesse o mesmo.
De um jeito muito descoordenado, o príncipe batia as pernas, mas não
saía do lugar, por mais que o movimento dos braços estivesse próximo do
que deveria.
Levantou a cabeça para pegar o ar.
— Acho que não irei conseguir, sequer saí do lugar!
Ri.
— Não saiu porque está fazendo errado. Vou aí te ajudar, calma.
Quando me aproximei um pouco mais dele, senti o coração acelerado
e o corpo quente. Apoiei uma das mãos na cintura dele e o príncipe colocou
a mão sobre meus dedos.
— O que está fazendo?
— Calma, alteza. Servirei de apoio para a flutuação do seu corpo,
assim ficará mais fácil de guiar seus movimentos.
Ele suspirou e prendeu o lábio entre os dentes.
— Ah... s-sim.
Enfim permitiu que eu colocasse a outra mão em sua pele, mas antes
de deitar seu corpo sobre as águas nos encaramos em silêncio, e notei como
seus olhos se fixaram em meus lábios.
Por mais que ele dissesse que não queria minhas carícias, suas ações o
denunciavam. E era recíproco. Eu também ansiava em tê-lo, em sentir seus
lábios macios outra vez.
Àquela altura a sensação era tão esmagadora que a gruta parecia
menor. Eu não aguentava mais tanta tensão.
— Podemos começar? — perguntei, rompendo com o clima.
Lawrence recolheu a boca e afirmou.
Ele se debruçou sobre meus braços para que eu o guiasse e assim
passamos horas.
Quando, enfim, aprendeu, o príncipe sorria, exibindo sua nova
habilidade dando voltas no lago, e eu, contagiado por sua emoção, sorria
igualmente.
Aos poucos, as luzes que entravam pelas brechas nas rochas se
tornavam mais fracas, era hora de ir.
— Acho que já está para anoitecer — falei.
O príncipe veio do meio do lago até mim nadando, e emergiu bem
perto.
— Creio que estou seguindo o caminho certo para perder meu medo
do mar.
— Nem sei porque se manteve com tanto medo, se é quase um tritão.
Ele riu e jogou água no meu rosto, rebati molhando ele também.
— Acho que meu medo não era só por conta de não saber nadar, mas
pelo desconhecido. Meu pai sempre contou histórias cabulosas para mim
sobre suas viagens e como quase morreu diversas vezes engolido pelo
oceano. — Olhou para o próprio reflexo.
— Isso porque seu pai desafiava o mar. — Mordi a língua após deixar
escapar sem querer um pensamento.
— O que quer dizer? — Ergueu os olhos para mim. — Conheceu meu
pai?
Limpei a garganta, pigarreando.
— Todos conhecem a história do rei Robert. Ele realmente gostava de
desafios quando se tratava de desbravar novos territórios.
Lawrence comprimiu os lábios, reflexivo, e olhou para o alto das
pedras.
— Espero um dia ser tão conhecido quanto ele, famoso até mesmo
entre os piratas. — Encarou-me. — Obrigado por me ensinar a nadar,
capitão. Fazer isso em uma lagoa não deve ser igual a enfrentar ondas, mas
acredito que dê para pegar um pouco de ar antes de me afogar.
Gargalhei.
— As ondas aparecem apenas no começo do mar. Mais para o fundo,
onde navegamos, as águas são calmas como uma lagoa. A diferença é que
não conseguirá tocar os pés no chão. Você foi muito bem hoje.
— Obrigado. — Ele sorriu sutilmente e apoiou na borda de pedra para
sair da água.
Meu rosto não escondeu a satisfação. Se pudesse permaneceria mais
tempo com ele ali, nem que fosse para ficar parado, admirando-o nadar, mas
era hora. A noite estava chegando.
Estava orgulhoso e confuso. Passar por aquela gruta me trouxe muitas
experiências. A primeira foi angustiante, a ponto de acreditar que naquele
momento havia perdido a sanidade ao ouvir as vozes que diziam que eu
escondia algo, mas era alguma coisa da qual jamais soube da existência e
tinha que admitir que, às vezes, preferia permanecer sem saber da resposta.
Um segredo grande demais poderia destruir a imagem que eu tinha de tudo
ao meu redor, principalmente sobre mim mesmo.
Por outro lado, meu peito se enchia de felicidade ao ter aprendido
uma nova habilidade. Sentia que, aos poucos, conseguiria me virar sozinho,
caso saísse vivo daquela jornada. Retornaria como um novo homem.
Depois de alguns minutos, caminhando entre areias, folhas e rochas,
enfim chegamos à cidade. Eu, Jake, Strigói, Arya e outros dois marujos,
cujos nomes ainda não havia decorado, seguimos pelas ruas de chão de
pedra em direção ao centro.
Não sabia se era por conta da noite, calças úmidas ou o clima natural
daquele lugar, mas eu sentia frio, estava muito frio. Mesmo coberto com o
sobretudo do Jake, ainda assim meus dentes batiam uns contra os outros e
era difícil de sentir a ponta dos dedos das mãos.
Havia poucas pessoas caminhando por aquelas ruas, mas o trânsito de
carruagens ainda era intenso. A bruxa-pirata e o anão papeavam com os
outros, enquanto Jake apenas observava os arredores.
Ao passarmos por uma vitrine que havia livros, incontrolavelmente
finquei os pés no chão para olhar o que tinha ali. Permaneci admirando por
um tempo, até notar meu próprio reflexo no vidro, usando aquele chapéu
grande, roupas largas e surradas, meus cabelos estavam apenas com
pequenas ondas, que um dia foram cachos.
Mordi o lábio não me reconhecendo mais. Era como se fosse uma
outra versão de mim, e, de certa forma, realmente era. Desde que embarquei
naquela missão não fui mais o mesmo, aos poucos tive que colocar os pés
no chão, adquirir hábitos que não tinha, além de sair da posição de poder
em que um dia já estive. Porém, mesmo com as dificuldades, era grato.
Todo o risco estava sendo tomado para mim e meu reino graças ao homem
que caminhava de forma despretensiosa à frente.
Era um trato, mas Jake fazia mais do que devia dentro dos nossos
termos. Por mais que tentasse devolver a gentileza dando o meu melhor no
navio, não parecia o suficiente. E talvez realmente não fosse o bastante,
tinha dificuldades de retribuir por nunca antes precisar fazê-lo.
O capitão olhou para trás ao ver que parei de segui-los, deu meia-
volta e desviou o olhar para o que eu estava observando. Ele não estava
vendo o mesmo que eu, e sim o que realmente havia por trás daquela
vitrine.
— Você realmente quer os livros, não é? — perguntou enquanto
mantinha-se atento às capas.
— Não, eu... eu só estava olhando.
— Amanhã podemos ver se ela está aberta e vir aqui para que você
escolha um. O que acha? — Concentrou-se em mim.
Involuntariamente sorri.
— Obrigado, mas... acha que realmente vale a pena nos arriscarmos
por isso?
— E por que não valeria? Não é o que você quer?
— S-sim, mas...
— Se sim, então não tem um mas. Viremos aqui amanhã. — Estendeu
a mão para mim. — Agora vamos apertar o passo, está muito frio aqui e não
parece ser tão seguro andarmos pela rua essa hora.
Assenti, segurando em sua mão, sentindo como a palma estava
quente, apesar dos dedos gélidos. Caminhamos juntos, um pouco mais
rápido para alcançarmos os outros, até que chegamos em um prédio de
madeira que continha uma placa verde pendurada em sua fachada escrito:
Estadia.
Ao entrarmos, havia uma velha com muito pó de arroz no rosto,
sentada atrás de um balcão, ela tirou dali um monóculo assim que nos viu
passar pela porta e entreabriu os lábios.
— Bem-vindos, bem-vindos! Em que posso ajudá-los?
— Precisamos de seis quartos disponíveis. — Jake respondeu,
apoiando-se no balcão.
— Eu não tenho isso tudo agora, só há três, sendo um deles de casal
— disse a voz trêmula da mulher.
— Ah, então... — virou-se para os outros piratas. — Querem buscar
por outro lugar em que dê para ficarmos todos no mesmo prédio?
— Eu acho que você, Gerald, Strigói e o loiro podem ficar aqui.
Procurarei outro lugar junto dos rapazes, sem problemas — falou a bruxa-
pirata.
— Mas só tem três quartos e somos quatro pessoas — disse Strigói.
— A conta não bate!
— Achei que Jake e o outro fossem dormir juntos, é uma cama de
casal no terceiro quarto. — A mulher ergueu as sobrancelhas.
O capitão entreabriu os lábios, como se nunca tivéssemos deitado na
mesma cama antes.
— Ah... — olhou para mim e depois voltou-se para a tripulação. —
Sim. Por mim tudo bem.
— Então, problema resolvido. — Arya ergueu os ombros com um
sorriso sutil estampado nos lábios e se virou, deixando o lugar.
— O de casal é o triplo do preço, mas vale a pena — completou a
dona.
Jake parecia meio desconcertado, retirou umas moedas do bolso e
colocou sobre o balcão, fechando a estadia de duas noites naquela
espelunca. A senhora nos entregou as chaves e todos seguimos para os
nossos quartos.
Enquanto os outros dois piratas ficaram no segundo andar, eu e o
capitão tivemos que subir mais um lance de escadas até chegarmos ao
corredor que dava ao nosso quarto. Quando a porta se abriu, fiquei surpreso
ao ver onde ficaríamos.
O prédio, em geral, era bem simples e sem luxos. Contudo, aquele
quarto parecia não fazer parte de todo o conjunto daquela construção. Tinha
lustres com velas no teto, ao invés de lamparinas, cama grande e,
aparentemente, confortável com tecidos finos, uma bancada ao lado com
tortinhas acompanhadas de um vidro com azeite...
— Tem certeza de que ela te deu a chave certa? — perguntei, olhando
os arredores do quarto. Notei uma enorme janela no canto, próxima a uma
poltrona.
— Acho que sim... foi mais caro. Mas se não for o quarto certo,
ficaremos aqui mesmo. — Jake respondeu tão embasbacado quanto eu,
explorando o lugar.
Eu não estava surpreso pelo luxo, já que tinha muito mais do que
aquilo no meio em que vivia, mas estava admirado por ser aquela estrutura
dentro de um prediozinho.de madeira.
Retirei o sobretudo e o chapéu, pendurando-os no cabide, e me sentei
na cama para tirar os sapatos. Jake começou a andar pelo pequeno corredor
que havia dentro daquele cômodo, deixando-me só.
Inspirei fundo enquanto meus olhos ainda percorriam por cada quina
dali, e senti um aperto no peito. Aquele quarto, mesmo que não se
comparasse ao de um castelo, ainda assim se assemelhava ao lugar onde eu
morava.
Era motivo de melancolia me recordar do que vivi e onde estava
naquele momento, sabendo que nessa tentativa de conseguir de volta o que
um dia já foi meu, poderia morrer antes mesmo de ver a terra de Marnsala
novamente. Senti a ponta do nariz arder e o rosto se aquecer em meio ao
frio presente ali dentro, minha visão tornou-se anuviada e foi impossível
conter as lágrimas.
Tentei manter o meu choro baixinho para não ser notado.
Apesar de estar aproveitando o possível daquela viagem, senti
saudades de casa. Senti falta dos meus criados, da minha família, dos
costumes... e só de pensar em sumir sem nem ter dito um adeus a todos
aqueles que conhecia, o coração se apertou.
— Lawrence, você não vai acreditar! Tem uma banheira dentro desse
quarto! Já enchi com água aquecida e... — interrompeu-se ao chegar mais
perto. Sentou-se ao meu lado, apoiando a mão nas minhas costas. — Você
está... chorando?
— Sinto falta do meu castelo, Jake, da minha família — falei entre
soluços, vendo-o todo embaçado devido às lágrimas.
— Law, não chore... — Puxou-me para perto, deixando que meu rosto
encostasse em seu peito. — Você vai revê-los, voltará a ter o que é seu. —
Acariciou meus cabelos.
— E se eu não retornar? E se morrer no meio do caminho? E se James
tiver assassinado quem restou e destruiu tudo o que eu conhecia?
Ele puxou minha cabeça de seu peito e segurou meu rosto entre as
palmas de suas mãos, como se encaixasse perfeitamente ali. Seus olhos de
mar se mantiveram fixos aos meus.
— Vai dar certo. Você não perdeu nada, considere esse tempo que
está passando como... uma viagem. Apenas. E toda viagem tem seu fim,
não é?
Concordei.
— Como você tem tanta certeza de que dará certo?
— Porque farei isso acontecer — respondeu enquanto passava os
polegares por minhas bochechas a fim de limpar as lágrimas. — Acredite
nisso e confie em mim, está bem?
— Sim.
Os cantos de seus lábios se ergueram num sorriso.
— Agora vem. — Levantou-se e ficou na minha frente, estendendo os
braços para mim. — Preparei um banho quente pra gente. Precisamos tirar
essas calças molhadas antes de ficarmos doentes.
Segurei em suas mãos e ele me puxou para me ajudar a levantar e me
guiou pelo corredor até onde a banheira estava.
As palavras de Jake haviam conseguido me confortar, e eu acreditava
fielmente nele, talvez por transmitir muita confiança no que dizia. Cogitei
que a minha situação mental só não estava pior durante aquela viagem
porque me distraía com ele na maior parte do tempo, fosse discutindo,
correndo ou aprendendo mais sobre a pirataria, com toda certeza fugi com a
pessoa certa.
Fiquei surpreso ao chegar ao cômodo que havia o banho que Jake
tinha preparado para nós. Pelo visto, os luxos não se limitavam apenas à
cama, se estendiam até o fim do quarto, terminando ali, onde tinha uma
banheira de pedra branca, redonda e grande o bastante para dois, cuja água
evaporava, embaçando os vidros das janelas. O ambiente tinha pouca
iluminação, feita apenas por alguns candelabros que se apoiavam sobre a
pedraria da bancada que ficava encostada na parede.
A partir dali percebi o real motivo de ter uma cama de casal naquele
quarto. Não era apenas para duas pessoas dormirem.
Inclinei a cabeça para o lado ao observar meu reflexo nas águas.
Comecei a desfazer o laço da minha blusa. Enquanto eu me despia, notei o
pirata relutante entre encarar ou não o meu corpo, lançando-me breves
olhares seguidos por um desviar de seu rosto.
— Está tímido em me ver nu, capitão? — questionei, retirando a
última peça.
— Não é timidez, Lawrence, até porque perdi tal vergonha desde a
última vez que te tive assim em minha cama.
Senti a face arder ao me relembrar de qual momento ele se referia.
Desviei o rosto de sua visão. Coloquei a ponta do pé na banheira, sentindo a
temperatura da água nos dedos, era agradável e parecia que seria relaxante,
então terminei de apoiar meu pé no fundo e, aos poucos, agachei-me
enquanto ouvia o som do desatar da fivela do cinto de Jake.
— Se não é timidez, por que não olha diretamente? — Quis saber,
mantendo a cabeça baixa. Usei as mãos para molhar os ombros, rosto e
pescoço. — Já nos banhamos tantas vezes juntos, deveria estar acostumado.
Jake permaneceu em silêncio por um tempo até que entrou também na
banheira, ficando no lado oposto ao meu, notei a distância pela forma que
as pontas de nossos dedos se encostavam.
— Desejo — respondeu, quebrando a quietude.
— O quê? — Encarei seu rosto sombreado pela meia-luz.
— Você queria saber o porquê de não olhar diretamente para você nu,
e o motivo é esse. Quero evitar sentir desejo por ti, já que decidiu que não
quer mais as minhas carícias.
Inspirei profundamente, cheguei a prender o ar por segundos devido
ao nervosismo. Expirei, esfregando toda a pele com aquela água de aroma
floral, pensando em como responder àquilo.
Após expor esse pensamento, ele preferiu não dar continuidade ao
assunto, apenas prosseguiu com seu banho, assim como eu.
Estar sozinho com Jake provocava em mim um sentimento de
conflito. Eu também passei a querê-lo, sentia vontade de ter seus lábios
juntos aos meus novamente, seus dedos por minha pele, fazendo com que
meu corpo contraísse em resposta, porém, reprimia essas tentações. Era
orgulhoso demais e me sentia constrangido ao pensar em como eu, um
nobre, poderia suplicar por algo vindo de um plebeu. Um homem. Em
especial de um pirata.
No entanto, aqueles últimos momentos que tive com ele, fizeram com
que eu pensasse mais sobre esses conceitos e em como poderia estar sendo
tolo por me manter numa posição de hierarquia e moralidade, ainda que
fosse um príncipe sem coroa.
Fiquei tanto tempo preso naquela sociedade, com suas normas e
etiquetas, que mesmo longe de tudo, sem nenhum nobre para ver e criar
rumores vexatórios, mantinha esses pensamentos.
Em algum momento teria que romper com aquele comportamento que
me ligava ao reino, porque sabia que aquilo estava me afastando de
experiências incríveis, como ser tocado pela única pessoa que já me fez
sentir algo além de atração.
Nunca me interessei por ninguém verdadeiramente, não até Jake
aparecer. Esperei a vida inteira pela pessoa certa, alguém nobre, com a
visão de mundo semelhante à minha, porém, o destino me traiu e fez essa
pessoa não ser de sangue-azul, como eu esperava, mas sim o patife que fez
meu reino passar longos anos tentando capturá-lo.
E o que antes eu tinha apenas como desejo, os dias ao lado dele
fizeram ser algo mais. Passei a admirar suas habilidades, gostar de sua
presença e em como nossas conversas usualmente arrancavam de mim
risadas. Jake contornava minhas dores e tornava o fardo daquela viagem
mais leve.
Nunca imaginei que nos daríamos tão bem.
Eu queria me entregar, ansiava por aquilo, mas não tinha certeza se
deveria, ao menos não sem saber se eu também era a pessoa certa dele. Se
as intenções de Jake não fossem meramente carnais, assim me sentiria
menos culpado de dar meu corpo àquele homem.
— Jake... — murmurei, passando a mão pela nuca. Ergui o olhar em
sua direção.
— Sim?
— Você acredita em... acha que... que existem pessoas destinadas a
cada um de nós? A única para vivenciar o amor e passar o resto da vida?
— Por que está falando sobre isso agora? — questionou, fazendo
concha com as mãos para umedecer os cabelos.
— Você acredita nisso?
— Essa é uma visão muito romântica sobre a realidade, alteza.
Porém, creio que existam pessoas que passam por nossas vidas e sejam as
ideais para aqueles momentos, entrando para cumprir seu papel e saindo até
conhecermos alguém que podemos levar até o fim de nossas vidas.
— E você me disse isso tudo pra resumir que é um libertino? — Ergui
as sobrancelhas.
Jake riu.
Ele não acreditava no singular, na existência de uma única pessoa.
Enquanto eu não queria passar pela vida de alguém sendo conhecido como
a pessoa do momento certo, mas sim o amor da vida.
— Não. Eu falei isso tudo para afirmar que acredito até que possa
existir uma pessoa certa — ergueu as mãos para fazer aspas na última
palavra —, mas de forma diferente de como você pensa.
Aparentemente, Jake não era um romântico incorrigível como eu,
apegado a laços emocionais para se envolver com alguém, ele apenas vivia
o momento e se permitia enlaçar as pessoas até encontrar uma que lhe
interessasse mais para, talvez, passar o resto da vida.
E será que ele já conheceu a pessoa que julgava certa? Quantas
vezes se apaixonou?
Sorri, discretamente, o pirata havia despertado curiosidade em mim.
Apoiei as mãos no fundo da banheira e comecei a engatinhar para
perto dele. Jake, de imediato, virou o rosto para o lado oposto, fazendo com
que a luz do fogo iluminasse por completo a lateral de sua face, deixando
aparente o rosto avermelhado.
— O que está fazendo? — questionou.
— Eu queria saber se você já encontrou a tal pessoa... e como foi. —
Aproximei-me mais.
— Talvez eu tenha encontrado. Antes tinha certeza, hoje já não sei ao
certo — continuou sem me encarar.
— E onde ela está agora? Por que não tem certeza mais?
— Quer mesmo saber?
Calei-me por um instante. Não entendia o porquê de tanto mistério,
acreditei que, talvez, fosse pelo medo em me decepcionar, mesmo que Jake
ainda não estivesse a par das emoções que me causava.
— Sim... — falei baixo, quase como um sussurro.
O pirata voltou sua feição em minha direção e mesmo sob a sombra,
pude notar o reluzir de seus olhos esverdeados, sua visão se concentrou na
minha.
— Esta pessoa está bem na minha frente. Estou olhando para ela.
Puxei o ar num suspiro e me sentei, pasmo com a sua revelação.
— Está falando essas coisas apenas para que me deite contigo?
Ri, acreditando se tratar de uma piada ou um jogo de sedução que
pilantras, como Jake, deviam fazer com frequência. Estava incrédulo sobre
a possibilidade de os sentimentos serem recíprocos, por mais que eu
desejasse mais do que nunca que aquilo fosse verdade.
— Não — inclinou-se para frente, desapoiando as costas da banheira
—, estou respondendo o que queria saber, alteza.
Mesmo sob água morna, senti um frio subindo por minha barriga e
tremia por dentro ao tê-lo tão próximo assim de mim, dos meus lábios, de
forma que pudesse sentir sua respiração no rosto.
— N-não sei se consigo acreditar em você — falei, alternando o olhar
entre seus olhos e a boca.
— Esta é a verdade, Lawrence, você acreditando nela ou não. —
Deslizou a mão pelo fundo da banheira até que seus dedos tocassem nos
meus. — De início, achei que fosse somente desejo, mas é algo maior que
isso. Estou gostando de ti. Sinto-me bem ao seu lado, me surpreendo a cada
dia com as nuances que mostra de sua personalidade, admiro-te da cabeça
aos pés... — Senti seus dedos por debaixo da minha palma. Retirou minha
mão da água. — Até mesmo os defeitos que completam essa conjuntura que
é você. — Aproximou minha mão de sua boca, beijando-a. — E esse
sentimento cresce a cada passe do ponteiro mais fino do relógio, fazendo
com que me sinta necessitado de sua presença. — As palavras saíam sem
que ele desviasse os olhos um segundo dos meus.
Sentia-me enfeitiçado. Meu coração batia frenético devido à
intensidade com a qual pulsava, estava difícil até mesmo de tornar a
respiração normal.
Ofeguei sem precisar sair do lugar.
— Não me deixou mais dúvidas — respondi.
Ele deu um sorriso leve.
— Não queria que soubesse. Ainda estou lidando com os sentimentos
não recíprocos, mas já que perguntou, precisei revelar. — Soltou minha
mão, deixando que ela recaísse sobre a água.
Aos poucos, foi afastando seu rosto do meu para encostar novamente
em seu canto.
Jake também está cultivando algo por mim, que transpassa a atração,
podendo um dia se tornar amor.
Ele havia me dado segurança para o que desejava fazer. Foi como se
uma chama tivesse me tomado o peito, e mesmo que ações impensadas
fossem, na maioria das vezes, motivo de arrependimento, precisava fazê-lo.
Inclinei-me em sua direção, saindo um pouco da água, colocando as
mãos na sua nuca, puxando-o para perto novamente.
Jake arregalou os olhos.
— Sendo assim, capitão, tem permissão para mostrar o quanto me
quer — falei, minha respiração estava entrecortada. Meu peito pulsava
como se corresse por horas.
— Como assim? Achei que já demonstrasse a cada cuidado que tenho
com você, cada...
— Você disse que os sentimentos não eram recíprocos, entretanto,
também te quero. Também estou gostando de você. Sendo assim, espero
não me decepcionar com a decisão de me entregar a ti. — Aproximei
nossos lábios.
Jake apoiou as mãos na minha cintura, puxando-me mais para perto,
porém, não me beijou de imediato. À medida que nossos corpos se
aproximaram, sua boca se afastou.
— Tem certeza sobre isso?
— Sou seu essa noite, capitão. — Encarei-o. — Terá o que quiser de
mim.
Fui tomado por um beijo.
Meu coração galgava enquanto era envolvido nos braços de Jake.
Nossos corpos úmidos se encostaram, deixando que as intimidades se
esbarrassem durante o momento que seus lábios vinham ao encontro dos
meus.
Eu havia esquecido de como era essa troca de carinho. Incomodava-
me ter seu rosto tão perto, portanto, fechei os olhos e senti sua língua
pedindo permissão para invadir minha boca e eu deixei.
Era tão intenso e sufocante que mal podia controlar a própria
respiração durante aquele ato afobado. Seus dedos se pressionaram contra
minha cintura e eu levei uma das mãos à sua nuca.
Derretia-me em seus beijos, meus joelhos quase não sustentavam o
corpo trêmulo. Não sabia se era a água morna ou os toques do pirata, mas
algo levava o calor ficar mais forte em minha pele.
Seus estímulos fizeram com que eu pulsasse lá embaixo, no lugar
ainda não tocado, e por estarmos tão próximos, pude sentir como o dele
também latejava.
Encerrei o beijo, nos afastando, e franzi as sobrancelhas, encarando-o.
Evitei descer o olhar pelo seu corpo. Estava envergonhado.
— O que foi? — questionou. — Quer parar?
— Não. — Engoli em seco. — É que... é que... é a primeira vez que
senti o seu...
— Pau? — Ergueu uma das sobrancelhas.
— Sim. Não seja tão vulgar nas palavras. — Juntei as duas mãos atrás
do corpo.
Ele riu, sacudindo a cabeça negativamente, abaixou-se de forma que
metade de seu tronco fosse para baixo d'água. Fiquei aliviado em poder
olhar para ele sem medo do que poderia encontrar.
É somente um falo, Lawrence, nada de mais, você também tem...
mentalizei enquanto me sentava no fundo da banheira. Ficamos um de
frente para o outro nos encarando por um tempo.
Jake pareceu desistir do que fazíamos e encostou as costas na
banheira, jogando os braços por cima das bordas. Permaneci estático,
olhando-o.
— Por que está me encarando assim? — perguntou.
— A gente não vai continuar? Você desistiu de me beijar?
O pirata franziu as sobrancelhas e entreabriu os lábios com uma
feição incrédula.
— Lawrence?! Você quem interrompeu o beijo por sentir meu pau e
agora está me perguntando por que eu parei? Não faz sentido! É claro que
quero te beijar.
— Então me beije!
Jake ergueu o canto do lábio num sorriso malicioso e arrastou as
pernas pelo fundo da banheira para que chegasse até mim, apoiou uma das
mãos na minha cintura e a outra entremeou no meio dos meus cabelos.
Ele puxou os fios com certa pressão, fazendo com que eu soltasse um
suspiro e me guiou até o outro canto da banheira. Assim que encostei as
costas na borda, tocou-me os lábios mais uma vez. Daquela vez o beijo foi
menos sufocante, mais lento, porém, igualmente excitante.
A mão que apoiava em minha cintura deslizou seus dedos por minha
pele até chegar ao mamilo, apertando, puxando e o esfregando com leveza.
Não contive os gemidos em sua boca.
O pirata interrompeu nosso beijo, puxando ainda mais meus cabelos,
de forma que minha cabeça fosse para trás, assim deixando o pescoço
exposto. Seus lábios repousaram ali, tocando e sugando a minha pele,
levando todos os meus pelos a se ouriçarem.
Sua outra mão continuou desbravando meu corpo, indo para baixo
d'água, onde eu latejava de prazer. Jake envolveu minha ereção e começou a
estimular devagar. Recolhi os dedos dos pés e pressionei as pálpebras,
tentando não deixar meus gemidos tão indiscretos.
— Isso... — murmurei, seguido por um prender do lábio entre os
dentes. De repente, ele parou. Abri os olhos, revoltado. — Isso é tortura!
Por que não está fazendo mais?
O pirata riu, encarando-me.
— Porque se eu fizer isso, alteza... — Passou os dedos nos meus
cabelos, colocando-os atrás da orelha. — Acabaremos rápido demais. Você
não disse da última vez que também queria me dar prazer?
— Sim.
— Então... — Ergueu-se da água, deixando que eu ficasse de frente
com sua ereção.
Puxei um suspiro ao ver aquilo. Não era tão diferente do que eu tinha,
apenas mais robusto, e era visível como pulsava. Olhei-o debaixo para
cima.
— O que quer que eu faça?
— Que chupe. E quando a boca cansar, use a mão.
— Mas eu não sei fazer direito. — Franzi as sobrancelhas. — Terá
que ser paciente comigo.
— Sem problema... — curvou-se para tocar meu queixo. — Eu te
guio.
— Tudo bem... — murmurei, envolvendo sua ereção com a mão.
Jake chegou um pouco mais para perto, entremeando seus dedos em
meus cabelos. Permaneci parado, encarando aquilo, não fazia ideia de como
começar ou por onde, muito menos sabia que as pessoas colocavam as
genitais das outras na boca. Ergui o olhar para ele.
O pirata suspirou e se curvou um pouco para apontar, com a mão
livre, um ponto que havia bem debaixo do começo de sua rigidez.
— Você pode começar passando a língua por aqui, no frênulo... é bem
sensível. Depois chupa só a cabeça antes de colocar por inteiro, ou a maior
parte, na boca. Cuidado com os dentes. — Acariciou meus cabelos. — Deu
pra compreender? Só de início.
Assenti e expus a língua para começar a estimulá-lo onde pediu. E
deu certo. Jake soltou um suspiro longo e fechou os olhos, enquanto eu
começava a lhe dar prazer. Logo, timidamente, coloquei-o na boca.
Durante o momento em que o chupava, ainda esfregava a língua em
sua área sensível. Ele abriu os olhos e começou a empurrar minha cabeça
mais para baixo. Entendi o que queria dizer.
Engasguei quando o coloquei rápido demais e o senti na garganta.
— Sem pressa, Law. — O pirata disse. Concordei e voltei a chupá-lo,
colocando um pouco mais na boca, sentindo-o quente e latejante. Fechei os
olhos. — Não, não. Quero você me olhando. Dá mais tesão assim.
Segui sua ordem, fixando meus olhos nos dele. Jake gemia baixinho,
puxando mais os meus cabelos e começou a mexer levemente os quadris, de
forma que o sentia bater contra a minha bochecha.
Senti-me excitado em saber que era o motivo de seu prazer. Com a
outra mão, comecei a me tocar enquanto o chupava, sentindo os olhos
lacrimejarem por Jake começar a ir pouco além da minha boca.
Meu rosto começou a doer pelo tempo que estava ali, afastei os
lábios, deixando que um fio de saliva escorresse, e usei a mão para
continuar a estimulá-lo.
O pirata foi rude em me puxar pelos cabelos para que me erguesse.
— Eu fiz algo errado?
— Vamos terminar isso na cama — falou, ofegante.
Passou um braço pelas minhas costas e outro por debaixo do traseiro
para que pudesse me erguer no colo. Fui carregado até a cama onde ele me
colocou sobre os lençóis. Seus olhos esverdeados pareciam mais
escurecidos, havia uma aura de luxúria tomando conta de seu ser.
O capitão aproximou seus lábios dos meus novamente, dando-me um
beijo, e durante o momento que nossas línguas se atritavam, sua mão
percorria por meu abdômen para me tocar.
Recolhi mais as pernas e mal pude continuar, os gemidos
dificultavam. Jake afastou seus lábios dos meus a fim de acariciar minha
pele com a boca e trilhou todo o caminho do meu abdômen até que
chegasse à virilha.
Arregalei os olhos quando ele passou a língua por toda minha ereção,
lambuzando-o. No momento em que começou a me chupar, desci as
pálpebras e apoiei as mãos sobre os lençóis.
— Jake... — gemi seu nome. Eu nunca tinha me sentido daquela
forma, era como se meu corpo estivesse em chamas e minha excitação
latejava tanto que chegava quase a ficar dolorido.
Ele usava a outra mão para me acariciar com certa aspereza, criando
trilhas avermelhadas por minha pele. Interrompeu o que fazia e olhou para o
vidro de azeite que tinha na mesinha ao lado da nossa cama.
Franzi o cenho com o desvio de sua atenção.
— Não acredito que está pensando em comer tortinhas —
resmunguei. — Eu estou quase sentindo dor de tanto prazer e... — Perdi as
palavras quando o observei colocar dois dedos dentro daquele óleo.
— Não vou comer as tortinhas. — Usou o polegar para espalhar mais
o azeite nos dedos enquanto me encarava.
— Espera! Você vai usar o azeite em mim?! — Estava indignado.
— Hum... sim?
— Mas isso é azeite!
— E daí? — Passou a ponta da língua. — É extravirgem!
— Sim, eu sou!
— Quê? — Balançou a cabeça. — Olha, Lawrence, isso não vai te
fazer mal. Se não usar, posso te machucar.
— Hum... — Desviei o olhar. Eu não queria que ele usasse aquilo em
mim, parecia insalubre demais, porém, Jake mostrou saber o que estava
fazendo. — Está bem, use. Eu não sei quando terei essa coragem de me
deitar contigo novamente.
— Se está fazendo isso sem realmente querer, então é melhor não
fazermos. — Começou a se levantar.
— Não, não, não! — Coloquei os braços ao redor de seu pescoço a
fim de puxá-lo novamente para cima de mim. — Eu quero.
— Quer mesmo?
— Meu corpo está suplicando por você, Jake.
Todo meu orgulho havia dado espaço para um sentimento mais
urgente. Minha respiração estava fora do ritmo e o coração batia de forma
anormal.
O pirata ergueu o canto do lábio num sorriso malicioso e me deu um
ligeiro toque nos lábios. Recaí sobre os lençóis mais uma vez.
Jake voltou a lambuzar os dedos no azeite, mas o que antes eram
somente dois, passaram a ser três dedos. Voltou a beijar abaixo da minha
barriga, até retomar sua atenção para a minha ereção.
Fechei os olhos quando senti sua boca quente me envolvendo.
Daquela vez, chupou-me um pouco mais devagar e pude perceber sua mão
acariciando o interior da minha coxa até que fosse mais para cima.
Pressionei as pálpebras ao notar um dedo contra minha entrada, que
deslizou para o fundo, causando uma sensação incômoda e, ao mesmo
tempo, prazerosa. Ele quase retirava e colocava novamente o dedo, até pôr
outro e pareceu achar o ponto certo, o que fez com que eu erguesse as
costas do colchão.
— Jake! — Puxei mais os lençóis, enquanto ele me estimulava de
duas maneiras ao mesmo tempo.
Quando ele colocou o terceiro dedo, ardeu um pouco mais. Pressionei
os dentes. No momento em que Jake se afastou, eu imaginava o que estava
por vir, mas custei a ter coragem para olhar.
Ergui somente uma das pálpebras e o observei passar o azeite em
seu... pau.
Ele fechou minhas pernas, colocando-me de lado e ficou atrás de
mim.
— Está tudo bem? — perguntou, ao notar como meu corpo estava
inteiramente contraído de apreensão.
— Acho que sim. Vai doer? — Nem sei por que fiz aquela pergunta,
pois já imaginava que sim, doeria, independentemente da resposta dele.
— De início um pouco. Se você ficar mais calmo será melhor.
— E por que não posso olhar para seu rosto enquanto estiver me
tomando? Você também se envergonha em se deitar com outro homem? —
Enruguei a testa, encarando a janela.
— Claro que não. Não sinto vergonha nisso, é porque essa posição
vai ser mais confortável pra você, depois posso ficar de frente o quanto
quiser — justificou. — Até mesmo desse jeito, se você virar um pouquinho
mais tem como me encarar.
— Está bem... vá com calma.
Fechei os olhos e agarrei firme aos lençóis.
— Relaxe, Lawrence — sussurrou no meu ouvido, fazendo com que
eu me arrepiasse, e ficou fazendo carinho, à medida que roçava sua ereção
contra minha entrada.
Aos poucos me senti menos tenso, foi como se meu corpo se
aliviasse. Até o momento em que ele começou a pressionar para deslizar
para dentro, e no segundo que o senti entrar, choraminguei.
— J-Jake... — Minha voz saiu trêmula. Quase desforrei a cama de
tanto puxar os lençóis, enquanto ele avançou um pouco mais até tê-lo por
inteiro, quente e latejante em mim. — Isso dói, dói muito! — Senti os olhos
lacrimejarem.
A sensação era péssima, foi como se eu estivesse sendo rasgado.
Ele passou o braço por debaixo do meu pescoço e o dobrou, para que
meu rosto fosse virado ao encontro do seu. Ergui as pálpebras para encará-
lo e o encontrei com o cenho franzido, parecia sentir pena.
— Quer que eu tire? Não será um problema se você não estiver...
— Não. — Pisquei algumas vezes. — Só... vá devagar, está bem?
Acredito que a dor vai passar. Não irá doer para sempre, não é?
— Não, não irá doer sempre.
Aproximou os lábios para me beijar. Toda vez que selávamos nossas
bocas era como se meu coração pulasse dentro do peito, além do mais,
sentia-me seguro com toda a paciência que Jake estava tendo comigo.
O pirata permaneceu estático durante um bom tempo, até que
começou a se mexer lentamente. Apesar de ainda sentir arder, aos poucos
tornou-se prazeroso também. Levei uma das mãos para me tocar, com
dificuldade.
Choramingava entre seus lábios. Afastamos os rostos para encarar um
ao outro, ao passo que ele tomava meu corpo.
Jake saiu de trás para colocar-se no meio das minhas pernas, e em
momento algum parei de me estimular enquanto mudávamos de posição.
Ele entrou mais uma vez, mas pegou minhas mãos para segurá-las ao lado
de minha cabeça, impedindo que eu continuasse a me tocar.
Seus movimentos não eram mais tão lentos, Jake acelerou o ritmo,
levando a cama a ranger com a intensidade. Meus gemidos estavam menos
discretos e ele também falhou em conter seus sons.
Todo aquele esforço fez a pele do pirata brilhar por conta das
gotículas de suor que se formavam em sua testa e peitoral.
Apertei mais sua mão que estava com os dedos entrelaçados nos meus
enquanto o encarava. Estava difícil de respirar, mesmo que eu não me
movesse como ele, sentia-me ofegante.
Um discreto formigamento começou dos pés à cabeça, notei que meu
ápice estava próximo, arqueei um pouco as costas do colchão.
Jake soltou minhas mãos para se debruçar sobre mim, passando os
braços pela minha cintura e sentou-se na cama de forma que fiquei de frente
para ele, mais precisamente em seu colo.
— Mexa-se — sussurrou no meu ouvido, seguido por um mordiscar
na orelha.
Um pouco acanhado, e dolorido, segui sua ordem. Comecei a mexer
os quadris sobre ele.
O pirata cheirou meu pescoço, levando-me a sentir sua respiração
quente. Deu alguns beijos em minha pele enquanto sua mão estava entre
nós, tocando-me.
Apoiei uma das mãos em seu ombro e a outra levei à nuca, apertando-
o conforme me sentia estimulado. As pernas tremiam, as sensações de antes
se intensificaram e a visão escureceu brevemente. Pressionei as pálpebras
no momento em que me derramei em seus dedos, com pequenos espasmos.
Foi como se toda minha vitalidade tivesse se esvaído, apoiei meu
corpo no dele.
— Acho que estou fraco... deve ser porque só comi aquela maçã —
falei.
— Na verdade, alteza... — Deitou-se, deixando que eu ficasse sentado
sobre ele. — Creio que foi porque você teve um orgasmo. — Seus olhos
exploravam cada parte do meu corpo, era visível o deleite em me ver nu.
— Então acabamos? — Dei um sorriso discreto. — Foi uma das
melhores e piores sensações que já senti. Por um segundo acreditei que
fosse morrer de tanta...
Ele riu brevemente.
— Calma, ainda não acabamos. — Jake apoiou as mãos na minha
cintura e começou a erguer os quadris, aquele pirata não parecia se cansar.
Coloquei as mãos em seu peito, sentindo-o latejar com mais
intensidade dentro de mim, e os movimentos eram tão rápidos que me
provocava certo incômodo.
E continuou assim, tornando-se mais rígido.
— Jake... — murmurei, fechando os olhos ao senti-lo se despejar em
mim, com jatos quentes e não tão fluidos.
O pirata havia, finalmente, se cansado. Permaneceu deitado de olhos
fechados abaixo de mim.
— Agora... — disse, ofegante. — Acabou.
— Ainda bem. As minhas pernas já estão ficando dormentes! —
reclamei, saindo de cima dele. Senti agonia ao perceber aquilo escorrendo
pelo meu traseiro, mas estava tão cansado que apenas me deitei ao seu lado.
Jake virou-se para que pudesse me encarar e enrugou a face numa
carranca.
— Você só sabe reclamar!
— Porque você demorou pra acabar!
Ele me olhou sério e retribuí a encarada, mas a feição não se
sustentou por tanto tempo, logo um sorriso se esboçou em seus lábios e eu
ri.
— Então... o que você achou da sua primeira vez?
Levei uma das mãos ao rosto dele, acariciando sua barba. Sentia-me
completo, aquilo não foi somente uma troca de prazeres, foi como se nos
conectássemos quando seu corpo se encaixou com perfeição no meu.
— Creio que me entreguei para a pessoa certa. — Sorri suavemente.
— Obrigado pelo cuidado e paciência comigo, capitão.
Ele se aproximou, deu um beijo na minha testa e me encarou com um
sorriso de satisfação antes de selarmos nossos lábios.
— Pelo visto terei que preparar outro banho para nós... — olhou em
volta. — E ajeitar a cama.
— Eu posso ajeitar enquanto você prepara o banho — tentei ser
prestativo.
Olhou-me com certa estranheza, não deveria esperar que eu tivesse
essa atitude. Por fim, sorriu antes de deixar a cama e se afastou para ir até a
banheira.
Permaneci deitado, refletindo sobre tudo que havia acabado de
acontecer. Felizmente, não fui tomado por um sentimento de
arrependimento como da última vez, e esperava permanecer assim por mais
tempo antes do peso moral bater sobre minha decisão.
Virei-me de bruços para ver a silhueta de Jake no final daquele
pequeno corredor e soltei um suspiro longo.
Eu sabia, ou ao menos esperava, que a partir daquele dia as coisas
mudariam entre nós.
Despertei na manhã seguinte com a luz do sol atravessando a janela e
aquecendo meu rosto. Ao abrir os olhos, virei-me para o outro lado da cama
e percebi que estava só. Aquele maldito pirata havia me deixado sozinho,
nu e com dor no traseiro.
Rangi os dentes, analisando cada canto daquele quarto. De imediato,
entrei em desespero por pensar que tomei um golpe, onde Jake não só levou
minha virgindade como também as únicas joias que me restavam.
Soltei um suspiro longo de alívio ao notar que as suas botas
permaneciam no canto do quarto, além do sobretudo e chapéu, capitães
aparentemente davam muita importância aos chapéus.
Sentei-me passando os dedos pelos cabelos a fim de ajeitá-los
enquanto tentava digerir tudo o que tinha acontecido na noite anterior.
Pensei que teria uma ressaca moral, ou talvez até tivesse, se realmente fosse
abandonado após me entregar, mas como isso não aconteceu, o sentimento
foi de satisfação.
Esquentava-me a pele e o coração palpitava ao me recordar do
encaixe que o corpo de Jake fazia no meu, seu cheiro embriagante e as
sensações mais distintas que aquele ato tão incômodo e, ao mesmo tempo,
prazeroso me proporcionou.
Não queria mais deixar que pensamentos repressivos pairassem sobre
mim. Estava longe de Marnsala, as leis de lá não se aplicavam à minha
realidade no momento, então me permitiria, nem que fosse por pouco
tempo, ser livre. Ser eu.
Um som terrível veio da minha barriga, seguido por um tremor,
estava faminto.
Fui surpreendido quando a porta do quarto se abriu e por ela entrou o
pirata, apenas de blusa branca aberta, mostrando parte do peitoral, calça
surrada e sem sapatos, trazendo uma bandeja sobre os braços com um
sorriso largo estampado nos lábios.
— Bom dia, alteza, a intenção era acordá-lo assim que trouxesse o
café, pena que você despertou antes.
Franzi as sobrancelhas em estranhamento. Jake foi gentil diversas
vezes, mas aquele ato de cuidado pareceu ser algo fora da sua normalidade.
— É para mim? — Encarei a bandeja sendo colocada na cama onde
havia uma xícara com o que aparentava ser chá, torradas, algumas frutas,
entre outros alimentos apetitosos de molhar a boca. — Por que está fazendo
isso?
— Você tinha me dito ontem que sentia saudades do castelo, então
quis tratá-lo hoje como se ainda estivesse lá. — Sentou-se ao meu lado. —
Não é assim que as pessoas cuidavam de você no seu reino?
Estreitei o olhar, aquele homem estava estranho demais. Eu
imaginava que algo mudaria entre nós depois daquela noite, mas as atitudes
de um pirata eram sempre suspeitas.
— O que você quer de mim? — Peguei uma torrada, cheirando-a.
— Como assim? — Ergueu as sobrancelhas. — Estou tentando ser
legal com você, fazê-lo se sentir bem.
— E desde quando piratas fazem algo para alguém sem segundas
intenções? Pode falar, capitão.
— Caso não se lembre, fomos francos sobre os sentimentos um do
outro e deitou-se comigo ontem. Se você acha que isso não mudaria nada
entre nós...
Esbocei um sorriso.
— Então está fazendo isso por gostar de mim? — Ainda não havia me
acostumado com o fato de os nossos sentimentos serem recíprocos.
— Mas é claro! — Bufou, revirando os olhos. — Meu Deus, como
você é bur...— calou-se antes de finalizar a frase.
— Ah! Eu sabia que essa pose de cavalheiro não perduraria — disse e
ele riu. — Mas, de qualquer forma, obrigado por ter feito isso por mim.
— Coma, Lawrence, depois vista-se que tem um lugar que quero
levá-lo antes de deixarmos a cidade.
Assenti e empanturrei-me com todas as coisas deliciosas que havia
naquela bandeja e usei o chá para que me ajudasse a digerir tudo. Por fim,
fui vestir as roupas e o chapéu de disfarce.
Preferimos deixar os nossos pertences por ali mesmo, já que
retornaríamos antes de sair da cidade. Achei estranho que seria somente nós
dois para onde o pirata me levaria. Chegamos a encontrar com o anão e o
outro subordinado do capitão na saída da estadia, mas ambos não nos
seguiriam, eles ficaram encarregados de levar as mercadorias até o navio.
Aquela cidadezinha, cujo chão era todo feito de pedras, até que era
graciosa durante o dia. Pelas ruas havia muitas pessoas, cavalos,
carruagens, além dos mercadores por todo canto. Jake e eu andávamos lado
a lado, mas não demos as mãos como fizemos na noite em que chegamos lá,
aquele ato chamaria muita atenção para nós dois, como se meu enorme
chapéu inclinado para frente já não fosse o bastante para isso.
Assim que chegamos perto de onde ele queria, pediu para que eu
fechasse os olhos e começou a guiar meus passos com a voz, até que me
puxou pelo pulso para um lugar fora da luz do sol.
— Onde estamos? — perguntei, ainda com as pálpebras abaixadas.
Notei não estarmos mais na rua. Não sentia o calor diretamente sobre a
pele, além de mesmo de olhos fechados, percebi que o lugar era um pouco
mais escuro e menos barulhento.
— Tente adivinhar. Preste bem atenção.
— Tudo bem. — Sorri. Tentei concentrar meus pensamentos no que
não podia ver, mas poderia sentir: cheiro de tinta e papel, além de ouvir
murmúrios e o som tão conhecido por mim de um folhear de páginas. —
Biblioteca?
— Você é bom nisso. Pode olhar.
Quando ergui as pálpebras, meus lábios se entreabriram ao notar a
imensidão de livros ao redor, eram prateleiras grandes, com capas das mais
diferentes cores e texturas.
— Muito obrigado por me trazer aqui, eu... — suspirei. Sequer
consegui finalizar a frase, andei de um canto para o outro, puxando os
títulos das prateleiras para ver quais escolheria. Os meus favoritos eram as
peças trágicas. Optei por um de capa vermelha rígida e singelos detalhes
dourados. — Posso levar este? — questionei, ainda entusiasmado.
— O que você quiser — respondeu o pirata com as mãos nos bolsos.
— Então esse aqui é o que eu quero.
Assim que entreguei o livro em suas mãos, Jake olhou para os
detalhes da capa e arqueou as sobrancelhas.
— Boa escolha. — Ateve-se aos cantos do lugar e depois sussurrou
para mim: — Aguarde lá fora, levarei para você.
— Hum... tudo bem — concordei.
Demorou pouco tempo para eu perceber que Jake não alugaria coisa
alguma e sim daria um jeito de roubar aquele livro. Dei alguns passos para
perto da porta e coloquei somente metade do rosto ali, onde pude ver o que
estava acontecendo.
Aquele pilantra parecia enrolar a atendente com sua lábia e peitoral à
mostra, a ponto de ela nem perceber onde o livro que estava nas mãos dele
foi parar. Dentro da parte de trás de suas calças.
Logo que ele se despediu da senhorita, virei-me para a rua, fingindo
que não tinha visto toda aquela malandragem. Assim que ele se aproximou
de mim, ouvimos um grito vindo de dentro da biblioteca:
— Ele me roubou!
— Corre! — Jake segurou firme no meu braço para que fugíssemos o
mais rápido possível dali.
Olhei ligeiramente para trás, vendo a mulher apontando para nós dois
com a feição furiosa, pedindo que nos pegassem, mas, felizmente, ninguém
mexeu um músculo para isso. Não havia guardas por perto.
Apesar do meu coração acelerar com a velocidade de uma carruagem
de quatro cavalos, senti cócegas na ponta da barriga, levando-me a rir da
situação assim que desaceleramos o passo de volta para a estadia.
— Você... — Balancei a cabeça negativamente com um sorriso no
rosto.
— O quê? Acreditou mesmo que eu gastaria ouro com alguns papéis?
— Ele retirou o livro de sua calça, entregando-me enquanto subíamos as
escadas do prediozinho.
Peguei na capa com a ponta dos dedos.
— Se soubesse o poder disso, iria se arrepender de dizer tamanha
besteira. Isto é o que mais diferencia nós, nobres, da plebe.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Engano meu, então. Achei que o que mais os diferenciassem do
povo fosse a quantidade de ouro. É por este motivo que vocês fazem
questão de que a população não saiba decifrar as palavras dos papéis?
Não respondi à pergunta, visto que parecia óbvio. A ignorância do
nosso povo era o que alimentava o poder e a barriga dos nobres, se a
maioria tivesse noção do quão forte seria, caso se juntasse contra nós, não
haveria um monarca mais com a cabeça presa ao corpo.
Assim que chegamos à porta do quarto, notamos que ela estava
encostada, ou seja, alguém a deixou aberta. Senti uma palpitação no peito e
pressionei os dentes de medo. Algo estava errado.
Jake colocou o indicador sobre os lábios como quem pedisse para que
eu ficasse em silêncio, e pôs um braço na minha frente, empurrando-me
levemente para trás dele. Cuidadosamente, abriu a porta do nosso quarto.
Percebi algumas coisas desarrumadas e reviradas.
Fomos descobertos, foi a primeira coisa que pensei. Um frio subiu
pela espinha só em imaginar ser capturado e preso nas garras de James
novamente. Aquele homem não teria piedade de mim, muito menos de
Jake, pela fuga.
O pirata entrou devagar no quarto, pé ante pé, inspecionando cada
canto dali e colocou a mão para trás para que eu segurasse.
Apertei a capa do livro contra o peito enquanto usava a mão livre para
entrelaçar meus dedos nos dele. Pela umidade de sua palma pude perceber
que mesmo que não aparentasse, Jake também estava tão nervoso quanto
eu.
Com o calcanhar encostei a porta assim que terminei de entrar no
quarto. O capitão tirou a pistola que estava muito bem guardada na parte da
frente de sua calça e com ela em mãos, guiou-me cuidadosamente para o
outro cômodo. Não deveria haver mais ninguém ali, ou se houvesse era bem
silencioso.
Felizmente, não encontramos alguém naquele quarto. Isso até o
momento em que a porta se abriu.
Ouvimos o ranger da madeira a cada passo. Meus olhos se
arregalaram e entreabri os lábios em pavor, sentia-me tão assustado que os
socos que o coração dava contra meu peito se intensificaram.
Jake de imediato colocou a mão sobre minha boca e me arrastou para
um canto atrás da porta com a pistola em posição. Tentei respirar apenas
pelo nariz, mas todo aquele desespero fez com que me sentisse sufocado.
Mesmo sem ver, pudemos identificar o que era dito entre eles, eram
três homens pelo menos.
— Ele ainda não voltou? Ou não ficou neste quarto? — disse a voz
rouca.
— Juro por todos os deuses, o príncipe dormiu aqui! Ele voltará!
Quando receberei o pagamento? — Pude reconhecer quem disse aquilo, não
lembrava o nome, mas era alguém da tripulação, com certeza. Um dos mais
velhos.
— Não receberá ouro algum, enquanto James não estiver com
Lawrence em seus braços. Vivo — completou a outra pessoa num timbre
mais fino e arranhado.
Era inevitável não tremer sob a mão de Jake ao ouvir aquilo. O rei
invasor não pareceu lidar bem com a minha fuga, queria me capturar
novamente a todo custo, e exigia que fosse com vida, com certeza ele
ansiava me torturar por ter escapado.
— Espera... a porta não estava assim quando chegamos.
Minhas mãos suaram, fazendo com que a capa do livro deslizasse por
meus dedos e fosse ao chão, chocando-se contra a madeira. Os passos
foram ligeiros em direção ao lugar onde estávamos.
Jake me colocou para trás dele e tomou à frente, saindo de nosso
esconderijo. Não pude ver no que estava mirando, a porta me impedia, mas
ele apontou e a pólvora estourou dando o primeiro tiro.
Pelo grunhir ouvido, foi efetivo. Os passos se tornaram mais
barulhentos, parecia que enquanto uma pessoa corria na direção de Jake,
outra se afastava.
O pirata colocou a pistola na cintura e andou para trás a fim de pegar
o candelabro que estava apoiado sobre o mármore próximo à banheira.
Assim que o homem com roupa de guarda se aproximou com uma espada
em mãos, meu capitão bloqueou o ataque ao usar o metal que segurava.
Os dois iniciaram uma batalha que mais parecia uma dança. Assim
que o inimigo desviou sua atenção para mim, Jake aproveitou a brecha para
dar-lhe um forte golpe na cabeça, fazendo-o ir ao chão.
Eu tremia tanto que minhas pernas mal sustentaram meu corpo de pé.
O pirata estendeu a mão para mim, logo me agachei para pegar o livro e
segurei em seus dedos a fim de sairmos rapidamente dali.
Fomos ligeiros em pegar nossos pertences. Enquanto corríamos,
deixando dois homens feridos para trás, o tempo parecia ir mais lento do
que o normal, tão devagar que era notório o chicotear que o sobretudo de
Jake fazia próximo de suas pernas.
Não vi o impostor. Não sabia de exato quem poderia ter me
denunciado, traído o próprio capitão por poucas moedas de ouro. Porém,
talvez pela voz desse para reconhecer.
O pirata colocou dois dedos na boca e fez um assobio alto durante a
nossa corrida. Eu era quase arrastado, minhas pernas curtas não conseguiam
acompanhar com precisão os passos dele.
A princípio, não entendi o motivo do barulho emitido por Jake, até
notar que era um sinal para que sua tripulação escondida saísse de onde
estava para fugirmos da cidade.
Por sorte, as ruas estavam movimentadas, conseguimos nos infiltrar
entre a população até entrarmos na mata e chegarmos onde havíamos
escondido os nossos barcos.
Minha respiração continuava ofegante, não sabia se havia mais gente
atrás de nós, e para piorar, o impostor provavelmente voltaria para as águas
conosco.
Mesmo com o pavor ao oceano, enfrentei meu medo sem pensar duas
vezes, pisei no mar e pulei no barquinho sem sequer olhar para trás,
concentrei-me no profundo verde dos olhos de Jake, com os lábios trêmulos
tentando conter um choro.
Houveram momentos tão bons naquela cidade, que doía em recordar
que era um príncipe fugitivo, que minha vida corria risco e o meu reino
precisava que eu os salvasse. Não estava seguro nem mesmo entre os
aliados.
— O que foi, Lawrence? — perguntou Jake. — Você está bem,
conseguimos fugir.
— Acalme-se, alteza — disse Arya, enquanto passava a mão por
minhas costas.
— Está tudo bem — falei firme, assentindo com a cabeça.
Queria poder desabafar sobre o que mais me angustiava naquilo tudo,
porém, não desejava falar na frente dos outros dois piratas, apenas com
Jake. A sós. Ele me entenderia. Além do mais, demonstrar fragilidade com
um traidor na tripulação seria arriscado, o traíra poderia usar isso ao seu
favor.
Quando chegamos perto do navio, prendemos os ganchos nas laterais
para que eles nos erguessem até a borda.
E assim que pisamos no convés, quis partir direto para minha cabine,
pretendia me afogar em lágrimas por tanta angústia e frustração. Chorar era
uma forma de aliviar do peito toda dor que sentia e me fortalecer para o que
viesse.
Dei dois passos em direção às escadas, quando parei ao ouvir Jake
esbravejar:
— Atenção! Preparem a prancha!
Arregalei os olhos, virando rapidamente para ele.
— O quê? — murmurei.
— Hoje faremos um traidor –— enfatizou o termo — andar sobre ela.
Então ele viu quem era o impostor.
Jake estava com os olhos enfurecidos em direção ao traíra, sequer
falou algo mais, apenas retirou a pistola da cintura e apontou para sua
vítima. O homem alto, velho e de poucos dentes na boca apavorou-se ao ver
que estava na mira.
— Gerald?! — A bruxa berrou, surpresa.
— Eu sabia que esse daí não prestava! — falou Bippo.
Era visível como a respiração do homem na mira teve intervalos cada
vez menores, ficando ofegante e quieto por um tempo, até que finalmente
resolveu tentar se defender e justificar a traição.
— Eu fiz isso para te proteger, capitão, proteger a todos nós! Por
conta deste príncipe, — apontou para mim —, estamos navegando em
direção à morte. O prêmio que James colocou por ele seria mais do que
suficiente para nos mantermos, até mesmo conquistarmos um novo navio.
Os outros piratas começaram a se agitar e murmúrios sobre o assunto
preencheram o convés. Eles concordavam e falavam ao mesmo tempo com
Jake, tornando incompreensível as frases.
Dei dois passos para trás e mordi o lábio. Estava com medo, sabia que
não só era caçado fora do navio, como também estava rodeado por pessoas
que desejavam que eu não estivesse ali e que, além de tudo, esperavam a
mínima oportunidade para me tirar do caminho.
Fiz o meu melhor por aqueles dias, tentei entendê-los, conhecê-los,
mas a sensação era de que eu seria para sempre um forasteiro e que não
pertencia aquele lugar.
Errei em ter confiado em piratas. Eles eram traiçoeiros e gananciosos,
homens que seguiam suas próprias leis. Imaginava que, por isso, se arriscar
por um monarca deveria ferir seus princípios, tornando a situação ainda
pior.
— Ei! — bradou a bruxa-pirata, assim que Jake ergueu a mão para
falar. Mas, antes dele dizer algo, ela gritou: — Covarde! Você sabia que
entregar o príncipe prejudicaria também o nosso capitão, ainda mais assim,
desprevenido. E vocês... — Passou o olhar pelos rostos ali presentes. —
Não acredito que estejam pensando num motim contra este homem! Só
conseguiram tirar a família da miséria por conta dele, escaparam da forca
pela ajuda dele, aprenderam a desbravar os sete mares... tudo devido ao
usurpador! — Rangeu os dentes.
— Arya tem razão — afirmou Strigói, indo para perto de Jake. —
Não há justificativa para a traição cometida por Gerald, ele traiu um dos
nossos, logo o capitão! Isso fere o código pirata.
Os olhos bem demarcados de Jake mantinham-se estreitos para os
outros piratas. A mão estava erguida e os lábios selados num silêncio.
Parecia raciocinar, calmamente, em meio ao caos.
Os tripulantes, aos poucos, assentiram com as cabeças, concordando
com o que ouviram. Formaram um tipo de roda em volta do traidor,
apoiando as mãos em suas espadas, quase as retirando da bainha. Ao notar
que perdeu todo o apoio que havia conseguido por pouco tempo, o homem
só aquietou-se como reconhecimento à derrota.
Naquele momento, o silêncio fez com que somente o som das águas
se chocando contra a madeira do navio fosse ouvido, todos mantinham-se
alternando a atenção entre o capitão e o traíra.
Jake abaixou a mão e se pronunciou.
— Acho que talvez não seja uma boa ideia colocá-lo para andar na
prancha, senhor Gerald. — Deu um cínico sorriso de canto.
— Tem piedade de mim, capitão? — O homem juntou as palmas das
mãos.
— Na verdade, é que me esqueci de que precisaremos de uma isca
quando chegarmos ao mar púrpura. — Aquela fala fez com que o pirata
traidor arregalasse os olhos. — Parabéns, acabou de ganhar uma nova
utilidade.
Jake tinha uma presença tão zelosa quando estávamos sós, que eu
havia me esquecido de sua origem suja e perversa. Lado esse que ele deixou
transparecer ao resolver deixar aquele homem agonizar de fome por dias
para ter o cruel destino de virar comida de alguma criatura.
— Não! Por favor, capitão, eu imploro! — Ele gritou, estarrecido.
O usurpador não encarou mais o homem, deu-lhe as costas e falou
alto:
— Amarrem-no. Irei para minha cabine, mas já estarei de volta.
Seguiremos, nossa próxima parada é o mar púrpura. — Passou direto por
mim para subir as escadas.
O desespero do velho homem era tanto que ele tentou correr para a
borda do navio a fim de se jogar em alto-mar. Preferia aquilo do que ser
tratado daquela maneira. Porém, antes que pudesse alcançar sua liberdade,
foi laçado pela bruxa-pirata.
Olhei para cima e vi Jake entrar de cabeça baixa em nossa cabine.
Retirei-me do convés e subi os degraus até que pudesse chegar à porta da
nossa estadia. Apoiei a mão naquela madeira, respirando fundo antes de
entrar.
Um imenso sentimento de culpa me tomou. Creio que não foi
agradável para o capitão ver as pessoas que sempre estiveram consigo quase
se virarem contra ele, muito menos ter que entregar um de seus homens
para o mar. Tudo aquilo com uma promessa que nem sabia se iria se
concretizar, pois o nosso percurso era arriscado. E creio que esse foi o
principal motivo de os outros piratas quase se rebelarem, o temor por suas
vidas.
Abri a porta devagar, encontrando Jake com as mãos para trás
olhando pela pequena janela que havia no fundo da cabine. Ele encarava o
horizonte, distraído, sem seu chapéu ou sobretudo. Sequer notou minha
presença.
— Capitão... — falei baixinho.
O pirata se virou.
— Sim?
— Eu queria pedir desculpas pelo transtorno que tenho lhe causado.
Àquela altura comecei a me questionar se realmente tudo que estava
acontecendo valia a pena, que talvez a promessa que fiz ao meu povo não
iria se concretizar. Morreria antes de voltar ou desistiria.
— Eu já esperava por isso — disse, aproximando-se lentamente. —
Grandes decisões levam a riscos ainda maiores.
— Creio que... — Senti um nó se formar na garganta. Não era a
decisão que eu queria tomar, mas talvez a que precisasse. Afinal, minha
família estava longe e, se Deus permitisse, segura. Eles poderiam até
mesmo formar alianças para tomar o reino, e eu teria minha história
lembrada como o príncipe covarde fugitivo. Desistindo ou morrendo numa
tentativa eu teria o mesmo resultado. Abaixei o olhar e a voz falhou. —
Devemos desistir. Eu posso tentar vender as minhas coisas para custear os
prejuízos de até então e me virar sendo deixado em alguma ilha distante.
— O quê? Por que está falando isso?
— Talvez os seus marujos tenham razão. — Ergui o olhar para ele. —
Não sabemos se sairemos vivos desta jornada, muito menos se conseguirá o
ouro que tanto almeja.
— Acontece que não posso te abandonar agora. James está
determinado em te encontrar onde quer que esteja... — Ele apoiou a mão no
meu queixo, trazendo-me ainda mais para perto. — E a minha motivação
para essa jornada se tornou algo além do ouro.
Aproximou-se, levando-me a fechar os olhos, então tive seus lábios
selados nos meus.
Jake me envolveu com um braço pela cintura, colando nossos corpos
e sua mão livre se entremeou nos meus cabelos, puxando-os com suavidade.
Afastamos nossos rostos, ofegantes, e abaixei as pálpebras não
conseguindo mais conter as lágrimas. Aquele homem fazia questão de
demonstrar que estava determinado a ir até os mares desconhecidos comigo,
mesmo que se fosse apenas nós dois.
— Obrigado — sorri sutilmente. — Porém, não acho que deva
colocar a emoção no lugar da razão agora.
— Tomei a decisão de insistir, estou equilibrando os dois. — Passou o
polegar por minha bochecha. O verde de seus olhos que ora transmitiam a
fúria da ressaca do mar, também foram capazes de demonstrar, naquele
momento, a serenidade de uma maré baixa. — Estaremos prontos para isso,
eu prometi a você que iríamos até o fim. Terá seu reino de volta. —
Afastou-se. — Descanse, continuaremos com seus treinos próximo ao pôr
do sol. — Foi para perto da porta e colocou o chapéu.
— Darei o meu melhor, capitão.
Ele deu um sorriso de canto antes de deixar a cabine.
Jake Rogers era não só um homem determinado, como também
transmitia a segurança em suas palavras de que daria certo, fazendo-me
quase acreditar que sim, conseguiríamos.
Aquela foi uma das piores noites de sono que tive dentro do navio.
Mal consegui pregar os olhos, pois meus pensamentos não paravam de me
assombrar com as memórias do que acontecera.
Não quis demonstrar para Lawrence o meu desapontamento com um
quase motim, muito menos preocupá-lo a respeito dos meus problemas. Ele
era sim, uma das causas, mas acreditava que não o suficiente para minha
tripulação chegar aquele ponto. Minha liderança estava fragilizada, e eu
deveria procurar saber o porquê.
Condenar Gerald foi difícil. Apesar de ocultar a sete chaves sobre seu
passado, ele jurou lealdade a mim e a tripulação quando o livrei de dois
mercadores de humanos em Astrid, e foram mais de cinco anos de
convivência. Não conseguia encontrar cabimentos em sua atitude tão
extrema... ou talvez estivesse sendo ingênuo demais sobre até onde a cobiça
leva alguém.
Entre idas e vindas de consciência, desisti de dormir. Sentei na cama e
olhei para o príncipe ao meu lado, levei a mão aos seus cabelos, com os
dedos leves como pluma para não acordá-lo, e o acariciei. Um sorriso se
formou em meus lábios sem perceber.
É, àquela altura eu poderia admitir para mim mesmo que não estava
apenas gostando de Lawrence, mas sim apaixonado. Não era mais aquele
magnetismo sem explicação que me fazia querer ficar por perto, mas sim
ele, com sua personalidade que muitas vezes era difícil, onde as brechas de
virtudes o tornavam mais admirável.
Soltei o ar devagar e inspirei fundo. Saí da cama, vesti o casaco,
apenas, não o chapéu, e deixei a cabine.
O céu estava na transição de um azul-escuro para o claro, não deveria
faltar muito tempo para amanhecer. Desci os degraus do tombadilho e a
primeira coisa em que prestei atenção foi no corpo do marujo preso ao
mastro. Ele dormia em pé e sereno, como se não estivesse numa posição tão
incômoda; a segunda, um cheiro forte de terra e cravo.
Arya está desperta.
Não conseguiria lidar com as questões que me atormentavam sozinho,
precisava de respostas, e ela sempre parecia tê-las. Desci as escadas e passei
pelo corredor escuro, onde o cheiro era ainda mais intenso e quente, quando
cheguei em frente à porta de madeira onde havia um símbolo de coração
invertido, dei dois toques.
Minha imediata me recepcionou em meio à uma nuvem de fumaça.
— O cheiro das especiarias está muito forte?
— Sim, mas não foram elas que me despertaram. Não consigo dormir.
Ela encostou no batente, ainda com sua camisola de linho, e cruzou os
braços. Apenas um canto de seus lábios se ergueu.
— O que te aflige?
— Minha fragilidade como capitão.
— Eu esperava por essa resposta. — Contraiu os ombros.
— Previu isso pelas especiarias?
— Não precisa de bruxaria pra isso, capitão. Realizar a primeira
condenação em sua tripulação, seguida por um quase motim já são motivos
suficientes. — Arya colocou a cabeça para fora de seu quarto e olhou para a
porta ao lado, a de Steve, e voltou a atenção para mim. — Vamos continuar
essa conversa no convés? — abaixou seu tom.
— Claro.
Ela fechou a porta e me deixou no completo breu por um tempo até
sair de seu quarto com colete vermelho sobre a camisola e um casaco. Com
a mais completa discrição subimos as escadas até o convés.
— Por que quis que viéssemos conversar aqui? — questionei.
— Porque aqui não há paredes com ouvidos. — Colocou as mãos
para trás à medida que se aproximava da borda do navio. — Além do mais,
gosto de ver o nascer do sol. — Fixou seus olhos no horizonte e uma brisa
fria passou, esvoaçando nossos cabelos.
Apoiei as mãos na madeira e olhei para o movimento das águas.
— Arya, acha que não sou digno do título que carrego? Seja sincera,
por favor. Eu senti uma fragilidade em minha liderança no dia anterior.
— Você é mais do que merecedor disso, capitão, não tenha dúvidas. É
quem deu chance à fugitivos e rejeitados, quem se põe em linha de frente a
tudo, que dedicou a alma por esse cargo. — Seus pulmões soltaram o ar
devagar e os olhos escuros se direcionaram para mim. — Mas estamos
seguindo por águas perigosas, onde sequer sabemos se sairemos vivos pela
recompensa. E nesse caso, quando a sobrevivência entra em jogo... não há
títulos que sustentem fidelidade.
— Acha que devemos realmente recuar?
Seus dedos se apoiaram em meu ombro e senti seu aperto.
— Acho que deve afirmar para eles que você garantirá a segurança.
— Afastou-se sutilmente para se apoiar na borda com os cotovelos. — Até
porque sei que não é da sua vontade desistir. Principalmente quando a sua
motivação está além da recompensa.
Encarei o horizonte, onde a ponta de luz aparecia na transição entre o
céu e o mar e enchi os pulmões lentamente.
Eu sabia ao que ela se referia. Creio que todos do navio sabiam, mas
eu não conseguia esconder ou reprimir, e nem tentaria, mesmo tendo noção
dos perigos que aquilo representava. Lawrence se tornou uma fraqueza,
algo que poderia me atingir, porém, aos poucos também virou minha
motivação.
— Obrigado por me apoiar, Arya.
Coloquei a mão sobre a dela, que sorriu sutilmente.
— Devo muito a você, capitão. Se não fosse por seu acolhimento, eu
não estaria aqui hoje.
O céu tornou-se mais claro, e meus olhos, pesados. Conversar com
minha imediata fez com que todo o peso em meu corpo se esvaísse e o
cansaço bateu com força.
De repente, Strigói apareceu, sem a bandana, exibindo sua careca. Os
olhos estavam arregalados e a mão nervosa friccionava sua cabeça.
— O que foi? — perguntei a ele.
— Esquecemos de novo das laranjas, capitão.
— E qual é o desespero por isso?
Ele coçou a sobrancelha e franziu a testa.
— Elas não são importantes?
— E por que seriam? — Cruzei os braços.
Depois de um bom tempo em silêncio, Strigói respondeu.
— Eu não sei direito... mas todos os navegantes dizem que é, que
evita doença.
— É um mito, bem alimentado ninguém ficará doente. Pode preparar
as refeições tranquilo.
— Certo, capitão. — Deu as costas para mim e desceu as escadas.
Encostei na borda do navio e apoiei os cotovelos na madeira, de
forma que ficasse de frente para o tombadilho. Arya passou por mim em
direção ao andar mais baixo.
— Irei voltar para a cama por mais um tempo, tudo bem?
— Desculpe por te fazer perder o sono... e mais uma vez, obrigado
por ficar comigo.
— Não me fez perder o sono, eu já estava acordada preparando
especiarias para usarmos nessa viagem. — Ergueu os ombros. — Não há de
quê, capitão. Se precisar de mim, só bater na porta.
Bastou que ela desaparecesse de meu campo de visão, para que minha
atenção se desviasse para outra coisa. Lawrence apareceu no alto do
segundo andar do navio com o livro em mãos, de longe vi seu sorriso,
seguido por um aceno.
Os cantos dos meus lábios se esticaram e senti um frio subir pela
barriga. Enquanto ele descia as escadas, aos poucos os outros tripulantes
deixavam seus quartos e ocupavam o convés, Bippo e Steve foram os
primeiros.
Os dois marujos me cumprimentaram e Bippo se aproximou do corpo
de Gerald preso ao mastro. Fungou duas vezes e arqueou a sobrancelha,
olhou para mim.
— Capitão, você não acha melhor o atirarmos no mar de uma vez?
— Não. Ele precisa pagar pelo que fez.
Lawrence enrugou o nariz ao passar pelo corpo do traidor.
— Bom dia, senhores — cumprimentou Bippo e Steve, e depois me
encarou. — Bom dia, capitão. Iremos treinar hoje?
— Sim, depois da refeição. Dormiu bem?
Ele desviou o olhar do meu e franziu as sobrancelhas, percebi como
seus dedos apertaram a capa do livro.
— Sim.
Claramente mentiu.
— É sobre o que essa história que está lendo, príncipe? — perguntou
Steve, coçando a barba.
— É uma tragédia sobre um herói que resolveu o enigma de uma
esfinge que atacava sua cidade. Ele matou o próprio pai e desposou com sua
mãe.
O mais velho arqueou as sobrancelhas e arregalou brevemente os
olhos.
— Parece interessante.
— O homem casou com a própria mãe? — Bippo se aproximou. —
Por que você não lê um pouco para a gente, Lawrence?
— Claro! Posso... ler sim. Que tal se eu voltar desde o primeiro
capítulo para vocês entenderem?
Cruzei os braços e sorri ao vê-lo interagir com a tripulação. Lawrence
se sentou em um barril que estava apoiado no canto do convés e abriu o
livro, os outros dois piratas ficaram ao seu lado ouvindo atentamente.
A manhã foi até que tranquila, fizemos a primeira refeição do dia,
guiei o navio e treinei com o príncipe. Ele estava cada dia melhor, mais ágil,
e era nítido seu esforço durante as lutas.
Lawrence não era mais um mero espectador da viagem, e sim um dos
principais, que parecia disposto a ficar na linha de frente.
No final da tarde, meu corpo já não aguentava mais de pé, eu me
apoiava na direção e os olhos piscavam com certo peso. Arya subiu até
onde eu estava para assumir o comando e pediu que eu me deitasse.
Meio a contragosto, retirei-me para a cabine. Eu não queria que
perdêssemos mais tempo, os atrasos com LeDovic já foram demais. Cada
dia que passava sem impedir James era um alimento ao seu poder.
Estava deitado sobre a cama, com o corpo cansado e mente agitada,
quando Lawrence entrou e se sentou ao meu lado. Ele passou a mão pelos
meus cabelos e eu sorri em resposta.
— Você não está bem.
— Nem você. O que te preocupa?
Ele franziu a testa.
— Tudo. A viagem, a tripulação... eu sei que você não está bem pelo
que deve ter acontecido ontem, e tudo por minha causa. Às vezes sinto que
não estou fazendo uma boa escolha em prosseguir com isso... — Desviou o
olhar do meu para a parede. — Não sei para onde meus pais foram, se estão
vivos, se estão com aliados arquitetando uma guerra... e eu estou indo para
uma viagem com risco de morte, num navio com pessoas que certamente
querem me matar por isso, sendo que não há certeza de nada no final das
contas. Caso consiga pegar a fruta quebradora de maldições, farei o quê? —
Encarou-me. — Enfrentarei um exército com meia dúzia de piratas?
Respirei profundamente e apoiei a mão sobre a dele.
— Por um bom preço, conheço outras tripulações que podem nos
ajudar, na baia dos ossos. Além do mais, não deixe o desespero te cegar,
príncipe, seu reino não tem aliados?
— Os reinos menores e mais próximos já devem ter sido tomados ou
estão sob influência de James. — Levou o polegar entre os dentes.
— Você é bem conhecido e com certeza sua presença será bem-vinda
em outros reinos ainda não tomados por ele. Aposto que governantes já
estão preparando seu exército para contê-los, mas sabe que tudo será em
vão sem romper a maldição.
Ele suspirou e se deitou ao meu lado, entrelaçando nossos dedos.
— Eu não sei, Jake. Não quero mais carregar esse fardo.
Seus olhos grandes e azulados encontraram-se com os meus.
Lawrence queria desistir da viagem, e eu, mesmo sabendo da
urgência, às vezes não queria que ela acabasse. Sabia que após o fim não o
teria mais por perto, e ele se tornaria apenas mais um que passou em minha
vida, como cada amante que tive durante minhas jornadas.
— Infelizmente, se quer ser um rei, terá que lidar com
responsabilidades e decisões difíceis, alteza. Grandes escolhas fazem parte
da liderança — disse, recordando do que aconteceu no dia anterior.
— Eu sei.
O príncipe virou-se de lado e deitou com a cabeça sobre meu peito.
Levei a mão aos seus cabelos, afagando-os e fechei os olhos.
Nós dois estávamos em momento de fragilidade, o que tornava os
desafios daquela jornada ainda maiores.
As noites deixaram de ser de calmaria. Estava determinado a aprender
a me defender e lutar pelo meu reino. Eu havia treinado, incessantemente,
para dominar uma espada, cada passo de defesa e ataque, e o que tornou o
meu preparo ainda mais difícil não foi só o peso do metal, mas a angústia
em ter aquele homem preso ao mastro, gritando durante todas as vezes para
que tivessem piedade dele, definhando de fome.
Jake ignorava friamente o traidor, porém, aquilo me agoniava. Não
que eu não punisse os meus inimigos, os condenava, contudo, nunca tive
estômago para ver uma execução ou enforcamento. Recusava-me.
Passamos alguns dias mantendo uma rotina de treino, navegando
rumo ao mar púrpura. Naquela manhã, assim que ergui as pálpebras, notei
que estava sozinho na cama.
Sentei-me, esfreguei os olhos e pisquei algumas vezes. Ao bocejar
veio a sensação de gosto metálico na boca. Passei a língua pelos dentes, era
incomum sentir o sabor de sangue. Acreditei ter mordido o lábio sem querer
durante o sono.
Antes que pudesse me levantar, a porta se abriu. Era Jake, com seu
chapéu de capitão, blusa marrom que exibia parte de seu peitoral, e uma
tigela em mãos com uma colher.
— Dormiu bem?
Afirmei com a cabeça, apesar de aquilo não ser verdade. Faziam dias
que não conseguia descansar propriamente, vivia preocupado sobre a
viagem, desconfiado daqueles que sorriam para mim, mas que poderiam me
trair a qualquer momento, além de há dois dias começar a me sentir
enjoado, mal. Minha saúde estava silenciosamente entrando em declínio.
— É pra mim? — Franzi as sobrancelhas, ao vê-lo se sentar na cama
ao meu lado
— Sim. Mingau. Sua primeira refeição de hoje... — Estendeu a tigela.
— Obrigado. Ainda não me acostumei com esse café da manhã na
cama, é uma boa surpresa. — Ri.
— Achei que fosse acostumado com as pessoas fazendo as coisas
para você — respondeu, ao tirar o chapéu e se deitar de lado para me
encarar.
— Os outros, sim, mas você? Não. — Dei uma colherada.
— É porque sei que isso te deixa feliz. — Virou-se de barriga voltada
para cima, colocando as mãos atrás da cabeça. — Além disso, tem se
empenhado em lutar, então merece um agrado. Como se sente hoje? Pronto
para treinar agora pela manhã?
— Tenho sentido meu corpo meio dolorido, talvez pelo peso da
espada. E apesar de ter dormido bem, ainda estou cansado. — Raspei o
talher pelo fundo do pote raso. — Não podemos pular o treinamento de
hoje?
— Com certeza, não. — Jake disse e pegou a tigela vazia das minhas
mãos. Ergueu-se, colocando o chapéu novamente. — Essa sensação de
cansaço é normal, principalmente por você não estar acostumado.
— Se está dizendo... — tentei me convencer. Eu havia jurado que
seria útil naquela jornada e estava comprometido àquilo, mas algo não
parecia certo.
— Acredite. Aliás, está indo muito bem. — Foi para perto da porta e
colocou a mão sobre a maçaneta. — Arrume-se rápido, devemos aproveitar
ao máximo a luz do sol hoje. Falta somente um dia para chegarmos ao mar
púrpura. — Deixou a cabine.
Assenti. Meio indisposto, levantei-me da cama para vestir a calça de
couro, botas e uma blusa de tom amarelo-claro. Os sintomas pioravam, as
pernas pareciam querer fraquejar, mesmo após ter comido a aveia e,
novamente, o gosto de sangue veio à tona no paladar.
Deixei a cabine e de imediato levei uma das mãos para cima da testa a
fim de fazer sombra. A luz do sol estava tão forte e ofuscante que me fazia
espremer os olhos.
— Bom dia, príncipe — disse a bruxa-pirata, coordenando a direção
do navio.
— Bom dia.
Aproximei-me das escadas, sem pressa, e vi Jake no convés a postos
com as duas espadas.
Desci os degraus, apoiado no corrimão. Sabia que talvez não
conseguiria dar o meu melhor naquele dia.
Concentrei-me nos olhos bem delineados do capitão, ignorando o
homem preso ao mastro principal atrás dele. Aquele traidor já não gritava
mais, muito menos se mexia, parecia dormir, talvez no sono eterno.
— Não pegarei leve desta vez, não é mais tão principiante assim —
falou o pirata, estendendo a mão com a espada.
— Sei disso, mas, não me sinto tão disposto hoje, capitão —
justifiquei. — Tentarei dar o meu melhor.
Ele esboçou um sorriso de orgulho por notar meu esforço. Nós nos
afastamos para que pudéssemos entrar em posição, distanciei os pés a fim
de manter o equilíbrio.
Esperei para que ele viesse, então assim que Jake correu para um
ataque, esquivei e bloqueei com a espada.
Desfiz o golpe, virando o pulso de forma que pudesse acertá-lo de
baixo para cima, mas ele interrompeu, defendendo-se. Com isso, iniciamos
a nossa dança, cujo ritmo era ao som do tintinar dos metais um contra o
outro.
Sentia minha respiração ofegante. Não sabia se era pelos movimentos
rápidos ou o sol escaldante, mas não demorou muito para que o suor se
formasse abaixo de meus cabelos.
Fui bloqueando os ataques vindos de Jake até que consegui uma
brecha para correr para longe o suficiente dele. Aquele homem não dava
trégua.
Quando veio rapidamente na minha direção, corri ao encontro dele, e
assim que estava próximo, abaixei para que meus joelhos escorregassem
pelo chão e pudesse acertá-lo debaixo.
Ao notar o golpe, o pirata parou assustado e eu consegui jogar a
espada para trás, a fim de não deixar que a lâmina levasse embora uma de
suas pernas.
Jake me encarou de cima com satisfação.
— Isso foi golpe baixo.
— Como de um pirata — falei, refletindo sua feição. Aquela foi a
primeira vez que consegui vencer uma batalha de verdade, não aquelas que
já me deixaram ganhar. Mal podia acreditar que estava aprendendo a lutar.
Do jeito que eu estava no chão, permaneci. Sentia meu coração bater
forte e a respiração cansada. Após a sensação de perigo que nosso treino
proporcionou, meus músculos pareciam não querer mais obedecer,
fadigados ao extremo.
— Você foi muito bem, Law... — Estendeu a mão na minha direção
para que me ajudasse a levantar, porém, me sentia subitamente mal.
— Jake... eu não estou me sentindo bem, não me sinto bem.
O capitão se agachou perto de mim e apoiou a mão sobre minha testa.
Enrugou a testa preocupado.
— O que está sentindo? Não tem febre.
— Enjoo, fraqueza...
Ele mordeu o lábio, ainda me observando e respirou profundamente.
Puxou-me pelo braço e me apoiei em seu corpo para que tivesse ajuda para
andar. Jake subia as escadas com dificuldade e eu tentava auxiliá-lo jogando
o peso para o corrimão.
— Capitão, príncipe! O que está acontecendo? — Arya perguntou.
— Mude a rota para a cidade mais próxima, precisamos pisar em terra
firme com urgência.
— Pode deixar, avisarei à tripulação.
Enquanto Jake entrava comigo na nossa cabine, pude ouvir de longe a
pirata alertar os marujos. O capitão me deitou na cama e se sentou ao meu
lado, acariciando-me os cabelos.
Não desfez a expressão de preocupação por um segundo.
— Eu não me sinto bem, mas não é tão ruim assim. Acredito que o
descanso vai me deixar melhor.
— Estou preocupado. Muito. É melhor buscarmos ajuda rápido do
que tentar deixar que se cure sozinho ou algo maior aconteça.
— Algo maior?
— Sim. Dependendo do que você tiver, pode matar uma tripulação
inteira.
Puxei o ar e tentei buscar forças para me sentar, mas Jake apoiou a
mão sobre meu peito, deitando-me novamente.
— O que quer dizer?
— O que quero dizer é que...— fez uma pausa longa demais — já vivi
uma situação dessas, e receio que possa acontecer de novo.
Jake era o único sobrevivente do antigo navio pirata: “A Morte da
Rainha”, que foi assolado por uma doença terrível que começou com um
marujo e logo se alastrou pela embarcação, tirando a vida de todos. Quer
dizer, quase todos. Ele, por um milagre, foi o único que não adoeceu.
Aquele fato era estranho.
O usurpador era alguém muito misterioso. Apesar de estar com ele
por tanto tempo desde a fuga, tinha noção de que não sabia metade de quem
Jake Rogers era, por onde andou e pelo que passou. Todas essas
informações continuavam ocultas num mundo repleto de bruxas, fantasmas
e homens amaldiçoados.
A partir do momento que adoeci, ele se tornou mais cuidadoso do que
nunca, sempre indo à cabine de tempos em tempos para verificar como eu
estava, além de tentar preparar refeições das mais diversas possíveis, dentro
das restrições que havia no navio. No entanto, eu estava numa situação que
não conseguia ingerir absolutamente nada que não fosse água.
Mesmo que eu fosse acostumado com pessoas ao meu redor, fazendo
as coisas para mim, sentia-me irritado com a presença de Jake constante
naquele abrir e fechar de porta, o tempo inteiro.
Ainda que eu tivesse acordado, continuei com os olhos fechados.
Dormir era um dos poucos momentos em que não me sentia incomodado ou
com dor. Quando ouvi o bater da porta da cabine ergui uma das pálpebras.
O capitão veio com um sorriso largo, trazendo em mãos uma tigela.
— Bom dia, como se sente hoje? — Sentou-se na cama ao meu lado.
Eu preferia que ele não tivesse me visto acordado.
— Mas que pergunta tola. É claro que me sinto mal — resmunguei.
Jake, a princípio, arregalou os olhos em surpresa, depois franziu as
sobrancelhas.
— Por que está agindo assim? — Permaneceu me encarando com a
comida em mãos.
— Porque estou irritado com você em cima de mim o tempo todo, as
dores, mal-estar, o isolamento, tudo isso acontecendo e...
— Você está irritado comigo por estar preocupado? — Ergueu-se. Seu
rosto se fechou numa carranca. — Estou fazendo o possível para que se
recupere ou fique minimamente confortável, enquanto não te levamos num
médico, e é assim que me trata? — Balançou a cabeça negativamente. —
Posso cuidar de você, alteza, mas continuo sendo seu capitão, e não um
criado.
Soltei um suspiro longo e cocei de olhos.
— Tudo bem, só me deixe em paz — falei.
— Não vai comer? — Estendeu o que parecia ser, novamente, aveia
cozida.
— Não tenho mais fome — respondi, virando-me de lado, na direção
oposta a ele, para puxar as cobertas para cima dos ombros.
— Se é assim... — Jake murmurou.
Fechei os olhos novamente e só pude ouvir seus passos pesados em
direção à porta, seguido por um bater que fez com que as lamparinas
penduradas trepidassem.
Respirei fundo. Eu não queria tê-lo tratado tão mal, mas parecia
incontrolável me sentir irritadiço daquela forma. Esperava que o mau
humor passasse logo, antes mesmo dos outros sintomas. Poderia aguentar as
dores, mas não queria causar dor em quem tentava me ajudar. No entanto,
naquele momento, não consegui evitar.
Ouvi o ranger da porta se abrindo mais uma vez e me virei para falar
com ele.
— Jak... — Ao ver que era Arya quem tinha entrado nos meus
aposentos, juntei as sobrancelhas. — O que faz aqui?
— Vim ver como está. Tem sentido mais sintomas?
Ajeitei-me, sentando na cama para encará-la diretamente.
— Por que deseja saber? — questionei.
— Porque é importante ter noção se está piorando ou não. E essa sua
mudança de humor já diz muita coisa. — Sorriu levemente. — Você precisa
se alimentar!
Desconfiei.
Queria não estar paranoico, mas naquele momento passou pela minha
cabeça de que talvez meu adoecimento repentino não fosse algo do acaso.
Por que só eu enfraqueci?
Estive tanto tempo distraído com a presença de Jake, que esqueci que
estava no meio de pessoas que talvez não me queriam mais ali, porém me
aturavam pelo seu capitão.
Estar naquele estado me levou a cogitar a ideia de que alguém da
tripulação quisesse se livrar de mim antes da hora, e de forma que não fosse
possível identificar quem foi o causador. Podendo ser quem menos
levantava suspeitas.
— Então é através da comida que você, ou quem quer que seja, está
me matando, não é?
Tentei ver se ela esboçaria alguma reação à minha acusação. A
mulher do jeito que estava, continuou. Não expressou nada e nem saiu do
lugar, parecia que tinha falado um absurdo.
— A única pessoa dessa tripulação que te queria morto já virou
comida de peixe. Portanto, não diga asneiras. Apesar de alguns dos marujos
não gostarem tanto da sua presença, te suportam, afinal, você é importante
para o nosso capitão.
Ela me encarou, mas não consegui concentrar meus olhos nos dela,
desviei-os para a parede.
— Sei... tão importante que quase realizaram um motim por minha
causa.
— E eu jamais deixaria que isso acontecesse. Sou fiel ao meu capitão,
se ele tem por objetivo te proteger, essa missão é minha também.
De dentro ouvimos um: “estamos perto do destino!” A mulher não
acrescentou mais nada, deixou a cabine rapidamente para que eu me
arrumasse.
Acreditei que, ao descer naquela terra, talvez devesse me preparar
emocionalmente para uma despedida de Jake. Não que eu estivesse pronto
para dar adeus à minha vida, mas tinha em mente que, se sobrevivesse à
doença, deveria seguir com meu plano de sair do caminho dele, ideia essa
que ele havia me feito repensar há uns dias.
Era grato aos aprendizados que tive e aos bons momentos ao lado
daquele pirata. O amava, mas já não me sentia seguro naquele navio há
tempos e a cada passagem de nossa rota a dificuldade só aumentava.
Sentia um aperto no peito e os olhos ardiam ao me imaginar
deixando-o, porém, talvez fosse o correto a se fazer. E aquele seria o
momento ideal para aquilo.
Estava vestido com uma blusa branca com franjas nas mangas e na
frente, calças amarronzadas, botas, sobretudo de couro e o chapéu para
cobrir a maior parte dos meus cabelos, meio inclinado para frente a fim de
fazer sombra sobre meu rosto. Tudo para tornar mais difícil meu
reconhecimento.
Fiquei em silêncio durante todo tempo em que estávamos no
barquinho atravessando até a nova cidade, onde procuraríamos ajuda
médica.
Ainda sentia dor, mal-estar e o gosto do sangue na língua, porém,
todos aqueles sintomas tiveram sua atenção desviada para algo maior, a
coragem que cultivava para minha despedida.
Estava determinado a sumir da vista de Jake e trilhar meu próprio
caminho, após receber o antídoto para o que eu tinha.
O capitão também não trocou uma palavra comigo depois da nossa
discussão na cabine.
Quando a canoa parou devido à colisão com a areia, Jake se ergueu e
estendeu a mão para que me ajudasse a levantar. Toquei sua palma,
ligeiramente áspera, e a envolvi. Sentiria falta daquele toque.
— Nós procuraremos uma estadia perto do mar, capitão — disse
Steve.
— Certo, é melhor para uma fuga, mas eu, Arya e Strigói ficaremos
numa estadia próxima do centro, onde deve ter algum médico — respondeu
o capitão e deu-me uma olhadela.
— Entendido. — O homem deu um toque na ponta do chapéu e se
retirou, junto de mais um marujo. Então nós quatro caminhamos para o lado
oposto.
Eu adorava desembarcar nas novas cidades. Aquele lugar era
diferente dos outros. Mais ensolarado, florido, as pessoas tinham o tom de
pele próxima à oliva, pouquíssimos eram pálidos. Boa parte da população
usava algo sobre as cabeças, na maioria das vezes lenços, casualmente
bandejas ou mercadorias para se protegerem.
Parecia ser dia de feira, as ruas estavam cheias, com pessoas passando
com sacolas para todos os lados e de longe dava para ouvir os gritos dos
mercadores nas ruas à frente.
— O quão bem você conhece esse lugar, Arya? — perguntou Jake.
— O bastante, capitão. — A mulher respondeu, olhando em volta.
Pelo pouco que conheci de Arya, vi que sem ela Jake não seria
ninguém. Ela tinha conhecimento extenso sobre os reinos e o mundo oculto,
explorou a maioria dos territórios junto de sua mãe devido às especiarias,
nunca soube exatamente com qual finalidade ela as adquiria, o que achei
uma pena, pois partiria sem vê-la em ação.
— E sabe onde fica o médico ou curandeiro mais próximo?
— Estou nos levando para lá. — A bruxa-pirata tomou à frente para
nos guiar por aquelas ruas estreitas.
Eles tentavam andar em passos curtos para acompanharem o meu
caminhar lento. Mesmo com dores nas pernas e me sentindo mal, consegui
fazer o esforço de andar sob aquele sol até que chegássemos numa pequena
casa de madeira, cuja placa na frente estava escrita: ''Médico Henry
Castanheri''.
O capitão deu três toques à porta e aguardamos para que fôssemos
atendidos. Um homem calvo e de barba longa com monóculo nos recebeu
com medo.
— N-no que posso ajudar? Não tenho dinheiro. Por favor, não me...
— Precisamos de seus serviços. É médico, não? — perguntei.
— Sim — assentiu com a cabeça, nervosamente. — Entrem, entrem.
— Fez sinal com a mão, afastando-se da porta para que adentrássemos.
O lugar era pequeno e sob uma penumbra, a única iluminação vinha
das janelas de vidro fosco. Tinha uma mesa de madeira escura no centro e
bancos do mesmo material espalhados. Havia um armário de porta de vidro
mostrando diversos frascos, livros e instrumentos.
O médico foi para trás da mesa, sentando-se.
Jake retirou do bolso algumas moedas, colocando-as sobre a bancada.
As mãos enrugadas do homem repousaram sobre elas e as arrastaram mais
para perto. O capitão me encarou de lado e inclinou a cabeça para que eu
falasse.
— Estou morrendo — disse, dramaticamente, sentando no banco
frente à mesa.
— E como presumiu isso? O que sente?
— Sinto dores por debaixo da pele, principalmente nas pernas. Estou
irritado, mais fraco que o usual, com desconforto para comer qualquer
coisa. E minha boca não para de expelir sangue. Não aguento mais sentir o
gosto de sangue!
O médico estreitou o olhar e ajeitou o monóculo, inclinou-se sobre a
mesa para que seus dedos alcançassem meus lábios, puxando-os
delicadamente para baixo. Observou com atenção os dentes.
— Há quanto tempo estão no mar?
Arregalei os olhos, sentindo o coração se acelerar. Não sabia se
poderia dar aquela informação, até que a bruxa falou:
— Um pouco mais de um mês.
O médico assentiu e cruzou os braços.
— Bom, seus sintomas batem com a doença de marinheiro. Não
todos, mas a maioria sim.
— O quê?! — Rangi os dentes e olhei para os três piratas atrás de
mim. — Um de vocês está doente e pode ter passado para mim!
— Não é uma doença contagiosa. Ela é, provavelmente, por má
nutrição. Vocês têm muitas restrições devido ao armazenamento, não é?
Bem, nesses casos dizem que frutas cítricas ajudam.
— Eu sabia que as laranjas eram importantes! — Strigói pisou firme
no chão.
Senti o rosto aquecer por tê-los acusado de ser o motivo de meu
adoecimento sem antes garantir uma confirmação daquilo. Engoli em seco,
balançando a cabeça em negação.
— Não acredito que uma doença terrível como essa seja resolvida
apenas com frutas azedas. Como assim ''dizem''. — Ergui os dedos das duas
mãos para fazer aspas. — Que ajuda? Você é médico, deveria saber
exatamente qual é a cura!
— Esta é uma doença que ainda não conseguimos identificar ao certo
a causa e a sua relação com as frutas cítricas, mas espero que em breve
cheguemos numa resposta. — Estreitou os olhos, dando um sorriso.
— Tudo bem — concordei, seguido por um suspiro longo.
De todos os males que passei nessa viagem, ainda tenho que lidar
com uma doença por falta de comida. Lamentável.
— Agradeço por seu trabalho, doutor — falou Jake, apertando a mão
do homem.
Deixamos aquele pequeno espaço de madeira e percebi que o capitão
e o anão estavam com as expressões nitidamente irritadas, enquanto a bruxa
mantinha a mesma feição no rosto, de indiferença, ela não pareceu ter se
afetado muito pelo que eu disse.
Odiava admitir erros, mas detestava ainda mais me desculpar por eles.
Não era meu hábito usar aquela palavra, se redimir com quem estava abaixo
de mim na hierarquia social. Porém, precisava fazê-lo, afinal, se não fosse
por Jake, teria morrido há tempos.
Engoli em seco, numa tentativa falha de umedecer a garganta
enquanto caminhávamos à procura de uma estadia.
— Perdão pelo que eu disse a vocês... — Abaixei o olhar. — Não quis
magoá-los, por isso suplico que aceitem as minhas sinceras desculpas. —
Ergui a cabeça para alternar meu olhar entre os três.
— Não me abalou. — A bruxa riu brevemente. — Surpreende menos
quando se é esperado.
— Tudo bem — respondeu o anão, descruzando os braços.
Jake, no entanto, permaneceu em silêncio olhando para o caminho.
Insistiria por suas desculpas quando estivéssemos a sós, não queria ir
embora deixando-o com uma sensação ruim dos últimos minutos na minha
presença.
Depois de muito caminhar e pesquisar por estadias, chegamos em
frente a um edifício grande de pedras, cuja fachada estava com uma placa
de madeira escrita: ''Pousada''.
Tinha uma recepção pequena, com escadas de um lado e um corredor
no outro, com a bancada da entrada no centro entre os dois acessos. Não era
tão escuro, apesar de não haverem lustres, somente candelabros e
lamparinas para iluminar aquele lugar minúsculo e com cheiro de madeira.
Jake tomou à frente, pisando firme nos tapetes esverdeados para falar
com o homem de bigode espesso que estava atrás do balcão, e adquiriu as
chaves para os nossos quartos.
Subi os degraus com dificuldade, devido às dores que sentia nas
pernas. Assim que chegamos ao corredor, nos dividimos. Os dois piratas
foram para um lado, eu e o capitão para outro.
Ele ficou em silêncio por um tempo longo demais. E desde as últimas
horas que o tratei mal, começou a agir de forma menos calorosa.
O quarto daquela estadia era um pouco menos luxuoso que o da outra
cidade. Com candelabros apoiados nos móveis próximos à cama de casal e
uma escrivaninha num canto.
De imediato, fui até a cama, joguei o chapéu e meu corpo em cima
dela. Já o pirata procurou explorar o ambiente, passando pelo pequeno
corredor que havia nele para abrir a porta.
Não demorou muito para que voltasse, decerto não encontrou grandes
coisas por lá, talvez só um lugar para se limpar e despejar dejetos.
Sentei-me para encará-lo. O seu silêncio me angustiava.
— Não irá me perdoar pelas más atitudes, capitão?
Ele se aproximou, em passos lentos, de forma que pudesse ouvir o
tintilar do ouro de seus bolsos pesados. Veio para perto da beirada da cama
e apoiou a mão abaixo do meu queixo para erguê-lo.
Permanecemos em total quietude. Concentrei-me no mar presente em
seus olhos, a maré estava baixa.
— Eu te perdoo. E espero que isso não se repita. Assim como você
não gosta que gritem contigo, eu detesto que me destratem dessa forma.
Principalmente, porque estou fazendo o possível para não perdê-lo.
Coloquei a mão sobre a dele.
— Não irei magoá-lo mais, prometo — respondi, ainda que soubesse
que em breve iria deixá-lo. E isso poderia fazê-lo se sentir triste, mas seria
justamente para não lhe causar mais problemas e angústias.
Ele sorriu e aproximou o rosto do meu. Fechei os olhos, esperando
por seu beijo, mas seus lábios não tocaram os meus, e sim a testa. Afastou-
se, ainda com os olhos vidrados em mim.
— Vou pegar algo pra comermos, um rum para mim e um suco de
algo cítrico para você.
— Por que não me beijou?
— Porque você está doente.
— Sim, verdade. — Abaixei a cabeça.
— Já volto, será rápido.
Ele caminhou até a porta para deixar o quarto. Assim que apoiou a
mão na maçaneta, antes que saísse, chamei sua atenção.
— Jake!
Seus olhos voltaram para mim.
— Sim?
— Obrigado.
Ele sorriu, assentiu e fechou a porta.
Deitei-me novamente, fechando os olhos por um tempo a fim de
descansar. Quando estava quase entrando num estado de sono, Jake
retornou. Carregava uma bandeja de prata com suco, duas tigelas e uma
garrafa de bebida debaixo do braço.
Virei-me de lado ao vê-lo se aproximar da cama.
— Trouxe uma sopa com alguns legumes e o suco de limão. —
Colocou sobre a cama, com cuidado. — E também isso aqui. — Apoiou a
bebida na bancada ao lado e retirou do bolso uma fruta, aquela mesma fruta
alaranjada com gomos que eu comi na primeira ilha que paramos.
Peguei a fruta de sua mão, colocando-a embaixo do travesseiro.
— Eu gostei dessa fruta. Obrigado. — Puxei a coberta para colocar a
bandeja quente apoiada no colo.
— Por nada. Sei que está sem muita fome, mas tente comer um
pouco. É para melhorar.
Concordei. Jake me acompanhou no almoço, comendo e dando alguns
goles em seu rum provavelmente roubado. Conversávamos entre uma
colherada e outra. De fato, aqueles alimentos e o suco fizeram-me sentir
ligeiramente bem. Não que tivesse passado os sintomas, mas causou uma
sensação boa. Talvez porque a refeição foi acompanhada da melhor
companhia.
A tarde pareceu voar, notei que as horas passaram devido à visão da
janela que mostrava a mudança de cor do céu.
Eu e ele conversamos sobre muitas coisas naquela tarde, nenhuma
delas algo sério. Os assuntos iam desde quantas línguas eu sabia falar, até
como ele guiava suas navegações através da posição das estrelas.
Mesmo dentre diversos assuntos, nenhum deles foi sobre seu passado,
sobre quem ele era. Quando chegávamos a esses pormenores, Jake sempre
desconversava.
Com o cair da noite, o pirata estava com as pálpebras pesadas, seu
piscar de olhos era cada vez mais lento.
Deitou-se ao meu lado, acariciando-me o braço de olhos fechados.
— Já está com sono?
— Um pouco. Não dormi direito nas últimas noites por estar
preocupado com você. — Ergueu as pálpebras para me olhar.
— Mas agora poderá ficar em paz, irei melhorar.
— Com certeza vai. — Jake deu um sorriso, fechando mais uma vez
os olhos.
Levei minha mão ao seu rosto, acariciando sua barba com a ponta dos
dedos. Aproximei-me dando-lhe um beijo na testa e o encarei por mais um
tempo. Queria guardar aquela imagem na minha memória quando estivesse
longe.
Saí da cama com cuidado para não despertá-lo e fui até a escrivaninha
procurar por um papel naquelas gavetas. Felizmente, havia um panfleto e
uma pena com tinta seca.
Levei a ponta da pena na língua para umedecê-la e forcei sobre o
papel de forma que desse para escrever.
Olhei para trás e vi que Jake continuava adormecido, intacto na
mesma posição. Voltei minha atenção para o papel.
Querido Jake Rogers, ou como costumava chamá-lo pelos seus dias
de glória, Usurpador. Espero que esta não seja uma despedida definitiva,
quando tudo voltar ao normal, anseio encontrá-lo navegando pela minha
costeira. Este papel é uma justificativa, que talvez você não compreenda
agora e até fique bravo comigo, porém, é pelo bem de nós dois. Resolvi
seguir com meu plano em trilhar o meu próprio caminho, creio que a nossa
jornada seria demasiadamente tortuosa, colocando em risco não só a você,
como a mim e todos aqueles que ama. Sei que esta missão deixou de ser um
mero trato para se tornar algo a mais para ti, pois nos apaixonamos.
Entretanto, este é um fardo que tenho que carregar sozinho, sei que ficarei
bem. Quero que saiba que nada disso é ingratidão, pelo contrário, sinto-me
muitíssimo grato pelos ensinamentos, não só das batalhas, mas como me
ajudou a tornar uma pessoa melhor, ainda sabendo o quanto tenho a
evoluir. Jamais esquecerei do seu sorriso, o cheiro embriagante e a forma
que me desarmava em nossas discussões apenas com seu charme, sentirei
saudades, confesso.
Senti o coração apertar e os olhos arderem enquanto escrevia, deixei
que uma lágrima escapasse e caísse sobre o papel, borrando a borda do
texto.
Eu acho que amo você, e creio que nunca deixarei este sentimento,
passe o tempo e os amores que for, sempre estará guardado aqui dentro. E é
justamente por isso que fui embora. Apesar do sentimento, não deixemos
nossos corações nos matar.
Com carinho, Law.
Mordi o lábio, notando as mãos tremerem e a respiração ficar
entrecortada. Ainda haviam dois anéis restantes. Aproximei-me da cama e
coloquei a carta sobre onde eu deveria estar, retirei uma joia do bolso e
deixei em cima do papel.
Encarei-o pela última vez, adormecido. Não queria deixá-lo, mas
deveria.
Peguei a fruta que me foi dada para levar como lembrança e alimento.
— Adeus, meu eterno capitão.
Mandei um beijo antes de partir. Fui devagar até a porta e a abri
lentamente, verificando se ele ainda estava dormindo e saí.
Enquanto descia as escadas, ainda me sentia mal, tonto, porém, a dor
física não era nada quando comparada ao que sentia por deixar quem amava
para trás.
Dali em diante seria somente eu.
A noite estava fria quando deixei o edifício. Era estranho pensar
como uma cidade tão quente como aquela durante o dia poderia ter a noite
numa temperatura baixa assim. Ou talvez não fosse o clima, mas meu corpo
adoecido.
Andei em passos apressados pela cidade, ainda movimentada por
carruagens e pessoas nas calçadas. Olhei para cada canto a fim de ver se
estava sendo observado, fosse por piratas da tripulação de Jake ou inimigos.
Por sorte, meu caminho parecia estar livre até então.
Senti as pernas doerem e desacelerei. Sem rumo exato, entrei numa
rua estreita, onde pude ouvir do outro lado uma certa agitação.
Assim que atravessei, encontrei um monumento de um homem, um
nobre, reconhecível pela escultura perfeita da peruca cacheada,
empunhando uma espada numa posição de guerra, cercado por água. Dei
uma risada breve.
Era engraçado como nós, nobres, sempre tentávamos ser relembrados
como grandes guerreiros, mesmo que a maioria não se preocupasse em
saber como segurar uma espada, e eu estava incluído nisso. Coisa que
mudou naquela viagem.
Ao redor, na praça, havia algumas barraquinhas funcionando, um
homem tocando um instrumento em troca de moedas e pessoas sentadas ao
redor da escultura. Fui para perto delas, a fim de sentar ali também e
descansar as pernas.
Procurei ficar o mais isolado possível dos outros a fim de não ser
reconhecido. Sentei-me, respirei fundo e olhei para o céu, notando a lua
cheia e a ausência de nuvens.
Eu fugi, mas foi uma decisão tão rápida que não planejei ao certo o
que faria. Onde passaria a noite, o que comeria... sem contar com o fato de
que estava enfermo. Diversas desvantagens que poderia considerar até
mesmo esse ato não tão pensado como tolice, porém, era aquela hora ou
nunca.
Retirei do bolso a fruta alaranjada e com gomos que me foi dada. Era
gostosa, doce e cítrica ao mesmo tempo, um sabor incomum.
Esmaguei a fruta para que pudesse comer e, enquanto sentia parte de
seu suco escorrer pelo canto do lábio, pensava no meu próximo passo.
Ainda me restava um anel, o último. Teria que fazer um bom uso.
Tentaria encontrar um canto qualquer para passar a noite, feito um
plebeu sem futuro, e na manhã seguinte acharia um lugar onde poderia
trocar a joia por moedas. O suficiente para que conseguisse comida e uma
passagem num navio qualquer para um reino aliado, rezando que não
estivesse dominado por James.
Cogitei ir para Acucci, eles eram conhecidos por seu poder militar
forte e a família real gostava da minha. Não havia pensado naquilo até
então.
Victor Possey visitou muito Marnsala antes da invasão... será que
meus pais estão por lá? Minha mãe confia em Victor de olhos fechados.
Quando me senti mais disposto, caminhei pelas ruas, procurando o
lugar mais vazio e menos iluminado, que de preferência não fosse tão
malcheiroso para dormir.
Passei pela viela da feira, que estava cheia, mas não de mercadores, e
sim de pessoas famintas recolhendo os restos apodrecidos ou feios que
sobraram para se alimentar. Enruguei o rosto, era desagradável ver a miséria
de perto.
Eu tinha noção da pobreza, porém, a muralha do castelo era alta o
suficiente para que não visse os rostos marcados pelo sofrimento. Preferia
ignorar a realidade da maioria, porque não me agradava aos olhos.
Aquilo me fez repensar no próprio discurso. O tempo inteiro, desde
que fugi do calabouço, repeti o quanto queria recuperar meu reino, salvá-
los. Porém, quando refletia sobre aquilo, não me vinha realmente o povo, e
sim os nobres com os quais me cerquei. Eu era bom para eles, e só. Não me
importava com os plebeus, talvez eles até demoraram para notar que o
governante era outro.
Por isso jamais fui amado pelo meu povo. E se aquele homem que
invadiu minhas terras pouco se importasse com eles também, não faria
diferença se eu voltasse ao poder.
Enquanto me arrastava feito um moribundo até o fim da rua, encarava
cada olhar faminto. Aquilo me tocou. Se conseguisse voltar para Marnsala,
deveria mudar a estratégia de governo, pensar mais no verdadeiro povo. A
base que sustentava a terra que eu reinava.
Fui tirado do meu devaneio quando senti minha mão ser segurada.
Arregalei os olhos e parei, prendendo a respiração de tanto medo.
— Deixe-me ler seu futuro! — Era uma voz feminina e falha, mal
pude ver seu rosto. Ela estava toda coberta com um capuz e manta preta,
deixando visível apenas os lábios finos e arroxeados.
Fiquei sem saber o que dizer, a princípio.
— N-não! — respondi, ainda tendo a mão segurada por ela.
— Acredito que gostará do que te aguarda... — Leve feito o ar, meu
nome saiu de sua boca — Lawrence Declaw.
Arrepiei-me por inteiro e puxei com rispidez a minha mão. Comecei a
andar o mais rápido que pude, dando diversas olhadas para trás a fim de me
certificar se não estava sendo seguido.
— Meu Deus, meu Deus — murmurei.
Se precisasse lutar, talvez não tivesse forças no momento e Jake não
estava ali. Senti os olhos arderem, à medida que as lágrimas de desespero se
formavam enquanto eu fugia de não sabia quem. A mulher não veio atrás,
tampouco anunciou quem eu era para os quatro ventos.
Entrei numa rua mais estreita e pouco iluminada, quando ouvi um
arrastar atrás de mim. Tentei me esforçar além do que podia, sentindo os
pulmões queimarem. O som dos passos parecia próximo e ligeiro. Olhei de
novo para trás e não vi ninguém, mas ainda escutava os barulhos.
Minhas pernas já não aguentavam mais e mesmo me esforçando para
fugir, o outro lado do beco parecia distante. Foi quando as sombras se
movimentaram pelas paredes.
E logo tudo aparentou sair do lugar. Sentia-me tonto, sem saber se era
pelo desespero ou esforço que fazia estando doente.
Parei de ouvir a perseguição assim que cheguei na metade do
caminho para o outro lado. De repente, uma fumaça muito escura e densa
apareceu na minha frente, dei três passos para trás.
Dois olhos avermelhados e brilhantes feito rubis apareceram em meio
àquilo, seguido por um rosto feminino nublado. Ela exibiu seus dentes
afiados de maneira maléfica e soprou na minha direção. Rapidamente perdi
a consciência.
Eu acordei, porém, não abri os olhos. Virei o corpo para o lado e
estendi o braço na expectativa de abraçar o corpo de Lawrence e trazê-lo
para mais perto. Gostava de sentir o cheiro de seus cabelos e a maciez de
sua pele, mas ele não estava ali.
Sentei e meus olhos rondaram o quarto.
— Lawrence? — chamei por seu nome e não obtive resposta alguma.
— Lawrence! — gritei, mas não tão alto a ponto de outros hóspedes
ouvirem.
O quarto estava quieto demais, os únicos sons que escutei vinham da
rua através da janela. Saí da cama e andei em direção ao outro cômodo a
fim de checar se ele não estava ali.
Não o encontrei.
A partir daquele momento o desespero aos poucos começou a se
apossar de mim. Tentei me acalmar acreditando que ele não estava no
quarto porque foi passear pela estadia ou dar uma volta na cidade.
Ele deve estar comendo junto de Arya. Ninguém ousaria entrar aqui
para sequestrá-lo comigo ao seu lado.
Quando retornei para onde havia a cama, notei um papel dobrado
junto de um anel ao lado do meu travesseiro, bem onde Lawrence se deitou
na noite anterior.
Guardei a joia e peguei a folha para passar os olhos pelas frases. O
coração se esmagou.
Era uma carta. Uma maldita carta.
Ler com atenção aquelas palavras me levaram a presenciar uma
mistura de sentimentos, passando pelas nuances da melancolia, fúria e
preocupação. Sabia que era arriscado ser devoto àquele príncipe, deixando-
me em suas mãos. Na verdade, fui bobo em alimentar tais emoções por
acreditar que o teria sempre sob meus dedos, mas aquele pedaço de papel
me mostrou o contrário.
Não compreendi direito seus motivos para fugir, visto que era mais
inteligente que ficasse. Foi absurda a ideia de trilhar o próprio caminho tão
debilitado.
Só de pensar nos riscos que ele estava exposto, senti raiva por sua
burrice, e tristeza, não por ter sido abandonado, mas por temer que ele
sofresse e eu não estivesse por perto para protegê-lo.
Lawrence era a pessoa que eu amava, e o que se tornou precioso para
mim. O sentimento se intensificou ao saber que era densamente recíproco,
ainda que ele tivesse colocado em sua carta um “acho que te amo’’, tinha a
certeza.
— Ele não fez isso comigo... — Senti os olhos arderem e a respiração
acelerada.
Bufei e dobrei a carta colocando no bolso. Peguei o chapéu, os outros
pertences e deixei o quarto às pressas. Saí batendo nas portas em que os
meus marujos estavam para alertá-los do ocorrido e que me
acompanhassem.
Eu não desistiria dele assim, iria atrás do príncipe pelos sete mares se
preciso.
— O que aconteceu, capitão? — questionou Arya, descendo as
escadas ao meu lado, junto de Steve, que apareceu na estadia.
— Lawrence fugiu — disse baixo. — Não deve ter ido muito longe,
então o procuraremos pela cidade antes de ir para o porto.
— O príncipe foi embora? — Strigói expressou um sorriso largo, que
se desfez ao notar minha cara séria. — Vamos encontrá-lo, capitão. Fique
tranquilo.
— Sim, o encontrarão. O nosso ouro depende dele — fingi que não
tinha outras intenções com aquela busca.
Quando chegamos ao último andar, na parte externa da estadia,
notamos como a cidade estava cheia e movimentada. Eram muitas pessoas
circulando a pé, em carroças e carruagens, além das milhares de ruas
estreitas que permeavam as casas e estabelecimentos.
Achá-lo aqui talvez seja mais difícil do que pensei, principalmente
por ele não querer ser encontrado.
Olhei para os lados e coloquei as mãos na cintura refletindo como
faria. Não podíamos gritar por seu nome, pois assim como nós, os guardas
dali também deveriam estar em sua busca a mando de James.
— E agora? – perguntou Steve. — Quer que eu chame Bippo para
ajudar?
— Não acho que seja necessário. Deixe-me pensar um pouco, ainda
estou vendo uma estratégia — respondi, coçando a barba.
— Que tal se nos separarmos, capitão? Procuremos por cada canto da
cidade. Um no Norte, outro no Sul, Leste e Oeste. Esse lugar não é tão
grande, apesar de ser cheio de vielas.
— É uma boa ideia, Arya, mas sejam discretos ao buscar e perguntar
às pessoas. Ninguém poderá saber que estamos atrás do príncipe.
— Certo.
— Você vai para o Norte, Strigói Oeste, Steve Leste, e eu vou para o
Sul. Nos reencontraremos na praia às 18h, independente de termos o
encontrado ou não — disse.
— Tem certeza, capitão? De que, caso não o encontremos, pegaremos
os botes sem ele? — questionou Strigói.
— Sim. Da forma que o conheço, não acredito que ele ficaria nessa
cidade por muito tempo. Seu objetivo era fugir de mim, então quanto mais
distante, melhor. Se não estiver aqui, com certeza deve ter barganhado com
alguma embarcação para ir à outra ilha.
— Faz sentido — falou Arya.
Bati palmas para agitá-los na busca.
— Agora vão, vão! Não podemos perder mais tempo.
Nós nos separamos e eu segui o caminho em passos rápidos e olhos
atentos. Entrei em cada estabelecimento que encontrei à sua procura,
lugares que iam desde os que ele mais frequentaria, como restaurantes e
estadias, também nos mais improváveis, prostíbulos e tabernas.
Se eu fosse um monarca mimado e doente vagando à noite, por onde
estaria? Em que lugar iria? Tentei pensar como ele, mas infelizmente foi
em vão.
Não encontrei seus rastros por lugar nenhum, nem joias dadas como
moedas, muito menos alguém que tivesse o visto de acordo com a minha
descrição.
Comecei a me sentir frustrado. Quando o badalar do relógio da cidade
tocou, indicando o fim da tarde e início da noite, era hora de partir.
Caminhei em direção à praia na expectativa de ao menos encontrá-lo
com um dos meus marujos, mas não. Eles estavam sozinhos e próximos dos
barcos, apenas aguardando por mim para voltarmos ao navio.
Arya notou a decepção em meu olhar e franziu as sobrancelhas.
Por mais que fosse um pouco improvável de encontrá-lo naquela
cidade, teria sido mais fácil pegá-lo ali do que buscar por ele na imensidão
do mar com a possibilidade de estar em qualquer nação ou ilha.
— Sinto muito, capitão.
— Será que você não consegue fazer magia de busca? — perguntei.
— Posso roubar as especiarias para isso, apenas me diga quais são.
Ela negou.
— Não, capitão. Não sou capaz disso. Perdão.
Respirei profundamente e fechei os olhos, assentindo.
— Tudo bem. Vamos voltar para o navio.
Arrastamos os botes até o mar e subimos para remar de volta. Ao
chegarmos ao Maldição do Rei, era perceptível que havia algo errado,
faltava Lawrence, e eu não conseguia aliviar a expressão de preocupado.
— Os guardas capturaram o príncipe, capitão? — perguntou Bippo.
— Não. O nobre fugiu. E não, eu não faço ideia de para onde.
— Ele não estava na cidade — disse Arya. — Deve ter pegado carona
em algum navio, por isso retornamos. Vamos procurá-lo entre as
embarcações que encontrarmos no caminho.
— Hum, nesse caso, acho que não será necessário buscar tanto —
falou Bippo, aproximando-se devagar. — Ontem à noite esteve perto da
costa um navio de bandeira suspeita. Pode ser que tenham sido enviados por
James.
— E para onde ele foi? Você viu? — Arregalei os olhos, sentindo
uma fração de esperança.
O homem apontou para o Noroeste, em que o céu estava repleto de
nuvens densas e escuras.
— Naquela direção. Devem estar a um dia de distância. Vamos
precisar rezar para que eles façam uma parada para conseguirmos alcançá-
los.
— Você tem certeza de que o navio era de James? Não podemos
perder tempo.
— Não tem como ter certeza, apenas suspeita. A bandeira era
totalmente preta, senhor. Típico de mercenários.
— Certo. — Apoiei a mão na espada e andei pelo convés em passos
largos até os degraus. Ao subir a escada, virei para os tripulantes e gritei: —
Homens, preparem os canhões e icem as velas! Temos um novo destino.
Estejam prontos para lutar.
Ainda de olhos fechados, ouvi o som do mar, bem de longe, e senti o
leve balançar, aquele que já presenciei antes. Ergui as pálpebras, devagar, e
notei de início o teto de madeira. Franzi as sobrancelhas e me sentei na
cama inspecionando à minha volta.
Puxei um suspiro e levei as mãos aos lábios para não gritar. Armário
de canto, lugar todo de madeira úmida e estreito, janela arredondada, eu
estava em um navio! Mas aquela não era a minha cabine, óbvio que não.
A porta se abriu e eu me encolhi no canto da cama, feito um bicho
assustado. Uma mulher alta, pálida, de longos cabelos lisos e bem escuros,
encarou-me. Reconheci aqueles olhos inumanos de rubi em meio à pintura
preta que estava ao redor de suas pálpebras.
Ela abriu um sorriso largo e maléfico.
— Pensei que não acordaria mais, alteza. Um dia sem consciência é
muita coisa.
— Quem é você? — Olhei ao redor. — Onde estou?
— Eu sou ninguém. Estamos a caminho de Marnsala, é de onde você
veio, não? — Aproximou-se devagar, feito cobra, arrastando o vestido
negro pelo piso.
— Não! Não! — gritei. — Você veio a mando do James?
— Olha, tenho que admitir, estou impressionada. — Sentou-se na
cama, ao meu lado. — Acreditei que não conseguia encontrá-lo por conta
daquela bruxinha mequetrefe estar bloqueando minhas habilidades, mas,
não, quem bloqueou foi você. — Aproximou o rosto do meu.
— O quê? O que quer dizer?
— Uma energia tão forte que tivemos que te procurar pelo meio
tradicional. — Riu, sem dar atenção ao que eu dizia, tirava conclusões por
si só. — Agora entendi porque James o quer tanto... é um filho de uma
Gwragedd annwn. — Sorriu, inspecionando-me desde o primeiro fio de
cabelo até a ponta dos dedos. Sua expressão era de admiração. — Não vejo
um desses há séculos.
— Não estou entendendo. Filho de quem? Meus pais são o rei e a
rainha de Marnsala! — Mantive minha feição de confuso.
A mulher enrugou o cenho, em pena.
— Oh, não sabe da própria origem. — Afastou-se um pouco para que
pudesse me encarar de frente. — Quando um mortal tem um filho com uma
criatura mística da natureza, esse híbrido possui uma energia da luz tão
forte que repele a magia de origem obscura, mas em compensação atrai os
amaldiçoados.
Continuei sem entender.
Ela está dizendo que meus pais não são verdadeiramente meus pais?
Isso é impossível, minhas memórias são todas no castelo, com o rei e a
rainha Declaw.
Naquele momento entrei em negação.
— Isso é mentira! Tudo que você está dizendo é mentira! — Apontei
para ela. — Você é uma bruxa mandada por James para me desestabilizar.
Quer me deixar louco antes de me entregar para ele.
Ela bufou, revirando os olhos e apoiou as mãos na cintura.
— Imagino que realmente seja difícil aceitar a verdade. Mas nesse
navio terá tempo o bastante para digerir isso.
Franzi as sobrancelhas.
— E se o que me disse for verdade... por que me contou essas coisas?
Se falou que consigo bloquear seus poderes. É uma fraqueza sua.
— Porque no momento não faz diferença. Está fraco, doente e
tampouco tem noção das próprias habilidades, então não é uma ameaça.
Não tenho medo. — Aproximou-se novamente, colocando a mão no meu
queixo para que a encarasse. — Mas tenho pena por saber o seu destino.
— Quando tocou minha mão... conseguiu ver o meu futuro?
— Não, mas não é necessário magia para se imaginar o que James
fará com você. — Suspirou e afastou-se até a porta, dando-me uma última
olhada antes de girar a maçaneta. — Trarei algo para a sua doença. —
Observou o travesseiro que dormi, onde havia uma mancha de sangue,
depois me encarou novamente. — Aproveite a estadia, príncipe.
Dito isso, ela saiu.
Vieram à memória as meias-verdades que escutei na gruta e como
aquilo poderia estar ligado às falas da bruxa. Mordi o lábio, refletindo sobre
o que ouvi, meus pensamentos agitaram-se em busca de respostas, eram
informações demais para absorver de uma vez só.
Cheguei à conclusão de que talvez tenha vivido uma mentira durante
a maior parte da minha vida, a ponto de não saber verdadeiramente nada
sobre quem eu era e o que poderia ser capaz de fazer.
Vasculhei as minhas lembranças da infância no castelo, a maioria
eram com minha mãe, contudo as mais marcantes pertenciam ao meu pai.
Apesar de sua superproteção, era com ele que eu passava meus melhores
momentos, lembro que ficava ansioso em tê-lo de volta das viagens para
ouvir suas histórias e receber os presentes, em sua maioria livros.
Foi com ele que aprendi a ler e por quem peguei apreço pela
literatura. Devido às restrições de espaço era através da leitura que eu
conhecia lugares, pessoas, viajava e vivia outras vidas.
Com minha mãe, no entanto, as coisas eram completamente
diferentes. Sentia-me constantemente pressionado a fazer tudo perfeito para
que não recebesse punições e seus olhares para mim eram usualmente de
julgamento. Em certos momentos me questionava se ela realmente me
amava.
Apesar de alguns ‘’eu te amo’’ vindos dela quando a família estava
reunida, sentia que sua forma de amar não era a mesma de meu pai. Era
fria, rígida e pesada. Cruel em alguns momentos.
A partir dali as coisas começaram a fazer sentido. Talvez minha mãe
agia daquela maneira por saber quem eu realmente era.
Aquela bruxa tomou um espaço perigoso em mim. E minha saúde,
que não estava das melhores, começou a colapsar.
Todas aquelas perguntas sem respostas me deixaram com a respiração
ofegante, o peito doía pelas palpitações e o estômago se revirava. Senti
como se fosse morrer, e a sensação era tão angustiante que desejava que
acontecesse logo.
Deitei na cama e fechei os olhos tentando recuperar o fôlego. Apertei
as franjas da blusa, querendo puxa-las para aliviar a atmosfera sufocante.
Pressionei mais as pálpebras e quando a porta da cabine se abriu,
olhei em direção à entrada, e lá estava um homem sujo de roupas pretas
com uma expressão assustada para mim.
— Acho que o príncipe está a morrer! — Ele gritou.
Voltei a fechar os olhos a fim de me concentrar na própria respiração,
precisava tomar o controle dela, nada estava me impedindo de respirar além
de mim mesmo.
Um toque gélido apertou meu pulso.
— Solte o ar devagar, Lawrence. — A voz saiu leve como o ar.
Encarei as íris de rubi da mulher.
— Por que você fez isso comigo? — Os olhos ardiam e aos poucos a
visão era anuviada por lágrimas.
— Precisei te sequestrar porque James tem algo que me pertence e só
me dará de volt...
— Não. Por que me contou sobre essas coisas? Eu preferiria morrer
sem saber. — Comecei a tremer, senti como se uma onda de calor passasse
sobre a pele, erguendo todos os pelos do meu corpo.
Ela afastou os dedos e seus olhos se arregalaram brevemente.
— Uma hora ou outra você saberia. Seu pai não conseguiria te
guardar para sempre.
Minha mente estava cheia, confusa, nebulosa feito um céu de
tempestades e mais agitado que mar em ressaca.
— Saia daqui! — gritei. — Saia! Saia!
Primeiro, a bruxa deu dois passos para trás, depois, deixou o cômodo.
Estar no mar nos faz perder a noção de minutos, mas ficar trancafiado
numa cabine nos faz não ter consciência alguma de dias, por sequer ver a
luz do sol.
Eu já não sabia mais há quanto tempo estava naquele navio, muito
menos em que distância estávamos do meu reino. Porém, sentia-me menos
debilitado. A bruxa sem nome vinha me alimentar de maneira regular,
principalmente com alimentos cítricos, e o descanso era constante. Até
porque mal podia sair do quarto.
Não sentia mais as dores nas pernas, o gosto do sangue parou e a
sensação de fraqueza virou apenas memória. Apesar de andar em círculos
feito um pássaro na gaiola, sentia-me fisicamente bem, mas minha sanidade
se deteriorava aos poucos.
Em todos os momentos que dormia tinha pesadelos. Sonhava com
Jake sofrendo ou James torturando a mim e as pessoas que amava.
Quando despertei de mais um sonho ruim, permaneci com os olhos
fechados. Ouvi a porta da cabine se abrir e os passos da mulher. Ergui
somente uma das pálpebras para encará-la e a vi com uma tigela nas mãos.
— Sente-se, príncipe, temos sopa para comer. — Ficou ao lado da
cama.
Suspirei e retirei os lençóis, sentando-me. Assim que ela me entregou
a tigela, meio morna, coloquei sobre o colo e assoprei suavemente a colher
com aqueles legumes. O cheiro estava ótimo, apesar da comida parecer um
caldo confuso, onde o cozinheiro não sabia o que fazer e colocou tudo que
viu pela frente na mesma panela.
— Está boa?
Assenti com a cabeça após provar.
— É engraçado... — ri brevemente. — Sinto-me como Hansel.
— Que Hansel? — Ela franziu as sobrancelhas, curiosa.
— Nunca ouviu falar dessa história? Hansel e sua irmã, Gretel,
seguiram uma trilha de doces e pararam na casa de uma bruxa. Ela os
alimentou, cuidou bem deles, mas tudo isso porque iria colocá-los no
caldeirão para virarem sua comida.
— Supõe que estou te tratando feito galinha? — gargalhou. — Não se
preocupe, príncipe, não estou te engordando para comer. Apenas preciso
que fique saudável até a chegada em Marnsala. — Ergueu-se, recolhendo a
tigela vazia das minhas mãos. — Ordens de James. — Afastou-se.
— Ei, espera! — falei, antes que a mulher deixasse a cabine.
— Sim?
— P-por que não fica mais um pouco?
Apesar de ela ser a bruxa que me raptou, aquela pessoa era a única
com quem conversei durante o tempo em que estive ali. Ter com quem falar
me fazia sentir menos solitário e manter o pingo de sanidade que me
restava.
Estar preso num cubículo, levava-me a tomar medidas desesperadas
como suplicar pela presença e atenção de quem eu menos esperava.
Ela apenas balançou a cabeça em negação e deixou o ambiente.
Talvez não quisesse se apegar à sua presa ou criar mais empatia por mim,
visto que teria que me entregar para James, sabendo de seus planos cruéis
comigo.
Senti os olhos arderem, o peito se apertou e as lágrimas apareceram
na minha visão. No entanto, antes que pudesse me aprofundar na tristeza,
ouvi um barulho alto vindo do lado de fora do navio, seguido por um tremor
que fez com que as lamparinas trepidassem.
Arregalei os olhos e permaneci atento.
Não demorou muito para que a agitação se iniciasse ao lado de fora,
com gritarias desconexas e passos desesperados. O barco balançou
novamente com a explosão de algo se chocando contra o navio.
A resposta para aquilo era óbvia, um ataque. E poderia ser da marinha
de algum país, de piratas violentos tentando roubar a embarcação ou...
— Jake?! — Saí da cama num salto e de imediato fui para perto da
porta, girar a maçaneta para ver o que acontecia, mas eu estava trancado lá
dentro.
Minha respiração saiu de ritmo. Encostei a orelha próxima à porta e
pude escutar o som dos passos pesados sobre as madeiras do convés, como
se fossem pessoas subindo a embarcação, ou melhor, jogando-se para
dentro do navio.
O barulho dos metais das espadas triscando se misturavam à gritaria.
Arregalei os olhos ao ouvir a frase.
— Eu sei que ele está aqui, o príncipe está aqui! Lawrence!
Lawrence! — berrou aquela voz tão conhecida por mim, que fez com que
as lágrimas que eu tanto tentava segurar escorressem.
— Jake! — gritei de volta, dando socos contra a porta. — Jake, estou
aqui! Estou aqui!
Não sabia se ele conseguiria me ouvir, mas continuei a chamar seu
nome, sentindo a mão queimar de tanto bater na madeira. Foi então que em
meio ao som de lâminas perfurando a carne e sangue sendo derramado, tive
uma resposta.
— Lawrence, é você? — perguntou, ofegante.
— Sim! Sim!
— Afaste-se da porta! Agora! — ordenou.
Assim que saí de perto, a madeira tremeu com o primeiro golpe, de
novo com o segundo, até que no quarto rachou-se próximo à maçaneta e a
porta se abriu.
Jake estava com alguns respingos de sangue em sua pele, respiração
pesada e olhar de fúria no primeiro momento que o vi. Porém, quando
nossos olhares se encontraram, expressou ternura e deu um sorriso sutil.
— Jake... — murmurei, indo até ele, que veio ao meu encontro,
abraçando-me.
— Pensei tê-lo perdido. — O pirata comentou, afagando meus
cabelos. Acreditei que ele tivesse esquecido da minha fuga, até que
completou: — Bela carta.
— Perdão por isso — respondi, apertando-o forte. — E obrigado por
me encontrar.
— Não é tão fácil assim te perdoar. — Afastou-se, com os olhos fixos
em mim.
— Eu imagino que não, mas posso explicar melhor os meus motivos
depois. Agora vamos sair daqui!
A agitação em estar no território inimigo levava meu coração a
acelerar, batendo forte contra o peito.
Quando deixamos a cabine, um homem veio em direção a Jake para
atacá-lo, mas antes que pudesse concluir o golpe, foi derrubado com um
movimento certeiro na garganta.
Assim que o corpo caiu, agachei para pegar a espada do chão. Seria o
momento de usar as habilidades que aprendi.
Do alto do tombadilho vi o verdadeiro caos. Parte da navegação
estava destruída pelas bolas de canhão atiradas do Maldição do Rei, os
piratas da tripulação de Jake pulavam de uma embarcação para a outra
através de cordas laçadas nos mastros do navio.
Meus olhos rondaram atentamente o campo de batalha procurando
por uma pessoa em específico, a bruxa sem nome. Ela não estava por lá.
Desci os degraus junto do capitão e de imediato vieram alguns
inimigos para me atacar. Bloqueei o golpe com a espada e usei o pé para
empurrar o oponente.
Jake e eu nos tornamos um alvo. A tendência era que mais e mais
homens viessem para cima de nós, mas não nos acuamos. Impedi outro
ataque e virei a espada para acertar o oponente nas vísceras.
Aquela foi a primeira vez que senti como era atravessar a carne
humana, fazendo com que o inimigo agonizasse. Girei a espada para que
fosse mortal e puxei para acertar o outro.
Os movimentos eram rápidos, mal pude raciocinar a luta.
Os golpes eram feitos quase que de maneira instintiva, até que levei
um corte no dorso da mão, fazendo com que eu largasse a espada e desse
uns passos para trás.
O inimigo ergueu a espada para me acertar de cima para baixo,
quando foi interrompido pelo som de um tiro e seu sangue respingou no
meu rosto. O homem caiu de joelhos, atrás dele estava Jake com a arma
apontada.
Notei mais oponentes correndo para cima de mim. O pirata gritou:
— Lawrence! — Pegou uma espada do chão e a jogou.
Empunhei-a rapidamente e fui em direção aos inimigos. Quando
perto, dobrei os joelhos no chão e escorreguei até eles, dando-lhes um golpe
nas pernas, fazendo-os cair sobre mim, incapacitados.
Empurrei os corpos para me erguer e enruguei o nariz com o cheiro
de sangue e morte.
Olhei ao redor e vi que eles ainda eram muitos, mas a tripulação de
Jake, apesar de estar em menor número, era mais competente, derrotando-
os.
De longe, fitei o capitão e notei seu sorriso orgulhoso para mim. Sorri
de volta.
Na mínima brecha com a derrota da tripulação a mando de James, os
piratas do Maldição voltaram a laçar os mastros para atravessarem de volta
para o navio. Corri pelo convés com a intenção de ir também, até que ouvi a
voz estridente.
— O príncipe fica!
Ao olhar para trás, era a bruxa dos olhos de rubi, saindo por uma
porta. A mulher abriu os braços, com as palmas das mãos voltadas para
cima e o vermelho de seus olhos se perderam numa esclera completamente
preta. Ao dobrar os dedos, enquanto dizia palavras desconhecidas, os
corpos dos inimigos começaram a se mexer.
Os piratas de Jake estavam todos com os olhos arregalados ao ver a
bruxa sombria reviver os inimigos. Nós estávamos fadigados, talvez não
suportássemos outra luta, ainda mais contra um número tão grande.
— Essa maldita é necromante! — disse a bruxa-pirata e tirou de seu
bolso um saquinho com um tipo pó dourado. Ela começou a jogar sobre as
madeiras do convés. — Voltem para o navio!
— Arya, eu não vou te deixar aqui! — Jake gritou.
— Vão logo!
Meio relutante, Jake se aproximou de mim e me pegou pelo braço a
fim de pularmos de volta ao Maldição do Rei. A bruxa pirata permaneceu
sozinha no navio inimigo, dizendo palavras indecifráveis que fizeram uma
fumaça ser suspensa.
— Arya, vem logo! — O capitão estava inquieto.
A mulher-pirata correu para pegar uma das cordas e saltar para o
outro lado. Assim que pulou, cortou a última corda para que ninguém mais
atravessasse. Porém, os navios ainda estavam próximos demais um do
outro.
— Afastem o navio! A cortina de fumaça não vai segurá-los por tanto
tempo! — Ela mandou.
O pirata mais velho se esforçava para nos levar para longe, enquanto
a tripulação olhava fixamente para frente ao mesmo tempo em que a
fumaça começava a se tornar menos densa.
Quando o ar deixou de estar turvo, os mortos-vivos vieram aos
montes com suas espadas, na intenção de saltarem pela pequena brecha que
havia entre as duas navegações.
Jake e os outros piratas tiraram as pistolas das cinturas e começaram a
disparar contra os inimigos para que os segurassem até que o Maldição
estivesse afastado o suficiente a ponto de não dar mais para saltar.
— Eu não queria tomar medidas tão drásticas, mas se é assim... só
preciso do príncipe. Não faço questão de que o resto sobreviva! — falou
alto a olhos de rubi, unindo as duas mãos. O céu escureceu, ficando repleto
de nuvens densas.
Raios desceram daquele céu sombrio, concentrando-se nos dedos da
bruxa.
Comecei a respirar de forma ofegante, meus olhos não acreditavam
no que estava diante deles.
Lembrei-me do momento em que ela disse que eu bloqueava os
poderes obscuros. Não seria afetado. A bruxa pretendia me deixar como
único sobrevivente daquele ataque.
Ela concentrou os olhos na direção do Usurpador.
E o que tanto tentei evitar aconteceria, perderia tudo, perderia Jake.
Naquele momento, o tempo pareceu retardar, eu não me permitiria
acovardar de novo, falhar com alguém que amava, mesmo que para isso
fosse preciso me arriscar. Senti uma onda de calor se espalhar sobre minha
pele, arrepiando-me.
Corri para que pudesse entrar na frente do meu capitão quando os
raios concentrados foram lançados em direção ao nosso navio.
— Não! — gritei, usando-me como um escudo para ele. A palavra
saiu mais como uma ordem do que uma súplica. Estendi a mão com a palma
aberta na direção da magia.
A luminosidade esteve muito próxima dos meus olhos, porém, uma
barreira translúcida se formou à minha frente, estendendo-se por toda a
embarcação. Assim que os raios se chocaram contra ela, voltaram,
explodindo o navio inimigo. O impacto da destruição foi tão grande que o
Maldição do Rei foi impulsionado para longe com os destroços.
Caí sobre a madeira do convés, sentindo meu corpo frágil novamente.
A visão estava turva e de longe pude ouvir a voz de Jake.
— Lawrence? Lawrence!
Perdi a consciência.
Ao reabrir os olhos, pisquei algumas vezes ainda sentindo a cabeça
girar. Assustei-me de imediato ao ver o mesmo teto de madeira, estava
numa cabine de navio. Ao virar o rosto para o lado, encontrei Arya. Não foi
um sonho.
Respirei aliviado.
— O que aconteceu? O capitão Jake, como ele está?! — Engoli em
seco.
— Acalme-se, príncipe. Ele está lá fora coordenando o navio em
direção ao mar púrpura. — Sentou-se ao meu lado. — Se saiu muito bem.
Como se sente?
— Como me sinto? Eu nem sei bem o que aconteceu e você me
pergunta como me sinto?! — Franzi as sobrancelhas. — V-você sabia,
sempre soube da minha origem, não é? — Fixei meus olhos nos dela. — É
uma bruxa! Sentiu a minha energia desde quando pisei neste navio, não foi?
Não foi?!
Ao ser confrontada, a bruxa-pirata não respondeu de imediato. Soltou
um suspiro longo, fechando os olhos.
— Sim.
— E por que não me contou? Por que não deixou que eu tivesse
noção das minhas habilidades desde o começo? Eu poderia nos ajudar! —
Rangi os dentes e levei as mãos à cabeça. — Estou tão confuso, é tanta
coisa...
— Eu não podia te contar.
— Por que não?!
— Porque se eu revelasse para você de sua origem, logo saberia a
verdade sobre quem é Jake Rogers.
O último ocorrido trouxe muitas dúvidas, mas também diversas
respostas sobre o que Lawrence era e como isso afetava a nós dois. Desde
que me reencontrei com aquele par de olhos azuis, não parei de refletir
sobre tudo que estava naquela carta.
A partir do momento em que a ganância levou embora minha alma,
todas as emoções que senti, ou tentei provocar, eram amenas, frias, como se
estivesse distante da realidade.
Amaldiçoados não deveriam sentir. No entanto, quando encontrei
Lawrence, tudo mudou. Fui capaz de experimentar mais uma vez os
sentimentos como um humano e, infelizmente, essas emoções não foram
apenas boas.
O príncipe se tornou minha fraqueza, mas não conseguia evitar.
Estava totalmente devoto a ele.
No ataque ao navio de mercenários enviado por James, quando o vi
criar aquela barreira, tive a resposta do porquê só ele me fazia sentir assim,
de onde vinha aquele magnetismo que senti logo quando estive diante dele.
A força externa que me atraía. Lawrence não era um simples humano.
Durante o almoço, o príncipe mal me olhou, de vez em quando me
encarava brevemente e desviava suas íris para longe. Tínhamos muito o que
conversar e, com certeza, aquele olhar transmitia indignação e angústia
pronta para ser despejada sobre mim quando estivéssemos a sós. Arya deve
ter revelado meu segredo, assim como me explanou o dele também.
No momento em que fomos nos banhar, desci as escadas junto de
Lawrence para lhe esfregar as costas e, então, naquele ambiente úmido e
escuro, minha voz fez eco ao quebrar o silêncio entre nós.
— Temos que conversar — falei, desatando a fivela do cinto.
— Temos, temos sim — respondeu, ainda de costas para mim. Desfez
da parte de cima de sua vestimenta.
— Ainda guardo a carta daquela fuga. Por que fez isso?! —
Aproximei-me dele, que terminou de se despir e virou para me encarar. —
Foi uma ideia burra! Você estava debilitado, poderia ter morrido!
— Porque eu estou cansado de tragédias e estava apaixonado por
você! — Seu rosto foi tomado por uma expressão melancólica. — Enquanto
tudo era apenas um trato pelo reino, pouco me importava, mas, quando me
deixei levar por um sentimento, não quis arriscar perdê-lo nessa missão. E
sabia que deveria seguir meu caminho em silêncio, porque você me
impediria.
Apesar de sua justificativa ser inconsequente, tornou-se
compreensível. Provavelmente, faria o mesmo por ele, preferia sumir de sua
vida ao vê-lo sofrer por minha causa.
— Estava? — Enruguei a testa. — Não está mais apaixonado?
— Estou tentando parar de nutrir sentimentos por um traidor! —
Empurrou-me. Seus olhos se tornaram brilhantes, marejados. — Por que
você fez isso com a minha família, com o meu reino? Alguém que deveria
usar os conhecimentos para o bem! Sabe que conseguiria algo melhor, mas
nos atormentou por anos e se amaldiçoou para fazer isso pela eternidade?!
Arya me contou tudo!
Suspirei.
Não tinha mais como esconder a verdade.
— Sim, eu fui capitão da marinha de Marnsala. Tenho meus motivos
para ter feito o que fiz. Seu reino passou por uma crise que levou seu pai a
dispensar diversos corsários. Eu era o melhor que Marnsala poderia ter,
dava minha vida por aquele reino, abandonei a família por ele, arrisquei-me
por seu pai em diversas jornadas, mas nada disso contou quando ele
resolveu tirar meu cargo e me deixar ao relento, desamparado. Jamais me
permitiria morrer de fome. — Desviei o olhar dele. — Foi então que entrei
para a pirataria e aquilo foi apenas o começo. Essa vida ilegal me garantiu
tudo que eu mais queria: ouro, poder, liberdade, entretanto, nunca pareceu o
suficiente. Daí tomei a terrível decisão de dar minha alma para me tornar o
maior pirata que já existiu nesse hemisfério. O inesquecível Usurpador.
— E valeu a pena? — questionou. — Já que garantiu tudo que queria,
por que ficou por tanto tempo atacando as embarcações do meu reino se
poderia explorar outros lugares? Mais ricos até.
— Porque, por muito tempo, acreditei que fosse por vingança, para
ver Marnsala em ruínas. Mas, não, não era apenas isso. Sempre que eu me
distanciava, algo me atraía para aquelas terras. — Voltei a encará-lo. — E
hoje percebi que era você.
Ele puxou um suspiro e deu um passo para trás.
— A bruxa disse que sou como um ímã para amaldiçoados. E, com
certeza, foi por conta de homens como você que vivi cercado pelos altos
muros do castelo por toda minha vida! — Abaixou o rosto. — E
amargurarei eternamente o fato de que vivi uma mentira. Pouco sei sobre a
verdade da minha história, de quem sou... — Ergueu o rosto. —
Principalmente, sobre um amor que jurei ser real.
— Mas é real! — Colei meu peito no dele, deixando nossos lábios
próximos. — Nunca menti sobre meus sentimentos.
— Você acha que me ama! Pois sou o único que te faz sentir algo. —
Mordeu o lábio, deixando que uma lágrima percorresse por sua bochecha.
— Já que quando está comigo, é como se fosse humano novamente, não é?
Assim como James também se sentiu atraído.
Segurei seu rosto, apertando-lhe as bochechas suavemente.
— Atração e amor não são a mesma coisa, Lawrence — disse,
entredentes. Encostei minha testa na dele, fechando os olhos. — Minha
atração por você cruzou nossos caminhos, mas o sentimento me fez ficar.
Eu te amo. Arriscaria o mundo por você. Por favor, acredite em mim.
Ele ergueu um pouco mais o rosto, deixando que seus lábios se
arrastassem pelos meus, entretanto, não me beijou.
— Estou tentando acreditar. — Afastou-se. — Desculpe, Jake, é
muita coisa para mim agora. Não sei como lidar com todas essas revelações
e ainda tenho muito a aprender sobre nós dois. Vamos apenas nos banhar e
ir para a cabine, tudo bem?
— Sim — concordei, me desfazendo do resto das minhas
vestimentas.
O ambiente foi tomado por uma aura tensa, que não sabia se era pelo
mal-estar da nossa breve discussão ou pelo fato de estarmos mais uma vez
tomando banho juntos.
O príncipe permaneceu com o olhar na direção contrária a mim, em
silêncio, e assim ficamos durante muito tempo, até que ele rompeu com a
quietude.
— Capitão, pode esfregar minhas costas? — Lançou uma olhadela
sobre o ombro.
Pensei em negar, como forma de demonstrar minha chateação por sua
dúvida sobre meu amor, mas fazer birra não era do meu feitio. Provocá-lo
me traria bem mais satisfação.
— Claro.
Esfreguei o sabão nas mãos até que formasse uma espuma. Comecei
por seus ombros, apertando-os suavemente e arrastei os dedos para perto de
seu pescoço, até que meus polegares conseguissem alcançar sua nuca.
Escorreguei as mãos pela extensão de suas costas com os polegares
apoiados na linha de sua vértebra.
Ele estremeceu. Aquilo tirou de mim um sorriso malicioso.
Passei meus dedos nas covinhas que tinha nas costas, bem acima da
bunda. E peguei o balde d'água para enxaguá-lo, tirando toda a espuma com
a ajuda das mãos.
Senti o corpo se aquecer em tentação ao notar como seus músculos
espasmavam aos meus toques. Agarrei em seus fios dourados, afastando-os
da nuca e o cheirei, sentindo o aroma de maresia; beijei ali. Passei a língua,
deliciando-me com o sabor salgado em sua pele.
Lawrence inclinou os quadris para trás, suspirando de forma
prolongada.
— Jake... — murmurou.
Apoiei uma das mãos em sua cintura, enquanto a outra continuava
presa aos seus cabelos. Puxei os fios com mais força e colei meu corpo no
dele, deixando os lábios próximos da sua orelha para sussurrar.
— Peça, príncipe.
Como eu queria ouvi-lo implorar pelos meus toques.
Lawrence tremulou e se calou. Estava claramente relutando sobre os
próprios desejos. Ele deu alguns passos à frente, levando-me a soltar seus
cabelos.
— Aqui não. Não quero que alguém apareça e nos veja assim. —
Olhou-me por cima dos ombros.
— Então, você deseja minhas carícias — provoquei, com uma feição
presunçosa. — Achei que quisesse refletir mais em relação a mim e ao que
temos.
Virou-se de frente, com o cenho franzido.
— Foi você quem começou isso! — Cerrou o punho. Apesar da
expressão de raiva, era explícita sua excitação pelas bochechas coradas e
sua quase ereção.
— E você quem quis que eu continuasse.
O príncipe mordeu o lábio e suspirou. Deu as costas para mim mais
uma vez.
— Deixe-me terminar o banho sozinho, capitão.
— Achei que quisesse alguém para banhá-lo.
— O que eu queria era alguém para esfregar as minhas costas, e isso
você já fez. — Virou o rosto de lado. — Portanto, saia e me deixe sozinho.
— Seu tom de voz saiu como uma ordem, digno de autoridade. — E me
espere na cabine.
Sem pestanejar terminei de limpar o corpo, vesti as roupas e subi as
escadas.
Estava inquieto naquele quarto. Andava de um lado para o outro com
as mãos para trás, ansioso. Não sabia exatamente o que esperar de
Lawrence, mas desejava que o que ele pretendia fazer comigo fosse o
mesmo que eu queria fazer com ele.
Fui até a gaveta do armário e peguei o pequeno vidro de óleo para
deixar na mesinha ao lado da cama, seria bem prático. Não poderia perder
tempo, já que seu orgulho o fazia mudar de ideia muito rápido.
Tirei a blusa e deitei no colchão, aguardando sua subida. Quando ouvi
o toque à porta, estranhei. Ele não costumava bater.
Era Arya. Fechei o rosto ao encontrá-la frente à minha cabine.
— Obrigado por contar tudo para Lawrence — disse, irônico.
— Perdão, capitão. Ele precisava saber de sua maldição para entender
como o fato de ser um híbrido afeta vocês dois.
— Mas não era necessário contar que já servi ao reino dele! Que não
só fui marinheiro de Marnsala, mas próximo de seu pai. O príncipe perdeu a
confiança em mim por isso. — Apoiei-me na porta.
— É que ele quem começou a perguntar muitas coisas. Por isso, fui
falando e falando... quando percebi acabei contando toda a história. Mas
vocês se acertaram?
— Não sei bem. Ele ainda está confuso e desconfiado sobre algumas
questões. Acho que precisará de um tempo. — Cruzei os braços, seguido
por um suspiro. — Enfim, por que veio me procurar?
— Para perguntar se seguiremos para o mar púrpura hoje mesmo,
correndo risco de chegar lá à noite, ou se é melhor ancorar o navio e
prosseguir no amanhecer. Sabemos que essas águas são perigosas e sem
visibilidade a situação se torna pior
— Sim, é pior, mas seguiremos em frente e enfrentaremos aquele mar,
não importa se chegaremos à noite ou durante o dia. Não podemos perder
tempo. O império de James se expande a cada segundo.
Arya assentiu.
— Sim, capitão.
Quando ela deu as costas, voltei para a cama. Notei no canto da
cabine o livro que havia roubado para Lawrence. Peguei e folheei algumas
páginas, fazia muito tempo que não sentava para ler algo, não conseguia me
concentrar por longos períodos em palavras deixadas no papel.
Ouvi o ranger da porta que se abriu, e sem erguer o rosto, apenas
direcionei os olhos para quem estava entrando na cabine. O príncipe trajava
a blusa desamarrada até a metade do peito. O fogo da lamparina mostrava
em detalhes como sua pele ainda estava úmida.
Lawrence trancou a porta e veio para perto da cama em silêncio.
Fechei o livro e ergui o rosto para encará-lo diretamente.
— Por que me fez esperar tanto? — falei.
— Porque fiquei pensando se realmente valeria a pena ceder aos
desejos que provocou em mim. Deitar de novo com o traidor da minha
nação. Um bandido. Um patife. Um homem sem alma.
Dei um sorriso safado. Amava quando ele se fazia de difícil e me
xingava, ainda que seus olhos implorassem para que eu o fodesse.
— E chegou a que conclusão?
— De que no momento eu preciso disso. — Apoiou a lamparina na
cômoda e desfez de sua blusa, jogando-a ao chão. — E espero não me
arrepender.
Passei a língua pelos lábios. Era um deleite ver aquele príncipe,
enfim, tendo iniciativa, ainda mais após a nossa discussão. Apesar de as
minhas ações terem sido o estopim, foi escolha dele dar continuidade ao
que fazíamos lá embaixo.
Levantei-me da cama e o puxei de abrupto pela cintura, colando
nossos corpos.
— Não vai se arrepender — sussurrei, arrastando os lábios por seu
pescoço.
No momento em que suguei sua pele para marcá-lo, Lawrence
pressionou os dedos no meu ombro e soltou um suspiro longo, como quem
se segurasse para manter-se de pé.
Guiei-o até o armário para que pudesse encostá-lo ali e coloquei uma
perna entre as suas, esfregando em seu pau. O príncipe gemeu baixo e
prendeu o lábio entre os dentes, contendo-se, à medida que sentia sua
ereção.
— Jake...
Notei o elevar de sua temperatura logo que encostei nossos peitorais.
Sua pele também estava queimando.
Virei-o de costas e, assim que ele se apoiou no armário, usei as mãos
para unir seus pulsos e os segurei com uma mão só, com a outra explorei
seu corpo.
Quando puxei e apertei suavemente seu mamilo, ele estremeceu e
escondeu o rosto contra os braços.
— Não se contenha, Lawrence, eu gosto de ouvir você gemer.
Deslizei os dedos mais para baixo, invadindo sua calça.
Peguei em sua ereção, sentindo-o úmido e pulsante, comecei a tocá-
lo. Daquela vez, ele não evitou, deixou que eu escutasse o quanto estava
com tesão. O príncipe mexeu um pouco as mãos, então apertei ainda mais
firme seus pulsos.
Ele apoiou o rosto no armário e inclinou os quadris para trás,
silenciosamente suplicando que eu o tomasse.
Deixei alguns beijos por suas costas, fazendo-o se arrepiar, e rocei
meu pau, ainda sob a calça, atrás dele. Queria que ele soubesse o quanto me
deixava duro só em lhe dar prazer.
Soltei seus braços, mas ele não saiu da posição, permaneceu da
maneira que o deixei. Caminhei até a mesinha ao lado da cama e peguei o
óleo para lambuzar ao menos três dedos.
Lawrence aguardava por isso. Quando apoiei uma das mãos na barra
de sua calça, ele colocou a mão sobre a minha e virou o rosto de lado para
que pudesse me ver.
— Com cuidado, capitão — pediu.
Concordei, com um sorriso malicioso no rosto, e terminei de despi-lo.
Usei uma das mãos para acariciá-lo, enquanto a outra esfregava a
ponta do dedo em sua entrada.
Meti o primeiro dedo e ele arfou, fechando os olhos.
Ainda tá muito apertado.
— Relaxe, Lawrence. — Voltei a usar a mão que o acariciava para
masturbá-lo.
Assim que ele se acostumou com a sensação, coloquei o segundo
dedo e comecei a fodê-lo. As pernas do príncipe fraquejaram, parecia que
iria se desmanchar a qualquer momento.
Lawrence abriu os olhos para me encarar com as sobrancelhas
franzidas, seu olhar era pedinte. Vê-lo com o rosto avermelhado e gemendo
para mim sem pudor algum, fez com que meu pau pulsasse com mais
intensidade, deixando-me sedento para invadi-lo.
Coloquei o terceiro dedo, com dificuldade, sem pressa. Precisava
acostumá-lo com a sensação, para que fosse mais prazeroso para ele.
Quando o senti pronto, retirei os dedos e mandei que apoiasse as
mãos e joelhos na cama. E ele obedeceu.
— Essa posição... é tão vergonhosa — reclamou, virando o rosto de
lado para me encarar.
Com a provocante visão daquele traseiro para mim, eu discordava
muito.
Tirei a parte debaixo da roupa e me posicionei atrás dele, com a mão
nas suas costas.
— Você acha? — Fiz pressão para que Lawrence descesse o tronco e
se empinasse mais. — É tão tentador te ver por esse ângulo — falei,
arrastando meus dedos por sua bunda. — Além de que, é mais fácil para
que eu consiga te tocar. Mas se quiser mudar de posição...
— Se é assim, faça o que deve. Mas, depois, quero olhá-lo nos olhos
enquanto estiver me fazendo seu.
— Terá o que quiser — assenti, passando o óleo em mim. Coloquei as
duas mãos em seus quadris e o puxei para a beirada da cama.
Esfreguei minha ereção em sua entrada antes de empurrar para dentro.
Lawrence mordeu o lábio e voltou a fechar os olhos. Comecei a penetrá-lo,
ele puxou os lençóis e direcionou o rosto para frente, seus tremores
expressavam o incômodo.
Parei e fiquei a observá-lo.
— Não pare. — A voz saiu abafada.
Iniciei os movimentos devagar e usei uma das mãos para masturbá-lo,
deixando a outra apoiada em sua cintura.
Joguei a cabeça para trás, arfando de prazer. Aquela posição me
permitia ir mais fundo, sentindo-o contrair a cada estocada.
Aumentei o ritmo e os gemidos dele tornaram-se ainda mais
indiscretos. Todos seus músculos se enrijeceram quando o senti latejar de
um jeito intenso, derramando-se em seguida.
Coloquei uma das pernas sobre a cama para que pudesse quase me
debruçar sobre ele, e enrosquei minhas mãos em seus cabelos, puxando-os.
Assim que o tomei fortemente, as pernas de Lawrence começaram a
sair da posição, como se não aguentasse mais.
— Jake! — O tom de voz alertou sobre o seu limite.
Reduzi o ritmo e deixei de penetrá-lo para que pudéssemos mudar de
posição. O príncipe se deitou na cama de barriga para cima, mostrando sua
respiração ofegante e cabelos úmidos próximos à testa.
— Foi muito pra você? — perguntei, pondo minhas mãos na cama,
uma de cada lado de seu rosto.
Ele confirmou e levou a ponta dos dedos às minhas bochechas,
acariciando-as.
— Mais calma, capitão. Desse jeito me machuca — disse.
— Perdão.
Aproximei-me para beijá-lo. Nossos lábios se selaram de forma terna,
sem pressa. Daquela vez tentaria segurar minha intensidade, Lawrence não
estava no mesmo ritmo que o meu.
Ele colocou os braços apoiados no meu pescoço durante o beijo.
Quando eu me posicionei entre suas pernas, o príncipe as dobrou, erguendo
um pouco os joelhos.
Entrei com menos afobação, fazendo-o gemer entre meus lábios e
apertar ainda mais os braços ao meu redor.
Lawrence não conseguiu mais manter o beijo, relaxou sobre a cama,
colocando as mãos ao lado da cabeça e arqueou as costas do colchão, à
medida que mantive o ritmo. Apesar de lento, fodê-lo daquela forma era
igualmente gostoso.
O príncipe concentrou seus olhos nos meus durante o ato, tinha
estampado no rosto a feição de prazer.
Passei meus braços por debaixo dele para juntar mais nossos corpos.
Ele cruzou as pernas na minha cintura, prendendo-me ali. Senti o corpo em
combustão, até a respiração se tornou mais difícil.
— Eu vou gozar — avisei.
Lawrence firmou mais as pernas e entremeou as mãos nos meus
cabelos, parecendo implorar que eu não saísse de dentro dele.
Senti a energia ir embora ao me transbordar nele. Tombei o corpo ao
seu lado, cansado e satisfeito.
Ele se ajeitou na cama para que pudesse ficar com o rosto de frente
para o meu e sorriu. Aquele sorriso contagiante que me levava a fazer o
mesmo.
Beijei-lhe a testa e comecei a acariciar seus cabelos dourados, com a
ponta dos dedos. Gostaria de congelar o momento para permanecer daquele
jeito por mais tempo. Infelizmente não durou muito, pois logo ouvi três
toques à porta.
— Capitão! — Era a voz de Arya.
Não havia paz naquele navio.
Saí da cama num salto e joguei a coberta sobre o corpo nu do
príncipe. Vesti as calças rapidamente para atender à porta. Ao abri-la, a
mulher olhou para o que havia atrás de mim e depois me encarou,
demonstrando um sorriso cínico.
— Pelo visto o príncipe voltou a confiar em você.
Ri e revirei os olhos.
— Não me provoque, Arya. Seja breve.
— O mar está agitado demais e os ventos muito fortes, não acho que
seja seguro seguirmos agora.
Respirei profundamente. Seria mais um atraso, mais dias, contudo,
aquela decisão seria a melhor, estaria pensando na tripulação.
— Tudo bem. Ancore o navio. Mas seguiremos em direção ao mar
púrpura no fim da tarde, isso com certeza nos fará chegar à noite.
— Sabendo disso, nos prepararemos para um ataque noturno. — Ela
apoiou a mão sobre meu ombro e sorriu. — Obrigada pela decisão, capitão.
Abri os olhos e me virei na cama, deixando a barriga para baixo.
Espiei sob os cílios o pirata de costas para mim, reparei novamente nos
detalhes de seus músculos e o que me chamava a atenção sempre foram as
marcas que ele tinha. Vestiu o sobretudo e pegou o chapéu de capitão.
— Onde conseguiu essas cicatrizes? — perguntei.
Jake virou e de imediato um sorriso iluminou seu rosto quando seus
olhos se encontraram com os meus. Eu também sorri e senti o corpo
aquecido.
— Que bom que está acordado. Bom dia.
Ele não respondeu minha pergunta.
— Bom dia, capitão. — Estiquei os braços e me sentei na cama,
apoiei as costas e continuei a encara-lo. — Como conseguiu essas
cicatrizes?
Ele se calou por um tempo, mas seu silêncio não se manteve, pois
sabia que eu insistiria.
— Digamos que foi uma punição por não ter sido um bom pirata.
— O que quer dizer?
— Quando iniciei na vida pirata, entrei no Vingança da Rainha, o
navio de Andreas. Um capitão cruel, que largava seus inimigos atados e de
ferimentos abertos em ilhas, com o intuito de que as criaturas presentes
nelas se alimentassem de seus corpos ainda vivos. Ele cobrava de seus
marujos e os ameaçava ou agredia quando algo saía de seus eixos.
— E foi ele quem te bateu? — Franzi as sobrancelhas.
Jake assentiu.
— Não se ficava ileso em sua tripulação.
— E por que você continuou lá?
Ele respirou fundo e encostou na parede. Cruzou os braços.
— Porque Andreas, o famoso olho de vidro, era o pirata mais
respeitado e temido pelos sete mares. Eu queria ser assim, espelhava-me
nele, e minhas habilidades como marinheiro me ajudaram a ter destaque.
Em pouco tempo me tornei seu imediato, e o que antes era apenas uma
inspiração, virou algo mais. Quis tomar seu lugar.
Arregalei os olhos brevemente. Que Jake era ganancioso eu sabia,
mas não imaginava o quão longe ele poderia ir com isso.
— Você o matou?
— E assumi o posto de capitão. Mas sua tripulação não me aceitou,
acharam absurdo que um ex servo da coroa fosse seu superior. Então vi que
dali teria que começar do zero, formar meu próprio nome e grandiosidade,
ainda que o preço fosse minha alma.
— E como você lidou com a tripulação? — Percebi um sorriso
malicoso se formar em seu rosto. — Espera... a praga que assolou o
Vingança da Rainha…— entreabri os lábios — foi você?
— Envenenamento por arsênico.
Fiquei estarrecido.
— Se então foi você o causador daquelas mortes, por que contou a
mim que uma praga devastou sua tripulação e eu poderia ter o mesmo? —
Enruguei a testa.
— Porque você é teimoso. Só te apavorando pra conseguir fazê-lo
procurar ajuda.
Peguei o travesseiro e joguei nele. Jake riu, pegou o travesseiro do
chão e o colocou sobre a cama novamente.
— Meu Deus, dentre tantas pessoas nesse mundo… olha o homem
por quem fui me apaixonar. — Revirei os olhos, com tremor nos lábios.
Ele deu um sorriso e se debruçou sobre a cama, aproximando o rosto
do meu. Selei nossas bocas em um beijo rápido.
— Mas eu não sou a mesma pessoa de antes, Law. Por isso ocultei
algumas informações de você, para que sua visão não mudasse sobre mim.
— Sentou ao meu lado, deixando sua mão próxima da minha.
— Mesmo que não seja mais essa pessoa, tudo o que fez formou
quem é agora. É a sua história, Jake, e creio que... — Entrelaçou seus dedos
nos meus. — Quando nos relacionamos com alguém, devemos nos
conhecer verdadeiramente, desde as virtudes até os defeitos. E é por isso
que te perdoo pelo que fez com Marnsala, ainda que não concorde com as
atitudes que tomou.
O pirata sorriu, agarrou em meus cabelos próximo à nuca e trouxe
meu rosto para perto do dele, encostando nossas testas.
— Às vezes eu não queria que essa viagem acabasse. — O ar quente
de sua respiração tocou em minha pele.
Levei as mãos ao rosto dele, segurando firme, como se a qualquer
momento fosse perdê-lo. Não seria naquela hora, mas eu realmente o
perderia quando nossa viagem tivesse seu fim. Aquela era uma realidade
que ainda não estava pronto para enfrentar.
— Eu também não — respondi a ele e o atraí para um beijo.
Minhas batidas se intensificaram e senti todos meus pelos se
arrepiarem. Suas mãos pesadas me puxaram pela cintura, unindo nossos
corpos, e após o beijo, repousei minha cabeça em seu ombro, e ele em meus
cabelos.
Ficamos apoiados um no outro. Fechei os olhos para apenas senti-lo:
sua respiração mais intensa, o cheiro de sal e o aconchego da quentura de
sua pele.
Nosso momento foi interrompido por dois toques à porta.
— A primeira refeição está pronta! — alertou Strigói.
Jake se afastou de mim com um acariciar em meus braços. Sorri
sutilmente.
— Será bom se arrumar rápido, não sei se dessa vez conseguirei
separar pra você a melhor tigela. — Ajeitou suas roupas com as mãos e
fechou os botões do casaco.
— Pode deixar, serei breve hoje. Iremos treinar antes do mar púrpura?
— Hoje não. Poupe suas energias, precisaremos essa noite. Além do
mais, Arya e eu passaremos o dia montando as armadilhas para as sereias e
defesas das toxinas. — Abriu a porta e apoiou-se no batente. — Seja rápido,
Lawrence.
— Já sei!
Ele sorriu e balançou a cabeça antes de fechar a porta.
Retirei os lençóis e peguei as calças marrons, vesti, calcei as botas,
coloquei uma blusa de laço branca e um sobretudo vermelho por cima.
Tentei ficar pronto às pressas e deixei a cabine o quanto antes.
O sol estava intenso e o céu sem nuvens. A iluminação forte me levou
a estreitar o olhar, mas apesar disso, não fazia calor. Uma brisa fresca
passava pelo navio.
Do alto avistei a tripulação reunida no convés, todos em fila para
receber a comida que era distribuída pelo pirata cozinheiro. Desci os
degraus me apoiando no corrimão e ao me aproximar, Bippo, o mestre de
armas, com suas duas pistolas na cintura e uma vasilha em mãos ergueu os
braços.
— O mago chegou!
— Não sou um mago. — Ri brevemente e entrei na fila, atrás de
Steve.
A refeição da manhã era a que eu menos gostava, principalmente pelo
fato de a aveia ser dada a cada dois dias. Aquilo estava começando a me
enjoar, porém me forçava a comer ainda que não quisesse. Jamais poderia
me permitir adoecer novamente num momento tão crítico da jornada.
— Não é um mago, mas poderá usar suas habilidades para nos ajudar
no mar púrpura, não?
Franzi as sobrancelhas. Não queria desapontá-los, contudo foi
inevitável.
— Sinto muito, não serei capaz disso. Eu não faço ideia de como
consegui da primeira vez, e não acho que irá acontecer de novo.
Arya, sentada sobre o barril ao meu lado, segurando sua tigela, cruzou
as pernas.
— Irei te ajudar nisso, príncipe. Pode contar comigo. — Piscou.
— A ciganinha é boa nessas coisas de bruxaria mesmo, sabe o que
faz. — Bippo disse.
— Pare de me chamar assim!
Jake riu e se sentou num dos barris. Peguei a comida, agradeci a
Strigói e tomei o lugar ao lado do meu capitão. Ele mastigava devagar e
passava seus olhos pelo rosto de cada marujo, observando com cautela suas
interações.
— Senhores... — Quando Jake disse, a mulher arqueou a sobrancelha
— e Arya. Eu queria dizer algo — Fez a atenção da roda dos piratas se
concentrar nele. — Primeiro, quero dar a certeza a vocês de que reconheço
que estão dando o melhor de si, e agradeço por confiarem a mim a
liderança. Obrigado. Prometo não decepciona-los. Hoje, passaremos pelo
mar púrpura, o primeiro trajeto dessa jornada com desafios maiores, onde
enfrentaremos criaturas do mundo oculto. E afirmo que venceremos as
sereias e darei minha vida para proteger a cada um presente nesse navio.
A tripulação vibrou com o discurso de Jake, exceto pela bruxa, que
apesar de não verbalizar tanto quanto os outros, estampava um olhar
orgulhoso e um sorriso discreto.
— Vamos fazer sopa de sereia! — Strigói gritou, arrancando algumas
gargalhadas.
O dia passou rapidamente e com o cair da tarde, a ansiedade se
intensificava. Eu estava com muito medo, mesmo confiando no capitão,
minhas pernas tremiam e o peito palpitava só de mirabolar tudo que poderia
acontecer.
Enquanto Arya e Jake passaram o dia arquitetando estratégia e
preparando as loções contra os gases tóxicos, eu auxiliei os outros piratas a
posicionar os arpões e carregar os canhões.
Bippo fazia questão de exibir seu conhecimento sobre as armas, onde
eu deveria atirar em meu oponente e até mesmo me deixou acender o pavio
de um dos canhões para aprender como aquilo funcionava. Ações como
estas me fazia sentir parte deles, e a sensação de ser indesejado se diluía a
cada interação.
Eles arriscaram suas vidas para me resgatar e se propuseram me
introduzir em seu mundo, não tinha mais porque me sentir inseguro ali. Era
como uma nova família.
Conforme o sol se despedia, Arya e Jake reuniram a tripulação no
convés para repassar o plano.
Chegou o momento.
O céu estava escuro e límpido, isso era uma vantagem, pois a luz da
lua cheia nos ajudava a enxergar em meio à escuridão.
Toda a tripulação estava preparada, armada e em posição, com arpões
presos numa espécie de besta em diversos pontos estratégicos do navio.
De longe, avistei o que nos aguardava: o túnel rochoso, composto por
duas pedras enormes, apoiadas uma na outra, deixando uma fenda no meio
por onde iríamos passar. Eu tremia em apreensão com o que estava por vir,
agarrei no pano que havia preso ao redor no meu pescoço e olhei para Jake.
— Capitão, já devo cobrir a face?
— Ainda não. Esses panos úmidos com a loção feita para anular os
gases tóxicos, se inspirados por muito tempo sem o contato com os gases,
fará mal. Queima as narinas e arde os pulmões — Ele respondeu sem
desviar os olhos do caminho.
Jake havia repassado o porquê de toda aquela preparação. O mar
púrpura não tinha esse nome à toa, foi nomeado assim devido à sua
coloração arroxeada por conta das algas que lá ficam, algas essas que
soltam toxinas alucinógenas e se proliferavam bastante devido à grande
quantidade de um substrato presente naquelas águas, restos de carne
humana.
Seria fácil, talvez até divertido, ter alucinações por um breve
momento, mas a situação se torna perigosa quando se tem sereias assassinas
prontas para capturarem suas vítimas – e os gases facilitavam que elas
dessem o bote.
Apesar da luz lunar nos auxiliar, ainda era difícil a noite enxergar a
mancha que indicava o começo do mar púrpura, contudo, a bruxa e Jake
sabiam cada rota, empecilho e como lidar com essas adversidades.
A mulher pirata indicou para o capitão que estávamos quase lá, com
um assobio.
— Atenção! — gritou Jake, erguendo a mão. — Preparem-se... —
Colocou a mão sobre o lenço que lhe envolvia o pescoço — Calma... —
Toda aquela tensão fazia meu coração bater mais forte. — Cubram!
Todos ergueram seus panos de forma que tampasse o nariz e boca. O
cheiro da substância que Arya havia colocado sobre o tecido levou meus
olhos a lacrimejarem, era forte demais.
Assim que entramos no mar púrpura, foi possível notar uma espécie
de névoa sobre o mar, fumaça arroxeada, e quanto mais próximo do túnel
rochoso, mais escura e difícil a visibilidade ficava.
Não demorou muito para que ouvíssemos o canto das sereias, suave e
distante. Alguns homens se aproximaram das bordas para olhar, e eu, de
curioso, não consegui me conter, juntei-me a eles.
Sob a escuridão das águas enxerguei, quase na superfície, luzes
azuladas em toda a extensão da vértebra da criatura.
Nunca vi sereias, na verdade, mal conhecia o mundo além das
muralhas do castelo. Porém, quando era criança, antes de dormir meu pai
sempre contava histórias e muitas eram sobre elas. Confesso que por muito
tempo fui cético em relação às criaturas mágicas além das bruxas, mas a
viagem mundo afora ao lado de Jake me fez descobrir que não só esses
seres existiam, como também era um deles.
Apesar de perigoso, fiquei apoiado na borda, ansioso para ver a
verdadeira forma das mulheres-peixe. Na minha imaginação se pareciam
com princesas de cauda.
— Não é seguro que você fique na borda. Afaste-se, Lawrence —
disse o usurpador, com a voz abafada, puxando-me pelo braço.
— Mas eu queria ver!
— Não se preocupe, verá, elas farão questão de aparecer.
Enquanto estávamos lá, com a escuridão tomando cada vez mais o
navio, o som do canto das sereias se tornou mais alto devido ao eco que
faziam nas paredes rochosas. Olhei ao redor e os homens tamparam os
ouvidos.
A canção se tornou ensurdecedora. Jake riu e gritou:
— Tentem a sorte, vadias! Esforcem-se mais na próxima vez!
Ao olhar para os ouvidos dos piratas, eles não só estavam tampados
com seus próprios dedos, como também por um chumaço de algodão – ou
algo parecido –, e só eu não estava, mas o canto não me afetou.
O cantarolar cessou.
A quietude espalhou-se pelo ambiente, apenas o som das águas contra
a madeira era escutado. A paz não durou muito tempo, logo algo começou a
bater contra o navio, fazendo o balançar.
De novo, e de novo... até que o último golpe contra a embarcação foi
tão forte, que o virou de lado, fazendo com que todos rolassem sobre as
madeiras do convés e se segurassem onde podiam.
Gritei. Arregalei os olhos de medo, foram poucos segundos que ele
ficou inclinado, mas nunca me senti tão perto da morte.
Quando o navio voltou à sua posição normal, a bruxa correu para
tomar conta da direção para que não batêssemos no trecho mais estreito do
túnel. Os homens se posicionaram atrás das bestas com arpões, preparando-
se para o ataque.
Fiquei imóvel sem noção de que partido tomar. Jake entrou na minha
frente com a espada em mãos. Ele não perdeu o hábito de me defender,
mesmo que eu já conseguisse lutar sozinho.
Apoiei a mão na espada que estava presa à minha cintura, sem retirá-
la da bainha. Queria poder usar minhas habilidades mágicas para proteger a
todos nós, porém, não fazia ideia de como criei a barreira da última vez,
então teria que lutar como um humano.
De repente, elas apareceram. As sereias não se assemelhavam com o
que pensei que fossem. As criaturas eram gigantescas, de pele azulada com
diversos pontos luminosos, busto feminino, longos cabelos pretos, mas o
rosto não era nada agradável. Não tinham nariz, seus olhos eram totalmente
escuros e estreitos, além da boca rasgada de ponta a ponta repleta de dentes
afiados.
— M-meu Deus, que coisa feia — gaguejei, seguido por um bater de
queixo ao ver três daquelas criaturas se erguendo do mar, feito hidras.
— Elas não são sempre assim... só quando não querem ser simpáticas
— Jake falou, olhando-me sobre o ombro, dando um sorriso de lado.
Uma das sereias berrou, um grito que fez com que arrastássemos os
pés para trás, e ela se inclinou para atacar a embarcação.
Os homens começaram a disparar os arpões contra as criaturas que,
na maioria das vezes, conseguiam desviar entrando debaixo d'água e
emergindo para tentar golpear os tripulantes com as mãos, que eram tão
grandes que em sua palma caberia uma pessoa.
Toda a coragem que eu tinha para lutar sumiu. Subitamente, tive
vontade de fazer o que fazia de melhor em situações como aquelas, fugir.
Apesar de ter prometido a Jake que o ajudaria, não me senti pronto para a
batalha.
Lutar contra humanos era difícil, contudo, possível, mas contra
sereias gigantes e carnívoras? Inviável. Era demais para mim.
Ainda desnorteado em meio àquela bagunça de homens correndo para
lá e para cá, sangue jorrando e balançar forte da embarcação, comecei a me
afastar para perto da escada que dava para o fundo do navio. Se o golpe
viesse de cima eu não seria afetado.
Olhei em volta antes de descer e reparei em Jake, com um lado do
rosto e blusa suja de sangue, um sangue bem escuro, não era o dele. As íris
do pirata fixaram-se nas minhas, franzi as sobrancelhas, com a mão apoiada
no corrimão.
— Perdão, capitão, é demais para mim agora — murmurei.
Ele não ouviu, obviamente, mas sabia o que eu iria fazer.
O pirata assentiu com a cabeça e voltou a se concentrar na criatura
azulada que emergia do mar e tentou devorar um de seus marujos.
Mordi o lábio e desci os degraus apressadamente. Durante o momento
em que eu trotava, o pano ao redor do meu pescoço afrouxou-se. Assim que
cheguei na parte mais escura e úmida do navio, o amarrei fortemente contra
o rosto.
Lá embaixo conseguia ouvir minha própria respiração ofegante, e
apesar do clima úmido e frio, meu corpo estava quente de nervosismo
devido a não saber o que acontecia na superfície.
Foi quando escutei um estrondo que fez com que a madeira acima da
minha cabeça se rachasse. O navio balançou tão forte que caí.
Tiveram gritos e, em seguida, o silêncio total.
Espero que o Jake esteja bem, por favor, que ele fique bem...
Fechei os olhos em minha prece.
A madeira dos degraus começou a ranger. Ao erguer as pálpebras e
ver as botas, o coração quase parou. Meus olhos incrédulos mal puderam
acreditar na imagem que estava aparecendo: o sobretudo de pele, a calça
preta, os longos cabelos escuros, barba e uma cicatriz. James!
Apoiei a mão no cabo da minha espada.
— O que faz aqui? Como me encontrou?
— O encontrei porque você é o meu destino, príncipe. Cansei de
enviar terceiros para fazer o que eu poderia em questão de segundos —
falou com mansidão, aproximando-se.
Saquei a espada da bainha e apontei em sua direção.
— Afaste-se!
— Vejo que está menos covarde que da última vez em que te vi. Não
gostei disso, prefiro seu jeito de donzela indefesa... como nessa sua atitude
de fugir. — Chegou numa distância de cinco passos de mim e estendeu a
mão. — Venha comigo, não quero te machucar.
— Nunca! — Rangi os dentes. — Se for para me tirar daqui, que seja
morto. Prefiro derramar meu próprio sangue a servi-lo.
— É o que veremos. — O amaldiçoado colocou a mão sobre o ombro,
de forma que seus dedos tocassem as costas e de lá retirou a espada.
Entrei em posição, mas ele não avançava, tive que dar o primeiro
passo para golpeá-lo nas vísceras. James defendeu-se, bloqueando o ataque,
e me deu um chute de forma que cambaleei para trás.
Tentei atacá-lo por baixo e ele desviou. E assim seguimos, no triscar
dos metais, ensaiando a dança da morte.
No meu último golpe de cima para baixo, ele fez um contragolpe com
a espada, que levou minha única arma a escapulir pelos meus dedos e cair
no chão. Ele a chutou para longe.
— Irá me matar? — questionei, caminhando cada vez mais para trás,
até que fiquei encurralado. No mesmo segundo, arrependi-me de ter dito
que ele só me tiraria de lá morto.
James pressionou a ponta da lâmina no meu pescoço, de forma que
perfurasse superficialmente a pele. Senti o ardor do corte e engoli em seco,
encarando-o.
O homem recuou a espada e, num passe rápido, pressionou seus
dedos contra meu pescoço, enforcando-me. Coloquei ambas as mãos sobre
a sua e ele aproximou a testa da minha, encostando nossos rostos.
— Eu não queria ter que fazer isso, mas foi uma escolha sua.
Num golpe único perfurou minhas vísceras, fazendo o atravessar da
lâmina queimar a carne por onde passava. A dor foi tão profunda que me
fez gritar em agonia. Coloquei as mãos contra a sua para afastá-lo, mas ele
afundava a espada cada vez mais.
Senti o sangue vir para a garganta, o corpo gelou e a visão ficou
embaçada, até escurecer por completo.
Acreditei que aquela seria minha morte. Sem chance de últimas
palavras, sem todas as memórias passarem diante dos meus olhos, apenas
uma dor lancinante seguida pelo total silêncio.
No entanto, não morri. Na verdade, sequer estive perto disso.
Despertei com puxada de ar afobada, como se tivesse acabado de sair
de um afogamento, avistei Jake ao lado da cama. Ele enrugou a testa ao me
ver e apoiou o joelho sobre o colchão.
— Como se sente? — Colocou a mão no meu rosto.
— Bem. Eu... dormi? Foi tudo um sonho? As sereias...
— Você teve uma alucinação tão forte a ponto de desmaiar.
Preocupei-me ao te encontrar jogado daquele jeito lá embaixo. Que bom
que está bem. — Suspirou, aliviado.
— Então o mar púrpura...
— Passamos por ele e pelas sereias. Estamos indo ao encontro da ilha
do fruto, mas no retorno teremos que passar pelo mar de monstros, portanto,
preciso que treine com Arya para que desenvolva as suas habilidades. —
Sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão. — Sem sua proteção,
acredito que talvez não conseguiremos retornar, a tripulação não aguentaria.
— Irei me esforçar para isso, capitão, prometo. — Entrelacei meus
dedos nos dele.
Jake ergueu o canto da boca e se aproximou para tocar, brevemente,
nossos lábios.
Aos poucos, entrávamos em sintonia a ponto de ele saber meus
limites, e eu me esforçava para que conseguisse ser forte por nós dois. Era
uma evolução em pequenos passos.
Respirei aliviado de que o Maldição do Rei tinha conseguido passar
pelo mar púrpura, e que a minha experiência de quase morte foi apenas uma
ilusão.
Alguns dias se passaram desde que atravessamos o terrível mar
púrpura, seguimos sem paradas em direção à ilha onde havia o fruto
quebrador da imortalidade. Isso significava que teríamos que racionar os
recursos, que eram poucos e logo se tornariam nulos.
Pensar em ficar sem comer durante muito tempo, trazia-me angústia e
medo em adoecer novamente. A fome era o que eu mais temia, preferiria
qualquer tipo de tortura a morrer de inanição.
Devido a isso, comecei a tentar acostumar meu corpo à escassez e me
alimentava cada vez com menos porções. Comer menos tinha seus
impactos, cansava-me fácil com poucos esforços e isso prejudicava meus
treinos.
Arya, a bruxa-pirata, me entregou um livro sobre criaturas místicas
para que eu me entendesse melhor, assim aproveitaria mais os treinos.
Aceitei que não era humano, mas estava em negação sobre a possibilidade
altíssima de ser um bastardo, já que a rainha não se parecia com uma ninfa.
As Gwragedd annwn eram belíssimas mulheres, feito fadas, que
viviam em cidades secretas, agindo como guardiães de lagos ou natureza.
Elas recebiam os homens mortais que as encontravam e os tomavam como
seus maridos. Porém, quando uma Gwragedd engravidava e entregava a
criança ao homem, ele nunca mais conseguia vê-la, pois o portal se fechava
para sempre.
E as crianças nascidas de uma ninfa com um humano eram
conhecidos como híbridos. Aparentavam serem humanos, mas emanavam
uma energia que somente outros do mundo oculto conseguiam sentir,
energia essa que se canalizada corretamente formavam barreiras e repeliam
magia obscura, mas em compensação atraíam os amaldiçoados, devido a
sua aura fazer com que os sem alma sentissem a sensação de serem
humanos.
Eu estava sentado na cama, estudando antes de outro treino frustrante
com a bruxa. Por mais que me esforçasse, não conseguia formar uma
barreira maior do que meus dedos, muito menos mantê-la por mais que
alguns segundos.
Jake abriu a porta e deu um sorriso ao olhar para o livro.
— Você está realmente empenhado.
— Do que adianta? — Fechei o livro. — Sei a teoria, mas não
consigo pôr em prática. Não acho que serei capaz de nos defender, Jake.
— Claro que será capaz. — Sentou-se ao meu lado e colocou a mão
sobre a minha. — Você vai conseguir, sei disso, acredito em você.
— Obrigado por confiar em mim, capitão.
Sorri, perdendo-me em seus olhos de mar sereno. Era estranho como,
apesar de ele e James serem amaldiçoados, Jake não se parecia com o outro
em nenhum aspecto. Seus olhos transmitiam vida e sua pele não cintilava à
luz da lua. Daí me surgiu uma dúvida.
— Jake, se você e o rei invasor são amaldiçoados... por que você não
se parece com um? Ainda tem o brilho nos olhos.
Ele riu brevemente.
— Porque somente os amaldiçoados imortais são assim. Eles dão suas
almas pela vida eterna, morrem e voltam como imortais, condenados a
vagarem pela eternidade como mortos-vivos. Por isso a falta de vida no
olhar. Já a minha maldição foi por um desejo, para ser conquistador dos sete
mares, conhecido entre os piratas, em compensação sou fadado a viver em
alto-mar. Se ficar muito tempo em terra a maldição me faz perder a
vitalidade.
Aquilo significava que jamais conseguiria viver junto de Jake. Ele
não poderia abrir mão da vida de pirata nem se quisesse. Seria eu em meu
reino e ele nas águas.
Tentei disfarçar a tristeza quando os pensamentos que eu tanto evitava
vieram à tona: a questão de não poder estar com quem amava.
— Entendi. E por que não escolheu a vida eterna quando se
amaldiçoou?
— Porque viver tanto a ponto de ver todos que amo morrerem seria
um castigo. Prefiro viver meus dias de glória enquanto meu coração bate e
descansar quando minha hora chegar.
A conversa foi interrompida por três toques à porta, era Arya, a hora
do treinamento chegou.
Jake e eu deixamos a cabine, ele permaneceu no alto, na direção do
navio, e eu desci até o convés ao lado da mulher que estava com um facão
em mãos. Aquilo me deixou apavorado.
— Por que essa faca? — questionei.
— Porque pensei em tomarmos medidas um pouco mais drásticas
para a sua motivação.
— Acho que isso não vai dar certo.
— Vai sim, Lawrence. Você consegue! — a mulher falava para mim,
apontando a lâmina. — Vou tentar atacá-lo de verdade e você vai se
concentrar para formar a barreira.
— Espera! — Ergui as mãos em rendição. — Caso não consiga
formar a barreira, você irá me cortar e eu não quero sentir dor, não quero
perder sangue! Tem como, simplesmente... não sei, fingir que fará, apenas?
— Se eu fingir, não conseguirá se concentrar para se proteger. Terá
noção de que não irei machucá-lo, então tem que correr esse risco. Não será
fatal. — Ela afastou um pé mais para trás e curvou, suavemente, o corpo,
ficando na posição de ataque. — Confie em mim.
— Nossa, mas por que tem que ser tão difícil? — resmunguei.
Inspirei fundo e soltei o ar lentamente. Dei dois passos para trás, colocando
as mãos com as palmas abertas na direção da bruxa-pirata. — Está bem,
quando for começar, avi... — Antes que eu pudesse finalizar a frase, a
mulher avançou, fazendo com que eu desse um pulo para trás. — Ei!
— É só pra ver se você está atento. — Riu.
Emburrei o rosto.
— Não tem graça! A lâmina é afiada!
— Concentre-se, Lawrence.
Assenti com a cabeça. Respirei devagar, mentalizando o escudo de
energia.
Quando ela correu em minha direção, tentei projetá-lo, mas nada saiu.
Não consegui formar a tempo, levando um corte na mão que rompeu a
camada superficial da pele.
Ardeu. Sangrou. E eu choraminguei.
— Droga — murmurei, pressionando a mão contra a roupa para
estancar o sangue.
— Príncipe, pense rápido na expansão da energia. Você tá sob um
ataque real!
— Vou tentar, calma. — Soltei o ar lentamente, pressionei os olhos e
me posicionei mais uma vez.
Ela avançou, cortando-me, de novo e de novo. Ao invés de progredir,
comecei a me sentir frustrado por estar sendo ferido e não conseguir me
defender.
— Lawrence, tente se tranquilizar e concentre-se. Agora não tentarei
acertar sua mão, mas sim as vísceras. E isso pode-lhe causar muita dor —
falou, seriamente, encarando-me.
Concordei, daquela vez sem medo, tinha que conseguir.
No segundo em que Arya desapoiou os calcanhares do chão e
estendeu a lâmina na direção da minha barriga, o escudo translúcido, feito
água, projetou-se frente ao meu corpo, levando-a bater contra a barreira e
cair.
Arregalei os olhos incrédulo, e ela, ainda no chão, sorriu para mim ao
ver o que tinha acontecido.
Eu consegui.
— Eu consegui?! — Ergui os cantos dos lábios sutilmente,
recolhendo a proteção.
— Sim! — A bruxa-pirata levantou, dando-me um abraço. — Você
conseguiu! — comemorou.
Ainda era pouco, eu precisaria projetar o escudo em torno de todo o
navio. Porém, aquele foi apenas o começo, em breve estaria mais poderoso
e poderia usar minhas habilidades na batalha contra James.
Ouvi o som de palmas, era Jake descendo pelos degraus, com aquele
típico sorriso torto que erguia somente um canto de seus lábios e me
abraçou.
— Estou muito orgulhoso de você, Law.
Apertei-o fortemente e fechei os olhos. A alegria encheu meu peito,
eu também estava orgulhoso de mim.
— Obrigado, capitão.
— Então vamos comemorar essa vitória comendo porque o rango está
servido! — gritou o pirata cozinheiro, batendo uma colher contra um prato
vazio.
Comida. Aquilo era tudo que eu mais queria no momento. E,
realmente, não havia forma melhor de comemorar uma conquista do que
enchendo a barriga.
Todos se reuniram nos bancos de barris para a refeição e Jake
aproveitou a união da tripulação para repassar informações da rota.
As notícias foram boas.
Estávamos perto de concluir nosso principal objetivo. Faltavam
apenas dois dias de viagem para chegarmos à ilha do fruto.
Passei um dia inteiro treinando a canalização de energia, conseguindo
expandir a barreira cada vez mais, durante a viagem até a ilha do fruto. E no
dia anterior à nossa chegada à B’hilla, Jake insistiu que eu descansasse. Ele
acreditava que eu falharia por exaustão se continuasse naquele ritmo.
Diferente das reações desesperadas em direção ao mar púrpura, a
tripulação aparentava estar tranquila sobre a ilha do fruto quebrador de
maldições. Ela não apresentava riscos, além do seu desaparecimento após o
pôr do sol.
Depois da refeição da tarde, Jake e eu ficamos na cama. Aproveitei
para ler mais sobre as criaturas místicas e ele esteve deitado com a cabeça
apoiada no meu colo, recebendo carícias em seus cabelos. Só perdi a
concentração quando senti seus toques no meu pé.
— Para! — Ri.
— Que foi? Não gosta de massagem? — Dedilhou na sola do meu pé.
— Isso não é massagem, Jake, são cócegas! Para! Para! — Gargalhei,
quase me debatendo na cama.
Ele parou e deitou sobre mim, aproximando nossos rostos para um
beijo. Ao nos afastarmos, o pirata me encarou com um sorriso triste.
— Por que não fica comigo no mar? — Passou a mão pelos meus
cabelos.
Minha feição se tornou tão melancólica quanto a dele.
— Eu te amo, muito. É o primeiro homem em minha vida e desejo
que seja o último. Mas tenho um compromisso a zelar. Não posso deixar
Marnsala, meu pai está se tornando velho e logo meu reino precisará de
mim. O meu dever é governar, assim como o seu é navegar.
— Eu entendo. Será que ao menos conseguiríamos nos ver mesmo
quando a viagem acabar?
— A entrada secreta do castelo estará sempre aberta para você.
Ele sorriu de canto e aproximou-se para me beijar novamente. Jake
suspirou, e ainda de olhos fechados disse:
— Eu te amo.
Os cantos dos meus lábios se esticaram e o rosto se aqueceu.
— Eu também amo você.
O nosso momento foi interrompido por um bater à porta que avisou
sobre o sol estar quase se pondo. Nós nos arrumamos e deixamos a cabine.
Ao chegarmos ao convés, o navio estava ancorado e os marujos apoiados na
borda, olhando na direção que a ilha apareceria.
Apesar de tranquila, seria uma missão que exigia rapidez. O tempo
era curto para encontrar a fruta e deixar a ilha antes que anoitecesse e ela
sumisse.
— O bote está pronto? — Jake perguntou, sem desviar os olhos do
horizonte. Estava preparado para ir.
— Sim, capitão. Quer que eu vá com você? — disse Arya.
— Não. Irei sozinho. É arriscado demais. Preciso de alguém de
confiança para guiar minha tripulação.
Ir sozinho? Desde quando?
Juntei as sobrancelhas.
— Mas quem irá te ajudar caso precise?! — A mulher questionou.
— Ele não irá só. Iremos juntos. — Olhei para ele.
— Não, você não vai! — Jake foi autoritário. — Eu pensei melhor e
preciso que fique aqui para não se cansar até o mar de monstros.
Bufei e dei um sorriso desafiador de canto. Andei em passos largos
pelo convés e subi, rapidamente, na borda do navio, segurando firme nas
cordas que ficavam presas do chão ao alto das velas.
Aqueles estreitos olhos delineados, tornaram-se maiores com minha
atitude.
— Não há discussão, capitão, irei.
Os outros tripulantes alternaram seus olhares entre nós,
provavelmente devido à surpresa de duas coisas, alguém desafiando as
ordens do capitão e por eu não ter tomado uma postura covarde como
sempre fazia.
Não poderia deixar Jake ir sozinho até a ilha. Pegar aquela fruta
quebradora de maldições era a minha missão, eu quem salvaria meu reino, o
pirata tinha apenas a função de me levar até lá.
— Lawrence?! — Ele se aproximou, lentamente, da borda onde eu
estava e soltou um suspiro longo. — Não queria que se arriscasse. Além da
rapidez em seu desaparecimento, a ilha pode ter alguma armadilha.
— Capitão, estou treinando com espadas e energias para me tornar
cada dia mais capaz de me defender sozinho e proteger a todos nós. Não só
no mar de monstros, como também na batalha contra James. Não posso
mais me acovardar, esconder ou fugir. — Olhei para o horizonte, notando o
céu alaranjado e aos poucos a silhueta da ilha se formando. Sorri sutilmente
e voltei a atenção para o pirata. — Estamos aqui por minha causa, pelo meu
reino, é a minha missão. Portanto, farei parte dela.
— A ilha! — gritou Steve que se aproximou de nós dois. — Acho
melhor discutirem a relação outra hora, se não for a tempo, ela vai
desaparecer.
O capitão olhou rapidamente para o homem, concordou e voltou a
atenção para mim.
— Tem razão, Law, a missão é sua. — Subiu na borda do navio
ficando ao meu lado. — Mas saiba que farei o possível para protegê-lo,
então não me impeça disso — disse baixinho. — Preparem a nossa
descida!
Ergui o canto do lábio e assenti.
Assim que os barcos de madeira chegaram perto de onde estávamos,
Jake e eu entramos neles que chacoalharam com o peso dos nossos corpos,
fazendo-me agarrar nas bordas com medo de cair daquela altura.
Antes de começarem a descer a pequena embarcação, a bruxa-pirata
se aproximou da borda e gritou:
— Ei! Precisarão disso! — Jogou as duas espadas para nós. —
Precaução.
— Obrigado, Arya! — agradeceu Jake. — Cuide dos rapazes.
— Pode deixar, capitão — ela respondeu, apoiando uma das mãos
sobre o chapéu.
Quando o barquinho alcançou as águas, colocamos as espadas nas
cinturas para segurar os remos. Tentamos nos sincronizar para dar mais
impulso e chegar rapidamente até a ilha.
Eu suava fazendo todo aquele esforço, sentia os músculos doerem e
uma certa tontura, não estava acostumado com trabalhos braçais, mas
apesar de não me sentir bem, continuei em silêncio. Não queria preocupar
Jake.
Conforme nos aproximávamos da ilha, mais ela aparecia e se tornava
algo palpável. Desembarcamos na areia e comecei a olhar aquele ambiente
procurando por algum sinal de perigo, enquanto o pirata puxava o nosso
transporte para a terra.
Os grãos de areia daquela praia pareciam pequenos cristais, como
espelhos, algo fora do comum. O capitão se aproximou de mim e apoiou as
mãos na cintura, encarando a mata densa. Suspirou profundamente.
— Como iremos achar a fruta no meio de tanta árvore?
— Não lembra que a bruxa disse que ficava no ponto mais alto? —
respondi, dando uma olhadela para ele. — E era vermelha como sangue...
— Cheia de espinhos.
— Sim.
— Bem... — Jake retirou a espada da bainha, ficando com ela em
mãos —, vamos nessa.
Caminhamos floresta adentro. Apesar de ter bastante planta, não
havia vida alguma ali, nada de nativos, bichos de terra, muito menos
pássaros, eram apenas altas árvores com folhas de diversas cores, texturas e
frutos.
Frutos aqueles que nunca ouvi falar e não ousaria comer.
O lugar era quente e escuro por conta do topo das árvores que mal
deixavam a luz passar. Andávamos afastando as plantas pelo caminho.
Nossos passos faziam barulho no chão coberto por folhas secas, que era
tanta a ponto de não enxergarmos a terra que tinha embaixo.
Chegamos num ponto onde havia uma rocha em formato de cabeça
humana e acima dela um morrinho, pequeno desnível com mais plantações.
De longe, dava para ver o vermelho brilhante no topo de uma das árvores.
— Você fica embaixo da árvore para quando eu jogar a fruta — falei,
caminhando para perto da pedra a fim de me apoiar e subir para alcançar a
parte mais alta da ilha.
— E você por acaso sabe subir em árvore? — questionou, rindo.
— Hum... não — respondi, arrastando o tórax sobre a rocha,
enfincando minhas unhas ali para subir.
Era difícil e cansativo.
— Então pronto — falou Jake, escalando na pedra sem muita
dificuldade. Aquele ladrãozinho deveria estar acostumado com essas
situações devido às suas fugas.
Assim que ficamos de pé em cima da cabeça de rocha, demos um
pequeno salto para subirmos para o nível mais alto.
Daquela altitude era possível enxergar o topo das árvores baixas e
sentíamos a corrente de ar fresca bater na pele. O céu estava começando a
se tornar mais escuro em um ponto, tínhamos pouco tempo.
O pirata me encarou antes de se aproximar do pé do fruto quebrador
de maldições. Pegou a bandana presa em sua cintura e envolveu no tronco
da árvore para que servisse de apoio para suas mãos. Aos poucos, usou
aquilo e os pés para subir.
Ao alcançar o desejado, arrancou a fruta sem pestanejar e jogou para
mim. Segurei-a, sentindo a palma da mão doer ao ter sido espetada. Assim
que afastei os dedos, notei os pontos de sangue que se uniram numa gota
maior e deslizou por minha pele até a grama.
Naquele momento uma pequena vibração passou por debaixo dos
meus pés.
Jake escorregou de lá do alto até chegar ao solo e veio para perto.
O plano parecia estar dando certo, até que sentimos a terra toda
tremer, a ponto de mal conseguirmos ficar de pé e um barulho estridente
que pareceu um grito grave, que fez com que as copas das árvores se
mexessem. Logo veio o som de algo rolando, eram rochas enormes vindo
na nossa direção.
— Desgraça! — O pirata arregalou os olhos.
Corremos o mais rápido que pudemos, senti a respiração se tornar
exaustiva e o coração bater no pescoço de tanto medo. Quando pulamos
para descer para a cabeça de pedra e de lá para o chão, escorreguei na
beirada, arrastando o braço, ardeu ao sair uma lasca da pele, mas não soltei
a fruta por nada.
Jake me deu a mão e me puxou para que eu acelerasse os passos.
Durante a volta, as folhas pareciam querer se agarrar em nós, nos
prendendo à ilha. Retirei a espada da bainha para cortar os cipós e outras
plantas que nos atrapalhavam.
— À frente! Pula! — alertou Jake.
Ao olhar do que se tratava, era um vão que foi aberto no chão. Ele
saltou e eu em seguida, mas ao pular e chegar do outro lado, perdi o
equilíbrio e quase caí para trás. Fui segurado a tempo pela manga do
sobretudo. Soltei um suspiro de alívio e voltei a correr.
Estávamos próximos à praia, pude ver de longe o nosso barco, até que
o pirata gritou.
Olhei para trás e o vi caído no chão, com suas pernas presas por um
conjunto de cipós que se assemelhavam à uma mão gigante. Mesmo que ele
tentasse golpear a planta, ela não parecia ser cortada.
— Jake! — Voltei para ele com a espada em mãos e comecei a tentar
romper aquilo para soltá-lo, mas não adiantava, o nó se apertava mais.
— Droga, droga... — o pirata resmungava, tentando sair.
O céu se tornava cada vez mais escuro, e o fundo da ilha começou a
desparecer. Meu coração se acelerou. Apoiei a fruta no chão e tentei usar as
mãos para soltar Jake o mais rápido que pudesse.
— Não está adiantando, não tá! Não tá! — falei, sentindo os olhos
arderem e a visão se tornar embaçada devido às lágrimas que se formavam.
Era desespero num misto de frustração e tristeza.
— Vá embora! Pegue o barco! — ele mandou, ainda se esforçando
para sair de lá.
— Não vou sem você!
— Lawrence... — disse mais baixo, encarando-me. — Eu agradeço
por ter passado pelos melhores meses da minha maldição ao seu lado, por
me fazer sentir as emoções depois de tanto tempo. Por isso ficaria muito
triste se perdesse o que se tornou mais valioso para mim... você.
— Não fala isso, Jake, não... — A garganta ardeu e as lágrimas
escorreram por meu rosto.
— Vá embora! — gritou, ao notar as partes das árvores
desaparecendo cada vez mais próxima.
Mesmo relutante, tive de partir. Ergui-me e corri em direção ao barco.
Evitei olhar para trás, não queria sofrer mais do que já estava sentindo.
Apoiei as mãos na embarcação e fiz todo esforço para conseguir colocar
aquilo no mar.
Pisei nas águas, sentindo a maré na metade das botas quando
consegui subir e remar.
Dei tudo de mim para sair com segurança das margens daquela ilha,
olhando apenas na direção do navio pirata. Porém, ao notar que o céu
terminou de escurecer, perdi as forças. Virei para aquelas terras e nada vi,
ela desapareceu.
Debulhei-me em lágrimas, encarando o horizonte. Meu peito doía, as
mãos tremulavam, e um nó se formou em minha garganta. Queria chamá-lo,
gritar seu nome na esperança de que ele aparecesse.
Juntei os joelhos e os aproximei do corpo a fim de abraçá-los, gostaria
de sentir como se tivesse um conforto para meu coração. Havia perdido a
primeira e única pessoa que amei.
Fui para a ponta da embarcação e olhei por aquela imensa escuridão,
quando peguei o remo para voltar ao navio, arregalei os olhos.
— A fruta... — murmurei. Cheguei a perder o ar, meu corpo
estremecia a cada movimento do bote.
Quando cheguei perto do navio e olhei para cima, os tripulantes do
Maldição me encararam com suas expressões tristes, algumas incrédulas
até.
Os ganchos se aprenderam a embarcação e quando pisei os pés no
convés, Arya se aproximou de mim com os lábios entreabertos e
sobrancelhas franzidas.
— Onde está Jake?
Os tremores se tornaram ainda maiores, minhas pernas mal
conseguiriam sustentar o corpo. Apoiei-me na borda.
— Na ilha. Com o fruto.
— Seu príncipe idi... — Strigói apontou o dedo para mim
expressando fúria, mas não completou a frase. Ele deveria, eu merecia
qualquer tipo de ofensa por ter deixado aquilo acontecer. Calou-se e deu as
costas para mim.
— Será que ele morreu? Não podemos perder nosso capitão — disse
Bippo, desconcertado. Levou a mão os cabelos longos, puxando-os pelo
topo da cabeça.
Arya passou a mão pelo rosto e suspirou. Esfregou os olhos e apoiou
o dedo contra meu peito, pressionando fortemente.
— Jake deu a vida por você durante essa jornada diversas vezes. Ele
te ama, e sei que o sentimento é recíproco, então não se permita desistir
dele. Amanhã, você vai voltar naquela ilha e trazê-lo de volta. — Afastou a
mão e deu dois passos para trás. — Sem ele, sequer precisa retornar para
este navio. — Deu as costas para mim.
Um pesado sentimento de culpa caiu sobre meus ombros. Eu
realmente não deveria tê-lo abandonado, e ainda que não soubesse como
faria para salvar Jake, senti-me pressionado a realizar até mesmo o
impossível.
Nunca vi Arya falar daquela maneira, foi a primeira vez que
demonstrou um sentimento negativo. O que me deixou ainda mais
decepcionado comigo mesmo.
Andei até a outra borda e apoiei meus braços nela, olhei em direção à
onde havia a ilha. O vento gélido da noite soprou meus cabelos e eu mordi
o lábio enquanto refletia.
Amanhã resgatarei Jake... ou morrerei tentando.
Aquela foi uma das piores noites que passei no navio, demorei para
dormir por não parar de pensar no dia seguinte, sobre o que faria, o que
poderia acontecer, mas o que me fez realmente perder o sono era cogitar a
possibilidade de falhar.
Por não ter dormido bem durante a noite, passei boa parte do dia
seguinte entre breves cochilos, só ficava atento mesmo durante as refeições.
Até que, no final da tarde, próximo do pôr do sol, Arya bateu em minha
porta.
O bote estava pronto e a expectativa presente no olhar de todos os
piratas quando eu pisei na pequena embarcação também. Assim que
desceram as cordas, Bippo gritou:
— Príncipe, leve isto! — Jogou uma pistola no barquinho.
— Obrigado! — Agradeci, colocando a arma do outro lado da cintura,
ainda que não soubesse como atirar.
— Boa sorte, Lawrence! Traga o nosso capitão! — gritou Steve.
Assenti com a cabeça e peguei no remo, comecei a enfrentar as ondas,
olhando fixamente para o nada, até que, aos poucos, conforme o sol descia,
a imagem da ilha se formou à minha frente.
Pisei nas areias de cristais e olhei para a mata. Jake já não estava mais
onde nos despedimos. Inflei os pulmões devagar e soltei o ar na mesma
velocidade, aos poucos adentrei na mata.
Meus olhos inspecionaram com atenção cada detalhe. Não sabia se
poderia fazer barulho, mas sabia que se não gritasse, ficaria ainda mais
difícil de encontra-lo a tempo, ainda que a ilha fosse pequena.
— Jake! — berrei. — Jake!
Demorou, mas ouvi uma voz, fraca e distante, que ecoou pelos
troncos em resposta.
— Lawrence?!
Pareceu uma surpresa ao invés de um anuncio de onde estava.
— Jake! Cadê você?!
— Aqui! Aqui! Aqui!
Eu não o enxergava, contudo percebi de onde vinha o som. Comecei a
correr em direção à sua voz, afastando as folhas e pulando os galhos, e a
cada passo minha respiração se encurtava e o seu timbre era mais audível.
Arregalei os olhos ao chegar em um ponto da floresta em que havia
luminosidade. As copas das árvores eram falhas, e o sol penetrava dentre
essas brechas deixando claro a imagem à minha frente.
O pirata estava preso à um tronco, amarrado por cipós, em sua mão, a
fruta.
— Jake!
Ele sorriu ao me ver e seus olhar expressou alívio.
— Voltou por mim?
Aproximei-me rapidamente com a espada em mãos.
— Falhei em tê-lo deixado. — Comecei golpear os cipós para solta-lo
e a cada caule rompido, outro se formava com lentidão. A partir dali notei
que os cortes deveriam ser rápidos para que conseguisse libertá-lo.
Usei toda a força que tinha para cortar várias vezes, meus braços
doíam e senti o suor escorrer por dentro da roupa, contudo estava dando
certo, aos poucos a brecha se aumentou a ponto de Jake conseguir se
desgarrar do tronco e recair sobre mim.
Nos abraçamos firmemente e senti os olhos lacrimejarem.
— Perdão, Jake, perdão...
Uma vibração passou pelos meus pés. Arregalei os olhos. O pirata
segurou em meu rosto com uma das mãos, enquanto a outra segurava o
fruto.
— Não se desculpe, você fez o que pedi que fizesse. — Olhou para o
céu que aos poucos se escurecia. — Agora precisamos sair daqui.
O tremor se tornou maior e as árvores se agitaram. Novamente ouvi o
som de um grito grave e de repente alguns troncos caíram à frente
revelando o que havia por detrás deles, uma figura semelhante à um
humano, porém completamente feito por folhas, como se uma pessoa de um
pouco mais de dois metros tivesse sido enraizada.
Jake arregalou os olhos para a criatura, guardou o fruto dentro de sua
blusa e puxou a espada. Também saquei a minha e ficamos parados em
posição de ataque, a criatura ficou estática feito uma estátua.
Minhas pernas tremiam e o coração batia tão forte que senti a
pulsação no pescoço. Soltei o ar devagar e ao dar um passo para trás para
recuar, o monstro começou a correr na minha direção.
Paralisei de medo.
Ele estendeu a palma da mão enorme para me pegar, quando fui
puxado por Jake, ele me pôs atrás de si e golpeou o homem de cipó. A
criatura gritou.
A espadada não foi o suficiente para contê-lo. Suas fibras se
refizeram e ele correu em nossa direção. Saquei a arma que estava em
minha cintura e com as mãos trêmulas e olhos fechados puxei o gatilho.
Não deu certo.
Jake tomou a pistola de mim e a destravou. Tirou da cintura um
pequeno vidro com líquido castanho e o jogou na direção da criatura,
acertando a bala nele. O vidro se rompeu num estouro.
O homem de cipó começou a ficar em chamas então o pirata segurou
em minha mão e me puxou para corrermos juntos. Sentia o fôlego faltar à
medida que minhas pernas formigavam durante a fuga.
Os tremores dos sons dos passos da criatura nos seguiam, ao olhar
rapidamente para trás, notei como o fogo se apagou e com as folhas
acinzentadas em seu peito, permaneceu firme em sua perseguição.
— Esse merda não vai nos deixar fugir, precisamos atrasá-lo — Jake
falou.
Aos poucos o sol se despedia e parte da ilha ia junto. A praia estava
cada vez mais próxima.
Fendas no solo se abriram e tínhamos que saltar por elas para não cair
no abismo. Ao ver os cipós tentarem baterem contra nossos corpos e os
buracos no chão, surgiu uma ideia.
— Vamos estender um dos cipós para tentar fazê-lo cair! — gritei,
ofegante.
Aquilo poderia dar muito errado, mas não tínhamos escolha. Qualquer
risco deveria ser tomado. Jake assentiu e se afastou para perto de onde
havia a ponta de um cipó ao chão, peguei na outra.
A criatura estava mais próxima.
— No três paramos de correr e estendemos o cipó! — falou.
Avistei uma fenda ainda maior à frente, era ali. Seria nossa única
chance.
— Um! — ele disse.
— Dois! — contei.
— Três!
Paramos a fuga e nos afastamos rapidamente, estirando o cipó. A
criatura rompeu a folhagem devido à velocidade, tropeçou e um de seus pés
afundou no vão.
Retornamos a correr e pulamos a brecha no solo. O homem de folhas
gritou e tentou se erguer, mas era tarde demais, a parte da ilha onde ele
estava se esvaiu.
Jake e eu nos esforçamos para empurrar o bote até o mar e subimos
rapidamente, foi por uma fração de segundos que não ficamos presos ali.
Bastou pegarmos nos remos para que a ilha sumisse.
Somente quando olhei para o enorme vazio à minha frente que pude
respirar e um sorriso apareceu meu rosto.
Meu capitão largou o remo e me puxou para perto, abraçou-me
firmemente.
— Conseguimos — ele disse. — Conseguimos!
— Sim — falei, aliviado.
Quando o barquinho se aproximou do navio, enxerguei toda a
tripulação apoiada na borda, curiosos, e com os olhares transmitindo
expectativa. Ao verem nós dois, comemoraram e Jake exibiu a fruta.
Os cantos dos meus lábios se ergueram.
A partir dali uma faísca de esperança tomou meu peito, senti que seria
capaz de sair vivo da jornada e sim, recuperaria meu reino.
Alguns dias se passaram e durante todo esse tempo, mantive meus
treinamentos com a bruxa-pirata. Precisava saber dominar bem meus
poderes para garantir que saíssemos ilesos, ou quase isso, do mar de
monstros. Aquele era o maior desafio da viagem.
Não sabia se era por estar chegando num nível cada vez mais alto nos
treinamentos, ou pela má alimentação, mas sentia-me fraco ao canalizar a
energia, cansava-me facilmente.
Depois de mais um dia de treino exaustivo e após almoço de porção
minúscula, fiquei descansando na cabine, deitado de lado sobre o colchão
com os olhos fechados.
Como queria ter mais habilidades além da proteção.
Desejava poder erguer o navio do mar, seria muito mais fácil se
voássemos, feito pássaros no céu.
Quando ouvi a porta se abrir, ergui as pálpebras e olhei em direção à
entrada. O pirata expressou um sorriso torto.
— Está cada dia mais habilidoso — disse ele, encostando no batente.
— E mais cansado também... — Sorri sutilmente. Coloquei as mãos
debaixo da cabeça, para fazer apoio, ainda deitado na mesma posição.
Jake se aproximou da cama, então dei espaço para que ele se sentasse
ao meu lado. Acariciou meus cabelos.
— Você já está em um nível muito bom. Não precisa ir além dos seus
limites, se poupe para o necessário agora.
Sorri com seu carinho e cuidado comigo.
— Tudo bem, capitão. Não se preocupe.
Ergui as costas do colchão para que pudesse encará-lo de igual para
igual e aproximei meu rosto dele. Jake veio ao meu encontro, apoiando a
mão sobre minha nuca para selar nossos lábios.
Seus toques, com os dedos gentilmente percorrendo pela minha
cintura aos poucos invadiram minha vestimenta, mudando o rumo daquele
beijo. Eu queria o mesmo que ele naquele momento, mas não poderíamos,
estávamos próximos demais do perigo.
Recolhi a boca.
— Jake...
— É, eu sei. — Suspirou. — Não temos tempo.
— Estamos a que distância do mar de monstros?
— Poucas horas. Se sente pronto para isso ou acha melhor
ancorarmos?
— Queria dormir, mas não desejo perder tempo. Na verdade, não
podemos perder tempo. — Olhei para a fruta cor de sangue que estava
sobre a bancada. — Não sei qual o período que ela levará até começar a
apodrecer. Se secar ou estragar, toda a viagem terá sido em vão.
— Tem certeza disso?
Encarei-o, convicto.
— Sim. Se eu não tivesse a habilidade, teríamos que passar pelos
monstros de qualquer forma, não é? — Franzi as sobrancelhas. — Darei
meu melhor, capitão.
O pirata sorriu e levou a mão à lateral do meu rosto, acariciando-o.
— Eu acredito que sim, alteza. — Afastou-se, saindo da cama.
— Conseguiremos passar, seja com barreiras ou não — disse, ao vê-
lo caminhar pela cabine.
Jake abriu uma gaveta e tirou de lá uma pistola. Enquanto
inspecionava se havia munição, falava.
— Queria muito poder te dar certeza em relação a essa etapa da nossa
rota, mas confesso que não sei o que nos espera. — Colocou a arma na
cintura. — Ao menos quero que você fique bem.
— Ficaremos.
Ele sorriu antes de deixar a cabine.
Voltei a descansar, queria reservar as minhas energias para o que quer
que aparecesse em nosso caminho. Se pudesse vencer o que parecia ser
impossível, estaria pronto para cravar uma lâmina no coração de James com
as minhas próprias mãos.
Fechei os olhos para dormir. O balançar suave que o navio fazia
devido às ondas, me relaxava e tornou meu sono mais fácil.
Despertei com alguns socos dados na porta da cabine, e a voz de um
marujo.
— Príncipe! Estamos a dez minutos do mar de monstros!
Aquele era o momento.
Ergui-me da cama, guardei a fruta no bolso do casaco, para ficar mais
segura e, por fim, coloquei a espada presa ao apoio da cintura. Inspirei
profundamente e soltei o ar devagar, tentando acalmar meu coração.
Confesso que apesar de tentar transmitir confiança para Jake, estava com
medo, mas não poderia deixar que esse sentimento me dominasse.
Caminhei em passos largos até a porta da cabine e a abri. Arregalei os
olhos ao notar o céu nebuloso e escuro, mesmo que ainda fosse dia. A água
se derramava em gotas pesadas vindas de nuvens carregadas.
Como se não bastasse a chuva forte, a ventania agitava o mar, fazendo
com que o navio balançasse cada vez mais. Definitivamente, esse clima
caótico nos indicava que estávamos no lugar certo.
Tranquei a porta da cabine e desci as escadas para ir ao encontro do
capitão, que permanecia em posição de ataque junto aos seus homens.
O mapa mostrava que o mar de monstros era curto, uma distância
muito pequena entre a área perigosa e as águas calmas. Somente naquele
ponto que o mar era mais escuro, com criaturas desconhecidas que fugiam
de luz.
— Fique atento, Lawrence — falou Jake, sem retirar os olhos das
águas.
— Estou, capitão — respondi, concentrando-me.
Demorou um tempo até que víssemos uma cauda gigante repleta de
espinhos brilhantes passar pelo mar, numa distância segura do navio.
Um frio me percorreu a vértebra. Se a cauda era daquele tamanho,
não poderia imaginar a criatura, que provavelmente engoliria o navio numa
abocanhada só.
É pouco tempo e distância, Lawrence, é pouco tempo e distância, é
pouco tempo... repeti a frase em meus pensamentos até que eu mesmo
acreditasse naquilo.
O navio começou a chacoalhar, como se algo passasse por debaixo
dele bruscamente. Minhas pernas tremeram.
— Droga... nós fomos notados! — gritou Arya, a bruxa, do alto da
direção do navio. — Preparem-se!
— Notados? — perguntei. — Por quem?!
— Provavelmente pelo Kraken. — Ela respondeu.
Ouvi um arrastar vindo dos cantos do navio, eram tentáculos
gigantescos que começavam a invadir a embarcação. Arregalei os olhos e
enruguei o nariz.
Minha respiração se encurtou, o coração batia no pescoço.
Jake me encarou de canto e ergueu a mão aberta.
— Segurem! Quando metade invadir, atacaremos! — Direcionou a
atenção para mim. — Lawrence, quando a criatura recuar os tentáculos, crie
a barreira sobre o navio. Ele irá contra-atacar.
— Tudo bem. — Assenti e aguardei, atentamente, notando aquele ser
nojento tomar parte da embarcação.
— Mais um pouco, pessoal... mais um pouco — falou o capitão.
Assim que os tentáculos chegaram perto da tripulação, ele fechou a mão e
gritou: — Atacar!
Em sequência, os marujos desferiram um golpe único no monstro, em
cada parte dos seus tentáculos, levando uma substância preta a jorrar da
pele do polvo, sujando-os.
Deu certo. O bicho afastou os membros da embarcação e sentimos
seus sons de agonia pelo tremor vindo das águas.
Posicionei-me, erguendo as mãos frente ao corpo e fechei os olhos,
mentalizando o campo de bloqueio a fim de expandi-lo para todo o navio.
— Mais, Lawrence! — gritou Jake. — Mais!
Apesar de não enxergar, ouvi o som de algo emergir, era tudo ou
nada.
O barulho foi seguido pelo impacto, tão forte que pude sentir como se
fosse em mim. Ao erguer as pálpebras, a barreira estava ao redor do navio e
do lado de fora os tentáculos, batendo contra ela.
Olhei de canto para o capitão que encarava a proteção com um sorriso
orgulhoso no rosto, seus olhos foram ao encontro dos meus.
— Eu consegui... — falei.
— Sim!
Voltei a me concentrar no campo de bloqueio, porém, parecia que
quanto mais os tentáculos iam contra a barreira, com mais força eles
voltavam a bater. Comecei a enxergar meu bloqueio como se estivesse
rachando a cada golpe do monstro.
— J-Jake... — Era como se minha energia estivesse sendo consumida
e mesmo que me esforçasse, o tempo não parecia passar e o monstro não
queria desistir. Senti algo escorrer pelo meu nariz. — Eu não sei mais por
quanto tempo aguentarei... desculpe...
Ele expressou preocupação e veio até mim, passando o dedo por
debaixo do meu nariz, limpando-o... era sangue.
— Você fez o seu melhor. — Voltou-se para a criatura, com a espada
em mãos.
Mais um golpe foi dado contra a barreira, que, aos poucos, se reduzia.
E outro, até que ela se rompeu e o último veio com força, bem no
meio do navio, fazendo-o se curvar, quase partindo-o.
Todos caíram com o impacto. Os piratas se levantaram rapidamente e
correram para atacar os tentáculos, mas era em vão, a criatura não desistia,
vinha mais e mais, cercando-nos.
Eu mal me aguentava de pé, a visão se embaçou. Senti-me fraco. Um
inútil.
Aos poucos, o navio estava todo tomado e logo vimos a face da
morte. O monstro das escleras pretas saiu das águas.
— Abandonar o navio! — gritou a mulher, mas ninguém se moveu,
todos estavam estáticos, encarando a fera.
O monstro se inclinou, como se estivesse deitando sobre as águas e,
então, pudemos ver o redemoinho de dentes que engoliria o navio.
— Abandonar o navio! — confirmou Jake.
A correria começou, com os homens pegando o que podiam e se
atirando ao mar. Menos eu. Minhas pernas travaram, não conseguia sair do
lugar.
— Não — murmurei.
— Vem, Lawrence, vem logo! — ele insistia, puxando-me pelo braço.
Eu aprendi a nadar há pouco tempo, seria insanidade me jogar em
alto-mar, principalmente cheio de monstros. Aceitei que morreria de
qualquer forma.
— Não.
— O quê?! — Ele me encarou como se tivesse ouvido um absurdo.
— Jake! Lawrence! Saiam do navio! — gritou a bruxa, antes de se
atirar ao mar.
O monstro direcionou um dos tentáculos para mim, ele certamente me
pegaria, mas recuou assim que o estouro da pólvora foi contra sua pele. O
pirata atirou na criatura.
Sem aviso prévio, Jake me segurou pela cintura e me ergueu do chão.
— Não, não, não! — Debati-me, enquanto o usurpador me carregava
até a borda do navio.
Antes que ele pudesse me atirar ao mar, a embarcação foi destruída
em um golpe só, levando-nos a sermos arremessados contra a água com a
força do impacto.
A última coisa que vi, foi meu corpo chocando-se contra as ondas, e o
que senti era meu pulmão ser tomado pelo ardor do sal e a sensação
sufocante do afogamento. Em seguida tudo ficou escuro.
Despertei, com a água sendo puxada para fora de mim. Sentei-me
com o corpo úmido e tossi, puxando o ar fortemente depois de expelir tudo
que havia em meu peito.
Apesar de estar de olhos abertos, pouco conseguia enxergar, era muita
luz. O lugar era claro demais e minha visão estava embaçada. Aos poucos,
tornou-se mais nítida e, então, vi a silhueta de quem estava na minha frente.
— Foi por pouco — disse aquela voz tão conhecida por mim.
— Jake?
— Você perdeu a cabeça?!
Levei as mãos aos olhos, esfregando-os, e assim que consegui
enxergar melhor, observei em volta. O céu era límpido, deixando que a luz
do sol nos iluminasse diretamente, não havia nuvens, apenas alguns
pássaros rodeando a ilhota onde estávamos.
Paramos numa praia. Havia algumas árvores, o mar de maré mansa e
um pouco distante de nós, os outros tripulantes. Alguns sentados,
desolados, chorando, outros esfregando madeira para uma fogueira... e a
bruxa pirata, jogando pontos de luz para o alto com suas especiarias, talvez
estivesse tentando sinalizar por ajuda.
— O navio... — Senti um nó se formar em minha garganta. — Foi
tudo culpa minha, perdão, Jake...não consegui dessa vez.
Ele me abraçou.
— Príncipe burro, eu achei que iria te perder e você preocupado com
o navio.
— Desculpe.
— Tentou seu melhor, Lawrence. Eles sabiam dos riscos que
corríamos. — Ergueu-se, colocando as mãos na cintura e olhou em volta. —
Vamos dar um jeito de sair daqui, conseguir seu reino... — encarou-me —,
e me dará um novo navio.
— Sim, e... — naquele momento, lembrei-me do item mais
importante da jornada —, a fruta! — Apalpei os bolsos, não poderia ter
perdido. Ao sentir o relevo sob o sobretudo, soltei o ar aliviado. Ainda
havia esperança. — Sem dúvidas, capitão, lhe entregarei um dos melhores
da frota.
Jake sorriu de canto e estendeu a mão para que me ajudasse a
levantar.
— Vem, vamos deixar essa ilha.
— Como? — perguntei, enquanto caminhávamos pela areia para
perto dos outros tripulantes. Estreitei o olhar devido à claridade. — Não
temos mais nada.
— Já disse, daremos um jeito — respondeu, como se tivesse uma
ideia em mente.
E ele realmente tinha, apesar de não tão boa assim. Levaria dias para
que Jake e os outros piratas conseguissem coletar madeira e cipó suficientes
para criar uma plataforma onde pudéssemos navegar até a cidade mais
próxima.
Perdi as esperanças novamente. Recuperar meu reino pareceu
somente uma utopia.
Fiquei sentado na areia olhando para o horizonte, refletindo como
faria para pegar algo para comermos. Tudo que conseguia pensar era que
até sairmos de lá, estaríamos a ponto de alucinar de fome e, talvez, matar
uns aos outros.
Arya cansou de enviar sinais de luz e me acompanhou, ficando ao
meu lado.
— Não vai ajudar os outros homens, príncipe? — ela questionou,
apoiando a cabeça sobre os joelhos.
— Não — respondi, dando de ombros sem justificativas.
A bruxa-pirata riu e balançou a cabeça em negação, voltando a olhar
para o horizonte. Acreditei que ela brigaria comigo sobre a destruição do
navio. Porém, a mulher nada disse, manteve-se em silêncio ao meu lado.
Depois de muito tempo, começamos a ver algo no mar, ainda que
distante. Era apenas um pontinho preto, que conforme se aproximava,
tomou a forma de um navio.
— Tô alucinando ou você também está vendo aquilo? — Arya
questionou.
— Um...um navio? Um navio! — Levantei-me e olhei para a mulher
sentada. — Vou chamar os outros para ter mais gente pedindo ajuda, assim
conseguiremos atenção.
— Você é tão ingênuo, príncipe. — Ela se ergueu e abriu alguns
botões de sua blusa, deixando um farto decote à mostra. Retirou o chapéu
da cabeça e ficou a balançá-lo no ar. — Nunca que um navio pararia para
um bando de piratas, mas para uma moça e um rapaz de rostinho bonito,
talvez.
— Mas... e os outros? — questionei, ao ver a embarcação se
aproximar.
— Avise a eles para se esconderem na mata, que estaremos na linha
de frente para pedir ajuda. Quando o navio ancorar e os botes chegarem na
areia, eles atacarão.
Concordei, parecia ser um bom plano.
Aproximei-me da tripulação para contar sobre o que faríamos, eles
concordaram de imediato. Seria muito mais fácil roubar um navio do que
construir algo.
Os homens se esconderam atrás de moitas e árvores, e eu voltei até
onde a mulher estava, assim poderia assumir a mesma posição. Não usaria
um decote, sequer tinha, então apenas um sorriso e aceno com a mão
parecia ser convincente.
Quando o navio estava perto, arregalei os olhos ao notar a bandeira e
coloração das roupas dos homens ali.
— Arya...
— Droga, droga — ela resmungou, entredentes, ainda tentando
manter o sorriso no rosto. Não tinha mais volta.
Melhor seria se fosse um navio mercante ou com outros piratas, mas
não, era um navio de guerra, da marinha de uma nação, e nós éramos
criminosos. No entanto, apesar de não me recordar exatamente, senti que
conhecia aquela bandeira.
Na hora me lembrei de onde, já recebi uma carta com um brasão
semelhante.
— Possey — murmurei.
O navio ancorou e os homens desceram em seus botes e começaram a
remar para a ilha, com perucas brancas e roupas pretas com detalhes
dourados.
— Senhores! — a mulher falou alto, acenando.
Bastou que os barcos tocassem a areia para que os piratas saíssem de
trás das árvores, correndo com as espadas em mãos, mas pararam na metade
do caminho quando tiveram os mosquetes apontados para seus rostos,
inclusive Jake, que estava sob a mira de três homens.
— Olhem, senhores! Tivemos sorte! — falou o que parecia ser o
oficial, sua peruca branca estava sob o chapéu. — Viemos resgatar a
donzela, mas acabamos por capturar o grupo de bandidos mais procurado
pelos sete mares. O bando do lendário usurpador.
Eu estava tão diferente que Victor não me reconheceu. Estreitei o
olhar para aquele homem de barba rala e escura, com poucos fios ruivos,
olhos pequenos em tons de cinza, mandíbula perfeitamente marcada... com
uma pequena cicatriz no queixo.
— Victor? — disse, dando um passo à frente, fazendo com que as
armas fossem apontadas para mim.
O oficial arregalou os olhos e estampou um sorriso sutil no rosto,
seguido por um franzir de sobrancelhas em confusão.
— Lawrence?
— Victor, você...
— Meu Deus... — Ele veio até mim, retirando o chapéu e a peruca,
exibindo seus longos cabelos pretos. — Parem de apontar para o príncipe!
— ordenou, fazendo com que os marinheiros desviassem suas miras. —
Alteza, o que aconteceu? Soube da invasão à Marnsala. Achei que... que
estivesse morto!
— Tenho muitas coisas para contar, mas no momento preciso de sua
ajuda.
Ele se ajoelhou à minha frente e pegou minha mão, dando um beijo.
Encarou-me.
— Estou ao seu dispor, alteza.
— Quem é esse homem? — sussurrou Jake, durante nossa subida a
bordo do navio militar de Acucci, reino vizinho e aliado de Marnsala, que
tinha poucos recursos, mas um excelente poder bélico.
Os olhos bem demarcados do pirata estreitaram-se para o oficial, onde
o rosto fazia muito esforço para não se contrair numa careta.
— Ele é Victor Possey, primeiro filho do rei e rainha de Acucci.
Preferiu passar a sucessão direta da coroa para o irmão, porque escolheu
levar a vida de um militar. O campo de batalha é seu lugar — respondi, com
as mãos para trás andando ao lado dele pelo convés.
O homem de cabelos negros nos guiava, mostrando os
compartimentos de sua enorme embarcação.
— Ah, sim. Então se conheceram através de acordos comerciais?
— Por que isso o interessa? — Arqueei a sobrancelha, eram
perguntas demais.
Jake deu de ombros, expressando indiferença.
— Por nada, apenas queria saber, devido à intimidade que ele
expressou ao vê-lo.
— Nossos reinos tem um tratado comercial, somos aliados. De vez
em quando os Possey visitavam Marnsala, principalmente Victor, que
aproveitava as paradas de suas expedições no castelo. — Sorri
discretamente, relembrando-me dos tempos tranquilos em que o príncipe e
sua família apareciam por lá, sempre trazendo presentes.
Após apresentar todos os cantos relevantes do navio, os militares
ofereceram comida e roupas secas para os piratas que olhavam
deslumbrados para a estrutura. A marinha de Acucci era muito bem
equipada.
Victor se virou para nós dois e deu um sorriso largo.
— Príncipe, posso lhe emprestar as minhas roupas ao invés de
uniforme, se quiser. Creio que esteja desconfortável com estas vestes
úmidas. Além disso, há uma cabine grande onde pode descansar lá
embaixo, ou caso queira se sentir mais seguro, ofereço a minha.
Jake cruzou os braços.
— E iria protegê-lo de que, oficial? — O pirata se recusou a chamar o
outro comandante de capitão, ainda que estivesse em seu navio. — Dos
piratas com quem ele estava há meses?
Possey arregalou os olhos brevemente, seguido por um erguer do
canto dos lábios.
— Protegê-lo do que for necessário.
— Deixe que eu o farei.
O oficial aproximou as pálpebras, estava estampado em sua face
como se sentiu desafiado por Jake. Primeiro, por não o chamar de capitão.
Segundo, por rebater qualquer proposta educada feita por ele. Antes que os
dois entrassem em conflito, precisei intervir.
— Aceito as roupas, capitão Victor — respondi, encarando o nobre.
— E sobre a estadia em sua cabine, obrigado pela oferta, mas recuso. Não
sou mais um príncipe indefeso. Aprendi a lutar.
Possey exibiu uma larga fileira de dentes, orgulhoso.
— Seus pais irão gostar de saber disso.
— M-meus pais? — Arregalei os olhos. — O que tem meus pais? Por
que não falou antes sobre eles? — Dei passos à frente, aproximando-me do
oficial, e Jake veio junto.
— Sim. Eles estão em meu reino, protegidos. James não conseguiu
tomar por conta do bloqueio da marinha. Marnsala têm nosso abrigo e apoio
para guerrear contra o invasor de suas terras, alteza.
— Ajuda esta que não adiantará de muita coisa se não for por isso
aqui — falei, retirando do bolso a fruta rubra.
O nobre contraiu o rosto, encarando o que eu segurava.
— Uma pitaia? — Voltou seus olhos para mim.
— Não é uma pitaia, é uma fruta mágica. Somente o néctar dela é
capaz de acabar com James, feito um veneno. Aquele homem e seu exército
não são mortais, são amaldiçoados! Não sei se todos, mas a maioria sim —
Ao dizer isso, Victor prendeu o lábio inferior entre os dentes, esperei ouvir
uma gargalhada de sua parte, mas ele permaneceu atento às minhas
palavras. — Eu vi, de perto, suas habilidades, como independentemente de
quantos golpes em suas vísceras ou coração tomassem, não morriam.
Ele levou a mão à barba, coçando-a.
— Interessante. — Enrugou a testa. — Não imagino as terríveis
coisas que deve ter passado até então. É um sobrevivente, príncipe!
Jake permanecia em silêncio ao meu lado, alternando seu olhar entre
mim e o outro.
— Sim. Como disse antes, tenho muitas coisas para contar. E nada
disso teria sido possível se não fosse pela ajuda dele. — Inclinei a cabeça
para o pirata.
— Quem diria que o usurpador seria um bom homem! — O oficial
deu um tapinha nas costas de Jake, que respondeu com um sorriso
descaradamente falso. — Temos muito o que conversar depois, alteza.
Quero saber mais sobre a fruta e a maldição. Por ora, irei pegar as roupas
para você. Vocês. Aproveitem a estadia.
Retirou-se, gritando com os seus subordinados.
O pirata bufou e revirou os olhos. Não sabia o que se passava em sua
mente, mas imaginava que uma coisa era certa: ele não gostou de Victor
Possey.
E afirmou o que eu pensava.
— Tsc, que babaca — murmurou, talvez não fosse para que eu
ouvisse.
— Vamos para a nossa cabine? — perguntei.
Em qualquer lugar que fosse ficar naquele navio, seria com Jake. Não
que eu não confiasse nos militares de Acucci, e sim que havia me
acostumado a dormir nos braços dele, portanto, queria aproveitar cada
segundo que ainda restava junto a sua presença.
O pirata apoiou a mão nas minhas costas e seguimos para nossa
estadia.
O espaço não era tão grande, muito menos bem decorado e
aconchegante quanto uma cabine de capitão, era... descansável. Havia uma
mesinha com duas gavetas ao lado da cama de casal, que mais parecia de
solteiro, e pouca iluminação com somente uma lamparina que balançava em
seu gancho preso no canto da parede.
Nós dois permanecemos ali conhecendo o quarto, até que Victor nos
trouxesse roupas novas. Ele também avisou que iria reunir toda a tripulação
à noite para comemorarmos que eu estava vivo e contar tudo que sabia.
Aproveitei para me deitar e descansar, sentia meus pés inchados e
doloridos. Jake ficou sentado na beira da cama, amolando uma faquinha que
tinha guardada em seu traje.
— Por que está afiando essa lâmina? — perguntei.
— Para cravar no pescoço de alguém se for preciso. — Olhou para
mim sobre o ombro e sorriu exibiu um sorriso torto.
— Jake... isso é sobre o Victor?
Ele voltou seu olhar para a lâmina.
— Talvez seja.
Suspirei e dei duas batidas sobre a cama.
— Venha aqui. — Prendi o lábio entre os dentes. Assim que o pirata
se sentou ao meu lado, dei-lhe um beijo e segurei seu rosto com ambas as
mãos, encarei-o profundamente. — Não faça besteiras.
— Não se preocupe com isso. — Afirmou para mim com um arquear
de sobrancelha e me beijou de volta. Guardou a faca em seu cinto e deitou-
se sobre meu colo para que eu acariciasse seus cabelos.
À noite nos arrumamos e subimos para o convés barulhento. O céu
estava sem nuvens e repleto de estrelas, mar calmo, com brisa suave e
salgada. Haviam alguns tripulantes sentados sobre barris e outros de pé com
suas bebidas.
A iluminação era baixa, sendo provida apenas pelas lamparinas presas
à extensão da parede e à luz da lua.
Jake olhava as próprias vestes, estranhava em estar arrumado feito um
oficial, um marinheiro, e sem chapéu. Aquele uniforme preto com dourado
não combinava com sua alma livre.
Mas ficava muito bonito nele.
Possey desceu a escadaria de sua cabine, trazendo duas garrafas nas
mãos para nos oferecer.
— Um brinde! — falou, estendendo a bebida.
Sem pensar muito, Jake agarrou a garrafa, brindou e deu três goles.
— Hum... é rum! E dos melhores.
Ri.
— Você bebeu primeiro para saber o que era depois?
Não sei por que me surpreendi com aquele comportamento vindo de
um pirata.
— Eu o entendo. É o que nos mantém bem para aturar tanto tempo no
mar. — Victor deu uma piscadela para Jake e direcionou a garrafa para
mim.
Pensei em dar uma golada, apenas para socializar, mas odiava o gosto
do rum.
— Não estou bebendo, obrigado.
— Uma pena. Este está docinho. — O oficial deu de ombros e virou
metade da garrafa. — Venham, vamos nos aproximar dos outros para que
você, Lawrence, conte mais sobre a fruta e James.
— E por acaso alguém lembrará amanhã do que for dito hoje?
— Se não lembrarem, ao menos terá sido um bom entretenimento —
Victor respondeu, tomando à frente para nos guiar para o meio do alvoroço.
Preferi ignorar e não falar sobre nada naquela noite. Seria em vão,
aqueles bêbados não absorveriam uma palavra que fosse dita por mim.
Não importava se fossem nobres, plebeus ou bandidos, embriagados
se comportavam de maneira semelhante: falavam alto, gargalhavam à toa e
dançavam ao som de canções cantadas por outros bebuns.
Jake se soltou e se desprendeu do meu lado quando seu odor de rum
ficou mais forte. Ele foi para perto da bruxa-pirata e começaram a rir e
conversar. Permaneci sozinho e isolado, não física, mas mentalmente de
todos.
Era muita informação para absorver em pouco tempo. Meu corpo
vibrava ao pensar em rever minha família, além de deixar meu pai
orgulhoso ao mostrar o que carregava comigo, o elemento principal para
que tomássemos de volta o que era nosso. Aquela fruta que tanto fui atrás.
Fantasiei o que aconteceria caso ganhasse a batalha contra James.
Perderia a reputação de príncipe gato. De inútil. Teria um reinado glorioso e
celebrado como salvador de Marnsala, seria mencionado em cantigas por
séculos.
Aquele pensamento me deu forças para me manter focado no
objetivo.
Quando saí de meu devaneio, tentei me aproximar dos outros
tripulantes, contudo, não fui incluído nos assuntos, sequer recebi atenção, e
Jake estava entretido demais com sua garrafa de rum.
Comecei a me sentir sozinho e deslocado, acreditei que os piratas não
queriam conversar comigo depois do que aconteceu no mar de monstros.
Em silêncio, deixei o convés para voltar à cabine.
Mal me sentei na cama, ouvi algumas batidas à porta. Levantei e era
Victor com uma tigela de damascos.
— Ainda é a sua fruta favorita?
Sorri, fazendo com a cabeça para que ele entrasse e peguei a tigela.
— Obrigado, Victor. — Levei uma à boca. — Era a favorita. Depois
da viagem descobri uma fruta nova com gominhos que tomou o lugar dos
damascos.
— Trouxe sua segunda fruta favorita então. — Sentou-se na cama. —
Por que não está lá em cima com os outros?
Suspirei e sentei ao lado dele.
— Não gosto daquela bebida e estou tenso demais pensando na
batalha contra James. Mas agradeço por lembrar de mim.
Possey apoiou a mão nas minhas costas, acariciando-a, como forma
de consolo.
— Entendo, imagino como deva estar se sentindo. Tome seu tempo.
Qualquer coisa que precisar é só pedir.
De repente, a porta se abriu e Jake apareceu. Ele encostou na lateral
da entrada, segurando nas mãos um copo com água e um pedaço de pão
recheado. Seus olhos marcados se fixaram em Victor, que afastou a mão de
mim de imediato.
— O que faz na minha cabine, capitão? — perguntou, em tom áspero
e agressivo.
— Vim trazer algo para Lawrence comer. — Ergueu-se da cama. —
Já estou de saída. Boa noite, senhores. — Passou por Jake, e ameaçou dar
um tapinha em seu ombro, mas o olhar do pirata estava tão cortante, que ele
repensou e recolheu os dedos antes de encostar nele.
Quando a porta se fechou, achei graça da situação e deixei escapar
uma risada.
— O que é engraçado? — perguntou, chegando mais perto.
— Que você não dispõe de esforços para esconder o ciúme de Victor.
— Deixei a tigela vazia sobre a cômoda ao lado da cama. — Somos amigos
de longa data, apenas.
— Não é ciúme. — Colocou o pedaço de pão dentro da tigela e me
entregou a água. — Eu só não confio nele.
Virei o copo e o apoiei na mesinha ao lado.
— Acredito. — Estreitei os olhos.
Ele esboçou um sorriso pequeno e cruzou os braços.
— Tudo bem, pode ser que eu esteja com um pouco de ciúme.
— O que não é necessário. Victor Possey é como um parente pra
mim. Além disso, ele é um libertino, toma diversas amantes por onde passa.
Jake chegou mais perto de mim e segurou firme meu rosto, apertando
minhas bochechas.
— Espero que ele também te veja como você o enxerga. Apenas
como amigo. Porque você é meu.
— Sim, somente seu.
Fui agarrado pelos cabelos e tomado aos beijos por Jake. Seus lábios
iam ao encontro dos meus com voracidade, agressivo e ansioso, quase me
embriagando com seu sabor alcoólico. Sua boca só se afastou da minha
quando repousou sobre meu pescoço, sugando-o para marcá-lo.
Ele nunca tinha agido daquela forma, mas Victor ajudou a trazer um
lado do pirata que não havia presenciado, seu lado mais primitivo e
possessivo, que queria deixar claro que eu era dele. Mesmo que não
restassem dúvidas disso.
Nossos corpos estavam quentes naquela troca de beijos que me fazia
pulsar lá embaixo. Os dedos de Jake tremulavam, à medida que abriam os
botões das minhas vestes, como se estivesse se contendo para não rasgar.
Despiu-me por completo, jogando a roupa longe.
O capitão me deitou sobre nossa cama, tirou a peça de cima e me
encarou de pé. Confesso que ver aquele homem com uma expressão brava,
de peitoral suado à mostra e calças de oficial despertaram em mim
sensações indecentes.
— Vire-se — ordenou. — E erga o quadril.
Acatei, apoiando os joelhos no lençol e deslizei os braços até que meu
peito quase encostasse no colchão. Jake passou suas mãos por minha pele,
acariciando-me, senti seus dedos no meio das minhas costas, fazendo
pressão para baixo. Aquele movimento me levou a encostar o tronco na
cama e levantar o traseiro um pouco mais.
Ele afastou sua mão da minha coluna e voltou a tocar a minha pele,
mas, daquela vez, com a boca. Trilhou beijos e marcas por toda a extensão,
até chegar à minha entrada.
— J-Jake... — gaguejei, numa tentativa frustrante de repreendê-lo.
Era vergonhoso, nunca fui beijado ali, mas aquilo não impediu o pirata de
avançar.
Estremeci ao sentir o calor de sua língua em mim. Meus olhos se
reviraram. Pressionei o rosto contra a cama para abafar meus sons.
O capitão me umedecia com vontade, fazendo com que minhas pernas
tremulassem e todos os pelos do meu corpo se ouriçassem com a sensação.
Até que parou.
Ele salivou sobre os próprios dedos e os esfregou no meu traseiro.
Fechei os olhos, ansiando por aquilo.
Jake deslizou somente um dedo para dentro, arrancando-me um arfar de
prazer, logo foi seguido por mais um, preparando-me para recebê-lo.
O pirata, mesmo com suas emoções exaltadas, tinha cuidado para não
me ferir.
Interrompeu o ato, aproximando-se do meu ouvido.
— Fique de lado para mim, príncipe — sussurrou.
Deitei-me na posição desejada. Senti o calor dos seus lábios na minha
nuca, levando-me ao arrepio, suas mãos percorreram por meu corpo,
alisando a pele, até que os dedos úmidos voltaram a me penetrar.
Estremeci com o toque e tentei, com muita dificuldade, conter os
gemidos que o movimento de vai e vem induzia. Não podia ser ouvido
naquele navio.
Jake retirou seus dedos de mim para agarrar minha perna e erguê-la,
antes que me tomasse por completo.
Ele estava rígido e molhado. Entrou com cuidado e sem pressa.
Choraminguei ao senti-lo pulsando em mim, fazendo com que eu me
contraísse a cada centímetro penetrado. O pirata passou o outro braço por
debaixo do meu pescoço, assim sua mão poderia tampar minha boca,
contendo meus gemidos conforme ele aumentava seu ritmo.
Meu corpo estava fervendo de tanto prazer e ser calado ao ter meu
corpo tomado, levava-me a ficar ainda mais excitado.
De forma bruta, virou-me de bruços a fim de continuar com o
movimento que fazia nossa respiração falhar.
Prendi o lábio entre os dentes para não deixar que um gemido
escapasse. Empinei os quadris a fim de me tocar, intensificando as
sensações. Sentir seu peitoral roçando nas minhas costas, nossas peles se
esfregando, reduzia meus limites de autocontrole, estava quase lá.
Eu suava, o coração galopava e respirar tornava-se cada vez mais
difícil. Toda energia que tinha se foi quando cheguei ao ápice, derramando-
me entre meus dedos.
O pirata, no entanto, parecia estar insaciável. Continuou o movimento
que levava nossos quadris a se chocarem.
Jake deixou que um gemido baixo escapasse e se afastou antes de se
despejar em mim, fazendo com que seus jatos parassem sobre minhas
costas.
Caiu ao meu lado, ofegante e suado.
Encarei-o, ainda de bruços, sentindo meu traseiro arder e a sensação
prazerosa perambulando por meu corpo.
— Depois dessa, espero que sinta ciúme mais vezes — falei.
Ele riu e levou a mão aos meus cabelos, fazendo carinho.
— Bom que gostou. Eu fiquei com medo de te ferir por não ter um
óleo. Doeu?
— Ardeu um pouco, mas adorei o momento em que me beijou atrás.
É vergonhoso, porém, a sensação é boa.
— Farei mais vezes na próxima, alteza.
Sorri sutilmente.
— É... Jake. Eu queria saber se, na próxima, ou em algum momento,
posso tomá-lo.
— Entrar em mim? — Arqueou a sobrancelha.
— Sim.
Ele virou de barriga para cima e colocou os braços atrás da cabeça.
Seu olhar se fixou no teto, pensativo.
— Eu nunca fui tomado antes... mas podemos tentar. — Encarou-me.
— Se você gostar e eu também, a gente pode alternar.
Não consegui conter o sorriso. Arregalei os olhos.
— Jura?
Jake afirmou com a cabeça e se aproximou de mim para beijar o topo
dos meus cabelos. Puxei-o para perto a fim de abraça-lo e assim
adormecemos.
Na manhã seguinte, depois que nos limpamos, fomos para a fila do
café da manhã que era servido no convés. As refeições das manhãs
pareciam ser as mesmas em todos os navios, sem graça e sem gosto.
Eu comia o creme de aveia, encarando de longe Victor, que estava
apoiado na beira da embarcação, observando o mar.
Desejava intensamente que ninguém daquela tripulação tivesse
escutado o que eu e o pirata fizemos na cabine. Em especial Possey.
Desviei o olhar quando ele se virou na minha direção, entretanto, Jake
fez questão de encará-lo.
O oficial se aproximou, com as mãos dentro dos bolsos de seu
sobretudo, e abriu um sorriso largo.
— Bom dia, príncipe. Dormiu bem?
Ergui a cabeça para olhá-lo e assenti. Percebi que ele fixou suas íris
no meu pescoço.
Meu Deus.
Levei a mão à pele para tentar esconder a marca deixada pelo pirata,
porém, era tarde demais.
— Ele dormiu bem. A cama é pequena, mas agarradinho dá pra se
aconchegar — Jake respondeu, seguido por um gole em sua água.
— Imagino que sim. Se Lawrence quiser algo maior, sabe que tem
minha cabine — Victor retrucou, fazendo o pirata bufar pela ambiguidade
em sua frase.
— Qual é a distância até Acucci? — perguntei para o oficial,
mudando de assunto a fim de aliviar o clima.
— Era exatamente sobre isso que eu vim falar. Levante-se e veja,
príncipe. — Apontou para o horizonte.
Quando me ergui, arregalei os olhos e um sorriso apareceu em meu
rosto. De longe, era possível enxergar a marinha do reino de Victor posta à
frente, com suas bandeiras negras com dourado e o brasão de lobo
hasteadas, e atrás duas estátuas gigantes de guerreiros com espadas
apontadas para o céu que pareciam proteger o muro que havia posterior a
eles.
Acucci era um reino de exército poderoso. E meus pais estavam lá,
seguros. Meu coração quase pulava do peito ao pensar em revê-los depois
de meses.
— Estamos chegando! — gritei para Jake, com entusiasmo,
apontando na direção dos navios à frente.
Exército forte e aliança confiável, aquela guerra contra James estava
já com o final decretado.
Venceremos.
Durante o momento em que o navio de Victor ultrapassava a barreira
da marinha de Acucci, vi os tripulantes das outras embarcações prestando
continência para o seu líder. Jake permanecia de braços cruzados e olhar
estreito, sua desconfiança era grande a respeito das intenções de Possey.
Passamos pela grande muralha e, enfim, atracamos. Era ótimo ver
terra firme depois de tanto tempo no mar. Descemos do navio e caminhei ao
lado de Victor, que andava com as mãos para trás.
— Você sabe em que estadia meus pais estão abrigados? — perguntei.
Meu coração alterava o ritmo só de pensar em reencontrá-los. — Taberna?
Casa?
— Casa? — o oficial zombou. — Eles estão no meu castelo, alteza.
— Encarou-me. — São quase família.
Não consegui conter o sorriso para ele ao saber que o rei e a rainha
estavam bem e seguros.
Durante a caminhada em direção ao castelo, os militares de Victor
faziam uma barreira ao redor para conter o toque dos olhares curiosos que
pairavam sobre nós. A plebe fazia um burburinho com a nossa presença.
Jake andava atrás de mim ao lado de Arya. Todos os piratas estavam
em silêncio, fitando cada detalhe daquelas terras, provavelmente pensando
se valeria a pena roubar algo.
Enfim chegamos em frente à segunda barreira, a muralha do castelo.
Os grandes portões de madeira se abriram e um trompete foi tocado para
anunciar nossa chegada.
O caminho pelos jardins de estátuas até a entrada foi longo. Admirei
as rosas vermelhas que decoravam os arbustos e fiquei deslumbrado com as
borboletas amarelas que passavam de um lado para o outro.
De longe, vi na entrada do castelo duas figuras conhecidas.
— Pai? Mãe? — Arregalei os olhos e apressei os passos na direção
deles, a respiração se tornou curta devido à euforia que tomava-me o peito.
— Pai! — gritei, quase correndo.
O homem andou até a mim igualmente rápido. Quando estava mais
próximo, saltei para que pudesse cair em seus braços para um abraço forte e
acalorado, como sentia saudades.
— Filho querido, perdoe-me — repetia o rei, acariciando minhas
costas. Nós nos afastamos e ele segurou meu rosto com ambas as mãos. —
Disseram que você estava morto, achei que tivesse te perdido. Mil perdões.
— Está tudo bem, pai. — Coloquei a mão sobre a dele. — Estou bem
e salvarei nosso reino. — Sorri confiante.
A rainha arregalou os olhos para mim e esticou seus lábios com as
sobrancelhas franzidas.
— Oh, querido! Que surpresa... — falou minha mãe, caminhando até
a mim e me deu um abraço. — Pude sentir algo entre nós dois, ao me
afastar notei a protuberância em sua barriga.
— Terei um irmão? — questionei, encarando-a.
Ela timidamente assentiu com a cabeça. Forcei um sorriso, não queria
ter alguém para competir pelo trono.
— É uma ótima notícia, não? — disse meu pai.
— Sim... — respondi baixo.
Ele olhou através de mim e seu rosto se fechou. Furioso, apontou para
o pirata.
— Você! O que faz aqui?! — Rangeu os dentes. Nunca o vi tão fora
de si. — Fique longe do meu filho!
Jake gargalhou, aproximando-se do rei.
— Seu filho está vivo graças a mim. Se dependesse da própria família
teria virado puta de invasor. — Não mediu palavras. Foi tão frio e grosseiro
que me deixou constrangido com a realidade.
— E espera que eu acredite que foi genuíno? Conheço o seu tipo,
traidor, tem um preço — retrucou para o pirata que se calou.
Sim, Jake havia me salvado devido a um trato, tudo começou com seu
preço, mas o que tínhamos deixou de ser um mero contrato após nos
envolvermos. No entanto, meu pai não poderia saber daquilo.
Na verdade, ninguém de Marnsala poderia. Ou eu seria visto como
um homem doentio e pervertido pelo meu povo. Mesmo que soubesse que
não cometia crime algum, apenas nutria um amor incondicional por outro
homem.
— Senhores! — Victor interrompeu o clima. — Permitam-me
apresentar seus aposentos no castelo — falou, passando entre as pessoas
para nos guiar.
Deixamos os jardins para entrarmos naquela imensidão divina que era
o castelo de Acucci, com muito mais detalhes de ouro em seus monumentos
e belíssimas artes, pinturas angelicais no teto e quadros nas paredes.
O rei e a rainha daquele reino vieram me cumprimentar e desejaram
uma boa estadia. Quando perguntei sobre o irmão de Victor, informaram
que o príncipe herdeiro estava distante fechando tratos comerciais.
Os anfitriões foram gentis e disfarçaram bem o fato de que também
esperavam que eu estivesse morto.
A cada passo ali, eu ficava mais deslumbrado com a grandiosidade do
lugar. Jake, no entanto, não se impressionou, muito menos simpatizou com
as palavras dos nobres que nos receberam. Ele se mantinha calado e de
olhos estreitos, denunciando o quão desconfiado estava.
Victor indicou em que quarto cada um dos visitantes ficaria, fez
questão também de deixar que meu aposento fosse próximo ao dele, mas o
pirata ao meu lado não hesitou em afirmar que dormiria comigo naquele
mesmo lugar. O que nitidamente levantou em meu pai não só uma
sobrancelha, como também uma suspeita.
O quarto era enorme. Não foi feito para hóspedes comuns, nobres de
títulos pequenos ou empregados, mas sim para os do topo da hierarquia. Era
notório pelo tamanho do cômodo, móveis e decoração, que ostentava
detalhes feitos de ouro.
Caminhei pelo piso de madeira, cruzando o quarto até chegar onde
ficavam as cortinas. Afastei-as, a fim de deixar a luz do sol entrar e alcançar
a varanda. Do alto dava para ver não só os jardins coloridos do castelo,
como também a cidade e parte do oceano.
Inspirei calmamente e soltei o ar devagar, sentindo a brisa passar por
meus cabelos. Estava confiante de que finalmente aquela viagem teria seu
fim. Venceríamos a batalha e eu retornaria para o que me pertencia.
— Não achou estranho a forma que sua família reagiu à sua chegada?
— questionou Jake.
Virei-me para ele, que passava a mão pelo mármore da lareira.
— Não entendi, como assim?
— Não sei explicar, mas o rosto da rainha pareceu mais frustrado do
que feliz — Encarou-me.
Rosnei e dei dois passos à frente.
— Sei o que está sugerindo! Não ouse falar da minha família! — Bati
o pé.
Jake deu de ombros e ergueu as mãos em rendição.
— Se não quer ouvir agora, tudo bem. Mas se pensar direi...
— Shiu! — Ergui o dedo. — Gosto muito de você, Jake, portanto,
não me faça romper com esse sentimento tentando me colocar contra minha
família. Meus pais jamais fariam o próprio filho de oferta para um
desalmado.
O pirata arqueou e desceu a sobrancelha.
— Certo, alteza — a última palavra saiu em tom de zombaria.
Eu o amava, muito, mas não conseguia suportar aquelas suposições
em cima da minha família. Acreditei que Jake, certamente, desconfiava das
intenções do meu pai por conta de sua decepção com ele no passado.
Contudo, eu não poderia deixar que esse problema entre os dois me
afastasse nem de Jake, nem de meu pai.
Antes que pudéssemos começar uma discussão, ouvi o bater à porta.
Era a criada anunciando o almoço. Passei a frente e saí do cômodo primeiro
que o pirata, sendo seguido por ele pela escadaria até o salão principal.
Chegando lá, era visível em como apesar de nobres e plebeus estarem
na mesma mesa, ainda havia segregação. A tripulação do usurpador foi
posicionada numa ponta, enquanto meus pais e a monarquia de Acucci na
outra. Minha cadeira permanecia reservada ao lado de meu pai, já a de Jake
estava do outro lado do banquete, bem distante de mim.
Pensei que o pirata puxaria sua cadeira para perto da minha num ato
de rebeldia, mas não, ele apenas aceitou o lugar e sentou-se ali. E eu, ao
lado de meu pai.
— Você está magro e parece abatido — comentou ele. — Deve ter
passado por muitas dificuldades, não é?
Olhei-o de relance e cortei a carne de cordeiro, levando um pedaço à
boca para não responder. Neguei com a cabeça enquanto mastigava. Robert
deveria ter preocupações demais com o nosso reino, não queria acrescentar
mais uma, até porque o importante era que eu estava vivo. Ele não
precisava saber que passei fome, fui sequestrado e quase morri de doença
de marinheiro.
Mudei o rumo da conversa para algo que me interessava.
— Vocês não querem saber como descobri a forma de recuperarmos
Marnsala? — falei em alto e bom som.
— Nós iremos recuperar o reino com os aliados, estivemos
articulando isso o tempo todo, Lawrence — disse minha mãe. — Não é com
apenas um navio e meia dúzia de piratas que se vence uma batalha. — Sua
frase saiu naquele típico tom que ela usava para me reduzir, geralmente era
acompanhado das palavras como ‘’idiota’’ e ‘’inútil’’ no final.
Do outro lado da mesa senti os olhares flamejantes dos tripulantes do
Maldição do Rei.
— Não disse que a estratégia era tomar Marnsala com piratas. Na
verdade, o que estivemos fazendo por tanto tempo em alto-mar foi achar a
solução para derrotar um homem imortal como James.
— Ele pode ser forte, mas ninguém é imortal, filho — ela retrucou.
— James e seu exército são! É uma tropa de amaldiçoados, lutar
contra eles sem romper a maldição é uma batalha perdida. Eu vi,
claramente, como não morriam ou fraquejavam mesmo que tomassem
diversos golpes..
Os nobres de Acucci arregalaram os olhos e cochicharam entre si.
— Essas coisas não existem — insistiu minha mãe.
— Eu acredito, filho — afirmou meu pai.
— Parece interessante, prossiga — comentou a rainha Possey.
— Viajei por diversas ilhas. Jake e sua tripulação enfrentaram piratas
fantasmas, monstros gigantes, bruxas... tudo para que eu pudesse pegar isto.
— Retirei a fruta do bolso e a coloquei sobre a mesa. Alguns espinhos
murcharam, indicando que a solução de nossos problemas estava prestes a
apodrecer. — Somente isso é capaz de tornar James e seus homens mortais
novamente, e não temos muito tempo.
— Como uma frutinha dessas faz milagres? — questionou a rainha
Declaw.
Minha mãe estava muito cética a respeito das coisas que eu dizia.
— O néctar dela é o quebrador de maldições. — Guardei a fruta. —
Preciso que acreditem em mim, ou nossa batalha estará perdida.
— Eu acredito — proclamou Victor. — Nunca vi as criaturas, mas
tem os piratas como testemunho de suas palavras. Isso é o bastante pra
mim.
— É o bastante para mim também. Deveria acreditar mais em seu
filho, Stella — o rei de Acucci se pronunciou. — Lawrence nunca pareceu
ser um rapaz de mentiras, e está empenhado em salvar seu trono. Príncipe,
você será essencial no traçado das estratégias de combate amanhã.
Minha mãe se calou.
— Obrigado, majestade. Eu e o capitão Jake estaremos presentes na
reunião de combate.
Ao dizer aquilo, recebi um olhar vindo do pirata do outro lado da
mesa.
Meu pai sorriu e apoiou a mão nas minhas costas, acariciando-a.
— Você mudou. Essa atitude me deixou orgulhoso, filho — ele disse
baixinho.
— Obrigado, pai. — Também expressei satisfação.
Interrompemos com os assuntos de batalha para continuarmos o
almoço. Senti saudade daquela variação de sabores e poder comer sem
restrições.
Ao término, durante o momento que os outros deixavam a mesa, meu
pai colocou a mão sobre meu braço e foi discreto em seu convite.
— Vamos caminhar pelo jardim?
— C-claro, pai, por que eu rejeitaria uma proposta dessas? É um belo
jardim — respondi.
— Sim, é, e o local mais apropriado para termos uma conversa.
Longe dos ouvidos dos outros.
— Conversa?
— É o momento de saber a verdade.
Engoli em seco e concordei, seguindo-o para o jardim.
Andamos de braços para trás e devagar em meio às flores, sem dizer
uma palavra até que estivéssemos longe o bastante de todos para ele romper
o silêncio.
Robert queria revelar uma verdade, algo que eu talvez eu já soubesse.
— Filho, você não deveria ter se aproximado tanto de Jake Rogers —
falou, com os olhos fixos no caminho de folhas.
— E eu tinha outra escolha? — Encarei-o. — Era fugir junto do pirata
ou ficar com James, e se fosse a segunda opção, preferiria a morte. Sei que
ele é um traidor da coroa de Marnsala, mas precisei dele e ainda
precisamos.
— Sim. A questão é que a presença de homens como ele para pessoas
como você é perigosa.
Homens como ele e pessoas como você? Refleti a frase, chegando à
conclusão de que sabia do que meu pai queria falar, mas não conseguia
encontrar maneira de dizer.
Soltei um suspiro longo.
— Homens como ele, você quis dizer amaldiçoados? — Voltei o
olhar para as flores, até que ele parou de andar.
— Sim. Você... você é uma pessoa especial, Lawrence. Estar junto de
homens desalmados é perigoso. — Prestei atenção no que ele estava
tentando dizer. — E é justamente por esse motivo que eu te deixei cercado
no castelo por tanto tempo.
O olhei sobre o ombro e coloquei as mãos para trás.
— Pai, descobri duas coisas durante a jornada, a primeira é que não
sou um humano. Não é novidade. A segunda, é que, infelizmente... sou um
bastardo, não é?
Bastardo. Dizer aquela palavra doía em mim, era a única verdade que
eu não queria acreditar.
Meu pai respirou audivelmente.
— Sim. Eu, em minha juventude, saía para explorações a fim de fugir
um pouco das obrigações quanto rei. E foi numa dessas que encontrei sua
mãe, uma ninfa, Muriel. Ela morava em uma passagem de lago entre duas
montanhas, seus cabelos eram grandes e esvoaçantes, a pele branca reluzia
a pérolas e a voz era encantadora. Ela me convidou para passar um dia em
seu jardim e ali nos conhecemos melhor. Eu me apaixonei, foi amor à
primeira vista.
— Mas você já era casado com Stella?
— Sim, por conveniência entre nossos reinos. Não a amava,
tampouco ela conseguia me dar um herdeiro. Então, eu me envolvi com a
misteriosa guardiã dos jardins das montanhas. Todas as semanas arrumava
uma desculpa para voltar ao mar e a visita-la, até que ela esperou um filho
meu. Você.
Franziu as sobrancelhas.
— E por que não ficaram juntos se gostavam um do outro?
— Porque ela só me dava uma restrição durante as visitas, que era
não levar nada do que era seu. Quando Muriel deu à luz, eu não quis deixá-
lo lá, precisava de um herdeiro para o trono e ela me entregou você, então o
trouxe comigo...
— E o portal se fechou para sempre — completei, recordando sobre o
que li. Abaixei o olhar, percebendo como não sabia sobre a maior parte da
minha vida. Foi tudo uma mentira durante anos. — Você se arrependeu de
ter me levado? Por minha culpa não pôde mais vê-la.
— Jamais. — Meu pai levou a mão aos meus cabelos, colocando-os
atrás das orelhas. — Você foi o meu maior presente, filho. Por isso, quando
percebi pessoas cruéis tentando tirá-lo de mim e notei que era diferente,
quis isolá-lo do mundo. Com a muralha.
Balancei a cabeça em negação.
— E agora Stella terá um filho seu, legítimo do casamento. Ele
tomará meu lugar? Será o verdadeiro herdeiro do trono?
Robert se calou brevemente.
— Stella espera que sim.
Naquele momento meu coração parou de bater por instantes e senti
como se a terra sob meus pés desmoronasse.
— Mas você não vai deixar que isso aconteça, não? Eu sou seu
sucessor, não é?
Ele demorou para responder.
— É mais complicado do que parece. Ainda estamos...
— Não! Ninguém vai tomar o trono de mim! Arrisquei minha vida
por ele, eu serei o próximo rei de Marnsala! Eu!
Dei as costas ao meu pai, voltando para o castelo em passos
apressados.
— Lawrence, espera! — Meu pai tentou me impedir, segurando em
meu braço, mas o puxei com rispidez.
Preferi não olhar para trás, só queria subir para os meus aposentos e
respirar para absorver tudo o que me foi dito. Atravessei o salão tão
cortante quanto o vento, subi os degraus o mais rápido que pude e quando
abri a porta, joguei-me com o rosto sobre os lençóis.
Solucei umedecendo a cama com algumas lágrimas que saíam,
aliviando a pressão em meu peito.
Senti uma carícia nos cabelos e ao me virar, a primeira coisa que vi,
foi ele, Jake.
— Por que está chorando? — questionou, usando a ponta dos dedos
para tocar a raiz de minhas madeixas.
— Porque descobri que minha história é uma mentira. E fui tolo em
passar toda a jornada idealizando como seria o salvador de Marnsala e rei
aclamado, sendo que nem herdeiro sou.
— É. A rainha não me pareceu uma Gwragedd annwn. E está grávida.
— Você não tá ajudando.
— Desculpe. — Ele se deitou ao meu lado, pegando em minha mão.
— A questão é que ninguém, além de seus pais, sabe que você não é filho
desse casamento. O povo o vê como herdeiro legítimo do trono.
— Mas meu pai não pensa assim e Stella quer que seu filho tome o
meu lugar.
Ele me encarou.
— Quem toma as decisões de governança é o rei. — Tocou em meu
peito. — Seu pai está ficando velho e Marnsala, do jeito que é, jamais
aceitaria uma rainha no trono, portanto, convença seu pai a passar a coroa
para você. Mesmo que a criança venha a ser o próximo herdeiro, você terá
anos para liderar até ela atingir a maioridade.
Passei as mãos pelo rosto, secando as lágrimas.
— Não sei se consigo convencer meu pai. Ele parece se sentir
culpado por ter tido um filho fora do casamento real, por isso acata o que
sua esposa diz.
— Vocês se reencontraram agora depois de meses. Não é numa
primeira conversa que se consegue, mas com insistência, creio que sim.
Caso não, acidentes acontecem. — Arqueou a sobrancelha.
Aquilo me tirou uma gargalhada, por mais que Jake estivesse falando
sério sobre um acidente proposital.
Virei o rosto de lado para encará-lo diretamente e sorri.
— Perdão por ter apontado o dedo para você mais cedo, quando falou
sobre minha família.
— Está tudo bem. Eu entendi a sua cegueira causada pelas emoções.
Soltei um suspiro longo e me aconcheguei em seus braços, sendo
envolvido por ele.
— Não sei o que faria sem você nessa viagem.
— E eu não sei o que vou fazer depois que sairmos dela. Sentirei sua
falta, Lawrence.
— Eu também, Jake. Eu também.
No dia seguinte, quando desci as escadas para o café, ouvi os
murmurinhos que envolviam meu nome e o de Jake. Victor com certeza
tinha espalhado rumores sobre minha relação com o pirata.
O assunto se encerrou quando apareci.
Em cada canto que eu ia naquele castelo encontrava com alguém de
falatório que se calava ao me ver. Comecei a me sentir desconfortável.
Queria mais do que nunca que a noite chegasse logo para elaborar as
estratégias da luta contra James e ir embora dali.
Jake foi visitar a cidade de Acucci junto dos outros piratas. Visitar,
que no dicionário deles significa roubar. E por ter ficado sozinho naquele
ninho de cobras me senti ainda mais desamparado. Resolvi me isolar.
Durante o momento em que andava pelo salão em direção ao quarto,
passei por uma sala onde ouvi uns sussurros que pareciam ser da minha mãe
com Victor. Escorei-me pelas paredes e fui para trás de um pilar a fim de
escutar o que falavam.
— Não posso fazer isso com ele — falou o Possey.
— Pode e fará. É o meu legado que está em jogo, o reinado do nosso
filho!
Nosso? Ela não está grávida do meu pai?
— Stella, eu não me importo com essa criança. Você desejava um
filho e eu te dei, mas ele será criado por Robert e eu voltarei para o meu
exército. Há outros bastardos meus por aí, e o seu é apenas mais um. Não se
sinta especial por isso.
— Certo. Se não quer fazer pelo sangue de seu sangue, fará pela
obrigação. Porque se negar a realizar o que estou pedindo é implorar para
que seu reino entre em ruína por falta de suprimentos.
— Está me ameaçando? Não se esqueça de que precisa do meu
exército para expulsar o invasor de Marnsala. Homem que você ajudou a
colocar lá!
Um rei forte, orientado por alguém mais inteligente. Recordei do que
Davos havia me falado no calabouço, naquela hora tudo começou a fazer
sentido, esse alguém era a mesma pessoa que se desfez de mim por anos,
que pouco se importava comigo e espalhou para os outros que eu havia
morrido durante a invasão.
Arregalei os olhos com a descoberta. Mal pude acreditar no que
estava ouvindo.
— Fale mais baixo! James tinha apenas o objetivo de matar Lawrence
em troca de ouro e especiarias. Não imaginava que ele iria romper o acordo
para tomar o reino para si. De qualquer forma, se não tirar James de lá, é
capaz de o próximo reino a ser tomado seja o seu, alteza. O trapaceiro
expande o império a cada dia.
— Então, se eu me recusar a ajudar na luta contra James, tenho o
reino tomado. E caso aceite lutar, porém, se não matar Lawrence durante a
batalha, Acucci sofrerá da mesma forma? Não me parece justo.
— Porque não é realmente justo. Mas você não tem escolhas. Tem?
Foi possível ouvi-lo bufar.
— Tudo bem. Se eu matar Lawrence, o que acontecerá comigo? De
acordo com as leis de Marnsala.
— Ninguém saberá que o matou. Faça o serviço sem testemunhas e
coloque a culpa no pirata. Não haverá uma pessoa para questionar isso,
afinal, será a palavra de um homem da lei contra um bandido.
Levei as mãos aos lábios para abafar meu grito. Apesar de surpreso,
tive que me recompor o mais rápido possível para sair dali e seguir até o
quarto, sem transparecer emoção alguma, mesmo que o peso de ser traído
esmagasse meu peito.
Assim como eu não os reconhecia com tais atitudes, eles também não
sabiam mais quem eu era e o que poderiam esperar.
Seguiria com o plano deles fingindo não saber, até o momento certo
de atacar.
Remoí a tarde inteira a conversa que escutei, e só pude chegar à
conclusão de que Jake tinha razão. Eu deveria matar a mulher que ousei
chamar de mãe antes que o contrário acontecesse.
Quando o pirata abriu a porta do quarto, entreabri os lábios para falar
sobre o assunto, mas me calei assim que vi Victor atrás dele.
— Eu estava apenas esperando você chegar, Jake — disse Possey.
— Por que me esperava?
— Porque chegou a hora de fazermos as estratégias de combate.
Venham!
Eu e meu capitão nos entreolhamos e o seguimos. Durante o caminho,
pelas olhadelas que me foram lançadas, ele percebeu que havia algo errado.
Tínhamos muito o que conversar.
Descemos escadas infinitas até uma área subterrânea em que havia
militares, uma mesa de centro com mapas e miniaturas de madeira. Ali
também estavam presentes o rei e a rainha de Acucci, meu pai, a mulher
dele e a tripulação de Jake. Muita gente para um espaço pequeno.
Victor tomou à frente, aproximando-se da mesa. Quando cheguei
mais perto, notei como os barquinhos de madeira pintados de azul estavam
na entrada frontal e laterais de Marnsala, enquanto os navios de cor preta
encontravam-se do outro lado, num tipo de ponto cego.
— Não entraremos em conflito direto? — questionei, erguendo o
olhar para Possey.
— Não. Será melhor se for um ataque surpresa, assim ele não
conseguirá mandar reforços para o castelo a tempo — respondeu.
— Só o ataque surpresa não será efetivo. James e sua tropa não são
mortais — Jake falou, encarando o príncipe de Acucci. — Precisamos dar
um jeito de envenenar o poço com a fruta antes e esperar que eles bebam.
— Para isso eu tenho um plano, basta entregarem a fruta a mim e
farei todo o resto. — Deu um sorriso.
— Por que não deixa que eu faça? Agradeço sua ajuda, Possey, mas
não quero que tome o protagonismo da minha batalha. Eu quem matarei
James. — Apoiei o indicador no desenho do meu castelo.
Meu pai arregalou os olhos brevemente, não esperava que eu tivesse
uma atitude daquelas.
— Não acho seguro, Lawrence. Você ficará junto dos soldados. Ir
sozinho para Marnsala o deixará vulnerável — aconselhou o oficial.
— Mas...
— Concordo — Jake reforçou. — Para andar à luz do dia em
Marnsala terá de ser alguém mais discreto. Nem Lawrence, muito menos o
príncipe Victor.
— Eu vou então. — Arya, a bruxa-pirata, se voluntariou. —
Conseguirei me infiltrar facilmente até o poço de abastecimento do castelo.
Ninguém me conhece.
Naquela hora, o pirata expressou preocupação e alternou o olhar entre
mim e a mulher.
— Irei com você para dar cobertura. Acredito que seja necessário
para não falharmos. — Ele voltou seus olhos para mim, como se pedisse
permissão para ir com ela.
Discretamente assenti.
Apesar de não querer que o pirata se afastasse de mim num momento
tão crítico, preferi não me opor. Jake e Arya eram melhores amigos,
confiavam cegamente e dariam a vida um pelo outro.
Victor suspirou e reformulou a estratégia.
— Tudo bem. Como o usurpador também irá, acho melhor atacarmos
pela madrugada devido à visibilidade. Navegaremos por dois dias até
chegarmos à terra de Marnsala, caso a maré contribua, e se tudo der certo,
chegaremos por volta de três da manhã. Vamos ancorar longe do ponto cego
para não sermos vistos. A dupla que irá envenenar o poço deve chegar ao
reino antes, às 04h, e nós só atacaremos ao fim da noite, quase no dia
seguinte. Sobre a estratégia em terra, ninguém melhor que o rei Robert para
explicar.
Quando meu pai começou a demonstrar o plano de ataque, prestei
atenção. Ele conhecia as terras de Marnsala mais do que qualquer outro,
sabia exatamente cada ponto de fuga. Durante a explicação, Jake e o rei de
Acucci questionaram alguns pontos para melhorar a estratégia.
Quase todos estavam atentos, exceto Victor e Stella que se
entreolhavam.
Assim que todos saíram da sala de estratégias, cada um foi para um
canto, os reis seguiram para um lado com os militares, Jake e seus homens
foram para o outro e os dois traíram sumiram da minha vista. Fiquei
sozinho. Minha cabeça borbulhava com a situação, não consegui aquietar o
coração, mesmo que soubesse que no momento não havia o que fazer.
Arya me encontrou perambulando pelo salão e se aproximou com
uma feição desconfiada.
— O que está acontecendo, alteza? — perguntou baixo.
A puxei pela manga da blusa e a arrastei para um canto com pilastras
a fim de sussurrar. Meus olhos estavam arregalados e uma tremedeira
tomou conta do meu corpo.
— Victor Possey e a rainha querem me matar. Foi ela quem arquitetou
tudo para que James me capturasse. — A medida que eu expunha os fatos,
os olhos de Arya tornavam-se cada vez maiores. — Não sei o que fazer!
— Sabia que não deveria confiar nele. — Ela resmungou.
— Acho que Jak...
— Não conte nada ao Jake. — Botou o dedo sobre meus lábios. —
Deixe que eu contarei quando já estivermos em Marnsala. Se ele souber
disso antes, vai querer ficar ao seu lado para protege-lo e levantará suspeitas
nos dois, por isso precisamos seguir com o plano estabelecido na sala de
reuniões, assim o pegaremos de surpresa.
— Eu não havia pensado nisso. — Enruguei a testa.
Ela apoiou ambas as mãos em meus ombros e me encarou.
— Fique tranquilo, Lawrence. Ele saberá na hora certa. Agora respire,
tome um banho e descanse. Quando embarcarmos amanhã naquele navio,
você agirá como se Possey continuasse sendo seu amigo e a rainha...a
mesma mulher que te criou.
Soltei o ar devagar e concordei com ela.
— Obrigado, Arya.
Afastei-me da pirata olhando em volta a fim de ver se alguém nos
observava, notei que somente alguns serviçais passavam pelo salão. O lugar
era branco, marmorizado e com algumas estátuas espalhadas, um dos servos
do castelo estava sobre uma escada de madeira reacendendo as velas dos
lustres.
Atravessei um corredor e subi pelos degraus para o segundo andar do
castelo e fui até meu quarto. Ao destrancar a porta, estava vazio, Jake ainda
não havia retornado.
Eu continuava ansioso, mordiscava meus lábios puxando a pele e
minhas mãos tremiam. Andei pelo cômodo e entrei na portinha dos fundos
onde havia um banheiro.
O lugar tão branco quanto o restante do salão, com alguns detalhes
dourados, bancada de mármore onde um candelabro se apoiava ao lado dele
fósforos para acender as velas. Ao fundo uma janela coberta parcialmente
por cortinas vermelhas com pequenos bordados do brasão de lobo, além das
toalhas presas num gancho, do mesmo tom das cortinas.
Entrei, deixando a porta aberta, queria que Jake soubesse onde eu
estava caso fosse para o nosso quarto. Desfiz das minhas vestimentas,
acendi as velas e enchi a banheira. Tentaria, ao menos por um segundo,
descansar a mente, algo que parecia impossível àquela altura.
Quando a ponta do meu pé tocou a água, ouvi o virar da maçaneta e
os passos pesados. Reconheci que era Jake só pelo tintilar que seus bolsos
faziam quando ele andava.
— Não quis me esperar pra isso? — perguntou ele atrás de mim.
Olhei sobre o ombro e o vi apoiado no batente com os braços
cruzados e prendendo o lábio entre os dentes. Sua visão me inspecionava da
cabeça aos pés.
— Está convidado se quiser — falei.
Sem perder tempo, Jake desfez de sua roupa de forma atrapalhada e
ansiosa, chegando a prender os braços nas mangas. Ao se despir as chutou
para fora do cômodo e veio até mim.
Seu corpo colou atrás do meu e sua mão agarrou minha garganta de
forma que guiou minha cabeça para trás. O ar quente e denso tocava minha
nuca e sua virilha roçava contra meu traseiro.
— Jake... eu não sei se conseguirei ser discreto — disse. Peguei uma
de suas mãos e a repousei em minha cintura, os dedos logo pressionaram
minha pele.
— Eu posso amordaçar você. — Quanto mais ele se esfregava, mais
era notória sua ereção.
Virei de frente para ele e franzi as sobrancelhas.
— Estou preocupado demais com tudo o que vai acontecer, não sei se
conseguirei relaxar para isso.
Jake passou a mão por meus cabelos, colocando-os atrás das orelhas
e, ainda com os dedos apoiados em meu rosto, aproximou-se para um beijo
breve.
— Hoje posso me dedicar apenas a relaxar você. — Guiou meu corpo
até a banheira. Entrou na água antes de mim e sentou-se, com as pernas
afastadas. — Sente aqui — bateu no espaço que reservou para mim.
— De frente?
— De costas.
Apoiei-me nas bordas e entrei. Fiquei entre suas pernas e ele me
puxou para que repousasse as costas em seu peito. Jake pegou o sabão que
havia no canto da janela, esfregou nas mãos e ensaboou a nós dois.
Seus lábios tocaram minha nuca enquanto os dedos me acariciavam
sob a água, massageava sem pressa minha cintura, os ombros e os braços.
Fechei os olhos e suspirei profundamente.
— Está bom? — perguntou.
Assenti em silêncio. Jake usou uma das mãos para segurar meu rosto
e guiar para um beijo. À medida que introduzia a língua na minha boca,
uma de suas mãos deslizou pela minha barriga até a virilha.
Gemi baixo entre seus lábios ao ser estimulado. Ele tocava toda a
extensão de minha ereção, até seu polegar se concentrar na ponta.
Meu corpo espasmava e recolhi os dedos dos pés.
— Mais rápido — ordenei e ele acatou.
Deixei de beijá-lo para inclinar a cabeça para trás e apoiar-me em seu
ombro. Comecei a latejar mais.
Jake colocou uma das mãos sobre minha garganta enquanto a outra
me tocava intensamente. Conforme a sensação de prazer se enlevava, minha
coluna sutilmente desapoiava de seu corpo e deixei escapar um gemido
agudo quando cheguei ao meu ápice.
Respirei forte e abri os olhos. Enruguei o nariz ao ver aquilo branco
boiando.
— Está mais relaxado agora? — perguntou, com um sorriso
presunçoso nos lábios.
— Sim. — Levantei e continuei a olhar para o esbranquiçado. —
Vamos sair da água?
— Está com nojo do que é seu? — Riu.
— Não é isso, é porque acabamos de tomar banho. — Peguei a toalha
e me enrolei.
— Sei. — Ele saiu da água e também se secou.
Fomos para a cama sem as roupas, ainda que não fôssemos fazer nada
além de dormir. Quando nos deitamos, puxei os lençóis até os ombros e me
virei de lado a fim de encará-lo.
Ficamos um de frente para o outro e ele levou a mão ao meu rosto,
repousando seus dedos em meu queixo.
— Está ansioso com a batalha? É isso que te preocupa tanto?
Afirmei com a cabeça.
— Sim. Aprendi muito nos tempos em que estive contigo e sua
tripulação, mas é incerto se será o suficiente para que eu permaneça vivo,
muito menos vença a batalha.
Jake acariciou minha bochecha com o polegar.
— Você tem a mim e a minha maldição dedicada a você. — Alternou
seu olhar entre o meu e minha boca. — Portanto, não deixarei que nada o
atinja. Não morrerá.
Os cantos dos meus lábios se ergueram e me aproximei para um beijo,
toquei sua boca com suavidade e a ponta dos meus dedos entraram em seus
cabelos. Afastei-me um pouco para encará-lo.
— Também irei protegê-lo. — Senti o coração apertar. Sabia que
quando a batalha terminasse, se saísse vivo, teria que me despedir de Jake e
o quanto seria doloroso deixá-lo outra vez.
Ele sorriu e trouxe minha cabeça para perto a fim de encostar nossas
testas. Agarrei-me nele e fechei os olhos, assim adormecemos.
O dia da viagem foi agitado. Tivemos que acompanhar os
carregamentos dos armamentos até o navio, repassar o restante das
informações para o resto da tropa de Acucci e verificar se estava tudo certo.
Deixamos o castelo para ir até o navio quando céu escureceu, era
noite de lua cheia, contudo as nuvens densas cobriam qualquer luz que
viesse do alto. Nuvens aquelas que regavam a nossa partida com
inesperados pingos de água. Não podíamos perder tempo, portanto,
seguimos o percurso ainda sob tempestade.
Cobri a cabeça com uma manta e caminhei ao lado do pirata,
desviando algumas vezes o olhar para Jake, que permanecia com suas íris
direcionadas para frente. Ele seguiria o plano dado por Victor.
Daríamos a volta pelo mar de corte que tinha águas agressivas, e
piorava por conta da tempestade, mas era o caminho mais curto até
Marnsala e caía diretamente no ponto cego da vigia.
Subi no navio principal, junto da realeza Declaw e a tripulação de
Jake. Era a mesma embarcação que nos tirou da ilha próxima ao mar de
monstros. Os marinheiros arrastavam os armamentos pesados pelo convés
ainda sob chuva forte.
— Peguem suas cabines no andar debaixo! — gritou Possey, cobrindo
a cabeça com um pano grosso — Por hoje, não teremos um jantar, mas
receberão em seus quartos algo para que encha as barrigas até amanhã.
A rainha emburrou o rosto e apoiou uma das mãos no ventre enquanto
a outra segurava um leque grande sobre a cabeça.
— Não posso ficar sem jantar, estou grávida!
Victor estreitou o olhar e encarou um de seus subordinados.
— Já que a rainha está comendo por dois, o dela será dobrado. —
Deu as costas para nós.
Pela expressão que ela fez, não pareceu gostar muito da resposta, mas
o seguiu sem questionar.
Descemos as escadas até nossos quartos, dali, no segundo andar,
enfim pudemos tirar das cabeças as mantas e objetos que usamos para nos
proteger da tempestade surpresa.
Havia um soldado em frente a cada quarto, segurando uma lamparina
para ajudar na visibilidade das portas e do corredor.
Meu pai olhou para mim e Jake e franziu o lábio. Ele sabia, aliás,
aparentemente todos ali deveriam saber o que acontecia entre nós dois,
contudo se o próprio rei de Marnsala não intervia, não seria um qualquer
que me direcionaria a palavra. As únicas pessoas que não podiam saber
eram o povo de Marnsala.
— Tem um quarto para cada — falou Possey, abrindo uma das portas.
— Ou podem dividir se quiserem. — Olhou para meu pai e Stella.
Os piratas do Maldição do rei aos poucos pegavam seus cômodos,
exceto pelo capitão.
— Certo — respondi e abri uma das portas. — Ficarei neste com
Jake.
— Não acho que seja necessário dormir com este bandido, Lawrence,
há quartos para todos. Não prefere privacidade? — A rainha de Marnsala
perguntou.
— Eu gosto da presença dele e de sua proteção.
— Mas está seguro aqui. De que se protegeria? — ela retrucou.
Quem sabe de você?
Não respondi, apenas entrei na cabine e Jake me acompanhou. Ao
bater à porta de puxar a tranca, notei o sorriso dele à meia luz.
O cômodo era minúsculo, com janela redonda ao fundo, armário
vazio de portas arregaçadas no canto, duas lamparinas penduradas por
ganchos e uma cama que caberiam dois somente se dormíssemos de lado.
— Ai, que saudades da minha cabine — O pirata disse com desgosto
ao ver o colchão.
— Quer dormir separado hoje? — Olhei para ele. — Por conta da
cama.
— Jamais. — Deu de ombros e se jogou sobre os lençóis. — Bem, ao
menos para mim não será um problema, estou acostumado e me espremer
para dar espaço à vossa alteza.
Soltei o ar da risada contida pelo nariz e sentei ao lado dele.
— Para mim também está ótimo. Gosto de dormir enlaçado pelos
braços de um certo pirata. — Ergui o canto do lábio.
De repente bateram à porta. Levantei-me para abrir e eram dois
marinheiros trazendo em bandejas a refeição da noite, composta de uma
maçã, folhas verde escuro, carne e arroz. Para beber, apenas taças com
água.
Nós dois passamos a noite trancafiados na cabine devido a
tempestade. Victor pediu para que os tripulantes evitassem o convés por
conta da agitação do mar e trovoadas.
Jake ficou com a cabeça apoiada em meu peito e eu acariciei seus
cabelos enquanto contava histórias dos livros que já li. Foi não só uma
forma de passarmos o tempo até adormecermos, como também uma
maneira que encontrei de me distrair da batalha que enfrentaria.
Na manhã seguinte, o céu continuava nublado, mas a chuva cessou,
então conseguimos fazer a primeira refeição foi no convés. A tarde ficamos
na sala de reunião, repassando novamente as estratégias de combate e
preenchendo as possíveis brechas do plano.
E ao final do dia, enquanto Jake estava com seus marujos, aproveitei
para explorar a embarcação. Encontrei meu pai sozinho com as mãos para
trás, próximo da borda, ele encarava o horizonte.
Aproximei-me dele e direcionei meus olhos no mar.
— Sabe... sempre foi meu sonho que um dia estivesse num navio
comigo — disse e respirou profundamente — não nessas circunstancias,
mas numa expedição. Explorando lugares juntos para você ver a veracidade
das histórias que contava.
Ri brevemente e sorri.
— Nunca duvidei disso, pai. Aliás, suas histórias foram o motivo do
meu pavor do mar durante anos, e nessa viagem presenciei muitas coisas
das quais me falou. — O encarei.
— Mesmo? — Arregalou os olhos brevemente. — Tipo o que?
— Enxerguei as outras culturas, conheci e comi frutas nunca vistas
antes. Mas, o que mais me impressionou foram as criaturas. Lutei contra
piratas-fantasmas, sereias gigantes e até mesmo o Kraken!
Suas sobrancelhas se arquearam.
— Você quem lutou? Nunca o vi pegar numa espada.
Três das situações que mencionei foram justamente as que fugi, mas
queria impressiona-lo. Aposto que ele fazia o mesmo comigo exagerando
seus feitos nas histórias que me contava quando criança.
— Sim. Aprendi a lutar, a nadar... muitas coisas das quais jamais
imaginei que seria capaz.
Ele sorriu e apoiou a mão sobre meu ombro, apertando-o.
— Nunca duvidei de que tinha potencial. Eu que o desperdicei
tentando prendê-lo numa redoma.
— Você não fez por mal, foi por minha segurança. Reconheço isso.
Meu pai assentiu e apoiou a mão sobre o topo dos meus cabelos, deu
duas batidas suaves.
— Estou orgulhoso do homem que se tornou, filho.
— Nada disso teria sido possível sem a ajuda de Jake.
Ele afastou a mão de mim e voltou a uni-la atrás das costas. Seus
olhos retornaram a se fixar no horizonte.
— É... eu sei — sua voz saiu baixa.
Por mais que meu pai detestasse Jake Rogers por ser um traidor da
coroa, ele o conhecia e sabia que eu estava em boas mãos, talvez fosse por
este motivo que não tentou mais me afastar dele. Até porque o que tanto
queria evitar aconteceu, apaixonei-me por um amaldiçoado.
O dia que eu tanto temia, mas ao mesmo tempo ansiava, chegou.
Depois de dois dias navegando por um mar violento e enfrentando
tempestades, chegamos nas águas do território de Marnsala, era madrugada.
Jake estava se preparando em nossa cabine. Carregou a arma, afiou a
lâmina de sua espada e guardou o fruto quebrador de maldições em uma
sacola de pano presa à cintura. Ao invés de seu típico casaco, colocou uma
manta com capuz para que pudesse cobrir a cabeça e se disfarçar mais se
necessário.
Meu corpo tremia e o coração se apertava no peito.
Bateram à porta para anunciar que o bote já estava pronto para levar
Jake e Arya até Marnsala.
Meu capitão se aproximou com os olhos melancólicos, repousei a
mão na nuca dele e o puxei para um beijo, ao fim, juntei nossas testas e
fechei os olhos.
— Fique bem — falei baixo, com um suspiro.
— Não vou te decepcionar. — Afastou-se com um sorriso
malandreado. — Nos vemos no campo de batalha.
Deixou a cabine.
Saí em seguida e subi as escadas rapidamente. Apoiei-me na borda do
navio, com os olhos ansiosos, assim como os outros piratas. Observei Jake e
Arya entrarem no bote com a fruta e remarem em direção ao ponto cego.
Graças aos céus o mar estava calmo, de poucas ondas, sua chegada
seria tranquila.
As nuvens densas continuavam a cobrir a iluminação da lua cheia.
Mal conseguiria enxergar Marnsala se não fosse por algumas casinhas bem
distantes de lamparinas acesas.
Os dois piratas sequer usaram fogo para guiar seu caminho, eles iam
por aquela imensidão escura usando como referência somente o que podiam
ver.
Quando o barco sumiu da minha vista, retomei à cabine. Queria
descansar para ter energia para a batalha no dia seguinte, contudo minhas
pálpebras não se fecharam por um segundo devido ao nervosismo.
De resultado, troquei a noite pelo dia. Dormi a manhã inteira e
somente a tarde consegui estar desperto. Saí do quarto apenas para me
alimentar, de resto passei as horas restantes treinando minhas habilidades,
que ainda eram limitadas, mas deveriam servir.
Sequer notei os minutos passarem e a noite chegar enquanto
conjurava barreiras de proteção. Jamais poderia falhar como fiz no mar de
monstros. Perdi a concentração quando ouvi a voz de Victor à porta.
— Lawrence, chegou a hora!
Ao deixar a cabine, vi o caos que o convés se encontrava. Homens
empunhavam suas espadas, outros carregavam lamparinas até as canoas,
enquanto alguns corriam para lá e para cá buscando armas.
Fui rapidamente pegar uma das espadas e desembarquei. Tive o
desprazer de ser designado a descer no mesmo barco que a esposa do meu
pai, ela sequer deveria estar ali, o rei tentou impedi-la, mas a praga foi
insistente.
Durante o tempo em que os outros dois homens remavam, encarei a
traíra, foi a primeira vez que a vi com calças. Ela trajava uma roupa
semelhante à dos oficiais de Acucci e seus cabelos estavam presos num
coque alto.
— Não é perigoso para você ir para uma batalha? — Franzi as
sobrancelhas. — Posso perder meu irmão!
— Não se preocupe com isso, querido. — A asquerosa pôs a mão em
meu rosto. — Já fugi uma vez e não poderei fazê-lo novamente. Isso é pelo
nosso reino e nosso povo, é preciso sacrifício.
— Está certa — fingi acreditar. Eu imaginava que ela não estava indo
pela luta, sim para se certificar pessoalmente da minha morte.
Olhei para trás e vi os outros pontos de luz nos seguindo. Éramos
muitos, certamente seríamos páreos ao exército de James. Quando os
nossos botes encostaram no raso, descemos para puxar até a terra firme.
A praia estava vazia, fria e silenciosa.
A tática teria dado certo se não fosse por ele, o único soldado que ali
passeava com sua lamparina. Viu a invasão e correu. Enfrentaríamos os
inimigos antes da hora.
— Preparem-se! — gritou Victor, sabíamos o que viria a seguir.
Todos entraram em posição de ataque, não demorou muito para
sentirmos os tremores vindos da terra, os soldados corriam feito manada.
Seguramos até que eles estivessem numa distância apropriada para
avançarmos.
— Agora! — ordenou o oficial traíra.
Fui ao encontro dos meus inimigos, recebendo de imediato uma
tentativa de golpe contra a cabeça, que bloqueei com a espada.
Desviei do segundo ataque e cortei a parte de trás das pernas do meu
oponente.
Ele caiu e grunhiu de dor.
Era sangue e fúria. As areias debaixo dos meus pés tornavam-se
manchadas. Eles estavam morrendo.
Deu certo, todos beberam da água do poço.
Entre golpes e bloqueios, era possível que eu enxergasse nos olhos
dos inimigos o medo e surpresa em verem os outros e a si mesmos como
mortais.
Tentei encontrar Jake em meio ao caos, sendo empurrado pelos
soldados. Quando menos imaginei, por pouco não tomei um golpe pelas
costas, pois uma espada impediu, era ele.
— Capitão! — falei para o pirata, seguido por um sorriso.
— Não se distraia, alteza — Ergueu o canto do lábio de volta.
Lutamos juntos contra os invasores, até que recuaram. Eles voltariam
em maior número, e aquela era a brecha perfeita para sairmos da costeira e
ir em direção ao castelo.
Victor sabia disso, afinal, ele e meu pai quem elaboraram o plano de
batalha em solo, então Possey, Jake, Arya, eu, a rainha e parte de seu
exército corremos para contornar o ponto cego a fim de irmos até a
muralha.
Robert permaneceu na costeira com alguns soldados e os piratas para
coordenar os ataques e desviar o foco do nosso grupo.
Durante o caminho, pude ouvir de longe os estrondos vindos do mar e
os picos de luz das chamas. A marinha de Acucci soltava suas bolas de
canhão contra os navios de James que nos encontraram.
Quando chegamos à cidade e viramos a esquina, havia mais inimigos.
Parte dos homens de Victor tomaram à frente para atacar, mas ele, o pirata,
a bruxa, eu e a tirana seguimos caminho contrário junto de meia dúzia de
soldados.
A rainha traíra tomou à frente para nos levar à rota mais curta até os
portões do castelo. Meus pulmões queimavam de tanto correr, a respiração
era ofegante e o coração parecia bater no pescoço.
A partir daquele percurso, eu sabia que em breve estaria de frente
com o meu maior rival, o desalmado que tomou minhas terras e me fez de
seu prisioneiro.
Quando alcançamos a entrada do castelo, estranhei de imediato que os
portões estivessem abertos, tinha a impressão de que estavam nos
esperando.
— É uma armadilha — comentou Arya.
— Não creio que seja. Eles saíram e esqueceram os portões abertos
— respondeu Victor.
— Não, ela pode estar certa! — retruquei.
— Vão, homens! — Ele não nos ouviu, ordenou aos seus soldados
que corressem em direção à entrada.
Fomos atrás, mas eu e os outros dois piratas estávamos em passos
mais lentos por precaução.
Bastou que os soldados de Possey cruzassem os portões para
ouvirmos os gritos e ver as flechas manchadas de sangue prendendo-se ao
chão.
Ainda havia muita escuridão, mas àquela altura o céu estava menos
nebuloso e a luz da lua cheia iluminava parte da entrada, deixando mais
nítido aquele show de horrores.
— Jamais conseguiremos invadir desta forma — rosnou Victor.
— Conseguiremos sim, sigam-me! — Dei um passo à frente, quando
o pirata segurou em meu braço, expressando preocupação. — Não precisa
ficar com medo, estou confiante, Jake.
Aos poucos, ele afrouxou seus dedos e assentiu. Corri em direção à
entrada, estendendo as mãos.
Não hesitei em mostrar minhas habilidades, de qualquer forma,
naquela luta morreria eu ou os traidores.
Do alto, vi os homens com suas bestas carregadas para atirar e assim
que as flechas foram disparadas, concentrei-me em produzir a energia
rapidamente e expandi.
A barreira translúcida se formou diante dos meus olhos, protegendo a
mim e aos outros que estavam junto.
— O que... — Ouvi a rainha murmurar.
As flechas pareciam infinitas, o meu escudo já não estava sendo tão
eficiente. Por mais que abrigasse os meus aliados, não conseguíamos
avançar.
— Não, não, não... — falei ao ver algumas rachaduras se formarem,
falharia de novo.
Até que as flechas pararam de bater na barreira. Elas voltaram na
direção dos seus atiradores. Arregalei os olhos e olhei para trás.
A bruxa lançava um pó azul que formava uma fumaça que ela
manipulou para desviar as flechas.
— Vão! — gritou. — Eu seguro eles!
Victor, Stella e dois homens não pensaram duas vezes, adentraram às
pressas no castelo.
Jake ficou em conflito entre ir ou permanecer, alternava seu olhar
entre mim e a mulher. Dei alguns passos à frente.
— Pode ficar, e a proteja. Eu já sei me virar.
Recebi uma afirmação por parte dele. Sem perder mais tempo, corri
para entrar no salão principal.
As paredes faziam o eco do passo rítmico do exército amaldiçoado
chegar aos meus ouvidos. Eles desceram em bando, e Victor tomou a
iniciativa de atacar ao invés de defender.
Fui atrás, bloqueando golpes de espada e atravessando minha lâmina
pela carne dos invasores. A rainha também batalhou, ainda que não tivesse
tanta habilidade, conseguiu se proteger.
O caminho foi liberado. Conseguimos subir as escadas,
provavelmente James deveria estar escondido no alto da torre, onde
conseguia ver nossas ações e instruir seu exército.
Até o momento as coisas estavam acontecendo conforme o plano,
contudo, sabia que estava sozinho com duas pessoas que pretendiam me
matar, só não sabia exatamente quando.
Assim que virei para falar com o oficial, vi a morte. A ponta da
lâmina de sua espada se arrastou por um dos meus olhos.
Eu dei um grito e cheguei a me curvar de tanta dor. Ao colocar a mão
sobre a vista, senti o calor do sangue e a agonia era tão intensa que não
consegui comparar com nenhuma dor já sentida.
Não consegui enxergar mais nada com o lado esquerdo.
Com o olho direito vi o traidor ser contido pelo pirata. Jake chutou
Victor para longe e sacou sua espada correndo até ele.
Os dois travaram uma batalha. As lâminas triscavam tão rápido uma
na outra que chegava a faiscar em meio àquela escuridão.
Fiquei sem reação, a princípio, pensando se aproveitava a brecha para
procurar a rainha a fim de matá-la ou ajudaria Jake.
Ele não precisou de mim.
O pirata conseguiu, em um contragolpe, desarmar Victor, agarrou em
seu pescoço, encurralando-o contra a grade de proteção, ameaçando atirá-lo
de lá de cima.
— O que está esperando para me jogar do segundo andar? Que o
príncipe que te come dê as ordens?
Jake não percebeu, mas o outro puxou uma pequena faca do bolso
enquanto o distraía com suas palavras
— Cuidado! — gritei, indo até ele, quando fui segurado por trás e tive
uma lâmina colocada contra minha garganta.
— Solte Victor ou matarei o príncipe — ordenou a tirana.
Essa maldita tinha se escondido para testemunhar minha morte.
Entramos num impasse. Ninguém se mexia, minha respiração estava
ofegante e o rosto quente e sangrando. Eu sabia que ela pretendia me matar
de um jeito ou de outro, então tentaria reagir.
Tomei o risco, seguei em seu braço e me curvei para frente, de forma
que ela rolou por meu corpo e bateu as costas no chão. Quando saquei a
espada e tentei fincar em seu peito, ela desviou para o lado, esquivando do
meu golpe.
A mulher se levantou rapidamente para me atacar. Triscamos nossas
espadas e em um golpe baixo, agachei para feri-la nas pernas.
A rainha gritou de dor e soltou a espada para pressionar o ferimento,
suas mãos tremiam e os olhos cheios de fúria me encararam com desdém
mesmo numa situação de desvantagem.
— Seu bastardinho... eu sabia que deveria ter me livrado de você
quando ainda era uma criança inútil! Argh! — Pressionou as pálpebras
devido à dor.
— No fundo, sempre soube que você não gostava de mim — ergui a
espada segurando com as duas mãos. Ela me olhou em silêncio, aceitando
seu destino — mas quero que saiba que não guardarei ressentimentos. —
Finquei a lâmina em seu peito, recebendo um grito estridente, a rodei e
puxei.
O corpo trêmulo da mulher recaiu sobre o piso e aos poucos seu
sangue se espalhava feito um floco de neve. O olhar frio e desprezível
permaneceu mesmo em sua morte.
Fiquei paralisado, eu não desejava que ela tivesse aquele fim,
principalmente carregando uma criança em seu ventre, mas tive que fazer
uma escolha entre nós dois.
Os dedos das mãos estavam gélidos, mesmo com o corpo quente,
minhas pernas não saíram do lugar, ainda que ao fundo ouvisse o som do
triscar de espadas.
Desviei a atenção dela quando Jake gritou de dor assim que Victor
transfixou a espada em sua pele, mas aquilo não foi o suficiente para
impedi-lo. Ele jogou Possey do segundo andar e arrancou a lâmina, usando-
a para atingir o guarda que apareceu onde estávamos.
Corri até ele.
— Você está bem?
O pirata pressionou a ferida e rasgou parte de sua blusa para me
entregar uma tira de tecido.
— Você quem perdeu um olho e me pergunta se estou bem? Cadê o
príncipe fresco que conheci? — Riu brevemente, seguido por expressão e
dor.
Amarrei a faixa em parte da cabeça, cobrindo o olho que pingava
sangue, sentindo-o latejar.
— Uma situação dessas e você de brincadeira. — Esbocei um sorriso
e o ajudei a pressionar a ferida, a fim de reduzir seu sangramento. Temi que
a lâmina tivesse atingido algum órgão importante.
— Não precisa se preocupar, vai passar.
Jake respirou firme e usou a espada para cortar mais o tecido de sua
roupa e entregou a mim para que eu criasse uma amarra em torno de sua
cintura.
O castelo estava silencioso, apesar do barulho ao lado de fora. Notei
que tínhamos o caminho livre até James, que colocou todos os homens que
liderava para proteger o castelo, esquecendo da segurança de si mesmo.
— Quer esperar reforços para irmos até James? — perguntou Jake.
— Não é preciso, quero matá-lo com as minhas próprias mãos.
Daremos conta.
O pirata ergueu somente um canto dos lábios e bagunçou meus
cabelos. Servi de apoio para que ele se levantasse e seguimos pelo segundo
andar em direção ao terceiro. Tudo parecia fácil demais. Mais dois lances
de escadas chegaríamos à torre.
Bastou que alcançássemos o terceiro andar para que viessem mais
homens em nossa direção, um deles era Davos.
Eu e o pirata nos olhamos e ele ergueu a sobrancelha. Preparamos as
nossas espadas em simultâneo e corremos em direção aos oponentes, seria o
mesmo golpe que fizemos uma vez.
Quando estivemos mais perto dos guardas, dobramos os joelhos para
escorregar pelo chão até eles, dando-lhes um corte nas pernas.
Com alguns dos guardas ao chão, urrando de dor, atacar os outros
seria mais fácil.
E entre golpes e bloqueios, sangue e trisco de metal conseguimos
deixar somente um homem desarmado de pé. Aquele era o momento de me
vingar de outro traidor.
Peguei Davos pela gola e cheguei bem perto de sua face.
— Onde está seu rei?
O traíra me encarou com um sorriso fraco e maldoso.
— Ele aguarda a princesinha no alto da torre.
— Princesinha?
Estava com tanto ódio que bati com força o cabo da espada no
homem, deixando-o desacordado e terminei o serviço cravando a lâmina em
sua face.
— Meu Deus! — Jake exclamou.
Ofeguei, surpreso com minha própria atitude.
Segui em passos pesados ao encontro de James. Queria acabar com
tudo aquilo, a vingança se apossou do meu corpo.
A cada degrau passado, mais forte meu coração batia. Sentia como se
estivesse caminhando em direção à minha morte... se tudo desse errado,
realmente seria.
Ao abrir a última porta, estreitei os olhos devido à claridade do sol
que nascia. Lá estava ele. Reconheci aquele homem de longos cabelos
escuros ainda de costas, James apoiava uma espada sobre o ombro e haviam
outra presa à cintura e mais uma nas costas.
Aproveitei que ele contemplava o raiar do sol para atacá-lo por trás,
mas assim que dei dois passos adiante, o invasor falou:
— Eu sabia que um dia voltaria para mim, alteza. — Virou-se.
— Vim pelo meu reino. — Lentamente posicionei a espada.
— Se o trono é o que você quer, poderá governar ao meu lado. Será
poupado e recompensado se demonstrar sua submissão.
— Eu prefiro a morte.
Sem perder tempo, corri para cima de James e o pirata veio atrás para
atacarmos juntos. Ele sacou a outra espada da cintura e bloqueou meu
ataque e o de Jake.
Encarei-o de perto. Seus olhos não estavam mais como eu me
recordava, vazios, havia brilho humano.
Ele sabia que a maldição foi quebrada.
Eu e o pirata tentamos outros golpes, mas o invasor era rápido,
bloqueava-os com maestria e agilidade, lutando contra nós dois
simultaneamente.
Até que em um golpe, fui acertado com um chute contra a barriga,
fazendo-me cambalear e cair, depois o homem atacou uma das pernas de
Jake, levando-o a desabar. Chutou para longe a espada que ficou no chão.
O ar me faltou por alguns segundos.
Apesar da dor e medo, meu capitão corria perigo. O invasor guardou
suas duas espadas e retirou a que tinha na proteção das costas.
— Isso aqui é lâmina feita de dentes de sereia... a única existente —
disse James, erguendo a espada contra luz que reluzia azul. — E é ela quem
irá libertá-lo deste mundo da maneira mais dolorosa possível. — O invasor
tentou cravá-la contra Jake, mas estendi as mãos, erguendo uma barreira e
bloqueando que ele fosse atingido.
James insistiu. Tentou golpeá-lo mais uma vez e outra.
Aproveitei que o invasor estava de costas, peguei a espada ao meu
lado e corri até ele, dando um salto para que a lâmina lhe cortasse a cabeça,
mas James se virou rapidamente. Meu braço e pescoço foram segurados, o
máximo que consegui, foi um corte superficial em sua pele.
— Des-graçado... — falei com dificuldade, à medida que seus dedos
se apertavam e o ar faltava.
— Aceite a derrota, príncipe. Ainda que eu esteja como humano,
tenho forças para quebrar seu pescoço somente com uma mão. Últimas
palavras?
Enquanto ele falava, vi Jake se erguendo, silenciosamente. E
cambaleando pegou a espada.
— A-deus — disse.
O pirata se pôs atrás dele com a extremidade da lâmina apontada para
sua nuca.
— Adeus? — Riu. — Que sem graça se despedir assim.
— Essa... despedida... não é minha. É sua.
Jake cravou a lâmina contra a nuca de James, atravessando-a. Ele
soltou meu pescoço e caiu de joelhos, espumando sangue. Nitidamente
agonizava, seu rosto estava inchado e os olhos esbugalhados.
Fiquei de pé e me aproximei, encarando-o de cima para baixo,
demonstrando poder diante de sua derrota. Aquela era a última visão que eu
queria que ele tivesse.
Quando o corpo de James se despediu de olhos abertos, o pirata veio
mancando para me abraçar.
Sentia-me exausto, quase desmanchei em seus braços.
— Você está bem? — perguntou.
— Sim — menti. Conforme o sangue esfriava, voltei a sentir as dores
mais intensas.
Jake deu um sorriso sutil e me puxou para perto, encostando seus
lábios na minha testa.
Do alto do castelo, ouvi alguns murmúrios que vinham debaixo, então
me afastei devagar do pirata e caminhei para perto das grades. Direcionei a
atenção para lá, observando meu pai em meio à multidão olhando para
cima, o exército de Acucci e os plebeus me encarando.
As vozes se aquietaram, mas as íris se mantinham atentas. Fiquei em
silêncio, sentindo a brisa da manhã passar por meus cabelos, até que notei
um objeto sendo posto em minhas mãos.
Jake havia me entregado a espada de dentes de sereia. Olhei para a
arma e sorri para ele, recebendo a mesma expressão como resposta.
Voltei a atenção para a multidão esperançosa que me encarava e inflei
os pulmões a fim de gritar.
— Povo de Marnsala, eu, príncipe Lawrence, retornei por vocês! E a
nossa maior preciosidade que nos foi roubada, voltou a nos pertencer. —
Ergui a espada. — Marnsala é nossa!
Eles e se agitaram numa só voz em comemoração.
— Salve o príncipe Lawrence! Salve o príncipe Lawrence! — Ouvi
em coro.
Um sorriso largo apareceu em meu rosto, senti-me orgulhoso do que
conquistei.
— Parabéns, alteza. Eles te adoram — comentou Jake ao meu lado.
— Ao menos agora deixou de ter a fama de príncipe gato.
Ri e me virei para ele.
— Nada disso teria sido possível sem você. — Cheguei mais perto,
colocando as duas mãos em seu rosto. Senti o coração se apertar e os olhos
arderem, havia chegado o momento que eu tanto temia. — Serei
eternamente grato.
— Não é um favor, você me deve o ouro, um navio e a anistia —
disse ele, forçando um sorriso.
— Claro! Terá mais do que isso.
— É sério!
— Eu sei!
Ri brevemente.
Permanecemos em silêncio por um tempo. Encarei suas íris
esverdeadas que me lembravam o mar, foi como se por um breve momento
revivesse nossas memórias. Nenhum dos dois queria dar o primeiro adeus.
— Então... esse é o fim da nossa jornada? — perguntou.
Meu olho marejado deixou que uma lágrima escapasse.
— Creio que sim.
Jake mordeu o lábio, seguido por um franzir de sobrancelhas que
deixou seus olhos brilhantes de melancolia.
— Irá algum dia se esquecer de mim?
— Pelo contrário, lembrarei de ti todos os dias. — Não queria deixá-
lo ir embora, ainda que soubesse que deveria. Envolvi meus braços nele
firmemente, abraçando-o. — Você não pode mesmo ficar no reino? —
Segurei suas mãos.
— Por você, gostaria, mas a terra é algo que não me pertence mais.
Sou um homem livre da lei e condenado pela maldição a navegar até o fim
de minha vida. É o destino que escolhi. — Deixou as lágrimas escorrerem
por seu rosto. — Mas mandarei cartas, quero que saiba que mesmo com a
distância, também não deixarei de pensar em você por um segundo.
Agradeço por tudo que passei ao seu lado.
— Também sou grato pelo aprendizado e paciência que teve comigo.
Jake voltou a me abraçar forte, pressionei bem meus braços ao seu
redor, sentindo-o pela última vez.
— Eu te amo, meu príncipe.
Afastei-me de seu aconchego para tocar-lhe os lábios.
— Eu também te amo, para sempre, meu eterno capitão.
O pirata ergueu os cantos dos lábios com melancolia e despediu-se de
mim com seu típico beijo na testa e um afago em meus cabelos.
Aumentou a distância entre nós, seguindo em direção à porta e ali
parou, para encarar-me mais uma vez.
E com um aceno me despedi do meu primeiro, e último, amor.
Permaneci estático, refletindo o que se passou, era impossível impedir
que as lágrimas continuassem a escorrer por minha pele. Sabia que não
conseguiria superá-lo e que a melancolia em tê-lo longe perduraria por um
tempo que jamais conseguiria contar.
Mas foi necessário e sabíamos desse final desde o começo. Ele estava
seguindo o caminho que deveria, e eu o meu.
“Querido Jake, ou devo chamá-lo de meu capitão?
Gostei de saber sobre como as águas do litoral de Stubornn são
límpidas e calmas, entrará na minha lista de viagens um dia. É bom que
esteja fazendo um ótimo uso de seu novo navio.
O reino tem passado por dificuldades com a chegada do inverno,
algumas verduras pararam de nascer, mas estou conseguindo contornar
essas adversidades e assinei uma distribuição maior de alimento para o
meu povo. Fora isso, não há mais nada a acrescentar, além da minha
tristeza que só cresce. Sinto-me sozinho mesmo quando rodeado por gente.
Não confio em ninguém, por isso, sequer as conversas são prolongadas.
Sinto sua falta, quando virá me visitar? Podem ter passado dias e dias, mas
o sentimento que desenvolvi por ti é infinito e chega a ser torturante
algumas vezes. Nas noites em que me deito, abraço forte meus travesseiros
para recordar de como era ter seu corpo junto ao meu, tento recompor nas
memórias seu cheiro embriagante e a doce sensação do toque de afagar em
meus cabelos. Contudo, estamos em caminhos certos, cumprindo nossos
papéis, como deveria ser... apesar da dor dos mares nos separando.
Estou enviando junto dessa carta uma pintura do que lembro do seu
rosto, não sou um artista, mas foi elaborada com muito carinho.
Para sempre seu, com amor, Lawrence Declaw.”
Aquelas foram as palavras na mensagem que enviei ao pirata, junto
de outro pedaço de papel com um desenho meu.
No alto daquela colina, sentindo o vento frio do inverno de Marnsala,
deixei mais um buquê de flores no túmulo, um lugar marcado no cemitério
que passei a visitar.
Meu pai acreditava que minhas idas à colina eram por conta de sua
ex-esposa, que foi assassinada grávida de maneira trágica, quando, na
verdade, eram para me comunicar secretamente com o pirata que amava. O
meu mensageiro sempre as recolhia lá.
O rei, mesmo com o passar de meses do ocorrido, estava num luto
interminável. Sequer tinha forças para visitar o túmulo dela ou de nossos
oficiais e soldados mortos na grande batalha.
Apesar de tentar colocar na cabeça que meu sonho estava
concretizado, fazer parte da governança de minha terra tornou-se um fardo
pesado de carregar. Sentia-me infeliz e solitário na maior parte do tempo.
Continuava rodeado de serviçais como antes, além de passar a ser
adorado pelo meu povo, não só pela reconquista de Marnsala, mas pelo
maior acesso da plebe aos alimentos. Contudo, a sensação foi como se
estivesse imerso no vazio.
Por isso, regularmente escrevia e enviava cartas para Jake, mesmo
que nem todas chegassem, era uma forma de me manter são. Aquela era a
única pessoa que confiava verdadeiramente.
Meu pai e eu quase não nos falávamos mais. Ele não tinha a mente
disponível para mim, ocupava-se demais com os afazeres do reino para não
deixar que a melancolia o engolisse.
Caminhei devagar pelas gramas cobertas de neve e puxei o capuz para
cobrir os cabelos, era necessário me agasalhar bem, pois naquele ano o
inverno estava mais rigoroso.
Desamarrei o cavalo e trotei em direção ao castelo. Teria mais um
tedioso almoço em família com o rei, seguido por uma reunião com o
mestre da casa da moeda.
Ao chegar lá, os cavaleiros me receberam para levar minha montaria
de volta para o estábulo e, durante o momento em que eu passava pela
entrada do castelo, os serviçais retiravam meu agasalho coberto de
pequenos flocos de neve.
Direcionei-me à sala de jantar, encontrando o enorme banquete. Meu
pai estava sentado numa ponta e o senhor no outro canto.
— Boa tarde, achei que comeríamos antes e discutiríamos de
negócios depois — falei ao entrar, puxando uma cadeira.
— Boa tarde, filho. Estava conversando com o senhor Va'quad, sobre
como melhoraremos os ganhos e fortaleceremos as alianças nesse pós-
guerra.
— Sim. A invasão de James nos custou muito caro, ainda mais devido
às reconstruções que fizemos. Contudo, uma aliança e empréstimos dos
reinos vizinhos ajudarão bastante. Teremos que aproveitar a confiança que
os outros criaram em Marnsala por termos minado a ameaça imperialista —
falou o mestre. Colocou um pergaminho sobre a mesa, abrindo-o.
— Hum, parece interessante — respondi, cortando um pouco da carne
de cordeiro. — Bom saber que em breve estaremos avançando mais uma
vez.
— Sim. Porém, o reino de Staala declarou que só aceitará nos ajudar
caso a aliança seja feita por um casamento. O rei de lá tem cinco filhas
solteiras, as mais velhas estão próximas de passar da idade fértil...
Assenti com a cabeça.
— E o que mais? — Franzi o cenho.
— Então pensamos em um baile de candidatas, em comemoração e
escolha de uma das moças — disse o mestre da casa da moeda.
— Com isso quer dizer que em breve terei uma nova mãe? — Esbocei
um sorriso sutil, seria bom meu pai ter uma companhia, talvez aquilo o
tirasse da tristeza profunda
— Não. Não irei me casar novamente.
— Ué, então...?
— Você vai.
Os últimos dias me levaram para o fundo do poço. Praticamente,
passei a me arrastar pelos arredores do castelo, movido pela profunda
melancolia. Meu pai tinha decidido que eu assumiria o trono, ele sairia
antes da hora, mas para isso teria que me casar.
A questão era que não desejava mais ninguém, além do homem cujo
coração entreguei, Jake Rogers. Ainda que estivéssemos distantes, falando
entre cartas, estávamos conectados. Confesso que as vezes tinha o
pensamento patético de que um dia ele romperia a maldição para viver
junto a mim no reino. Aquilo era impossível, ainda que ele rompesse, o
povo de Marnsala jamais aceitaria o príncipe com outro homem.
Caminhei pelo salão principal, observando atentamente os detalhes
decorativos para o baile; todos os artefatos dourados, a extensa mesa
coberta por seda onde seriam colocadas as frutas frescas e carnes dos mais
fartos animais.
Os serviçais entraram com as flores para terminar de enfeitar o lugar,
dando um toque final delicado e receptivo.
— O que está achando? — Ouvi a voz ecoar pelas paredes.
Virei-me de lado, encontrando o rei. Ele estava com os braços para
trás do corpo, inspecionando cada detalhe dali.
— Está ficando bem bonito, pai.
Suspirei de forma prolongada.
— Ansioso para seu grande dia?
— Não acho que ansioso seja a palavra certa. Não anseio por isso,
mas sim nervoso. Na verdade, angustiado, não desejo me casar com mulher
alguma... — Abaixei o tom de voz. — Creio não ser capaz de amar uma.
— Oh, filho... — Apoiou a mão no meu ombro. — O que não te
contei sobre a realeza é que os casamentos dos nobres são, em sua maioria,
contratos. Puramente negócios. Poucos são por amor, na verdade, às vezes o
amor até vem depois com a convivência, outras vezes não. E é para isso que
existem os amantes.
— Não quero amantes, eu já amo alguém.
— Pois então que aprenda a amar outro. De preferência alguém de
sangue-azul como o seu. Honre a sua origem, essa agora será a sua vida. —
Deu as costas para mim, encerrando o assunto.
O luto e o fardo de carregar o trono em ruínas destruiu meu pai, junto
da nossa relação, pois todo o peso acabava por ser jogado para mim.
Permaneci sozinho no salão, refletindo sobre o que ele havia acabado
de dizer. E naquele momento segurei as lágrimas, foi como se estivesse
sentenciado a passar o restante da minha vida vivendo uma mentira e
amargando em infelicidade.
A realeza se tornou um pesadelo, completamente o oposto de tudo
que esperei viver.
Olhei para o relógio preso à parede que indicava o horário, faltava
pouco mais de uma hora para que o baile se iniciasse. De lá do salão era
possível sentir o cheiro da comida escapando da cozinha.
Senti a barriga roncar. Apesar da fome, não era educado um nobre
comer qualquer um dos alimentos preparados para a celebração antes da
hora. Portanto, preferi subir as escadas a fim de ir para o quarto me banhar.
Não teria ninguém para esfregar minhas costas, dispensava todos os
serviçais que antes me vestiam e auxiliavam no banho porque desacostumei
com as suas presenças.
Arrumei-me sozinho, feito um plebeu. Deixei o outro compartimento
do quarto para ir até a penteadeira onde sentei para terminar de escovar os
cabelos, definir a ponta dos cachos, troquei o tapa-olho de pano por um de
couro e coloquei a máscara vermelha que cobria metade do rosto até o
nariz. Estava pronto.
Do alto, ouvi o badalar do sino, indicando que deu o horário do baile.
Os portões seriam abertos para os convidados.
Estava tão nervoso que decidi esperar mais um pouco antes de descer,
preferia chegar depois de quase todos terem entrado. Não queria estar
próximo à porta cumprimentando um por um, principalmente as
pretendentes. Que seriam três, já que as outras duas eram muito jovens.
Pobres mulheres, que devem ter trajado seus melhores vestidos e
usado os mais belos adornos, tudo isso numa tentativa falha de chamar a
minha atenção.
Fiquei recluso no quarto o quanto podia, até que ouvi três toques à
porta e ao atender, era meu pai com os lábios franzidos.
— Por quanto tempo ficará escondido aqui? As pessoas estão
esperando para vê-lo!
— Não estou me escondendo — menti. — Apenas terminando de me
preparar.
Ele me olhou de cima a baixo e estreitou os olhos por trás da máscara
prata.
— Para mim você parece pronto. Desça para o salão, agora.
Não quis contrariá-lo. Sem dizer uma palavra a mais, passei por ele
para ir em direção as escadas. O rei foi atrás. Bastou pisar no último degrau
que todos os olhos foram fixados em mim.
Não sei se foi por conta das máscaras, mas não reconheci uma pessoa
sequer. Todos os nobres estavam vestidos na mais alta costura, as peças que
cobriam seus olhos ou metade dos rostos eram decoradas, algumas com
brilhantes até.
Eles me reverenciaram e voltaram a conversar, comer e bebericar
vinho, enquanto a música de fundo era tocada por uma banda com seus
violinos gigantes e trompetes.
Nisso vieram três mocinhas, cada uma com vestido de cor diferente:
uma de azul, outra de amarelo e a última de vermelho. Elas não tinham
tanta discrepância de altura entre si, mas, certamente, eram maiores que eu
sem os sapatos. Seus cabelos eram brilhantes e pareciam macios, todos da
mesma cor, preto. Porém, com cortes e penteados diferentes.
— Filho, gostaria de lhe apresentar a Amélia.
A de azul curvou-se brevemente.
— Encantada em conhecê-lo, alteza.
— Felícia.
A de amarelo, mais tímida, nada disse, apenas me saudou.
— E Magnólia.
A de vermelho era decerto a mais ousada, ela se aproximou um pouco
mais para me cumprimentar e se curvou o bastante de forma que foi visível
seu decote, ficando abaixada mais tempo do que deveria para uma simples
reverência.
Que falta de classe.
— Lisonjeada em conhecê-lo, alteza.
— Sintam-se à vontade na festa, senhoritas — respondi,
cordialmente.
— Deixarei que vocês se conheçam melhor — disse o rei, afastando-
se.
Nós quatro permanecemos em silêncio por um tempo, a ponto da
situação beirar o constrangedor, até que Magnólia, a nobre de volumosas
madeixas escuras presas num coque e vestido vermelho, aproximou-se,
pegando numa mecha do meu cabelo.
— Que cabelos macios você tem, príncipe...
— Obrigado... — Senti o rosto se aquecer, ficava cada vez mais
desconfortável. Dei um passo para trás.
— Soube que você foi o responsável pela ruína de James, o matou
com a própria espada! É verdade? — perguntou a de azul, dando uma
cotovelada na outra.
— Sim, é — respondi.
— Nossa! Que ótimo exemplo... um homem perfeito para se ter ao
lado. Nobre e valente.
— Agradeço o elogio, hum... vou falar com os outros convidados,
tudo bem? Novamente, bem-vindas — cortei o assunto para sair de perto
delas, caminhando o mais rápido que pude para a mesa em que havia o
banquete. Meu estômago vibrou ao ver toda aquela fartura. Não hesitei em
engolir uma carne depois da outra, seguido por algumas frutas para
equilibrar.
Enquanto alimentava minha gula nervosa, senti um cutucar, e ao virar
o rosto para o lado era a garota de vestido amarelo, aquela que a voz eu
ainda não tinha escutado.
Seus olhos estavam estreitos por trás da máscara dourada, e ela falou
baixo:
— Por favor, não me escolha.
— O quê? — Deixei alguns farelos escaparem da boca cheia.
— Não me escolha, já amo alguém... — segurei um ''eu também'', até
que a senhorita prosseguiu —, e pretendo abrir mão de tudo por ela,
inclusive deixá-lo.
Assenti com a cabeça e terminei de mastigar.
— Tudo bem. Eu compreendo. Fique tranquila, não será escolhida.
— Obrigada.
A mulher olhou para trás, sua atenção foi direcionada para a
cavalheira da guarda real de seu reino.
Suspirei e voltei a me concentrar na comida, entendi o desespero dela.
A música mudou o ritmo, para algo mais lento, e certamente uma das
mocinhas esperaria que eu a convidasse para dançar. Pavoroso.
Só de pensar em toda pressão que havia sobre mim, principalmente
em relação ao meu comportamento, as palmas das mãos suavam e a
respiração se comprometia. Fiquei sufocado.
Deixei o salão rapidamente para ir para fora do castelo tomar um ar
fresco. Comecei a caminhar pelos jardins e minha memória reviveu os
momentos de angústia de quando vi a invasão de James. Foi exatamente ali
onde eu estava.
Até o momento era semelhante, inclusive.
— Essa é uma ótima festa. — Arrepiei-me por inteiro ao ouvir aquela
voz. Eu a reconhecia, e demorei um tempo para ter a coragem de me virar.
Ao espiar por cima do ombro vi o capuz sendo retirado, exibindo seus
cabelos longos e escuros, onde os olhos rubis brilharam por trás da máscara.
— Eu achei que você tivesse morrido...
— Príncipe ingênuo, feiticeiras como eu não morrem assim. —
Exibiu os dentes afiados.
Apalpei a cintura por força do hábito, mas não tinha uma espada ali,
estava desarmado. Senti como se minhas pernas fossem perder a
sustentação.
— O que quer?!
— A espada de dentes de sereia. Ela me pertence. James a roubou.
Soltei o ar em alívio e optei por não dificultar as coisas para ela.
Aquela bruxa era poderosa, e daquela vez eu estava em desvantagem,
sozinho, sem Jake ou Arya para me ajudar.
— Está no meu quarto, no baú que há debaixo da cama e a chave na
gaveta da penteadeira.
— Tão fácil assim? Você já foi mais desafiador.
— Sim — respondi com desânimo.
— O que há, príncipe? Parece mais infeliz do que da última vez que o
encontrei, ainda que estava adoecido e sofrendo. — Aproximou-se.
Sentia-me tão solitário e desamparado que resolvi cometer a insana
ideia de expor meus sentimentos para a bruxa que um dia me sequestrou.
— Porque tudo que acreditei se mostrou não ser o que eu esperava.
Vivi uma mentira e agora amargo na tristeza.
— Amarga porque quer. Afinal, está vivendo uma vida que não o
pertence mais. Seu corpo está aqui, mas isso... — tocou no meu peito,
sentindo as batidas do meu coração —, está lá. — Apontou para além das
muralhas do castelo, onde ficava o porto. O mar.
Senti o olho arder.
Segurei o choro.
— Mas eu não posso largar tudo, deixar meu pai só...
— Em toda decisão temos que abrir mão de algo. E, nesse caso,
ficando aqui, está abrindo mão de sua felicidade.
Mordi o lábio inferior e fechei o punho.
— Então tudo que tem para me sugerir é uma fuga?
— Para um bom entendedor... — Colocou o capuz mais uma vez e
virou-se para adentrar no castelo, feito um fantasma.
Era tentador pensar em deixar aquele pesadelo para viver com Jake no
mar. Contudo, àquela altura eu não sabia onde ele estava, sequer isso fazia
parte do nosso acordo, e meu pai... parecia ingratidão deixá-lo, visto que eu
era sua única família.
Ao retornar para o baile, vi o rei aos risos com uma outra mulher,
enquanto as duas pretendentes de vestido vermelho e a de azul pareciam
rondar os olhos pela festa procurando por mim.
Estava quase sendo caçado. Resolvi ir para longe do salão principal e
subi as escadas.
Ao pisar no último degrau do segundo andar e virar em direção à
porta do meu quarto, tive o corpo puxado pela mão.
O homem cuja máscara dourada cobria metade do rosto, deixando
apenas os lábios à mostra, deixou que meu corpo encostasse no dele.
Inspirei fundo ao sentir seu cheiro salgado e meu coração descompensou
nas batidas.
— Que deselegante deixar um baile sem ao menos dançar.
— N-não é você... não pode ser... — Minha voz ficou trêmula, meus
pés mal saíam do lugar durante o momento em que ele tentava bailar
comigo.
— Estranho não me reconhecer mais, alteza. — Afastou-se e retirou a
máscara, seguido por um sorriso.
— Jake?
— Senti saudades, Law. — Aquela abreviação do meu nome,
ninguém mais me chamava assim, somente ele.
— Jake! — Quebrei a pequena distância que havia entre nós,
abraçando-o fortemente. Meus braços tremiam, era inacreditável para mim
que, enfim, o reencontrei.
Os braços dele me envolveram num aperto e seus lábios tocaram meu
pescoço.
— Senti sua falta a todo tempo, era como se meu coração se apertasse
de saudade a cada segundo. — Encarou-me. — E quando soube que iria se
casar, fiquei louco, com medo de perde-lo.
— Jamais me perderia, meu coração te pertence. Eu te amo, capitão...
— Deixei de prender as lágrimas, sentindo-as escorrerem por meu rosto.
— Eu também te amo, meu príncipe.
O pirata passou o polegar na minha bochecha para secá-la e
aproximou seus lábios dos meus, selando num beijo. Aquele gesto que tanto
senti saudade.
Nosso momento foi rompido quando ouvi as vozes ecoarem pelo
salão.
— Cadê o príncipe? Lawrence! Alteza, onde você está?
Jake alternou seu olhar entre mim e o andar debaixo, seguido por um
franzir de sobrancelhas.
— Estão me procurando... — Suspirei.
— Pelo visto já está próximo do momento de eu ir, mas não quero
voltar sozinho. — Pegou na minha mão. — Fuja comigo, Lawrence. Eu vim
para vê-lo, por não suportar de saudades, e através de suas cartas percebi
que sente o mesmo, por isso te faço a proposta. Fuja comigo?
— E-eu não sei se posso...
— Príncipe, apareça! Estamos perto do momento mais esperado da
noite... a escolha! — Escutar aquelas frases fizeram minhas pernas
tremerem, na verdade, meu corpo todo se balançou.
Meu olho amedrontado encarava o pirata e se desviava para o andar
debaixo, onde havia pessoas rondando os cantos. Até que meu pai começou
a subir os degraus.
Jake segurou firme minha mão.
— Law...
— Lawrence, pare de se esconder! — Ouvi meu pai falar alto, à
medida que o som de seus passos se aproximavam de onde eu estava.
— Lawrence, eu tenho que ir...
Bastou que o rei aparecesse no nosso andar e avistar a mim e o pirata
de mãos dadas que seus olhos quase pularam do rosto. A pele ficou
avermelhada de fúria ao ver Jake.
— O que você está fazendo aqui? — Meu pai bufou, aproximando-se.
— Ele veio me levar — respondi, entrelaçando meus dedos nos do
capitão. — Não me casarei e não pretendo permanecer no reino. Meu lugar
é no mar, com ele.
A majestade puxou um suspiro e a raiva foi trocada por frustração.
Estava tão cansado que não tinha nem mesmo forças para discutir.
— Irá me deixar? — Enxerguei seus olhos marejados, ele estendeu a
mão trêmula para mim.
— Os meses em que passei no mar, foram os mais difíceis da minha
vida, mas também os melhores. Conheci novos lugares, comidas, aprendi
coisas e me apaixonei profundamente. Pai, eu nunca fui tão feliz. E quando
retornei para cá, para ficar limitado às muralhas do castelo, senti-me como
um pássaro que teve suas asas cortadas. Eu não queria deixá-lo sozinho,
mas permanecer aqui é amargurar em tristeza e solidão pelo resto de minha
vida. — Aproximei-me e segurei na mão do rei.
Ele ficou em silêncio por um tempo, até que disse:
— Durante boa parte da minha vida experimentei a felicidade, e não
seria justo com você fazer com que abra a mão da sua por mim. Sua mãe
não gostaria disso. Eu já te privei demais — Respirou forte. — Sentirei sua
falta.
Sorri sutilmente.
— Virei visitá-lo ou mandarei cartas.
Meu pai nada falou, apenas me abraçou firme, aquele era seu jeito de
dizer adeus. E ao ouvir as últimas badaladas do dia, entreguei a máscara
para ele e deixei seus braços para dar as mãos ao meu amado. Caminhamos
rapidamente pelo corredor.
Dei uma última olhadela por cima do ombro, observando a mão dele
erguida em um aceno.
Devido à fuga, Jake sabia todos os pontos estratégicos do castelo,
seguimos pela passagem secreta que dava no andar debaixo e a saída pelos
fundos, onde ninguém nos veria.
Quando ultrapassamos os muros do castelo, o pirata me puxou para
cima do cavalo preso numa árvore próxima.
Segurei firme em sua cintura e trotamos em direção ao porto.
Enquanto sentia o vento frio da noite em meus cabelos, abaixei a pálpebra,
evitando olhar para trás.
Mesmo sabendo que estava fazendo a coisa certa, era doloroso deixar
o lugar em que nasci e cresci. Mas apesar do incômodo do desapego, não
me arrependi da decisão.
O pirata libertou o cavalo e caminhamos pelo cais de SeVan até o
navio que estava na zona portuária abandonada, a mesma em que
embarquei no Maldição do rei pela primeira vez.
Quando pisei novamente em um convés, os marujos estavam todos
atentos olhando para nós dois e, então, Jake se pronunciou.
— Senhores, Lawrence agora faz, oficialmente, parte da tripulação!
— falou alto, fazendo com que os piratas erguessem suas espadas.
— Lawrence! Lawrence! Lawrence! — Strigói puxou um coro.
— É bom tê-lo de volta, príncipe — sorriu a bruxa-pirata ao me
receber. — O tapa-olho combinou com sua nova fase.
Ri brevemente.
— Por favor, não me chame mais de príncipe. — Olhei para Jake. —
Agora sou um pirata.
Se passou um ano e meio desde que abandonei a coroa para fugir para
o mar. Não pude pisar em Marnsala desde então, na verdade, não pude pisar
em terra alguma, já que meu rosto continuava em diversos cartazes.
Meu pai espalhou a notícia de que eu havia sido sequestrado por
piratas no dia que eu escolheria minha futura noiva, ao invés de declarar
que seu único filho deixou o reino, pelo qual lutou, para viver ao lado do
bandido mais odiado pela coroa.
Para alguns, depois de tantos anos desaparecido, fui dado como
morto. Já outros ainda mantinham a esperança de me reencontrarem vivo,
não apenas pela recompensa, mas porque me tornei um símbolo em
Marnsala e nos reinos vizinhos desde que minei a ameaça que era James
Skamech.
Com o passar dos anos, me tornei ainda mais irreconhecível. Deixei
que meus cabelos crescessem a ponto de tocarem a cintura, meu corpo se
tornou menos franzino, os trabalhos no navio me trouxeram alguns
músculos, a pele ficou menos pálida devido aos intensos dias de sol, além
do tapa-olho que escondia uma esclera ferida e enorme cicatriz que era a
cereja do bolo. Jake sempre me dizia que aquilo daria meu nome pirata.
E realmente deu.
Enquanto os cartazes desbotados de desaparecido estampavam o
antigo Lawrence, os novos com recompensa pela minha cabeça estavam ao
lado dos de Usurpador. Deixei de ser o príncipe gato para me tornar Scar, o
segundo pirata mais procurado pelos sete mares.
Os outros piratas e a marinha acreditavam que eu era o novo braço-
direito do capitão Jake Rogers, quando, na verdade, não era apenas um
membro de sua tripulação, mas seu companheiro, seu amado, e naquela
noite, sob a luz da lua cheia e céu estrelado, numa ilha deserta, me tornaria
seu matelot.
Um termo diferente que os piratas usavam para se referir aos seus
maridos. Ou quase isso.
O vento gélido batia em meus cabelos, fazendo com que as madeixas
se mexessem tão agitadamente quanto meu coração naquele momento.
Minhas mãos suavam, Jake provavelmente sentia a umidade, ao passo que
apertava meus dedos.
Estávamos um de frente para o outro, ele sorria e seus olhos de mar
demonstravam a maré mansa. Estava feliz da decisão.
—... e sob o testemunho dos piratas do navio Maldição do rei, eu os
declaro matelots. Sendo assim, o pirata Lawrence Declaw herdará o cargo
de capitão em caso do falecimento de Jake Rogers. Como também ambos
partilharão suas riquezas — disse Arya, no meio de nós dois, enquanto o
restante da tripulação estava ao lado, vendo a nossa improvisada união.
Abri um sorriso largo e Jake igualmente. Trocamos anéis e assim
permanecemos, apenas nos encarando.
— É só isso? — indagou Bippo.
— É. É só isso — afirmou Arya.
— Qual é, mas nesse caso os dois se amam, não é matelotage só por
negócios! É um casamento! — Strigói se aproximou de nós e cruzou os
braços. — Cadê as juras de amor?
Não aguentei o riso, já Jake ergueu os ombros ao mesmo tempo em
que as sobrancelhas.
— Tá legal, tá legal. Creio que vocês tenham razão... — Respirou
profundamente sem desviar o olhar do meu. — Lawrence, é difícil para
mim encontrar novas palavras para expressar o sentimento, pois você já
deve conhecer todas pelas minhas declarações a cada dia. — Apertou mais
minhas mãos. — Mas quero que saiba que me comprometerei até meu
último suspiro a protegê-lo, cuidá-lo, e fazer com que sinta em ações as
palavras de amor que digo a você. Trabalharei arduamente para sustentar
esse sorriso que aquece meu coração sempre.
Os cantos dos meus lábios se ergueram.
— Jake, diferente de você, tenho dificuldade para pôr em palavras o
que sinto, mas quero que saiba que a melhor decisão que tomei em minha
vida foi abandonar a coroa por ti. O único homem que amei e que me
comprometo a cuidar, proteger e respeitar até o dia de minha morte.
— Beija! — alguém gritou, o que fez com que os outros piratas
entrassem num coro, berrando a palavra repetidas vezes. O usurpador me
puxou pela cintura e deitou sutilmente meu corpo em seus braços,
aproximando-se para que nossos lábios se tocassem.
Fechei os olhos e apoiei a mão em sua barba, sentindo meu coração
vibrar tanto quanto a euforia da tripulação. Suspirei após o nosso beijo.
Steve arrastou um saco de pano até o meio do caminho e o abriu,
exibindo as inúmeras garrafas de rum.
— Agora vamos beber!
Cada um pegou uma garrafa de dentro da sacola, Strigói ergueu a sua
com um sorriso no rosto enquanto seus olhos se fixavam em Jake.
— Um brinde ao nosso capitão e seu amado, que a união seja feliz e
eterna enquanto dure.
— Felicidades aos dois! — Arya gritou.
Brindamos e eu levei a garrafa à boca apenas para dar um gole.
Aquela bebida fazia minha garganta queimar e os olhos arderem, detestava
o sabor e acreditava que jamais iria me acostumar com aquilo.
Jake discretamente alisou a palma da minha mão com a ponta dos
dedos, até que a segurasse e me guiou com sutileza para longe da algazarra.
— Para onde vamos? — Olhei para o alto, vi o céu estrelado livre de
nuvens e sorri.
Conforme nos afastávamos de onde estava o fogo e a tripulação, o
ambiente ficava cada vez mais escuro. Jake apertou minha mão durante o
caminho.
— Pensei em... ter um momento a sós com você.
Parei de andar e ele se voltou para mim.
— Tipo uma noite de núpcias?
Ele riu, mas ainda em meio a penumbra notei a coloração rosada que
tomava conta de seu rosto, em especial as bochechas.
— É. Algo assim.
Enruguei o nariz e olhei para a areia da ilha.
— Você não está pensando em fazer ao ar livre com esse monte de
areia, está?
— Bem, essa era a ideia. — Riu.
— Que tal irmos para o navio?
— Não seremos nada discretos.
Ergui os ombros.
— Não é como se eles não soubessem o que fazemos na sua cabine há
tempos.
Jake respirou profundamente e deu dois passos para perto de mim,
entrelaçou seus dedos em meus cabelos e aproximou meu rosto de seus
lábios. Aquele beijo doce e suave me deixou saber de sua resposta antes
mesmo que fosse dita.
Ao nos afastarmos, meu amado me encarou e assentiu. Pegou em
minha mão e voltamos para onde estavam os outros piratas. Eles deveriam
ficar cientes de que levaríamos um dos botes.
— Mas já? — perguntou Bippo ao nos ver retornando.
A risada discreta de Jake escapou pelo nariz.
— Iremos para o navio. Vocês ficarão bem?
— Aproveite sua noite, capitão. Eu cuido deles. — Arya piscou e
ergueu a garrafa.
— Obrigado, imediata.
Também agradeci, em silêncio, com um assentir de cabeça. Nós nos
aproximamos de um dos botes e ajudei meu amado a empurrá-lo em direção
à água, subimos e remamos juntos até o navio, onde deixamos uma escada
presa à lateral. Jake subiu primeiro e, depois, jogou as cordas para que eu
prendesse no bote. Subi atrás dele.
Era estranho pisar naquele convés vazio e não ouvir nada além do
som das ondas se quebrando contra a embarcação. Eu realmente havia me
acostumado com os outros piratas a ponto de sentir sua ausência ainda que
estivéssemos juntos minutos antes.
Dei a mão ao meu capitão e fomos degrau acima até sua cabine. Ele
acendeu a lamparina, permitindo-me enxergar como tudo estava arrumado,
lençóis trocados, as roupas guardadas em seus lugares...
Jake retirou seu chapéu e o pendurou próximo à porta. Virou-se para
mim com um sorriso largo.
— Fiquei ansioso por isso o dia inteiro. — Aproximou-se de mim e
sem aviso ergueu meu corpo em seu colo, o que me fez soltar um grito.
Fui jogado na cama de frente para ele.
— Por que tão ansioso se já fizemos tantas vezes? — Franzi as
sobrancelhas.
— Porque dessa vez farei com o meu matelot.
Ri.
— Pode me chamar de marido. É mais bonito assim. — Sorri
sutilmente.
Jake se aproximou para me beijar, mas antes disso vislumbrou minha
íris, fixando sua atenção nela. Percebi como suas pupilas estavam maiores e
o rosto ainda mais corado.
— Eu te amo, marido.
— Eu também te amo... — passei a mão por sua barba, sentindo os
dedos espetarem —, muito.
Ele grudou seus lábios nos meus, mas daquela vez, de forma menos
romântica, era mais intenso, ansioso e voraz. Eu sabia o que esperar quando
me tomava daquela maneira e suas mãos inquietas erguendo minha blusa só
confirmaram o que pensava.
— Jake, espera.
— O que foi? — Seus olhos se arregalaram, à medida que se afastou.
— Eu... eu pensei em fazermos algo diferente hoje.
— Diferente? — Ergueu a sobrancelha e um canto de seus lábios
subiu. — O que você quer inventar?
— Posso ter sua permissão para tomá-lo?
Ele recolheu os lábios e seu olhar se tornou distante, assimilando a
informação.
— Você quer... trocar as posições?
Apoiei os cotovelos na cama a fim de deixar meu rosto mais próximo
dele e afirmei:
— Sim. Eu quero. Prometo ser tão cuidadoso contigo quanto é
comigo, e se você não quiser mais, podemos...
— Tem permissão.
— O quê? — Entreabri os lábios.
Jake respirou audivelmente, entremeou seus dedos em meus cabelos e
chegou rosto mais perto. Antes de me beijar, repetiu:
— Tem permissão.
O ar saiu com dificuldade e meu corpo tremulou discretamente de
nervosismo. Passei tanto tempo com ele se esquivando da proposta, que não
esperava por aquela resposta de imediato.
Era o que eu queria, mas, por um momento, fiquei receoso de
prosseguir e não conseguir suprir qualquer expectativa que criei nele.
O pirata percebeu a minha tensão e levou a mão ao meu rosto,
acariciando-o.
— Está tudo bem?
— Estou com medo de falhar contigo.
— Lawrence... podemos errar, falhar e tentar de novo. Faz parte. Não
vou te amar menos por isso. — Tocou-me os lábios novamente, agarrando
firme em meus cabelos. — Tudo bem? Acalme-se.
Assenti para ele, ainda que sentisse o coração a ponto de explodir.
Soltei o ar devagar para desacelerar meus pensamentos e voltei a beijá-lo.
Ainda de lábios grudados, deixei que minhas mãos explorassem seu corpo,
começando pelo peitoral robusto e desci lentamente por seu abdômen até
que alcançasse sua virilha.
Jake apoiou a mão na minha nuca e respirou forte. Desatei a fivela de
seu cinto e abri um dos botões de sua calça a fim de senti-lo, ele estava tão
ansioso que pegou em minha mão e a colocou por dentro de sua roupa.
Massageei-o, notei-o úmido e pulsando dentre meus dedos. Perceber
que eu era o motivo de sua excitação me fez latejar também.
Afastei nossos lábios para desfazer de nossas blusas e puxei as calças
de Jake um pouco mais para baixo a fim de exibir sua ereção. Ele segurou
em meus cabelos, torcendo as madeixas em seu pulso.
No momento em que comecei a tocá-lo, percebi-o fechar os olhos,
mas só quando me posicionei entre suas pernas e o lambi, que me foi
permitido ouvi-lo gemer, ainda que baixo.
Minha boca salivava ao tê-lo quente preenchendo-a, Jake empurrou
sutilmente minha cabeça, de forma que o senti bater contra a garganta e o
olho lacrimejar. Contudo, não engasguei, continuei a chupá-lo.
— Lawrence...
Direcionei os olhos para ele.
— Não sei se vou aguentar mais... — arfou —, quero que me foda
agora.
Arregalei o olho.
Com receio, concordei e afastei a boca, deixando que um fio de saliva
escorresse. Enquanto meus dedos tremiam para desfazer de minha calça, o
pirata foi ágil em terminar de se livrar das dele e sentou-se para me ajudar a
tirar as minhas também.
— Desculpe, Jake. Eu estou meio nervoso...
— Eu sei. Calma.
Ele riu e apoiou a mão em meu peito, deitando-me. Puxou minhas
calças junto da roupa debaixo e as jogou no canto. Seus lábios se
aproximaram dos meus e a reação que aconteceu de imediato ao tê-lo sobre
meu corpo foi de recolher as pernas, dando-lhe abertura.
Ao senti-lo roçar contra minha entrada, cruzei as pernas em sua
cintura e virei na cama, de forma que eu ficasse por cima.
Jake arregalou os olhos.
— Você está mesmo confortável quanto a isso? — perguntei.
O pirata apenas estendeu a mão para o vidro de óleo que havia ao
lado da cabeceira da cama e entregou para mim.
— Entre devagar.
— Certo.
Engoli em seco e passei o óleo em mim, Jake recolheu as pernas para
que eu passasse nele também. Fiz com que um dedo deslizasse para dentro
e o senti contrair, esperei que ele se acostumasse com a sensação antes de
movê-lo e inserir outro.
Preparei-o com calma e notei o quanto sua expressão inicial de
desconforto mudou, ele deixou de enrugar o rosto.
Respirei profundamente e usei uma das mãos para erguer sua perna,
enquanto a outra apoiava para penetrá-lo.
Tudo parecia estar perfeito, mas naquela hora não consegui, minha
ereção se recolheu.
Abaixei o olhar.
Ele se sentou na cama e colocou a mão em meu rosto.
— Lawrence...Lawrence, olha pra mim.
Fiquei envergonhado de encará-lo.
— Perdão, Jake. Eu não sei o que aconteceu.
— Aconteceu que você está tenso. Deite-se.
Acatei seu pedido, deixando que minha cabeça recaísse sobre os
lençóis. O pirata veio sobre mim para me beijar, fechei o olho para me
concentrar apenas nas sensações e na malícia de suas carícias.
Jake me estimulava durante o roçar de nossas bocas, sua mão
lambuzada de óleo deslizava por toda a extensão da minha excitação,
deixando-me pronto para ele novamente.
Nosso beijo foi interrompido quando subiu no meu colo e mexeu os
quadris. Assim que se posicionou e forçou para me fazer entrar, notei sua
expressão de desconforto.
Só ao me ter dentro de si que a feição mudou, as sobrancelhas se
franziram e os lábios deixaram escapar um gemido.
Fiquei estático, encarando-o, então Jake pegou em minhas mãos e as
apoiou em sua cintura. Ele estava totalmente entregue à minha ideia, só
faltava eu estar também.
Lentamente, mexeu o quadril sobre mim, em um vaivém. Inclinou
com sutileza a cabeça para trás e fechou os olhos.
Pressionei mais meus dedos contra sua pele e troquei nossas posições,
ficando por cima. O pirata recolheu os joelhos e nos beijamos, mas assim
que comecei a me movimentar, ele não conseguiu mais sustentar o ato e
choramingou em meus lábios.
Segurei em suas pernas, erguendo-as um pouco mais para que
pudesse ficar livre para me mexer.
Era bom experimentar seu corpo de um jeito diferente, ouvir seus
sons mais agudos e ver o prazer expressado em seu rosto.
Jake levou a mão à frente, massageando sua ereção a fim de enlevar
as sensações.
Aumentei o ritmo, à medida que ele se tocava.
Não foi possível conter meus gemidos ao tê-lo me pressionando
daquela maneira, senti-lo contrair me levava ao ápice.
Fechei o olho para tentar me segurar e notei uma de suas mãos
apoiada no fim das minhas costas.
— Mais rápido, Lawrence — ordenou.
E eu obedeci.
Ao erguer a pálpebra, notei-o com o rosto avermelhado e lábio preso
entre os dentes enquanto sua mão também aumentava o ritmo. Ele chegou
ao clímax antes de mim, suas pernas começaram a tremular.
Senti-me quente, exausto, eu suava e meus cabelos insistiam em cair
sobre meu rosto. O coração se acelerou e a respiração igualmente, estava
chegando ao meu limite.
Meu gemido saiu mais alto ao me derramar dentro dele. Recaí ao seu
lado, ofegante.
Jake permaneceu de olhos fechados e não emitiu mais nenhum som.
Franzi as sobrancelhas, receoso.
— O...o que você achou? — perguntei, apreensivo.
Ele suspirou e se virou de lado para me encarar, os cantos de seus
lábios se ergueram lentamente.
— Foi maravilhoso, marido. — Levou a mão aos meus cabelos,
afastando-os do rosto. — E pra você? Valeu a experiência?
Ri brevemente.
— É... acho que sim. Mas achei cansativo, não sei se pretendo fazer
isso mais vezes.
Jake gargalhou.
— Não importa quanto tempo passe, você não muda mesmo!
Sorri e me apoiei em seu peito.
— Obrigado pelo que fez por mim.
Sua mão foi posta sobre a minha e os olhos repletos de ternura me
encararam, em seguida se aproximou para beijar o topo dos meus cabelos.
— Eu te amo, Lawrence.
— Eu também te amo, Jake. Muito.
Nós nos aconchegamos um pouco mais e, assim, permanecemos por
um tempo. Suspirei, de coração cheio e corpo em vibração.
Terminar o dia deitado ao lado do homem que eu amava era a forma
que pretendia finalizar todas as minhas noites, não poderia estar mais
convicto de que tomei a decisão certa.
Despertei com um bocejo, cocei o olho, sentindo o roçar do anel na
pálpebra e sorri ao ver a aliança em meu dedo. Sentei-me na cama e encarei
meu amado adormecido. Normalmente, Jake acordava antes de mim, mas
após a nossa primeira noite de união e sua bebedeira de rum, ele
permaneceu em seu profundo sono.
Deixei a cama, peguei meu sobretudo pendurado na parede e abri a
porta da cabine. A reação de imediato foi estreitar os olhos devido à
claridade, levei a mão à testa e vislumbrei o convés que continuava vazio.
Todos os piratas deveriam estar dormindo, inclusive o cozinheiro.
— É, nada de café da manhã por agora — falei só.
A brisa do mar bateu em meus cabelos e o cheiro salgado subiu.
Voltei a olhar a cabine aberta e admirei o corpo de Jake. Por um momento,
refleti em como gostaria que meu pai soubesse o quanto eu estava feliz ali,
que, enfim, era um homem oficialmente comprometido.
Assim como eu tinha muitas novidades a contar, desejava saber das
dele também, que apostava que eram muitas. A última vez que soube de
algo de Marnsala, foi que o rei havia se casado novamente, só não sabia
com quem, mas esperava que ela fosse bela e fértil para dar ao meu pai um
novo herdeiro. Ele merecia ser feliz.
Retornei à cabine a fim de vasculhar o armário atrás de um pedaço de
papel e pote de tinta. Os encontrei próximos dos livros que Jake havia
furtado para mim. Sentei-me na cama e apoiei um livro sobre os joelhos e o
papel em cima, escreveria uma carta, tentaria mandar assim que pisasse em
terra firme.
Olá, rei Robert. Nesta carta não irão assinaturas, pois sabes bem
quem a enviou. Primeiramente, desejo-lhe muita felicidade e fartura em seu
novo casamento, espero um dia conhecê-la. Além da nova rainha de
Marnsala, quais as outras novidades teria para me contar? As minhas são
muitas. Estou navegando pelas águas do Norte. Nesse tempo, me tornei
mais forte e habilidoso, meus cabelos estão maiores e agora meu dedo
anelar expõe meu comprometimento, sim, estou em união com aquele que
conhece, e muito feliz.
Sinto saudades de você, de ouvir suas histórias e poder compartilhar
as minhas. Creio que se passou tempo suficiente do nosso afastamento,
espero encontrá-lo em breve.
Com carinho, S.
Enquanto dobrava o papel, saltitei na cama, arrepiando-me por inteiro
ao sentir os dedos de Jake em minha perna. Arregalei o olho para ele e
recebi uma expressão de sobrancelha erguida.
— Meu Deus! Você me assustou! — Levei a mão ao peito.
— Desculpe, só queria fazer um carinho. — Olhou para a carta. —
Para quem está escrevendo?
— Para meu pai. Senti saudades, então gostaria de saber como ele
está e o reino também.
Um sorriso sutil apareceu no rosto dele, que se sentou na cama,
encostando o ombro no meu.
— Acho gracioso como se preocupa com seu reino ainda que muito
distante dele. Assim que fizermos a próxima parada procuraremos um
mensageiro para que possa enviar a carta, mas espero que não tenha posto
sua assinatura.
— Não coloquei, mas pela letra meu pai saberá que sou eu. Somos
cúmplices nessa mentira. — Enrosquei a mão nos cabelos, enrolando-os
num coque.
Jake colocou seus dedos sobre os meus e assentiu. De repente,
ouvimos os três toques à porta.
— Acordem, pombinhos! O rango está servido! — gritou Strigói do
outro lado.
Guardei a carta no bolso do sobretudo para que não esquecesse, calcei
as botas e saí junto de Jake, que estava com seu chapéu. Comeríamos no
convés, o cozinheiro havia preparado a intragável mistura de aveia.
Se havia uma coisa que sentia falta da realeza eram os cafés da
manhã. Não consegui me acostumar com as primeiras refeições que eram
servidas no navio, às vezes preferia nem comer.
Alguns dos piratas estavam com as mãos sobre suas cabeças e olhos
meio caídos de ressaca da noite anterior, com certeza, eles deviam ter
festejado tanto quanto Jake e eu.
Arya se aproximou de nós e sentou num dos barris com um mapa em
mãos.
— No ritmo que estamos indo, chegaremos à baía de Astrid bem na
hora em que os navios mercantes estão saindo.
— Que tipo de mercadoria esse reino exporta? — perguntei.
O canto do lábio de Jake se ergueu.
— Artigos de mineração. Por isso, capaz de termos concorrência na
hora de saquearmos.
— Eu já deixei os canhões preparados, capitão — avisou Bippo.
Após a refeição do café da manhã, nós nos preparamos para o
saquear. Eu e o capitão subimos no tombadilho, Jake foi para a roda do
leme, e eu fiquei na borda do navio a fim de olhar pelo monóculo a que
distância estávamos do reino de Astrid.
Além das vigias e proteção do navio, minhas habilidades com a
leitura foram bem usadas na tripulação. Eu ficava na responsabilidade de
registrar em um caderno as anotações relevantes da viagem e fazer as
marcações nos mapas. Tinha a missão de repassar as informações aos outros
piratas quando Arya ou Jake estavam fora.
— Estamos próximos, capitão, já consigo enxergar a terra — falei.
Um vento forte passou pelos meus cabelos, bagunçando-os, e inflando
as velas. Chegaríamos antes do tempo previsto.
— Atenção, homens! Preparem-se! — alertou Jake.
Meu olho se arregalou brevemente ao notar que não estávamos a sós
naquelas águas. Apesar de previsível, foi uma péssima notícia. Um navio de
bandeira preta com uma caveira de chifres indicou a presença de outros
piratas.
Quando se tratava de especiarias, tecidos e alimentos, poderia até
haver uma aliança para repartir os itens saqueados, mas se eram minérios e
peças preciosas, ganhava quem era o melhor.
Estávamos mais perto, entramos na baía de Astrid e pude avistar o
navio mercante deixar o reino.
Mas algo deu errado, muito errado.
Minha respiração se encurtou, olho se arregalou e o corpo inteiro
estremeceu.
— Droga, droga, droga! Jake! Temos problemas!
O coração quase saiu pela boca. Tínhamos que retornar, mas parecia
tarde demais.
— O que foi?
— Não acho que aquilo seja um navio de minérios...
— O que quer dizer? — Deixou a direção para vir ao meu lado pegar
o monóculo.
— Puta merda — resmungou.
O que deveria carregar o nosso ouro, prata e outras preciosidades,
carregava a nossa morte. Ou quase isso. Atrás daquela falsa embarcação de
minérios havia mais três da marinha e outros dois saindo das laterais da
baia. Foi uma emboscada.
Jake voltou de imediato para a direção a fim de nos tirar de lá,
contudo, não teríamos tempo. Um estrondo foi ouvido e a luz forte da
explosão do outro navio pirata brilhou diante da minha vista.
— Os canhões já estão prontos, capitão! — gritou Bippo do convés.
— Não conseguiremos contra-atacar, eles são muitos! Lawrence
proteja o navio!
Antes que eu pudesse projetar uma barreira, eles nos acertaram. O
impacto do disparo da bola de canhão foi tão intenso, que meus pés se
arrastaram para trás e perdi o equilíbrio, caindo ao chão. Jake tentava virar
o navio para escaparmos, mas sem sucesso.
O ar se tornou escasso, fiquei ofegante com a tensão que pressionava
meus músculos. Tentei me erguer a tempo, até que tombei de novo com o
outro estrondo.
— Capitão, o que está acontecendo? — gritou Arya, desesperada,
enquanto subia os degraus. Seus olhos quase saltaram das órbitas ao ver o
cenário à frente.
— Uma emboscada!
O terceiro tiro bateu em um de nossos mastros e estremeceu a
embarcação inteira. A madeira aos poucos estalava à medida que
envergava, rompendo cada fibra e então o impacto contra o convés do
navio, que assustou todos os que estavam ali presentes.
Não havia mais escapatória.
Ajoelhei e uni as mãos, fechei o olho para me concentrar, as emoções
intensas com tudo que ocorria me desviava do foco. Esvaziei os pulmões
lentamente e foi como se o tempo parasse por um segundo.
As vozes se tornaram distantes, assim como os sons de desespero.
Enxerguei a energia se expandir e então, o que antes era quase nada, tornou-
se um silêncio absoluto.
— Obrigado, querido. — O tom de voz do Jake expressou todo o seu
alívio, ele se ajoelhou ao meu lado e me abraçou.
Abri o olho e vi as bolas de canhão baterem contra a barreira e as
chamas se alastrarem, apagando-se no ar. Estávamos protegidos, ao menos
naquele momento.
Não tínhamos mais escolha, em poucos minutos nos tornamos cada
vez mais cercados, minha proteção não aguentaria por tanto tempo.
— Vamos nos render — falei.
— O quê? Lawrence, não! A gente vai para a forca se formos pegos
pela marinha! Aguente mais, vamos escapar daqui! — Jake se levantou e
tomou a direção novamente.
Arya respirou firme ao meu lado, notando as rachaduras na barreira,
que aumentavam a cada explosão.
— Ele tem razão, capitão. Não conseguiremos fugir sem a
perseguição... talvez nos rendendo seremos poupados, ou eles façam um
trato conosco.
Jake arregalou os olhos e se virou na direção do horizonte. Suas
pupilas espiaram de canto os navios cada vez mais perto, ele ergueu as
mãos lentamente, Arya espelhou sua ação.
Senti uma pressão em meu nariz, logo o calor do sangue escorrer por
uma das minhas narinas. Tínhamos que reconhecer a derrota, mas aquele
não seria nosso fim.
O campo se desfez.
— Rendam-se, piratas! Em nome da coroa de Astrid decreto suas
prisões! — Ouvimos o peruca branca gritar.
Fomos atingidos por mais um tiro antes dos laços serem jogados em
nosso navio e os marinheiros pularem para dentro da embarcação. Uma
agitação aconteceu no convés, Bippo e Strigói detestavam se darem por
vencidos tão facilmente assim, até tentaram pegar suas espadas, mas foram
detidos.
Ergui minhas mãos.
O oficial subiu, com seu peitoral inflado e expressão orgulhosa, seu
sorriso maldoso se alargou mais ao repousar seus olhos sobre eu e Jake.
— Mas que honra! — exclamou, tirou a peruca de seus cabelos,
revelando a careca brilhante. — Vim atrás do Usurpador e de brinde capturo
Scar... não sabia que você fazia parte da tripulação do Maldição.
— Está desinformado, oficial — falei. — Isso não é novidade para
ninguém. Inclusive, é por isso que sou procurado. — Sorri.
O homem arqueou a sobrancelha.
— Seus cabelos são ainda maiores pessoalmente. Poderíamos até
mesmo enforcá-lo com eles, o que acha? – Gargalhou sozinho.
Jake ergueu o canto do lábio e me lançou um olhar de lado. Aquele
olhar dizia muita coisa, uma era que achou aquele homem um tolo, a outra
que ele elaborou um plano para fugirmos; bastaria pisarmos em terra para
isso.
Assim que desembarcamos em Astrid, nos tornamos o centro das
atenções. Os marinheiros andavam com postura ereta e peito inflado de
soberba, a plebe estava alvoroçada, alguns torciam para nós até. Eu
caminhava de cabeça erguida e expressão séria, enquanto meu marido
estava aos sorrisos, ser o pirata mais procurado dos sete mares era motivo
de orgulho para ele.
Os portões do palácio estavam abertos para nos receber e em sua
entrada, o rei que vestia roupas menores que seu tamanho, com peruca
branca desarrumada e tanto pó de arroz em seu rosto que deixava a face tão
seca que ressaltava ainda mais suas rugas, rugas essas que se marcaram
fortemente com o sorriso malicioso.
— Hoje é um belo dia para a gloriosa Astrid! — comemorou ele.
— Majestade, durante a emboscada capturamos o Usurpador e o
segundo bandido mais valioso dos sete mares, Scar — o oficial anunciou.
O rei estreitou os olhos para mim, encarou-me em silêncio por um
tempo longo demais, analisando cada detalhe do meu rosto. Por um
segundo, temi que ele fizesse a associação com quem eu era e revelasse
minha antiga identidade.
— Você me é familiar.
— Imagino que sim, meu rosto está estampado por todos os reinos,
difícil seria não me reconhecer — falei.
O nobre enrugou o rosto e eu espelhei sua expressão com o franzir do
nariz.
— Quando faremos o enforcamento, majestade? — perguntou o
homem que segurava o braço de Jake.
O pirata me lançou sua típica encarada de canto com a sobrancelha
erguida. Só precisaríamos de um segundo a sós para conversar sobre o
plano.
— Não, não planejo suas mortes por agora. Na verdade, traga os dois
mais procurados para minha mesa de almoço. Os outros, podem levá-los
para prisão. Preciso decidir ainda o que farei com eles. — Deu as costas.
Aos resmungos, Arya e o resto da tripulação foram levados para um
lado, enquanto eu e Jake para outro.
Fomos obrigados, sob mira de mosquetes, a subir a enorme escadaria
branca do palácio até sua entrada. Lá dentro era enorme, com o teto tão alto
que me fazia sentir minúsculo, e na cor branca, assim como o chão, as
paredes, tudo! Apenas os tapetes vermelhos destoavam.
Ao que parecia, o rei de Astrid não era tão adepto de decorações em
mármore ou ouro, ou talvez aquele reinozinho medíocre estivesse passando
por dificuldades financeiras tão grandes que tiveram que vender todos seus
enfeites.
Assim que fomos postos na sala de jantar, vimos o rei, que estava
sentado na ponta da mesa e ao seu lado, um jovem de cabelos escuros
presos num rabo de cavalo com fita azul, que combinava com o restante de
sua vestimenta. O banquete estava sendo servido.
Eram frutas, massas, carnes, todas frescas e com cheiro extasiante...
meu estômago roncou e a boca se encheu. A comida da monarquia era
inigualável.
— Quero que vocês se sentem na quarta e quinta cadeira — exigiu o
rei.— Guardas, podem soltá-los.
Os homens afastaram as mãos de nós e deram dois passos para trás.
— Mas se eles tentarem alguma coisa, tem permissão para matá-los
— completou o jovem sentado à mesa.
— Usurpador, Scar, esse é meu filho, o príncipe Charlie. — Pegou o
tecido sobre a mesa e o prendeu na gola da roupa. — Agora sentem-se.
Eu e Jake tomamos os nossos lugares determinados pelo rei e, então,
um breve silêncio pairou sobre a mesa, sendo interrompido apenas pelo som
dos pratos sendo postos para nós e as taças enchidas. Peguei os talheres
apropriados para a refeição, enquanto Jake usou o garfo de sobremesa para
o prato principal.
— Alteza, qual é o intuito dessa reunião? Demonstrar caridade aos
seus prisioneiros antes de enforcá-los? — Jake quis saber.
O rei gargalhou.
— Tenho uma proposta para vocês, na verdade.
Arqueei a sobrancelha.
— Vai nos pedir para roubar um tesouro? — falei.
Ele não riu, não entendeu a zombaria.
— Eu lhes ofereço a liberdade e anistia caso sirvam a coroa em um
propósito.
— Prefiro a morte! — exclamou Jake.
Arregalei o olho para ele e repousei a mão sobre a sua coxa,
apertando-a. Se havia uma forma mais segura de escapar vivo de Astrid era
aquela, já que os planos de Jake, ainda que fossem bem arquitetados,
tinham o risco de darem errado.
— Tenho interesse em ouvi-lo, majestade.
O rei deu um sorriso de canto e olhou para seu filho, que limpou os
lábios com o guardanapo e apoiou os talheres na mesa, calmamente, antes
de falar.
— Minha prometida esposa, a princesa Elizabeth de Balerion, foi
raptada por um navio pirata a caminho de Astrid, bem no dia que seria o
nosso casamento. – Respirou forte. – Não sei para que direção foram e até
agora a minha marinha não conseguiu encontrar o navio.
— Sabem o nome do capitão? – Jake questionou.
O príncipe balançou a cabeça em negação.
— A única coisa que sabemos é que a bandeira erguida é de uma
caveira com rosas nos olhos e uma faca cravada na cabeça. É familiar para
vocês?
Neguei. Meu capitão, no entanto, coçou sua barba e subiu a
sobrancelha.
— Conto se soltarem a nós e minha tripulação.
— E solto se nos ajudarem a recuperar a esposa de meu filho.
Entramos num embate. Ninguém se moveu ou disse uma palavra a
mais, apenas os nossos olhos percorriam o espaço e os olhares se
encontravam, tentando adivinhar respostas. Segurei no braço de Jake e me
virei para ele a fim de sussurrar:
— Vamos aceitar isso logo, é a nossa chance de sair daqui sem que
tenha possibilidade alguma de tudo dar errado.
— Não confia nos meus planos, marido? – Sua voz saiu carregada de
acidez.
— Confio, mas sempre há chances de pararmos na forca. Querido,
dessa vez, só dessa vez... – Franzi as sobrancelhas.
— Sou um homem livre, Lawrence, não quero servir à coroa.
— Eles vão nos deixar ir, assim que devolvermos a princesa — falei,
sem ter muita certeza. Virei o rosto para os monarcas. – Teremos liberdade
após recuperarmos a princesa, certo?
— Sim. Nos entregue a minha noiva que receberão anistia. – O
príncipe ergueu o queixo e olhou brevemente para Jake. — E terão dois
guardas junto com vocês para garantir que cumpram o tratado.
— O perdão pelos crimes e ouro. É isso ou aceito ir à forca e vocês
perderão a princesa para sempre. Somente outro pirata sabe onde encontrar
os navios dos piratas sequestradores. — Jake apoiou a mão esticada sobre a
mesa e me olhou de canto.
— Somente a anistia basta! — falou o rei.
— O perdão... e o ouro. Precisamos de recursos para custear a
viagem. E consertem o nosso navio. — Estiquei a mão também sobre a
mesa. — Temos um trato?
Jake ergueu o canto do lábio e ouvi os monarcas bufarem, até que o
rei deixou que seu braço recaísse sobre a mesa com tanta força, que levou
os talheres a trepidarem.
— Fechado.
Escapamos mais uma vez, porém, com uma condição. Jake não
gostou muito da ideia, contudo, saímos no lucro duas vezes: garantimos a
nossa liberdade e mais ouro, o suficiente para não precisarmos nos arriscar
em roubos por alguns meses.
Nós dois trajávamos as fardas da marinha, eu não ficava bem nelas,
mas em meu capitão... ah, aquilo o deixava altamente atraente, fazia-me
suspirar.
Enquanto caminhávamos em direção ao porto para embarcarmos no
nosso navio apreendido, Arya e os outros piratas zombavam das nossas
vestimentas. Eu não me importava, mas Jake estava com o rosto bem
marcado, como se pressionasse os dentes, além de suas maçãs do rosto
serem tomadas por uma coloração avermelhada. Encarei-o de canto
diversas vezes.
— O que é, hein? — perguntou ele. — Não está em condições de
zombarias se você também traja essas vestes.
Ri brevemente.
— Não iria zombar de você, jamais passou por minha cabeça isso.
— Então por que me olha tanto?
— Porque te achei muito bonito nesse uniforme. — Arrastei o lábio
pelos dentes.
Jake deu um sorriso de canto malicioso, logo sua expressão mudou.
Encheu o peito e voltou a caminhar de cabeça erguida.
No caminho, vi um mensageiro. Entreguei a carta que escrevi para
meu pai na esperança de que chegasse ao reino de Marnsala. Sabia que
talvez nunca fosse respondido, afinal, apenas dei a referência de que estava
pelas águas do Norte. Porém, só de ele saber que eu vibrava com sua
felicidade e esperava um dia reencontrá-lo, seria suficiente.
Quando chegamos em frente ao navio e começamos a subir a rampa,
notei dois marinheiros, um de patente alta, notava-se pelo broche em seu
peito. Ele era alto e pomposo, de postura ereta e nariz de pé, cabelos curtos
e escuros, andava como se estivesse marchando, o que contrastava com o
outro, de patente baixa, que sustentava uma pose corcunda e andar
desengonçado, com corpo magérrimo e cabelos tampados pela peruca
branca.
O meu capitão colocou seu chapéu, que estava apoiado sobre um
barril, e arqueou a sobrancelha para os dois estranhos no navio.
— Vocês vão mesmo querer viajar conosco, é? — Riu baixo. —
Podem sair se quiserem, não contarei nada ao rei.
— Sim, pirata, embarcaremos com vocês. Sou o tenente Peter —
respondeu o de patente mais alta —, e esse é o cabo Ander. Garantiremos
que não tentarão nada contrário ao trato com a coroa de Astrid.
Jake ergueu o canto do lábio. Em passos lentos e pesados chegou
mais perto do homem.
— E como vão garantir isso se estarão sozinhos conosco? — Abriu os
braços e olhou para o restante da tripulação.
— Segredo — O tenente respondeu rapidamente.
Segredo? A típica resposta de quem não sabia o que responder.
Aquilo exalava blefe.
Arya apoiou a mão no ombro de seu capitão e abaixou o tom de voz
para ele.
— Capitão, não perca mais tempo os provocando, por favor. Vamos
acabar logo com isso — Encarou os homens. — Senhores, sigam-me, irei
mostrar seus aposentos.
Enquanto a bruxa-pirata caminhava pelo convés, guiando os dois
patetas, Jake andou em direção ao tombadilho para tomar as rédeas do
nosso trajeto. Fui atrás dele. A cada passo apressado nos degraus, minha
tensão aumentava, fiquei receoso de talvez tê-lo convencido a algo errado.
— Querido... o que você realmente achou da ideia?
Ouvi-o suspirar. Jake encheu o peito, colocou as mãos na roda do
leme e o girou, olhando para o horizonte.
— Não queria servir à coroa novamente nem que fosse por pouco
tempo, mas creio que não tivemos muita escolha — disse, sem desviar a
visão do caminho. — Só tem um problema, não acho que será fácil
encontrar a princesa raptada. Esses piratas que a levaram podem estar em
qualquer lugar.
Franzi as sobrancelhas e apoiei a mão em seu ombro.
— Então... foi uma má ideia?
Ele me encarou e sorriu suavemente.
— Não, Lawrence, não foi. Será difícil, mas não impossível, além de
que, recebemos o ouro. Apesar de tudo, valerá um pouco a pena.
As quinas de meus lábios se esticaram.
— E para onde estamos indo agora?
Voltou o olhar para o horizonte.
— Para a baía dos ossos. É lá que encontraremos informação.
— Baía dos ossos? Nunca ouvi falar.
— É uma área as margens de uma pequena ilha de ninguém, onde os
piratas se reúnem para encontrar aliados, entregar uns aos outros, até
mesmo trocas comerciais... se chama assim porque as aguas da baía
também servem de local de desova.
Enruguei o rosto e, no momento, um vento gélido bateu em meus
cabelos, esvoaçando-os e inflando as velas. Arrepiei-me por inteiro, não
soube dizer exatamente se foi pelo frio ou pela imagem que criei deste lugar
em minha cabeça.
Nesse tempo em que estive com Jake, não tivemos grandes aventuras
como na vez em que nos conhecemos. Andávamos mais por águas seguras,
longe de criaturas do mundo oculto e perto do que mais interessava à
tripulação do Maldição do rei: ouro e especiarias.
Tornei-me o segundo pirata mais procurado justamente por estar
sempre ao lado do Usurpador e auxiliá-lo nos roubos e pequenas batalhas
contra as marinhas dos reinos. Contudo, o mar era enorme e a cada dia que
passava, percebia não conhecer um centésimo dele. Ainda havia mais
lugares para serem explorados, que mesmo que não fossem do interesse de
Jake, era meu.
Queria conhecer o máximo de ilhas e águas que pudesse.
— Por que nunca me levou para conhecer a Baía dos ossos?
— Porque é um lugar sujo, violento e cheio de amaldiçoados. Jamais
iria querê-lo por lá. Aliás, se você puder ficar...
— Não ficarei no navio. — Firmei o pé.
Jake bufou.
— Lawrence... — Encarou-me. — Seria melhor pra você ficar aqui,
afastado da ilha. Os outros piratas, eles...
— Irei. Eu não sou mais o príncipe Lawrence que era covarde e
indefeso, Jake. Agora sou Scar, o segundo pirata mais procurado pelos sete
mares. Sei me defender, lutar e usar as minhas habilidades, portanto, não
me impeça de acompanhá-lo. – Ergui o queixo.
Ele riu e balançou a cabeça em negação. Sabia que não teria como
contrariar minha escolha. Por mais que ele fosse o meu capitão, dificilmente
colocava sua autoridade sobre mim.
— Você é muito teimoso. Tudo bem, tome as notas do nosso
percurso, desça e vá avisar aos homens para onde iremos, peça que deixem
preparados os canhões. A baía não é muito longe daqui, chegaremos hoje
mesmo.
— Sim, capitão! — Coloquei a mão sobre a testa em continência, fui
até a cabine para pegar na escrivaninha o bloco de anotações e pena,
descrevi a primeira parte do percurso e seu objetivo, então guardei o papel
na gaveta e desci os degraus.
No convés, Bippo, Steve e Strigói estavam próximos à escada com
seus ouvidos atentos e quando me viram de imediato se afastaram. Bippo
tomou uma pose de pensativo, olhando para o horizonte com a mão apoiada
no queixo, Strigói ficou contando algo para as paredes e Steve estreitou os
olhos, como se estivesse prestando atenção no que o pirata-cozinheiro
falava. Claramente fingindo que estavam fazendo algo, quando, na verdade,
tentavam ouvir o que eu e Jake conversávamos.
Gargalhei.
— Vocês são péssimos em disfarçar.
— Para onde iremos? — perguntou Bippo.
— Baía dos ossos. Jake acredita que encontraremos as informações
sobre a princesa sequestrada por lá. — Passei por eles para mexer nas
cordas das velas.
Os três vieram atrás de mim.
— Eu sabia! — exclamou o mais velho, Steve. — Com certeza,
alguém viu o navio ou a princesa...mas por que exatamente iremos atrás
dessa mulher, se já temos a liberdade e o ouro? Se for pelos guardas que
vieram junto conosco basta jogá-lo ao mar.
— Porque a marinha de Astrid e do reino da princesa virão atrás de
nós se resolvermos sumir do mapa, e na próxima não teremos outra chance.
— Hasteei outra vela para que fôssemos mais rápido. — Falando nisso...
cadê a Arya e os outros dois guardas?
— Estou aqui. — Ela surgiu atrás de mim feito um fantasma.
Saltei de susto e a encarei.
— Esse aqui é um belo navio... como vocês piratas conseguiram
comprá-lo? – perguntou o guarda meio corcunda que nos acompanhava.
— Esse aqui era da frota de Marn... — calei-me. Por um breve
momento, esqueci-me de que não podia revelar minha relação com
Marnsala. — Ganhamos de um reino quando cumprimos uma missão.
— E que reino seria esse?
— Sou proibido de revelar, o rei prefere que não seja exposta a
aliança entre sua coroa e a pirataria.
Pensei rápido, mas pelo arquear de sobrancelha que eles fizeram e
seus lábios entreabertos, engoliram a meia-verdade que lhes entreguei.
Arya se aproximou de mim com as mãos para trás.
— Para onde iremos agora?
— Baía dos ossos. Inclusive... — Virei-me para os outros tripulantes.
— O capitão pediu para que preparem os canhões e coloquem munições em
suas armas. Devemos chegar por lá hoje mesmo.
Eles afirmaram e se dispersaram rapidamente.
Enquanto os piratas se agitavam para prepararem o navio para um
possível combate e os oficiais da marinha zanzavam pelo convés sem saber
o que fazer, Arya chegou mais perto e apoiou a mão em meu ombro,
apertando-o, deu um sorriso de canto.
— O Jake permitiu que você pisasse lá?
— Não preciso da permissão dele.
Ela riu suavemente e deixou o sorriso ainda marcado em seu rosto.
— Gosto do seu jeito desafiador, príncipe. E acredito que foi
justamente isso que fez com que aquele ali — apontou para Jake, que estava
com seu foco no trajeto —, se apaixonasse.
Inevitavelmente, um dos cantos dos meus lábios se esticou. A bruxa
se afastou em direção ao tombadilho, e eu permaneci no convés a fim de
checar se estava tudo certo.
O dia foi acelerado, minha mente permaneceu tão ocupada e ansiosa
com a missão, que sequer notei o sol se pôr.
Quando a noite chegou, Arya pegou a direção do navio e o capitão
desceu de onde estava para se colocar ao meu lado, apoiando-se na madeira.
Estávamos na borda da embarcação e de longe senti o cheiro podre que a
Baía emanava.
— É isso, estamos chegando — falou Jake e me encarou de canto. —
Está com medo?
— Jamais. Estou pronto para qualquer coisa. — Apoiei a mão na
espada.
Ele colocou os dedos na minha nuca, acariciando-a por debaixo dos
cabelos soltos, depois deslizou por minhas costas até chegar à minha
cintura, apertando-a.
Aquilo elevou todos os pelos do meu corpo e os músculos contraíram
em resposta.
— Vamos ficar prontos para o ataque, mas evitar ao máximo qualquer
conflito desnecessário, tudo bem? Estamos indo lá para buscar informações,
nada mais.
— Certo.
— Chegamos à Baía dos ossos! — gritou Arya.
À frente havia diversas embarcações com suas bandeiras hasteadas,
tentei encontrar a que o rei descreveu, tinham muitos desenhos de caveiras,
mas nenhuma delas possuíam rosas em seus olhos.
O lugar era extremamente malcheiroso, cheio de algas, e a ilha era
realmente minúscula, em formato de ‘’C’’, logo na frente dela foi possível
enxergar um lugar feito de pedras iluminado por duas tochas de fogo na
entrada.
— Scar e Bippo vem comigo no bote, os outros, permaneçam no
navio com Arya! — ordenou Jake. — Não deixem ninguém subir, não
ajudem a nenhum estranho, ouviram?
— Sim, capitão! — os piratas responderam num coro.
— Ei! Eu não confio em vocês irem sós à ilha. Um de nós tem que ir
também — falou o tenente da marinha de Astrid.
Jake respirou audivelmente e revirou os olhos com sutileza junto de
sua erguida de ombros.
— Que venham. Mas só um.
— Eu irei então — disse o tenente.
Meio relutante, o capitão permitiu que o intruso embarcasse no bote
conosco, e assim que ele foi posicionado no mar, deixei que eles pegassem
nos remos para nos levar por aquela baía fedorenta de cadáveres até a ilha.
Tampei o nariz e olhei em volta, era amedrontador passar tão perto
dos outros navios ancorados à noite. Eles eram enormes e os olhos que nos
encaravam de cima não pareciam nada amigáveis.
Quando chegamos à praia, Bippo ficou ao lado do nosso bote,
enquanto eu, Jake e o oficial seguíamos em direção ao lugar com entrada de
pedra.
Estava muito escuro, pouco se enxergava próximo ao mar, pude
apenas sentir a brisa gélida e asquerosa que vinha daquelas águas. Durante
o caminho, chutei pelas areias alguma coisa de som oco, provavelmente o
que dava o nome da Baía dos ossos.
No percurso, alguns piratas reverenciaram Jake ao vê-lo, curvando-se
sutilmente, enquanto outros duvidavam do que viram diante de seus olhos.
— É mesmo o usurpador? — Ouvi os murmúrios ao redor.
Ainda na entrada da taberna de pedras, pude ouvir a barulheira da
algazarra que os outros piratas faziam, além da música alta e desafinada.
Assim que eu, Jake e o oficial entramos, o som da balburdia cessou, o
espaço foi preenchido apenas pelos instrumentais arranhados. Os olhos bem
demarcados se voltaram para nós.
O tenente até chamou a atenção, mas quem realmente fez com que
alguém dissesse alguma coisa foi o meu capitão. Ainda que ele estivesse
com vestes de um marinheiro, foi reconhecido. Um dos piratas ergueu sua
caneca de cerveja e gritou:
— Um viva para o Usurpador, por proteger a Baía dos ossos!
Os homens urraram com seus copos, e eu direcionei um olhar para
Jake, ele deu um sorriso de canto e apoiou a ponta dos dedos em seu
chapéu, aceitando a homenagem.
O usurpador realmente havia se tornado o que queria.
Um pirata de barba grande, cuja uma das pernas era de madeira, vinha
na minha direção com os olhos fixos no meu. Suas íris escuras eram vazias,
sequer refletiam as chamas das velas e lamparinas.
Jake percebeu a aproximação do amaldiçoado, envolveu um dos
braços na minha cintura e levou a outra mão à sua pistola. Meu capitão
lançou um olhar tão cortante, que o homem parou de andar e ergueu as
mãos.
— Você não precisa fazer isso, Jake. Posso me defender — falei,
saindo de seus braços e segui em frente.
Ouvi-o rosnar e ele se apressou para estar ao meu lado.
— Eu sei, mas se posso protegê-lo, o farei sempre. Não tente me
impedir disso, marido.
Marido, ouvir aquela palavra sair de sua boca sempre me fazia sorrir.
Com certeza demoraria para me acostumar com essa posição em sua vida.
Andamos em direção ao bar, esbarrando e afastando os piratas
bêbados e escandalosos. Quando conseguimos espaço em meio à bancada,
Jake se apoiou nela e ergueu dois dedos para o atendente.
— Tenente, vai querer beber algo também? — Arqueou a
sobrancelha.
O homem fechou o rosto e mexeu nervosamente na gola de sua roupa.
— Não estou aqui para lazer, é uma missão. E você não deveria beber,
o nosso objetivo aqui é buscar informações!
Jake desapoiou da bancada e se aproximou do marinheiro, colocou o
peito no dele, levando-o a arregalar os olhos. Dei um passo à frente, mas ele
estendeu a mão aberta para mim, parando-me.
— Na marinha, você é o tenente, aqui, é só mais um. Está abrigado no
meu navio, logo eu sou seu capitão, então não me diga o que fazer.
Entendeu?
O homem engoliu em seco e, em silêncio, concordou.
— O que vão querer? — perguntou o atendente.
— Uma caneca de rum pra mim, outra de vinho para o meu matelot.
— Piscou pra mim com um sorriso de canto e colocou os cotovelos na
bancada do bar, ficando de costas para as bebidas.
— O que te fez pensar que quero beber? — Apoiei-me ao lado dele,
de frente para o atendente.
— Para me acompanhar... — aproximou o rosto do meu,
entremeando-se em meus cabelos —, e aumentar a energia para o que
faremos mais tarde — sussurrou.
Mordi o lábio e ele sorriu maliciosamente. Continuávamos em clima
de núpcias.
Enquanto estávamos no bar, Jake apoiava a mão em sua arma e
encarava o ambiente. Não parávamos de receber olhares e sussurros,
principalmente eu, mas notei que, apesar de ser o segundo pirata mais
procurado, ninguém ali pareceu me reconhecer.
Ou podiam até ter reconhecido, mas não ousaram falar comigo, pois
estava sob a sombra do Usurpador. Além do mais, a forma que ele me
tocava, deixava clara a nossa relação.
Quando o homem do bar voltou com nossas canecas cheias e as bateu
na mesa, parte da bebida transbordou, molhando o balcão. O pirata se virou
e colocou três moedas sobre a madeira lisa e úmida.
O atendente as arrastou para perto e arqueou a sobrancelha.
— Obrigado pela gorjeta, Usurpador.
— Não é apenas uma gorjeta, é uma compra de informações. —
Olhou de canto para mim.
— Sabe para onde foram os piratas cuja bandeira é uma caveira com
rosas nos olhos? — perguntei baixo. — Ou se ouviu falar de algum pirata
com uma princesa sequestrada.
O homem careca de barba cheia coçou os pelos em seu rosto,
pensativo. Durante o tempo em que ele resgatava suas memórias, meu
coração se acelerou e senti um frio na barriga pela resposta, precisava que
ela fosse positiva.
Para a minha tristeza, ele balançou a cabeça em negação.
— Quanto mais tenho que te dar para nos entregar a informação? —
Jake puxou mais algumas moedas de seu bolso.
— Eu realmente não os vi, senhor.
— Pois eu vi! — disse uma voz do outro lado da bancada. Um
homem de bigode espesso, longos cabelos grisalhos e chapéu, ergueu sua
caneca e fez um gesto com a cabeça para que nos aproximássemos.
Quando perto, o velho pirata abriu e mão e Jake lhe deu algumas
moedas.
— Eles passaram por aqui e disseram algo sobre Ramund.
— Ramund? — Meu capitão franziu o cenho. — Você tem certeza?
Alguma coisa ali estava muito ruim, Jake não conseguiu disfarçar a
sua inquietude. As mãos balançavam, junto do bater de pé e logo os lábios
foram parar entre os dentes.
O pirata confirmou.
— O que é Ramund? — perguntou o tenente.
— É uma ilha próxima da costa de LeDovic, que costuma a ter
comércio de humanos.
Arregalei o olho brevemente.
— Parece fazer sentido, afinal, a princesa deve ter valor altíssimo —
falei.
— Pois é... merda — Jake resmungou e deu mais um gole em sua
caneca para umedecer a boca. Balançou a cabeça em negação, bateu o pé
rapidamente... aquilo não era bom. — É, vamos pra Ramund.
— Não precisa tampar meu outro olho, Jake, não enxergo por ele. —
Ri enquanto era guiado por meu companheiro escada abaixo, com suas
mãos sobre meus olhos. — O que você está aprontando, hein?
— Calma, já, já estaremos lá.
No andar debaixo, pude sentir o calor que as chamas das velas
emanavam e o cheiro enfeitiçador da comida... algo que parecia ser porco
assado e grãos. Ao fundo, uma música, meio desafinada com violão, mas
tinha a impressão de quem tocava tentava seu melhor.
Jake afastou a mão do meu olho e me permitiu ver o pequeno jantar à
mesa com carne, grãos, algumas frutas e vinho. Somente duas cadeiras,
seria só nós dois... e o Steve que tocava uma canção suave.
Meu amado sorriu para mim e eu não consegui ser menos expressivo,
senti o coração se apertar e meu olho se encheu de lágrima com aquele
gesto de carinho.
— Querido... por que isso?
— Queria mais um dia especial com você. Me permite tê-lo? —
Afastou-se de mim e estendeu a mão para que eu a segurasse.
Assim que toquei em sua palma, Jake me puxou para perto, colando
nossos peitorais e tentou guiar meu corpo rígido para uma dança. De início,
fiquei um pouco constrangido pela presença de Steve ao fundo, até me
concentrar nos olhos de maré do meu capitão e me permitir ser levado por
ele.
Nossos passos se sincronizaram, a partir dali foi como se estivesse
apenas nós dois.
A mão dele se apertou contra minha cintura, e eu apoiei na sua
também, nossos pés davam dois passos para lá e dois para cá a cada acorde
tocado, mas quando ele me rodopiou, fez-me gargalhar.
— Isso me traz uma lembrança — falei.
— E qual seria?
Respirei fundo e vi suas íris serenas me encararem com ternura, ele
sabia exatamente qual era a memória, mas queria que eu dissesse.
— De quando você foi até o baile do meu castelo...
— E te puxei para dançar, enquanto você fugia das princesas. — Jake
riu.
— E me fez realizar a melhor escolha da minha vida... — meus lábios
estremeceram e um sorriso lento se formou —, fugir contigo.
Ele sorriu igualmente.
— Eu te amo, Lawrence.
— Também te amo, Jake.
O pirata inclinou meu corpo em seus braços e juntou nossos lábios
num beijo. Fechei os olhos, senti a sensação de frio subir pela barriga e uma
euforia que mal cabia no peito.
Fui puxado novamente para ele, que abriu um arco com o braço a fim
que deu rodasse, e eu fiz o mesmo com ele, depois do rodopio, unimos
nossos peitorais e os pés continuavam a traçar passos coordenados
Aqueles pequenos momentos com meu amado recuperavam meu
coração de qualquer angústia e faziam meus pensamentos terem paz.
Nos braços de Jake eu me sentia seguro, tranquilo e feliz. Eram o
melhor lugar do mundo.
Interrompi a dança para abraçá-lo e recebi seu beijo no topo dos meus
cabelos.
— Vamos comer? — sugeriu.
Concordei.
Conforme nos aproximamos da mesa, Jake puxou a cadeira para que
eu me sentasse e, depois, tomou o lugar de frente para mim para comermos.
— Capitão, qual o seu receio em relação a Ramund? Teremos algum
perigo maior?
Perguntei, observando-o brigar com a faca cega enquanto tentava tirar
uma parte da carne, quando enfim conseguiu, ergueu os olhos para mim.
— Ramund não é exatamente perigoso para nós, passar por lá é
tranquilo até. O problema será libertar os prisioneiros... — Abaixou o
olhar. — Os mercadores são muito bem armados.
Suspirou.
— Basta não entrarmos em conflito, caso a princesa não esteja por lá.
Enchi meu copo com vinho e dei um gole. Observei Jake umedecer os
lábios e respirar devagar. Sua visão se tornou vazia, reflexiva, concentrou-
se na mesa enquanto a mente estava em outro lugar.
— Não é simples assim, Lawrence. Não posso passar por Ramund e
ignorar a situação. Sei que não consigo combater tudo isso sozinho, mas
faço o possível quando o problema está diante de mim. — Encarou-me. —
Todos deveriam ter direito a serem livres.
Eu não havia pensado naquilo, ele me fez ver a situação de outra
forma. Algo que ia além dos meus interesses.
— É, Jake... você realmente é um homem digno de admiração. —
Sorri sutilmente. — Agora entendo o grande respeito que tiveram por ti na
Baía dos ossos.
— Aqueles piratas não me admiram por sabotar navios de Ramund,
Lawrence. Seu respeito vem do meu rosto nos cartazes de procurado. —
Deu um gole em sua bebida.
— Não só isso... você também salvou aquele lugar, não é?
— Salvar é um termo muito forte. Eu ajudei a liderar a batalha contra
a marinha que tentou destruir a Baía dos ossos, apenas.
Ri brevemente e apoiei a mão debaixo do queixo, enquanto meu
cotovelo repousava sobre a mesa.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Qual é a graça?
— Eu acho engraçado que você sempre arruma uma maneira de
diminuir suas conquistas... deu a alma para se tornar o maior pirata dos sete
mares e exerce tamanha modéstia?
Jake balançou a cabeça em negação.
— Não é bem assim, reconheço quando não posso levar todo o mérito
por algo que não fiz sozinho. — Deu mais uma garfada em sua comida. —
Enfim, o que achou, querido?
— Está maravilhoso... obrigado pela noite. — Sorri.
De repente, senti seu pé no meu tornozelo por debaixo da mesa e, aos
poucos, subir até chegar próximo à minha virilha. O canto de seu lábio se
ergueu com malícia e os olhos se estreitaram.
— Que tal a gente terminar essa noite maravilhosa daquele jeito,
hum?
— Eu queria tomar um banho antes de me deitar, então... creio que
seria melhor fazermos num lugar diferente da cama hoje. O que acha?
Do fundo do compartimento veio um pigarreio.
Arregalei o olho e encarei Steve que segurava seu violão, a expressão
dele com as sobrancelhas juntas não era nada agradável. Senti o rosto ferver
de vergonha e o abaixei de imediato. Estava tão concentrado em Jake que
havia me esquecido da terceira presença ali.
— Você já pode subir, Steve — disse o capitão, nitidamente
constrangido também, visto que ele sequer ergueu a face para o homem,
apenas manteve seu olhar concentrado em sua comida.
Sem mais a acrescentar, o pirata pegou seu instrumental e passou pela
mesa rapidamente em direção às escadas.
Quando terminamos de comer, Jake me pegou pela mão e me guiou
até a parte mais baixa do navio. Meu coração intensificava as batidas a cada
degrau que pisava, e assim que chegamos à área de banho, ele acendeu as
lamparinas e começou a desfazer de suas roupas.
Umedeci o lábio ao ver aquele peitoral desnudo, farto e repleto de
pelos sob a penumbra e me deliciei com a imagem de seu corpo seminu,
ainda trajado nas calças de oficial.
Abri os botões da minha vestimenta e tive a atenção de Jake voltada
para mim, ele se apoiou em um dos barris enquanto me inspecionava da
cabeça aos pés. Colocou a mão sobre o peitoral e foi escorregando seus
dedos para baixo a cada peça de roupa que eu me livrava.
Quando fiquei nu, ele começou a se estimular em um claro sinal de
puro desejo, suas íris se escureceram com a luxúria e me fizeram sentir
como uma divindade a ser adorada. Aproximei-me rapidamente dele e
coloquei a mão em sua nuca para trazer seus lábios para perto.
Meu amado entremeou a mão em meus cabelos, juntando as madeixas
em sua palma e as puxou durante nosso beijo. Arfei em sua boca e levei
meus dedos à sua ereção, pude ouvi-lo gemer baixo.
Comecei a latejar de prazer só em tê-lo se desmanchando sob meus
toques. Jake afastou a minha mão e envolveu nossas excitações para
masturbar a nós dois.
O esfregar que sua ereção fazia na minha, levava-me a ficar ainda
mais úmido e deslizar com facilidade. Apertei seu ombro e meus
calcanhares desapoiaram levemente do chão.
— Lawrence, quero fodê-lo— sussurrou entre meus lábios.
Afastei o rosto para encará-lo e franzi as sobrancelhas.
— Não estou pronto pra isso agora, Jake.
— Nas coxas então?
Prendi o lábio entre os dentes e concordei. Fui até o barril e apoiei os
cotovelos nele, fiquei na ponta dos pés para que o quadril se elevasse.
Encarei-o de lado e notei o quanto Jake estava excitado com aquilo, seus
olhos se tornaram ainda maiores, as veias saltadas, a boca não parava de ser
mordiscada e seu íntimo pulsava intensamente.
O pirata veio até mim, pegou em minha cintura e me virou de frente,
agarrou em uma das minhas coxas, enquanto a outra mão criou suporte para
as costas, e me deitou sobre o barril.
Jake segurou em minhas pernas, unindo-as, e as colocou fechadas
sobre um de seus ombros.
Entrou devagar no pequeno vão entre minhas coxas e arfou. Seu
quadril começou a se movimentar sem pressa.
Vê-lo gemer de prazer enquanto invadia minhas pernas, imaginando-
se dentro de mim, levou-me a sentir o corpo quente. Comecei a me tocar.
Os sons molhados e abafados preencheram o ambiente.
Aos poucos, seu ritmo se apressava. Nossos corpos colidiam com
tanta força, que senti a pele quente e formigando.
Jake suava e demorou mais que o normal para chegar ao seu ápice,
até que senti seus espasmos e os jatos quentes se derramarem sobre minha
virilha.
Assim que ele soltou minhas pernas, as abri, permitindo que seu
corpo ficasse entre elas. Meu amado se inclinou sobre mim para me beijar e
sua mão afastou a minha para que tomasse o controle.
Jake me masturbou com mais intensidade durante o roçar de nossas
línguas, a ponto de eu não conseguir segurar mais.
Derramei-me em seus dedos e ele se afastou ofegante para vislumbrar
meu corpo melado.
— Isso foi... diferente — meu capitão disse.
— Foi bom. — Sorri.
Ergui a mão e meu amado me puxou para, enfim, tomarmos um
banho. Dali, descansaríamos, já que a jornada seria longa.
O dia havia amanhecido com o mar agitado. Fiquei no tombadilho,
guiando a direção do navio a caminho de Ramund, estávamos perto,
chegaríamos em poucas horas. Arya permaneceu ao meu lado com o mapa
em mãos.
— Não tem como você tentar localizar a princesa? — perguntei.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Sou uma bruxa, Jake, não uma feiticeira. Minhas habilidades são
limitadas – respondeu sem tirar os olhos do mapa.
— Nunca entendi a diferença, para mim vocês faziam as mesmas
coisas.
— Feiticeiras nascem com domínio da magia e podem realizar coisas
que nem eu mesma consigo definir, elas não têm limites. Já nós, bruxas,
apenas aprendemos a exercer a magia com a manipulação de especiarias. —
Abaixou o papel e me encarou. — Então só podemos fazer aquilo que
aprendemos com os livros e que os ingredientes nos permitem realizar.
Assenti, atento ao horizonte. Aquilo me fez relembrar da mercenária
que capturou Lawrence a mando de James. A mulher era tão poderosa que
conseguiu reviver os mortos, atrair raios... coisas que nunca vi Arya ser
capaz de realizar em todos esses anos de navegação.
— Certo. Bom, procuraremos a princesa da forma tradicional então.
Qualquer coisa, assassinamos os dois fardos da marinha que estão conosco
e sumimos do mapa por um tempo.
— Terá que ser bastante tempo, porque o reino de Astrid não nos
deixará em paz.
— É.
Olhei para baixo, vi Lawrence conversando com os dois oficiais e
apontando para as estruturas do navio. A forma que ele gesticulava e o rosto
de expressão rígida, cujas sobrancelhas estavam exageradamente inclinadas,
indicavam que algo não saiu como o esperado.
Lawrence sempre fazia uma careta ou feição birrenta quando algo não
era de seu agrado. Aquele pirata nunca matou o príncipe que havia em seu
interior.
— Arya, pode tomar a direção por um instante? — Afastei-me da
roda do leme. — Preciso ver o que está acontecendo.
— Pode deixar comigo, capitão.
A mulher subiu no meu lugar, apoiou o mapa aberto sobre o barril ao
seu lado e tomou o controle do navio.
Desci os degraus aos poucos, tentando não ser notado para ouvir a
conversa antes de me aproximar, queria chegar sabendo do contexto.
Ri brevemente ao descobrir que o motivo de Lawrence estar tão bravo
era o fato de que os marinheiros se recusavam a realizar qualquer tarefa no
navio, enquanto o resto da tripulação trabalhava.
Era engraçado, pois o próprio fez o mesmo quando subiu no Maldição
do rei.
Tentei recompor a postura, fechei o rosto, cruzei os braços e cheguei
mais perto com o queixo erguido.
— O que está acontecendo aqui? — perguntei, mantendo uma
seriedade difícil de sustentar.
— Esses imprestáveis não querem ajudar na manutenção do navio!
Dormem em nossas camas, comem da nossa comida e sequer tiram o tempo
para ajudar! — Lawrence abriu os braços e seu único olho estava
arregalado para os homens.
— Não obedecemos a você, Scar, ou nenhum pirata. Nossa
obediência é somente à coroa de Astrid — respondeu o oficial magricela.
— O nosso único objetivo aqui é ficar de olho em vocês nessa
missão, não participar de suas atividades sujas — completou o tenente.
A minha curta risada escapou pelo nariz.
Puxei as duas armas da cintura e apontei para o rosto de cada um dos
oficiais. No mesmo segundo, suas faces se tornaram estáticas e pálidas, o
cabo chegou a erguer as mãos em rendição.
— Não. Fora desse navio vocês são oficiais da marinha de Astrid,
mas dentro dele são os meus tripulantes, eu sou o capitão que lhes dá as
ordens e esse é o meu marido. — Destravei as armas com os polegares. —
Portanto, o que eu ou ele disser aqui é lei. Obedeçam, ou nunca mais a
coroa saberá de seus paradeiros.
Um silêncio pairou sobre o convés, apenas a ventania e ondas se
chocando contra o navio eram ouvidas. Após a longa quietude, o mais
magro acatou.
— Sim, capitão.
Sua resposta levou o outro a olhá-lo com desprezo. Ergui o canto do
lábio, deixei de apontar a arma para o obediente e direcionei os dois canos
para o tenente.
— E você, hum? Havia acatado a hierarquia e agora resolveu se
rebelar? Esqueceu-se do que me disse na Baía dos ossos?
Ele permaneceu em silêncio, mas notei o momento em que engoliu
em seco.
— Hein?! — gritei.
— Não, capitão. — Levou a mão à testa, prestando continência.
— Ótimo. Agora obedeçam o Scar e vão ao trabalho.
Assim que os homens se dispersaram, e eu dei as costas a eles,
encontrei com o olhar orgulhoso de Lawrence.
Sorri, sentindo o rosto quente.
— Obrigado, querido — agradeceu com um beijo na minha bochecha.
O coração chegou a bater mais forte no peito. Guardei as armas e
retribuí o beijo em seu rosto, no canto dos lábios. De repente, Arya gritou
do alto do tombadilho.
— Navio à vista! Navio à vista! — Apontou para frente.
Quando olhei para o horizonte, de longe consegui ver a embarcação
cuja bandeira era lisa e vermelha. Um navio de mercadores de humanos.
Aquilo indicava que estávamos próximos de Ramund e que deveríamos nos
preparar para lutar.
Os ventos fortes bagunçavam meus cabelos, a ponto de atrapalhar
minha visão, tive que prendê-los num rabo de cavalo para que conseguisse
lutar sem que nada me impedisse.
As velas estavam infladas e íamos rapidamente em direção ao navio
de mercadores de humanos. Bippo aprontou os canhões, Steve e Arya
estavam com as bestas com os arpões preparados e direcionadas para que
conseguíssemos invadir a outra embarcação e Strigói distribuiu as armas.
Até mesmo os dois marinheiros receberam espadas e pistolas de Jake para
nos ajudar na batalha.
Deveria ser simples, invadir, buscar informações e libertar os
prisioneiros, porém, assim que o navio de bandeira vermelha nos viu
aproximar, iniciaram seu ataque.
O primeiro tiro de canhão foi disparado contra nosso navio. O
impacto foi tão forte, que todos que estavam no convés caíram com a
explosão.
— Scar! Proteja o navio! — Meu capitão gritou do alto da direção.
— Mas não precisaremos atingi-los também? Com a barreira os
nossos tiros não chegarão neles — questionei à Arya.
— Só depois de estarmos mais perto, começaremos uma ofensiva que
nos dará a oportunidade de invadir a embarcação, até lá precisamos ficar
inteiros! — A bruxa apontou a lança de sua besta para frente.
— Certo!
No momento em que eles dispararam outro tiro, respirei
profundamente e soltei o ar devagar, enxerguei a barreira na minha frente e
a expandi. A explosão foi contra a nossa proteção e foi possível enxergar o
fogo se espalhar antes de sumir.
— Mas que merda é essa? — quis saber, abismado, o marinheiro mais
alto. — Você é um bruxo?
— Ele não é um bruxo ou um feiticeiro. O Scar é algo raro — disse a
verdadeira bruxa.
— Raro? Como assim, o que isso quer dizer? — o outro oficial
questionou.
Os disparos vindos do navio oriundo de Ramund se intensificaram.
Senti uma pressão no nariz e tentei me concentrar para manter a barreira por
mais tempo, até que nos aproximássemos o suficiente.
— Calem a boca! — gritei.
Quanto maiores eram as barreiras, mais difícil eu conseguia mantê-
las, em especial porque as proteções dependiam da minha energia, o que me
deixava fraco rapidamente.
Assim que chegamos mais perto, notamos a agitação no convés
adversário. Jake desceu da direção e caminhou devagar até mim, ele foi tão
sorrateiro que só pude percebê-lo quando senti seu toque em meu ombro.
— Você está indo muito bem, aguente mais um pouco, querido. —
Olhou para o pirata cozinheiro. — Strigói, vá para a direção do navio. E um
de vocês dois... — apontou para os marinheiros —, terá que ficar aqui.
— Eu fico sem problemas — o mais fraco respondeu.
— Estamos quase lá, Lawrence... — disse meu nome bem baixinho a
fim de que só eu escutasse. Quando chegamos mais perto, Jake ergueu uma
das mãos. — Preparar...
A tensão pairou sobre a embarcação.
— Apontar...
O coração chegou a bater mais forte.
— Fogo! — o capitão gritou.
No segundo em que desfiz a barreira, Bippo disparou as bolas de
canhão contra a embarcação pareada na nossa. Parte da tripulação que
estava próxima à borda caiu com a explosão, o que nos deu brecha para
disparar os arpões com cordas em seus mastros.
Arya enfincou o gancho de sua arma na madeira de nosso navio e
Steve fez o mesmo.
Usamos os tecidos grossos que carregávamos para atravessar até o
outro navio. Primeiro foram os dois piratas que estavam com as bestas,
depois o tenente da marinha, por fim, Jake.
Eles invadiram a embarcação recebendo imediato ataque. Quando foi
a minha vez de atravessar, puxei o pano, pendurei-me e fiz impulso. Faltava
pouco para estar do outro lado quando um maldito cortou a corda.
Agarrei-me na borda e fiquei pendurado. Meus dedos e braços doíam
pelo peso do corpo, assim que olhei para baixo e vi as águas agitadas,
minha respiração se tornou fora de ritmo.
Tentei me impulsionar para cima, apoiei sem sucesso as botas na
lateral da embarcação, mas elas escorregavam e meus músculos não eram
fortes o bastante para conseguir aquilo.
— Jake! Jake! — gritei, na esperança de ser ouvido em meio ao caos
de berros, tiros e trisco de espada que aconteciam no convés.
— Está em apuros, donzela? — perguntou, sarcástico, um dos
mercadores ao me ver pendurado. Ele deu o primeiro soco em meus dedos,
o estalo me fez fechar o olho para resistir, até que desferiu o segundo, e o
terceiro...torturava-me sem que eu pudesse reagir.
Apertei os dentes a fim de conter a dor, não lhe daria o prazer de me
ouvir gritar. Minha mão escorregou um pouco mais, tinha que pensar rápido
em uma maneira de sair daquela posição.
Quando o homem sacou sua espada e a ergueu para acertar em meus
dedos, o som de um disparo foi ouvido como se fosse em mim. O sangue
dele respingou em meu rosto e seus olhos se tornaram maiores.
Jake empurrou o desgraçado no mar e se inclinou para segurar em
meus pulsos.
— Meu Deus, como você é pesado! — Fez força para me ajudar a
subir para o navio.
Apoiei meus pés na madeira, conforme ele me ajudava e, enfim,
consegui ser puxado para o convés.
— Obrigado, marido.
Ao olhar em volta, boa parte da tripulação inimiga estava caída ao
chão, Arya fazia seus ataques com duas espadas, bloqueando e revidando.
O marinheiro também não ficou para trás, sua pontaria era certeira
nos disparos.
— Precisamos descer para encontrar o capitão desse navio, ele deve
ter informações sobre quem procuramos, acabaram de sair de Ramund.
— E onde estão os prisioneiros? Não se esqueça de que precisamos
libertá-los também!
— Eles sempre ficam na parte mais baixa do navio. Vamos soltá-los
assim que eliminarmos esses ratos. — Jake puxou a espada e se preparou
para um ataque.
Mais homens vieram até nós, cercando-nos de todos os lados.
Encostei nas costas do meu capitão e retirei minha lâmina da bainha.
Quando os inimigos correram para nos atacar, defendemos os golpes e
contra-atacamos.
Jake e eu revidávamos as espadadas ao mesmo tempo em que
protegíamos um ao outro.
Atravessei minha espada contra a carne daqueles malditos e troquei
de lugar com meu amado, para matar mais alguns. Quando tivemos brecha,
conseguimos correr pelo convés, desviando de corpos e tiros para
descermos até o segundo andar.
Dali, logo na escada encontramos com dois homens subindo. Dei-lhes
um chute que fizeram com que eles rolassem pelos degraus, então meu
capitão e eu aceleramos o passo para matá-los com um golpe certeiro no
pescoço antes que eles se levantassem.
O andar debaixo era escuro, frio e havia menos homens.
Atravessamos o corredor lutando contra os marcadores até chegar ao final
dele, e lá estava a sala do capitão, com o símbolo da roda do leme.
Tentei girar a maçaneta e empurrar, mas estava trancada. Olhei para
Jake.
— Se afaste! — mandou ele.
— Faremos isso juntos.
Dei passos para trás ao seu lado e assim que ficamos a uma distância
boa o suficiente, corremos e demos um chute com toda a força que
tínhamos. A madeira envergou com o primeiro golpe, rachou com o
segundo e se quebrou no terceiro.
Quando entramos, fomos recebidos com um tiro que passou de raspão
pelo meu rosto, ferindo parte da bochecha.
O homem de chapéu grande, bigode espesso e olhos cansados ficou
sem saber em quem mirar para atirar, contudo, quando sua atenção se
concentrou em mim, Jake puxou a pistola e apontou para ele.
— Jogue a arma para cá — exigiu.
O capitão arregalou os olhos e virou o rosto lentamente para Jake,
como se estivesse com medo da imagem que encontraria em sua visão.
— U-Usurpador? O que você quer?
— Primeiro, quero que você me dê a merda da arma!
O homem pressionou os dentes, a contragosto largou sua pistola no
chão e a chutou para perto de nós. Fui até sua arma e a peguei, apontei para
o capitão inimigo também.
— Vocês acabaram de vir de Ramund, não é? Me conte sobre o navio
pirata cuja bandeira é uma caveira com rosas nos olhos — disse eu.
— Eu não sei do que está falando.
Bufei e dei passos pesados na direção do homem, coloquei o cano da
arma com uma certa pressão contra seu rosto, que o levou a fechar os olhos.
— Fala logo!
O capitão engoliu em seco e notei seu corpo se tornar ligeiramente
trêmulo.
— Por favor, não estraguem meu negócio! É o que eu faço para
sobreviver!
Jake guardou a pistola e puxou uma pequena faca que ele costumava
a afiar quando estava entediado ou planejando algo. Aproximou-se do
homem e o puxou pela orelha, colocou a lâmina contra sua pele.
— Você não está roubando objetos, está levando pessoas! Vidas! A
sobrevivência deles não importa? — gritou. — Agora me diga para onde foi
o navio pirata que sequestrou a princesa de Balerion.
— Eu não sei, eu juro...
— Não sabe? — Jake afundou a faca na cartilagem do homem,
fazendo-o sangrar, aquilo arrancou um grito estridente dele. — Se na
próxima vez que eu perguntar você se negar a dizer para onde foi o navio,
arrancarei sua orelha e farei engoli-la. Eu sei que a embarcação passou por
Ramund, então vamos tentar de novo... para onde foi o navio?
— T-tá legal, eu falo, eu falo! — A voz do homem saiu chorosa. — O
capitão Edward passou por Ramund, sim, mas apenas como uma parada de
seu trajeto até a ilha, a... a ilha de Vargan, não para vender a princesa. Por
conta dela, toda a marinha de Astrid está atrás dele, por isso pagou para
quem o encontrasse pelo caminho para que não desse sua localização.
— E o que mais? — Coloquei o dedo no gatilho da pistola.
— Isso é tudo, é tudo que eu sei, por favor, me deixem ir! — Soluçou.
Jake se afastou do capitão inimigo e guardou a faca na cintura.
— Venha, Scar. Acho que isso já é informação suficiente, Vargan não
é distante daqui, com certeza eles estão tentando se esconder por lá até que
a notícia seja abafada.
Concordei e me afastei do homem, que uniu as palmas das mãos,
como se estivesse numa prece.
— Me deixarão livre? Obrigado, Usurpador, obrigado... — Expressou
um olhar esperançoso.
— Não.
Jake pegou a pistola da minha mão e deu um tiro certeiro na cabeça
do capitão, que caiu no mesmo segundo. Arregalei o olho com a atitude
repentina, antes que eu cogitasse um possível perdão para aquele homem, o
Usurpador agiu.
Eu sempre me surpreendia quando ele deixava escapar seu lado
impiedoso, cruel ou ardiloso. Era como se Jake e o Usurpador fossem
pessoas totalmente distintas, Jake era um homem amoroso, cuidadoso e
sentimental, já o Usurpador um capitão pirata frio, estratégico e nada
misericordioso.
— Por que não deu a chance de ele se redimir? — perguntei enquanto
íamos em direção ao último compartimento do navio, onde estaria os
prisioneiros.
— Porque ele é um verme, um criminoso que age da maneira mais
suja possível para ter o que quer.
— Nós também somos criminosos — falei.
— Mas para certos crimes não têm perdão. Nós roubamos objetos,
eles sequestram crianças, mulheres, destroem famílias e populações.
Quando chegamos ao andar debaixo, assim que abrimos a porta, o
cheiro forte de morte e dejetos veio, fazendo-me enrugar o nariz. Os olhares
amedrontados nos encararam, havia homens, mulheres e crianças, sendo
esses últimos os mais predominantes.
Quase todos estavam magros demais, alguns visivelmente doentes,
notava-se pela coloração das pálpebras ou brotes na pele. Seus corpos
estavam acorrentados uns aos outros, sentados em fileira.
Franzi as sobrancelhas com pena. Aquele era um nível de crueldade
que não havia presenciado. Não havia mercadores de humanos nos reinos
do Sul.
— Por favor, não nos machuque! — implorou uma mulher, cujos
braços estavam marcados.
— Não estamos aqui para machucá-los. Viemos libertá-los e o navio
será de vocês. Cheguem ao próximo reino e encontrem suas famílias —
Jake disse.
De repente, começou um burburinho, alguns perguntavam ao mesmo
tempo, crianças choravam, outros agradeciam. A ansiedade pela liberdade
era palpável.
Jake e eu nos empenhamos em soltar as vítimas, então assim que eles
subiram para o convés, Arya deu instruções para três mulheres de como elas
fariam para guiar o navio até a terra firme mais próxima. E nós voltamos
para o nosso, rumo à ilha de Vargan.
Se passaram dois dias rumo à ilha de Vargan. Segundo Arya, não
havia civilização naquele lugar, era uma ilha vazia, dominada apenas pela
natureza. De imediato, não compreendi o porquê de os piratas que
sequestraram a princesa irem para lá, mas quando parei para refletir, fez
sentido.
O caso do desaparecimento da princesa era recente demais, haveria
grupos de busca por um tempo e a notícia se espalharia para os reinos
vizinhos. Numa ilha deserta não haveria guardas para denunciar à coroa de
Astrid, e eles teriam tempo o bastante para deixar o caso se abafar ou dar a
princesa como morta.
Fiquei ao lado de Jake com o mapa em mãos e as anotações de bordo,
enquanto ele conduzia a direção do navio.
— Acha que encontraremos armadilhas quando chegarmos à essa
ilha? — perguntei.
Meu capitão zombou.
— Dificilmente. Eles sequer devem esperar que estamos atrás deles, o
que nos dará muita vantagem. Mal posso esperar para devolver essa
princesa para o reino de Astrid e me livrar logo desse trato. — Olhou para
baixo e viu os dois marinheiros. — Caso não consigamos encontrá-los
nessa ilha, cogito muito a ideia de romper o acordo e jogar esses dois ao
mar.
Maliciosamente, o canto do lábio de Jake se ergueu.
— Mas sabe que se fizermos isso teremos Astrid na nossa cola o
tempo todo, não é?
— Duvido. Aquele reino deve ter tanta coisa para se preocupar, que a
perseguição deve durar no máximo uma semana ou duas. É só não
navegarmos perto das águas deles.
Franzi as sobrancelhas e assenti.
— É... nesse caso, eu concordaria com essa decisão.
Os olhos do capitão desviaram a atenção do horizonte para se
direcionar ao meu. Um sorriso apareceu em seu rosto, aproximei os lábios
dele, selando-os por um breve momento, num beijo terno e sutil.
Após o beijo, Jake não conseguiu disfarçar sua expressão abobalhada,
ainda que estivesse atento ao que havia à sua frente.
Logo conseguimos enxergar, à distância, a ilha, perto dela o enorme
navio de bandeira de caveira com rosas nos olhos estava ancorado muito
próximo à borda de Vargan.
— Terra à vista! — gritou meu capitão.
Arya subiu os degraus para vir até nós, com sua arma apoiada sobre o
ombro.
— Acho que não será uma boa ideia deixar o navio vazio, capitão.
Podemos perdê-lo. Melhor que ao menos Steve e Strigói fiquem.
— Mas não sabemos quantos homens há naquela tripulação. E se não
dermos conta? — Jake rebateu.
— Nós desolamos um navio repleto de mercadores assassinos há dois
dias, cuja tripulação era quatro vezes maior que a nossa. Daremos conta, e
creio que Arya esteja certa, se deixarmos o navio vazio, ainda que esteja
longe do navio inimigo ou da ilha, ele pode ser destruído por pura vingança,
já que não haverá ninguém para tirá-lo da mira dos canhões — falei.
Meu marido coçou a barba e concordou em silêncio.
— Certo. Steve e Strigói ficarão, avise a eles, Arya. O restante irá
descer nos botes conosco, com armas e espadas, estejam prontos para
qualquer coisa.
— Entendido, capitão! — A mulher prestou continência e olhou para
mim, seguido por uma piscadinha e sorriso.
— Soltem a âncora! — Jake ordenou do alto do navio.
Quando a embarcação ficou ancorada, descemos do tombadilho com
nossas armas e espadas, entramos no bote junto de Arya e Bippo, enquanto
na outra embarcação ficou os dois marinheiros, cujos nomes eu nunca me
recordava. Mal lembrava de suas existências inúteis, na verdade.
Meus companheiros de tripulação começaram a remar em direção à
ilha. Ainda era início de tarde, a maré não estava tão cheia e o mar
permanecia manso, era até estranho as coisas estarem tão favoráveis para
nós.
Levei o monóculo ao olho para verificar se encontrava algum
movimento no navio ou na ilha. Não havia ninguém naquela embarcação,
nada passando pelas janelas das cabines, muito menos pelas bordas do
convés. Quando direcionei minha atenção à ilha, não tinha uma pessoa por
ali também, além de que a mata densa que havia depois da praia era capaz
de esconder qualquer coisa.
Assim que pisamos na praia, saquei a espada e dei cobertura junto de
Arya, enquanto Jake e Bippo puxavam o bote para a areia. Os marinheiros
de Astrid chegaram um pouco depois de nós.
— Não estou vendo ninguém — disse o nosso mestre de armas.
— Eles devem estar em meio à mata — meu capitão respondeu e
colocou as mãos na cintura. Olhou para o céu e estreitou os olhos com a
claridade. — E não é nem para se esconderem, mas devido ao sol forte.
— Isso aqui é grande demais, como vamos saber pra que lado eles
foram? — falou o cabo.
Arya deu alguns passos à frente e olhou para a areia.
— Gente, venham ver isso!
Assim que nos aproximamos de onde ela estava, a bruxa-pirata
apontou para o chão, onde havia marcas de diversos pés que terminavam na
mata.
— As pegadas... — Jake puxou a pistola. — Vamos.
Deixamos a praia em passos lentos e em silêncio, não queríamos que
nossas vozes anunciassem a nossa presença, aquilo poderia resultar numa
fuga ou num ataque, e tudo que precisávamos era encontrá-los antes de
sermos encontrados. Pegá-los de surpresa nos daria vantagem.
O nosso caminhar quando adentramos na floresta teve que ser ainda
mais devagar devido ao barulho que as folhas secas no chão faziam ao
serem esmagadas. Usei a mão para me abanar. Apesar de ali ser mais escuro
e protegido do sol por conta das árvores altas de copas extensas, o clima se
tornava muito mais abafado.
Afastamos as folhas pelo caminho e andamos relativamente distantes
uns dos outros, olhando com atenção cada canto.
— Nunca vamos encontrá-los aqui — disse o tenente.
— Cale a boca — Jake rebateu num quase sussurro.
Após muito caminhar, paramos em meio à floresta. Àquela altura, eu
particularmente havia perdido as esperanças de encontrar a princesa,
direcionei meu olhar para os dois marinheiros e apertei firme o cabo da
espada. Tornou-se tentador matá-los ali mesmo e abandonar o trato.
Percebi pela visão lateral que Jake me encarava, ele assentiu com a
cabeça e desviou sua atenção para os dois oficiais distraídos também.
Quando meu capitão começou a erguer lentamente a mão com a
pistola, ouvi um barulho, ainda que distante. Eram risos.
— Ouviram isso? — quis confirmar.
Jake abaixou a mão.
— Eles estão por perto. Venham! — Arya tomou à frente em direção
ao som.
Enquanto andávamos, ela retirou do bolso um saquinho e assim que
chegamos próximos a uma árvore grande, nos escondemos em meio ao
tronco e folhagens e vimos à frente o que tanto procurávamos.
Ali, na área menos densa da floresta, estavam sentados em troncos a
princesa, com sua pele escura, cabelos cacheados presos num coque
desarrumado e vestido longo branco, o homem que deveria ser o capitão
Edward, com um bigode espesso, chapéu grande inclinado para frente, de
sobretudo vermelho com detalhes em dourado, e os outros piratas de sua
tripulação.
Franzi o cenho. A princesa não parecia com medo ou em perigo, na
verdade, ela aparentava estar bem à vontade, com uma garrafa em mãos e
rindo das coisas que o pirata contava.
Jake olhou para mim e arqueou a sobrancelha, acreditava que ele
percebeu a mesma coisa que eu.
— Não era para ela estar amarrada ou coisa assim? — perguntou
Arya baixinho.
— Acho que ela não quis ser resgatada. Esses monarcas depois que
sentem a pegada de um pirata... — Bippo lançou um olhar de canto para
mim e riu.
Respirei profundamente e revirei os olhos com discrição, prendendo o
sorriso.
— O que estamos esperando? Vamos logo! — O marinheiro deu um
passo à frente, quando foi impedido pela mão da bruxa em seu peito.
— Esperem. Eu vou na frente.
Arya foi primeiro com o saquinho em mãos e, assim que chegou perto
da última árvore antes da área menos densa, tirou dali um pó amarelado e
jogou em direção a eles. Aquilo fez com que uma fumaça se erguesse.
— Que merda é essa? — A voz estranha do capitão saiu engasgada e
eles começaram a tossir.
A bruxa-pirata ergueu a espada e a direcionou para frente.
— Agora! — Jake gritou.
Corremos até eles, que assim que nos viram, apontaram as armas e
dispararam um tiro. Fui rápido o bastante para criar uma barreira, que fez
com que a pólvora não nos acertasse.
Os piratas inimigos fugiram e fomos rapidamente atrás. Até mesmo a
princesa corria e olhava para nós, visivelmente assustada.
— Parados aí! — Jake apontou a pistola, a ponto de atirar.
Arya pôs a mão sobre a dele.
— Não precisa disso, capitão, eles vão cair logo, logo.
Quando três dos piratas cansaram de correr, voltaram-se para lutar,
sacando as espadas. Os marinheiros tomaram à frente na batalha,
bloqueando de imediato o ataque que receberam.
Bippo sacou sua lâmina e foi em direção ao terceiro que se aproximou
para um golpe.
O capitão, a princesa e outro pirata continuavam a correr, até que a
monarca tropeçou na franja de seu vestido e Jake se jogou em cima dela
para alcançá-la e impedir que ela fugisse. A mulher se debateu debaixo dele
com tanta força, que tirou parte da grama do chão.
— Ed! Socorro! — gritou.
O inimigo se voltou junto do outro pirata. Ele ergueu sua lâmina para
acertar o meu amado, então o impedi, criando uma barreira sobre Jake, o
que fez com que o outro arregalasse seus olhos para mim.
O homem veio me atacar com um golpe de cima para baixo, que
bloqueei com a espada, dando um contragolpe.
Enquanto eu batalhava com ele, Arya lidava com o outro pirata.
O capitão inimigo me deu um chute no estômago que quase me levou
ao chão, cambaleei, sentindo tontura e o ar faltar por segundos, então
quando ele aproveitou para vir para cima de mim, abaixei para tentar
golpeá-lo nas pernas, contudo, ele foi rápido o bastante para saltar.
— Socorro! Pare com isso! — a princesa continuava a gritar,
envolvida firmemente nos braços de Jake.
Aos poucos, notei os movimentos do pirata mais letárgicos. Revidei o
chute, que o fez cair ao chão, deixando que seu chapéu saísse da cabeça, o
que revelou seus cabelos longos e olhos amendoados.
Franzi as sobrancelhas e notei que suas feições menos marcantes não
combinavam com o bigode, era como se todo o restante destoasse. Andei
em passos largos até ele e ergui a espada para dar-lhe um último golpe,
quando o vi estender a mão para mim.
— Espere! Eu tenho ouro! Se são mercenários, pago o que for preciso
para que me deixem ficar com a princesa.
— Por que você a quer? Sabia que a marinha inteira de Astrid está
atrás de você? Não conseguirá subornar a coroa.
— Porque eu amo a Elizabeth! — Olhou para a princesa e um sorriso
lento aos poucos tomou o rosto melancólico. — E ela me ama também...
A mulher de feição sonolenta refletiu a expressão.
— Nos deixe ir, não quero me casar com o príncipe de Astrid. Edwina
não me sequestrou, ela, na verdade, me salvou de passar o resto da vida
infeliz ao lado daquele homem.
— Ela? — Jake arqueou a sobrancelha.
O pirata ao chão, com muito esforço retirou o seu bigode. Ali estava
explicado o porquê de aquilo ter destoado tanto de seus outros traços, era
uma mulher.
Senti o coração menor e um sentimento de culpa preencheu meu
peito, olhei para o meu capitão. Queria que deixássemos que elas fossem
embora, pois pude sentir a angústia presente na voz da princesa, afinal, já
estive numa situação semelhante.
Encarei-a.
— Então... vocês estavam fugindo apenas pra viver juntas? Por que
diabos se vestiu como um homem? — perguntei.
— Porque pretendíamos assumir outra identidade — a capitã
respondeu.
Abaixei a espada e respirei profundamente. Olhei para meu amado, de
sobrancelhas franzidas.
— Jake... acho que devemos deixá-las ir.
— O quê? Por quê? Cruzamos um oceano inteiro atrás da princesa!
— Porque eu não acho que seja justo sacrificar a vida de uma pessoa
apenas pelos nossos interesses! — Guardei a espada na bainha e me virei
para ele. — Querido, se a princesa estivesse em perigo, iríamos salvá-la,
fazer algo bom, mas não é o caso! Levar Elizabeth de volta seria condená-la
a uma vida de infelicidades que ela não quer, pois a pessoa que realmente
ama está aqui — Apontei para a mulher ao chão. — Isso não te lembra
nada?
Ouvi-o bufar e, mesmo relutante, ele cedeu, libertando a princesa de
seus braços. A mulher pegou nas barras do vestido e foi cambaleando para
perto do corpo de sua amada, ambas estavam afetadas pela especiaria
jogada por Arya.
— Jake... você é Jake Rogers? O usurpador? — a capitã perguntou.
— Ele é sim — respondeu Arya, aproximando-se com a espada em
mãos.
— Sua fama é de um pirata muito impiedoso... — Sorriu sutilmente.
— Mas parece que alguém conseguiu amolecer seu coração. — Riu.
Jake rosnou e desviou o rosto.
— Calada.
Os cantos dos meus lábios se esticaram discretamente.
— Ei! Por que não pegaram a princesa? — quis saber um dos
marinheiros que se aproximava. — Vamos aproveitar que ela está fraca e
levá-la de volta!
Coloquei as mãos na cintura e entrei na frente das duas mulheres.
— Não, ela não vai. Deixaremos que a princesa vá embora com a
pirata.
— Está louco?! — o tenente gritou.
— Levante a voz para Scar novamente e perderá a língua. — Jake se
aproximou de mim, pondo-se ao meu lado. — A princesa não quer se casar
com o príncipe de Astrid, então ela não vai voltar conosco.
O marinheiro colocou a mão em sua pistola e quando pensou em
sacá-la, Arya pôs a ponta da lâmina em sua nuca.
— Nem pense nisso.
— Vocês perderam a cabeça? Viajamos dias, talvez semanas, sei lá!
Para encontrar esta maldita mulher e levar de volta, então agora que
encontramos iremos abandonar tudo por ela ser uma...
— É, é isso. Ela não vai embora com a gente e acabou! — Dei um
passo à frente. — Que parte não entendeu?
— Ei.. — disse o cabo, aproximando-se. — Então o que a gente faz
agora?
— Vocês vão pegar a porra daquele bote em que vieram e retornar
remando para Astrid avisar ao príncipe que a noiva dele preferiu enfrentar
um oceano inteiro só para não ter que beijar aquela boca asquerosa — Jake
ordenou.
— Não vamos fazer isso! — o tenente retrucou.
Jake pegou a arma e atirou para cima, que fez com que todos
saltitassem de susto. O marinheiro arregalou os olhos e rangeu os dentes.
— Se me fizer atirar novamente, a próxima bala será na sua cabeça.
Entendido?
Com os olhos marejados, o tenente concordou, enquanto o outro
marinheiro estava com as palmas das mãos unidas e cabeça abaixada, o
cabo sequer questionou coisa alguma.
— E como conseguiremos chegar até Astrid apenas num bote? O
percurso é longo demais! Sem água ou comida...
Meu capitão abriu os braços e arqueou as sobrancelhas.
— Não me interessa. Se virem! Agora vão! Vão!
Os dois marinheiros se viraram e fugiram mata adentro. Bippo se
aproximou da situação com os olhos arregalados e Jake pediu para que ele
seguisse discretamente os dois, a fim de se certificar de que não
danificariam o nosso bote.
Quando voltamos a atenção para as mulheres, as duas estavam
desmaiadas, assim como o resto de sua tripulação.
— Quanto tempo o efeito disso vai durar? — perguntei.
— Algumas horas... — a bruxa inclinou os cantos de seus lábios para
baixo. — Talvez um dia.
— Bem, nesse caso, ficaremos com elas até que acordem — Jake
disse. — Não será seguro deixá-los sozinhos desacordados nessa floresta,
ainda que seja uma ilha deserta.
— Certo. Já, já, devem despertar — concordei.
E o que eu torci para ser apenas algumas horas foi uma noite inteira
na floresta.
A noite na floresta foi desconfortável e assustadora. Mesmo que
dissessem que naquela ilha não havia animais, ainda assim não consegui
pregar o olho por muito tempo, pois a cada barulho, eu erguia a pálpebra
para olhar ao redor.
Organizei uma cama improvisada com folhas para dormir na praia, já
os outros piratas ficaram adormecidos sobre a areia mesmo. A madrugada
foi muito fria, eu tremia tanto que só consegui parar quando Jake me puxou
para fora da cama a fim de me aconchegar em seus braços.
Acordei antes do nascer do sol, mas faltava pouco tempo para que ele
aparecesse. Desvencilhei-me do meu amado e sentei. Vi o céu colorido, na
transição do azul-escuro para o alaranjado próximo ao horizonte. Olhei para
o lado e vi a princesa se sentar também na areia, passando a mão pelos
cabelos a fim de retirar os grãos presos nele.
A mulher sorriu para mim e eu espelhei sua expressão. Levantei-me e
encarei o corpo de meu amado adormecido, dei alguns passos à frente e me
sentei ainda mais próximo à beira do mar para admirar o espetáculo do
nascer do sol.
— É realmente um evento lindo. Engraçado como em todos esses
anos, foram poucas vezes em que parei para admirar algo assim —
Elizabeth disse e se levantou de onde estava para se pôr ao meu lado. —
Posso te fazer companhia? Prometo ficar em silêncio.
— Mas é claro. — Os cantos dos meus lábios se ergueram. — E não
precisa ficar quieta, eu admiro o nascer do sol com o olho, não a boca.
Ela riu.
— Não foi isso que quis dizer, é que achei que quisesse refletir
enquanto vê o sol. — Voltou seus olhos para o horizonte que, aos poucos, se
iluminava. — Obrigada.
— Pelo quê?
— Por cuidar de nós enquanto estávamos desacordados e por me
deixar ficar com Edwina... — Encarou-me. No momento em que sorriu com
discrição, seus cabelos esvoaçaram com a brisa que veio do oceano.
Fixei meu olho em sua íris escura.
— Eu sei bem o que é abrir mão de sua felicidade por um dever a ser
cumprido, um propósito que você foi designado sem querer... e o quão
doloroso é o processo, como nos destrói aos poucos. Não sei se você
também se sentiu assim, mas, para mim, no meu maior momento de
solitude, o flerte com a morte se tornou ainda mais atrativo, como uma
forma de fugir da situação sem decepcionar ninguém.
— É exatamente isso. A mesma sensação. — Suspirou. — Já viveu
em meio à corte, pirata?
Calei-me por um segundo e balancei a cabeça em negação.
— Não.
Não consegui inventar uma história de imediato, então apenas deixei
em suspense qual era a minha origem.
A mulher franziu as sobrancelhas e apoiou a mão sobre a minha.
— Sabe, se existirem outras vidas, eu poderia afirmar que numa delas
você já foi um príncipe. E dos melhores.
Sorri e ela fez o mesmo.
Voltamos nossos rostos para a vista, àquela altura o sol tomava seu
lugar no céu e a claridade fez com que os outros piratas, aos poucos,
despertassem. Os barulhos me fizeram olhar para trás. Jake foi o primeiro a
se levantar, bateu nas roupas sujas de areia e observou Bippo, que era o
único ainda de olhos pregados, deu-lhe leves chutes para que ele acordasse
também.
— Argh, esse negócio que você jogou na gente me deu uma dor de
cabeça... — A pirata Ed resmungou para Arya. Ela se aproximou do meu
capitão e o reverenciou. — Obrigada por nos deixar ir, Usurpador. Para
sempre seu nome será lembrado por mim.
Jake levou a mão ao peito em silêncio, aceitando os agradecimentos.
Olhei para o Maldição do rei em meio ao mar, ainda ancorado.
Respirei profundamente e soltei o ar devagar, encarei a princesa.
— Então é aqui que nos despedimos?
— Foi um prazer conhecê-lo... — estreitou os olhos, parecendo se
esforçar para recordar meu nome.
— Scar.
— Scar. Foi um prazer conhecê-lo, espero que um dia possamos nos
encontrar de novo.
— Com certeza nós nos veremos navegando por aí. Até a próxima,
princesa Elizabeth.
— Sigam com cuidado, moças, felicidades ao casal! — gritou Bippo,
acenando em despedida, enquanto usava a outra mão para empurrar o bote
para a água.
A princesa se afastou de mim para ir até sua amada, que a envolveu
pela cintura. Os outros piratas de sua tripulação se puseram atrás delas. A
capitã deu um sorriso para Jake e antes de ir fez uma oferta que ele gostou
bastante.
— Na próxima vez que nos encontrarmos, as bebidas serão por minha
conta.
— E eu farei questão de cobrá-la isso. — Meu capitão piscou e se
afastou dela para se aproximar de mim, ergueu a mão em um aceno. — Até!
E assim elas se foram, caminhando em direção oposta a nossa.
— Boa viagem, meninas! — Arya berrou à distância, enquanto
ajudava Bippo a empurrar o bote de volta para o mar.
Nós quatro subimos no bote e, então, começamos a remar em direção
ao nosso navio ancorado. Sorri discretamente ao vê-las de longe, senti que
fiz um bom trabalho, apesar de o trato não ter sido realizado como deveria.
Aquilo teria suas consequências, mas eu e meu amado estávamos
dispostos a aceitá-las.
Quando subimos no navio, Steve e Strigói nos receberam com um
banquete farto no convés. Meu estômago roncou e a boca encheu-se d’água
ao sentir o cheiro da comida, principalmente por ter passado a noite anterior
com fome.
— Cadê os outros dois idiotas? — o pirata cozinheiro perguntou.
— Foram avisar à Astrid que nós encontramos a princesa, mas a
deixamos ir, porque ela nunca foi raptada, só se apaixonou por uma pirata
— Bippo respondeu, pegando um pedaço de pão e tomou seu lugar sobre
um barril.
— Há! – Strigói riu. — Parece até sua história, Lawrence!
— Sim, e foi por isso que a deixamos ir. — Sentei-me próximo à
mesa e, em seguida, peguei uma tigela com alguns grãos e carne. —
Ninguém merece amargar em infelicidade por conta de terceiros.
— Mas isso é trato rompido... a marinha de Astrid virá em peso atrás
de nós — Steve disse, aproximando-se.
— Estamos bem longe de Astrid. Basta mudarmos a bandeira e nos
manter afastados de suas embarcações por um tempo até que eles
esqueçam. — Jake pegou comida, vinho e se sentou ao meu lado.
— Certo... e para onde iremos agora?
— Para o Sul. — Encarou-me de canto e ergueu o lábio. — Será
interessante navegar pela baía de Marnsala. — Guie o navio, Steve.
O pirata inclinou a cabeça em afirmação e saiu rapidamente em
direção às escadas que davam acesso à roda do leme.
Meu coração transbordou com aquele gesto, Jake se lembrou da
saudade que sentia do meu reino, do meu pai, e esteve pronto para esse
reencontro. Discretamente aproximei uma das minhas mãos de seus dedos,
acariciando-os e recebi seu olhar de ternura em resposta.
Permaneci no convés comendo junto dos outros piratas e mantive
meus olhos no horizonte, onde conseguia enxergar o navio cuja bandeira
havia uma caveira com rosas nos olhos. As duas não estavam tão longe de
nós, poucos metros de água nos separavam.
O vento forte que bagunçava meus cabelos inflava as velas,
facilitando a nossa rapidez no trajeto.
Tudo ocorria bem, até que uma explosão foi ouvida e o impacto
estremeceu nosso navio. Ao me levantar, vi, de longe, o navio com o
símbolo de Astrid se aproximando, e o que antes era apenas um, tornaram-
se dois.
— Como?
Arregalei o olho.
Jake também se ergueu para ver.
— Esses desgraçados deveriam estar nos seguindo todo esse tempo.
— Apertou o punho. — Vamos contra-atacar, chega de fugir. — Atenção,
homens! Preparem os canhões! Arya, carregue o arpão! — gritou.
Uma correria de iniciou pelo convés, eu já sabia a minha função de
proteger o navio dos disparos, então fui até a borda e me concentrei para
que conseguisse expandir o campo de proteção.
Mesmo em meio ao caos, com o som de fundo dos destroços, gritos e
tiros, respirei lentamente e tentei aliviar os pensamentos, aos poucos o
barulho se tornava distante. Abri as mãos, visualizei a barreira e a expandi.
Tentaria nos guardar dos disparos até que os navios estivessem
próximos o bastante para atacarmos. Não éramos tão bons em batalhas a
distância, mas quase sempre saíamos vitoriosos em lutas corporais, ainda
que nossa tripulação fosse menor que a do adversário.
Eram apenas dois navios da marinha, seria difícil lidar com eles, pois
teríamos que nos separar na ofensiva, contudo, podíamos dar conta.
Deveríamos dar conta. Se entregar seria um decreto de morte.
Eu sentia a pressão das explosões sobre o campo, minhas pernas
estremeciam e o corpo era esmagado pela sensação, pude notar o calor do
sangue escorrer por uma das minhas narinas.
De repente, os disparos foram retrucados, mas não por nós.
Olhei para trás, vi a embarcação da pirata Edwina se aproximar da
nossa e atirar contra os inimigos. Eles não revidaram, pareciam temer de
matar a princesa que estava a bordo.
Os navios da marinha estavam cada vez mais perto, até que ao se
aproximarem o suficiente, o comandante de peruca branca e feição rígida,
que estava com o tenente ao seu lado, gritou para a pirata:
— Nos entregue a princesa de Balerion ou não haverá misericórdia
por seus crimes, pirata!
— Eu prefiro à morte ao me casar com o príncipe de Astrid! — a
princesa retrucou, do alto do tombadilho, esgoelando-se.
Jake gargalhou ao meu lado ao notar a expressão incrédula do oficial,
que logo se tornou furiosa e, então, ele ergueu o dedo indicador e o girou no
ar, antes de dar as costas.
Dispararam contra a embarcação das duas, que revidaram
vigorosamente. As explosões e destroços agitavam as águas ao redor, que
chacoalhavam o nosso navio.
Arregalei o olho, precisávamos agir.
— Não sei se vou suportar mais, capitão... — falei.
— Eles estão quase onde deveriam estar, calma... — Jake passou o
dedo por debaixo do meu nariz, limpando o sangue. — Falta pouco.
— Capitão...
— Só mais um pouco.
Senti meu corpo começar a perder as forças por suportar a barreira
por tanto tempo, minha concentração aos poucos saía dos meus eixos,
principalmente por me preocupar com o navio de Edwina recebendo os
ataques sozinho.
— Jake!
— Agora! — ele gritou.
Assim que a barreira se desfez, caí de joelhos e os arpões foram
atirados nos mastros do navio da marinha, assim como os canhões
dispararam.
Minha visão ficou pouco nítida e a percepção letárgica, era como se o
tempo tivesse desacelerado por instantes, até mesmo o som estava abafado,
sendo consumido por um zunido em meus ouvidos.
Enquanto estava ao chão, avistei, de longe, os piratas do Maldição do
rei invadirem a embarcação inimiga através das cordas disparadas pelos
arpões. Aquilo fez com que o ataque contra as mulheres cessasse, devido à
atenção desviada para nós, o que lhes deu brecha para saltarem para os
navios de Astrid também.
Steve, o mais velho, foi o único pirata, além de mim, que permaneceu
no navio para vigiá-lo de invasores.
Aos poucos, minha visão se tornou menos embaçada e criei forças
para me erguer. Só então consegui ter noção da dimensão do caos, sangue e
fúria para todo o lado, os gritos deixaram de ser de bravura para se tornarem
de angustia e dor. Eu precisava agir, não poderia deixar meus companheiros
de tripulação desamparados.
Chequei a espada na bainha e corri pelo convés, para pegar impulso
na corda e saltar para o outro navio.
Quando aterrissei, de imediato levei um golpe no braço que cortou
parte da minha pele. Puxei a espada e revidei.
Foi um massacre. Alguns marinheiros chegaram a se render, mas Jake
não permitiu que eles permanecessem vivos, meu capitão sempre eliminava
as suas ameaças, dificilmente acreditava em segundas chances.
Ao olhar para a embarcação ao lado, as mulheres continuavam a lutar
contra os oficiais do outro navio. Arya não pensou duas vezes antes de
saltar para lá, e Jake, como seu companheiro fiel, fez o mesmo. O que me
levou a ir também.
Edwina estava tão concentrada em sua luta, que desistiu do disfarce
de Edward. A pirata atacava os que se aproximavam de sua amada, e a
princesa não parecia saber muito bem como lutar, era atrapalhada até
mesmo para atirar, fechava os olhos e saltitava de susto, contudo, conseguia
dar o seu melhor para ajudar.
Fiquei tão distraído com tudo o que acontecia em volta, que não notei
a chegada de um inimigo, que me golpeou pelas costas com um chute.
Tombei para frente, ao me virar, era o oficial mais forte, o tenente que
estava no nosso navio.
— Levante e lute, Scar! — gritou.
Eu detestava que gritassem comigo. Puxei a espada da bainha e me
ergui, tentando dar-lhe um golpe de baixo para cima, mas foi bloqueado por
ele.
Nossas espadas triscaram a ponto de soltar faíscas, a batalha se tornou
uma dança mortal com ataques e revides, até que encontrei a brecha perfeita
para acabar com a luta de uma vez.
Quando ele ergueu a espada para me atingir, abri a mão, liberando um
campo de proteção, e toda a força que o tenente usou, voltou contra ele, que
caiu no chão de frente para mim. Ao me ver levantar minha espada, o
homem estendeu uma das mãos e franziu as sobrancelhas.
— Piedade, por favor...
Parei o movimento na metade e minhas mãos tremularam.
— Lawrence! — Jake berrou.
Quando olhei para meu capitão, ele disparou a bala contra o tenente,
cheguei a saltitar de susto e quando vi, o corpo do homem estava com uma
pistola em mãos. Ele iria me matar. O homem que ousei ter misericórdia
atiraria em mim sem pensar duas vezes.
Jake esteve tão nervoso com a situação, que usou meu nome de
origem. Correu até mim e apoiou a mão no fim das minhas costas.
— Você está bem?
— E-eu...eu...
Ainda desnorteado pela situação, não consegui encontrar as palavras
para expressar que estava bem, apenas me calei e afirmei.
— Que bom. Numa batalha vale tudo e sobrevive o melhor, não tenha
empatia por seus inimigos, querido, é você ou eles. — Deu-me um ligeiro
beijo no canto da boca e se afastou para espiar em volta.
Arya se aproximou de nós, com a blusa branca encharcada de sangue
e colocou a mão na cintura, encarou o convés repleto de corpos, onde ainda
havia ao fundo a princesa, a pirata e sua tripulação terminando de lutar
contra os marinheiros.
— Acho que agora elas dão conta. — Sorriu de canto.
— É... elas conseguem. — Jake deu as costas para a cena e, em
seguida, pulou para o nosso navio.
Quando retornamos para o Maldição do rei, seguimos rumo ao Sul,
Jake sabia o quanto eu sentia saudades do meu reino e, por isso, meu
coração vibrava só em pensar em reencontrar meu pai, nem que fosse para
um breve abraço.
Tínhamos noção de que a marinha de Astrid continuaria atrás de nós,
não só por termos rompido o acordo, mas também por ter dizimado uma
tripulação inteira. Contudo, já possuíamos muitos inimigos, Jake era o
pirata mais procurado pelos sete mares, então um reino a mais querendo
nossa cabeça não faria tanta diferença.
A caminho das águas do Sul, enquanto estava no convés com o
restante da tripulação, ajudando a limpar os destroços da batalha, notei mais
uma embarcação na linha do horizonte, que parecia vir ao nosso encontro.
Respirei profundamente.
Não temos um segundo de paz neste navio.
— Já volto — avisei aos tripulantes, soltei o esfregão e andei em
passos largos até a escadaria que dava acesso à direção da embarcação.
Subi os degraus rapidamente para avisar a Jake sobre uma possível
ameaça. Quando inflei o peito para contar, ele me interrompeu com um
erguer de mão.
— Eu vi. — Riu.
— E qual é a graça? Não é uma ameaça? — Arqueei a sobrancelha.
Meu capitão pegou o monóculo que estava apoiado no barril ao seu
lado e me entregou, quando olhei por ele, um sorriso surgiu em meu rosto e
senti o corpo vibrar. Não era apenas o tom das roupas vermelhas que me
trouxeram alegria, mas a bandeira com o símbolo de uma rosa.
— Conseguiu ver?
— Não pode ser... é... é verdade isso? — Franzi as sobrancelhas e
afastei o monóculo do rosto para encarar Jake. — Como ele sabe que...
Naquele momento, a resposta veio à mente: a carta. Meu peito se
aqueceu, repleto de felicidade, meu pai não só havia recebido a carta, como
também leu e veio atrás de mim. Ele queria me reencontrar tanto quanto eu.
Quando os nossos navios se aproximaram, meu marido me empurrou
sutilmente para frente.
— Por que você não vai para a borda? — Ergueu a sobrancelha.
— Eu posso ir?
— O que está esperando?
Desci os degraus às pressas, a cada passo meu coração galopava as
batidas e o corpo estremecia de euforia, pressionei os dedos das mãos,
ansioso, na borda da embarcação enquanto aguardava com expectativa a
imagem de meu pai entrar no meu campo de visão.
Assim que estivemos mais perto, pude vê-lo, ele acenou para mim
com um sorriso e, inevitavelmente, espelhei sua expressão de alegria.
— Ancorar o navio! — Jake gritou do alto do tombadilho, quando
estivemos próximos de parear as embarcações.
Os navios se encontraram em meio ao mar, lado a lado, apenas uma
pequena brecha nos separava. O meu capitão desceu devagar da direção
para se colocar ao meu lado, a fim de saltarmos juntos para a embarcação
de Marnsala.
O navio de meu reino estava quase vazio, havia apenas quatro
homens além do rei, provavelmente por aquela ser uma missão que exigia
discrição.
Meu pai se aproximou de mim com um papel em mãos, e eu fui ao
encontro dele. Quando nossos corpos se encontraram, abracei-o fortemente
e fiquei envolvido em seus braços por um bom tempo.
Senti tantas saudades.
— Como me encontrou? — perguntei, franzindo as sobrancelhas ao
desfazermos o abraço.
— Você me disse por quais águas estava, S. — Ele riu e me encarou
com um sorriso, vislumbrou minha aparência da cabeça aos pés. — Está
diferente.
— Sim, agora sou Scar.
Ele arregalou os olhos brevemente e seu sorriso se tornou ainda mais
largo.
— Gostei do novo nome. É forte e imponente.
— Obrigado, Jake me ajudou a escolhe-lo. Como vão as coisas no
reino?
— Melhores. E quer uma boa notícia? Terá um irmão.
— Jura? — Meu corpo sem querer saltitou de alegria.
— Sim, sim!
— Parabéns, pai! — Abracei-o mais uma vez e alisei suas costas.
Minha visão se anuviou com as lágrimas. Eu estava, genuinamente, feliz
por ele.
— E meus parabéns a vocês também — o rei disse, encarando Jake.
— Tem feito um bom trabalho em cuidar do meu filho. Obrigado pelo
favor.
— Ele é o amor da minha vida, a razão pela qual meu coração
continua a bater, e tem a devoção de minha maldição. Amá-lo e protegê-lo
não é um favor, é um dever. — Meu marido tirou um sorriso do meu pai
com aquilo. Ele sabia que deixou seu filho em boas mãos.
— Obrigado, pai.
— Jake Rogers, Scar... que tal tomarmos um chá em minha cabine?
Nos deu as costas.
— Eu adoraria! — falei, seguindo-o pelo convés.
— Posso trocar o chá por cachaça? — questionou Jake, arrancando de
mim uma gargalhada.
Nós três seguimos uma tarde num encontro repleto de boas comidas,
bebidas e recheada de novidades. Saber que meu pai e meu reino estavam
bem era o suficiente para que minha consciência ficasse em paz.
E assim combinamos, de que eu, Jake e meu pai nos encontraríamos a
cada seis meses às escondidas para sanar a saudade e compartilhar as
notícias.
O usurpador era o que me prendia ao mar, e o rei, Robert, o que me
reconectava ao reino, aquele era o equilíbrio perfeito para um príncipe-
pirata.

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