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Mirror, mirror: A Twisted Tale
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Diretor editorial: Luis Matos

Gerente editorial: Marcia Batista

Assistentes editoriais: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches

Tradução: Cristina Calderini Tognelli

Preparação: Marina Constantino

Revisão: Bia Bernardi e Nathalia Ferrarezi

Arte: Renato Klisman

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Angélica Ilacqua CRB-8/7057


C164b

Calonita, Jen
Branca de Neve às avessas / Jen Calonita ; tradução de
Cristina Calderini Tognelli. –– São Paulo : Universo dos Livros,
2023.
288 p.(Twisted Tales ; vol 4)

e-ISBN 978-65-5609-333-8

Título original: Mirror, mirror: a twisted tale


1. Literatura infantojuvenil

I. Título II. Tognelli, Cristina III. Série

23-0390 CDD 028.5


Mãe, obrigada por convencer a minha assustada versão de seis
anos de idade a entrar no brinquedo “As aventuras assustadoras de
Branca de Neve”, na Disneylândia, embora eu tivesse medo da
Rainha Má. (Valeu a pena!)

— J. C.
Prólogo

O CASTELO PARECIA DIFERENTE pelo lado de fora.


Foi o primeiro pensamento da princesa ao vê-lo de novo. Parecia
que fazia anos desde a última vez, mas, na realidade, passaram-se
apenas algumas semanas. Agora, enquanto fitava a monstruosidade
que se assomava no alto da colina, ela sentiu um nó na garganta.
Aqueles corredores estavam repletos de fantasmas e lembranças da
vida que perdera.
Mas não precisava ser assim.
Se conseguissem fazer aquilo a que se dispuseram a fazer,
conseguiriam mudar tudo isso. O castelo e quem ficasse em seu
trono poderiam voltar a ser um norte para o reino. Mas isso
significava não fugir daquilo que a princesa esperava encontrar no
interior do castelo, mesmo que cada centímetro do seu corpo o
quisesse.
— Melhor nos apressarmos — disse Anne ao cortar os juncos
para abrir um caminho que as levaria direto ao vilarejo nos
arredores do castelo sem serem vistas. — Não dispomos de muito
tempo até o início da celebração.
A princesa acelerou o passo, seguindo a amiga.
Estava indo para casa.
Mas já não parecia mais um lar. Deixara de ser havia muito
tempo, porém, tecnicamente, era isso o que o castelo era. Ou fora,
há muito tempo.
Caso se concentrasse o bastante, ela conseguiria visualizá-lo
como tinha sido em sua infância. Em sua mente, o reino era amado
e belo, com um castelo do qual as pessoas se orgulhavam. (Afinal,
tinham sido elas a depositar cada pedra na sua construção.)
Trepadeiras crescidas demais não se espalhavam pelos muros de
pedras cinza. Cada arbusto, cada árvore, cada flor era bem cuidada.
O viveiro estava recheado com o canto dos pássaros. As janelas
brilhavam. O lago na base da colina refletia raios de esperança
enquanto visitantes sempre vinham de outras paragens. Os portões
do castelo estavam quase sempre abertos, e não era incomum que
festas se iniciassem no intervalo de um segundo.
Mas agora a situação era diferente. As janelas estavam escuras e
as cortinas ficavam sempre fechadas, dando ao castelo uma
aparência de abandono. As águas que o cercavam pareciam de
vidro, pois nenhum navio ousava atravessar as fronteiras do reino.
Os portões, enferrujados e tortos, estavam trancados. A propriedade
estava, a não ser por alguns poucos guardas fiéis, abandonada. A
época de renascença do seu reino há muito se acabara.
Quando o Rei Georg e a Rainha Katherine ocupavam o trono,
eles eram benevolentes com o povo. As terras eram férteis o
bastante para a agricultura, e debaixo delas havia uma próspera
mina de diamantes. O casal festejava o crescimento da província
promovendo frequentes festivais no pátio do castelo, em que súditos
dos mais variados eram bem-vindos. Fechando os olhos, a princesa
conseguia se ver sendo balançada no ar enquanto a melodia de um
violino soava e as pessoas dançavam. Mas a lembrança logo se
desvaneceu, sendo substituída pelo som de Anne quebrando outro
galho de árvore.
Por longos períodos, ela passara dia e noite dentro daquela
fortaleza desejando que alguém a libertasse. Vivera sem amor por
muito tempo ali, com pouco riso e sem companhia que a animasse.
Talvez por isso, apesar do esplendor do castelo, ele sempre pareceu
maculado, contaminado. A princesa aceitara seu destino numa
tentativa de tirar o melhor proveito da situação, mas recusava-se a
continuar fazendo isso.
Foi só depois de sair de trás daqueles muros que percebeu a
verdade: a única pessoa que poderia libertá-la era ela mesma. Era
por isso que estava de volta. Para reivindicar o que era seu por
direito. Não apenas o castelo, mas a província e o trono. Não só por
sua própria felicidade, mas também pela de seu povo.
Aquele era o momento de atacar. Era por isso que viajara de tão
longe, arriscara tanto e encontrara forças dentro de si que nem
sabia que existiam. A Rainha Ingrid nunca tivera muita popularidade,
mas, nos últimos anos, o reino passara de indiferente a aterrorizado
por completo. Ela não podia permitir que seu povo continuasse a
sofrer assim. Chegara a hora.
— Ali! — Anne cortara o último dos galhos e o sol agora brilhava
em meio às sombras. — Chegamos à estrada. Mais um pouco à
frente poderemos passar pelos portões do castelo próximos ao
açougue sem sermos vistas. A rainha exigiu que todos fossem à
celebração de hoje, portanto deve haver uma multidão por lá.
Ela abraçou com força o manto marrom que Anne lhe fizera.
Rapidamente se tornava um dos seus bens mais valiosos. Não só a
mantinha aquecida, mas a estampa do jacquard a fazia se lembrar
do casaco de viagem usado por sua mãe. Era como se, de algum
modo, a mãe estivesse consigo ou, pelo menos, garantisse que ela
encontrasse os companheiros certos de viagem. Sentia-se grata
pela amizade de Anne e de todos os súditos que a ajudaram. A
bondade deles não seria esquecida.
Virou-se para Anne.
— Isso não dificultará nossa passagem?
Anne a segurou pelas mãos.
— Não se preocupe, minha amiga. Seu trajeto será mais fácil do
que o que o Príncipe Henrich e eu fizemos esta manhã. Essa
multidão será a cobertura perfeita para que você possa passar
despercebida.
— Teve alguma notícia de Henri? — a princesa perguntou
esperançosa.
Anne meneou a cabeça.
— Estou certa de que ele está bem. Se não estivesse, já teríamos
escutado algo. — Anne a puxou para a frente. — É com você que
me preocupo. Assim que passar pelos portões, todos a
reconhecerão. Precisamos fazer com que entre no castelo antes
que seja notada. Temos que nos mover rápido para reuni-la ao seu
amor. Ele está à sua espera.
O seu amor. Aquilo levou um sorriso aos seus lábios. Ela e Henri
tinham passado por muita coisa na última semana, e mais ainda
antes disso. Apertou o passo.
Conforme Anne previra, a estrada para o vilarejo estava deserta
naquela manhã. Não cruzaram com nenhuma carruagem durante o
trajeto. Ninguém tampouco viajava a pé no momento, embora ela
avistasse diversas pegadas na terra. Imaginou que a entrada do
vilarejo estivesse protegida, mas não havia ninguém de vigia na
guarnição quando ela e Anne cruzaram os portões abertos. Uma
declaração tinha sido pregada a um poste de ferro. Leu rápido
quando passaram:

A Rainha Ingrid exige que todos os súditos leais do vilarejo se


juntem à celebração no pátio do castelo hoje ao meio-dia.
Em preparação a este evento de tamanha importância, todos os
estabelecimentos do vilarejo permanecerão fechados.
Todos os que não estiverem presentes na celebração serão
notados.

Ela estremeceu. Anne tinha razão quanto à obrigatoriedade da


comemoração, mas se tratava de um pedido estranho. Não que ela
se surpreendesse com a insistência da Rainha Ingrid, mas não
havia nenhuma festividade oficial e algo que se assemelhasse à
alegria no reino há anos. As pessoas estavam tão assustadas com
sua rainha que evitavam fazer qualquer coisa que os deixasse em
evidência. Em vez disso, passavam os dias de cabeça baixa,
vivendo nas sombras. Serem convocadas para uma rara celebração
— se é que aquilo de fato era uma celebração — deveria ser
enervante. O que a rainha estaria tramando?
Ambas permaneceram em silêncio ao avançarem pela estrada
empoeirada do vilarejo que conduzia ao castelo. A princesa passara
algum tempo naquelas ruas — embora sempre limitado —, mas
ainda assim se surpreendia com a quietude do lugar. As casinhas de
madeira com telhados de sapé que perfilavam a estrada estavam
todas fechadas. O sino do monastério soou com pompa as dozes
badaladas do meio-dia, mas não havia ninguém por perto para ouvir.
Evidentemente, todos acataram o aviso da Rainha Ingrid. Ela
suspirou fundo e viu o olhar de Anne.
— Você não precisa fazer isso sozinha. Sabe disso, não? — A
voz de Anne era gentil. — Deixe que eu vá lutar com você e com o
Príncipe Henrich!
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Agradeço o que fez por nós,
mas devo fazer sozinha esta parte da jornada.
Anne a fitou como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas
foram interrompidas por um grito. Um homem vinha correndo na
direção delas, com o rosto tomado de terror.
— A rainha é uma bruxa! — exclamou. — Fiquem longe da praça
do vilarejo! Fujam! Escondam-se! Senão a Rainha Ingrid as
amaldiçoará também.
A princesa ficou tão surpresa que não compreendeu o que o
homem dizia. Anne parecia igualmente assustada. O que a rainha
fizera ao seu povo dessa vez? Ela começou a correr na direção da
praça para ver o que estava acontecendo.
Anne foi logo atrás.
— Espere! Você ouviu o homem. Pode ser uma armadilha!
Não lhe importava se a rainha suspeitasse de sua proximidade.
Seus instintos lhe diziam que algo estava muito errado. Precisava
saber o que havia acontecido.
Ao se aproximar do castelo, viu que quase todo o vilarejo estava
ali reunido. Cabeças balançavam para cima e para baixo à medida
que os aldeões encaravam o que havia atrás das grades dos
portões. Sem dúvida, aquilo não era nenhuma celebração. Ela viu
os aldeões ansiosos disputando por posições melhores, tentando
enxergar. Alguns gritavam e choravam enquanto outros suspendiam
os filhos acima dos ombros para que pudessem ver. Anne e a
princesa se esforçaram para conseguir uma vista melhor.
— Não olhe. — Ela ouviu uma mãe dizer ao filho pequeno. —
Temos que ir agora! Antes que um de nós seja o próximo.
— Alguém sabe quem é? — perguntou outra.
— Parece ser de sangue azul, se quer minha opinião.
A princesa abriu caminho entre a multidão, tentando chegar à
frente. Anne a agarrou pelo braço, sem querer se perder dela.
— Com licença — ficou repetindo. — Posso passar, por favor?
Mas o povo do vilarejo continuava a espiar de olhos arregalados,
conversando e encarando como se não a vissem.
— É feitiçaria, eu garanto!
— Um aviso! — exclamou outro. — Ela não deve ser desafiada!
— Ele está dormindo ou está morto?
— Ele não se mexe. Deve estar morto.
Ele? Empurrou com mais força, indo contra tudo o que lhe fora
ensinado há tempos para chegar à frente do portão e ver com o que
os outros estavam tão incomodados. Assim que conseguiu, desejou
não ter sido capaz.
— Não! — exclamou, soltando a mão de Anne e agarrando as
grades diante dela.
Era Henrich. O seu Henri. Deitado no que parecia ser um caixão
de vidro à mostra numa plataforma elevada. Seus olhos estavam
fechados e ele trajava as mais belas roupas. O rosto estava quase
tranquilo. Presa nas mãos cruzadas havia uma única rosa branca.
Era uma mensagem para ela, isso estava claro. Estaria morto? Ela
precisava saber.
— Espere — disse Anne quando a amiga empurrou os portões,
deslizando por eles com tanta rapidez que os guardas não puderam
detê-la. — Espere!
Mas ela seguiu em frente, o manto caindo de cima dos ombros
enquanto corria.
— É a princesa! — alguém exclamou, mas ela não parou. Não se
importava com quem a visse. Subiu os degraus da plataforma
correndo e se debruçou sobre o caixão, erguendo a tampa de vidro.
— Henri! Henri! — chamou, mas os olhos dele permaneceram
fechados. Segurou-lhe as mãos. Ainda estavam quentes. Apoiou a
cabeça no peito do rapaz. Houve gritaria e comoção atrás dela.
Berros e brados se espalharam no meio da multidão.
— É ela!
— Ela voltou por nós!
— Princesa, salve-nos!
Ela bloqueou todos os gritos e aguçou os ouvidos para o som
mais importante do mundo: uma batida de coração. Mas, antes que
conseguisse ouvir uma, foi arrancada da plataforma e virada. No
mesmo instante reconheceu o homenzarrão corpulento que a
segurava.
O homem sorriu e seu dente de ouro brilhou.
— Levem a traidora para a Rainha Ingrid. Ela está à espera da
princesa.
Manteve a cabeça bem erguida quando o guarda a conduziu
diante de Anne e da multidão, sussurrando em seu ouvido:
— Bem-vinda ao lar, Branca de Neve.
CAPÍTULO UM

Branca de Neve

Dez anos antes

FLOCOS CAÍA M COM SUAVIDADE, cobrindo o terreno já


congelado do castelo. Ao esticar a língua, sentiu os flocos
pousarem. As gotículas de água congelada tinham o mesmo nome
que ela: neve.
Teria recebido esse nome por causa da neve ou a neve o
recebera por sua causa? Era o que ela se perguntava. Ela era uma
princesa, portanto o tempo poderia ter sido batizado em sua
homenagem.
Mas, pensando bem, a neve existia há muito mais tempo. Ela só
tinha sete anos.
— Que cheiro é esse? — a mãe perguntou em voz alta,
arrancando Branca de Neve dos seus pensamentos.
Branca colou-se ao muro do jardim do castelo para não ser vista e
tentou ficar quietinha.
— Um cheiro doce e delicioso… Poderia haver algum ganso aqui
no jardim comigo?
Branca deu uma risadinha.
— Mãe, os gansos não ficam no castelo durante o inverno! Eles
voam para o sul. Todos sabem disso.
— Todos também sabem que quem fala durante o esconde-
esconde será encontrado mais rápido. — A mãe fez uma curva e
apontou para ela. — Peguei você!
Talvez sua opinião fosse tendenciosa, mas Branca considerava a
mãe a pessoa mais maravilhosa do mundo. Seu pai lhe dizia que
elas eram idênticas, e, se isso fosse verdade, Branca ficava
contente. Sua mãe tinha olhos gentis da cor de castanhas e cabelos
de ébano que, naquele dia, estavam presos num coque frouxo. Ela
tirara a coroa predileta — a mãe não a usava durante as
brincadeiras no jardim, ainda mais nos meses de inverno —, mas
precisaria recolocá-la sobre a cabeça quando entrassem, em alguns
instantes. Sua mãe tinha que se preparar para o baile de máscaras
que ocorria todo ano no castelo. Branca odiava ser jovem demais
para participar e ter que jantar em seu quarto com a babá. Desejava
tanto poder ir à festa. Preferia a companhia da mãe a de qualquer
outra pessoa.
— Vou te pegar! — a mãe cantarolou, erguendo o capuz de pele
do manto de veludo vermelho. Branca adorava, de modo especial,
os botões dourados desse manto. Brincava com eles toda vez que
ficava junto à mãe enquanto desfilavam pelas ruas do vilarejo. Por
isso os botões se soltavam, o que enlouquecia o alfaiate, mas o
manto fazia Branca se sentir segura e aquecida, assim como a mãe
fazia. Ela nunca queria sair de perto dela — a não ser quando
brincavam de esconde-esconde.
— Mas ainda não me pegou! — exclamou Branca, disparando
pelo labirinto de rosas do jardim. A mãe começou a rir.
Branca não sabia muito bem que caminho pegar. Todos se
assemelhavam. As cercas vivas verdes altas e bem aparadas
bloqueavam tudo, exceto o céu cinzento e carregado de neve. A
maioria das flores tinha sido cortada por causa da estação, deixando
boa parte da bela propriedade desnuda e a posição de Branca no
jardim mais visível do que de costume. Se Branca continuasse a
fazer curvas, sabia que chegaria ao centro do labirinto e ao adorado
viveiro da mãe. O domo de ferro de dois andares parecia uma
enorme gaiola. Era o xodó da mãe e a primeira obra que
encomendara ao se tornar rainha. A mãe sempre amara os
pássaros. Mantinha diversas espécies dentro das paredes teladas e
explicava a Branca, com muita paciência e em detalhes, a natureza
de cada pássaro. As duas passavam incontáveis horas observando
o viveiro, enquanto Branca nomeava todas as criaturas dali de
dentro. O seu predileto era Bola de Neve, um canarinho branco.
Quando Branca fez a curva e avistou o domo adiante, Bola de
Neve remexeu as asas no poleiro e a avistou, piando alto e
denunciando a localização da menina. Mas estava tudo bem. Ser
achada pela mãe era parte da graça da brincadeira.
— Aqui vou eu! — disse a mãe.
Branca riu ainda mais, formando anéis de fumaça ao expirar no ar
frio. Conseguia ouvir as passadas da mãe se aproximando, por isso
deu a volta rápido no viveiro para se esconder do lado oposto. Mas
não tomou cuidado — sua mãe sempre lhe dizia para que o fizesse
— e se sentiu escorregar por um trecho congelado do piso. Logo
Branca caía, deslizando sem controle até uma roseira.
— Ai! — exclamou ao se desvencilhar do galho cheio de espinhos
que a espetara pelo manto, enterrando-se na mão direita. Branca
viu o sangue escorrer pela palma alva e começou a chorar.
— Branca! — disse a mãe, aproximando-se dela. — Você está
bem? Onde se feriu? — Ela se debruçou, e a visão de Branca ficou
borrada, como se a neve estivesse caindo com mais intensidade.
Mesmo em meio à bruma, a menina ainda conseguia ver os olhos
da mãe a encarando com intensidade. — Está tudo bem, Branca.
Tudo vai ficar bem. — Segurou a mão machucada da filha, tirou um
lenço bordado do bolso e o molhou na neve, pressionando-o depois
contra a ferida. Isso atenuou a ardência do corte. A mãe amarrou
bem o lenço ao redor da mão de Branca. — Pronto. Assim está
melhor. Podemos limpar você quando entrarmos.
Branca fez um bico.
— Odeio rosas! Elas machucam!
A mãe sorriu, sua expressão se suavizando assim como sua voz.
Ela parecia tão distante.
— Sim, elas podem machucar, quando alguém se espeta em um
espinho. — Ela arrancou uma única rosa vermelha da roseira.
Estava petrificada por causa do gelo e da neve, mas ainda
preservava a cor rubra. Branca a espiou com atenção. — Mas você
não deveria ter medo de segurar algo tão belo, mesmo que haja
espinhos. Se o deseja, às vezes tem que se arriscar. E, ao fazer
isso — concluiu entregando a rosa a Branca —, pode colher
maravilhosas recompensas.
— Vossa Majestade não deveria estar aqui.
Branca ergueu o olhar. A irmã e dama de companhia de sua mãe,
sua tia Ingrid, encarava-as com firmeza. Quase que com raiva. De
alguma maneira, Branca conhecia aquele olhar muito bem.
— Já está atrasada.

A Branca de Neve de dezessete anos despertou com um


sobressalto, arquejando ao se sentar na cama.
— Mãe! — chamou em voz alta.
Mas não havia ninguém ali para ouvi-la.
Nunca havia. Não mais.
Em vez disso, Branca foi saudada pelo silêncio.
Ao enxugar o suor da testa, ela se perguntou: teria sido aquilo
outro sonho que se tornara pesadelo ou era uma lembrança real?
Aquilo estava se tornando mais frequente. Fazia mais de dez anos
que não via o rosto da mãe; às vezes, não tinha certeza.
Raramente via tia Ingrid. Ninguém do castelo via. Sua tia se
tornara quase uma reclusa, permitindo a entrada de bem poucos em
seu círculo íntimo. A sobrinha, de quem cuidava de má vontade, não
era uma dessas pessoas.
Tia Ingrid tinha sempre a mesma aparência em seus sonhos,
talvez porque, nas raras ocasiões em que Branca cruzava com a tia
no castelo, ela sempre vestia uma variante do mesmo vestido longo.
Embora tivessem cortes semelhantes, usava apenas as peças mais
elegantes e feitas sob medida, com os tecidos mais finos que o
reino tinha a oferecer e só em tons de púrpura. O castelo de fato
tinha correntes de vento, um possível motivo pelo qual tia Ingrid
nunca andava sem o manto escuro que se enroscava ao redor do
corpo tal qual uma cobra. Branca não tinha lembranças da última
vez em que vira os cabelos da tia (nem sequer se lembrava de sua
cor), porque Ingrid sempre cobria a cabeça com uma touca justa
acentuada pela coroa.
Branca, por sua vez, não se lembrava da última vez em que
ganhara uma nova vestimenta. Não que se importasse muito —
quem é que a via? —, mas seria bom ter um vestido que não a
apertasse nos braços e que não terminasse nas canelas. Ela
alternava os dois vestidos que possuía, ambos cobertos de
remendos. Consertara a saia vinho, que fizera de uma cortina velha,
tantas vezes que já nem se lembrava mais. Nem tinha mais o tecido
para continuar a remendá-la, por isso a saia se transformara num
arco-íris de remendos brancos e beges cobrindo os buracos feitos
nos degraus de pedra ou num roseiral.
Rosas. Por que seu sonho tinha a ver com rosas mesmo?
Não conseguia lembrar. O sonho já estava começando a
desvanecer. Tudo que ela conseguia visualizar era o rosto sereno
da mãe. Talvez fosse melhor deixar a lembrança de lado. Tinha
muito a fazer naquele dia.
Branca se levantou da cama e se aproximou da janela grande do
seu quarto, abrindo as cortinas pesadas. Resistira ao impulso de
usar as cortinas para costurar um manto para si até então, mas, se
o inverno seguinte fosse tão rigoroso quanto o anterior, talvez
tivesse que recorrer a isso. Deixou a claridade do dia entrar e olhou
abaixo, para a propriedade.
Estavam no auge do verão, e ele dava ao castelo antigo um brilho
muito necessário. Por mais que não se pudesse negar que o
exterior do castelo se deteriorara nos últimos dez anos, ela sentia
orgulho ao observar o jardim e o viveiro da mãe. Aparara as moitas,
dando-lhes um formato preciso, bem como tirara todas as ervas
daninhas dos canteiros de flores. Botões jovens se penduravam das
latas prateadas afixadas às paredes de tijolos, reavivando o jardim.
Também não fazia mal algum que estivesse aparando pouco a
pouco as trepadeiras que tomaram posse de todo o castelo. Ela só
alcançava até determinada altura, mas, no nível do chão, os muros
de pedra já estavam claramente visíveis de novo, mesmo que
precisassem de uma bela faxina. (Acrescentaria isso à lista.) Só
conseguia imaginar a aparência da fachada além dos portões do
castelo. A tia a proibira de sair da propriedade. Dissera que era para
a segurança de Branca, mas isso a fazia se sentir uma prisioneira.
Pelo menos ainda podia ir e vir do jardim quando bem queria.
Estar ao ar livre em vez de ficar presa nesse castelo era sua
forma pessoal de paraíso. Não tinha permissão para conversar com
os poucos guardas que a tia ainda mantinha, mas, pelo menos, ao
passar todos os dias por outro ser humano em seu trajeto entre o
castelo e o jardim, não se sentia tão sozinha. A tia não permitia que
fizesse uma aparição pública há anos (embora houvesse raras
aparições nestes últimos tempos, mesmo da Rainha Ingrid), e o
castelo pouco recebia visitantes. Às vezes, ela se perguntava se o
reino sabia que ainda havia uma princesa. Mas não havia ninguém
para quem perguntar.
Branca procurava se ocupar cuidando do castelo. Quando tinha
muito tempo disponível, ficava pensando em tudo o que perdera nos
últimos dez anos. Sua amada mãe, a Rainha Katherine, adoecera
tão rápido que Branca nem sequer teve a chance de ir ao seu leito
para se despedir. O pai estivera arrasado demais para confortá-la,
voltando-se, em vez disso, para a tia Ingrid, com quem logo se
casou. Branca ainda conseguia ouvir os sussurros a respeito da
união, que parecia ter resultado mais da necessidade do que do
amor. Ela presumira que o pai quis que sua filha tivesse uma mãe, e
Ingrid parecia ser a melhor solução. Mas não foi. Branca percebeu
que o pai nunca mais sorriu do modo com que sorria enquanto sua
mãe era viva.
Talvez esse fosse o real motivo de o pai ter fugido apenas alguns
meses depois: tivera o coração partido. Pelo menos foi isso o que
ela disse a si mesma. Era difícil demais acreditar no que a tia
dissera a todos: que o pai dela perdera o juízo. Tia Ingrid dissera
que, sem Katherine por perto para ajudá-lo a governar o reino, o Rei
Georg ficara transtornado pelo luto. Branca um dia ouvira a tia
contar à corte que Georg conversava com Katherine como se ela
ainda estivesse viva, assustando os guardas, os criados e até
mesmo a própria filha. Mas Branca não se lembrava de ele ter feito
isso.
Sua última lembrança do pai foi no viveiro. Ela saíra às
escondidas para cuidar dos pássaros da mãe. Sentindo a presença
de alguém, Branca se virou e se deparou com o rei a observando
com lágrimas nos olhos.
— Você lembra tanto a sua mãe — dissera comovido. Esticara a
mão e a afagara na cabeça. — Lamento muito que ela não esteja
aqui para ver você crescer.
— Não é culpa sua, papai — dissera Branca, e isso só o fez
chorar ainda mais. Ele se ajoelhou, segurou-a pelos ombros e fitou-
a nos olhos.
— Não cometa os mesmos erros que cometi, Branca — disse ele.
— Não se deixe enganar pelo amor. Ele só aparece uma vez. Confie
nos seus instintos. Confie no seu povo. Confie no que aprendeu
com sua mãe, acima de tudo. Permita que o espírito dela guie o seu
reinado. — Amparou o rosto da filha entre as mãos. — Um dia, você
será uma rainha extraordinária. Não deixe que ninguém a faça
perder o rumo.
— Não deixarei, papai — ela se lembrava de ter dito, mas as
palavras dele a assustavam. Pareciam um adeus.
Na manhã seguinte, ele tinha ido embora.
Branca não percebera a princípio. Foi só depois que se vestiu e
se dirigiu aos aposentos do pai para tomar café da manhã com ele,
como sempre faziam, que ouviu pessoas comentando sobre o súbito
desaparecimento do rei. A Rainha Ingrid — há pouco tempo coroada
— fora chamada para discutir “assuntos importantes” e não
procurara Branca para dar a notícia em pessoa. Em vez disso, a
menina ficara sabendo o que aconteceu por meio da fofoca de dois
guardas.
— A Rainha diz que ele é louco. Que estamos melhor assim. Ele
já não é mais o mesmo desde o falecimento da Rainha Katherine —
disse um deles. — Que tipo de rei foge abandonando a própria
filha?
— Que tipo de rei abandona seu povo? — o outro respondeu.
Branca não sabia a resposta para isso. Só o que sabia era que
nunca havia se sentido tão sozinha. Depois da partida de seu pai, tia
Ingrid também pareceu desaparecer. A nova rainha não tinha tempo
para tomar café da manhã com Branca, muito menos para estudar
os pássaros do viveiro. Estava ocupada demais se encontrando com
a corte há pouco nomeada, um grupo de pessoas que Branca
jamais vira antes. Todos que trabalhavam com seu pai tinham sido
dispensados, e um grupo bem menor de conselheiros fora escolhido
a dedo por Ingrid. Mesmo assim, Branca ficara sabendo do novo
apelido da tia: “Rainha Má” era como a chamavam quando não
estava por perto. Além deles, a rainha raramente se reunia com
outras pessoas ou recebia visitantes da realeza. Depois de um par
de anos, a tia deixou de permitir a entrada de pessoas novas no
castelo. Os boatos eram que temia traidores, o que pareceu se
provar verdadeiro quando, a não ser por alguns poucos seletos, a
maioria dos criados foi dispensada.
Sendo uma mulher vaidosa, a Rainha Ingrid não saberia ficar sem
sua costureira pessoal, Margaret; os sempre presentes guardas; e
um pequeno grupo de cozinheiros; mas, por certo, não contratou
ninguém para cuidar de Branca. Em vez disso, Branca se criou só,
na prática, crescendo sozinha em seu grande e vazio quarto, que a
fazia pensar numa tumba. Só ter a companhia de seus
pensamentos poderia ter feito com que enlouquecesse. Mas ela
mantinha a mente ocupada com listas mentais das tarefas que faria
ao longo de cada dia.
Aquele dia não seria exceção. Dando as costas para a janela,
Branca despiu a camisola e depois se lavou na bacia de água, que
tinha enchido no poço dos desejos no dia anterior. Vestiu o conjunto
remendado de saia marrom-clara e alisou os vincos da blusa branca
e marrom que quase combinava. Enfiou os pés nos tamancos, que
asseara recentemente. Mirando-se no espelho bem lustrado — ela
limpara o quarto no dia anterior, como fazia todas as semanas —,
ajustou a faixa de cabelo azul, que criara com retalhos que a
costureira da tia deixara no lixo. Satisfeita, foi até o guarda-roupa.
Ele estava quase vazio. Os poucos vestidos pendurados nos
cabides não lhe serviam mais há anos, mas os guardava tanto por
motivos sentimentais quanto para o caso de um dia necessitar usar
o tecido para costurar algo ou fazer remendos. Ela detestava a ideia
de cortar sua história — havia ali o vestido do seu aniversário de
sete anos e o que usara num encontro do pai com o rei visitante de
Prunham —, embora isso, às vezes, fosse necessário. Por ora, os
vestidos serviam como lembretes de uma vida diferente, bem como
um ótimo esconderijo. Branca afastou o vestido de aniversário e
relanceou para o retrato escondido atrás dele.
As feições do pai e da mãe a fitavam de volta. Assim como uma
versão mais jovem de si própria. O retrato fora encomendado pouco
antes de a mãe adoecer. Tinha sido a primeira vez que a família
posara para um retrato oficial desde que Branca era bebê. Ficara
pendurado no castelo por poucas semanas antes de o rei ordenar
que o retirassem. A tia alegou que ele fizera isso porque era
doloroso demais ver o rosto da antiga rainha todos os dias, mas
Branca se sentia de maneira diferente. Aproveitava todas as
oportunidades para ver os pais.
Bom dia, mãe. Bom dia, pai.
Branca tinha o rosto da mãe, mas os olhos do pai, por mais que
fossem de um azul acinzentado, tinham o mesmo formato dos seus.
Pareciam bondosos, o que ela sempre tentava ser, mesmo quando
era difícil. Pai, por que me deixou?, perguntou-se, tentando não
permitir que a amargura se retivesse dentro de si. Sabendo que não
obteria uma resposta, guardou o retrato uma vez mais.
Branca foi até as portas duplas do quarto e abriu-as sem fazer
barulho. Assim como em todas as outras manhãs, havia uma
bandeja com pães e frutas aguardando por ela. Branca suspeitava
que isso fosse obra dos criados remanescentes, e ela apreciava o
gesto mais do que poderia admitir. O café da manhã era sempre
deixado diante do seu quarto, mas o jantar era mais imprevisível,
com todos se ocupando com a refeição mais abundante da rainha.
Branca não se importava em descer até a cozinha para apanhar
algo para si. Relegada aos fundos da cozinha, distante dos olhares
curiosos, a cozinheira-chefe, a senhora Kindred, não ignorava
Branca como outros no castelo faziam. Por apenas alguns instantes
no dia, isso significava que ela tinha alguém com quem conversar.
— Por favor, senhor, não como há dois dias.
Branca pegava a bandeja quando ouviu a súplica. Assustada,
escondeu-se nas sombras da sua soleira para espreitar.
— Se não lhe deram comida, então não vai receber nenhuma
comida.
Ela conhecia aquela voz. Era Brutus, um dos guardas fiéis da sua
tia. Branca não reconheceu a outra voz.
— Mas prometeram-me que eu receberia duas refeições ao dia
com este posto. Não é para mim, senhor. Levo boa parte delas para
casa, para minha esposa e meu filho. Não podemos passar um
terceiro dia sem alimentos.
— O seu trabalho é proteger estes corredores, não reclamar a
respeito da boia.
— Mas… — o guarda começou a dizer, mas Brutus o
interrompeu.
— Está questionando os motivos da rainha? Sabe o que
aconteceu ao rapaz neste posto antes de você, não sabe? —
Branca espiou pelas sombras quando Brutus se aproximou do rosto
do moço. — Ele nunca mais foi visto. Alguns dizem que se
transformou numa das cobras que deslizam pelo gramado da
propriedade. Fico imaginando o que será da sua família se você não
estiver mais por perto.
— Não! — A voz do homem soou desesperada. — Não incomode
a rainha. Esperarei até que a comida seja entregue… quando isso
acontecer.
Branca inspirou alto. Ouvira a cozinheira e outros criados
comentando que a tia praticava feitiçaria. É como ela se mantém
jovem, diziam alguns. É por isso que ninguém questiona as suas
decisões; as pessoas temem que ela as transforme em sapos,
insetos ou algo pior, comentavam outros. Mencionavam um cômodo
no qual a rainha passava boa parte do seu tempo falando com
alguém, embora ninguém jamais fosse visto entrando ou saindo
dele. Branca não tinha certeza do que pensar, mas sabia que
pessoas que se indispunham com a rainha desapareciam. E sabia
que a simples presença dela instilava medo em todos no castelo. O
papel de Brutus como seu guarda-costas podia ser igualmente
temeroso.
— Garoto inteligente — disse Brutus e seguiu pelo corredor na
direção de Branca, com um sorriso jocoso nos lábios.
Branca se encostou à parede fria para garantir que ele não a
veria. Assim que ele saiu de vista, espiou de novo para ver o
guarda. Ele era jovem e muito magro. Não devia ser muito mais
velho do que ela. E tinha que alimentar uma família com refeições
que não estavam sendo distribuídas. Ela baixou o olhar para os
pães quentes e para a fruta em sua bandeja de café da manhã.
Ainda estava satisfeita da noite anterior. Conseguiria aguentar até
o jantar sem comer mais nada. Olhando para ambos os lados, para
se certificar de que o corredor estava vazio antes de sair das
sombras, Branca caminhou rápido até o guarda, com os olhos
voltados para baixo. O guarda pareceu surpreso quando ela
depositou a bandeja aos seus pés.
— Vossa Alteza — disse ele, respondendo com dificuldade. —
Mas essa é a sua refeição.
Branca era tímida demais para falar. Em vez disso, fez um gesto
de dispensa e empurrou a bandeja para mais perto das botas dele.
Com um leve aceno e sorriso, apressou-se de volta para a
segurança dos seus aposentos antes que alguém os visse
conversando e contasse à rainha, mas não antes de ouvi-lo dizer
com suavidade:
— Obrigado, gentil princesa. Muito obrigado.
Ela não se sentia muito como uma princesa nos últimos tempos,
mas tinha orgulho em ajudar alguém sempre que podia. De volta ao
quarto, Branca preparou-se para dar continuidade ao dia. Uma vez
que a corte não se reuniria à rainha, ela sabia que seria seguro
limpar o vestíbulo do castelo. Ao passar por ele no dia anterior,
parecera-lhe um tanto enlameado. Também havia diversos vitrais no
segundo andar que ela não tivera oportunidade de limpar nos
últimos tempos. E também um tapete que queria lavar próximo à
sala do trono. Detestava se aproximar demais dos aposentos da tia,
mas aquele tapete era a primeira coisa que os visitantes viam
quando iam encontrá-la, por mais raro que isso fosse. O que as
pessoas pensavam a respeito do castelo era uma das poucas
coisas sobre o reino que Branca podia controlar, e ela se orgulhava
do seu trabalho, mesmo nos dias em que as costas doíam por ter
esfregado ladrilhos ou as mãos ficavam cheias de calos por causa
da poda que realizara no jardim. Ela procurava dividir seu dia entre
atividades internas e externas, quando o tempo permitia. Hoje o dia
estava bonito, por isso esperava poder sair para o jardim o mais
rápido possível. Queria apanhar flores para fazer arranjos para os
vasos do castelo. Poucas pessoas teriam oportunidade de vê-las,
mas, pelo menos, o dia dos criados seria embelezado.
Ela juntou os suprimentos de limpeza e seguia pelo corredor
quando ouviu passos. Uma vez mais, moveu-se para as sombras de
modo instintivo, para não ser vista. Era a costureira da rainha,
Margaret, junto de sua aprendiz, a filha de quase a mesma idade
que Branca. Ouvira as duas conversando nas diversas passagens
delas pelo castelo e sabia que o nome da filha era Anne, mas as
duas nunca tinham se falado.
— Já lhe disse, não sei por que fomos chamadas. — Branca
ouviu Margaret dizer enquanto empurrava o carrinho de tecidos e
material de costura pelo caminho. A cada curva, o carrinho emitia
um som metálico que ecoava pelo corredor. — Tenho certeza de
que não temos motivos para nos preocupar.
— E se ela mudou de ideia de novo? — Anne insistiu, contendo
um mundo de preocupação em seus olhos castanhos. Ela afastou
uma mecha solta de cabelos do rosto bronzeado. — Não temos
como jogar fora mais tecido, mãe. A rainha não nos permite vender
os vestidos descartados a ninguém e não nos deixa ficar com eles.
Num dia ela quer roxo; no seguinte, preto; e depois disso, azul. A
Rainha Má não consegue se decidir!
— Não ouse chamá-la assim! Dobre a língua! — Margaret olhou
ao redor, preocupada, e Branca se escondeu ainda mais nas
sombras. — Você sabe quanta sorte temos por termos esta
posição? Ela é a rainha e, como você sabe, pode fazer o que bem
entender, inclusive se livrar de nós.
Anne baixou o olhar para o cesto de carretéis que tinha nos
braços.
— Desculpe, mãe. É que parece um desperdício tão grande! Suas
taxas e regras fazem tantos passarem fome. Se pudéssemos dar os
vestidos rejeitados para os que precisam…
Era sofrido para Branca ouvir os súditos falando assim. Tinha sido
proibida de sair do castelo, portanto não tinha certeza, mas parecia-
lhe que boa parte da população passava dificuldades. Detestava
sentir que sua vida estava congelada no tempo. Daria tudo para
poder ajudar as pessoas, mas sabia que a tia jamais aprovaria suas
preocupações.
Margaret parou o carrinho.
— Agora já chega! Estou falando sério! — Anne ficou quieta. —
Estou treinando você para assumir esta posição quando eu estiver
velha demais para segurar uma agulha. Você quer que este
emprego seja dado a outra pessoa?
— Quer sinceridade? — Anne começou a dizer, e Branca não
conseguiu conter o riso.
Anne parecia uma garota engraçada, com a qual Branca desejava
poder passar algum tempo. Mas isso estava fora de questão.
— O que foi esse som? — Anne perguntou alarmada, e Branca se
calou. Anne olhava na sua direção.
— Entende o que digo? — Margaret sibilou. — Ela está sempre
observando tudo, menina. Sempre! Chega de queixas. Tudo o que a
rainha não quiser hoje você colocará com as sobras que deixaremos
para trás.
Anne suspirou.
— Sim, mãe.
Mais panos!, Branca pensou. Ficou imaginando o que a rainha
pensaria se soubesse que as roupas rejeitadas estavam sendo
rasgadas em tiras e usadas na limpeza. (Os criados brincavam que
o castelo tinha os panos de limpeza mais finos do reino.)
Branca observou-as prosseguindo pelo corredor e esperou até
que entrassem no corredor da rainha antes de voltar à parte
iluminada. Em seguida, ouviu movimentos e ficou imóvel, virando-se
devagar. Anne tinha voltado e olhava diretamente para ela. As duas
se encararam por um momento. Branca não sabia bem o que fazer,
por isso só ficou ali parada, imóvel como uma estátua. Em seguida,
a menina sorriu e fez algo surpreendente: uma mesura na direção
de Branca.
— Tenha um bom dia, princesa — disse e, em seguida,
desapareceu.
Branca apanhou os suprimentos de limpeza e desapareceu antes
que Anne pudesse voltar. Por mais adorável que fosse ser
reconhecida, ela sabia que não podia responder. Não ali, à vista de
todos. Não sem que a rainha ficasse a par e a castigasse por isso —
ou pior, castigasse Anne por “colocar a princesa em perigo” com a
sua companhia. Branca seguiu pelo corredor na direção oposta,
descendo dois lances de escada, passando pela sala de banquetes,
pela sala de jantar e pela sala de estar vazia, em direção às portas
que davam para o jardim da mãe.
Azul. Sempre se surpreendia com a intensidade do azul do céu
num dia sem nuvens. Sempre fora daquele tom ou era só porque
fazia tanto tempo que não o via assim? Chovera nos últimos três
dias, forçando-a a permanecer do lado de dentro, o que era penoso.
O sol fez com que se sentisse mais grata naquele dia. A mãe estava
muito presente em seus pensamentos depois do sonho da noite
anterior, e estar nos jardins, perto do viveiro, sempre fazia com que
Branca se sentisse próxima a ela.
Baixou o olhar para os degraus de pedra em que se encontrava.
Musgo começava a proliferar pela passagem, tornando verde a
pedra branca. Começaria por ali. Suspirando, ajoelhou-se, molhou a
esponja e começou a esfregar, cantarolando uma canção para si
mesma enquanto trabalhava. Alguns instantes mais tarde, um grupo
de pássaros brancos pousou nos degraus e ficou a observá-la.
— Olá, amiguinhos! — disse ela ao pegar sementes de alpiste do
bolso, deixando-as nos degraus para que eles comessem. Quando
eles terminaram, continuaram ali para observá-la trabalhar. Ela não
se importava. Ter companhia ajudava, mesmo que os pássaros não
soubessem conversar. Ela costumava conversar com eles, às
vezes. Alguns poderiam chamá-la de louca por falar com animais, é
verdade, mas quem é que estava prestando atenção?
O musgo começou a sumir com sua esfregação, e os degraus
voltaram a parecer quase novos. Satisfeita, ela foi ao poço apanhar
um balde de água limpa. Talvez, se terminasse aquilo a tempo,
poderia visitar o viveiro. Os pássaros a seguiram, observando-a tirar
água do poço, e ela não pôde deixar de sorrir.
— Querem saber de um segredo? — perguntou aos pássaros. —
Este é um poço mágico. Vamos fazer um pedido.
Fora sua mãe que lhe contara que o poço tinha o poder de
conceder desejos. O que você quer?, sua mãe perguntava, e
Branca se lembrava de fechar os olhos e de se concentrar para
pensar. Eu quero, ela dizia… e depois pedia o que mais queria no
mundo no momento. Certa vez, foi um pônei. Outras, uma boneca
ou uma tiara parecida com a coroa da mãe. Todos os seus pedidos
eram atendidos em questão de dias depois de o pedido ter sido feito
ao poço. Agora já estava crescida o bastante para saber que o pai e
a mãe eram os responsáveis pela realização de seus desejos, mas,
mesmo assim, amava a ideia de o poço ser mágico. Não fazia um
desejo desde criança, mas aquilo lhe pareceu tão natural no
momento que ela não resistiu ao impulso de repetir o hábito. Branca
fechou os olhos.
— Eu quero…
O que ela queria?
Já não precisava mais de um pônei ou de uma boneca. Do que
mais precisava era o amor dos pais, mas nenhum poço poderia
retroceder o tempo e mudar seu destino. Aceitara sua vida mundana
e solitária, tentando aproveitar o melhor. Mas não podia deixar de
desejar que houvesse alguém com quem partilhar seus dias.
— Eu desejo amor — anunciou Branca, com uma declaração
simples e profunda ao mesmo tempo.
Ela abriu os olhos e olhou para o poço cavernoso.
Nenhum amor — verdadeiro ou não — estava à sua espera no
fundo.
Mas sempre era possível sonhar. E ela ainda estava do lado de
fora, apreciando o lindo dia. O que a fez querer cantar. Pensou na
mãe e cantarolou uma das suas canções prediletas — uma que a
mãe lhe dissera ter cantado para seu pai, na época em que se
cortejavam. Os pássaros permaneceram por perto para ouvir a voz
melodiosa de Branca.
Ela estava tão imersa na música que não notou o rapaz até que
ele parasse na sua frente, parecendo ter caído do céu.
CAPÍTULO DOIS

Branca de Neve

UM ESTRANHO!
Branca de Neve ficou tão surpresa em ver um rapaz andando na
sua direção que derrubou o balde e correu para a segurança do
castelo. Seu coração estava acelerado enquanto ela corria para
dentro. Seria possível que aquele invasor tivesse vindo atrás dela,
como tia Ingrid sempre a alertara? Existe um prêmio pela cabeça de
uma princesa. Preste atenção ao que lhe digo!, ela dizia toda vez
que Branca lhe perguntava o motivo de não poder sair do castelo, lá
no início, na época em que a Rainha Ingrid era vista com mais
frequência. E agora um homem aparecera. O que ela deveria fazer?
Alertar os guardas? Conseguia ouvir gritos — ele a chamava? E se
alguém o ouvisse? Ela subiu correndo degraus até o primeiro
patamar, foi até o balcão mais próximo e, com cuidado, olhou para
fora.
O estranho olhava diretamente para ela.
Branca fez o que sempre fazia: recuou para as sombras de novo.
— Espere! — Ela o ouviu dizer. — Por favor, espere. Estou
contente por encontrá-la.
Por encontrá-la?, pensou. Por que ele procurava por ela?
Ela sabia que a tia Ingrid dizia que não se podia confiar em
estranhos, mas ele talvez tivesse a mesma idade que ela ou fosse
um pouquinho mais velho e parecia ter um rosto gentil. Sua voz não
era ameaçadora, portanto talvez também não pretendesse fazer
nenhum mal. Mas por que estaria procurando por ela? Ela arriscou
mais uma espiada pelo balcão para enxergar melhor. Inspirou fundo.
Os olhos dele eram tão azuis quanto o gaio-azul que se
empoleirava no parapeito da sua janela na maioria das manhãs, e
os cabelos, por mais que estivessem um pouco bagunçados, tinham
um adorável tom de castanho. Ela gostou como uma mecha caía
por cima de um dos olhos, e ele tinha um sorriso tão luminoso que
ela não pôde deixar de corar. Suas roupas eram belas, indicando
que ele tinha uma boa posição social: vestia um manto de viagem
vermelho-escuro por cima de uma camisa branca limpa, calças
azuis e um colete dourado e azul royal. As botas de camurça
marrons estavam enlameadas, como se tivessem sido muito
usadas, mas ainda pareciam de boa qualidade.
Fazia tanto tempo que ela não se concentrava no rosto de outra
pessoa. Relutante, evitou contato visual. A tia não gostava quando
ela tentava parecer amigável. Isso a deixa vulnerável a problemas!,
dizia toda vez em que, no início, flagrava Branca comendo com os
cozinheiros ou levando flores para um dos criados. Talvez ele não
estivesse ali para lhe fazer mal, mas nada o salvaria de tia Ingrid tão
logo ela descobrisse que ele pulara os muros do castelo.
— Você deveria ir embora — disse Branca, forçando-se a desviar
os olhos.
— Espere! — ele a chamou. — Eu a assustei?
Sim. Branca não lhe respondeu. Em vez disso, escondeu-se atrás
da cortina.
— Não tive a intenção — disse ele. — A sua voz é tão adorável.
Quando a ouvi, tive que ver quem criava tão bela música.
Branca sorriu em seu canto. Ele considerava sua voz bonita?
— Poderia aparecer, por favor?
Branca baixou o olhar para o vestido puído e hesitou. Foi quando
ouviu a voz da mãe em sua mente de novo, vindo de outra memória
de tanto tempo atrás. Tinham encontrado alguns pedintes no vilarejo
e ela se lembrava de ter perguntado à mãe por que eles se vestiam
de modo tão diferente. É preciso ver além das aparências, Branca,
ela se lembrava de a mãe ter dito. O real valor de uma pessoa
sempre vem de dentro.
Branca fazia o que podia com o que tinha e orgulhava-se disso.
Tocou nos cabelos e se certificou de que estivessem no lugar antes
de sair para o balcão.
O jovem sorriu, removendo o chapéu emplumado.
— Aí está você. Vai descer?
Ela hesitou.
— Tenho mesmo que ir — disse. — Tenho muito a fazer.
— Fique, por favor, ao menos por um instante — implorou ele.
As faces da menina voltaram a se aquecer. Ninguém nunca falara
com ela dessa forma.
— Por um instante — concordou, aproximando-se do parapeito.
Ele a fitava com curiosidade.
— Você parece jovem demais para ser rainha.
— Ah, eu não sou a rainha — respondeu, segurando o parapeito
de pedras com dedos firmes. Por algum motivo, ele quase a deixava
tonta. — Sou só a princesa.
— Só? — Inclinou a cabeça de lado.
Um passarinho marrom de cabeça azul pousou no ombro dela, e
ela lhe entregou alpiste do bolso.
— Esse é um chapim-de-bigodes — disse o rapaz com surpresa.
— É raro vê-los fora da floresta. Ele deve gostar muito mesmo de
você para ficar aqui.
— Sim — concordou Branca, surpresa com o conhecimento dele.
Não conhecia ninguém além da mãe que partilhava do seu amor
pelos pássaros. — Este nos visita com frequência, mas não é um
morador permanente. — Ela indicou o jardim, onde o belo viveiro da
mãe se erguia bem alto. — Minha mãe encomendou aquele viveiro
e, quando eu era criança, ensinou-me tudo sobre as espécies que
vivem em nosso reino. Temos muitos pardais e até alguns poucos
pica-paus-médios — explicou, notando os passarinhos vermelhos e
pretos no chão.
Ele se virou para ver a estrutura em forma de domo.
— É bonito. Os pássaros devem gostar muito de ter uma gaiola
tão adorável na qual viver.
Gaiola. Ela nunca o chamou por esse nome, mas o viveiro era
isso, não? Uma bela prisão, mas sempre uma prisão. Bem parecida
com aquela em que crescera. O pensamento de repente a
entristeceu.
— Sim — concordou. — Espero que estejam felizes aqui.
Ele estudou o rosto dela.
— Claro que são. Você lhes dá tudo de que precisam: comida,
proteção, água. Como não amariam este lugar? — A menina não
respondeu. — É o cenário perfeito. Todas essas moitas de azevinho
que vocês têm… Atraem muitos pássaros. — Ele começou a olhar
ao redor, raspando os pedriscos no chão com as botas. Em seguida,
voltou a erguer os olhos luminosos para ela. — Sabe, se você quiser
ver mais cardeais, poderia pedir que plantem parreiras. Eles adoram
se empoleirar nelas no meu reino.
— Tentarei isso — disse ela de maneira agradável. Algo nele a
fazia se lembrar da mãe. — De onde você é?
Ele se curvou e deixou que um chapim-de-bigodes subisse em
seu braço.
— O meu reino faz fronteira com o seu ao norte. Sou Henrich, a
propósito, mas os meus amigos me chamam de Henri.
Isso significava que ela era sua amiga? Não pôde deixar de sorrir.
— Sou Branca de Neve.
— Branca de Neve — repetiu ele, fitando-a com intensidade. —
Espero que nossos caminhos voltem a se cruzar. Vim aqui ver a
rainha, embora não tenha uma hora marcada.
— Oh. — O rosto de Branca se entristeceu. — Ela não gosta de
receber visitas sem aviso.
— Talvez, então, você possa dizer a ela que estou aqui? — pediu
ele. A princesa abriu a boca para protestar. — É importante que eu
fale com ela. Meu pai, o rei, pediu-me para fazer isso, e não quero
desapontá-lo. — O rosto dele ficou sério.
— Posso ousar perguntar o que quer? — Branca não acreditava
nas palavras que saíam da sua boca, mas não queria que ele fosse
embora ainda. Ter uma conversa de verdade com outra pessoa era
muito mais divertido do que se lembrava. Não fazia ideia de que
ansiava por esse tipo de contato.
— O seu reino é conhecido pelos diamantes e pela produção
agrícola, enquanto o nosso é conhecido pela criação de ovelhas.
Sempre tivemos uma boa relação comercial, da qual ambos os
reinos se beneficiavam — explicou Henri. — Mas, nos últimos anos,
a rainha vem nos cobrando muitos impostos quando queremos
comprar a safra e insiste em diminuir nossos lucros com a lã.
Recentemente, parou de aceitar pedidos. Ouvimos dizer que ela
começou a procurar outros lugares com os quais travar negócios.
Eu gostaria de lhe solicitar que continue a honrar o acordo que
tínhamos com o Rei Georg.
Branca sentiu uma fisgada ante o nome do pai.
— Não sei bem se ela honrará esse acordo, ainda mais se
mencionar o antigo rei — Branca disse pensativa. — Mas talvez
você possa lhe oferecer algo a mais em troca. Uma coisa que a
deixe saber que negociar com o seu reino é algo que não pode
recusar de modo algum. Que outra mercadoria de exportação vocês
têm que possa interessar a ela?
Henri fez uma breve pausa.
— Temos bastante gado. Com certeza estaríamos dispostos a
negociar parte do nosso rebanho. — Olhou para ela. — Você é
muito sábia, Branca de Neve.
Ela baixou o olhar para os tamancos.
— Gosto de encontrar soluções e de manter a mente ocupada. —
Voltou a relancear para ele. — Não sei se tenho muita influência
com a Rainha Ingrid, mas, pelo menos, agora você sabe o que pode
lhe oferecer.
O sorriso de Henrich se iluminou como mil vagalumes.
— Estou em dívida com você, princesa. — De súbito, ela o
percebeu muito cansado. Ficou se perguntando por quanto tempo
viajara. Ao longe, ouviu tocar o relógio do vilarejo. Por quanto tempo
ficaram conversando? Ela precisava escapar antes que a rainha
descobrisse o que estava fazendo.
— É melhor eu ir. E você também, lamento dizer.
— Sim — concordou Henri, recolocando o chapéu na cabeça e
fazendo uma reverência para ela. — Talvez eu tente marcar uma
audiência. Obrigado uma vez mais por sua ajuda. — Ele olhou para
trás, para o poço dos desejos onde a vira pela primeira vez. —
Posso beber um pouco de água antes de partir?
— Claro — respondeu e o observou andando até o poço e
enchendo o cantil que guardava no bolso. Com um aceno final, o
rapaz voltou para o muro. Agarrou algumas trepadeiras e deu um
puxão para conferir se elas aguentariam seu peso. Devagar,
começou a subir. No instante em que chegou ao topo, ele olhou
para trás, na direção dela.
— Obrigado, Branca — disse Henri. — Até a próxima vez?
— Até a próxima — repetiu ela. Espero que seja logo, pensou,
apesar de tudo. Espero que seja mesmo em breve.
Branca estava tão ocupada assistindo à partida de Henri que não
percebeu que também era observada. Do alto de sua janela, a
Rainha Má olhava para baixo nada satisfeita.
CAPÍTULO TRÊS

Ingrid

A RAINHA OBSERVOU A cena do jardim com desgosto.


Quantas vezes dissera à garota que não conversasse com
ninguém, em especial com estranhos?
E, mesmo assim, lá estava ela com aquele seu vestido em
farrapos, falando com um rapaz. Só a vista deles, sorrindo e rindo
como velhos conhecidos, fez com que a rainha enterrasse as unhas
das mãos no parapeito de pedra com tanta força que deixou
marcas. Quem era aquele rapaz e o que ele fazia no castelo sem o
seu conhecimento? Não foi só a sua invasão que a irritou. Havia
algo mais que ainda não sabia determinar. Mas logo entenderia.
Dando as costas para a janela num rodopio, a rainha se
aproximou da porta do guarda-roupa. Acionou uma alavanca na
parede, que a deixava abrir uma passagem secreta para outro
cômodo. Fechou-a atrás de si com presteza. Uma vez dentro do
cômodo escuro, subiu numa plataforma no centro. Em seguida,
abriu num rompante as cortinas azuis que escondiam seu objeto
mais precioso. Ninguém mais tinha permissão para entrar em seus
aposentos privativos, mas nunca era demais ser cautelosa. Sim, ela
tinha protegido o lugar por encantamentos — símbolos antigos que
pintara nas paredes de pedras brancas ao redor do artefato para
impedir que ele fosse removido de lá —, mas era de natureza
desconfiada e não gostava de se arriscar. Valia a pena proteger o
espelho.
Embora tivessem passado quase a vida toda juntos, ela ainda se
maravilhava com a beleza do objeto. Com uma silhueta oval, o
espelho ocupava quase uma parede inteira. Sua moldura — feita de
ébano e com detalhes intricados em dourado — já era bastante
majestosa, mas foi o cordão dourado que serpenteava ao redor da
moldura a primeira coisa a captar seu olhar ao encontrar o espelho
escondido na loja do seu mestre. O cordão era liso na parte inferior
do espelho, mas se tornava mais errático, assemelhando-se a uma
trepadeira, conforme chegava ao topo, onde parecia ser expelida
como línguas de duas bocas de cobras. As joias que adornavam o
espelho também valiam mais do que qualquer diamante das minas
do reino. Se não mantivesse o espelho escondido, algum tolo
acabaria se deparando com ele e saquearia as pedras preciosas
apenas pelo seu valor, sem perceber o verdadeiro dom do objeto. O
espelho jamais lhe contara sobre as suas origens, mas Ingrid sabia
que cada parte dele era vital e insubstituível. Quantas horas do seu
dia ela passava ali naquela torre fitando aqueles rubis que a
espreitavam como os olhos de duas serpentes? Com que frequência
se voltava para a máscara no vidro em vez de procurar os outros?
Fechou os olhos, ergueu os braços e ouviu o trovão e o vento que
eram invocados cada vez com mais facilidade à medida que os anos
se passavam. Relâmpagos iluminaram o cômodo assim que ela
começou a falar.
— Voz no espelho mágico, aproxime-se vindo do espaço mais
remoto — pôs-se a falar a rainha. — Através do vento e da
escuridão, eu o invoco. Fale! Deixe-me ver teu rosto.
O espelho começou a soltar fumaça e uma imagem passou a se
formar. Às vezes, ela vinha bem esfumaçada ou tão indistinta que
Ingrid sentia como se estivesse olhando através de um pedaço de
vidro distorcido. Mas, daquela vez, a máscara bege que lembrava
um bobo da corte apareceu nítida — sem olhos nos globos oculares;
as sobrancelhas arqueadas quase numa permanente expressão de
curiosidade; a boca nada além de um risco fino cor de rosa. A
primeira vez em que vira o homem sem corpo no espelho, ela o
considerara repugnante. Agora, era o rosto dele, mais do que
qualquer outro, o que ela mais ansiava ver. Conhecia as feições da
máscara tão bem quanto conhecia as rugas do próprio rosto… rugas
que desapareciam com a passagem do tempo, graças à magia do
espelho. Ela parecia tão jovem e enérgica quanto Branca na maioria
dos dias, mas se vestia infinitamente melhor. O longo vestido roxo
com a capa anexa era feito da mais pura seda e lhe servia como
uma luva.
— O que quereis saber, minha rainha? — perguntou o espelho,
numa voz firme e forte. A voz do espelho sempre lhe causava
grande impacto, talvez por saber que ele sempre estava certo.
Existia também uma satisfação presunçosa em saber que o
espelho ainda se curvava a cada desejo seu. A despeito da troca
ritualística que mantinham todos os dias, ele jamais questionava a
necessidade de ouvir o que o coração da rainha mais desejava.
Desde que era uma garotinha, ela ansiava por beleza e riqueza,
com as quais não nascera, e não se cansava de ouvir que, por fim,
as tinha. Ela disse as palavras já familiares:
— Espelho, espelho meu, quem é mais bela do que eu?
Ela esperou pela resposta já conhecida. No entanto…
— Famosa é a vossa beleza, Majestade. Mas, espere, eu vejo
uma jovem donzela — disse o espelho. — Trapos não podem
esconder sua graça gentil. Ai de mim: do que vós, ela é mais bela.
O sangue nas veias de Ingrid gelou. Procurou permanecer calma,
mas a resposta a abalara. Em algum lugar nos recessos de sua
mente, a presença de um rapaz — muito parecido com aquele que
um dia cativara o coração da sua irmã — sempre a deixava
preocupada. Fizera de tudo o que podia para impedir que este dia
chegasse, mas, de alguma maneira, sempre soube que ele
chegaria.
— Revele seu nome — exigiu, entendendo que apenas retardava
o inevitável.
— Lábios vermelhos como uma rosa, cabelos negros como o
ébano, pele branca como a neve…
Ela não esperou que o espelho terminasse.
— Branca de Neve — ofegou.
Apesar de saber que isso poderia acontecer, ela sentiu como se
todo o ar estivesse sendo expelido dos seus pulmões. Tentou se
controlar, exalando devagar. Passou a mão pálida e delgada pela
cabeça, que estava coberta por um lenço justo. Seus cabelos
sempre foram muito finos, bem diferentes dos cabelos de sua irmã e
dos de Branca. Odiava como eram arrepiados e que não formavam
cachos como os delas. Naqueles dias ela os mantinha bem presos.
— O futuro contém mais que um resultado. Para vossa vontade
se realizar, o que deve ser feito apenas por vós é atinado — o
espelho lhe disse.
Ela entendia aonde o espelho queria chegar com aquilo. Tinham
tido essa conversa antes. Era um assunto ao qual o espelho sempre
retornava, assim como o fizera há tantos anos.
Ingrid lhe deu as costas para se recompor. Olhou ao redor do
cômodo quase desprovido de adornos. Era do seu entendimento
que ninguém sabia da existência daquele lugar. Mandara construir
aquele cômodo escondido atrás do guarda-roupa do seu quarto ao
se transferir para a torre de Georg após a morte da sua irmã. Georg
estava tão imerso em seu sofrimento que nem sequer se perguntava
o que estava sendo construído no guarda-roupa dela. Katherine, por
sua vez, descobrira a existência do espelho e do seu poder. Não
confiara nele. E pagara caro por esses medos.
Katherine. Ingrid relanceou os olhos para um movimento súbito
nas sombras, e sua pulsação acelerou. Mas não havia ninguém ali.
Soltou um suspiro de alívio e se voltou para o espelho, tentando se
concentrar naquilo que podia controlar no momento.
— Conte-me a respeito do rapaz.
— Há tempos sabeis que este dia viria na trajetória — respondeu
o espelho. — Devei mantê-lo longe da moça, para ter a vitória.
— Conte-me de novo — pediu ela, impaciente. Sabia que o
espelho detestava aquele tom, por isso reconsiderou sua conduta.
— Não me recordo dessa conversa. De onde veio o jovem?
— De um reino de terras ao norte — disse o espelho —, chega
Henrich, príncipe fiel e forte. E não irá embora até ela ser sua
consorte.
— Ela acabou de conhecer o garoto — Ingrid disse num tom de
dispensa. — Não voltarão a se encontrar. — Eu também poderia
garantir que ele não cruzará o caminho de ninguém mais, pensou.
Se era isso o que teria que fazer, ela o faria.
— Minha rainha, não riais e prestai atenção — alertou o espelho.
— Se não agirdes, uma vez mais seus caminhos se cruzarão.
Ingrid sentiu o sangue ferver ante as palavras do espelho. Fechou
as mãos em punhos bem apertados. Há apenas uma hora, estivera
no calabouço, trabalhando numa poção, antes de sentir que o
espelho tinha uma mensagem para ela. Agora havia um problema
que precisava resolver. Imediatamente.
A rainha não tinha bem certeza de como sempre sabia que o
espelho a chamava, mas, quanto mais cedia aos poderes dele, mais
em sintonia com ele ficava. E sabia que tudo o que ele dizia agora
era verdade. Não importava quanto tentasse esconder a garota e a
impedisse de ter as belas coisas a que uma princesa tinha direito, a
beleza e a natureza da menina apareciam. Nenhum trapo e
nenhuma sujeira poderiam esconder o brilho de Branca. A menina
era como uma rosa perfeita. Agora que já tinha chegado à
maioridade, não havia como esconder isso.
— A sete chaves a donzela pode estar trancada, mas pelo povo
ela será amada — prosseguiu o espelho. — A vós, eles têm menos
prazer em ver, minha rainha adorada.
Foi como se, de repente, o espelho se deliciasse em lhe contar
aquilo que ela não queria ouvir.
— Eu sei disso! Acha que não sei? — Avançou para o espelho
como se fosse golpeá-lo, mas conteve-se. Não ousaria fazer isso. —
Essa criança diminui a minha autoridade perante o povo. Mesmo
escondida em sua torre de marfim, eles parecem saber que ela está
lá. Estou certa de que desejam que fizesse algo para livrá-los da
“rainha má”, mas ela não tem a minha força, o meu poder.
— A ela falta poder — concordou o espelho —, todavia força é
outra questão. Se chance ela tiver, o trono tomará em nova ocasião.
O espelho deixou as palavras pairarem no ar úmido e denso. O
cômodo tinha tanto cheiro de bolor que, às vezes, ela se sentia mal.
Mas não poderia pedir que alguém viesse limpá-lo. Ela caminhou
até uma das lamparinas e a acendeu para dar ao ambiente o calor
da luz esverdeada. Seus olhos instintivamente se desviaram para o
canto do cômodo de novo, mas, outra vez, não havia ninguém ali.
Talvez hoje ela conseguisse um pouco de paz em relação a isso,
pelo menos.
— Até que o coração de Branca de Neve não mais bata, o povo a
ela se voltará. E um fim a vossa paz terá — anunciou o espelho,
lendo seus pensamentos.
Ela odiava quando ele fazia isso, embora suspirasse numa
concordância silenciosa. Por tempo demais permitira a existência
daquela criança, temendo fazer algo que perturbasse o seu poder
recém-conquistado. Mas ignorar Branca não faria a menina
desaparecer. Era hora de agir, de fazer o que ninguém mais faria,
como de costume.
— Cuidarei disso — proclamou baixo.
— Minha rainha, sois inteligente. A última hora ainda não é
iminente. Não permitais que ela seja vossa morte.
Ela teria que cuidar daquilo no mesmo dia. Retardara o inevitável
por tempo demais. Não haveria mais indecisão. A ameaça agora era
muito grande. Apressando-se para a entrada secreta, puxou a
alavanca que a devolveria ao guarda-roupa. Em seguida, ressurgiu
fora dele, entrando nos aposentos principais. Foi direto para a porta
e a abriu. Ele estava esperando, sabia que estaria.
— Brutus — disse ao guarda corpulento ali parado. — Encontre o
caçador. Leve-o até o meu trono agora mesmo.

Ela sempre ficava satisfeita quando as pessoas agiam com


presteza.
Quando Ingrid entrou na sala do trono, Brutus lhe disse que o
caçador tinha chegado. Ela pouco se importava se o caçador tinha
vindo de muito longe ou não. Só o que lhe importava era que não a
fizessem esperar. Fazer os outros esperarem era outra história.
Aprendera ao longo dos anos que o tempo pode não ter sido seu
amigo no que se referia ao envelhecimento (pelo menos não antes
de se deparar com o espelho), mas em termos de deixar visitantes
pouco à vontade e ansiosos, ele era, de fato, uma benção. Motivo
pelo qual levou o tempo que quis para se acomodar no trono. Ela
amava se sentar naquele assento.
Tolo como fora, Georg mantivera o mesmo modelo simples que o
pai usara antes dele. E Katherine, que nunca se interessara muito
por decoração, não dera um pio para mudar esse fato. Ingrid, por
sua vez, mal pôde esperar para fazer alterações na sala de
atendimento. Assim que se casou com Georg, fez trabalhadores
construírem uma plataforma para os tronos. Como rei e rainha, não
deveriam se sentar numa posição mais elevada do que aqueles que
vinham pedir-lhes favores? Havia armaduras penduradas nas
paredes, dando a qualquer um que entrasse a impressão clara de
que aquele reino não deveria ser desafiado. Acrescentara cortinas
de veludo vermelho e mandara forrar o seu trono com veludo azul.
Mas a sua parte predileta da opulenta poltrona eram as penas de
pavão que se espalhavam por trás da sua cabeça, formando uma
guirlanda verde e preta.
Sentada nela agora, deu ao guarda permissão para deixar o
caçador entrar.
Ele entrou com o olhar baixo e encoberto por mechas de cabelos.
Assim que se aproximou o bastante, ajoelhou-se diante da rainha.
— Levante-se, caçador, pois tenho uma tarefa para você — disse
ela. Ocorreu-lhe naquele instante que nem sequer conhecia o nome
do homem. O rapaz realizara diversas tarefas para ela ao longo dos
anos. Tarefas inomináveis que levaria consigo ao túmulo, e, mesmo
assim, ela o recebia como se ele fosse um desconhecido. Era
melhor assim.
O caçador retirou o chapéu e a olhou, aguardando instruções.
Aprendera da maneira mais difícil que ela não aceitava interrupções
com muita candura.
— Quero que leve Branca de Neve para apanhar flores silvestres
na floresta. — Um sorriso demoníaco se espalhou em seus lábios.
— E lá, meu fiel caçador, você vai matá-la.
Ele pareceu surpreso.
— Mas, Vossa Majestade, ela é a princesa!
— Silêncio! — ordenou ela, os olhos chispando fogo. — Ousa
questionar sua rainha?
— Não, Vossa Majestade — respondeu ele baixinho, abaixando a
cabeça novamente.
Ela tamborilou os dedos no trono. Alegrava-se em saber que ele
não tinha escolha a não ser acatar as suas ordens. Se não o
fizesse, ele e a família sofreriam as consequências.
— Conhece a punição se fracassar.
Ele não ergueu o olhar.
— Sim, Vossa Majestade.
Em sua palavra não podeis confiar! Ela ouviu uma voz dizer isso
em sua cabeça. Sabia que não era a própria voz. O espelho sabia
de tudo. Uma prova devei solicitar!
Prova.
Isso.
Seus olhos pousaram sobre a caixa vermelha que mantinha junto
ao trono. Usava-a para coletar os impostos dos homens tolos que
seus guardas traziam até ela quando eles deixavam de fazer seus
pagamentos. A caixa estava vazia naquele momento. Esvaziara-a
bem no dia anterior. Erguendo-a, ela examinou os desenhos com
mais atenção do que fizera nos últimos tempos. Tinha o desenho de
um coração trespassado por uma flecha. Que poético.
A Rainha Ingrid estendeu a caixa ornamentada para ele. O
caçador a olhou preocupado, o que era excitante. Não conseguia
acreditar quanto tempo demorara para fazer isso. Ah, quanto
adoraria tudo isso.
— Mas, para garantir que não fracassará — anunciou ela,
sentindo as palavras deliciosamente escorregadias em seus lábios
—, traga-me o coração de Branca dentro desta caixa.
CAPÍTULO QUATRO

Ingrid

Trinta anos antes

ESTAVAM SENTADAS NO CHÃO, uma olhando para a outra, com


os joelhos se tocando diante da lareira acesa. Ela espalhou as
figurinhas de madeira à sua frente em cima da toalhinha de linho.
Sua irmã mais nova, Katherine, bateu palmas toda animada ao
vê-las.
— Ah, Ingrid! Você fez mais!
Katherine apanhou os botõezinhos sobre os quais Ingrid pintara
rostos e olhou para ela com adoração. Eles vestiam retalhos que a
menina encontrara no antigo cesto de costura da mãe. O pai
acreditava que tivessem jogado fora todos os pertences dela depois
do seu falecimento, mas, de modo astuto, Ingrid escondera o cesto
debaixo da sua cama. Soube que precisariam dele para remendar
roupas e costurar novas peças. Os vestidos que tinham não
durariam para sempre.
O pai não tinha cabeça para criar meninas. Deixava que
cuidassem de si próprias na maior parte dos dias enquanto
trabalhava na oficina do ferreiro do vilarejo. Era muito tempo para as
duas ficarem sozinhas — desde antes de o sol nascer até depois de
ele se pôr —, mas Ingrid achava isso ótimo. Não gostava muito de
tê-lo por perto.
— Sim — Ingrid lhe disse, segurando um reizinho com uma coroa
de papel na cabeça. — Aqui estão o Rei Jasper e a Rainha Ingrid, e
também Katherine, a fada boa.
Katherine riu.
— Você é a rainha! Tudo bem. Eu bem que gosto de ser uma fada
boa. — Tocou nas asas de papel que Ingrid colara na parte de trás
da madeira. — Tenho poderes mágicos?
— Claro que tem — Ingrid lhe disse. — Assim como a rainha,
óbvio. Todos deveriam saber magia.
O meigo rosto de Katherine se anuviou, as chamas fazendo
sombras dançarem no narizinho em forma de botão.
— Magia boa, certo?
— Mas é claro — Ingrid concordou. Ouviam o pai falar sobre
boatos ridículos de bruxas que se arriscavam com magia das trevas,
mas ele jurava que tudo não passava de asneiras. E nisso Ingrid
tendia a concordar com ele. Magia não existia. Tinha certeza disso.
Se existisse, ela teria encontrado um modo de curar a doença da
mãe.
Mas Katherine só tinha dez anos. Ela deveria acreditar. Aos treze,
Ingrid era mais velha e mais sábia, ou pelo menos era isso o que
dizia para si mesma, e, na ausência da mãe, tentava ensinar à irmã
tudo o que a mãe teria ensinado, caso ainda estivesse viva. Isso
significava que, entre outras coisas, tentava ensinar Katherine a
escrever e a ler. O pai pusera um fim aos estudos delas tão logo a
mãe morreu.
— O dever de vocês é cuidar da casa — disse ele a Ingrid. —
Cozinhar, limpar, parecerem bonitas, ficarem de boca calada e
estarem prontas para me servir assim que chego em casa.
Como se ele fosse um rei. O que, com certeza, não era. Ingrid
não conseguia suportar sequer vê-lo algumas noites quando ele
chegava em casa — mais tarde do que disse que chegaria, fedendo
como o diabo. Algumas vezes ele nem chegava a comer o que ela
cozinhara. Só cambaleava até a cama e ali ficava até o acordarem
pela manhã. Ingrid preferia essas noites. Ela e Katherine comiam
sem ter que reservar a maior porção para ele e não tinham que ouvir
seus xingamentos. Ele estava sempre com muita raiva, como se as
odiasse por estarem vivas enquanto a mãe delas tinha morrido.
Dessa forma, se Ingrid tinha que contar algumas mentiras sem
importância para impedir que Katherine odiasse a vida que levavam
como ela mesma odiava, era o que faria.
— Katherine é uma fada boa, e duendes e fadas do bem têm o
melhor tipo de magia — explicou Ingrid, pegando o botão de
madeira da irmã e fazendo-o voar acima da cabeça delas como um
pássaro.
Brincaram pelo que pareceu uma eternidade, e Ingrid, por fim,
permitiu-se relaxar. O jantar estava cozinhando no fogo — um
cozido que os alimentaria por dias — e, com um pouco de sorte, o
pai não voltaria até que o céu estivesse negro como a noite.
Por isso, ao ouvirem a porta se escancarar com estrondo
enquanto o sol ainda estava a pino, as duas meninas se
sobressaltaram. O pai tinha voltado mais cedo para casa.
Ingrid odiava ser parecida com aquele homem. Ela não estava
ficando careca, óbvio, mas tinha os cabelos castanhos e arrepiados
dele, enquanto os de Katherine eram negros como tinham sido os
da mãe. Ingrid também tinha os olhos dele — pretos como carvão
—, ao passo que Katherine tinha os olhos castanhos da mãe.
Parecia injusto que a irmã tivesse herdado as características da
mãe que ambas amavam tanto, enquanto ela tinha que se parecer
com o homem que detestavam.
— Por que estão sentadas no chão como cachorros? — ele
berrou agarrando o batente com uma mão.
— Desculpe, papai! — Katherine se pôs de pé num salto e um
dos botões rolou para longe dela, parando aos pés do pai.
Ele se curvou e espiou o botão. Era a Fada Katherine.
— Brinquedos? Vocês duas estão brincando com brinquedos? —
Ele se moveu rápido na direção delas. Ingrid instintivamente colocou
a mão na frente de Katherine para mantê-la fora do alcance do pai.
— Era para vocês estarem cuidando das tarefas domésticas!
Cozinhando! Mulheres não se sentam no chão, Ingrid. Você está
velha demais para se comportar assim.
— O jantar está encaminhado, pai — Ingrid disse com calma
quando ele avançou a passos duros pela sala. — Esperávamos que
chegasse daqui a algumas horas.
— Fui dispensado — resmungou ele. — Descontaram um dia de
pagamento por eu ter aparecido meio distraído.
Ele cambaleava. Por que voltara para casa? Agora ficariam
confinadas com ele no pior dos seus maus humores. Ingrid sentia-se
presa dentro de casa.
— Por que não vai dormir? — sugeriu Ingrid.
Os olhos dele se estreitaram.
— Não preciso dormir! Preciso de dinheiro, garota idiota! — Ele
ergueu a mão e ameaçou bater nela, que saiu do alcance dele.
Cambaleou na direção delas uma vez mais. — Vocês duas
deveriam estar lá, trabalhando no meu lugar. Ganhando o seu
sustento. Em vez de brincar com esses brinquedos! — Ele pegou o
botão e o jogou no fogo.
— Não! — Katherine gritou. Começou a chorar quando a Fada
Katherine estalou e desapareceu bem diante dos seus olhos.
— Pare de chorar! Me ouviu? Pare de chorar agora mesmo! —
berrou o pai.
Ingrid viu a mão dele subir como se buscasse algo. Ela sempre
levava o golpe no lugar de Katherine. Não suportava ver a irmã
caçula sofrer. Mas, ao ver a expressão do pai e ouvi-lo falar sobre o
trabalho, entendeu que naquele dia ele não se contentaria em
apenas atingir Ingrid. Iria atrás das duas. Ele agarrou e puxou uma
mecha dos cabelos de Katherine. A irmã chorou ainda mais.
— É só para isso que você serve, menina? Para me deixar bravo?
— berrou novamente.
— Solte-a! — disse Ingrid, empurrando o tronco largo dele. Mas
não intimidou o pai. Em vez disso, fê-lo gargalhar. Ingrid sentiu as
entranhas ficarem duras como pedra. A raiva iria consumi-la.
— Garota feia e burra — disse ele para Ingrid. — Você é ainda
mais inútil do que ela.
Ele ergueu a mão de novo.
A raiva fervia dentro dela como um caldeirão prestes a derramar.
Ingrid estava farta de ser chamada de inútil e de feia. Como poderia
ser bela morando naquele casebre, vestindo aqueles trapos? Não
permitiria que o pai a magoasse de novo e não deixaria que ele
ousasse atacar sua irmãzinha. Afastando Katherine, Ingrid agarrou o
atiçador de fogo da lareira e com ele atingiu a cabeça do pai, que
caiu no chão com um baque alto.
— Ingrid! — Katherine exclamou.
Mas Ingrid permaneceu impassível. A expressão surpresa que
surgiu no rosto do pai depois que ela o atingira fez com que se
sentisse bem. Gostou disso?, pensou em lhe perguntar.
Ela encarou o pai deitado no chão, piscando rápido como se
estivesse em estado de choque. Não o esperou se levantar. Em vez
disso, agarrou a mão de Katherine e correu para fora do chalé.
Levava a irmã com pressa por todo o caminho e não parou até
estarem bem no meio das árvores densas da floresta. Katherine
chorou em boa parte do trajeto.
— Para onde vamos? O que você está fazendo? — Katherine
perguntou várias vezes enquanto corriam.
Mas Ingrid não tinha respostas. Só o que sabia era que tinham
que se afastar ao máximo daquela casa. Não achava que o pai iria
atrás delas. Por que faria isso? Ele não as amava. Mas ela também
sabia que não queria que ele as encontrasse. Por isso, seguiram em
frente.
— Estamos indo para casa? — Katherine perguntou depois de um
tempo.
Estiveram andando pelo que pareceu serem horas, e o céu
começava a escurecer. Ingrid olhou ao redor à procura de uma trilha
para fora da floresta. Por fim, avistou uma clareira.
Ingrid olhou para o rosto de Katherine, marcado pelas lágrimas.
— Quer voltar para casa e encontrar aquele homem? —
perguntou. — Quer que sejamos tratadas como cachorros? Mamãe
não haveria de querer isso. Eu não quero isso! E você também não
deveria.
O lábio de Katherine voltou a tremer.
— Mas aonde iremos?
Ingrid ouvira essas palavras antes. Lembrava-se de tê-las dito no
leito de sua mãe na época em que sua vida estava próxima ao fim.
A mãe lhe dissera que fosse boa com sua irmã e que a educasse
bem. Ingrid prometera fazer isso, mas ela também se perguntara
aonde deveriam ir. Sabia que o pai não cuidaria delas. Não como a
mãe cuidara. E a mãe, de alguma maneira, entendeu.
— Aonde não importa. — Lembrava-se dela dizendo com a
respiração vacilante. Ingrid enxugara o suor da fronte da mãe. — Só
o que importa é que vocês duas fiquem juntas.
Não quebraria essa promessa feita à mãe. Ingrid envolveu
Katherine num abraço enquanto a irmã chorava.
— Não importa aonde formos, será melhor do que aquele lugar. O
mais importante é ficarmos juntas — disse, ecoando as palavras da
mãe. Voltou a segurar a mão de Katherine e conduziu-as pelo
caminho.
Quando as duas por fim saíram da floresta, já não estavam mais
em seu vilarejo. Nada parecia familiar. Viajaram para mais longe do
que ela já tinha estado antes na vida. Relanceou ao redor dos
campos cultivados diante dela e encarou a montanha ao longe. As
torres de um castelo despontavam por trás de algumas árvores. Não
tinha certeza de onde estavam, mas aquele era um lugar como
outro qualquer para começarem sua nova vida.
Quando o fazendeiro e seu cavalo surgiram do nada, ela nem se
assustou. Em vez disso, segurou a mãozinha de Katherine e acenou
para ele. O seu rosto era envelhecido pela exposição ao sol e ele
usava roupas esfarrapadas, mas parecia gentil.
— Por favor, senhor — disse Ingrid, usando sua voz mais doce e
acolhedora, aquela que costumava usar apenas com Katherine. —
O senhor teria algum trabalho para mim e minha irmã em sua
fazenda? Trabalhamos com afinco, senhor. Somos órfãs — mentiu
de pronto, antes que ele pudesse hesitar. — Só lhe peço um lugar
para dormirmos e alimento para comermos. Em troca, seremos suas
leais aprendizes.
O homem olhou de Katherine para Ingrid e de novo para
Katherine. Depois gesticulou para a parte de trás da carroça.
— Venham. Veremos o que podemos fazer.
Ingrid ajudou Katherine a escalar o feno e subiu atrás dela. Não
percebeu quanto cansara as pernas até elas se afundarem no trigo
seco. Katherine apoiou a cabeça no ombro de Ingrid enquanto o
homem as levava pelos campos. Ingrid passou o braço ao redor da
irmã, mas manteve os olhos fixos no castelo no alto da colina.
Nunca antes vira uma construção tão maravilhosa. Por maior tolice
que fosse, permitiu-se imaginar como a vida poderia ser ali — um
lugar com comida e roupas em abundância e nenhum pai malvado.
E, quem sabe, um pouco de magia também.
Quem quer que ali morasse tinha poder, e ela aprendera que
poder era algo necessário para viver neste mundo. Estava disposta
a dar tudo para ter poder. Uma vez que o tivesse, ninguém jamais a
derrubaria de novo.
CAPÍTULO CINCO

Branca de Neve

— VOSSA ALTEZA? — Branca sentiu alguém a sacudindo para


acordá-la. — Está na hora de se levantar.
Havia alguém em seu quarto? Ela abriu os olhos e se
surpreendeu ao ver uma criada perto da cama. O que ela fazia ali?
Ninguém nunca entrava em seu quarto. Ela piscou e olhou ao redor.
O quarto ainda estava escuro e as cortinas permaneciam fechadas.
Ainda era o meio da noite? O castelo estaria sob ataque? Branca
ouvira os criados conversando sobre o assunto em mais de uma
ocasião. Com a popularidade de tia Ingrid, um golpe nunca estava
fora de questão.
Branca reconheceu a criada. Era a mulher encarregada de lavar
os belos vestidos da tia.
— Mila, o que está fazendo aqui? — perguntou Branca, erguendo-
se. — Algum problema?
A mulher recuou para trás como se tivesse se queimado.
— Sabe o meu nome?
— Sim. — De repente, Branca sentiu-se envergonhada de novo.
— Ouvi outros criados chamando-a pelo nome e… — Pensou por
um instante. — E você canta muito bem.
Mila tocou o próprio peito.
— Obrigada. Eu… — A voz dela foi sumindo. — Lamento muito
nunca termos conversado antes, Vossa Alteza. A rainha… ela não
gosta que nós…
Branca sabia o que ela queria dizer. A tia sentia que o trabalho
dos criados era servir a ela, não à sobrinha.
— Está tudo bem — Branca a tranquilizou.
Mila sorriu.
— Mas hoje será diferente. A Rainha Ingrid pediu que eu viesse
aqui ajudá-la a se preparar para um passeio!
— Um passeio? — Branca ainda devia estar sonhando. A tia não
permitia que ela fosse a parte alguma fora do castelo.
— Isso! — Mila puxou a manta pesada e ajudou Branca a sair da
cama. — Sua tia pensou que talvez você fosse gostar de ir à floresta
apanhar flores silvestres hoje.
— Pensou? — Branca não sabia se acreditava. — Tem certeza?
Mila apoiou as mãos nos quadris e riu.
— Sim, Vossa Alteza! Ela mesma me deu instruções ontem à
noite e me disse para ajudá-la a se arrumar. Até lhe enviou um
vestido para usar. Queria que saísse cedo, antes que esquentasse
demais.
Admirada, Branca observou Mila executar as tarefas que ela
própria vinha realizando há anos. A criada despejou água na bacia e
a ajudou a se lavar. Fez a cama de Branca e arrumou suas coisas.
Penteou seus cabelos e os arrumou com um tira de tecido vermelho,
que amarrou num laço. Branca não conseguiu conter a emoção.
Ninguém a ajudara a fazer essas tarefas desde que a mãe morrera.
Tia Ingrid convencera seu pai de que estava crescida o bastante
para cuidar de si própria sozinha, mas ela sentia falta desse contato
pessoal. Sentia falta da companhia da mãe. Olhando-se no espelho
enquanto Mila fazia o laço, Branca não pôde deixar de imaginar que
era a mãe quem estava fazendo aquilo. Para Branca, todos os dias
se misturavam. Mas aquele dia… aquele dia seria diferente! De
alguma forma, sua tia ficara sabendo do seu desejo de sair do
castelo e conhecer alguma outra parte do reino… mesmo que por
apenas algumas horas.
Estava surpresa com o gesto, ainda mais depois do que
acontecera no dia anterior. Tia Ingrid a convocara para a sala do
trono à tarde, interrogando-a a respeito de Henrich, depois de tê-lo
visto conversando com Branca no jardim. Fazia séculos que não a
via (poderia ter sido um ano atrás?), mas estava com a mesma
aparência de sempre. Era como se nunca envelhecesse.
— Permitiu que um desconhecido andasse pela propriedade e
não alertou os guardas! Você me desobedeceu! — ralhou com a
menina sob os olhos de alguns guardas nas proximidades. —
Quantas vezes tenho que lhe dizer para não falar com estranhos?
Branca baixou o olhar para os tamancos.
— Sinto muito, tia Ingrid, mas Henri pareceu tão gentil. Ele não
me teria feito mal.
— Henri? — Repetiu, erguendo uma sobrancelha muito bem
arqueada. — Quer dizer que conversou com o invasor por tempo
suficiente para saber o nome dele?
Branca corou. A tia não estava feliz, mas talvez ela pudesse
apelar para o seu bom senso.
— Ele me disse que gostaria de discutir acordos comerciais com a
senhora. Respondi que se aborreceria pelo rapaz ter aparecido sem
aviso e sugeri que tentasse marcar uma hora. Eu lhe disse para ir
embora.
Tia Ingrid se sentou mais à frente no trono, agarrando os braços
da poltrona com as mãos brancas como leite.
— E?
— E? — Branca ficou confusa. Gostava de ser cautelosa na
presença da tia. Isso era tão raro que ela não queria fazer nada que
atrapalhasse ainda mais o relacionamento entre elas. Ainda tinha
muita dificuldade em entender o que teria feito para provocar o
afastamento da tia. Depois que seu pai desapareceu, deduziu que a
tia tentaria se aproximar dela. Em vez disso, a rainha fechara as
portas — tanto de modo literal literal quanto figurativo. Além de
dispensar boa parte dos criados do castelo, cancelou todos os
bailes que aconteciam todos os anos, limitou as visitas e parou de
se relacionar com as pessoas, inclusive com Branca. A garota
imaginava ter sido a culpada disso. Mas nada jamais era dito a
respeito. Será que a tia ao menos percebia o quanto ela trabalhava
para impedir que o castelo ficasse em estado lastimável?
Tia Ingrid deu um suspiro profundo.
— O que mais ele disse? O que ele quer de fato?
— Ele não tinha más intenções — explicou Branca. — Esperava
encontrá-la, mas expliquei que visitantes raramente são recebidos
em audiências com a rainha.
Ainda assim, a tia não pareceu apaziguada.
— Ora, e agora é que ele não será recebido mesmo. E você não
voltará a desobedecer às minhas ordens. Entendido?
— Sim, tia Ingrid. — Branca imaginou que a tia devia ter motivos
para estar zangada. Ela tinha ido contra os desejos da rainha. Mas,
se ao menos a tia concordasse em receber Henri, veria que ele não
oferecia perigo.
E, no entanto, apenas um dia depois, a tia decidira lhe conceder
um pouquinho de liberdade. Talvez o relacionamento entre elas
enfim estivesse mudando.
Mila mostrou um vestido tão adorável que Branca arquejou. Tocou
com admiração o corpete azul de mangas bufantes com detalhes
bordados em vermelho e o adorável cetim amarelo brilhante. Fazia
muito tempo que não tinha algo novo para vestir. Quase hesitou em
colocar o vestido — e se o estragasse na floresta? Mas em que
outra ocasião teria a oportunidade de usar um vestido tão belo
assim? Colocou-o com alegria.
Em seguida, a criada ofereceu a Branca biscoito e chá de uma
bandeja que já estava no quarto. Satisfeita, Branca olhou pela
janela. O céu tinha uma coloração azul-arroxeada, e o sol ainda não
havia nascido.
Mila tossiu.
— Sinto dizer que terá que terminar seu café da manhã com
rapidez, Vossa Alteza — avisou com pesar. — O acompanhante da
rainha já está à sua espera.
Branca parou no meio de um gole de chá.
— Mas já? Ainda nem amanheceu.
— Exato. — Mila concordou com um aceno. — A sua tia se
preocupa com a sua segurança além dos muros do castelo. Uma
vez que não poderá viajar com você, ela sente que seria melhor
partir ainda sob o véu da escuridão para que ninguém saiba que
está saindo.
— Ah. — Branca não havia pensado nisso. Passara a vida sem
ser notada.
— Além do mais, é uma longa jornada. Tomei a liberdade de
providenciar um almoço. Agora é hora de ir!
Ela estava saindo do castelo! Só por isso é claro que faria tudo o
que a rainha quisesse. Estava tão extasiada que não se lembrou de
olhar para o retrato dos pais antes de ser levada do quarto para se
encontrar com seu acompanhante.
Branca reconheceu o homem assim que o viu. Ele era alto e
musculoso, com cabelos castanho-escuros presos num pequeno
rabo de cavalo, e usava roupas apropriadas para viajar. Ela sempre
apreciava as oportunidades de olhar as pessoas nos olhos, mas os
desse homem estavam voltados para baixo. Quis lhe perguntar seu
nome, mas ele não parecia muito sociável. Apenas sabia que ele
trabalhava há muito tempo para sua tia, conduzindo caçadas para
providenciar carne para o castelo. Era conhecido apenas como “o
caçador”. Ela custava a acreditar que naquele dia a tia abriria mão
dos seus serviços para que a acompanhasse.
Ele fez uma reverência.
— Bom dia, Princesa. Devemos começar a nossa jornada antes
que o dia fique claro demais.
— Claro — disse ela, sentindo palpitações de ansiedade. Branca
olhou para Mila e sorriu com timidez. — Obrigada pela ajuda hoje.
— Mila corou. — Por favor, diga à minha tia que trarei um magnífico
buquê de flores.
Mila fez uma reverência.
— Mas é claro, Vossa Alteza.
O trajeto não foi tão longo quanto Mila fez parecer, mas, ainda
assim, Branca apreciou o passeio de carruagem. Ela a tinha só para
si, já que o caçador também era quem a conduzia. Inalou o ar fresco
enquanto cavalo e carruagem sacolejavam pelas ruas tranquilas do
vilarejo, onde as pessoas apenas começavam a despertar. Logo
chegaram ao pé da montanha, no meio de um verde tão exuberante
que Branca custava a acreditar que fosse real. O sol começava a
nascer no céu limpo da manhã e, para Branca, o reino nunca lhe
parecera tão belo.
Será que os campos eram sempre tão iluminados e repletos de
flores? As plantações deles sempre foram tão vibrantes? O pomar
de macieiras sempre tivera tantas árvores assim? Sabia que a mãe
cultivara um quando ainda era muito jovem, na época em que
trabalhava na lavoura de uma família. Eles acolheram tanto a ela
como a tia Ingrid, e a mãe trabalhara de modo incansável para
retribuir o favor, ajudando o pomar a crescer e prosperar. Teria
adorado parar para olhar para aquelas árvores e visualizar a mãe
colhendo os melhores frutos dos galhos, mas não ousava pedir ao
caçador que fizesse isso. Estava agradecida de verdade por estar
fora dos muros do castelo. Fazia tempo demais desde que tivera
permissão para ver o campo com seus chalés e pessoas cuidando
da terra ou de cavalos e vacas. Queria absorver cada imagem e
jamais se esquecer de nem sequer um momento de tudo aquilo.
Sabe-se lá quando seria capaz de repetir o passeio?
Depois que a carruagem parou, o caçador deu a volta até a porta
e a destrancou. Ele ainda não fazia contato visual com ela.
— Chegamos, Vossa Alteza — disse com secura.
— Obrigada! — agradeceu ela, apressando-se para sair e se ver
em liberdade. Um abibe, um dos pássaros prediletos de sua mãe,
passou voando por ela, piando com alegria, como se também
soubesse o que significava ver Branca naquele exato local. Ela
juntou suas coisas e olhou ao redor da campina. Estavam num
bosque de uma colina, com grama alta e flores brotando livremente.
Havia tantas variedades e cores; ela mal podia esperar para
começar a formar o buquê perfeito. Começou a colher botões de
imediato, cantarolando baixinho à medida que avançava. Ao longe,
via uma floresta na qual a luz não entrava. As árvores dali pareciam
mais mortas do que vivas. Talvez um incêndio tivesse um dia
destruído aquelas terras. Branca notou o contraste estranho entre
os dois mundos, tão próximos um do outro.
— Seguiremos por ali — disse o caçador, apontando para a
floresta escura. Ele passou um saco por cima do ombro, que parecia
bastante pesado.
Branca não queria questionar seu acompanhante, mas lhe
pareceu uma escolha estranha. Pensando bem, talvez ele soubesse
algo a respeito do terreno que ela não sabia. Por certo tinha mais
experiência naquelas partes do que ela. Caminharam na direção
das árvores mortas com Branca parando a cada poucos passos
para observar com mais atenção a beleza natural que os cercava.
Percebendo uma margarida no caminho, Branca se ajoelhou para
apanhá-la. Segurou-a junto ao corpo.
— Está com fome? — perguntou, tímida, ao caçador. — Tenho
certeza de que Mila embalou o suficiente para nós dois.
Ele a olhou por um breve instante antes de responder:
— Não, Vossa Alteza. — Estendeu a mão para indicar que ela
fosse à frente. — Eu a seguirei.
— Senhor? — Branca se adiantou, colhendo algumas flores
selvagens que cresciam como heras ao longo da grama. — Nem
sequer sei como chamá-lo. Qual é o seu nome?
— Pode me chamar de caçador. É assim que a minha rainha me
chama.
Talvez fosse por causa da recém-descoberta liberdade, mas
Branca estava se sentindo mais audaz do que nunca.
— Estou certa de que tem um nome — instigou-o. — Seria um
passeio muito mais agradável se eu pudesse chamá-lo por ele.
— Não há necessidade — disse o caçador, enxugando a testa ao
olhar ao redor.
Ah, que pena, pensou Branca, desistindo da ideia. Deduziu que
ele tinha um trabalho a fazer, afinal. Talvez não conseguisse
protegê-la e ser sociável ao mesmo tempo. De todo modo, ela não
permitiria que o mau humor do caçador acabasse com a sua alegria.
Afastou dos ombros o belo manto que lhe fora dado. Cedo assim, o
ar ainda estava um pouco fresco, mas Branca gostava de senti-lo
contra a sua pele. Talvez conseguisse juntar flores suficientes para
fazer diversos arranjos para o castelo. E, depois que tivessem
murchado, pegaria as que tinham sementes e tentaria replantá-las
junto ao viveiro.
Pensar no viveiro e no jardim a lembrou de Henri. Não
conversaram por muito tempo, mas ela percebera o seu charme. Se
ao menos conseguisse convencer tia Ingrid a recebê-lo, ela por
certo veria que ele era um homem honrado. Embora, a bem da
verdade, era possível que ele já estivesse a caminho de volta para o
seu reino. O pensamento a entristeceu. Por que não fora ousada o
bastante para sugerir que se encontrassem de novo? Depois disso,
riu. Jamais pensara em algo desse tipo antes! Só podia ser o ar da
montanha que lhe dera uma ideia do tipo.
Um som repentino fez com que Branca parasse de andar. Algo se
debatia na grama mais adiante. Apressando-se, ela viu um filhote de
passarinho. Devia ter caído do ninho ou voado bem em direção a
uma árvore. Ele ficava saltitando, tentando alçar voo, mas acabava
voltando para o chão. Ela o apanhou nas mãos.
— Você está bem? — perguntou ao passarinho, como se ele
pudesse responder. Acariciou sua penugem e sentiu-o tremer ao
toque. — Pobrezinho. Acho que ele caiu — disse, tentando incluir o
caçador numa conversa uma vez mais.
Se ele ainda estava trás dela, não disse nada. Branca decidiu
continuar falando.
— Não sei dizer se está machucado ou só assustado. Não se
preocupe, amiguinho. Eu cuido de você. — Teve uma súbita
lembrança de ver a mãe fazendo exatamente o mesmo. Sorriu ante
esse pensamento, depois voltou sua atenção para o pássaro. —
Quer tentar voar mais uma vez? — perguntou-lhe, feliz por ter
alguém com quem conversar por um instante. — Vá em frente.
Tente. — Como se estivesse seguindo as suas instruções, o
passarinho deu dois saltinhos e depois voou.
Satisfeita, ela assistiu ao passarinho voar. Estava prestes a contar
ao caçador o amor da mãe pelos pássaros quando uma sombra
recaiu sobre si. Ela ergueu o olhar e se surpreendeu em ver o rosto
sério do homem.
Foram necessários apenas poucos segundos para que sua
surpresa se transformasse em medo profundo. O caçador segurava
uma faca acima da cabeça dela.
Suor brotou em sua pele, e seus braços e suas pernas
começaram a tremer. Mesmo com os instintos aflorados, ela
precisou de um minuto para distinguir o que estava vendo. O
caçador tinha uma faca. Seu sangue gelou ao perceber que suas
costas davam para um grande rochedo, que não tinha para onde
fugir. Sabia o que estava prestes a acontecer. Branca sentiu o corpo
falsear, tropeçando para trás enquanto levantava as mãos para
proteger o rosto. O que era tolice, de fato. Não havia como deter a
faca, e, mesmo assim, ela gritou, e o som da sua voz ecoou pela
campina. Ouviu alguns pássaros fugindo de uma árvore próxima por
causa do grito, mas não havia mais ninguém ali para ouvi-la. Então
é assim que vou morrer, pensou, prendendo a respiração enquanto
aguardava o golpe.
Em vez disso, ouviu a faca se chocando com o chão.
Branca afastou as mãos do rosto e viu o caçador se ajoelhar
diante dela. Ele ergueu o olhar. Era a primeira vez que ela via seus
olhos. Eram verdes.
— Não consigo fazer isso! — ele lamentou, o rosto se crispando
de desespero. — Perdoe-me. Eu lhe imploro, Vossa Alteza. Perdoe-
me. Ela é louca, sente inveja de você. Nada vai detê-la.
O que ele dizia não fazia sentido. Alguém tinha inveja dela? Por
quê? Mas não havia tempo para perguntas. O caçador poderia
voltar a apanhar a faca a qualquer segundo. Era sobre isto que a tia
sempre a alertara: ser a princesa a transformava num alvo. Era por
isso que mantinha Branca isolada. No fim, a tia tinha razão.
Chocada, começou a correr com o coração batucando como um
tambor. Dera apenas alguns passos quando tropeçou. Lançou as
mãos adiante, preparando-se para a queda, aterrissando num leito
de flores. Seu dedo se cortou num espinho de uma roseira.
Mãe, me ajude, ela pensou ao olhar para o sangue escorrendo
pelo dedo. Ouviu a voz da mãe como se ela estivesse ali, como
ouvira nos seus sonhos na outra noite: Se desejar algo, às vezes
tem que se arriscar, dissera ela. O que a mãe faria naquele
instante?
A resposta era óbvia. A mãe jamais fora de recuar diante de um
desafio. Em tudo o que fazia, era audaz e ousada, sem se importar
com o que a tradição e os precedentes ditassem: do modo como
governava ao seu viveiro, passando por seu papel de mãe, ela
sempre se dispusera a encontrar soluções e a ajudar. Sim, ficou
claro para Branca que sua mãe iria querer ter respostas. Iria querer
saber quem a desejava morta e se certificaria de que a pessoa não
fizesse mal a ela e a mais ninguém.
Ainda tremendo incontrolavelmente, Branca se ergueu e, devagar,
retornou para junto do caçador. Seus passos na direção do homem,
que ainda estava ajoelhado, foram lentos, porém firmes. Cada parte
do seu corpo lhe dizia que voltasse a correr, todavia ela ficou onde
estava.
— Quem? Quem quer me matar, caçador?
Ele a fitou, parecendo surpreso por ela ter tido que perguntar.
— Quem? Ora, a rainha!
CAPÍTULO SEIS

Ingrid

Vinte e quatro anos antes

KATHERINE LARGOU O CESTO na mesa fazendo um baque.


— Este é o último cesto da semana. Dez ao todo! Se isso não der
uma boa soma no mercado, não sei o que mais pode dar.
Ingrid encarou o cesto repleto de maçãs vermelhas perfeitas.
Estavam tão maduras que seu sumo praticamente saía ao toque.
Nem uma delas estava machucada; não havia uma mínima batida
nem uma marca de podridão. Katherine jamais teria permitido isso.
Ela se dedicava às macieiras do pomar como se fossem suas filhas,
garantindo que fossem regadas e podadas todos os dias. O
fazendeiro e a esposa adoravam a irmã de Ingrid e estavam
satisfeitos com o trabalho que ela realizava na fazenda. Katherine
se interessou pelas macieiras com as quais o fazendeiro estava
tendo dificuldades, e no ano seguinte já produziram uma bela
colheita. E agora, apenas poucos anos depois, as maçãs de
Katherine eram conhecidas como as melhores do reino. Ela criara
sua própria variação, que ela chamava de Vermelho Fogo. Tinham
um tantinho da acidez da maçã verde, mas doçura de sobra para
equilibrar o sabor. Até havia boatos de que o próprio rei
encomendava cestos das maçãs de Katherine para que lhe
fizessem suco delas no café da manhã. Pelo menos foi isso o que
Katherine ouviu no mercado. Não que alguém do castelo se
dignasse a descer para um cantinho do reino simples como aquele
para agraciá-los com a sua presença.
Desde que o fazendeiro as acolhera a pedido de Ingrid diversos
anos atrás, ela e Katherine trabalhavam duro para se sustentarem.
Katherine logo se adaptou à vida na fazenda, mas não demorou
para que Ingrid a considerasse tediosa. Enquanto a irmã dizia que
cultivar “era comungar com a natureza” e adorava o desafio de fazer
florescer uma planta relutante, Ingrid se cansara de ter sempre
sujeira debaixo das unhas e saias enlameadas. Não queria passar a
vida inteira revirando o solo e plantando milho, todos os dias
torrando debaixo do sol.
Tentou convencer Katherine a se mudarem da fazenda, mas a
irmã não queria nem ouvir falar disso. “Eles foram tão bondosos
conosco, Ingrid”, Katherine dizia daquele seu jeito pragmático —
como se isso significasse que ambas deviam tudo até o último
suspiro ao casal que as tratava como empregadas. Seis dias por
semana elas se levantavam antes do nascer do sol para apanhar as
frutas e os legumes maduros e trabalhavam na terra até o sol
começar a se pôr. No sétimo dia, elas deveriam descansar, mas, em
vez disso, eram forçadas a seguir para o vilarejo para vender o que
colheram.
Na verdade, Ingrid não se incomodava com o sétimo dia porque,
para ela, era uma chance de escapar da fazenda. O fazendeiro
confiava nelas e permitia que se aventurassem no vilarejo sozinhas
para vender as preciosas maçãs de Katherine e os outros produtos,
chegando até a permitir que levassem a carroça. Se ao menos ela
pudesse pegar a carroça e nunca mais voltar para aquele lugar
horrendo… Mas não poderia abandonar Katherine.
— Esta semana temos o dobro de cestos da semana passada —
comentou Katherine ao partirem para o mercado. Ela dispusera as
maçãs nos cestos com o mesmo cuidado que carregaria uma
braçada de ovos frescos. — Tio Herbert não conseguiu acreditar
quantas vendemos na semana passada.
— Ele não é o seu tio — Ingrid bradou, e Katherine parou de
arrumar as maçãs para encará-la. — Desculpe, mas… ele não é seu
tio. Não tem um dote para você. Não encontrará alguém para
desposá-la. Ele não nos deve nada, Katherine, e um dia pegará a
vida a que nos acostumamos e irá puxá-la de debaixo dos nossos
pés, assim como nosso pai fez. Se percebesse isso, iria querer ir
embora tanto quanto eu.
Katherine suspirou.
— Ah, Ingrid.
Já tinham tido essa discussão antes.
O sol invadiu o celeiro por entre as tábuas e iluminou os cabelos
da irmãzinha de Ingrid. Por mais que as horas de exposição ao sol
tivessem bronzeado sua pele (visto que ela se recusava a partilhar o
largo e surrado chapéu de palha de Ingrid) e o trabalho árduo
calejado suas mãos, Katherine carregava essas marcas com
orgulho. Os cabelos escuros estavam sempre presos de maneira
simples e prática, afastados do rosto, não importando quantas vezes
Ingrid lhe dissesse para que ela os arrumasse segundo a última
moda, como ela tentava fazer. Apesar disso, Katherine era querida
por todos que encontrava — do fazendeiro às pessoas no mercado,
mesmo sem saber se deveriam gastar seu dinheiro numa maçã de
primeira qualidade. (O fazendeiro insistia para que Katherine
cobrasse o dobro pelas suas.) Talvez fosse a doçura que irradiava
dos seus olhos cor de âmbar. Mas aqueles olhos já não
funcionavam mais com Ingrid.
— Completarei dezenove anos no mês que vem — disse Ingrid ao
ajudar Katherine a suspender os cestos para a traseira da carroça.
— Está na hora de eu cuidar da minha vida. Se você quer esta aqui,
pode ficar com ela. Eu quero mais.
Katherine franziu o cenho. Não era algo que fizesse com
frequência.
— Para onde você vai? O que fará para conseguir comida e
roupas? Talvez, se você pedir ao tio... a Herbert... que a ajude a
encontrar um trabalho no vilarejo, possa continuar a morar aqui e,
ainda assim, ter mais liberdade.
Ingrid inclinou a cabeça. Ela não havia considerado essa opção,
mas poderia ser a melhor… por enquanto.
— Talvez. — Baixou a lona na parte de trás da carroça. Em
seguida, as duas se puseram no longo trajeto até o vilarejo,
chegando pouco antes da hora mais movimentada da manhã.
O mercado era montado à sombra no pátio da igreja. Alguns
mercadores vendiam direto das carroças; outros andavam
carregando seus cestos. Katherine preferia montar uma mesa e
deixar que as pessoas tocassem e sentissem o cheiro dos alimentos
que iam comprar. “Isso lhes dá a chance de escolher”, ela sempre
dizia. A princípio, Ingrid considerara isso uma tolice. Quem haveria
de querer comprar um milho que outra pessoa tinha descascado
pela metade? Uma vez mais, descobriu que estava errada, porque o
método de Katherine sempre fazia uma fila se formar. Naquela dia,
os aldeões já esperavam antes mesmo que elas tivessem chegado
para armar a mesa.
— Olá, Katherine! — o dono do açougue chamou quando as
moças começaram a descarregar a mercadoria.
Todos conheciam Katherine. Era o nome de Ingrid que tinham
dificuldade em lembrar. Ela sabia que nenhuma das duas era a mais
bela das redondezas, mas Ingrid beliscava as faces numa tentativa
de lhe dar um tom rosado e mantinha as roupas limpas. Lia livros e
conseguia manter uma conversa, ao contrário de muitos dos
aldeões. Era assim tão difícil para eles lembrarem o seu nome
também?
— Olá, senhor Adam! — respondeu Katherine, porque, claro, ela
também se lembrava do nome de todos.
— Suas maçãs parecem ainda mais bonitas hoje do que na
semana passada. Algo de novo à venda?
Ingrid detestava perguntas idiotas.
— A colheita é o que é — replicou de pronto. — Não temos como
fazer crescer feijoeiros da noite para o dia.
Adam olhou para ela de um jeito estranho, e ela soube que tinha
ido longe demais. Katherine tocou em seu ombro.
— Por que não me deixa fazer as vendas esta manhã enquanto
você dá uma volta? — Katherine sugeriu com leveza. — Ficarei bem
sozinha.
Aquilo seria melhor tanto para Katherine como para Ingrid;
Katherine sempre vendia mais quando estava sozinha. Ela tinha
aquela personalidade gentil e paciente que os aldeões adoravam, tal
qual um cachorro diante de uma tigela de água.
Ingrid encarou Adam.
— Muito bem. — Apanhou algumas maçãs e guardou-as num
saco pequeno. Às vezes ela conseguia vendê-las em outras
barracas. — Volto logo. Não dê a mercadoria de graça.
Esse era outro problema. Katherine se deixava levar pelas pobres
almas. Se alguém babasse pelas maçãs, mas não tivesse dinheiro
para comprá-las, Katherine às vezes se apiedava e as dava de
graça. Isso enfurecia Ingrid. Elas nunca receberam nada de graça.
Por que os outros tinham que receber?
Andando a esmo em meio às barracas do mercado, Ingrid virou a
cara para o cheiro de peixe no gelo de uma barraca e para um
vendedor de sabonetes. Eram sempre os mesmos produtos, toda
semana. Até mesmo a liberdade do mercado estava começando a
perder seu apelo. Ela parou um momento numa barraca de joias
para admirar um cordão de pérolas negras à mostra. Nunca antes
vira pérolas da cor de ébano. Por certo não eram da região. Tocou
numa das pérolas com a ponta do dedo.
— Vê algo de que gosta, moça bonita? — o dono da loja
perguntou.
— Sim, esta…
— Ele falava comigo — explicou uma mulher ao seu lado.
Ingrid ergueu o olhar. A mulher sem dúvida era nobre. O vestido
cor de violeta era feito de seda pura e na cabeça ela usava o mais
belo lenço diáfano de marfim. Muitos braceletes de pérolas brancas
adornavam as luvas também de um tom marfim, seu rosto estava
muito bem maquiado, e ela cheirava a rosas — era evidente que
usava perfume. A boca de Ingrid se abriu de leve. Aquele era o tipo
de mulher que atraía atenção e respeito. Esse era o tipo de mulher
que ela queria ser.
— O que gostaria hoje, madame? — o vendedor perguntou à
nobre, ambos ignorando Ingrid.
— Estas. — A mulher suspendeu o colar de pérolas negras. Nem
sequer as experimentara.
Ingrid se afastou, sentindo-se desolada.
A vida não era justa. Ela poderia ser como aquela mulher —
imponente, bela, controlada — se tivesse recursos. Recursos que,
claro, jamais teria vivendo numa fazenda mofada. Desejava poder
se tornar uma pessoa completamente diferente.
— Um desejo, minha dama?
Ingrid continuou andando. Era óbvio que quem quer que fosse
não estava falando com ela. Já aprendera aquilo.
— Eu disse, gostaria que eu lhe concedesse um desejo, minha
dama?
Ingrid se virou.
O homem era idoso; tinha o rosto maltratado pelo tempo, e a
barba branca e grisalha estava comprida demais. Os olhos
cinzentos e interessados dele prenderam os dela. Ingrid desviou o
olhar para a banca do velho, repleta de quinquilharias de todos os
formatos e tamanhos. Ele também tinha espelhos, vasos, baús e
pequenos frascos do que pareciam ser especiarias. Ela voltou a
olhar para ele, que continuava a encará-la.
— Está falando comigo? — Ingrid perguntou.
Ele não respondeu à pergunta.
— Você parece alguém que gostaria de ter um desejo atendido.
— Ele apontou para o saco dela. — Eu lhe concederei um se me der
uma maçã.
Ela não era tola.
— Espera que eu acredite que me concederá um desejo em troca
de uma fruta?
Ele sorriu de leve. Faltavam-lhe diversos dentes.
— Sim. Eu poderia até lhe oferecer algo melhor do que um
desejo, se preferir. Eu poderia lhe tornar minha aprendiz.
Ingrid não pôde deixar de rir.
— E por que eu haveria de querer isso?
— Para sair da fazenda, claro, e traçar um novo caminho —
argumentou, e ela parou de rir. — É isso o que quer, não? — Ele
saiu de trás da banca e se moveu na direção dela. — Eu posso
ensiná-la a realizar seus próprios desejos. Posso lhe dar poder.
Ingrid sentiu um arrepio. Era como se ele conhecesse seus
pensamentos mais íntimos. Como isso era possível? Olhou a
mercadoria da banca dele com mais atenção. Avistou as penas
negras, o caldeirão, as garrafinhas de poções com símbolos de
veneno. De súbito, percebeu como os aldeões ficavam nervosos ao
passarem por ali. Aquele homem era temido e, por isso, ela estava
maravilhada.
Seria possível? Os boatos sobre as artes das trevas que o pai
mencionava há tanto tempo… seriam verdadeiros?
— O que quer em troca? — perguntou, tentando passar mais
confiança do que sentia.
— Como disse, preciso de um aprendiz — respondeu. — Os
meus olhos já não são tão bons quanto minha cabeça. Preciso de
ajuda para preparar as minhas… coisas… e, em troca, partilharei
tudo o que aprendi nesta vida. — Ele segurou-lhe a mão. Suas
unhas eram escuras e sujas. Ela teve que se obrigar a não afastar a
mão. — Temos um acordo, jovem Ingrid?
Ela não perguntou como ele sabia seu nome. Seu coração batia
forte.
— Sim.
— Ingrid! — A voz de Katherine surgiu no corredor da feira. Ela
correu na direção de Ingrid, que soltou a mão da do homem. O rosto
de Katherine estava corado de animação. O sorriso dela
desapareceu quando olhou de Ingrid para o homem, mas voltou a
se iluminar num instante quando se concentrou de novo na irmã. —
Estava à sua procura! Você jamais vai acreditar no que aconteceu.
O rei em pessoa solicitou que as minhas maçãs fossem servidas em
seu próximo jantar! Ele adora as Vermelho Fogo. — Ela gargalhou
com alegria e agarrou as mãos da irmã. — Não é simplesmente
mágico?
— Sim — Ingrid concordou, olhando para seu novo professor em
vez de para Katherine. — De fato, mágico.
CAPÍTULO SETE

Branca de Neve

A RAINHA A QUERIA MORTA?


Isso era inconcebível. Não podia ser possível! Devia ter ouvido
mal ao caçador. Mas ele apontara uma faca para ela e agora estava
ajoelhado no chão, chorando.
Poderia ser verdade?
Seu coração batia tão rápido que ela temia que fosse escapar do
peito. O vento parecia ter ficado mais forte, rugindo em seus
ouvidos. Todos os nervos do seu corpo lhe diziam para deixá-lo ali,
mas ela se sentia enraizada onde estava. Aquilo não fazia sentido.
Tia Ingrid quer que ele me mate?
A curiosidade levou a melhor.
— Por quê? — sussurrou com voz trêmula.
O caçador não ergueu o olhar. Voltou ao seu hábito de evitar
contato visual.
— Ela tem inveja de você, assim como tinha inveja da sua mãe, a
antiga rainha — explicou. Fez uma pausa, parecendo ter
dificuldades para encontrar as palavras. Seu longo suspiro se
transformou num choro. — Ela sofreu o mesmo destino que a rainha
deseja para você, sinto dizer.
Sua mãe? Branca sentiu os joelhos cederem.
— Não! Isso é impossível!
— É a verdade — jurou o caçador, voltando a inclinar a cabeça.
— Você não é a primeira pessoa que a rainha tentou eliminar. —
Olhou ao redor. — Lamento dizer que a morte da sua mãe
aconteceu pelas mãos da minha família, lamento dizer.
Branca estava atordoada demais para conseguir falar. O homem
só podia ter enlouquecido. Sua mãe não fora morta. Ela adoecera…
não?
Lembrava-se da voz do pai falhando ao lhe dar a notícia. Branca
já estava na cama, à espera de que a mãe viesse lhe dar boa-noite,
quando o pai entrou com lágrimas escorrendo pelas faces. Ela de
pronto soube que havia alguma coisa errada, mas jamais teria
imaginado que algo tivesse acontecido à sua mãe forte e radiante,
uma mulher que sempre parecera tão cheia de vida. Vira a mãe na
manhã daquele dia, antes de ela sair para lidar com assuntos
oficiais — que tipo de assuntos, Branca não sabia. Mas isso não era
algo extraordinário. A rainha sempre estava fora se encontrando
com as pessoas do reino e até fora dele, ouvindo queixas, mediando
diferenças, tentando solucionar os problemas mais recentes…
inclusive uma terrível peste que se espalhara. A mãe beijara o rosto
de Branca e tomara seu rumo, dizendo que voltaria para casa antes
do pôr do sol. À noite, ela estava morta. Mas a peste estivera se
espalhando de modo acelerado naquele período, matando tantos
nos reinos vizinhos, e diziam que sua evolução era muito rápida.
Branca ficara chocada, mas jamais questionara a causa da súbita
morte da mãe…
Olhou outra vez para o caçador. Seria possível que ele estivesse
dizendo a verdade? Sua mãe fora mesmo morta pela própria irmã
em vez de levada por uma doença?
De repente, sentiu uma necessidade premente de ouvir o que ele
tinha a dizer sobre a mãe. Branca precisava ouvir se a Rainha
Katherine fora traída por Ingrid, que depois assumira a coroa. Sentiu
uma onda de adrenalina misturada a uma raiva súbita correr pelas
veias. Não sairia dali até saber exatamente o que acontecera há
tantos anos.
— Caçador, conte-me o que sabe — disse, a voz mais firme do
que nunca. Sabia que a situação era delicada. A faca ainda estava
caída no chão, a poucos metros dos dois. — Por favor, senhor. O
senhor me deve ao menos isso. — Sentia as mãos tremendo de
novo. Tentou mantê-las paradas.
O caçador encarou o chão.
— A sua mãe morreu pelas mãos do meu pai, sinto dizer. Ele era
o caçador do castelo antes de mim, mas seu trabalho para a rainha
atual ia além de caçar e buscar comida. Disseram-me que ela o
incumbiu de matar sua mãe para poder se casar com seu pai.
— Não — ofegou Branca. Parecia que o mundo girava. — Não! —
disse com mais força, desejando que as palavras dele não fossem
verdade.
— Sim, Vossa Alteza — argumentou o caçador, com voz trêmula.
— Meu pai me confessou isso em seu leito de morte. — O rosto
dele se crispou. — Parece que meu pai era um servo pessoal da
rainha, assim como eu me tornei. Sua tia lhe disse que, se ele se
alinhasse a ela, teria grandes poderes assim que ela assumisse o
trono. E ele acreditou. Meu pai morreu no inverno passado, mas não
quis levar esse ato de maldade consigo para o túmulo. Esse feito o
torturou por muitos anos. — Os olhos do caçador estavam
desvairados. — Para quem eu poderia contar isso depois que
descobri? Alguém acreditaria em mim? O rei há tempos havia
desaparecido. As histórias de outras maldades, feitas aos próprios
súditos dela, são terríveis. Tenho família. Eu não podia… Ela é
poderosa demais. — O homem enxugou a testa. — Mas não vou
repetir os erros do meu pai. Esconderei a minha família antes de
voltar para enfrentar o meu destino. Não colocarei o seu coração
numa caixa para entregar à rainha como um porco premiado numa
bandeja.
Branca fechou os olhos com força, a ideia era quase insuportável.
Sua mente girava. Como aquilo podia ser possível? Era doentio.
Sua mãe confiava em sua parente. Fizera de tia Ingrid sua dama de
companhia. Ela era a madrinha de Branca. Recebera um lar no
castelo. Sua tarefa era ajudar a proteger a irmã, mas, em vez disso,
a tia ordenara o impensável. Roubara a coroa de sua mãe. O
marido. A filha.
Por quê?
Porque ela é a Rainha Má, uma vozinha em sua cabeça
respondeu. Havia um motivo para Branca ter ouvido as pessoas
sussurrando esse apelido. A tia não demonstrava misericórdia.
Disso Branca sabia. Em parte, era por isso que sempre temera estar
na presença da rainha nos últimos anos. Por tanto tempo, ela vivera
à sombra da tia, temendo que a mulher um dia se cansasse por
completo dela e a mandasse para a rua. Mas o curioso é que jamais
imaginara que a Rainha Ingrid mandaria matá-la.
— Sinto muito, princesa — lamentou-se o caçador. Os olhos
verdes dele já não pareciam mais fortes e estoicos; pareciam tristes
e temerosos. — Conheço as consequências que enfrentarei se ela
descobrir que não fiz o que me ordenou, mas não posso matar você.
Não continuarei a destruir o nome de nossa família por ordens dela.
A benevolente Rainha Katherine, sua amada mãe, não estava
mais ali por causa da inveja e da raiva de sua tia. Como Branca
pôde ter sido tão cega? Ficou paralisada. E quanto ao pai? Teria de
fato fugido ou teria a tia dado um fim a ele também? Quem mais
morrera porque ela estivera ocupada mantendo a cabeça baixa?
— Por favor, Vossa Alteza — disse o caçador, uma vez mais
sobressaltando-a. — Você é a única esperança do nosso reino. É a
única que pode deter a Rainha Má!
Ambos ouviram um galho se partir no mesmo instante e se
assustaram. Branca olhou ao redor. Não havia ninguém ali. Nem na
campina, nem no bosque ali perto. Mas havia um princípio de
nevoeiro se formando pela floresta, como uma cobra serpenteando
pela grama. Os dois repararam nisso.
— Você tem que ir, rápido! — exclamou o caçador, levantando a
voz. — A rainha… ela tem olhos em toda parte. Pode nos observar.
Ela já pode saber da verdade. Fuja, criança! Fuja! Esconda-se! Na
floresta! Vá!
Uma nova sensação assolou Branca. Uma com a qual não estava
familiarizada — uma obstinação. Primeiro a tia havia lhe tirado a
mãe, depois o pai; agora queria acabar com Branca e seu lar. A
Rainha Má queria lhe tirar tudo.
Branca de Neve se aproximou do caçador e o encarou.
— Não vou permitir que ela faça isso.
Em seguida, disparou para o meio das árvores e do nevoeiro,
escondendo-se.

Cada árvore fantasmagórica era igual: decrépita, desprovida de


casca e negra como a penugem de uma gralha, sem uma única
folha nos galhos. As árvores nessa floresta de fato estavam todas
mortas. Os troncos eram grossos e nodosos. Os galhos se
estendiam e se retorciam por cima e por baixo um dos outros, por
cima e por baixo dos troncos, cobrindo o caminho com videiras nas
quais seria muito fácil tropeçar ou se prender. Branca aguçou os
olhos, tentando andar firme entre elas, temendo cair e não ser mais
capaz de se levantar. Ninguém viria procurá-la. Se viessem, seria
para terminar o trabalho do caçador. Ela seguiu andando, sentindo o
ar esfriar e a névoa se espessar como uma sopa de ervilhas, e não
demorou até que não enxergasse um palmo à sua frente. Um corvo
grasnou. Ou talvez fosse uma gralha, que havia chegado ali para
vê-la morrer. Como fora tola, cantarolando e cantando, pensando
em Henri e nas flores que deveria levar de volta para o castelo, sem
perceber que aquele raro passeio era de fato uma desculpa que a
levaria à sua morte. Para onde estava indo, de todo modo? Cada
volta que dava parecia idêntica. Estaria andando em círculos?
Parou ao ouvir um som. Não era um pássaro. O vento parecia ter
desaparecido agora que ela penetrara tão no interior da floresta,
mas havia um uivo nítido. Espreitou em meio à névoa, mas mal
enxergava o céu através dos galhos retorcidos e mortos. Escutou
com mais atenção e se perguntou, preocupada, se estaria ouvindo
espíritos. Fantasmas das almas perdidas como ela, que estavam
fadadas a vagar naquela floresta para sempre.
Controle-se, Branca. Espíritos não existem.
A única coisa atormentando-a é o seu passado.
O caminho ficava cada vez mais escuro à medida que adentrava
a floresta, e ela não estava gostando da aparência de algumas das
árvores, que estavam apodrecidas, com buracos nos tocos, que
mais pareciam olhos. Tinha a sensação enervante de que a
encaravam, o que era tolice, de fato, mas ela já estava agitada. Ao
tropeçar junto a uma árvore com buracos parecidos com olhos
afiados e uma boca que gritava, ela recuou. Mas o terreno atrás de
si era instável, e ela se sentiu caindo num buraco cavernoso.
Gritando, Branca despencou na escuridão, mergulhando numa
lagoa turva. Rapidamente, ela se levantou e tentou se recuperar. Foi
então que viu duas formas boiando na água, indo na sua direção.
Eram troncos? Ou seriam crocodilos? Ela tentou se mover mais
rápido para sair logo da água, mas o peso da saia molhada a
impedia. Quando, por fim, chegou à margem e conseguiu se
suspender para fora, ainda se sentia aprisionada. Onde estava?
Numa caverna?
Branca afastou os cabelos molhados do rosto e olhou ao redor, a
vista logo se ajustando à luz fraca. Haveria uma abertura logo à
frente? Era possível ver uma divisão entre as árvores ao longe.
Talvez fosse uma saída! Apressou-se para a clareira, sentindo que
conseguia voltar a respirar conforme o mundo uma vez mais se
abria ao seu redor. Enquanto corria, seu sapato se prendeu em algo
e ela tropeçou, aterrissando com força de joelhos e mergulhando as
mãos na terra. Olhou para trás e viu a raiz comprida de uma árvore
na qual o pé se prendera. Tentou soltá-lo e ouviu um rasgo. A saia
estava presa a um galho grosso junto ao chão. Era como se a
árvore quisesse mantê-la prisioneira da floresta para sempre.
Talvez ela devesse apenas permitir.
A raiva que sentira há poucas horas da tia, do caçador, e também
do pai e da mãe, por não enxergarem a Rainha Má como de fato
era, tinha cedido lugar à autopiedade. Era óbvio que estava
completamente sozinha no mundo e que fora ingênua o bastante ao
acreditar na mais terrível das inimigas. Só o que lhe restava era
chorar.
Branca ergueu a cabeça. Lá estava aquele sussurro de novo.
Assemelhava-se ao barulho de folhas se mexendo — se houvesse
folhas vivas nas árvores ou secas no chão. Mas os galhos e o solo
estavam nus. Era como se o vento a seguisse. Seria possível que
sua mente a estivesse enganando? Ela fechou os olhos por um
momento e prestou atenção.
Vou te pegar!, ouviu a mãe exclamar. Quase conseguia enxergar
a sua versão mais jovem correndo diante da mãe no jardim com o
viveiro. Peguei você! Eu sempre pego!, diria ela.
Se a rainha a flagrar aqui de novo, princesa, ela a castigará a
lavar os pratos junto comigo!, ouviu outra voz exclamar.
Não havia ninguém ali, mas Branca conhecia aquela voz. Era da
senhora Kindred, a cozinheira que sobrevivera às demissões da tia
ao longo dos anos. A mãe de Branca sempre a encorajara a fazer
amizade com todos que as ajudassem no castelo, e a senhora
Kindred sempre fora a sua pessoa predileta com quem conversar.
Conseguia se ver sentada numa cadeira, com não mais do que seis
ou sete anos de idade, observando a mulher picar cebolas,
cenouras e alho-poró, despejando tudo num caldeirão gigante de
fazer caldo. Ela e a senhora Kindred só conseguiam ter alguns
instantes juntas por dia nos últimos tempos — suspeitava de que a
tia tivesse proibido a cozinheira de conversar com ela, pelo modo
com que era dispensada —, mas, naquela época, ela sempre
atormentava a cozinheira com as suas perguntas. “Como consegue
cortar as cenouras em pedaços tão pequenos? Por que o alho-poró
é sujo por dentro? Quais temperos você coloca? Como sabe quanto
colocar?” Em certa ocasião, importunara tanto a cozinheira que a
senhora Kindred a pegou no colo, segurando-a junto ao peito, e
deixou-a mexer a panela. No fim, acabou ensinando-a a cortar em
cubos e fatiar também, uma vez que Branca não parava de falar. À
hora do jantar, Branca estava convencida de ter preparado sozinha
a refeição inteira. Também tivera muito orgulho ao carregar os
pratos para a sala de jantar naquela noite. Andara tão devagar que
nem reparara que todos à mesa discutiram até tarde. Na verdade,
eram apenas seus pais e a tia. Acreditava que eram muito felizes —
todas as lembranças que tinha deles tendiam a ser boas, mas,
dessa vez, viu aquela lembrança de maneira diferente.
Ninguém a notara a princípio. Os pais estavam sentados um ao
lado do outro, com tia Ingrid diante deles. Normalmente teriam
elogiado a sopa, mas, na ocasião, estavam bravos demais para
notar que ela entrara na sala. Nunca vira a tia erguer a voz para seu
pai antes, mas eles por certo discordavam de algo. Como dama de
companhia de sua mãe, Ingrid sempre andava alguns passos atrás
do rei e da rainha, aguardando instruções, e só falava quando lhe
dirigiam a palavra em situações públicas. Claro que Branca os vira
em situações mais informais quando estavam nos aposentos
particulares, mas sempre havia um muro impenetrável entre seu pai
e sua tia. Então por que a mãe pediria que Ingrid fosse sua dama de
companhia se os dois se desgostavam tanto? Ela nunca entendera
como o pai se apaixonara por uma mulher como tia Ingrid. A
lembrança daquela noite só reforçava a sensação de que havia algo
estranho entre eles. Tia Ingrid e seu pai, sem dúvida, estavam
zangados um com o outro. Branca só desejava saber o motivo.
Surgiram imagens da mãe com a tia. A mãe colocando um vestido
azul-marinho com pontos de cristal antes de alguma festa. A tia
escovando seus cabelos pelo que pareciam ser horas enquanto
falavam sobre a agenda e os compromissos da rainha. Teria sido
tudo um ardil por parte da tia? Secretamente estivera maquinando a
morte da Rainha Katherine desde o instante em que colocara os pés
no castelo? Ou ainda antes disso? Mas elas eram irmãs! Branca
não tinha irmãos, mas não conseguia se imaginar um dia sentindo
ódio por um.
Branca ouviu mais sussurros. Seriam espíritos ou a sua
imaginação? Esforçou-se para se levantar, mas tanto a saia quanto
o pé ainda estavam presos no galho espinhoso.
Você se acha tão esperta, não?
Era a voz do pai, brincando com ela. Conseguia visualizá-lo
sentado na sala do trono, aguardando visitantes, e Branca,
conseguia se lembrar, ria com a mãe. As duas estavam sempre
aprontando com ele. Lembrava-se de um dia tê-lo chamado por
outro nome de propósito. Chamou-o de Fritz, e ele a chamou de
Ediline — a mãe era Frieda. Depois fingiram ficarem bravos uns
com os outros por usarem os nomes errados. Certa vez, Branca
convencera dois dignitários estrangeiros a chamarem seu pai de
Fritz repetidas vezes. Depois ela e a mãe surgiram das sombras
para que ele soubesse que aquilo tinha sido uma brincadeira.
— Só você, minha pequena Ediline, poderia me fazer rir assim —
ele lhe disse. — Você é a luz da minha vida.
— Das nossas vidas — dissera a mãe.
Tia Ingrid roubara tudo aquilo.
Branca ergueu as mãos para o rosto e voltou a chorar. Pelos seus
pais, por si própria e pela vida que a tia roubara deles. Em vez de
questioná-la sobre o paradeiro do pai ou sobre ter fechado os
portões do castelo, ela desviara os olhos. Aceitara que a tia
dispensasse grande parte dos criados do castelo sem jamais
questionar por que ela desaparecia dentro dos seus aposentos
privativos durante dias. Por que permitira que a tia parasse de
negociar com outros reinos? Que fizesse tantas exigências aos seus
súditos, obrigando-os a pagar impostos onerosos? Por que deixara
que todos vivessem com medo? Ao contrário dos pais, ela só fizera
com que o reino morresse nos galhos, igual àquela floresta
assombrada.
No que se esperava de princesas, ela era uma bem lamentável.
Lágrimas deslizaram por sua face, escorrendo pelo queixo e
caindo nas mãos, que ainda cobriam o rosto.
Você vai desistir?
Branca enxugou as lágrimas e se sentou ereta.
— Mãe?
Era a voz da mãe, clara como água, mas ela não estava ali de
fato. Era apenas outra lembrança. Outro momento para dilacerá-la
ao meio.
Você vai desistir?, perguntara a mãe. Mas em que momento isso
foi dito? E para quem?
Deitou-se ali e tentou se lembrar de onde vinham aquelas
palavras. Por fim, lembrou-se. Estava sentada na carruagem real.
Lembrava-se da sensação da mão da mãe segurando a sua, muito
menor. A carruagem dera uma sacudida abrupta e parara. Houvera
gritos, guardas saltando do carro e pessoas correndo. A mãe se
empertigara e olhara pela janela.
— Não! — exclamara. — Soltem-na! — Ela olhou para a filha. —
Fique aqui, Branca.
A menina era curiosa demais. Saíra da carruagem e fora atrás da
mãe. Os guardas estavam de pé junto a uma mulher idosa, que
gritava. A mãe os deteve de pronto e se ajoelhou ao lado da mulher.
Ela não aparentava estar ferida, mas parecia muito triste. Este
também era o estado de suas roupas — maltrapilhas e todas
remendadas, bem semelhantes às de Branca nos últimos tempos.
Apoiado ao chão ao seu lado, havia um cesto vazio. Ao lado dele,
apenas uma maçã podre jazia na lama.
— Farei com que os guardas a escoltem de volta para sua casa.
Onde você mora? — perguntou a mãe de Branca.
— Eu não tenho casa, minha rainha — explicou a mulher. — A
terra é meu lar, e tudo de que preciso vem dela.
— Vossa Majestade, precisamos seguir pelo caminho — um
guarda interrompeu.
Sua mãe não se mexeu.
— Só depois que eu terminar de falar com esta mulher — ordenou
numa voz determinada. Voltou-se para a pedinte. — O mundo é um
lar muito bonito, mas eu me sentiria melhor se lhe déssemos roupas
mais quentes que as que usa e talvez um pouco de comida. — A
mãe voltou apressada para a carruagem e apanhou a cesta de
piquenique que sempre as acompanhava nos trajetos curtos. Branca
sabia que estava cheia de comida e que elas quase nunca comiam
tudo o que nela havia. — Aceite isto. — Desfez o laço da capa ao
redor do pescoço. — E isto também. Ficará aquecida em sua
jornada. — Branca observou maravilhada a mãe se esticar e
abraçar a mulher. — Desejo-lhe tudo de melhor, minha querida.
— Que Deus a abençoe, minha rainha — disse a pedinte.
Em seguida, Branca e a mãe retornaram para a carruagem.
Ambas acenaram ao passar pela mulher.
— Pequenas gentilezas são muito importantes. — Lembrava-se
de a mãe ter lhe dito enquanto se afastavam. — Um dia estive na
mesma situação em que ela está agora. Vim do nada.
— Não sei o que eu faria se não tivesse nada. — Branca se
lembrava de ter comentado.
A mãe levantou o queixo da filha e fitou-a nos olhos.
— Se esse dia chegar, você vai desistir? Não. Vai seguir em
frente assim como eu fiz. Eu não desisti, e alguém apostou em mim.
— Ela se aprumou e aprofundou o olhar. — Sempre se lembre do
seu passado, Branca, e permita que ele a ajude a tomar decisões
quanto ao seu futuro. Mas nunca, jamais desista.
A lembrança a sobressaltou. Sabia que a mãe sempre fora
generosa e gentil, mas esquecera-se há muito daquela lembrança.
E ela agora parecia tão importante.
De repente, sentiu o ar frio e ouviu outra voz.
Suas lágrimas não mudarão seu destino!
Era tia Ingrid. Ela lhe dissera essas palavras um dia depois que o
pai desaparecera — banido, assassinado, quem é que sabia? —,
quando Branca se recusara a sair do quarto para jantar com ela. A
tia mandara chamá-la duas vezes, mas Branca não tinha saído.
Estava devastada. Em vez de se apiedar da criança, tia Ingrid se
mostrara ultrajada. Invadira o quarto da sobrinha e despejara nela
toda a sua fúria.
Como as irmãs eram diferentes. E foi então que entendeu: era
aquela quem governava o reino? Uma mulher cujas palavras e cujos
atos cruéis se espalhavam como veneno? Não seria Branca a líder
por direito na ausência do pai? Já estava crescida. O pai começara
a governar com apenas dezesseis anos, um ano a menos do que
ela tinha agora. A mãe nunca se esquecera de onde viera. Branca
faria isso? Ficaria simplesmente deitada ali na grama e desistiria de
si mesma? Do seu reino?
Ou usaria o conhecimento que seus pais lhe passaram para
mudar seu futuro?
Você vai desistir? Não. Vai seguir em frente, assim como eu fiz.
Branca cerrou o maxilar e, dessa vez, usou todas as suas forças
para se soltar daquele galho. Revirou-se e puxou, e, por fim,
libertou-se dele. Em seguida, levantou-se, deixando que o vestido
que tanto a maravilhara naquela mesma manhã se rasgasse. Era só
um vestido. Arranjaria outro. Com um suspiro profundo, recomeçou
a andar.
Não importava quanto demorasse, ela vagaria por aquela
escuridão até encontrar a luz.
CAPÍTULO OITO

Ingrid

Vinte e três anos antes

— CONCENTRE-SE — ORDENOU o mestre.


Ingrid fez o que lhe era dito e fechou os olhos, bloqueando os
sons externos. Sentia o ar entrar e sair dos pulmões. Esperou até
conseguir sentir a ponta dos dedos e até mesmo o peso dos dedos
dos pés antes de imaginar o que queria que acontecesse.
Luz, luz!, disse em pensamento, e, ao abrir os olhos, lá estava, de
fato, uma chama que há instantes não havia no topo do pavio da
vela.
— Muito bem! — elogiou seu mestre. Estavam de pé no meio da
loja, trabalhando antes de abrir as portas para mais um dia. Antes e
depois do expediente, e também aos domingos, enquanto todos
estavam em casa, ele lhe ensinava tudo o que sabia sobre magia e
o funcionamento dos feitiços. Ingrid sorvia tudo como se fosse um
delicioso elixir. Nunca lhe fora dada a liberdade de aprender assim
antes. O pai só quisera que ela cuidasse da casa e ficasse fora do
seu caminho. Tudo o que interessava ao fazendeiro era a plantação.
Mas seu mestre estava ali para alimentar a sua alma.
Katherine ficara devastada quando Ingrid anunciara ao jantar que
deixaria de se dedicar à fazenda para trabalhar no vilarejo. Não
disse em que lugar, e o fazendeiro não perguntou. Ela lhes disse
que era uma boa oportunidade, uma que um dia lhe permitiria sair
de casa em definitivo. Isso pareceu agradar ao fazendeiro, que
nunca gostou dela como gostava de Katherine.
Em troca de permitirem que continuasse a morar com Katherine,
ela disse ao fazendeiro que lhe daria metade do seu salário.
Detestava ter que dividir o dinheiro que receberia, mas seu novo
mestre não dispunha de um lugar onde ela pudesse ficar, e ela não
iria dormir no chão da loja. Era uma tortura deixar a vida e a energia
da vila todas as noites para voltar àquela triste fazendinha, mas
havia algo bom: sua irmã estava ali. E, assim, continuou fazendo o
trajeto de ir e vir todos os dias, sonhando com o momento em que
conseguiria abrir sua própria loja e ter os meios de deixar o
fazendeiro para sempre. Levaria Katherine consigo, claro. Jamais
deixaria a irmã.
— Concentre-se na chama — instruiu o velho. — Veja se
consegue deixá-la mais brilhante. Maior!
Ingrid se concentrou, focalizando a chama, visualizando seu
objetivo. A chama começou a girar como um ciclone e espiralar até
quase chegar às vigas. Ingrid e seu mestre assistiram àquilo
maravilhados, Ingrid perguntando-se se a chama acabaria
queimando o lugar, mas, em seguida, o mestre ordenou que a
chama se extinguisse, e eles foram deixados novamente na
escuridão quase total.
— Acho que basta por hoje — anunciou o mestre, parecendo um
pouco abalado.
— Mas acabamos de começar! — protestou Ingrid.
— E você quer sempre acelerar tudo! — rebateu ele, apressando-
se para guardar todos os livros que Ingrid abrira. Estavam repletos
de feitiços que ela queria experimentar: poções do amor, cremes
para deixar a pele das pessoas leitosa, até mesmo feitiços que
tornariam alguém belo. Ela ansiava cada vez mais por esse tipo de
coisa nos últimos tempos. Seu rosto acabara se queimando com o
vento por causa dos trajetos diários, e as mãos estavam cheias de
farpas e cortes por todo o trabalho na loja — como as mãos
calejadas da irmã, embora sem as manchas deixadas pelas maçãs.
E, mesmo assim, mais e mais homens começavam a notar
Katherine, enquanto Ingrid se sentia cada dia mais como uma velha.
O fazendeiro nunca recebia pretendentes atrás dela. Só iam atrás
de Katherine.
Bem, ela não precisava da ajuda do fazendeiro. Não precisava da
ajuda de ninguém. Só precisava de um bom feitiço.
— Teremos tempo para praticar mais depois que as tarefas forem
feitas e os clientes partirem — disse o mestre, empurrando-lhe uma
caixa repleta de frascos para serem limpos e preenchidos com elixir.
— Não seja impaciente. — Ele claudicou até a frente da loja para
destrancar a porta.
Essa era a sua crítica constante: ela não tinha paciência. E isso
era verdade.
A moça queria saber tudo o que podia sobre magia, tudo o que
ele sabia, e queria saber já.
O sino na porta da loja soou, e uma mulher com cabelos grisalhos
e crespos entrou. A primeira cliente do dia. Ingrid suspirou e
começou a limpar os frascos. Uma vez que os clientes começavam
a chegar, à procura de suco de beterraba e erva-de-santiago, ela
teria pouco tempo para fazer qualquer outra coisa que não os
auxiliar e manter o lugar apresentável. Sem demora, preparou uma
bebida cuja função era revigorar os ânimos. Da última vez em que
preparara aquilo, a porção inteira foi vendida num único dia.
Para uma loja envolta em mistério, eles tinham muitos fregueses.
Alguns vinham de longe, e outros vinham fazer visitas privadas ao
seu mestre, não confiando na aprendiz para lhes fornecer o que
necessitavam. Ela odiava esse tipo de gente. E odiava as tarefas
exigidas de um aprendiz — a limpeza, o conserto de itens que
tinham sido manipulados de forma incorreta, a varrição da loja. Ela
não era uma criada, apesar de como passara os dias antes de
trabalhar ali. Queria ser igual ao mestre, mas esse tipo de confiança
levava tempo.
Lá estava aquela impaciência de novo, esgueirando-se nela.
— Ingrid? — o mestre a chamou. — A senhora Yvonne e eu
vamos sair juntos para apanhar algumas ervas.
— Vou buscar meu manto para ir com vocês — disse ela.
Precisava de diversas ervas para uma receita de creme facial que
queria experimentar, que, supostamente, lhe daria uma pele mais
viçosa.
— Não — o mestre retrucou de chofre, antes de erguer o capuz
sobre a cabeça para esconder o rosto. Ela suspirou quando a
senhora Yvonne fez o mesmo. — Cuide da loja. Voltaremos logo.
Não voltaram. À medida que o sol se erguia no céu e nenhum
cliente entrava, Ingrid foi ficando cada vez mais irritada por não ter
tido permissão de acompanhá-los. Por que seu mestre tentava
refreá-la em vez de ensinar-lhe todos os caminhos conforme
prometido? Não seria ela a herdeira por direito da loja? Não deveria
saber tudo sobre magia, para o bem de ambos? Por que não
permitia que as suas habilidades se fortalecessem do modo que ela
sabia ser capaz?
Por temer o poder que tu exerces, o mestre o teu progresso limita.
Um escudo ele levanta.
Ingrid se virou.
— Quem disse isso?
Olha com atenção dentro deste lugar; imenso poder encontrarás.
Junto com o conhecimento para deixá-lo para trás.
Imenso poder? Onde? A loja não era tão grande assim. Seus
olhos percorreram as prateleiras repletas de livros, garrafas de
poções, urnas, frascos e alguns ratos e pássaros vivos que, de vez
em quando, usavam em feitiços. Nenhuma daquelas criaturas sabia
falar, claro.
— Revele-se! — ordenou, a voz tão estrondosa que a vela que o
mestre apagara voltou a se acender.
Está claro que tua arte é intensa e perfeita. Acende-se no olho da
tormenta. A espera para te tornares tua própria mestra não será
lenta.
Ingrid continuou a procurar pela voz. Nada chamava sua atenção
na loja, então ela entrou na sala dos fundos. Os itens no depósito
estavam, em sua maioria, quebrados ou já não tinham mais valor.
Seu mestre nem sequer se dava ao trabalho de lhe dizer o que eram
muitos daqueles objetos. Ficava dizendo que precisava se livrar
dessas peças, mas que havia um sistema para fazer isso. Itens com
propriedades sombrias não podiam ser só descartados como lixo. “A
magia quebrada é o tipo mais perigoso que há”, dissera-lhe um dia.
Também parecia não haver ninguém ali, no entanto seus instintos
lhe diziam que a voz fantasmagórica estava por perto. Foi direto
para a estante nos fundos do cômodo, limpando a poeira e
esticando a mão por trás dela, onde deveria haver uma parede. Em
vez disso, encontrou um entalhe que revelou um nicho secreto. Com
cuidado, afastou a estante e viu uns trapos ordinários. Levantou-os
e encontrou… um espelho?
O vidro estava escurecido de tão sujo, mas não parecia estar
quebrado. A moldura dourada, com serpentes entrelaçadas, tinha a
pintura lascada e marcas de cortes, mas ela sabia que um dia fora
impressionante. Ingrid não conseguia entender o motivo de o mestre
deixar um item como aquele acabar daquele jeito.
Não temas a magia que não atinas. Entrega-te a mim e torna-te a
mais bela destas terras.
Ingrid cambaleou para trás quando fumaça saiu do espelho. A voz
vinha de dentro dele. E, pior, parecia estar lendo seus pensamentos.
Como?
— Teu destino não está selado — disse o espelho numa voz
grave. — Toca no espelho. Tudo será revelado.
Ingrid encostou a palma no espelho frio e sentiu uma
surpreendente dor ao longo do braço. Mas não se afastou. Com a
mão no vidro, conseguiu ver a jornada do espelho: fora soldado a
partir de lava derretida, figuras cobertas por mantos recitando
feitiços ao seu redor enquanto o vidro se formava e esfriava. Viu
uma árvore grossa, de um lugar conhecido nestas partes como
Floresta Assombrada, que foi cortada e uma moldura intricada com
cobras e símbolos que foi entalhada a partir dessa madeira. As
figuras encapuçadas foram cuidadosas com ele. Esconderam-no
numa caverna nos recessos mais obscuros da floresta, visitando-o
de tempos em tempos para cuidar do espelho e comungar com ele.
A capa impossibilitou que Ingrid visse os rostos das figuras, mas
havia muitas delas, sempre ao redor do espelho, entoando cânticos.
No chão, trilhas de fogo se espalhavam dos pés deles até a parede
em que o espelho estava pendurado.
De alguma forma, ela sabia que o espelho estava satisfeito com
essa devoção, mas desejava mais — uma tarefa. Um dos
encapuzados entendeu isso, e essa figura também desejava algo
mais. Beleza. A Fonte da Juventude. Imortalidade. O espelho
ofereceu à figura tudo isso a um preço. Com o tempo, revelou-se ser
uma mulher cuja idade retrocedia. Ela ficava mais bonita a cada
visita e parecia feliz. Mas logo a beleza da mulher a levou a discutir
com os demais. Alguém chamou o espelho de mau. Ameaçaram
destruí-lo. Uma briga explodiu entre eles. A próxima imagem que ela
viu foi de morte, a mulher que adorara o espelho jazia no chão. Uma
das figuras encapuzadas levou-o para fora da floresta até aquela
mesma loja, implorando a seu mestre: “Ele é perigoso e precisa ser
descartado”, dissera com clareza.
— Farei com que ninguém confie mais nele — respondera o
mestre de Ingrid.
Ingrid soltou o espelho, surpresa, e as imagens rodopiaram e
sumiram.
— Há muito mais para contemplar… — o espelho começou a
dizer. Foi só então que Ingrid percebeu que o vidro, por mais que
estivesse turvo, emanava formas roxas e pretas, que pareciam se
mover como uma chama. Havia um rosto fitando-a? Era a sua
própria imagem distorcida ou a de outra pessoa? Uma espécie de
máscara? Era difícil saber. Aparecia somente envolta em sombras.
Ingrid estava hipnotizada.
— O que mais há? Mostre-me — sibilou.
— Quando minha alma for renovada, a ti poderei ajudar.
Alma? De alguma forma ela sentia que a magia do espelho estava
morrendo. Não poderia permitir que isso acontecesse.
— O que tenho que fazer? — perguntou, temendo não ser capaz
de conseguir a tempo. O espelho era o objeto mais singular e
poderoso que já vira. Não podia permitir que desaparecesse.
— Mandrágora e beladona deves encontrar. Rápido. Prepara a
mistura para a mágica vincular.
A voz do espelho já desvanecia. Ela se apressou para a frente da
loja e encontrou alguns suprimentos, incluindo o tônico que estivera
preparando para revigorar os ânimos. Tinha esperanças de que
fosse forte o bastante. Misturando tudo, voltou correndo para o
quartinho e olhou ao redor, à procura de algo com que aplicar aquilo
no espelho. O vidro já estava escuro. Apanhou um trapo de uma
pilha de panos limpos que ainda tinha que dobrar e logo começou a
aplicar o verniz no vidro de espelho, chegando até mesmo à
moldura.
O espelho permaneceu quieto e silencioso. Por um momento, ela
temeu já ser tarde demais. Mas, quando se sentou sobre os
calcanhares e aguardou, o espelho aos poucos começou a brilhar,
como uma brasa se transformando numa chama. O calor tomou
conta da sala, e Ingrid se perguntou pela segunda vez no mesmo
dia se a loja acabaria incendiada. Mas a luz voltou a sumir, e o vidro
do espelho começou a mostrar sombras pretas e roxas girando uma
vez mais. A moldura antes manchada começou a brilhar, e logo o
vidro ficou transparente como água. O rosto em forma de máscara
lentamente foi se tornando visível.
— Ingrid — disse o espelho, parecendo forte uma vez mais —,
minha mestra agora serás. Devo-te minha vida e tu, em troca, a mim
pertencerás.
Mestra? O que fizera ao tocar naquele espelho?
— Mas o meu mestre o mantém neste cômodo por um motivo.
Não tenho certeza se posso libertá-lo — argumentou ela, odiando
soar, de repente, temerosa. Estava falando com um espelho. Aquilo
era um absurdo.
— Pareço quebrado? Um rio corre depois do retorno da chuva?
Por tua causa despertei. — A voz ficou ainda mais forte. — No vidro
coloca a mão. Teu destino está em jogo. Deixa-me mostrar o porvir,
o passado não.
Uma vez mais ela tocou no vidro e as visões lhe surgiram, mas,
dessa vez, ela aparecia nelas. Viu-se num cômodo luxuoso, como
nenhum outro que vira antes. Estava sentada numa cadeira mais
alta que todas as outras, usando um lindo vestido longo e joias mais
finas do que aquelas que os nobres que frequentavam o mercado
usavam. As imagens continuavam mudando — diante de uma sala
repleta de pessoas, comandando um grupo de guardas, falando
num balcão imponente, mas ela sempre estava nelas e, cada vez
que surgia, parecia mais jovem e mais bela do que jamais fora em
realidade. A última imagem era a mais poderosa de todas. De
repente, uma coroa estava sendo colocada em sua cabeça. Ela
parecia jovem, enérgica e poderosa. Ingrid soltou o espelho,
arquejando de surpresa.
— Eu poderia virar rainha?
— Não desvanecerá este evento — disse o espelho. — Ser rainha
é teu destino, e reinarás por muito mais que um momento.
Era o que sempre quisera: poder, atenção, respeito. E quem teria
mais desses atributos que uma rainha? O Rei Georg era um homem
jovem, na idade de se casar. Ainda não estava comprometido.
Talvez ele fosse o seu futuro. Talvez esse era o modo de o espelho
lhe dizer… Se estivesse certo.
— Em mim, tua fé deposita — o espelho continuou a falar. — A
mim, tua confiança oferta. Predestinada é esta rota.
Ingrid hesitou por um momento, depois tocou no espelho de novo.
Dessa vez, sentiu uma onda de dor, depois torpor, mas não houve
visão. Havia algo errado. Ela o soltou e baixou o olhar para a palma.
Uma queimadura surgira na mão castigada. Antes de poder refletir a
respeito, a marca começou a sumir, levando consigo a aspereza e a
sujeira das quais jamais conseguia se livrar por completo. As rugas
e as marcas feitas pelo tempo sumiram, sendo substituídas por uma
pele macia. A veia feia sempre saltada em sua mão desapareceu.
Ela emitiu um grito de surpresa e de alívio. Sua mão estava linda.
Olhou para o espelho. Queria que a outra mão combinasse com
essa.
— Só precisas pedir — contou o espelho, lendo seus
pensamentos. — Trabalhando juntos, teus sonhos serão fáceis de
atingir.
Rainha. Ela conseguia enxergar isso. Sentir isso. Bem nessa
hora, ouviu a porta da frente se abrir.
— Eu o tirarei daqui — prometeu. — Voltarei mais tarde. Não
permitirei que o mestre o destrua.
O espelho se calou uma vez mais. Para garantir que ele ficaria de
fato seguro, moveu-o para outro local, escondendo-o atrás de uma
pintura em outra parede do quartinho dos fundos. Quando o mestre
fosse embora à noite, ela diria que precisava organizar algumas
coisas e voltaria para buscá-lo. Depois encontraria um lugar para
mantê-lo de forma permanente. A sineta na bancada tocou, o que
significava que um cliente tinha chegado. Seu mestre não a
chamaria com a sineta, mas gritaria. Tocou uma vez mais. Tratava-
se de um cliente, um cliente muito irritante.
Ingrid limpou as mãos — uma suja de verniz, mas a outra
reluzente com a beleza à altura de uma futura rainha — e saiu do
quartinho.
— Posso ajudar…? — perguntou antes de ver quem era.
— Cara irmã! — Katherine correu até ela e a abraçou com força.
— Você jamais vai acreditar no que aconteceu! — Ela sacudiu um
papel cor de creme diante de Ingrid. — Recebi um convite para o
baile de máscaras real!
— Você? — Ingrid gaguejou, agarrando o pedaço de pergaminho
e lendo-o com avidez. — “O Rei Georg cordialmente a convida…” —
leu. O rei estava convidando a sua irmã sem graça? Seu ânimo
desapareceu, junto com suas esperanças. O espelho dissera que
ela seria a rainha. Não Katherine. — Como conseguiu isto? — Sua
linda mão tremia.
Katherine não pareceu notar. Seus olhos estavam brilhantes; o
rosto, corado.
— Por causa das minhas maçãs! — disse, cheia de orgulho na
voz. — O rei agora vem encomendando cestos todas as semanas e,
esta semana, pediram que eu as entregasse pessoalmente! Ele é
um homem tão adorável, Ingrid. Você o adoraria. E agora ele me
convidou para o baile! Consegue acreditar nisso?
— Não, não consigo — Ingrid respondeu sem inflexão alguma na
voz.
Katherine abraçou a irmã com força uma vez mais, e foi bom que
tivesse feito isso. Não havia como Ingrid esconder a expressão de
inveja no rosto.
CAPÍTULO NOVE

Branca de Neve

ELA ESTAVA LIVRE.


Depois do que lhe pareceu uma eternidade presa na floresta, as
árvores se abriram e ela chegou a uma clareira. Branca inspirou
fundo, sentindo como se tivesse prendido a respiração, assim como
seus medos, por tempo demais. Os sussurros que a atormentaram
enquanto vagara desapareceram, sendo substituídos pelo pio
acolhedor dos pássaros. Quando seus olhos se reajustaram à luz do
meio da tarde, ela observou os arredores. O solo era verde, e a terra
resplandecia de flores e árvores, mas sem dúvida a princesa não
estava na campina em que começara sua jornada. De fato, não
conseguia se lembrar da última vez que vira um terreno tão rochoso
quanto aquele. As rochas se erguiam da terra como montanhas.
Branca notou a abertura de uma caverna entre as pedras e uma
plaquinha de madeira diante dela, o que significava que não devia
estar muito longe da civilização. Era um bom presságio, porque não
planejava explorar a caverna. Uma caverna equivalia a escuridão, e
ela enfim encontrara a luz.
Passou diante da abertura e continuou andando, na esperança de
encontrar uma trilha ou uma estrada que pudesse conduzi-la…
aonde? Eis o problema. Não podia voltar ao castelo, não enquanto a
rainha a desejasse morta. Suspirou, tentando clarear a mente e
incitar os pés doloridos a continuarem se movendo. Precisava
encontrar um lugar para descansar, organizar seus pensamentos e
decidir o que iria fazer em seguida.
Um abibe passou voando ao seu lado, piando animado como se
estivesse cantando uma canção. Hipnotizada, Branca o seguiu.
Parecia curioso ser a segunda vez no dia em que via o pássaro
predileto da mãe — agora e mais cedo, na campina com o caçador.
Era como se a mãe estivesse, de alguma forma, junto dela,
incentivando-a a seguir em frente. Observou o pássaro subir e
descer e voar de lado a lado sobre a campina antes de aterrissar…
numa casa? Era um casebre com telhado de sapé acomodado
como uma miragem no topo de um montículo arredondado coberto
de grama. O pássaro piou uma vez mais, como se a estivesse
chamando para ver a casinha por seus próprios olhos. Em seguida,
alçou voo.
Depois de horas de puro nada, ela, de repente, deparou-se com
essa casinha no meio da floresta. Tinha que ser uma miragem. Mas,
quando se aproximou, com as pernas cada vez mais cansadas, a
casinha não desapareceu. Quanto mais perto ela chegava, mais
detalhes percebia. Sua porta tinha o desenho de um passarinho
entalhado a mão. O mesmo entalho de passarinho se repetia nas
pequeninas venezianas diante de cada janela. Branca sentiu o
coração disparar: aquilo parecia um bom sinal. Talvez o abibe
tivesse lhe trazido sorte.
Na frente da casa, ela notou uma fogueira com brasas ainda
incandescentes. Isso significava que o chalé não estava
abandonado! Talvez ali houvesse pessoas que poderiam lhe
oferecer um breve descanso. Apressou os passos até a porta e
bateu com suavidade. Imaginava o que pensariam da sua
aparência. O vestido estava sujo e rasgado, e havia folhas presas
em seus cabelos. Mas, mesmo que tivesse a aparência de sempre,
era muito provável que não a reconhecessem. Os que viviam fora
do palácio não viam a princesa há anos.
Ninguém atendeu, por isso Branca se inclinou para encostar o
ouvido e prestou atenção. Lá dentro, tudo parecia silencioso. Bateu
uma vez mais só para ter certeza, mas ninguém veio. Suspirou,
sentindo a descarga de adrenalina e esperança esvair-se.
Não podia continuar andando. Teria que esperar até que o dono
do chalé retornasse. Olhou pela janela suja ao lado da entrada. Viu
uma poltrona confortável ali dentro. Ah, como queria se jogar
naquela poltrona, mesmo que só por alguns instantes. Com uma
audácia que não sabia que possuía, sua mão pousou na maçaneta.
Virando-a, ouviu um clique suave. A porta destrancada se abriu um
tantinho. Branca olhou ao redor. Não havia sinal de ninguém se
aproximando. Seria tão terrível assim se ela entrasse?
— Olá? — chamou. Não houve resposta.
Se tinha dúvidas de que havia alguém morando ali, elas se
dissiparam no minuto em que passou pela soleira. Havia tigelas de
mingau espalhadas em mesinhas por todo o cômodo, bem como na
poltrona em que desejava descansar. Roupas e meias soltas
cobriam o chão e as mesas, junto com livros abertos e… aquilo era
um machado? Quem morava ali? Curiosa, começou a olhar ao
redor.
Um fato estava claro: o chalé precisava muito de uma boa
limpeza. O cômodo amplo, pelo visto destinado à cozinha e ao
descanso, estava abafado e quente, como se as janelas nunca
fossem abertas para arejá-lo. A mesa de jantar estava coberta de
pratos sujos. Quando fora a última vez que esses pratos viram a
pia?
Aquela poltrona parecia divina, mas sabia o que aconteceria
assim que se atirasse nela (depois de retirar a tigela de mingau,
claro). Seus pensamentos voltariam a se tornar sombrios. Sua mãe
fora assassinada — pela própria irmã. Será que o pai sabia o que de
fato tinha acontecido? Seria por isso que ele parecia sempre tão
triste? Tia Ingrid teria dado cabo dele também? Os pensamentos a
paralisariam sem demora, e ela precisava ficar atenta. Precisava de
um plano. Por enquanto, era mais fácil fazer algo útil com as mãos.
Limpar a mantivera ocupada por todos aqueles anos solitários no
castelo. Poderia mantê-la ocupada por mais algumas horas.
Ela apanhou a louça suja e a carregou até a pia para lavá-la para
seus anfitriões. Foi então que percebeu as sete cadeirinhas da
mesa de jantar.
Um grupo de crianças morava ali? Olhando mais de perto, Branca
percebeu que as meias no chão eram minúsculas, assim como a
camisa pendurada num gancho ao lado da porta. Não viu nenhuma
roupa nem cadeiras maiores… As crianças moravam ali sem pais ou
responsáveis? De repente, sentiu uma pontada no coração. Se isso
fosse verdade, eram órfãs, assim como ela. Pobrezinhas. Ficou
imaginando onde estariam naquele instante.
Bem, pelo menos voltarão para uma casa limpa. Reunindo uma
energia que se surpreendeu de ainda ter, Branca começou a juntar a
roupa suja e a colocou num cesto para serem lavadas. Lavou todos
os pratos e varreu o chão. Limpou as janelas sujas com um trapo
que encontrou. Em seguida, aventurou-se pelo jardinzinho na frente
da casa. Deleitou-se ao encontrar alguns legumes maduros, que
pareciam deliciosos. Seu estômago roncou ao vê-los, e ela se deu
conta de que não comia desde o café da manhã no castelo, o que
parecia ter sido há dias.
Colhendo os legumes, voltou para a cozinha e começou a
preparar uma sopa que aprendera a fazer com a senhora Kindred
em sua época de menina. Quando a sopa começou a ferver, um
aroma delicioso de ervas se espalhou pelo ambiente. Deixando-a
cozinhar, arrumou a mesa. Ainda não estava satisfeita ao terminar,
por isso voltou para fora — um buquê de flores amarelas alegraria o
lugar. (Que término estranho para a tarefa que se dispusera a fazer
no que parecia ser outra vida!) Ao voltar com as flores a reboque,
não encontrou um vaso, por isso as depositou num jarro que, em
seguida, colocou no meio da mesa de jantar. Agora, sim, a mesa
parecia apresentável.
Depois disso, voltou-se para a escada colada à parede dos
fundos. Se o primeiro andar estivera uma bagunça, ela nem
conseguia imaginar o que encontraria no segundo. Uma parte sua
de fato desejava que necessitasse da mesma atenção; um pouco
mais de distração lhe cairia bem.
Ao subir, Branca encontrou sete caminhas perfiladas num espaço
menor. Nenhuma delas estava feita, por isso ela as arrumou
também, afofando os travesseiros e ajeitando os chinelinhos que
encontrou espalhados ao pé de cada cama. As camas pareciam
entalhadas a mão, e havia nomes estranhos gravados em cada
cabeceira. Mas não podiam ser nomes de verdade… Dunga?
Zangado? Atchim? Dengoso, Feliz, Mestre e Soneca? Quem quer
que fossem essas crianças, por certo elas tinham senso de humor.
E camas de aparência muito confortável. Só de olhá-las, Branca se
sentiu começando a bocejar. Havia uma janela na parede oposta, e
a luz começava a diminuir no andar de cima. Espiou por ela, vendo
que o sol já começava a se pôr. Já era noite? Aquele fora o dia mais
comprido da sua vida, e era a primeira vez que estava distante do
castelo ao anoitecer.
O castelo. A mãe. O pai. Os feitos obscuros de tia Ingrid. Agora
que todo o trabalho pesado tinha terminado, sentiu os pensamentos
voltando, despejando-se sobre ela como uma cascata. Ainda bem
que a necessidade de dormir chegou com a mesma rapidez. Sentiu
as pernas pesarem quando se afundou na caminha mais próxima e
se deitou ao longo delas. As camas eram macias, seguras. Talvez
pudesse ficar deitada só por um pouquinho para descansar a
cabeça. Por certo ouviria a porta e desceria a tempo de receber
seus anfitriões… Branca adormeceu profundamente em questão de
segundos.

A princesa acordou assustada. Sete figuras se inclinavam sobre


ela, observando-a dormir. Sentou-se rápido e piscou para as
pessoas que a cercavam, sentindo-se desorientada. Precisou de um
minuto para se lembrar de onde estava e o motivo pelo qual se
encontrava ali. Ah, sim, as crianç… Na verdade, não eram crianças
coisa nenhuma. Eram homens adultos. De estatura bem baixa, mas
não havia como se confundir pela maturidade em seu rosto — sem
falar nas barbas. A de um deles era até branca. As roupas estavam
bem sujas, e fuligem manchava testas e bochechas. Agora ela se
sentia uma tola. Como poderia ter pensado que um grupo de
crianças viveria desacompanhado? Ela era a única criança em que
conseguia pensar que fora deixada por conta própria.
Um dos homens a encarou bravo.
— Quem é você e o que faz aqui na nossa casa?
Ela arfou, tentando lembrar por que acreditara ser uma boa ideia
se aventurar dentro do chalé em vez de esperar do lado de fora,
mas sua cabeça ainda estava muito confusa.
— Ora, ora, isso são modos de falar com a nossa convidada? —
disse outro homem, de barriga arredondada e cílios compridos. Ele
sorriu para ela. — Lamentamos muito, senhorita. Somos só nós por
aqui e, como pode ver, não estamos acostumados a receber visitas.
— Ainda mais visitas que… atchim! Limpam a casa —
acrescentou outro, de nariz bem vermelho.
Era Atchim, pelo visto.
— Está se sentindo bem, senhorita? — perguntou o de óculos
pequenininhos. Outro homem espiava por trás do ombro dele.
Parecia bem tímido. Talvez fosse o apelidado de Dengoso. —
Adoeceu? — prosseguiu o homem de óculos. — Posso lhe preparar
um tônico para que se sinta melhor. — Branca balançou a cabeça.
Ele baixou os óculos e olhou diretamente para ela. Talvez fosse o
que chamavam de Mestre. — Tem certeza? Não são muitos os que
vêm a pé dos limites do castelo até as minas.
Quer dizer que ela estava perto das minas. Ouvira o pai
mencionar que as minas de diamantes eram uma das maiores
riquezas do reino. Pelo menos um dia tinham sido. Diziam que as
jazidas já estavam todas esgotadas, o que custou o emprego de
muitos aldeões e fez o reino perder bens valiosos — muito
provavelmente o motivo de o reino ter empobrecido tanto.
— Peço desculpas pela invasão — disse Branca, sentindo-se
mais envergonhada a respeito da sua tolice a cada momento que
passava.
— Mas por quê? Está tudo certo! — respondeu um, parecendo
alegre. Ela deduziu que aquele devia ser Feliz. — Nunca temos
visitantes, o que é uma lástima. É bom ter companhia. Certo,
homens?
Ninguém respondeu.
— Eu me perdi na floresta e encontrei o chalé de vocês por acaso
— explicou Branca. — Bati, mas não havia ninguém em casa e a
porta não estava trancada, então… Estava tão cansada que acabei
entrando. — Baixou o olhar para o vestido rasgado, sentindo as
faces corarem. — Foi bem rude da minha parte.
— Quer dizer que ela fala — comentou o bravo, que Branca
deduziu ser o chamado de Zangado. Ele a fitava de cima a baixo. —
Mas ainda não nos disse quem é. Uma espiã?
— Você é tão desconfiado — interveio outro homem, que bocejou
antes de olhar para ela com benevolência. — Está claro que a moça
só precisava descansar. Ela não veio aqui roubar nossas pedras
preciosas.
— Não conte a ela que temos joias! — ladrou Zangado, e todos
começaram a discutir.
— Não estou aqui por causa das joias de vocês — prometeu
Branca. — Pedras preciosas devem ser mantidas a salvo, uma vez
que o reino agora tem tão poucas.
Zangado ergueu a sobrancelha direita e grunhiu.
— Tão poucas? Besteira! A rainha fechou as minas para poder
ficar com todos os diamantes para si!
— Não, as minas foram fechadas há anos porque já não havia
mais nada — disse Branca, confusa.
Zangado grunhiu de novo e olhou para os outros.
— É nisso a que as pessoas foram levadas a acreditar, mas por
que acha que estamos cobertos de fuligem? Porque gostamos de
passar o dia em cavernas?
— Porque não nos lavamos muito? — sugeriu Atchim.
Zangado o empurrou de lado.
— Porque ela tem os melhores mineiros fazendo o trabalho sujo
para ela em segredo! — declarou Zangado. — Ainda há diamantes
aos montes! Mas agora nós mineramos as cavernas e ela fica com a
riqueza. A Rainha Má é venenosa, isso, sim! Venenosa!
Os outros homens tentaram silenciá-lo fazendo “psiu”.
A Rainha Má. Quer dizer que o apelido avançara para além dos
muros do castelo. A quantos a crueldade e a ganância da tia
afetaram? Precisava de mais informações.
— Minhas sinceras desculpas. Temo ter feito vista grossa em
relação a tantas coisas que foram feitas no reino.
Zangado grunhiu.
— Como a maioria, eu diria. Mas quem é você? Ainda não nos
disse.
Os homens a olharam com curiosidade, e Branca hesitou. As
pessoas ainda reconheceriam seu nome? Quando era pequena,
seus pais sempre a levavam para todos os cantos para conquistar o
amor do seu povo. Mas, claro, desde que tia Ingrid se tornara sua
tutora, ela passara os dias trancada numa torre que podia ser tudo,
menos de marfim. Será que seu povo acreditava que ela os
abandonara, do mesmo modo que o pai fizera? Era isso o que tia
Ingrid sempre alegara, dizendo que havia um prêmio pela cabeça da
garota. Mas agora ela se questionava. Talvez soubessem que,
assim como eles, também era refém.
— Meu nome é Branca de Neve.
— Branca de Neve! — os homens repetiram em uníssono e houve
alguns arquejos audíveis.
— Você é a princesa! — exclamou Mestre, retirando o chapéu. —
É uma honra, Vossa Altez…
— Saia! — Zangado ordenou ao mesmo tempo, e Branca se
retraiu.
— Isso não são modos de falar com a princesa — Feliz
argumentou.
Todos começaram a discutir.
Zangado falou mais alto:
— Ela é a princesa, seus tolos! Sabem o que isso significa? Se a
Rainha Má descobrir que ela está aqui e que lhe contamos a
verdade sobre as minas, estamos mortos!
— Ela acha que eu estou morta — Branca disse com franqueza.
— Tentou me matar esta manhã. — Alguns dos homens tiraram
seus gorros. O quarto ficou em silêncio.
— Oh, não, Vossa Alteza. — Mestre pareceu sem ar. — Estamos
aliviados que esteja bem. Torcíamos muito para que um dia
conseguisse escapar. Sempre pensamos em você como a última
esperança do reino.
Foi o que o caçador lhe dissera também. Por que nunca vira a
situação desse modo? Fracassara perante a mãe. Perante o pai.
Perante o reino. Bem, não mais.
— Eu gostaria de ser, mas… — Branca fez uma pausa. —
Escapei da morte por ora, mas este ainda é o dia mais longo da
minha vida, o que é estranho, porque já tive muitos dias longos. —
Não conseguiu deixar de pensar no dia em que a mãe morrera e na
noite seguinte ao desaparecimento do pai. — Quando encontrei o
chalé de vocês, eu estava completamente exausta e incerta sobre
conseguir ir adiante. O lar de vocês pareceu tão acolhedor que não
resisti. — Olhou para os rostos tristes. — Para retribuir a gentileza
de vocês, eu limpei tudo e fiz o jantar. Mas posso ir embora antes de
começarem a comer.
Zangado pareceu gostar da ideia, mas Branca notou que os
outros discordavam.
— Fique para o jantar, Vossa Alteza — convidou Feliz. —
Gostaríamos de ouvir mais sobre a sua jornada.
— Obrigada a todos vocês — disse ela, sentindo-se grata por
poder ficar nem que fosse por apenas um pouco mais. Sentindo-se
emocionada, estendeu o braço e apertou a mão do homem mais
próximo a ela. — Muito obrigada.
Nervoso, ele recuou, mas não disse nada. Sorriu-lhe da
segurança do outro lado do cômodo. Será que ela o tinha ofendido?
— Dunga não é muito de falar — explicou Feliz. — Mas é um bom
rapaz de se ter ao seu lado. Venha, princesa. — Ele gesticulou na
direção da escada. — Vamos continuar a conversar à mesa. Não
comemos uma boa refeição caseira há anos!
— Ei, está chamando o meu cozido de porcaria? — perguntou
Zangado.
— É comestível… às vezes — respondeu Atchim.
— Por que não vão se lavar enquanto eu sirvo a comida? —
sugeriu Branca. A tia ficaria horrorizada se soubesse que a princesa
estava servindo pessoas, mas a princesa se sentia bem ao ser útil,
para variar, e por estar na companhia de outras pessoas. Ainda
assim, os homens olharam para ela de modo estranho.
— Sim, vamos nos lavar — concordou Dengoso. Ele cutucou os
demais. — Venham, homens.
Houve certa reclamação, mas todos eles foram até a pia enquanto
ela servia as tigelas com conchas de sopa. Dunga acendeu a
lareira, o que deixou a sala aquecida. Em seguida, todos se
sentaram e comeram. Os homens faziam barulho ao sorver a sopa,
mas não conversaram muito. Zangado ficou olhando para ela, mas
desviava toda vez que ela fazia contato visual. Considerando a
lareira e as lamparinas acesas em vários cantos da sala, Branca
percebeu, de pronto, que se sentia segura e aquecida, um tremendo
contraste de como se sentia há apenas algumas horas. Talvez por
isso ela continuava a se sentir corajosa.
— Estava uma delícia, princesa — disse Feliz, dando um tapinha
na barriga arredondada.
— Fico contente que tenha gostado — ela agradeceu. —
Enquanto fazemos a digestão, eu gostaria que pudessem me contar
mais sobre a mineração de diamantes e como a rainha alterou o
combinado original.
Zangado largou a colher na mesa provocando um barulhão.
— Viram? Eu disse que ela tinha segundas intenções.
— Se vou pôr um fim ao reinado de minha tia, acho que é
importante saber o que ela tem feito às pessoas do reino. Não
concordam? — Branca perguntou, olhando primeiro para Zangado,
depois para Mestre. — Como vocês mesmos disseram, posso ser a
última esperança do nosso reino. — Torceu para não ter ido longe
demais, mas agora que conseguira bocados de informação sobre o
que se passava no reino, ansiava por mais.
Zangado inclinou a cadeira para trás, afastando-se tanto que ela
teve a certeza de que ele cairia. O homem a encarou com olhos
firmes.
— Muito bem. Vamos conversar. Mas também temos algumas
perguntas.
— Temos? — Dengoso perguntou. Zangado o encarou bravo.
— É justo — concordou Branca. — Se puderem fazer a gentileza,
podem me contar qual a verdadeira condição das minas?
Os homens se entreolharam.
— Há anos a rainha tem arruinado o nosso comércio — reclamou
Zangado.
— O Rei Georg sempre nos impôs uma cota, mas, como
pagamento por um trabalho bem feito, sempre mantínhamos um
percentual do que encontrávamos — acrescentou Mestre.
— Mas essa rainha quer tudo! Ela é tão egoísta que levou o reino
a acreditar que era o fim das jazidas, o que não é o caso — ralhou
Zangado.
— Ouvimos histórias em todos os cantos do reino sobre as pedras
preciosas que ela clamou para si — disse Feliz.
— As pedras e o ouro que deveriam ser comercializados acabam
indo para o castelo e são trancados a sete chaves, enquanto, nas
ruas, as pessoas estão morrendo de fome! — acrescentou Atchim.
— E, ainda assim, ela faz seus capatazes verificarem nossas
minas para garantir que ficará com tudo — Dengoso lhe contou.
Branca cerrou os punhos.
— Eu não fazia ideia de que isso estava acontecendo. Como ela
consegue se safar?
— Seus guardas a mantêm muito bem protegida, e a corte tem
medo da sua ira — disse Soneca. — Ninguém questiona as
decisões dela.
— Somos homens honrados — acrescentou Feliz. — Podemos
não ser uma família no sentido tradicional da palavra, mas estamos
juntos há anos e mal conseguimos sobreviver.
— Olhe ao seu redor, princesa — continuou Mestre. — Parece
que estamos vivendo com ostentação? Não. Mal conseguimos
pagar os impostos que ela determinou.
— Não tocamos nos diamantes que temos guardados —
acrescentou Soneca. — São nossa reserva para um dia de
necessidade.
— Não direi nada — jurou Branca. — Parece que, na verdade, o
reino lhes deve dinheiro. Não tomarei o que é de vocês por direito.
Podem confiar em mim.
— Confiar. Hum! Você é parente dela! — observou Zangado.
— Mas não somos uma família — explicou Branca. — Ela por
certo jamais me tratou assim. Mesmo depois da morte da minha
mãe e da partida do meu pai, ela me fez me virar sozinha. — Viu um
passarinho entalhado acima da lareira dos homens. Isso fez com
que pensasse na mãe. Ela teria amado aquela casinha simples e as
pessoas que ali viviam. Teria querido saber sobre suas
preocupações e seus triunfos. Teria tentado ajudar. Se a antiga
rainha não estava ali para fazer isso, era Branca quem deveria
cuidar da situação. — O reino está ruindo e, como vocês disseram,
as pessoas precisam de ajuda. — Pensou na mãe e em como ela
tentava ajudar a todos que encontrava. Pensou no pai abrindo os
portões para que as pessoas pudessem se sentir uma família. A tia
não fazia nada disso. — Ela não está reinando como uma rainha
deve fazer.
— E acredita que pode derrotá-la? — Zangado parecia cético. —
Ora, veja, parece que, antes de hoje, você nem sequer sabia o que
se passava no seu reino! E ela a quer morta! Você não tem a
mínima chance sozinha.
Isso talvez seja verdade, Branca percebeu apreensiva. Para que
serviria um exército de um só? A rainha tinha magia. O que Branca
tinha? Talvez fosse uma tola por acreditar que poderia fazer algo
além. Mas, ainda assim, sabendo o que sabia agora, como poderia
deixar de tentar?
— Mas talvez tenha com a nossa ajuda — sugeriu Feliz, e Branca
olhou para ele esperançosa.
Amigos. Aliados. Isso faria a diferença.
— Eu aceitarei toda a ajuda que puderem me oferecer.
— Ela não pode ficar aqui — disse Zangado. — Já temos
problemas demais.
— Todos os meses a rainha manda seus homens para nos
inspecionar — explicou Atchim. — Eles vieram esta semana,
portanto ninguém vai aparecer por algum tempo. Estará segura
conosco por ora, mas não temos muito a oferecer. Mal conseguimos
passar o mês.
— Segura? Ela não pode ficar! — Zangado insistiu. — A rainha já
deve saber que está aqui ou tem alguém seguindo você. — Ele
olhou de novo pela janela. — Dizem que ela é boa com magia das
trevas. Ela vê tudo! — Alguns dos homens ficaram alarmados.
— Mas ela acredita que eu esteja morta — Branca os lembrou,
ficando de pé. — A rainha queria que a herdeira ao trono fosse
descartada para poder ficar com ele só para si. Pelo que vocês
dizem, é evidente que ela não está cuidando do nosso povo. —
Pigarreou, dando voz à raiva perante as injustiças sobre as quais
ficou sabendo. — Esse reinado não pode continuar. Lutarei por isso
até meu último suspiro. — No instante em que disse essas palavras,
soube que eram verdadeiras.
— E se ela tentar nos destruir por acolhê-la? — perguntou
Dengoso. Ao longe, ouviram um uivo, e ele estremeceu. —
Conseguimos impedir que ela nos notasse por bastante tempo.
— Impedir? Ela toma tudo o que temos — Mestre o lembrou. —
Logo não sobrará nada e ela acabará conosco também. Eu digo que
devemos ajudar a princesa. — Ele lhe sorriu.
Dunga se deslocou e parou ao lado da cadeira de Branca.
— Eu também — disse Feliz, assim como Atchim e Soneca.
Dengoso também concordou. Todos olharam para Zangado, o único
que faltava.
Ele estava sentado de braços cruzados, encarando o fogo em vez
dela.
— Não permitirei que ela continue a fazer mal ao meu povo —
Branca voltou a declarar, a voz cheia de autoridade. — Se me
ajudarem, trabalharei com afinco para trazer paz e prosperidade de
volta ao reino, como havia em outros tempos. — Olhou para
Zangado. — Sei que os desapontei, mas não os desapontarei mais.
Vocês não sabem pelo que passei. Tudo porque tinha medo. —
Endireitou os ombros e os olhou com uma vontade de ferro. — Não
tenho mais.
Zangado a avaliou por um momento. Por fim, falou:
— Muito bem. Oferecemos a nossa assistência. — Os outros
homens sorriram.
— Obrigada — agradeceu Branca, sentindo-se tomada de alívio.
Pela primeira vez em muito tempo, já não estava mais sozinha. De
alguma forma, encontrara aqueles homenzinhos e, agora, eles eram
seus aliados. Parecia coisa do destino.
Mãe, pai, não os desapontarei de novo, pensou.
Branca voltou a se sentar.
— Em primeiro lugar, precisamos de um plano.
Dunga correu para pegar papel e algumas penas. Ela aceitou uma
pena, agradecida, enquanto os outros homens retomavam seus
lugares à mesa.
Ela olhou para os outros.
— Agora, vejamos como retomaremos o nosso reino.
CAPÍTULO DEZ

Ingrid

Dezenove anos antes

ELES NÃO PODIAM ESTAR mais felizes.


Ingrid pensara que a atração desapareceria aos poucos. O
fazendeiro e a esposa mal se olhavam. Seus próprios pai e mãe,
nas poucas lembranças que tinha dos dois, por certo não
demonstravam afeto um ao outro diante das filhas. Mas o Rei Georg
e Katherine eram diferentes. O amor deles parecia apenas crescer.
O fazendeiro não hesitou em conceder a mão de Katherine, mas
não quis ficar sobrecarregado com Ingrid. Katherine lhe oferecera
um quarto no castelo, mas Ingrid não queria a piedade da irmã. Fora
dormir no chão da loja do seu mestre quase de imediato. Não era o
ideal, mas, pelo menos, estava livre.
Sorriu penosamente durante o casamento real, com toda sua
pompa e circunstância. Todos ficaram extasiados com a ideia de
uma plebeia entrar para a realeza, que Katherine tivesse
impressionado o rei com sua inovação e bondade. A festa parou o
reino por completo. Nem um único súdito trabalhou naquele dia: os
campos não foram arados e as minas não foram exploradas. Todos
foram convidados para a celebração. Ingrid achava tudo aquilo uma
tolice. O reino poderia ter sido saqueado enquanto as pessoas
dançavam, mas Katherine tinha certeza de que isso não
aconteceria. E Georg, claro, deu-lhe ouvidos.
Isto era tudo o que fazia — ouvir as sugestões de Katherine.
Era nauseante.
Foi Katherine quem sugeriu abrir os portões do palácio para
visitantes para uma festa semanal no jardim, na qual o rei se
encontraria com seus súditos. Foi ela quem sugeriu que investissem
na agricultura do reino de modo que o fazendeiro e a esposa
pudessem ser responsáveis por um mercado na praça do vilarejo
onde todos os súditos seriam capazes de comprar frutas e legumes
frescos. Ela despendeu tempo e recursos na decoração do castelo
de modo a ser admirado por todos e, para o jardim, encomendou um
viveiro ridículo no qual poderia convidar as pessoas a observarem
as diversas espécies de pássaros que habitavam o reino.
Não havia mais superfaturamento de preços — não cobravam a
mais ao povo pelas melhores maçãs do pomar. E, de novo, Ingrid
considerou a escolha uma idiotice. Como o reino poderia ganhar
dinheiro se não aproveitassem oportunidades como aquela? Ela não
teria permitido que o reino afrouxasse as rédeas com os
comerciantes nem aceitaria o escambo de produtos com outros
reinos em vez de manter toda a fortuna ali, onde era seu lugar. Não
permitiria que seu marido parecesse fraco diante dos seus inimigos.
Mas Katherine não mudava de opinião. E Georg amava Katherine,
não Ingrid, portanto ouvia só a ela. Katherine convenceu Georg que
ser um rei bondoso com seu povo era mais importante do que ser
temido. Ingrid tinha certeza de que chegaria o dia em que ambos
lamentariam essa crença, mas esse dia ainda não chegara. O reino
prosperava… assim como o amor deles.
— Assim como o céu é azul e verde é a grama, o rei é inflexível.
Ele só ouvirá a rainha, sua dama — disse o espelho quando Ingrid
reclamou sobre as condições do reino.
Alguns meses depois do casamento, Katherine chegou à loja
rodeada por um destacamento de guardas.
O mestre de Ingrid escapou da loja ao ver os guardas, mas Ingrid
ficou firme onde estava, encarando a irmã. Katherine trajava a mais
delicada seda encontrada no reino, um vestido feito à mão
exclusivamente para ela. O cabelo agora estava preso, puxado para
trás, num coque no topo da cabeça, onde a tiara ainda parecia
grande demais, como se ela estivesse fantasiada.
— O que você quer? — Ingrid perguntou, gostando de como a
irmã parecia desconfortável no seu ambiente. Observando as
poções, as ervas e os livros de encantamento que não entendia, ali
Katherine estava numa posição inferior. Ingrid não teve como não
gostar disso. Não se importava nem um pouco com quem Katherine
achava que fosse agora que tinha um título. Ela era e sempre seria
sua irmã mais nova.
De alguma forma, Katherine pressentia isso. Ela se moveu
adiante com agilidade e os guardas a seguiram de perto.
— Detesto não a ver mais todos os dias.
— Você me deixou — Ingrid retrucou de pronto. — Eu jamais a
teria abandonado.
— Eu me casei — disse Katherine, a mágoa se fazendo perceber
no rosto. — Eu não a deixei.
— Deixou — repetiu Ingrid, desviando os olhos para o quartinho
dos fundos, onde o espelho a aguardava. Sempre a aguardava. —
Achou que eu sobreviveria na casa do fazendeiro sem você?
Demorou apenas um dia para lembrar que não era desejada por ali.
E agora eu durmo aqui, no piso frio da loja do meu mestre. — Ingrid
deu uma volta. Os olhos faiscavam enquanto avançava na direção
da irmã. — Isso a faz feliz?
Aproximara-se mais do que deveria. Os guardas se moveram
adiante, apontando as espadas afiadas para a cara de Ingrid.
— Você não ameaçará a rainha — um dos guardas ladrou em tom
sério.
Katherine ergueu a mão.
— Está tudo bem. Por favor, abaixem as armas.
Os guardas voltaram a recuar.
Era quase cômico. A irmã ter tamanho poder e não fazer a
mínima ideia de como usá-lo.
— Eu lhe ofereci abrigo no castelo repetidas vezes desde o dia do
meu casamento, mas você jamais aceitou — Katherine tentou de
novo.
— Porque não quero sua piedade — disse Ingrid.
— Não é piedade! — insistiu Katherine. — Não gosto da ideia de
você ficar aqui sozinha, dia e noite aprendendo feitiçaria.
— Não é feitiçaria — argumentou Ingrid. Tiveram essa mesma
conversa vezes sem conta.
— Bem, o que quer que seja — disse Katherine, seu tom de voz
começava a esfriar. Ela puxou o manto que trazia sobre os ombros
para mais perto de si como que para se proteger do frio que invadia
seus ossos. — Não gosto de pensar em você aqui à noite, sozinha,
quando seu mestre vai embora. Portanto, se você não aceita a
minha oferta de acomodação, talvez aceite uma posição na corte do
rei.
— O que disse? — Ingrid perguntou, surpresa.
Katherine então sorriu com timidez.
— Já falei com Georg. Ele aceitou, claro. Você é minha irmã.
Minha única família, na realidade, e eu a quero por perto. Quero
cuidar de você como você cuidou de mim.
O rosto de Ingrid azedou.
— Não preciso que cuidem de mim.
— Sei disso — Katherine disse rápido. — Mas, ainda assim, eu
quero. Há tanto que devo aprender e realizar, e não conseguirei
fazer isso sem você. Sabe disso. Por favor, aceite.
Sim, aceita. Ela ouviu a voz em sua cabeça com clareza. Vai e
pede o que quer. O melhor título, hás de saber.
Qual título… Sim!
— Muito bem — concordou Ingrid. — Eu irei. — Katherine
começou a bater palmas de felicidade. — Mas quero ser sua dama
de companhia.
— Ah. — Katherine hesitou. — Já me foi designada uma.
— Então dê a essa pessoa outra posição — insistiu Ingrid. Se ela
fosse dama de companhia de Katherine, poderia ser a voz da razão
na cabeça da irmã. E, se ela fosse a voz da razão na cabeça de
Katherine, seria na de Georg também.
Somente tu poderás infiltrar a cabeça e o coração. Juntos, tu
transmitirás nossa erudição.
Katherine sorriu.
— Está bem, farei isso. Você será minha dama de companhia.
Venha agora, e deixaremos tudo isto para trás. — Ela olhou para a
loja com desalento.
— Preciso juntar meus pertences — Ingrid lhe disse. — Irei
amanhã. — Tinha que encontrar um modo de tirar o espelho da loja
sem que o mestre a visse. Não que fosse procurar por ele lá atrás;
nem sequer devia se lembrar da sua existência. O velho estava tão
senil que era bem provável que nem percebesse que estava ali.
— Está bem — Katherine repetiu. Estendeu a mão. — Amanhã,
irmã, você voltará a ser minha.
Ingrid apertou a mão de Katherine.
— Sim — disse, apesar de tanto ela quanto o espelho saberem
que era exatamente o oposto.

Katherine lhe dava ouvidos — a respeito de certos assuntos. Mas


não sobre o que importava. Ingrid tinha a atenção dela até ser
interrompida por algo idiota como outra festa no jardim com os
súditos tolos. Além do mais, Katherine queria que Ingrid sorrisse
mais para os criados do castelo. Esperava que a irmã fosse
amigável e gentil. Katherine ainda insistia que as colheitas tivessem
um preço justo. Não permitia que Georg entrasse em guerra com
outros reinos, por mais que Ingrid a incitasse a fazer isso. Ingrid
tinha esperanças de que Georg acabasse morrendo, de modo que
Katherine se tornasse a única regente.
Mas o maior desafio até o momento fora mover o espelho para o
castelo. Precisou de semanas para encontrar uma maneira de
contrabandeá-lo sem que Katherine soubesse de sua existência,
mas, no fim, formulou um plano: sob o manto da escuridão, com o
auxílio de dois guardas do palácio a quem subornara (e ameaçara
matar caso um dia mencionassem sua saída), ela moveria o espelho
para seus aposentos, deixando-o dentro de amplo quarto de vestir
anexo. Iria mantê-lo trancado durante todo o tempo e se recusaria a
permitir que qualquer criado entrasse no quarto, mesmo que para
espanar a poeira.
— Eu posso cuidar das minhas coisas — diria. Quem se
importava com algumas teias de aranha, de todo modo? Ela tinha
assuntos mais importantes em mente.
Quando a noite chegou e ela conduziu os guardas para a loja do
seu mestre, porém, não esperava encontrá-lo à sua espera.
— Mestre. — Ingrid fez uma mesura, algo que ainda fazia por
força do hábito, por mais que detestasse aquilo.
— Sei por que está aqui — disse ele —, e você não pode ficar
com o que não é seu.
— Mestre? — perguntou, com o coração acelerado. Ele não podia
estar falando do espelho. Tomara tanto cuidado, escondendo-o com
esmero toda vez que o mestre saía de perto. Não havia modo de
saber que ela se comunicava com o espelho. Era bem provável que
nem sequer se lembrasse de possuir o objeto. Afinal, quando o
encontrara, estava em meio às relíquias quebradas que ele se
preparava para descartar.
— Não sou tolo, Ingrid. — A voz do mestre vibrava de raiva. —
Acha que não sei o que vem aprontando sob meu teto? Acha
mesmo que meus olhos me deixaram na mão?
— Não tenho certeza sobre o que se refere — ela tentou uma vez
mais. E se o velho estivesse pensando que ela fora até ali para
roubá-lo? Mas não estava roubando. O espelho era dela. Cuidara
dele. Consertara-o. Entregara-se a ele. Ele agora fazia parte dela.
Não iria embora sem ele. Deu um passo à frente para entrar na loja.
Seu mestre bloqueou o caminho.
Aquilo era o suficiente.
— Deixe-me passar, velho. Tenho coisas para pegar. — Ingrid
empurrou-o para passar.
O mestre a seguiu. Assim como os guardas.
— Aquele espelho não é seu! Pertence a esta loja, o que o torna
meu. — Ele se pôs diante dela. — Quem lhe deu permissão para
consertá-lo? Não achou que havia um motivo para estar
desfalecendo? Não se perguntou por que eu mesmo não havia
pensado em algo para trazê-lo de volta à vida? Um espelho com um
poder como esse deve morrer. É perigoso demais para este mundo.
— Talvez ele seja perigoso demais para você, mas não é para
mim! — vociferou Ingrid. — O espelho viu o meu potencial e me
chamou, portanto ele é meu, e vou levá-lo comigo agora.
Ela o empurrou de lado e foi direto para a sala dos fundos, onde o
espelho aguardava atrás de uma cortina. Mesmo em sua ausência,
ele ganhara vida, espalhando uma fumaça e uma neblina pelo
ambiente. Um vento forte se fez, apesar de estarem no interior da
loja, e, ao longe, ouviu-se um trovão. Ela apanhou o espelho e se
preparou para carregá-lo até a carruagem, onde ficaria bem
escondido. Mas seu mestre bloqueou o caminho de novo. Dessa
vez, ele segurava uma poção nas mãos.
— Estou avisando, Ingrid — disse. — Abaixe esse espelho ou
essa será a última coisa que tocará neste mundo.
— Seria capaz de ferir sua aprendiz por causa de um espelho? —
perguntou ela.
— Sim, para impedi-la de deixar que as trevas dele se enterrem
em sua alma. — O velho se preparou para derrubar o frasco. Ela
não queria pensar que veneno continha.
— Milady? — um dos guardas interveio.
— Detenham-no! — ordenou Ingrid.
Tudo aconteceu tão rápido que não houve tempo para impedir.
Suas palavras, que lhe pareceram tão simples, significavam muito
mais para os guardas. O que ela imaginou ser apenas uma
instrução para segurarem seu mestre, os guardas interpretaram
como uma ordem para dar um fim à vida do homem. Momentos
depois, o velho jazia no chão de sua loja, com sangue se
empoçando ao redor da punhalada no peito. Ele morreu no mesmo
instante. O frasco de veneno ainda estava em sua mão. Ela sentiu o
gosto de bile. Seu mestre estava morto por sua causa.
— Temos que ir! — falou um dos guardas. — Rápido! — Ele
estendeu a mão para pegar o espelho. Ingrid hesitou um segundo,
depois permitiu que ele o pegasse. — Vamos!
Ela baixou o olhar para o mestre uma vez mais e passou por cima
do seu corpo. Em seguida, apanhou o veneno da mão ainda quente.
Seria, afinal, uma pena desperdiçá-lo.
Ingrid saiu da loja pela última vez de cabeça erguida, sabendo
que o espelho era de fato seu, por fim.
Abrira mão de muita coisa por aquele espelho. A lembrança do
que acontecera a atormentaria pelo resto dos seus dias. E, mesmo
agora que vivia no castelo, com seu mestre enterrado e seu
desaparecimento mal percebido, ainda a incomodava que a visão
original do seu futuro estivera errada. Ele não lhe mostrara que ela
seria coroada rainha? Não era ela quem devia ser a governante?
— Ela esgotou seu uso; mas se a rainha viver — o espelho lhe
disse —, teu futuro não poderás ter.
Por muito pouco não jogou algo no espelho quando ele lhe disse
isso, mas não ousou fazê-lo. Aquela vozinha que ficava cada vez
mais audível dentro dela lhe dizia que, caso o fizesse, seria o seu
fim. Ela não tinha certeza se a voz falava figurativa ou literalmente,
mas não quis se arriscar. Ficou quieta, rezando para que a situação
se alterasse, até o dia em que o espelho começou a ficar mais
persistente.
Para de perder tempo com afazeres! Completa teu destino! Pega
a coroa para ser tua se quiseres!
Ingrid tentou ignorar o espelho. A rainha era a sua irmã, e ela
estabelecia um limite quanto a destruir a única pessoa que amava
de verdade. Sim, era fato, Katherine agora amava outra pessoa
mais do que jamais a amara, mas Georg era apenas um
inconveniente. Alguém de quem, algum dia, conseguiria se livrar.
Jamais imaginara que ainda teria que competir com outra pessoa
pela atenção de Katherine… alguém a quem não seria tão fácil
eliminar.

Dezessete anos antes

— Ela não para de chorar nunca? — perguntou Ingrid,


balançando o bebê pelo quadril enquanto uma equipe de mulheres
ajudava Katherine a se vestir para os compromissos do dia.
Katherine riu.
— Sim! Você tem de paparicá-la, Ingrid. Bebês precisam de
atenção e carinho, e que lhes digam que tudo ficará bem.
Paparicá-la? Aquele bebê era muito egoísta.
Dois anos se passaram desde que ela se mudara para o castelo
e, em vez de o amor de Georg e Katherine minguar, ele só ficou
mais forte com a chegada da primogênita. A menina herdara as
melhores qualidades dos pais, graças aos céus. (Katherine poderia
considerar Georg bonito, mas, para Ingrid, ele se assemelhava a um
sapo.) Batizaram-na de Branca de Neve. Com bochechas de
porcelana, olhinhos redondos com cílios maravilhosos e cachos
negros e espessos, a nova princesa do reino era adorada por
todos… exceto por uma pessoa.
Toda vez que a pequena Branca de Neve fitava os olhos de Ingrid,
ela podia jurar que a criança sabia das trevas da sua alma. Toda vez
que a segurava — o que era bastante, visto ser tanto a dama de
companhia da rainha quanto tia da princesa —, a criança berrava.
Lágrimas rolavam pelas faces de Branca enquanto Ingrid tentava
a embalar, sussurrando para que se calasse. Mas não importava o
que tentasse, a criança não se tranquilizava nos seus braços.
— Passe-a para mim, deixe-me mostrar — disse Katherine,
pegando Branca no colo e segurando o bebê de seis meses nos
braços. O movimento ritmado combinado ao sorriso animado da
mãe acalmou a criança no mesmo instante. Em questão de minutos,
o bebê estava até arrulhando. O restante das pessoas no cômodo
se aproximou para observar.
— Nossa rainha é uma mãe nata — comentou uma criada que
Ingrid não suportava.
Ingrid empurrou a mulher de lado.
— Katherine? Já terminou? Era para discutirmos o acréscimo de
trabalhadores nas minas. De fato, creio que seria melhor só
aumentar a carga horária dos que já estão lá trabalhando. — Uma
das criadas fitou Ingrid com desdém. Ingrid não deu importância. —
Se fizermos isso, poderemos dobrar a extração de diamantes, e
nosso lucro seria vultoso.
Katherine a ignorou, continuando a arrulhar com Branca de Neve,
que se deleitava com as atenções que deveriam ser direcionadas a
Ingrid.
— Katherine? — A voz de Ingrid ficou mais incisiva. — Temos
apenas meia hora juntas. Você tem um dia muito atribulado pela
frente e não dispomos de muito tempo para discutir os assuntos.
— Ah, Ingrid — disse Katherine, com os olhos ainda em Branca.
— As minas podem esperar mais um dia. Neste instante, venha
aproveitar a sua sobrinha comigo.
— Mas… — Aquilo era exasperante! O reino precisava de alguém
que o guiasse com punho firme. Eles poderiam estar nadando em
riquezas se o patético Georg fosse firme e fincasse o pé! Passar
mais horas nas minas, não importando quanto os mineiros
alegassem que as condições eram instáveis, faria com que
acumulassem mais fortuna do que jamais viram na vida!
Agora é a hora. A tua ambição, pega. O poder supremo, agarra.
— Você fica dizendo isso, mas não é possível — ralhou Ingrid, e
todos olharam para ela. Acabar de dizer aquilo em voz alta?
Para mim te entrega. Põe a mão no vidro. Mostrar-te-ei o que, em
ver, tu falhas.
Portanto o espelho queria mais alma. Sendo bem honesta,
detestava tocar no espelho. A cada vez que fazia um contato direto
com o objeto, ele parecia ficar mais iluminado, enquanto ela se
sentia fraca e cansada. Essa sensação só podia ser uma invenção
de sua cabeça. Afinal, era apenas um espelho… um espelho que
falava com sua alma. Já fizera aquilo diversas vezes, e o elo entre
ela e a magia se fortalecera. Agora conhecia feitiços dos quais
nunca ouvira falar e teve brilhantes ideias sobre como consertar o
reino. Mas odiava a sensação de exaurimento.
— Disse algo, Ingrid? — Katherine perguntou. Nem sequer
conseguia olhar para ela ao fazer a pergunta. Que ultraje! Aquele
bebê ridículo tomava todo o tempo e a atenção de Katherine. E
deveres reais tomavam conta do resto.
— Não — resmungou Ingrid, apesar de desejar berrar.
Sabes o que necessita ser concluído. Uma vida por uma coroa…
se queres este embate vencido, o espelho repetiu uma vez mais
para Ingrid.
Mas ela ainda não estava pronta para lhe dar ouvidos.
CAPÍTULO ONZE

Branca de Neve

— HOJE FIQUEI SABENDO de algo que pode ser útil — Feliz


declarou enquanto o último prato era enxugado e recolocado na
prateleira.
Os homens e Branca ergueram os olhos das diversas posições
em que se encontravam pelo chalé. Feliz e Mestre estavam
encarregados da louça, enquanto Dunga e Dengoso varriam o chão.
Zangado acendia a lareira e Branca, Atchim e Soneca limpavam a
cozinha.
Durante a última semana, ela morara com os homens, ou anões,
como descobrira que eles se referiam a si mesmos, e logo se
adaptou à rotina. Os homens não queriam que ela limpasse ou
cozinhasse para eles (“você é uma princesa!”, protestaram), por isso
chegaram ao acordo de dividirem as tarefas domésticas, enquanto
Branca preparava as refeições durante o tempo que passavam nas
minas. Ela não saía do chalé durante o dia — Zangado a fizera
prometer. (“A rainha tem olhos em toda parte! Não abra a porta para
estranhos!”) Em vez disso, ela tentava pensar em maneiras de
desafiar a tia, em caminhos inexplorados que poderia examinar.
Mas, embora entendesse o motivo, odiava ficar enfiada ali o dia
todo. Isso a fazia se lembrar da vida que passara presa no castelo.
O jantar era um evento em família. E, ah, como adorava! Quem
diria que havia tantos assuntos a serem compartilhados todos os
dias? Ela adorava quando os homens partilhavam histórias sobre
seu trabalho nas minas, enquanto, com frequência, ela
compartilhava relatos sobre sua vida no castelo quando era
pequena ou sobre os tipos de pássaros que avistava pela janela. E
também havia as perguntas. Ela descobriu que tinha muitas! Depois
de permanecer em silêncio por tanto tempo, queria perguntar sobre
tantas coisas e estava sempre interessada em saber mais sobre os
anões e sua vida. Queria saber quem entalhara as lindas portas e a
mobília do chalé, e por que os cervos e os pássaros pareciam se
demorar na janela da cozinha enquanto ela cozinhava.
— Eles devem adorá-la, assim como nós — disse Dengoso com
entusiasmo.
— Eu também adoro vocês! — Branca dizia. Ela descobriu que
poderia ficar conversando com os homenzinhos até a vela se
apagar todas as noites.
Parecia que, enfim, ela estava despertando e encontrando sua
voz depois de anos numa escuridão silenciosa. E, por mais que lhes
prometesse que não faria mais do que sua parte nos afazeres, não
conseguia deixar de tentar encontrar maneiras singelas de retribuir a
gentileza deles quando não estava ocupada com estratégias. A
despeito dos protestos, ela preparava uma cesta de comida para
levarem ao trabalho todos os dias. Remendava as meias
minúsculas. E, secretamente, estava usando o novelo e as agulhas
que encontrara para tricotar mantas para as camas. Podiam estar
no verão, mas ela não pôde deixar de notar que tinham poucas
mantas para os meses de inverno.
Tricotar a ajudava a passar o tempo enquanto eles estavam fora,
mas também a fazia pensar. E pensar sobre a mãe sem saber como
vingá-la estava deixando Branca ansiosa. Enquanto a tia continuava
a ditar ordens do castelo, Branca permanecia sentada naquele
adorável chalé sem fazer nada. Mas Zangado a lembrava repetidas
vezes: “Sem um plano real, você vai acabar morrendo. E morta você
não fará bem a ninguém.”
E assim ela esperava e tentava pensar em respostas. Como
poderia pôr um fim ao reinado da Rainha Má e retomar o reino para
si? Ela era apenas uma garota.
Uma voz pode ser bem poderosa quando é ouvida acima de todas
as outras.
Eram palavras da mãe. Quando alguns súditos tinham
descontentamentos, às vezes hesitavam em se fazer ouvir, temendo
que suas vozes caíssem em ouvidos moucos. Então a Rainha
Katherine falava exatamente isso do trono, enquanto Branca se
sentava por perto e assistia. E, na maior parte das vezes, os súditos
não temiam mais contar suas histórias. Mas como Branca contaria
às pessoas que estava à sua disposição se ninguém nem ao menos
sabia que ela estava viva?
Soneca bocejou ao seu lado, trazendo-a de volta ao presente. Os
olhos dele pareciam pesados pelo cansaço do dia. Os homens
trabalhavam por longas horas.
— Ouvi por acaso Frederick de Knox Hill dizer que muitos em seu
vilarejo estão pensando em abandonar o reino — Feliz lhes contou.
— Abandonar o reino? — repetiu Branca. — Mas por quê? Não
há trabalho?
— Não — respondeu Feliz. — Há trabalho demais! E impostos em
excesso. Não têm mais meios para ficar.
Branca abaixou o pano de limpeza, consternada.
— Tenho que falar com esse Frederick. E com seu vilarejo. Eles
não deveriam se sentir forçados a abandonar o lar por causa de sua
soberana.
— Você está tão brava quanto um zangão! — Zangado gesticulou
com o atiçador da lareira. — Não tem poder para mudar o destino
deles.
Os olhos de Branca se arregalaram quando um pensamento
súbito surgiu.
— A menos que eu junte homens como Frederick e lhes dê um
motivo pelo qual lutar! — Ela olhou para os demais. — Se eu falar
com o meu povo pessoalmente, contar-lhes que estou viva e pronta
para retomar o meu reino por eles, talvez me ajudem a lutar contra a
Rainha Má.
— Mas se alguém procurar a rainha e lhe contar o que está
tramando… — Dengoso parecia preocupado.
Os olhos de todos se desviaram para a janela. Um corvo
aparecera em mais de uma ocasião naquela semana, e os homens
começaram a indagar se a rainha não os estava observando. Mas
se ela sabia onde Branca estava, Feliz argumentou, a esta altura já
não teria ido buscá-la?
— Os guardas não ficam andando pelos vilarejos nos arredores
— Mestre o lembrou. — Eles só aparecem nos dias em que há
taxas a pagar. Contanto que evitemos os guardas, Branca poderá
falar de modo livre sem perigo.
— Mas se a rainha descobrir o que ela está fazendo… — Atchim
assoou o nariz vermelho. Sua alergia andava muito atacada nos
últimos dias.
Branca inspirou fundo.
— Em algum momento ela ficará sabendo que estou viva. Por
isso, preciso agir rápido e falar com quantos mais simpatizantes
puder. Se lutarem comigo, então, quem sabe, poderemos armar um
golpe e destroná-la.
Zangado cofiou a longa barba branca.
— É arriscado, mas pode dar certo. Deve haver muitos
simpatizantes, como nós. Podemos tentar organizá-los e prepará-los
para invadir o castelo numa data específica.
— Daqui a duas semanas — anunciou Branca, decidida, e eles a
olharam.
— Não é muito tempo! — disse Soneca.
— É só do que dispomos — replicou Branca. — A rainha logo
descobrirá que estou viva e, depois disso, nosso tempo será curto.
Precisamos estar prontos. Em duas semanas — repetiu, tentando
soar mais confiante do que se sentia. — É tempo suficiente para
conversarmos com moradores de diversos vilarejos e nos
organizarmos.
— Onde encontraremos mais pessoas que possam estar
dispostas a ajudar? — perguntou Mestre.
Feliz bateu na mesa animado.
— Ouvi muitos homens falando nas minas! Seus vilarejos não
ficam longe daqui.
Zangado correu até um baú na sala de estar. Destrancando-o, ele
ergueu um rolo de pergaminho e o levou até a mesa. Os outros o
cercaram para ver enquanto ele alisava o mapa na mesa, ajeitando
os vincos. Era um mapa circular do reino feito à mão. O castelo
estava no centro, e o reino se dividia em quatro partes, incluindo a
fazenda em que a mãe de Branca passara a juventude, a área
mineradora na qual estavam, uma seção basicamente coberta de
vegetação e outra cercada por lagos. Casinhas e nomes de vilarejos
pontuavam as quatro partes como prêmios prontos a serem
apanhados. O pergaminho estava amarelado, era frágil, mas o
mapa detalhado do reino era a maior arma de Branca no momento.
Se queria acabar com o reinado da tia, precisaria de mais ajuda do
que apenas os sete homens diante dela. Ela convenceria as
pessoas, uma a uma se fosse preciso, a fazerem algo e lutarem ao
seu lado.
Uma voz pode ser bem poderosa quando é ouvida acima de todas
as outras.
Branca tocou nas margens do mapa com delicadeza. Percebeu
que aqueles lugares adoráveis representados naquele pedaço de
papel — lugares aos quais jamais fora — formavam o seu reino. Era
lindo e um tanto impressionante.
— Por onde começamos?
— Por aqui. — Feliz apontou para um agrupamento de chalés
cinza não muito distante da cascata. — Este é o vilarejo de
Frederick. O tempo tem estado tempestuoso por essas partes nos
últimos dias. Choveu tanto que ele não pôde ir trabalhar nas minas
algumas vezes por causa disso.
Os homens tinham saído mais tarde do que o costume no dia
anterior pelo mesmo motivo.
— Tem chovido muito em boa parte do reino, pelo que se soube
— acrescentou Mestre.
— O tempo combina com o humor das pessoas — disse
Zangado.
— Se esperarmos até o cair da noite — sugeriu Feliz —,
evitaremos que você seja vista.
— Precisaremos de algumas armas — Zangado lhes disse. —
Não podemos subjugar os guardas de mãos abanando.
— Temos nossas picaretas! — Mestre o lembrou, e os outros
assentiram.
— Não é o bastante. — Zangado socou a mesa. — Não ouviram
do que a rainha é capaz? Ela tem um exército à sua disposição; um
exército que atende a ela, não a você — argumentou, olhando para
Branca. — Não estará apenas enfrentando uma rainha má, mas
uma bruxa das artes sombrias.
— Zangado tem razão — concordou Feliz, parecendo tudo menos
isso. — Precisamos de algum tipo de poção também, homens, se
iremos lutar contra ela.
— Sei que costumava haver uma loja de magia das trevas no
mercado. Talvez ainda exista — sugeriu Atchim. — Alguns dizem
que a rainha costumava trabalhar lá quando era moça.
Zangado bateu-lhe com seu gorro.
— Seu tolo! Então não podemos ir lá. Quem quer que esteja no
comando da loja deve estar mancomunado com ela, não percebe?
— Olhou para os outros. — Onde mais podemos conseguir magia?
Todos olharam para o mapa como se ele tivesse as respostas.
Mas, pelo que Branca podia ver, não havia nenhuma cabana ou
uma caveira na qual estivesse escrito “feitiçaria”.
Dengoso parecia nervoso.
— Nas minas, as pessoas conversam sobre o que fariam se
ficassem presas ali. Como sairiam. Ouvi homens falando sobre um
elixir encontrado na seiva de uma árvore da Floresta Assombrada
que pode mudar o formato das pessoas. É possível crescer ou
encolher. Virar um pássaro ou um boi. O que precisar para sair
daquele buraco.
— Uma árvore? — Zangado repetiu, cético. — A floresta tem
muitas árvores!
Dengoso se recostou.
— Dizem que essa tem um rosto, e que parece estar uivando.
Branca fechou os olhos com força no instante em que uma
lembrança muito parecida surgiu.
— Já vi uma árvore como essa. — Ela abriu os olhos, e seu
coração se acalmou ao ver os anões. — Vaguei pela Floresta
Assombrada. Depois que fugi do caçador, fui parar lá. Foi horrível.
— Estremeceu. — Senti como se nunca mais fosse ver o sol.
Só a ideia de ter que voltar ali fez seu sangue gelar. Os
pensamentos que passaram pela sua cabeça, as imagens que
visualizou e a sensação de mais absoluta solidão quase a
consumiram — tudo fora intenso demais. Ficou imaginando se
aquilo era parte do poder da árvore.
— Você estava sozinha — Zangado disse num tom mais suave.
— Desta vez, não estará.
— Os espíritos não podem atingi-la se estiver acompanhada —
Feliz acrescentou como quem sabe das coisas. Os outros
assentiram.
Ela não sabia se aquilo era verdade, mas as palavras a
reconfortaram. Exalou fundo. Zangado poderia estar certo em dizer
que precisavam de uma espécie de magia. Ela não queria que os
súditos que encontrasse fossem levados à luta sem proteção.
Estariam lutando por si próprios, mas também lutariam por Branca.
— Está bem. Voltarei à Floresta Assombrada. E encontraremos
essa árvore.

No dia seguinte, os anões não trabalhariam nas minas e não


perderam tempo em partirem para a floresta. Caminharam boa parte
do dia em silêncio — algo que Branca conhecia muito bem, mas,
naquela manhã em especial, ela, de todo modo, não estava com
muita vontade de conversar. Estava nervosa demais. Aonde sua
mente a levaria quando estivesse de volta àquele lugar horroroso?
Quietos!, ordenou aos pensamentos frenéticos, acalmando o
coração e as mãos. Dessa vez, ela não deixaria que a
consumissem. Serei valente!
Sabia que tinham chegado aos limites da Floresta Assombrada
quando viu a neblina que vinha dali. Mais adiante, a folhagem se
transformava de verde para preta, e a grama próxima aos limites da
floresta era desprovida de cor. Um pássaro emitiu um pio solitário,
parecendo implorar ao vizinhos que evitassem a escuridão. Em vez
disso, prosseguiram juntos.
— Não confie na maioria das coisas. Apenas nos pensamentos
em sua mente — alertou Zangado, percebendo a ansiedade de
Branca.
Um corvo os sobrevoou e os homens pararam. O mesmo pássaro
estivera à janela deles mais cedo. Tinha que ser um mau presságio.
Branca sentia como se uma ampulheta estivesse marcando o tempo
que tinham até que a Rainha Má os encontrasse — e sentia a areia
escorrendo.
Zangado olhou para o pássaro.
— E, mesmo assim, também não confie nas criaturas dali.
— Combinado — disse Branca, passando pela fileira de árvores.
A luz do sol e o calor em seu rosto desapareceram quase de
imediato.
Lá dentro, onde as sombras reinavam, o ar era mais frio e uma
brisa roçava sua nuca. Enquanto deixava que os olhos se
acostumassem à luz, ouviu os sussurros familiares da sua última
visita. Recusava-se a se permitir decifrar o que diziam. Em vez
disso, concentrou-se nos seus passos. À frente, viu a clareira pela
qual tinha passado para sair da floresta. Além dela, Branca sabia,
estava o lago turvo, as árvores que pareciam ter puxado seu manto
e seu vestido, além da densa escuridão. Era ali que estava a árvore.
Tinha certeza disso.
— É por aqui — falou, tentando manter a voz firme.
— Está escuro aqui — comentou Dengoso.
— E daí? — perguntou Atchim. — Você trabalha numa mina.
Deveria estar acostumado à escuridão.
— Mas os espíritos… — disse Soneca, parecendo mais sério do
que o costume.
— Espíritos? — repetiu Mestre. — Devem ser apenas boatos que
a rainha inventou para afastar as pessoas da árvore uivante. Uma
árvore poderosa assim precisa de proteção; que lugar melhor do
que uma suposta floresta assombrada?
Mestre tocou num ponto importante. Mesmo assim… Branca
estendeu a mão.
— Está bem escuro — comentou. — Fiquem perto para não nos
separarmos.
— Podemos dar as mãos — sugeriu Zangado, pronto como
sempre a assumir a liderança. — Venham, homens!
— Sigam-me — disse Branca com firmeza ao conduzi-los pela
escuridão à frente. O ar era denso. O silêncio amplificava todos os
sons, cada folha seca esmagada pelos pés ecoando na escuridão.
Branca se concentrou bem para enxergar nas sombras diante dela.
Foi ficando mais difícil à medida que o nevoeiro se espessava.
Todas as árvores mortas pareciam iguais — partidas e retorcidas,
como se os galhos estivessem tentando agarrá-los. Ela lembrou a si
mesma que aquilo era apenas a sua imaginação passando-lhe a
perna.
— Alguma novidade? — inquiriu Zangado.
— Ainda não — admitiu Branca. Tinha encontrado uma árvore
que parecia estar gritando com ela, não? Tinha certeza de que a
vira. Mas será que poderia ter sido fruto da sua imaginação assim
como tantas outras coisas que aconteceram naquelas paragens?
Teria levado os homens àquele lugar horrendo à toa?
Crack! Todos olharam de pronto na direção do estalido. Branca
aguçou os ouvidos; conseguia ouvir o canto de um pássaro
conhecido.
— O que foi isso? — exclamou Mestre.
— É um fantasma! — lamentou-se Soneca.
Branca sentiu a mão de Mestre deslizar da sua em pânico. Houve
gritos, e ela ouviu alguns lamentos. Branca tentou falar mais alto.
— É uma coruja! — tentou tranquilizá-los, surpresa por
permanecer tão calma. Mas ela reconhecia o pio. Ela e a mãe
também estudavam os pássaros noturnos. — Não há nada a temer!
É apenas uma…
— Não! — Ela ouviu Feliz gritar e se virou. — Não! Recuem!
Recuem!
Ouviu gritos e o barulho de passos apressados. As vozes dos
homens soavam mais distante. O que estava acontecendo?
— Não estamos sozinhos! — gritou Zangado. — Fuja, Branca,
fuja!
Branca congelou. Ouvira essas palavras antes — do caçador. Ele
teria voltado para dar cabo dela? Iria ferir seus novos amigos?
— Volte, Branca! Corra sem parar! — berrou Mestre.
Não. Ela não fugiria. Não mais.
— Não! — exclamou Branca. — Não vou permitir que ele lhes
faça mal! — Ela correu na direção da confusão, adentrando a névoa
e a escuridão e, segundos mais tarde, chocou-se contra algo mais
largo do que ela. Caiu de joelhos com o impacto e se esforçou para
se levantar de pronto. Sentindo a terra debaixo das unhas, procurou
algo para usar e defender a si e aos outros. A mão se fechou ao
redor de um galho grosso e ela saltou, girando-o no ar. Ouviu-o
chocar-se contra um corpo.
— Ai!
Era uma voz masculina. Tinha que ser o caçador, indo atrás dela.
Ela não queria feri-lo, afinal ele lhe poupara a vida uma vez, mas
teria de assustá-lo se não pudesse dialogar com ele.
— Vá embora e será poupado, caçador! — anunciou, mas,
mesmo enquanto dizia essas palavras, sabia que pareciam uma
tolice.
— Caçador? — Zangado repetiu de algum lugar na escuridão. —
Homens, é aquele que tentou matar a princesa! Peguem-no!
Branca girou o galho sem parar e atingiu seu agressor uma vez
mais. Ouviu-o começar a tossir e o som das folhas quando ele caiu
no chão.
— Vá embora agora e não será ferido! — repetiu, dando um
passo à frente. Mas ela escorregou nas folhas úmidas e se sentiu
deslizar uma vez mais. Dessa vez, bateu no chão com força e
começou a rolar, parando ao se chocar contra ele. A mão ainda
segurava o galho com firmeza. Branca o ergueu, totalmente
preparada para usá-lo de novo, quando um facho de luz passou
pelas árvores, atravessando a escuridão.
— Pare! Por favor! — Ela o ouviu dizer ofegante. — Não sou
nenhum caçador!
— Branca! — Feliz se curvou para baixo e a puxou para cima. —
Você está bem?
— Amarrem o caçador — Zangado ordenou. — Nós o deixaremos
aqui para que a floresta cuide dele.
— Esperem! — disse Branca, mas os anões a detiveram.
— Esperem! — ecoou o homem, mas sua voz soava diferente
agora que a ameaça passara. — Por favor! Não sei de quem estão
falando. — Ele tossiu com violência. — Não quero fazer mal. Eu me
perdi na floresta. Este lugar é estranho. Não costumo fazer isso,
mas o tempo era escasso… — murmurou. — Estou procurando uma
pessoa. Por favor, ajudem-me.
Aquela voz… Parecia familiar. Era acolhedora. Onde a ouvira
antes? Curiosa, Branca se curvou para enxergar melhor, antes que
os anões a impedissem. Retirou o chapéu do agressor e o largou no
chão, surpresa.
— Henri?
Ele tentou se sentar rápido, mas caiu para trás. Passou uma mão
pelos cabelos castanhos e piscou duas vezes, surpreso.
— Branca de Neve?
— Você o conhece? — Zangado continuava apontando um galho
comprido para ele.
— Sim! — Branca disse com alegria. Não conseguia acreditar que
estava vendo o príncipe de novo, e ainda mais ali. — O que está
fazendo aqui?
Ele parecia não estar estável, por isso Branca o segurou pelo
braço, apesar de lhe parecer estranho segurar o braço de um rapaz
dessa maneira.
— Venho procurando por você, Branca!
— Por mim? Para quê? — perguntou, com o coração batendo
mais rápido.
— Tinha a urgente missão de voltar para o seu castelo e voltar a
encontrá-la, então tomei um atalho, mas meu cavalo se assustou e
disparou na escuridão — explicou Henri. — Fiquei dando voltas e
não consegui encontrar a saída.
— Hum. Que plano, hein? — resmungou Zangado.
— Urgente? — repetiu Branca. — É a respeito da rainha? Ela
contou ao reino que estou morta?
— Você, morta? — Os olhos azuis de Henri ficaram carregados
de surpresa. — Está se referindo a ele? Não imaginávamos que ela
pensasse nele como uma ameaça, mas ele poderia ser…
O que o rapaz falava não fazia sentido algum. Branca esticou a
mão e tocou a cabeça de Henri; em seguida, retraiu-a com a mesma
rapidez. Todos olhavam para ela. Branca sentiu o rosto corar.
— A queda foi muito forte, Henri? — perguntou, tentando manter
a leveza na voz. — Do que está falando?
Henri agarrou a mão dela.
— Branca, eu encontrei o seu pai.
CAPÍTULO DOZE

Ingrid

Dez anos antes

NO SEGUNDO EMQUE tocou no vidro com a ponta dos seus


dedos, conseguiu sentir a energia sendo drenada do seu corpo. Os
dedos foram ficando mais quentes, e, por fim, a sensação irradiou
pelo seu braço, passou pelos ombros e se espalhou por todo o
corpo.
Ela não olhou para o espelho enquanto a mudança acontecia. Por
algum motivo, sempre mantinha os olhos fechados e se distraía com
o zunido baixo que o espelho emitia. Fazia com que se lembrasse
de raios estalando por cima das colinas além dos muros do castelo.
Ceder mais da sua alma, como o espelho chamava, era uma ação
desesperada. Depois da última vez, jurara que jamais voltaria a
fazer isso. O procedimento a deixava sempre mais fraca e adoecida.
Ficava tão doente que tinha que permanecer acamada por vários
dias, de cortinas fechadas e bloqueando todos os sons. Mesmo o
barulho de um dedal caindo soava como um terremoto. Abrir os
olhos a fazia sentir como estar olhando direto para o sol. Todos os
ossos do corpo pareciam berrar de dor mesmo ao mínimo
movimento, e a cabeça latejava com uma enxaqueca devastadora
que nunca sentira antes. Levava dias até que conseguisse se sentar
ou até mesmo comer um bocado de pão.
Quando seu corpo recobrava as forças, ela conseguia sentir a
diferença correndo em suas veias. O espelho estava certo: tornava-
se mais poderosa, mais inteligente e mais bonita do que antes.
As criadas se maravilhavam quando ela saía dos seus aposentos
com a pele tão jovem que aparentava a metade de sua idade. “Uma
noite bem dormida faz maravilhas para a senhora, Lady Ingrid.”
Ingrid não dizia nada e continuava a andar, mas adorava ouvir os
sussurros delas.
— Parece até mais nova que a rainha! — Ouviu uma dizer um dia.
— Como isso é possível?
— Feitiçaria! — alguém inevitavelmente sugeria.
Que falassem. Só eram um bando de invejosas. Como não
seriam? Estava mais bela do que há anos. Os calos dos anos de
trabalho na lavoura e na loja de magia tinham desaparecido. Sua
pele agora era branca como leite e viçosa em vez de castigada pelo
tempo. Seus cabelos eram pura seda. E a força que sentia — não
só física, mas também mental — era a maior alegria que sentira.
Talvez o espelho estivesse certo: valia a pena passar pelo processo
tormentoso.
Pelo menos era o que dizia a si mesma ao recomeçá-lo uma vez
mais. Não planejara entregar mais de si ao espelho tão cedo, mas
Katherine se tornara insuportável. Todo o seu tempo livre agora era
dedicado a Branca de Neve. A criança já não necessitava dos
cuidados de quando era bebê, e, mesmo assim, Katherine ainda
preferia a companhia dela à da irmã.
— Venha conosco — Katherine dizia toda vez que Ingrid
reclamava que elas já não passavam tempo algum juntas. —
Brinque com sua sobrinha. — Mas Ingrid não tinha tempo para
brincar. Queria executar mudanças no reino e em sua infraestrutura.
Queria que Georg se tornasse mais firme e parasse de deixar que
outros reinos passassem por cima deles. Mas Katherine tinha outros
interesses — ela era a rainha do povo, passando o tempo ouvindo
as preocupações das pessoas, certificando-se de que as condições
agrícolas ao longo de todo o reino fossem as ideais. Ter sido criada
por um fazendeiro fez com que acabasse se preocupando
principalmente com o comércio agrícola do reino em vez de com
assuntos que interessavam a Ingrid, como a mineração. Havia muito
mais dinheiro a ser ganho se Katherine abrisse mais túneis, o que
aumentaria o comércio de diamantes. Mas não. Katherine acatava
as decisões de Georg no que se referia aos diamantes. E ele
também se preocupava mais com as condições da extração do que
com o seu retorno. Era um governante ineficiente.
Se Katherine não conseguia escutar a voz da razão quando o
assunto eram as minas, então Ingrid encontraria outro caminho até
os ouvidos de Georg.
Tudo custa uma quantia. Mais alma é necessária. Basta de
cortesia, o espelho lhe disse.
Por isso estava ali de novo.
Ingrid descobrira que, caso ficasse recitando encantamentos para
si enquanto a cerimônia da alma acontecia, tudo parecia transcorrer
mais rápido. Por isso não ouviu as portas de seu quarto sendo
abertas e Katherine chamando seu nome. Foi só no momento em
que as portas do closet se abriram, deixando entrar a claridade do
dia, que Ingrid percebeu que tinha companhia.
— Ingrid? — Katherine parecia uma criança assustada. Os
ombros se retraíram e sua boca perfeita se abriu numa expressão
de surpresa constrangida. — O q-que v-você está fazendo? — Sua
voz de repente saiu entrecortada.
Katherine olhou de Ingrid para o espelho, notando a luz pulsante
que passava como um raio do vidro ao longo do corpo de Ingrid.
Horrorizada, Katherine começou a se afastar.
— Espere! — Ingrid gritou.
Precisamos continuar, o espelho lhe disse. Deixa-a estar. Tua
perdição virá se agora parar.
— Espere! — Ingrid gritou mais alto, sentindo-se uma prisioneira
em seu próprio corpo. Conseguia ouvir Katherine chorando no outro
cômodo. A qualquer segundo os guardas invadiriam a sala e todos
veriam seu segredo. Não podiam saber do espelho e dos seus
poderes. Alguém certamente tentaria roubá-lo dela caso
descobrissem do que ele era capaz.
Deveria ficar e completar o processo ou deveria ir atrás da irmã?
Nunca vira Katherine tão aborrecida assim. Sentiu-se dividida.
Ingrid, ao que digo escuta. Muita atenção presta. Fica, fica, fica,
fica…
Mas ela não lhe deu ouvidos. Tinha que ir atrás de Katherine.
Afastou a mão do espelho, e a luz desapareceu. Em seu estado
frágil, não conseguiu ir até o outro quarto com rapidez, mas, quando
conseguiu, encontrou Katherine toda encolhida, chorando como não
fazia desde que era criança.
— Katherine… — começou a dizer.
A irmã virou-se na direção dela, o rosto todo crispado de raiva.
— Você é uma bruxa!
Ingrid cambaleou para trás, trôpega.
— Não. — Sua voz mal passava de um sussurro. Dormir. Tudo de
que precisava era dormir.
— Sim, você é! — Katherine estava inconsolável. — Georg me
alertou. Disse que ouvira boatos sobre o que você fazia nos seus
aposentos, mas não acreditei nele. Respondi que você deixara esse
mundo ao se mudar para o castelo e se tornar minha dama de
companhia. Disse que você jamais praticaria magia das trevas, não
com sua sobrinha dormindo debaixo do mesmo teto!
— Não é magia das trevas — disse Ingrid, mas sua voz não tinha
a mesma força de sempre. Ela parecia fraca e odiou aquilo. — É
algo com que me entretenho no meu tempo livre, o que tenho
bastante. Você nunca precisa de mim para assuntos importantes.
— Mentirosa! — Katherine a atacou, com lágrimas escorrendo
pelo rosto. Ingrid nunca a vira brava assim antes. — Você não
apenas se entretém. Essa é a sua arte. Ouvi dizer que vinha
executando rituais, cometendo atos sombrios, praticando o controle
da mente, mas não quis acreditar que isso fosse verdade.
Ingrid revirou os olhos.
— Controle da mente? Ora, por favor.
— Georg tinha razão. — Katherine começou a recuar. — O seu
coração está infectado pela magia das trevas. O que você estava
fazendo com aquele espelho… os feitiços, os raios estranhos e
gélidos, e a névoa preta… isso é sobrenatural. É maligno.
— Você está exagerando — Ingrid lhe disse. — O que faço no
meu tempo livre é da minha conta. Nunca a afetou! Você tem a vida
perfeita, a família perfeita. Que direito tem de me dizer o que posso
ou não fazer?
— As suas decisões podem afetar Branca! Eu não a quero perto
desse espelho — Katherine falou. — Ele tem que ir embora! Está
obscurecendo o seu coração!
— O espelho é meu! — Ingrid não se conteve, sentindo gosto de
sangue. Mordera a própria língua. Gotículas de sangue escorreram
pelo queixo. Katherine se afastou ainda mais. — Você não pode
tocar nele e não pode mandá-lo embora porque não é seu. — Sua
voz estava mais forte agora, venenosa. Seu mestre também tentara
tirar o espelho dela, e veja o que lhe aconteceu. Estava a sete
palmos agora. — Você tirou tudo de mim. Não deveria ser a única a
ter permissão para receber amor.
— Amor? — Katherine questionou. — Ingrid, é um espelho. Ele
não pode amá-la.
Ingrid arfou. Ela não tinha que ficar se explicando.
— Você não manda em mim!
Katherine aprumou os ombros, e sua expressão se endureceu.
— Na verdade, mando, sim. Sou a rainha, e se digo que o
espelho tem que ir embora, ele vai embora. Ou você vai.
— Está ameaçando me expulsar? — Ingrid perguntou, incrédula.
Como a irmã ousava se comportar assim! Ingrid a criara. Cuidara
dela como uma mãe. Dera tudo à irmã e não recebera nada em
troca. Katherine amava mais a sua nova família do que jamais a
amara. Isso nunca mudaria. E, agora, ela enfim tinha uma conexão
profunda, significativa, pois o espelho precisava dela de uma
maneira que Katherine jamais precisou. E sua irmã queria tirar-lhe
isso?
Katherine hesitou antes de falar:
— É para o seu próprio bem. — Segurou a porta. — Tenho que
contar isso a Georg. Lamento muito. — Fechou a porta com firmeza
atrás de si, e Ingrid despencou no chão.
Isto é o que deixaste de ver. Poderia ter sido evitado. Alertei-te
sobre o que estava para acontecer.
Ingrid fechou os olhos, sentindo uma dor se infiltrar por trás deles
e o início de uma enxaqueca. Mesmo com o ritual executado pela
metade, ela ainda se sentia fraca. Não podia nem sequer responder.
Sabes o que podes perder. O tempo urge. O futuro de quem vais
escolher?
O futuro de quem?, Ingrid pensou, temendo admitir a verdade em
voz alta.
Uma única lágrima escorreu pela face enquanto pensava no que o
espelho sugeria. A fim de manter o espelho, Katherine tinha que
morrer. Ingrid brigara com isso por tanto tempo, mas, no fim, o
espelho estivera certo. O que Katherine lhe dera? Um título sem
importância? Ela lutara contra a profecia do espelho por tanto
tempo, mas já não podia mais fazer isso. Se Katherine ameaçava
expô-la junto com o espelho, então uma providência deveria ser
tomada. Era sempre ela quem tinha que tomar as decisões. Fora ela
quem as tirara do chalé do pai. Fora ela a pedir abrigo ao fazendeiro
e quem as levara à corte. Ela criara Katherine e, agora, a irmã tiraria
a única coisa que lhe importava. Katherine tinha tudo, enquanto
Ingrid lutara em todos os instantes da sua mísera vida. Por que
Katherine ainda vivia a vida que estivera destinada a Ingrid?
A ti deves escolher. Não te demores mais. Se queres ser rainha,
sabes o que deves fazer.
— Sim — sussurrou Ingrid, um plano já se formando nos recessos
da mente. Katherine tinha que morrer, e ela bem sabia como
garantir que isso acontecesse. Talvez o plano estivera sempre ali,
porque, no minuto em que aceitou o destino da irmã, a dor sumiu e
os ingredientes necessários para tratar do assunto surgiram com
presteza em sua mente. Enquanto, a princípio, sentira culpa e
tristeza, agora só lhe restava raiva. Katherine enfim teria o que
merecia.
Só podia existir uma rainha naquele castelo, e sua irmã não fora
quem nascera para usar uma coroa.
Ingrid sorriu com maldade. Por muito tempo ela reinaria.
CAPÍTULO TREZE

Branca de Neve

BRANCA FICOU IMÓVEL.


— Você encontrou o meu pai?
— Sim. — Henri olhou para ela sem vacilar.
Foi como se o terreno fosse areia movediça e ela estivesse
prestes a ser engolida por completo. Recentemente, convencera-se
de que a tia matara seu pai. Parecia-lhe cada vez mais improvável
que ele estivesse vivo em algum lugar.
— O meu pai. Tem certeza disso?
Henri assentiu.
— Tenho. Ele me contou a respeito de você e de sua mãe, do
viveiro que sua mãe encomendou e de todos os pássaros. Contou-
me sobre o poço dos desejos e os jardins. — Os olhos azuis dele
brilhavam de animação. — Ele conhecia o terreno do castelo e do
reino como a palma da mão. Acredito mesmo que seja ele! — Os
anões se reuniram ao redor para ouvir. — O Rei Georg está vivo e
sente muito a sua falta.
Ante as palavras “Rei Georg”, todos os sete anões começaram a
falar ao mesmo tempo.
— Ele está vivo?
— Deveríamos ter sabido que não nos abandonaria!
— Onde ele está? Está voltando para casa?
Mas Branca não conseguia ficar tão animada. Sentia-se dividida.
— Se ele sente a minha falta, por que me deixou com a Rainha
Má? — Os anões se calaram. — Por que abandonou o reino? Como
pôde fazer isso com seu povo? — A voz dela estava trêmula.
Henri segurou-lhe a mão e a puxou para mais perto. Estavam
quase cara a cara. Ela inspirou fundo.
— Ele não deixou você e seu povo por vontade própria. Você tem
que entender: o rei não teve escolha.
— O que aconteceu? — Branca perguntou.
Henri baixou os olhos, o que foi um alívio, porque o olhar dele era
quase intenso demais para ela.
— Não deveria ter dado a notícia nesse rompante. Há muito a lhe
contar, mas não aqui. — Ele olhou ao redor da floresta agourenta
com uma atenção aguçada que não tinha quando o encontraram.
— Não podemos ir a parte alguma até encontrarmos a árvore
uivante — disse Atchim, interrompendo-os, e Branca e Henri se
afastaram.
— A árvore uivante? — Henri repetiu incerto.
— Os homens ouviram rumores sobre uma árvore nesta floresta
cuja seiva pode ser usada para fazer um elixir que permite mudar de
forma — Branca explicou. — Encontrá-la pode ser o segredo para
chegar à Rainha Má sem que ela saiba. Pode ser a nossa chance
de lutar com ela.
Os olhos de Henri se arregalaram.
— Vai lutar contra a rainha?
— Com a nossa ajuda — declarou Mestre, e todos assentiram. —
E é por isso que precisamos encontrar aquela árvore.
— Você quer dizer esta árvore? — Henri perguntou. Conduziu-os
por alguns metros até uma árvore que, de fato, parecia ter um rosto.
De perto, Branca percebeu que os olhos cavados e a boca uivante
não passavam de buracos ocos na árvore, que tinha galhos
machucados que se pareciam com garras.
Ela fechou os olhos por um momento e se visualizou correndo
diante da árvore, pensando que, de fato, ela a perseguia.
— Sim, é esta a árvore que vi.
Feliz e Mestre começaram a examiná-la, batendo no tronco e
usando as lanternas para espiar dentro das partes ocas. Zangado
usou uma faca de entalhe para tentar tirar a casca e ver o que havia
por detrás.
— Essa árvore está morta — declarou. — Não há seiva nenhuma
nela.
Branca ficou desapontada.
— Tem certeza de que é esta? — perguntou Soneca.
— Tenho — Branca disse com tristeza. Tivera tanta certeza de
que tinham uma pista. — Acho que o boato era apenas um boato. A
rainha não obtém sua magia das trevas deste lugar.
Houve um grunhido de algum lugar nas profundezas em meio às
árvores. Henri agarrou o braço de Branca.
— É melhor irmos embora.
— Sim. Por que não volta conosco para o chalé? — Branca
sugeriu enquanto Zangado suspirava. — Temos muito a discutir, e
você deve estar cansado da sua jornada. Onde encontrou o meu
pai?
— Na fronteira com o meu reino — explicou Henri, e os cabelos
na nuca de Branca se eriçaram. — A uma distância de um dia de
viagem.
— Mas isso não é longe! — disse Branca. O pai estivera perto
assim o tempo todo? Por que não tentara voltar por ela?
Henri parecia perceber seu debate interno. Segurou-lhe a mão
uma vez mais. Os dedos eram calejados, mas quentes, e a princesa
sentiu o corpo relaxar de leve. Havia tanto que não sabia sobre o
rapaz que estava diante dela.
— Prometo que tudo começará a fazer sentido assim que lhe
contar o que ele me contou.
Os dois se fitaram. Os anões os olharam em silêncio, atentos ao
som de um corvo ao longe.
— Muito bem — Branca disse por fim.
— Vamos sair desta floresta e jantar ou o quê? — Zangado falou,
interrompendo de novo.
Branca exalou.
— Sim. Claro. Vamos para casa — decidiu, percebendo que era
isso o que o chalé dos anões se tornara para ela, de uma maneira
que o castelo jamais poderia ser.
Queriam que o trajeto para fora da floresta acabasse logo. Ao
chegarem ao chalé dos anões, o sol já começava a se pôr.
Enquanto Henri se banhava, Branca e os homens seguiram até a
cozinha para preparar um assado para o jantar. Logo o fogo foi
aceso, e os anões executaram suas tarefas, enquanto Henri
observava o quanto todos estavam à vontade. Por fim, ele se
levantou, apanhou uma faca e começou a cortar cebolas ao lado de
Branca. Os cabelos estavam úmidos e afastados da testa. Ele tinha
trocado de roupa e agora vestia uma camisa de linho bege cujo
cordão estava amarrado só até a metade, revelando seu peito, o
que fez a princesa corar. Nenhum dos dois disse nada por um
tempo. Branca descascava e cortava cenouras, enquanto Henri
picava salsinha e fatiava nabos. Juntos, prepararam o assado até
que só o que restava a fazer era deixá-lo cozinhar.
Branca se acomodou numa cadeira com uma xícara de chá na
mão, ansiosa em ouvir a história de Henri. Embora não esperasse
voltar a vê-lo, ali estava ele, tendo vindo procurá-la. Se ele tivesse
feito o caminho mais comprido até o castelo, o que teria lhe
acontecido? Será que a Rainha Má o mataria? O fato de Henri tê-la
encontrado na floresta meio que parecia coisa do destino, se
acreditasse nesse tipo de coisa. Seria seu destino ter perdido tanto
a mãe quanto o pai e ser criada por uma tia sem nenhuma
habilidade para amar? Ela não sabia, mas seu coração lhe dizia que
Henri se tornara alguém em quem podia confiar. Ficou se
perguntando se o rapaz sentia a mesma conexão.
— Por favor, Henri, conte-me como encontrou meu pai — pediu, e
todos os olhos se voltaram para ele.
— E é melhor nos contar a verdade — acrescentou Zangado.
— Nada de mentir para a princesa! — concordou Mestre, e os
outros homens assentiram ao se sentarem em cadeiras, no sofá ou
no chão, prontos a ouvir.
Henri inspirou fundo e olhou de Branca para os demais.
— Não tenho motivos para mentir. Eu não estava procurando o
pai de Branca. Não sabia nada sobre o desaparecimento do Rei
Georg.
— Desaparecimento, não — corrigiu Atchim. — Ele abandonou o
reino e a filha!
Henri assentiu, abaixando os olhos azuis.
— Certo. Depois que encontrei Branca junto ao viveiro, tentei ser
recebido pela Rainha Ingrid, mas ela não quis saber disso sem um
horário marcado, o que é algo difícil de conseguir. Disseram-me que
eu teria que esperar meses para obter uma audiência com a rainha
e, ainda assim, isso não seria garantido. Decidi voltar para casa,
sentindo que tinha desapontado meu povo. — Olhou para Branca.
— Eu estava tão angustiado. Não sabia o que lhes diria. Talvez por
isso insisti em completar a viagem de volta tão rápido, viajando dia e
noite para chegar em casa, sem me importar em como estava o
tempo. E estava terrível. Choveu por dias, fiquei encharcado até os
ossos. Não foi surpresa ter ficado doente. — Sorriu com tristeza. —
Tão doente que escorreguei para dentro de um lago e quase morri
afogado.
Branca se inclinou para a frente.
— O que aconteceu?
— Estava chovendo tão forte que não vi o penhasco. Meu cavalo,
sim, por isso parou de repente e me derrubou — explicou Henri. —
Ele fugiu, o que foi bom, porque foi assim que Georg me encontrou.
Ele avistou meu cavalo e a bagagem que ele carregava, e soube
que devia haver um cavaleiro por perto. Então foi à minha procura.
— Muito corajoso da parte dele — Atchim deixou escapar,
olhando para Branca. A menina não disse nada.
— Sim — Henri concordou. — A correnteza estava forte e eu
lutava para voltar à margem com minhas últimas forças. Estava tão
cansado que agarrei um tronco caído na água. Estava prestes a
desistir quando Georg chegou e me puxou para um lugar seguro.
— Deve ter pegado um bom resfriado ou até mesmo uma
pneumonia nessas águas — pressupôs Mestre. — O tempo tem
estado bem ruim por aqui nos últimos dias, também.
— Sim. Bem que eu queria saber disso antes de ter iniciado
minha jornada. — O rosto de Henri estava sério. — Georg disse que
tive febre alta e um sono agitado durante dias. Se ele não tivesse
me levado para a sua casa e cuidado de mim até eu recobrar a
saúde, não teria me recuperado. Disso tenho certeza.
Todos estavam calados. Ouvir a história de Henri fez Branca se
lembrar de um momento vivido com o pai na época em que era
pequena. Um pássaro tinha caído do viveiro e machucado a asa, e
ela, chorando, invadiu uma das sessões dele com a corte. Ele
parara tudo para ouvir a sua história. Em seguida, ajudou-a a fazer
um ninho no viveiro para ver se o pássaro ficaria bem de novo.
Certa manhã, quando foram conferir como estava, ele tinha sumido.
“Fizemos tudo o que pudemos por ele, até que pudesse cuidar de si
sozinho”, dissera o pai. Será que o pai fizera o mesmo por ela? Teria
pensado que a filha era forte o bastante para cuidar sozinha de si
própria?
— Eu estava preparado para deixá-lo de imediato, mas ainda não
estava recuperado e o tempo continuava ruim, por isso Georg me
convidou para ficar — Henri explicou. — Foi só quando eu estava
bem melhor que começamos a conversar. Então lhe contei sobre a
minha viagem ao seu reino. Assim que o mencionei, vi uma
mudança nele. Pareceu-me incomodado, quase enfurecido, como
um homem consumido, e começou a andar de um lado a outro. Ao
lhe perguntar qual era o problema, não me disse nada. Em vez
disso, pediu que lhe contasse mais a respeito da minha visita.
Contei-lhe sobre a recusa da rainha em me ver e… — ele hesitou,
as faces enrubescendo um pouco — sobre a bela moça que conheci
nos jardins do castelo.
— Você fez isso? — perguntou Branca, sem saber bem por que
ficou tocada pelo fato de ele a ter mencionado.
— Sim. — Henri sorriu com timidez.
— Ah, meu pai… — Ela ouviu Zangado resmungar.
— Depois que falei de você, ele começou a me fazer muitas
perguntas sobre a princesa e o relacionamento dela com a rainha.
Respondi que não sabia nada a esse respeito, então ele perguntou
se a princesa parecia feliz.
— O que você disse? — perguntou Branca.
Henri hesitou.
— Eu disse que você era adorável, mas que parecia triste.
— Isso não é uma inverdade. — A princesa estivera desanimada
no castelo. Mas, em retrospecto, também decidira levar a vida da
melhor maneira possível, sem deixar que a tristeza a consumisse.
Tentara encontrar alegria nos atos mais simples: lustrando um
brasão pelo qual um visitante do castelo pudesse passar ou
alimentando os pássaros no viveiro. — Mas também estava
tentando ser feliz.
— Ele ficaria contente em ouvi-la dizer isso — Henri disse com
um sorriso. — Quando eu não tinha mais nada para contar, ele
pediu licença e foi se deitar. Fiquei confuso com o que o fez reagir
dessa maneira sobre você, por isso tentei trazer o assunto à tona de
novo, mas a resposta era sempre a mesma. “Saber a verdade sobre
a minha vida só colocará a sua em risco”. Fazia tanto tempo desde
a última vez que falara sobre o seu reino que começou a pensar que
sua vida prévia tivesse sido um sonho. — Henri fez uma pausa. O
fogo lambendo a panela na cozinha produziu um estalo dentro do
chalé silencioso. — Branca, o seu pai nunca quis abandonar você
nem o seu povo. Ele foi embora porque a Rainha Ingrid o baniu.
— O quê? — Branca se levantou.
— Sim — Henri confirmou. — Ela o enganou, fazendo-o sair do
castelo um dia. Ele disse que não se lembra da saída nem do
motivo de ter concordado com isso. Na verdade, disse que não
lembra o que o fez se casar com ela, para início de conversa.
— Magia das trevas. — Branca estava apenas começando a
entender os poderes da tia. Fechou os olhos, sentindo-se aliviada.
Nunca tinha sido capaz de entender o motivo de o pai ter se casado
com aquela mulher.
— Só o que ele sabe foi que, ao tentar voltar ao seu encontro, não
conseguiu — prosseguiu Henri. — Toda vez que tentava reentrar no
reino, alguma força estranha o impedia de pisar em seu território.
Ele tentou de tudo para contornar isso, tentando atravessar todas as
partes possíveis da fronteira, e sempre acontecia o mesmo, como
uma descarga de eletricidade tão forte que, por pouco, não fazia seu
coração parar.
— Magia das trevas, trevas… atchim! Trevas! — Atchim repetiu, e
os outros anuíram em concordância.
— Ele nunca parou de tentar voltar para você — acrescentou
Henri. — Odiou que estivesse sendo criada naquele castelo por uma
mulher tão malvada. Ele pediu clemência, na esperança de que a
Rainha Ingrid o ouvisse. Rogou para que ela se apiedasse e a
entregasse a ele em troca do trono, mas, se ela ouviu seus pedidos,
não fez nada. Depois de anos de tentativas, ele desistiu, pensando
que estava fadado a viver naquela prisão particular pelo resto dos
seus dias.
Alguns dos homens choravam. Todos seguravam os gorros nas
mãos.
— Sabia que o Rei Georg não nos abandonaria — disse Dengoso
com uma fungada.
Lágrimas escorriam pelas faces de Branca. Então seu pai não a
abandonara mesmo. A Rainha Má afastara os dois, fazendo com
que a vida de ambos fosse uma espécie de inferno pessoal. E,
durante todo esse tempo, Ingrid vivera com a riqueza e o privilégio
do trono. Se ela era capaz de ter matado a mãe de Branca, seria tão
inimaginável pensar que baniria seu pai?
— Preciso vê-lo — Branca disse. — Se ele não pode vir até mim,
eu irei até ele.
Henri sorriu.
— Ele tinha esperanças de que você fosse dizer isso. Eu a levarei
até ele. Conheço o caminho.
— Então iremos — declarou Branca. — Logo pela manhã.
CAPÍTULO CATORZE

Ingrid

POR FIM, TINHA TUDO o que queria.


Ao encarar o coração vermelho entalhado na caixa de madeira
que trazia nas mãos, não pôde deixar de pensar que o espelho
estivera certo a respeito de tudo. O coração dentro da caixa já não
batia, o que significava que ela não só era a rainha, mas que não
restava mais nada para ameaçar o seu reinado. E ela era a mais
bela. Ninguém mais se meteria em seu caminho. Finalmente.
O espelho já devia saber o que tinha em mãos. Ela estava tão em
sintonia com ele que conseguia ouvir seus pensamentos sem nem
estar por perto. E o espelho, por sua vez, sabia o que se passava
pela sua cabeça sem que ela lhe dissesse em voz alta. As duas
psiques, depois de todos esses anos, tornaram-se uma só, assim
como previra o espelho tantos anos atrás.
Bem como seu mestre temera.
Mas não havia nada a temer sobre o espelho. Ele existia para o
seu bem.
E ela já não se incomodava mais de ter passado uma semana
agonizante à espera de notícias do caçador. Seu lado prático lhe
disse que ele precisaria de dias para se desfazer do corpo da
garota. Além do mais, essa ausência lhe propiciou tempo para
formular um plano que explicasse o sumiço da princesa. Fora
inteligente ao permitir que Mila, aquela tola sentimental, aprontasse
a princesa para passar o dia com o caçador. Isso passou a
impressão de que ela era uma tia que se importava. Quando os dois
não retornaram ao castelo ao cair da noite, a rainha mandou chamar
Mila e lhe perguntou sobre o dia da princesa. Conteve-se,
representando o retrato da preocupação no momento em que a
moça lhe disse que a princesa não retornara. Até fingira enviar
Brutus à procura deles. Pediu ao restante do castelo e da corte que
ficassem quietos quanto ao desaparecimento de Branca até que
conseguisse desvendar o que acontecera à pobre princesa.
E agora que Brutus enfim lhe trouxera o presente do caçador, ela
tentava decidir qual seria a melhor história para contar às pessoas
— que a garota estava morta ou que abandonara seu povo, como
fizera o pai há tantos anos?
— Algo mais, minha rainha? — Brutus lhe perguntou.
— Não — respondeu ela, tentando esconder a animação da voz.
Agarrou a caixa com mãos bem firmes. Mal podia esperar para
voltar para junto do espelho e lhe mostrar o fruto de seu trabalho
conjunto. — Mantenha o caçador escondido até eu decidir o que
fazer.
Ele se curvou.
— Sim, minha rainha.
Passando rápido pelos corredores entre a sala do trono e seus
aposentos, ela não olhou para nenhum dos criados que encontrou.
De todo modo, nenhum dos tolos a pararia para conversar com ela.
Àquela altura, sabiam que, quando a rainha se aproximava, todos
deviam se curvar ou fazer uma mesura e voltar às suas tarefas
designadas. Fechando as portas dos seus aposentos atrás de si, foi
direto para o cômodo secreto e subiu na plataforma. Abaixou a caixa
e ergueu os braços, bem abertos, chamando a máscara no interior
do espelho. O objeto começou a fumegar, trovões ecoaram pelo
ambiente, e a máscara apareceu no vidro. Ingrid sorriu com
maldade.
— Espelho, espelho meu, quem é agora mais bela do que eu?
Ela fizera tudo o que o espelho lhe dissera para ouvir o que mais
desejava uma vez mais. Não suportava que ele reconhecesse que a
beleza de outra pessoa era superior à sua. Ela prendeu o fôlego e
ouviu atenta.
A máscara a fitou jocosamente.
— Além das sete colinas de joias, por trás das sete cascatas, lá
na casa dos sete anões, mora Branca de Neve, a mais bela de
todas elas.
Os olhos da rainha se arregalaram de ódio. Como o espelho
ousava brincar com ela! Tentou controlar os nervos. Apanhou a
caixa e a segurou diante do espelho.
— Branca de Neve jaz morta na floresta. O caçador trouxe uma
prova. Veja — disse, segurando a caixa com satisfação — o
coração.
— Branca de Neve ainda vive. A mais bela da nação. É o coração
de um porco que tendes em vossa mão.
As mãos dela tremeram. Era impossível. Mas, pensando bem, o
espelho jamais mentia…
— O coração de um porco! Então fui enganada!
Saindo apressada dos seus aposentos, ela retornou à sala do
trono, convocando o caçador de imediato. Entregou-lhe a caixa.
— Mostre-me o coração — ordenou.
O caçador ficou de pé e abriu o fecho da caixa, mostrando o que
havia dentro. O coração parecia cinza e sem vida. Por um momento,
ela quase sentiu felicidade… até se lembrar do aviso do espelho.
Poderia ser aquele o coração de um porco? Só havia uma maneira
de descobrir.
Ingrid derrubou a caixa das mãos dele com um tapa.
— Mentiroso! Esse não é o coração dela! É de um porco! — Ela
olhou para Brutus. — Leve-o ao calabouço e deixe que lá apodreça!
Brutus agarrou o caçador com força e começou a arrastá-lo para
fora da sala, enquanto Ingrid assistia com atenção. Por certo, o
homem provaria sua inocência.
— Vida longa à herdeira por direito! — o caçador berrou. — Vida
longa à futura rainha!
Herdeira por direito? Futura rainha?
Ingrid começou a puxar os cabelos, arrancando mechas de tanta
raiva, sem nem sentir dor.
— Não, não. não! — Ingrid emitiu um grito tão brutal que
conseguiu sentir o estrago, apesar de não o ver.
Pois, na parede de seu quarto escondido, o espelho mágico
começou a rachar.
CAPÍTULO QUINZE

Branca de Neve

BRANCA E HENRI INICIARAM, sozinhos, a jornada até a fronteira


com o reino do príncipe.
A princípio, a maioria dos anões não se animou com a ideia.
Tinham se tornado um grupo muito coeso no tempo que passaram
juntos, e argumentaram que tinham muito planejamento a fazer se
pretendiam destronar a rainha. Mas Branca concordou com
Zangado neste ponto: os homens tinham que atingir cotas diárias de
diamantes para a rainha e, mantendo sua rotina, conseguiriam falar
com outros mineiros frustrados com os impostos. Enquanto Branca
estivesse fora, juntariam informações que lhes permitiriam descobrir
quais vilarejos visitar para conseguir aliados para sua luta. Também
havia a questão, conforme Zangado observou, de que precisavam
continuar a garimpar para poupar para tempos de vacas magras. Se
o resultado da luta deles não fosse bom, precisariam de algo com
que negociar para sair do reino. Branca não queria pensar nessa
opção. Precisava pensar que tudo daria certo, não por si, mas por
todas as pessoas que lutariam com ela. E isso agora incluía Henri.
— Tem certeza de que não está cansado? — Do alto do garanhão
em que estava montada, Branca olhou para Henri, que conduzia o
animal pelas rédeas a pé. Só dispunham de um cavalo para aquela
jornada, e Henri insistia que a princesa deveria ir montada. Estavam
viajando há horas e mal tinham conversado.
— Estou bem a pé — Henri insistiu. Havia caminhos mais curtos
do que pelo bosque pelo qual viajavam, mas eram rotas mais
movimentadas, e Branca não queria se arriscar a ser vista. — Você
precisa estar descansada para o reencontro.
— Por que um reencontro seria exaustivo? — Branca perguntou.
Repleto de ansiedade, sim. Angustiante, talvez. Mas exaustivo?
Henri não respondeu. Ela tinha a sensação de que havia mais por
trás da história que ele revelara, mas não insistiu. Queria ouvi-la do
pai, se é que, de fato, era ele. Rezava para que ele tivesse alguma
ideia do que ela pudesse usar contra a Rainha Má. Na verdade,
estava contando com isso. Pelo fato de a jornada em busca do elixir
ter sido improdutiva, preocupava-se com o fato de terem tão pouco
para seguirem adiante.
— Estamos viajando desde muito cedo. — Branca o lembrou. —
Você já deve estar cansado.
O rapaz continuou quieto. Ela queria saber mais sobre esse
quase estranho que aparecera em sua vida. Branca imaginou o que
sua mãe teria pensado de Henri. Era o que fazia toda vez que tinha
que analisar algo: imaginava a conversa que teriam sobre temas
que nunca tiveram a oportunidade de falar a respeito. Sempre as
visualizava sentadas no viveiro ou no banquinho do jardim,
conversando como se dispusessem de todo o tempo do mundo.
Branca estava crescida em suas visões, mas a mãe tinha
exatamente a mesma aparência de quando deixou esta terra.
Conversariam até o sol se pôr. Suspeitava que a mãe gostaria de
Henri. Um homem que se preocupa com as criaturas da natureza
tem que ter uma alma boa, Branca conseguia imaginá-la dizendo. A
ajuda que Henri oferecia a seu pai também seria algo que a mãe
aprovaria. Branca disparou um olhar rápido na direção do rapaz
uma vez mais.
— Tem certeza de que não está cansado?
— Sim, estou bem — repetiu Henri e, de pronto, começou a tossir.
Ele tossira a manhã toda, o que levava Branca a acreditar que
não estava cem por cento recuperado da sua recente doença. Teria
se forçado demais?
— Não aceitarei um não como resposta. Creio que é você quem
precisa de descanso — Branca disse resoluta. — Há espaço para
dois aqui.
— Não é necessário — ele negou outra vez e tossiu mais.
— Sou eu quem decide isso — Branca insistiu. — Como princesa
e futura rainha deste reino, ordeno que cavalgue neste cavalo
comigo. — Ele a fitou com surpresa ante o seu tom, que ela logo
atenuou. — Está tudo bem de verdade. Eu não me importo.
Henri sorriu.
— Bem, princesa, se eu preciso descansar, então você precisa
comer. Sei muito bem que não comeu nada desde que partimos.
Mestre insistiu que você forrasse a barriga antes de ver seu pai, e
fico um tanto apreensivo de não seguir as ordens daqueles homens.
Eles parecem muito afeiçoados a você.
— E eu a eles — comentou Branca com um sorriso. Podia
enxergar Zangado passando uma longa lista de instruções a Henri
para esta viagem. O estômago dela roncou ao pensar em comida.
— Talvez possamos parar por um instante.
Henri ofereceu a mão para ajudá-la a desmontar. Seus dedos
permaneceram entrelaçados um instante a mais do que seria
necessário.
Branca desviou o olhar.
— Estenderei uma coberta para nos sentarmos com mais
conforto. — Ela a esticou e depositou sobre ela o saco de comida
(com frutas, pães e queijo) que os anões lhes deram. Comeram em
silêncio por um tempo, conforme Henri devorava sua porção.
— Desculpe ter comido tão rápido — disse ao terminar sua última
fatia de pão. — Até ontem à noite, não havia comido nada desde
que deixei seu pai e, antes disso, estive doente demais para me
alimentar. Só conseguia comer caldo.
— Se ainda estiver com fome, tenho algumas maçãs de
sobremesa. — Ela ofereceu uma que exibia uma mistura de
vermelhos e verdes com uma pontada de dourado. — Estas são as
maçãs Vermelho Fogo.
Henri deu uma mordida.
— Isto é divino. Como a chamou? Vermelho Fogo? Nunca comi
nada assim antes.
— Elas só crescem em nosso reino. Foi minha mãe quem criou a
variação — Branca explicou com orgulho.
Costumava implorar aos pais que lhe contassem a história do
namoro deles repetidas vezes. Ela conseguia ver a mãe rindo.
Branca, deve existir algo mais sobre o que gostaria de falar!
— Foi obtida cruzando sementes de maçãs vermelhas com
algumas peras e sementes de maçãs verde — explicou a Henri. —
Ela teve a ideia enquanto estava no pomar de macieiras que
ajudava a cuidar quando tinha a minha idade. Meu pai as adorou e
fez com que as plantassem em todo o reino. — Branca apanhou
uma e a encarou. — Foi uma maçã Vermelho Fogo que aproximou
minha mãe e meu pai, na verdade. Ele adorava as maçãs dela.
Henri deu um sorriso brincalhão.
— Quer dizer, então, que foi amor à primeira mordida?
Ela riu.
— Imagino que sim!
Henri comeu um pouco mais.
— Entendo o motivo. São deliciosas, e não digo isso só por dizer.
Maçã é minha fruta predileta.
— A minha também — concordou Branca, e os dois fitaram-se por
um instante. — Acho que vou guardar algumas para a nossa visita.
Aposto como meu pai vai amar comer uma depois de tanto tempo.
— Então dividiremos o resto da minha — sugeriu Henri, pegando
um pequeno punhal com joias incrustradas do cinto. Com cuidado,
começou a descascar a maçã formando uma fita comprida sem
interrupção. Quando terminou, pegou a tira feita de casca e a
enrolou de modo a parecer um botão de rosa. — Para você, milady.
— Que lindo — elogiou Branca, segurando a casca da maçã na
palma da mão. — Onde aprendeu a fazer isso?
— Meu irmão mais velho Kristopher me ensinou — explicou Henri,
deixando de sorrir. — Ele também adorava maçãs. Este punhal era
dele. — Mostrou a lâmina prateada com cabo de couro. As iniciais
do irmão estavam gravadas no metal. — Ele morreu há alguns anos
durante uma batalha, e eu herdei seu punhal. Ele era o cavaleiro em
que meu pai mais confiava.
— Eu sinto muito — disse Branca, logo sentindo uma pontada
familiar. — Perder alguém tão cedo assim…
— Muda a sua vida — Henri completou, e eles se fitaram.
— Isso — concordou Branca. — Imagino que minha vida tenha
sido diferente daquela que meus pais desejaram para mim, mas
nunca perdi as esperanças, mesmo quando… — Sua voz falseou.
Não revelara a verdade sobre a morte da mãe a ninguém, nem
mesmo aos anões. O reino se lembrava da Rainha Katherine
adoecendo e lamentara sua morte em decorrência disso, mas
Branca sabia que o pai merecia saber a verdade. Talvez fosse mais
fácil caso ela a partilhasse com Henri primeiro. — Sei que a Rainha
Má, minha tia, mandou matar a minha mãe.
— O quê? — Henri se empertigou. — O seu povo sabe disso?
Não devem saber; como permitiriam que ela se sentasse ao trono
caso soubessem?
— Eles não sabem — explicou Branca. — Ninguém sabe. Foi o
caçador que a rainha mandou para me matar que me contou a
história. O pai dele foi o incumbido da tarefa de matar minha mãe.
— Mas esse caçador não quis repetir os erros do pai? — sugeriu
Henri, adivinhando corretamente. — Eu sinto muito, Branca. Pelo
que fiquei sabendo, sua mãe era adorada.
— Sim, ela era. Por todos. — Branca fitou o céu nublado. —
Exceto pela irmã. E por essa maldade, a Rainha Má pagará.
Henri a olhou com curiosidade.
— Você parece diferente, de alguma forma, da garota que conheci
nos jardins do castelo.
— Eu me sinto diferente — disse Branca.
Henri balançou a cabeça.
— Não consigo acreditar que a rainha tentou mandar matá-la. Eu
sabia que ela era implacável e difícil, mas uma assassina… Não
está planejando enfrentá-la sozinha, está?
— No fim, acredito que seremos só eu e ela — Branca disse. —
Talvez nós possamos conversar. Dizer que sei a verdade sobre a
minha mãe e fazer com que ela se arrependa disso.
Henri pareceu cético.
— Uma mulher calculista e fria assim jamais se arrependerá.
Branca olhou para a casca da maçã enrolada em forma de flor de
novo, vendo a beleza em algo que costumava ser descartado.
— Tenho que ao menos tentar.
— Como você a deterá? — perguntou Henri.
— Os homens estão tentando recrutar mais pessoas à nossa luta
pela coroa. Mas é difícil. Só podem fazer isso em segredo, e muitos
têm medo dela e receio de se manifestarem. Tenho esperanças de
podermos convencê-los de que a união faz a força. — Ela suspirou.
— Como pode ver, os planos de batalha ainda estão bem abertos.
Um corvo pousou num galho próximo e grasnou, assustando-os.
Henri franziu o cenho.
— É melhor não ficarmos aqui por muito tempo.
Não havia um único pássaro do qual ela desgostasse, mas as
aparições repetidas do corvo a intrigavam. Seria de fato a rainha?
Se sim, que perigos ela lhes reservava? Branca guardou tudo
enquanto Henri alimentava o cavalo com o resto da sua maçã e lhe
dava água. Quando ela terminou, ele segurava as rédeas para
voltarem a andar juntos.
— Dessa vez nós dois montaremos — insistiu Branca, sentindo-
se audaz, embora só de pensar nisso ela ficasse um pouco nervosa.
O rapaz começou a protestar, e a princesa ergueu um dedo para
silenciá-lo.
Henri fez uma mesura.
— Sim, Vossa Alteza. — Ela sorriu e ele continuou: — Gosto da
sua iniciativa. Você se parece bastante com meu irmão Lorenz, que
um dia assumirá o trono do meu pai. Sou o sexto na linha de
sucessão, portanto nunca parei para pensar em como um monarca
deveria ser.
Ser um monarca… Ela estivera tão concentrada em destronar a
Rainha Má e, agora, no descobrimento do paradeiro do pai, que
nem sequer parara para pensar no que aconteceria depois. O trono
pertencia ao pai se ele o quisesse, e ela se prontificaria a ajudar o
reino, consertando os erros que vinham sendo cometidos há muito
tempo. Mas não podia deixar de pensar no que significaria se fosse
sua própria vez de usar a coroa… Que tipo de regente seria? Que
novas ideias ela traria? Era alarmante e, ao mesmo tempo, divertido
imaginar tudo o que seria capaz de fazer pelo seu povo, pensar nas
mudanças que teria o poder para colocar em prática. Poderia levar o
reino de volta ao estado em que estivera quando os pais
governavam… talvez pudesse até melhorá-lo.
Henri segurou as rédeas com força e o cavalo parou, permitindo
que ele subisse atrás de Branca.
— Mas tenho certeza de que, um dia, você será uma monarca
maravilhosa — disse, como se estivesse lendo os pensamentos
dela.
Ele ofereceu as rédeas para ela e começou a montar. Ao fazer
isso, teve que colocar os braços ao redor dela.
— Sinto muito — disse, resvalando o braço no dela.
— Está tudo bem — insistiu Branca, mas ela nunca estivera tão
perto assim de um rapaz antes, e, com certeza, não de um tão belo.
Os guardas no castelo, mesmo os jovens, estavam sempre de cara
feia, mas Henri, que quer estivesse preocupado, doente ou sendo
apenas um cavalheiro, parecia estar sempre sorrindo.
Viajaram de novo em silêncio por um tempo antes de Branca
começar a cantarolar uma canção conhecida para se distrair. Henri
se juntou a ela, e os dois cantaram uma música que fez até mesmo
os pássaros na floresta pousarem nos galhos para ouvir.
No instante em que o céu começou a escurecer, eles se
aproximaram do lago que marcava fronteira entres os reinos de
Branca e Henri. Na outra margem do lago, Branca conseguia ver um
chalezinho soltando fumaça pela chaminé. À medida que davam a
volta no lago, Branca percebeu que a cabana não era lá grande
coisa — parecia ter sido construída às pressas — e as persianas
estavam fechadas, como se uma tempestade estivesse se
aproximando. Mas, assim que o cavalo parou, a porta se abriu. Um
homem idoso claudicou para fora com uma bengala.
Ela arquejou.
Pensamentos e lembranças passaram rápido por sua mente.
Aquele poderia mesmo ser seu pai? Tinha os cabelos brancos e
bem mais compridos, mas ela notou a pinta preta que conhecia na
face esquerda. Segurou-se na crina do cavalo com força, temendo
cair ao vê-lo. Queria tanto se aproximar.
— Henrich? — Vendo o cavalo, o homem se segurou ao batente
com uma mão e à bengala com a outra. Estreitou os olhos. — É
você?
— Sim, senhor. E eu a encontrei! — Henri parou o cavalo e
desmontou num pulo, depois estendeu a mão para ajudar Branca a
descer.
Branca ficou parada atrás de Henri enquanto ele apertava a mão
do homem cuja voz ela não reconhecia — era oca, afetada pela
idade. Se aquele fosse mesmo o seu pai, ele não tinha a mesma
voz, mas, pensando bem, será que poderia se lembrar da voz dele
depois de mais de dez anos sem ouvi-la?
— Deixe-me ver a minha filha — pediu o homem, e Henri deu um
passo para o lado.
Branca e Georg ficaram cara a cara. Nenhum dos dois se moveu;
em vez isso, analisaram as feições alheias, como se estivessem se
olhando num espelho.
Branca encarou o homem, de barba e cabelos brancos. Não havia
coroa sobre a cabeça. Nenhum cetro na mão nem roupas de cetim
no corpo. Ele calçava botas simples, vestia roupas de camponês, e
suas mãos estavam sujas e sem os anéis de que ela se lembrava
de vê-lo usando todos aqueles anos atrás. Mas, assim que olhou
para o rosto castigado do homem, sentiu uma descarga repentina.
Por mais que o azul dos olhos tivesse desbotado um pouco por
causa da idade, não havia como negar a familiaridade deles.
— Pai? — disse, emocionada.
Ele começou a chorar na mesma hora, lágrimas grossas
escorrendo pelas faces.
— Branca, minha Branca. É você mesma! — Ele prendeu o rosto
dela entre as mãos calejadas.
De imediato, ela fez o mesmo, tocou no rosto dele, na barba.
— É você! Está vivo! Está aqui mesmo! — Era quase
inacreditável.
— Sim, estou aqui, minha flor da neve. Estou aqui! — exclamou
ele.
Jogaram-se nos braços um do outro, alternando entre o choro e o
riso, enquanto se abraçavam como dois marinheiros que estiveram
perdidos no mar e agora se reencontravam. Branca não sabia por
quanto tempo ficaram assim antes que Henri os convenceu a entrar.
Sabia que devia se preocupar com a possibilidade de a rainha os
estar observando, mas era difícil imaginar o perigo com o pai de
volta ao seu lado. Dentro da cabana, com a lareira acesa e a
esparsa mobília de madeira do pai — que ele proclamava com
orgulho ter feito com as próprias mãos —, Branca sentia como se
pudesse ficar protegida por aquelas paredes para sempre,
conversando com o pai, que tivera tanta certeza de ter perdido.
— Eu sinto tanto, mas tanto, minha flor da neve — Georg repetia
vezes sem conta entre as ofertas de pão, vinho e um lugar para
repousar. Mas Branca estava agitada demais para dormir.
Enquanto Henri cuidava do cavalo, Branca se sentou com o pai
para lhe perguntar tudo em que conseguia pensar e mais um pouco.
Mas ele se adiantava.
— Eu não a abandonei — falou assim que ela ficou diante dele. —
Preciso que saiba disso. Eu jamais abandonaria a minha filha! Na
verdade, passei uma década tentando retornar, sabendo que você
estava com aquela mulher. — O rosto dele se crispou de raiva. —
Fui um tolo em pensar que ela poderia ser uma boa madrasta, ser
uma mãe como minha Katherine era, mas agora, depois de todo
esse tempo, sei que não fui tolo coisa nenhuma. — Georg a soltou
de leve, e seu rosto voltou a se resignar. Parecia arrasado. — Estive
sob um feitiço dela, assim como foi um feitiço que me manteve
aprisionado por uma década.
— Que espécie de feitiço? — Ouvi-lo confirmar aquilo era um
alívio. Ela nunca entendera, por mais jovem que fosse, como o pai
poderia ter amado alguém como a Rainha Má. Ela era o oposto de
sua mãe.
— Um feitiço do amor. — O pai pareceu envergonhado. — Seria o
único jeito de ter conseguido me ludibriar a me casar com ela. Ingrid
e eu jamais nos entendemos. Foi o amor da sua mãe que a manteve
dentro dos muros do castelo. Mas, quanto mais eu a conhecia, mais
a enxergava como ela era. Ávida por poder e invejosa. Consumida
pelo desejo de controlar todos ao seu redor, inclusive sua mãe.
Conversei com Katherine a esse respeito, mas ela insistia que a
irmã só tinha uma personalidade forte e que as pessoas só
precisavam de um tempo para passarem a gostar dela. Para sua
mãe, era importante que Ingrid vivesse no castelo como sua dama
de companhia. Mas, quando ela enfim enxergou além da fachada de
Ingrid, já era tarde demais. — Ele baixou os olhos. — Ela adoeceu
em seguida.
Branca se deparou com o olhar de Henri, que acabara de entrar,
mas os dois não disseram nada. Ela tinha que conhecer a história
inteira antes de ferir ainda mais o pai.
— Se o senhor estava sob um feitiço do amor, como foi que veio
parar aqui?
Ele soltou as mãos da filha e gesticulou para o ambiente em que
estavam sentados.
— Tive muito tempo para pensar nisso — disse. — Os detalhes
estão turvos, é claro, mas, com ou sem feitiço, acho que uma parte
de mim sempre resistiu a ela, que, talvez, tenha percebido isso e por
fim decidiu se livrar de mim. Mas não sei por que ela simplesmente
não mandou me matarem. Só me lembro de ter sido enviado numa
viagem diplomática e de ter acabado aqui. Assim que cheguei, não
conseguia me lembrar de qual era minha missão, e os homens que
me escoltaram até aqui tinham desaparecido. — O rosto enrugado
estava sério. — Senti uma quase repentina onda de lembranças: de
ter me casado com Ingrid, de ter deixado você… e fiquei me
perguntando o que fizera. De imediato peguei um cavalo e me
preparei para voltar, mas, toda vez que tentava, uma descarga
elétrica me enviava de volta a esta cabana! — contou Georg,
ficando cada vez mais frustrado. — Henri tentou me infiltrar no reino
também, mas é impossível. Mesmo depois de tantos anos! — De
um só golpe, ele derrubou um copo da mesa, que se quebrou no
chão. — Eu estava desesperado para voltar para você. — Ele
relanceou para as vigas e suspirou. — Para sobreviver, tive que
fazer as pazes com o fato de que talvez nunca conseguiria. Fiz
amizade com os aldeões das proximidades depois de todo esse
tempo. Eu faço móveis como esta mesa aqui para ter o suficiente
para comprar comida e tudo o mais. — Apontou para a simples
mesa de madeira diante deles. — É uma vida simples, mas honesta.
Venho negociando com uma feiticeira de tempos em tempos por
feitiços que impeçam Ingrid de me ver.
— Uma feiticeira? — perguntou Branca.
— Sim — confirmou o pai. — Ela viaja por estas partes, e foi
assim que a conheci. Não tenho certeza de onde ela mora… nem
sequer se os feitiços dela têm funcionado, por isso sempre tomo
precauções. Às vezes ainda temo que a rainha esteja me
observando. Quis que Henrich a trouxesse pela floresta, de modo
que você não fosse vista nas estradas. Sei que a estou colocando
em perigo ao trazê-la para cá, mas quando Henrich descreveu o
castelo e disse que conhecera uma bela jovem, sabia que tinha que
ser você. Não pude evitar e implorei a ele que me ajudasse a
encontrá-la e alertá-la sobre Ingrid. Como conseguiu fugir?
Branca agarrou as mãos do pai.
— Pai, ela tentou me matar. A rainha me enviou para a floresta
com o caçador, mas ele não conseguiu seguir adiante, não depois…
— Fez uma pausa, a voz embargada de emoção. — Pai, a mamãe
não adoeceu. Ingrid fez com que a matassem também, do mesmo
modo como tentou fazer comigo.
— Não. — Os olhos dele se encheram de lágrimas. — A sua mãe
ficou doente. Eu a vi na cama… não vi?
Branca entendia essa confusão. Ela também a sentia.
Lembranças que não eram de fato suas preenchendo sua mente.
Era quase como se alguém as tivesse colocado ali.
— Não, ela não ficou. Não de verdade. Temo que mamãe tenha
sido envenenada. Tia Ingrid nos enganou.
O pai chorou copiosamente por algum tempo antes de responder.
Branca afagou sua mão, sem conseguir falar mais nada.
— Minha querida Katherine — sussurrou ele, por fim. — Meu
amor! Eu sinto tanto ter falhado com você. — Em seguida, os olhos
dele se aguçaram e a raiva retornou a sua voz. — Aquela mulher é
o mal encarnado! Depois de tudo o que a irmã fez por ela. Eu disse
à sua mãe que ela não era confiável! Na noite do dia anterior à sua
morte, sua mãe me procurou, preocupada que Ingrid tivesse um
espelho encantado. Eu sabia que deveria tê-la banido naquele
instante! Mas sua mãe não permitiu. A empatia que sentia pela irmã
foi sua derrocada.
— Espelho? — Os ouvidos de Branca se aguçaram. — Por que
ela ficou preocupada com um espelho?
Georg voltou a parecer confuso.
— Havia algo nele… Katherine disse que Ingrid falava com o
espelho. Como se fosse uma pessoa. Contou que o objeto soava
maligno e como Ingrid lhe parecia apegada… Sua mãe e eu tivemos
muitas discussões ao longo dos anos sobre a possibilidade de Ingrid
praticar magia das trevas. Mas Katherine sempre enxergou o melhor
nela até aquela noite. Ingrid jamais foi muito afetuosa com você,
lamento dizer.
— Nada mudou em relação a isso — Branca suspirou.
O pai assentiu com pesar.
— Ingrid parecia ter ciúmes de você desde o início. Ela nunca
quis segurá-la nem brincar com você como a sua mãe e as outras
criadas faziam. A cada dia, Ingrid passava mais tempo enfurnada
naquele quarto, fazendo sabe lá Deus o quê. Katherine estava
perturbada demais quando me procurou naquele dia, vindo do
quarto da irmã. Queria que o espelho desaparecesse. Ficou dizendo
que Ingrid e o espelho tinham se tornado um só. Não entendi o que
ela quis dizer com aquilo. Ela me disse para ordenar que ele fosse
tirado do castelo de imediato, mas, então… — Ele lhe deu as
costas, cobrindo o rosto com as mãos. — Eu deveria ter feito isso no
instante em que Katherine pediu. Por que não lhe dei ouvidos?
— Você não sabia do que Ingrid era capaz — disse Henri. —
Quem haveria de pensar que alguém mataria a própria irmã?
— Um espelho encantado — repetiu Branca. Algo naquilo lhe era
familiar. Ela só não conseguia se lembrar por quê. — Nunca ouvi os
criados falarem deste objeto.
— É provável que não saibam sobre ele — o pai disse. — Ingrid
sempre foi muito possessiva e desconfiada. A sua mãe disse que
ela o mantinha escondido.
Ficaram conversando até tarde da noite, o pai de Branca
querendo saber o que ela fizera em seu tempo no castelo. Ficou
bravo ao saber que ela aprendera tudo por conta própria e que
passava os dias fazendo limpeza. Mas sorriu saudoso quando a
filha mencionou que havia conservado o viveiro.
— A sua mãe teria adorado isso — disse, voltando a se
emocionar. No instante em que ela tirou uma Vermelho Fogo do
bolso, pensou que ele iria chorar um mar de lágrimas.
— Acho melhor nos deitarmos — sugeriu Henri enquanto Branca
consolava Georg. — O dia foi longo, e temos uma árdua jornada de
volta amanhã.
— É verdade — concordou Branca, mas também estava
desapontada. Seu tempo com o pai fora curto demais, e ela ainda
não sabia se eles tinham algo de útil para usar na luta contra a
rainha. Se ninguém mais sabia sobre esse espelho, como isso
poderia ajudá-los?
Mas esses pensamentos logo desapareceram, pois ela caiu num
sono profundo.
CAPÍTULO DEZESSEIS

Ingrid

Dez anos antes

MESMO ESTANDO DO OUTRO lado do castelo, ela sentiu o


espelho despertar. O simples gesto do espelho acordando se
tornara uma sensação tão comum quanto o sangue percorrendo
suas veias.
Mas o espelho nunca despertava a menos que ela estivesse
próxima — nenhum outro ser vivo sabia da existência dele, portanto
ele só chamava por ela. Naquele dia, contudo, ela o sentia falando
com outra pessoa.
Essa pessoa lamentaria o ocorrido.
— Vossa Majestade? — seu conselheiro pessoal disse, tirando-a
dos seus pensamentos. Ele consultou uma vez mais o pergaminho
que trazia nas mãos. — A senhora dizia que era hora de a bandeira
do reino voltar a ser erguida no mastro.
— O quê? — estrepitou Ingrid, agarrando as beiradas do trono
com tanta força que as unhas deixaram marcas na madeira folheada
a ouro.
Precisava deixar aquele cômodo naquele instante e ir para seus
aposentos privativos verificar o que estava acontecendo. Mas notou
a reação da corte ao seu tom. Eles não entendiam como uma rainha
que não viera da realeza tinha permissão para governar. Mas esses
medos foram desaparecendo aos poucos quando foi anunciado que
o Rei Georg “abandonara” seu povo. Ela argumentara que Branca
era jovem demais para assumir o reino, o que era verdade. E, uma
vez que os irmãos de Georg morreram por causa de peste alguns
anos antes, não havia outro herdeiro. Havia apenas Ingrid até
Branca chegar à maioridade, e muitos concordaram com isso. Esses
eram os que ainda estavam diante dela. Agora, se Ingrid queria
fazer mudanças, precisava de aliados, e ela angariava empatia por
ter perdido tanto a irmã quanto o marido num intervalo bem curto de
tempo.
— Lamento o meu rompante — disse Ingrid, amparando a
cabeça. — Fui acometida por uma terrível dor de cabeça.
— Ah, Vossa Majestade! — Mila, sua nova dama de companhia,
postou-se ao seu lado de imediato. — Seria melhor acompanhá-la
aos seus aposentos para que descanse. Não podemos deixá-la
adoecer.
Essa criada insípida vinha se portando como um gavião,
seguindo-a pelo castelo, sempre perguntando se podia lhe prestar
alguma assistência. Ingrid só queria ficar sozinha! Mas, pensando
bem, alguém tinha que atender aos seus pedidos. Portanto, permitiu
que essa mulher, que lhe parecia tão devotada, ficasse. Ainda
assim, ela tinha que aprender sobre limites, bem como todos os
outros. Já demitira metade dos funcionários. A menina não
precisava de tantas pessoas por perto a par dos seus assuntos. E
se um deles descobrisse o espelho? Não, melhor seria continuar a
reduzir o número de pessoas que trabalhavam no castelo, caso
necessário.
— Não, como já disse antes, se precisar de algo, eu lhe direi —
insistiu. — Sou bastante autossuficiente. — O sorriso de Mila
desvaneceu, e ela se retraiu para um canto da sala. — Estávamos
no meio de uma sessão, portanto terminarei o que precisa ser feito,
depois cuidarei da minha dor de cabeça.
— Isto pode esperar, minha rainha — disse um membro da corte.
— A sua saúde vem em primeiro lugar. O reino precisa de você.
Você é tudo o que temos.
— Até Branca crescer — outro cortesão opinou.
Ela encarou o homem com raiva. Ser substituída por uma criança
sem noção um dia? Nem pensar. Mas ela dispunha de tempo para
se preocupar com esse pequeno probleminha depois. Suavizou a
expressão.
— Eu irei, mas, por favor, primeiro conclua o que estava falando a
respeito da bandeira.
Todos os nervos do seu corpo se avivavam. Precisava retornar
aos seus aposentos para ver o que estava acontecendo com o
espelho. Mas também precisava ser paciente. Não podia se arriscar
a aborrecer a corte e perder o poder que, enfim, acabara de
conseguir.
— Sim, minha rainha — respondeu ele, coçando a cabeça, e sua
peruca branca se deslocou um pouco. Ela gostava que todos em
sua corte se vestissem do mesmo jeito, até com as mesmas
perucas brancas. Era muito mais civilizado assim; além do mais,
detestava ter que se incomodar tentando discernir quem era quem.
Dessa forma, todos eram apenas um número. — Eu dizia que a
bandeira está a meio mastro desde a morte da Rainha Katherine há
seis meses.
A morte da Rainha Katherine. As palavras ainda machucavam
como uma faca em seu coração. Relanceou rápido para os cantos
escuros da sala. Ficava tendo vislumbres da irmã, parecendo tão
jovem e vibrante como estivera até pouco antes de morrer. Era fruto
da sua imaginação, só podia ser isso — coisas como fantasmas não
existiam —, e às vezes isso a confortava, às vezes a desconsolava.
Ninguém tinha como descobrir sobre o veneno que fizera seu leal
caçador colocar na comida de Katherine. Ninguém poderia saber
que tinha sido aquilo que a fizera adoecer.
Agora via Katherine aonde quer que ela fosse, assim como via a
figura do seu mestre quando as coisas com o espelho não seguiam
o rumo que ela gostaria. Era como se ambos servissem como
lembretes irritantes daquilo de que abrira mão para obter seu poder.
Que escolha havia? Não podia permitir que seu mestre ficasse com
o espelho e recusou-se a deixar que Katherine o destruísse. No
entanto, ainda sentia um incômodo toda vez que via a pequena
Branca em lágrimas ou recusando-se a jantar. Havia sangue da mãe
de Branca nas suas mãos, sempre haveria, não importava quanto
tentasse se convencer do contrário.
— Imagino que esteja na hora de encerrarmos o nosso luto, com
a certeza de que a antiga rainha sempre estará nos nossos
corações — Ingrid disse ao homem.
De novo, ouviu o espelho falando. Mas com quem?
O homem relanceou com ansiedade para os outros membros da
corte.
— Não seria melhor mantermos a bandeira a meio mastro por um
pouco mais de tempo, na ausência do Rei Georg? E se ele retornar?
Ingrid se inclinou adiante, indignada.
— Esse rei é um traidor! Abandonou seu trono, seu povo, sua
filha, sem mencionar a sua nova esposa. Ele não merece nossa
empatia. Ele não retornará, eu lhes asseguro!
O cortesão abaixou o olhar.
— Sim, Vossa Majestade.
Ela olhou ao redor. Seu tom ríspido também chocara os outros,
mas aquilo não tinha importância. Tinha que ser firme no que se
referia a Georg.
— Sinto muito. — Ergueu a cabeça. — Isso tudo tem sido muito
perturbador para todos nós, mas, em especial, para a pequena
Branca. — Ingrid se levantou, e os outros abaixaram a cabeça. — A
bandeira voltará a ser hasteada. Enviem um decreto para todo o
reino informando que o luto se encerrou. As buscas pelo Rei Georg
devem cessar, ou haverá consequências. O homem é louco, não
está mais apto a nos liderar. Lembrem o povo do que ele fez e em
que condições deixou seu reino.
— Sim, Vossa Majestade — os membros da corte repetiram.
Ingrid saiu voando da sala do trono e correu pelo castelo,
recusando-se a fazer contato visual com qualquer pessoa. Ela não
perdia tempo com conversas à toa, de todo modo. Conseguia sentir
os movimentos do espelho, e os cabelos em sua nuca estavam
arrepiados. Quem ousava entrar em seus aposentos e conversar
com ele? Não dissera que era proibido entrar seu quarto? Não
queria que a comida fosse entregue lá; devia ser deixada no
corredor. Tampouco queria que o limpassem. Ninguém podia
encontrar seu espelho. Ele pertencia a ela e apenas a ela.
Quem quer que tivesse travado uma conversa com ele se
arrependeria amargamente.
Trancando a porta do quarto atrás de si, foi até o outro cômodo, à
procura do meliante que ousara invadir seus aposentos privativos. A
não ser por algumas almofadas fora de lugar no banco junto à
janela, o quarto estava intocado. Foi até o closet e preparou-se para
acionar a alavanca que revelava o cômodo parecido com um
calabouço onde ela e o espelho se reuniam — mas encontrou-o
aberto.
Invadindo o cômodo escuro, preparou-se para sentenciar o
invasor à morte, mas as palavras sumiram quando ela percebeu o
que estava acontecendo. Através da neblina verde e fumacenta
emitida pelo espelho, viu o contorno de alguém, a mão esticada
para encostar na superfície lisa do vidro. Mas a silhueta a confundiu,
por ser tão pequena e parecer estar nas pontas dos pés para
alcançar o objeto. Então, percebeu…
— Branca! — exclamou, correndo na direção da menina para
afastá-la do espelho antes que seus dedos encostassem na
superfície. — Como entrou aqui? — indagou, sacudindo a menina
pelos ombros com tanta força que ficou sem saber se era ela ou a
menina quem estava mais nervosa.
A sobrinha se pôs a chorar, e lágrimas rolaram pelas
arredondadas faces de porcelana. O vestido cor de marfim que ela
usava estava todo sujo por causa do cômodo pelo qual se arrastara
para chegar aos aposentos privativos de Ingrid. Havia passagens
secretas em toda parte naquele castelo. Passagens que precisariam
ser fechadas de imediato. O laço de Branca, acomodado no topo da
cabeça de cabelos escuros, estava torto. Distraída, Ingrid se
perguntou quem teria prendido o cabelo dela naquela manhã.
Costumava ser Katherine; nunca fora ela, Ingrid. Ficou imaginando
se já fazia alguns dias ou uma semana desde que vira a menina
pela última vez. De fato, vinha tentando evitá-la. Depois de meses
tentando formar um vínculo com a garota a pedido de Georg,
desistira. Toda vez que via Branca, a criança estava chorando —
primeiro pela mãe, e agora por causa do pai. As lágrimas naquele
dia se derramavam fortes e rápidas, e o soluço que escapou da
garganta dela foi tão sentido que Ingrid abaixou a guarda
ligeiramente.
— Ah, criança… — começou a dizer.
— Ele disse que eu podia ver a mamãe! — Branca olhou para
Ingrid com imensos olhos castanhos idênticos aos de Katherine. —
Ele disse que eu só precisava tocar nele.
— O quê? — Ingrid não sabia em que descarregar a raiva
primeiro: no espelho, por tê-la traído, ou naquela criança tola, que
quase destruíra tudo o que ela vinha se esforçando para obter. —
Branca, vamos sair daqui.
— Não! — As lágrimas foram substituídas por uma onda de raiva.
A menininha começou a bater no peito de Ingrid. — Quero ver a
minha mãe! Ele prometeu! Eu só precisava tocar nele!
Pelo tempo em que ela viver, minguará vosso poder. Ela é a
verdadeira herdeira nesta brincadeira.
— Mentiroso! Você estava tentando usá-la em benefício próprio!
— Ingrid gritou para o espelho, e Branca parou de bater na tia e a
olhou com surpresa. Em seguida, disparou para fora do cômodo.
Ingrid a apanhou antes que ela conseguisse chegar à porta do
quarto, o que não foi difícil. A pequena Branca se desfez como um
leque de papel no instante em que Ingrid a tocou e, por um instante,
debulhou-se em lágrimas uma vez mais, enterrando a cabeça no
peito da tia. Ingrid, de novo, foi pega desprevenida. Branca nunca a
abraçara antes. Não depois da morte de Katherine nem depois das
núpcias apressadas entre ela e Georg, que a menina de apenas
sete anos não parecia compreender.
Ela também se cansara daquele novo papel. A princípio, casar-se
com Georg fora uma necessidade — a fim de obter poder, ela
precisava da coroa. Mas logo percebeu que não lhe bastava
governar ao lado de um homem. Ela queria governar por si só, e
não ser a substituta das necessidades e das afeições dele. Tivera
esperanças de que a adoração por parte do homem fosse agradá-la,
mas, em vez disso, sentiu repulsa, porque o tolo apenas respondia
ao feitiço.
Ela misturava a poção na bebida dele todas as noites,
religiosamente, até que, então, resolveu que bastara. O amor dele
não era real, e tampouco o dela por ele. Foi um alívio fazer um
guarda levar Georg para longe depois de tê-lo amaldiçoado com um
feitiço que o baniria para uma localização remota da qual jamais
poderia retornar. Matara o guarda depois, claro, mas permitira que
Georg vivesse — não por pena, mas por necessidade. Como o
espelho a lembrara, ela poderia precisar de sangue real um dia —
era um poderoso ingrediente em muitos feitiços, que, infelizmente,
não reconheceriam o seu sangue como tal, pouco importando o fato
de estar carregando a coroa. Melhor deixá-lo viver lá, esperando.
Mas qual seria o fim de Branca? O espelho sugerira matar a
menina, mas, toda vez que ela pensava nisso, via o fantasma de
Katherine. Argumentava que seria melhor deixar a pequena crescer
até conseguir enxergar por si só o quanto o mundo estava às
avessas. Talvez Branca percebesse que o reino ficaria melhor nas
mãos de Ingrid e ficasse ao seu lado.
Não sejais tola. Prossigais com o que foi traçado. A garota
interfere em vosso reinado.
Ingrid bloqueou a voz do espelho da mente uma vez mais. Ela
não era tola. Só não estava pronta para matar uma menininha,
pouco importando quanto detestasse a ideia de se tornar sua mãe.
Fizera isso com Katherine, e veja só o resultado.
Mas agora, aquela criança, a quem ela praticamente dispensara,
estava nos seus braços, implorando para ser acalentada, e ela
sentiu a própria mão amparando a cabeça de Branca. Começou a
acariciar os cabelos dela e a sussurrar alentos.
— Sua mãe se foi. Nenhum espelho pode trazê-la de volta. E seu
pai nos traiu. Ele perdeu a cabeça depois que sua mãe morreu.
Agora ele nos deixou, a você e a mim, por conta própria. O seu pai e
o meu pai fizeram o mesmo. Katherine e eu perdemos nossa mãe
quando éramos bem novas. Ela chegou a lhe contar isso? — Branca
meneou a cabeça. — Nosso pai não nos criou como deveria, por
isso fomos embora. — Essa história ainda a magoava, mesmo
depois de todos esses anos. — Confiamos uma na outra para
chegarmos até este reino, e ficamos juntas por muito tempo até
que… — Outro homem se colocou entre nós, ela quis dizer. — O
importante é que não precisamos de ninguém para nos liderar.
Podemos fazer isso sozinhas. Nos subestimar foi um grave erro de
seu pai.
O choro de Branca diminuiu. Talvez aquela fosse a chance de
chegarem a um meio-termo.
— Mas ninguém nos subestimará no futuro — prosseguiu Ingrid.
— Somos monarcas, as mais fortes de todas. O tolo que nos
ameaçar — e disse tanto para o espelho quanto para a sobrinha —
sofrerá um destino pior que a morte.
Branca se afastou, rastejando para trás como uma aranha. Sua
expressão era de puro terror. O que a assustara? A palavra morte?
Que garotinha tola, assustando-se por tão pouco.
— Branca, volte aqui — disse Ingrid, ficando irritada. — Eu não
terminei de falar. — Deu um tapinha no joelho onde Branca estivera
confortavelmente aninhada.
— Não! — Branca recomeçou a chorar enquanto recuava para a
porta e a destrancava. — Você não é a minha mãe e jamais será! —
Ela se esgueirou para fora, batendo a porta com tanta força que um
vaso caiu de uma mesinha e se espatifou no chão.
Ingrid sentiu a raiva trespassar seu corpo. Fechou os olhos com
força, notando que uma verdadeira dor de cabeça se instalava, e, ao
abri-los, viu que ambos estavam ali: Katherine e seu mestre,
encarando-a sem emoção, antes de se moverem pelo quarto até a
porta pela qual Branca acabara de se retirar. Em seguida, os dois
desapareceram por ela.
Farrapos não podem esconder sua beleza suave. Ah, ela é mais
bela que vós — o espelho repetiu, quase como se caçoasse dela. —
Lábios vermelhos como a rosa, cabelos pretos como o ébano, pele
branca como a neve. Branca de Neve.
CAPÍTULO DEZESSETE

Branca de Neve

BRANCA TEVE SONHOS INQUIETOS naquela noite na cabana do


pai.
Ela costumava receber o sono de braços abertos. Não só
representava um descanso da sua ordinária existência sem graça,
como também lhe permitia a chance de ver a mãe. Sim, era
verdade, os sonhos não podiam substituir um tempo passado de
fato com ela, mas eram tão vívidos que às vezes sentia como se
fossem visitas de verdade. Nessa noite, porém, seus sonhos se
pareceram mais com pesadelos.
Ela estava com a mãe, mas, dessa vez, o tempo que passaram
juntas não era alegre. Pareceu urgente e desprovido de emoções,
como se o tempo estivesse acabando, mas Branca não conseguia
entender por quê. Em seus sonhos, o castelo costumava se
assemelhar ao das lembranças de infância de Branca — vibrante,
cheio de flores e felicidade. Mas agora era diferente. Sua mãe
caminhava à frente dela no castelo escurecido, e fumaça tomava
conta do corredor.
— Siga-me — a mãe ficava dizendo, liderando o caminho
segurando uma vela.
Branca não queria. Desconhecia o caminho pelo qual a mãe a
conduzia. Ela não tinha certeza de já ter estado naquela parte do
castelo antes. Parecia maligno. As pernas de Branca estacaram e
trepadeiras de imediato as envolveram. Ela se debateu para se
mover.
— Siga-me — a mãe a incitou de novo, ignorando as trepadeiras.
— Rápido! É importante.
As plantas desapareceram, e Branca não teve escolha a não ser
atender à mãe. Voltou a andar e, de repente, percebeu que estava
na ala de tia Ingrid.
— Não deveríamos estar aqui — Branca disse à mãe. — Ela pode
nos apanhar.
A mãe se virou e sorriu com tristeza.
— Ela já fez isso. Venha ver. É importante.
Conduziu Branca pelo quarto de dormir da tia até um armário
embutido. Quando Katherine pressionou um coração de madeira
entalhado na moldura, a parede emitiu um som, revelando uma
passagem secreta. A mãe de Branca gesticulou para que ela a
seguisse. Branca fez o que lhe foi dito, chegando num quarto escuro
com paredes semelhantes às de um calabouço.
— Veja — disse a mãe, apontando para a escuridão.
Branca não queria olhar, mas a mãe ficou chamando-a pelo nome
até que abrisse os olhos.
Ali, numa plataforma, havia um espelho grande.
Nele, havia uma máscara terrível que parecia quase humana, mas
não era. Trovões pareceram ecoar dentro daquele quarto, onde a
fumaça estava mais espessa.
Branca encarou o espelho maravilhada, sentindo-se compelida a
tocar nele. Parecia-lhe familiar. Já estivera naquele quarto antes?
Por que o espelho parecia estar chamando por ela?
— Ela sabe que tu respiras. Isso é fato. Todos os que tu amas ela
perseguirá. Matar a ti ela tentará — disse a máscara no espelho.
Branca despertou ofegante.
— Branca! — Henri se levantou de súbito de perto da lareira e a
sacudiu para que ela saísse do seu estupor. Seu pai estava logo
atrás dele. — Você está bem?
Ela olhou para Henri.
— Eu o vi! O espelho da rainha! Aquele sobre o qual a minha mãe
falou!
O pai e Henri a encararam preocupados.
— Apareceu para mim no meu sonho — explicou Branca. — Bem,
mamãe me levou até ele. — Olhou para o pai, suplicante. — Sei
onde ele está escondido. Está nos aposentos da rainha. — Ela
abaixou os olhos. — Acho que ele me conhece. Lembro-me de tê-lo
visto antes.
— O quê? — A voz do pai ficou mais incisiva. — Ingrid a levou
para ver essa bruxaria?
— Não, fui sozinha — contou Branca, trazendo à tona a
lembrança remota. — Ele me chamou um dia, como no sonho. Eu
era criança. Acho que foi logo depois que mamãe morreu. O
espelho me levou até lá como se quisesse que eu fosse, mas tia
Ingrid chegou no último momento e me afastou. Ela ficou furiosa. —
Branca olhou para Henri e tentou não soar alarmada. — Esse
sonho, porém, foi diferente. A rainha sabe que estou viva. O espelho
me contou. Ela está vindo atrás de mim.
Henri exalou devagar.
— Então ficará aqui — o pai insistiu. — Eu a defenderei.
Branca tocou no braço dele.
— Não, pai. Sabe que isso não dará certo. Se sabe que estou
viva, ela pode me encontrar. Pode até ser que venha para cá.
— Deixe que venha! — o pai bradou. — Estou pronto para
enfrentá-la.
Henri e Branca o olharam, e ela sabia que estavam pensando a
mesma coisa. Seu pai envelhecera, e a rainha tinha magia a seu
favor. Além do mais, se havia algo bom que a tia lhe ensinara era
que ela não precisava de um homem ao seu lado para lutar. Vivera
à sombra de Ingrid por tempo suficiente. Era a sua vez de se
proteger. Acabara de reencontrar o pai. Não queria perdê-lo para a
rainha. Aquela batalha era sua.
— Precisamos ir até o espelho — Branca disse decidida.
— Sim, antes que ela encontre um de vocês — acrescentou
Henri.
O pai começou a protestar, mas Branca o interrompeu.
— É a nossa melhor chance de detê-la. Se eu conseguir manter
aquele espelho refém em troca da remoção do feitiço que lançou em
você, ela pode concordar em sair do reino para nunca mais voltar…
— Não — o pai falou com firmeza. — Ela não pode apenas ir
embora! É perigosa demais. Temerária demais. Já fez estragos
demais e destruiu os recursos do nosso reino. — A voz dele se
enfraqueceu. — Tem que ser olho por olho. Devemos vingar a morte
da sua mãe e, para isso, a rainha tem que morrer.
— Um erro não justifica o outro — afirmou Branca. — Você e
mamãe não me ensinaram isso?
Georg parecia furioso.
— Ela matou a sua mãe! Ela tentou matar você! A Rainha Má tem
que morrer.
Morrer? Branca não sabia se poderia matar alguém a sangue frio,
mas não discutiria com o pai naquele momento. O tempo estava
passando. — Primeiro, devo chegar ao espelho. Ameaçar destruí-lo.
Quebrá-lo. Fazer o que for preciso para nos livrarmos dele.
— Se a rainha está tão ligada a ele, não permitirá que o danifique
— disse Henri. — Se permitir que fique com ele, talvez ela vá
embora sem fazer alarde.
— Ela jamais irá embora em paz — lamentou o pai. — Disso eu
sei. — Olhou para Branca. — Se não vai ficar aqui, não posso
sequer ajudá-la a lutar contra Ingrid, minha flor da neve. Não
enquanto eu for prisioneiro.
Branca agarrou as mãos dele de novo.
— Você não será prisioneiro por muito mais tempo. Eu quebrarei
o feitiço. Libertarei o reino da Rainha Má e salvarei o nosso povo.
Não permitirei que ela continue a fazer mal às pessoas que amo. Eu
lhe juro.
Georg segurou o rosto da filha entre as mãos, e ela notou que os
olhos dele estavam marejados.
— Cuidado com o que promete, minha Branca de Neve. Muito
cuidado.
CAPÍTULO DEZOITO

Ingrid

BRANCA DE NEVE ESTAVA VIVA.


O espelho estava rachando.
Num acesso de raiva, Ingrid saiu voando dos seus aposentos e
desceu as escadas do castelo até o primeiro andar sem ser vista. O
que não era difícil de fazer. Nos últimos tempos dispensara mais
criados, depois que os encontrou na sua ala privativa. Ela não
confiava em ninguém. Agora o espelho também a decepcionara.
Como Branca de Neve tinha sobrevivido? O caçador era filho do
homem que a ajudara a envenenar a mãe de Branca anos atrás.
Como foi que Branca o convencera a deixá-la ir?
Furiosa, ela foi direto para o seu covil nas profundezas do
calabouço do castelo. Na verdade, existiam dois calabouços —
aquele em que os guardas deixavam apodrecer os inimigos do reino
e aquele que ela murara por uma escada, a qual só ela tinha
acesso. A escada conduzia a algumas celas de uso pessoal, bem
como à sua sala de poções. Uma vez que ninguém sabia da sua
existência, não era limpo com frequência. Teias de aranha
decoravam as paredes, e ratos se apressavam pelo piso, mas até
eles podiam ser usados se alguma poção exigisse. O importante era
que mais ninguém sabia da existência daquele lugar.
Ingrid jogou a caixa com o coração com desgosto em um canto.
— O coração de um porco! — exclamou para o único ser que a
via: um corvo. Não tinha como saber se era o mesmo que vinha
aparecendo à sua janela todos os dias durante a última semana,
mas, de alguma forma, o pássaro a confortava. Ele parecia partilhar
sua escuridão e ouvi-la em seus debates de uma maneira que o
espelho já não fazia.
Olhou ao redor do seu laboratório, onde várias poções em que
estivera trabalhando borbulhavam em diversos frascos e garrafas.
Nenhuma delas poderia ser usada na garota. Havia feitiços de
memória, feitos para aqueles que ela precisava enganar. E também
havia os tônicos para manter a juventude. Nada do que tinha à mão
poderia ser usado na garota. Na verdade, ela não podia confiar no
espelho, no caçador e em mais ninguém para executar aquela tarefa
por ela. Se queria que Branca de Neve desaparecesse de verdade,
ela mesma teria que dar cabo da garota.
Mas como?
Olhando o covil à procura de inspiração, seus olhos aterrissaram
na prateleira de livros empoeirada num dos cantos do cômodo. Uma
lombada com uma única palavra, Ocultação, chamou a sua atenção.
Isso! Ela sabia onde a garota estava. Só o que precisava fazer era ir
disfarçada à casa dos anões para acabar com Branca de Neve de
uma vez por todas. Mas precisava ser um bom disfarce, um que
pudesse mascarar a beleza pela qual tanto lutara. Claro, seria
temporário. Mas também precisava ser crível.
Tirando o livro da prateleira, Ingrid folheou-o até encontrar a
poção certa. Sim. Era aquela. Uma pedinte. Aqueles homenzinhos
deviam tê-la alertado que não abrisse a porta para estranhos. Mas
se Branca era minimamente parecida com a mãe, ela se apiedaria
de uma pobre velha que por acaso aparecesse à sua soleira. Ingrid
leu as instruções com rapidez. Era um feitiço de alto nível e que
exigia os mais raros ingredientes. Ela esvaziara as prateleiras do
seu mestre depois da morte dele, pegando tudo o que pensara que
poderia lhe servir. Mas os itens necessários para aquela poção em
especial eram tão raros que poderia acabar com tudo o que tinha
para conseguir uma única dose. Ingrid leu o que seria necessário
para o feitiço de reversão, e muitos dos ingredientes se repetiam.
Teria o suficiente? Onde conseguiria mais pó de múmia? E manto
da noite?
O corvo crocitou ao som de um trovão ao longe. O covil tinha uma
janelinha, que revelava a escuridão do lado de fora. A chuva se
aproximava.
Branca de Neve é a mais bela de todas, ouviu o espelho dizer.
Ela não podia perder tempo se preocupando sobre onde
arranjaria mais ingredientes para reverter o feitiço. Precisava usar o
que tinha antes que a garota aparecesse exigindo a sua coroa.
Ingrid juntou cada frasco da lista e foi até seu caldeirão. Um a um,
repetiu os passos ditados pelo feitiço e despejou os ingredientes no
caldeirão, certificando-se de enunciar suas intenções com clareza.
Seu mestre sempre lhe dissera que apelar para a escuridão era o
que fazia o feitiço funcionar.
— Mude minhas roupas majestosas para as de uma pedinte. —
Ela despejou o pó no caldeirão borbulhante, que sempre ficava
cheio de óleos, pronto para ser usado. — Pó mágico de múmia para
envelhecer. Para esconder minhas roupas, manto da noite. Para
camuflar minha voz, o riso de uma bruxa. Para branquear meus
cabelos, um grito de horror! — A poção engrossava e borbulhava.
Começava a esverdear, como o livro de feitiços dizia que
aconteceria. Como um toque final… — Um relâmpago para misturar!
— O trovão rimbombou ao longe, quase seguindo a deixa.
De pronto, Ingrid apanhou com uma concha um pouco do líquido,
despejou numa taça e levou a mistura verde e borbulhante aos
lábios. Hesitou por um instante ao olhar para as mãos jovens que
passara tantos anos aperfeiçoando. Em um piscar de olhos, elas
ficariam cobertas de veias grossas, decrépitas. Ela não sabia se
poderia suportar.
Branca de Neve é a mais bela de todas.
Preparando-se, Ingrid engoliu o conteúdo da taça. A poção tinha
gosto de bile. Era tão horrorosa que ela se obrigou a engolir e, de
imediato, desejou não ter feito isso. Ficou tonta, e o laboratório
começou a girar. A taça escorregou dos seus dedos e se estilhaçou
no chão quando ela começou a engasgar. Não conseguia respirar.
Algo estava muito errado. À medida que foi perdendo consciência,
pôs a mão na garganta e começou a despencar para o chão.
Mas, então, sentiu algo estranho. Aos poucos, a mão que envolvia
o pescoço perdia a força. O belo vestido começou a desaparecer,
sendo substituído por uma veste preta horrorosa muito parecida
com o que a esposa do fazendeiro sempre usara. Os cabelos
cresceram e ficaram despontados, embranquecendo das raízes até
as pontas. O nariz pareceu se esticar, e nele surgiram verrugas.
Ficou cheia de veias por toda parte, e tudo isso foi glorioso! Ela não
estava morrendo. O disfarce funcionou! Ela deu uma gargalhada,
que saiu como uma crepitação.
— Minha voz! Minha voz! — disse, ouvindo o som alquebrado.
Branca de Neve jamais suspeitaria de nada.
Mas, agora pensava, o que fazer com a garota assim que
estivesse diante dela? Suas ações tinham que ser rápidas e
simples, visto que trabalharia sozinha. Formular um tônico venenoso
como o que usara na mãe da garota levaria dias. Ela precisava de
algo rápido. Algo que a atraísse de modo irresistível. Uma jovem tão
bela precisava de uma morte especial.
Buscou outro livro de feitiços — suas mãos enrugadas e cheias
de manchas parecendo as de outra pessoa — e virou as páginas. O
Sono da Morte na forma de uma maçã. Que poético. A vida de
Katherine mudara por causa daquelas maçãs Vermelho Fogo e
agora, por sua vez, a vida da filha terminaria com uma. Ela leu os
passos no livro de feitiços.
— Uma mordida da maçã envenenada e os olhos da vítima se
fecharão para sempre no sono da morte.
Era perfeito.
Suspirou, frustrada por seu corpo se mover mais devagar por
causa da sua nova idade temporária. A juventude era o caminho a
seguir. Com toda a velocidade que conseguiu desenvolver, juntou os
ingredientes no caldeirão e deixou-os ferver. Ainda bem que tinha as
frutas à mão. Apanhou uma maçã Vermelho Fogo apodrecida e a
mergulhou na poção.
— Nesta mistura bem forte — proclamou Ingrid —, a maçã sorve
o sono da morte!
Um minuto depois, retirou a maçã do caldeirão e verificou se o
feitiço tinha funcionado. Enquanto a poção verde escorria da maçã,
Ingrid imaginou o símbolo do veneno aparecendo nela.
— Veja! — disse ao corvo. — Na casca. O símbolo do que há por
baixo. Agora bem vermelha vais ficar para Branca de Neve te
provar! — Aos poucos a maçã mudou de cor. Ingrid gargalhou de
deleite e estendeu a maçã perfeita para o corvo. — Estás servido?
— O corvo se afastou voando, e ela riu. — Não é para ti! É para
Branca de Neve. Quando ela morder a tenra casca para provar esta
fruta, sufocará, paralisará e, então, eu serei a mais bonita nesta luta.
Que estranho. De repente ela estava falando em rimas, como o
espelho sempre fazia. Era quase como se ele estivesse falando por
meio dela, embora desta vez Ingrid estivesse trabalhando sozinha.
Ergueu o fruto do seu trabalho para admirá-lo um pouco mais.
Era uma maçã que Katherine proclamaria estar à altura de um rei.
De uma princesa. Era vermelha como rubi, com traços verdes e o
formato perfeito de um coração. Ela a aninhou num cesto com
outras maçãs, colocando-a no topo, para que Branca a visse
primeiro. Se ela saísse agora, por um alçapão no piso do seu
calabouço, sob o manto da escuridão, chegaria ao chalé dos anões
nos arredores da floresta ao alvorecer, bem quando os homens
saíam para trabalhar. Quem precisava das instruções do espelho?
Conseguiria dar conta de cada etapa sozinha! Estava a caminho do
alçapão quando um pensamento a deteve. Olhou de volta para o
corvo, que tinha retornado e a observava com curiosidade.
— Pode haver um antídoto. — Ingrid retornou para o livro
empoeirado e leu o feitiço de novo. — Nada pode ser negligenciado.
— Encontrou a nota de rodapé que procurava: A vítima do sono da
morte só pode ser reavivada pelo Primeiro Beijo de Amor
Verdadeiro. Fechando o livro com um baque, riu de alegria ao
apanhar o cesto de maçãs e levantar a porta do alçapão. Bem, não
havia o que temer. Os anões pensariam que Branca estaria morta.
Seria enterrada viva!
Satisfeita, Ingrid desapareceu pelo alçapão sem deixar rastro.
CAPÍTULO DEZENOVE

Branca

DEIXAR O PAI FOI como perder um pedaço da sua alma. Depois


de terem ficados separados por uma década, aquela única noite
passada juntos parecia curta demais, e o futuro ainda era tão
incerto. O pai não sabia se voltariam a se ver, mas Branca jurou que
sim.
— Vou voltar para buscá-lo — ela lhe disse, abraçando-o na
despedida.
O pai não argumentou, como fizera antes.
— Cuidem um do outro — disse, em vez disso, olhando para
ambos.
— Sim, Vossa Majestade — assentiu Henri, e Branca sorriu.
Mesmo exilado, sem uma coroa ou pessoas a quem recorrer em
caso de necessidade, Henri lhe prestava homenagem usando seu
título. Branca presumira que o rapaz iria embora depois de ter
cumprido a promessa de reuni-la com o pai, mas Henri insistiu em
levá-la de volta até a casa dos anões. Ela não se opôs. Apreciava a
companhia e se deleitava com a oportunidade de passar mais
tempo com ele.
O pai depositou algo pequeno na mão dela e fechou seus dedos
ao redor do objeto.
— Leve isto com você — sussurrou.
Ela abriu a palma e fitou o delicado colar de pedras azuis.
— Era da sua mãe — explicou ele. — Foi o primeiro presente que
lhe dei… logo que comecei a cortejá-la, se bem me lembro. Ela o
usou religiosamente até o nosso casamento. — Sorriu ante a
lembrança. — Depois que ela morreu… — As palavras se entalaram
na garganta, e Branca segurou sua mão. — Comecei a carregá-lo
comigo no bolso da camisa. Pode parecer tolice, mas sentia como
se estivesse segurando um pedacinho dela junto do meu coração.
Ele estava comigo no dia em que Ingrid me baniu. De alguma forma,
ela não sabia a respeito disso. Era como se sua mãe tivesse me
dado um último presente. Sempre tive esperanças de um dia poder
passá-lo para você.
— Ele é lindo. — Os dedos de Branca tocaram nos entalhes das
pedras preciosas, que eram frias.
— Por mais que não consiga viajar com vocês, este colar ainda
pode ter serventia — explicou o pai. — Outras pessoas o
reconhecerão. A feiticeira reconheceu quando apareceu no meu
caminho um dia. — Sorriu. — Esse colar foi o que me manteve
longe de perigo até aqui e fará o mesmo por você.
Ela queria usá-lo, mas era uma joia delicada demais para a
camponesa por quem se fazia passar. As pedras se sobressairiam
caso se deparassem com pessoas pelo caminho. Em vez disso, ela
o guardou no bolso da camisa, como seu pai fizera, tendo a mãe
perto do coração.
— Obrigada. — Abraçou-o uma vez mais. — Algum dia, em
breve, eu o usarei. Tão logo a rainha tenha ido embora, você tiver
voltado em segurança e eu…
E eu o quê? For coroada? Fez uma pausa. Será que o pai haveria
de querer a coroa de volta assim que tudo aquilo acabasse?
O pai sorriu, evidentemente compreendendo a hesitação dela.
— Sim, minha flor da neve. Você o usará quando for coroada
rainha. Meu tempo já passou. Você é o futuro do reino. E, se o livrar
da Rainha Má, como planeja fazer, todos exigirão que se torne sua
nova líder. — Segurou a mão dela. — Posso aconselhá-la no início,
claro, e estarei ao seu lado, mas a sua hora é agora.
A sua hora é agora. As palavras do pai ecoaram em seus ouvidos,
importantíssimas. Conseguiria encontrar forças dentro de si para ser
uma boa líder? Ela pensou a respeito por um momento, mas já
sabia a resposta. Sim, conseguiria. Sua mente se encheu de
possibilidades. Ela devolveria a prosperidade ao reino, assim como
fora durante o reinado do pai e da mãe. Remediaria as injustiças
contra os mineiros. Estabeleceria uma nova infraestrutura, de modo
que a agricultura prosperasse uma vez mais. Retomaria os tratados
comerciais com outros reinos, como o de Henri. As possibilidades
eram infinitas.
Se conseguisse fazer com que a tia renunciasse ao trono.
A única coisa que ainda a incomodava era a declaração do pai de
que a Rainha Má tinha que morrer. Não importava quanto
estivessem bravos e o que ela lhes roubara, Branca não tinha
certeza se poderia tirar uma vida. Suspeitava de que a mãe
concordaria com ela.
O trajeto de volta até o chalé dos anões pareceu muito mais longo
do que o de ida ao encontro do pai. Estava desesperada para
contar-lhes sobre o espelho e para saber do progresso deles. Ainda
bem que ela e Henri tinham se aproximado e conversaram durante
todo o caminho de volta. Ela falou sobre sua vida com os anões,
enquanto ele a presenteava com história sobre o tempo em que
Georg o ajudou a convalescer. Pelo visto, o pai teimou em não
deixar Henri morrer, acordando-o de hora em hora para alimentá-lo
com um caldo ou dar-lhe água para beber e falando sobre a infância
de Branca para mantê-lo acordado.
— Acredito saber mais a seu respeito de quando você tinha sete
anos do que você mesma — brincou Henri.
— Ah, é, você acha? — perguntou ela, feliz que o rapaz não podia
vê-la corar, já que estava montada diante dele no cavalo.
— Acho — respondeu confiante. — Sei que sempre preferiu o
azul e o amarelo a quaisquer outras cores. Você era excelente em
esconde-esconde. Odiava mingau frio, e a minha história preferida:
nomeou cada cavalo dos estábulos e gostava de colocar laços na
cabeça deles quando tinha permissão.
Ela enrubesceu um pouco mais e gargalhou. Não se lembrava
disso!
— Eu não fiz isso! Fiz?
Henri também riu.
— Pelo visto, fez, sim, enlouquecendo a costureira real com seus
pedidos de laços e fitas para os cavalos reais.
— E quanto a você? — Branca quis saber. — É justo que me
conte como você era quando criança, já que sabe tanto sobre mim.
Ela sentia os braços de Henri ao redor da sua cintura enquanto
cavalgavam pela floresta.
— É justo. Deixe-me ver… Encontrei um rato no castelo um dia e
tentei adotá-lo como bichinho de estimação. Eu o ficava
alimentando. Minha mãe quase desmaiou ao me flagrar dando-lhe
queijo, mas eu não podia abandonar o Velho Croxley.
— Croxley? — Branca considerou a ideia bem fofa. Com
frequência, implorara para ter um bichinho de estimação, mas a mãe
lhe dizia que ter um viveiro cheio de pássaros já era o bastante. —
Você o chamou de Croxley?
— Qual o problema? — Henri pareceu indignado. — Não é como
se eu tivesse feito roupas para ele, nem tentei ensiná-lo a cantar.
Mas eu estava sempre aprontando. Uma vez, Kristopher e eu
quebramos uma janela enquanto lutávamos de espada na entrada
do castelo. As armas eram dos guardas, mas eles estavam jantando
e não perceberam que tínhamos nos apossado delas. Não sei bem
quem levou uma bronca maior, nós ou eles. Provavelmente nós, por
causa da janela. Minha mãe o fez pegar leve daquela vez.
— Houve outras vezes? — Branca perguntou incrédula.
— Bem, com dez anos, roubei a coroa do meu pai e tentei vendê-
la a quem oferecesse mais na praça do vilarejo. — Henri riu. — Eu
disse ao meu pai que estava cansado de ele estar sempre tão
ocupado reinando que não podia brincar.
— Não! — Branca gargalhou a valer. — Não é possível.
— Ele achou engraçado, mas nem tanto — disse Henri. —
Nenhum dos meus irmãos jamais tinha aprontado algo assim. Minha
mãe me chamava de “turbulento”. Diz que ainda sou bastante
obstinado.
— Não há nada de errado nisso — observou Branca. — Como eu
queria ter sido mais assim nos últimos anos.
Henri ficou quieto.
— Você não sabia. Não pode se torturar, Branca.
— Eu sei. — Branca tentou parecer positiva. — O passado já foi.
Agora preciso me concentrar em como mudarei o futuro.
— Tenho a impressão de que vai descobrir como fazer isso —
comentou Henri.
Ele tinha razão. Ela iria descobrir. Ao chegarem ao chalé dos
anões, já estava formulando um plano. Seu reencontro com os
homens foi festivo. Eles ficaram eufóricos em ver que os dois
voltaram a salvo e em saber que o rei estava bem. E tiveram certo
sucesso ao conversar com dois mineiros — seus amigos, Kurt e
Fritz —, que sugeriram que viajassem até o vilarejo deles para
discutirem como destronar a rainha com os demais aldeões. Mas
Feliz insistiu que deviam deixar os detalhes para depois do jantar.
Todos estavam tão de bom humor que, assim que terminaram de
comer, Dengoso e Soneca pegaram suas rabecas e começaram a
tocar. Branca, que não dançava há anos, levantou-se de um pulo e
juntou-se a Dunga na pista improvisada, rodopiando livremente pelo
cômodo pequeno. Quando Dunga se cansou, Henri se levantou e
lhe estendeu a mão. Branca hesitou por um instante fugaz, ouvindo
o suspiro de Zangado, antes de aceitar. Seu coração batia
acelerado a cada giro, e ela tinha dificuldades para sustentar o olhar
de Henri, ficando com o rosto cada vez mais rubro sempre que ele a
olhava. Mas logo ela se deixou levar pelo momento, esquecendo-se
do nervosismo e apenas se soltando. Assim que os homens
iniciaram outra canção, Zangado interrompeu a diversão.
— Chega de festa! Ainda não vencemos! — exclamou. — Temos
que deter a rainha! — Olhou para Branca e Henri. — Contem-nos o
que descobriram.
— E como o Rei Georg está? — acrescentou Dengoso.
Branca sorriu plácida, as faces pálidas iluminadas pela luz da
lareira.
— Ele está bem de saúde. — Os homens pareceram aliviados. —
Quando o vi, foi como se o tempo não tivesse passado, e, no
entanto, tanta coisa aconteceu. Ele sente muitas saudades do reino,
mas está amaldiçoado a permanecer do outro lado da fronteira. —
Ela explicou o que o pai lhe contara sobre o truque cruel da rainha e
depois lhes contou sobre o espelho mágico.
— Sua mãe mostrou-lhe onde ele estava no sonho? — perguntou
Mestre, esfregando o queixo. — Interessante.
— Por quê? — perguntou Feliz.
— É como se ela estivesse tentando ajudar Branca a recuperar o
que é seu por direito, mesmo que do além.
Era uma ideia animadora, e Branca desejou que fosse verdade.
Nunca se sentira tão próxima da mãe quanto nessa última semana.
Daria tudo para tê-la por perto. Se aquilo era uma tentativa de ajuda
por parte da mãe, então aceitaria com muita gratidão. Olhou para
Henri.
— É melhor que eu lhes conte sobre a minha mãe também. — Ele
assentiu com tristeza.
Os homens ficaram arrasados ao descobrirem como a Rainha Má
envenenara Katherine. A notícia só fez com que quisessem ainda
mais acabar com ela.
— O espelho deve ser como consegue a magia das trevas —
opinou Zangado. — Ela parece obcecada por ele. Se não queria ter
Branca por perto dele, é porque deve ser bem poderoso.
— Parece perigoso — disse Dengoso.
— Parece que está possuída por ele — acrescentou Mestre.
Possuída. Obcecada. Invejosa. A tia era tudo isso, e o espelho
parecia aumentar seus piores atributos, como se…
— Mestre, acha possível que uma pessoa se torne uma só com
um objeto?
— Como assim? — perguntou ele.
— A Rainha Má parece ter se entregado ao espelho por completo
— explicou Branca. — Talvez até esteja recebendo ordens dele.
— Não a exonere — avisou Zangado. — Ela fez isso tudo
sozinha!
— Verdade, mas não sem ajuda — argumentou Branca. — Talvez
o motivo de ser tão apegada ao espelho é por não conseguir existir
sem ele. Ela obtém poderes dele, e ele também fica mais poderoso
junto dela — opinou. — Se isso for verdade, então um não pode
sobreviver sem o outro.
Será que isso significava que, se destruíssem o espelho, também
matariam a Rainha Má? Branca se debatia com a ideia de subir ao
trono por causa da morte da tia. Isso a rebaixaria ao mesmo nível
dela? Tinha que haver outro modo.
— Branca pode ter razão — concordou Henri. — Ouvi dizer que
os magos e as bruxas das trevas colocam partes de si em seus
objetos mais prezados.
— É por isso que temos que roubar o espelho — declarou Branca.
— Ficaremos com ele para obter uma forma de resgate. Ela não
terá escolha a não ser deixar o castelo e permitir que meu pai volte
para casa em troca do espelho.
— Você não pode deixar aquela coisa solta por aí! — Zangado
parecia seu pai. — O espelho deve ser destruído.
— Mas isso a mataria! — disse Feliz.
— E daí? — rebateu Zangado. — Pense em todas as pessoas
que ela tentou matar. Ela tentou matar Branca!
— Mas… — Feliz tentou argumentar de novo.
— Por enquanto nos concentramos em pegar o espelho —
decidiu Branca. — Roubá-lo pode ser o único meio de convencer a
rainha a libertar meu pai de sua prisão.
— O que você vai fazer? — Soneca perguntou com um bocejo. —
Marchar até o castelo e simplesmente tirá-lo da parede?
— O espelho saberá que está indo atrás dele — disse Zangado.
— Pressinto que ele já sabe que estou viva — concordou Branca.
— Nosso tempo pode ser mais curto do que pensávamos.
— É o motivo pelo qual nós devemos nos apressar — disse Henri.
Branca o olhou.
— Nós?
Henri sorriu.
— Não acha que vou embora agora, acha? O meu povo precisa
que essa rainha suma tanto quanto o seu. É a única maneira de
fazer com que nossos reinos voltem a se aliar. Um mal como esse
deve ser evitado. Deixe-me ajudá-la.
Branca não pôde deixar de sentir um calor de animação ao
pensar que ele ficaria para ajudá-la.
— Obrigada, Henri. Precisamos de toda ajuda que pudermos
obter. — Olhou para os outros. — Temos que procurar seus amigos
agora mesmo para conversar com todos nos vilarejos sobre se
aliarem à nossa causa.
— Sairemos ao raiar do dia — jurou Zangado. — Não há tempo a
perder.
— Amanhã de manhã — Branca concordou — começaremos a
jornada até o castelo.
CAPÍTULO VINTE

Ingrid

SUA VIAGEM NOTURNA FOI uma tremenda tolice; a maldita


garota não estava no chalé.
Depois de sair do calabouço, pegara uma passagem secreta para
sair do castelo de barco e fez o restante do caminho andando pela
floresta. Não estava sozinha. O corvo do calabouço a seguira,
conduzindo-a em certos trechos. Aquela sombra de corpo que agora
era obrigada a carregar dificultava a caminhada, mas por fim chegou
no destino ao raiar do sol. E o chalé estava deserto.
Imaginara que os homens teriam saído. (De fato, ela estava
contente por eles já estarem a caminho das minas. Apreciava o
empenho com que trabalhavam, ainda mais porque isso a
beneficiava.) Mas onde estava Branca? Por que não estava ali?
Ingrid rodeou o chalé, afastando pássaros grasnantes a tapas
enquanto tentava espiar pelas janelas. Por algum motivo, muitos
cervos se aproximaram para pastar ali por perto. Ela os afastou do
mesmo modo e repousou o corpo cansado, mas, quando a garota
não retornou depois de um tempo, começou a se agitar e forçou a
entrada.
O chalé estava brilhando de tão limpo: não havia nenhuma tigela
fora de lugar nem migalha sobre a longa mesa com as cadeirinhas.
A pia estava vazia, o chão imaculado, e até as sete caminhas
estavam arrumadas. Ingrid cambaleou escada abaixo, sentindo os
joelhos estalarem, e foi até a lareira. Brasas ainda ardiam, e ela
pressentiu que perdera quando um pensamento se formou: e se
aqueles anõezinhos de alguma maneira soubessem que ela estava
vindo e tivessem escondido Branca de Neve?
Ingrid depositou o cesto na mesa e gritou raivosa ante a ideia.
Sua voz soou rouca e cansada. Se fosse verdade, seu elaborado
disfarce de pedinte tinha sido à toa! A garota ainda estava por aí.
Ainda bate o coração dela, a pele ainda é bela. Sem ação, nosso
futuro sofrerá um rasgão.
O espelho? Arregalou os olhos. O espelho tinha despertado? De
imediato, toda a raiva que sentira em relação ao objeto
desapareceu. Ela precisava voltar para junto do seu companheiro
para reparar quaisquer fissuras que tivessem começado a aparecer
depois do último encontro deles. Como pôde ter sido tão tola e
deixá-lo? Agarrou o cesto e começou a árdua caminhada de volta
ao castelo, amaldiçoando as pernas envelhecidas.
Levou o dia inteiro para retornar ao calabouço e, no fim, nem
sabia se conseguiria dar mais um passo. Não podia esperar para
encontrar um modo de reabastecer o estoque de ingredientes para
reverter o maldito feitiço. Por fim, entrou se esgueirando pelo castelo
até seus aposentos, sabendo que não podia correr o risco de ser
vista naquele disfarce ridículo.
Caminhando até o espelho, ela passou a mão pelo trinco no vidro.
Agarrou o tônico de rejuvenescimento que guardava para isso
mesmo e molhou a superfície lisa. O líquido diminuiu a profundidade
da fratura, mas não a consertou por completo. Teria que descer ao
seu covil uma vez mais para criar uma mistura mais forte. Por
enquanto, aquilo resolveria a questão: o espelho foi ganhando vida,
o preto e o verde do vidro se misturaram antes de ele começar a
fumegar e a máscara aparecer em seu campo de visão. Se ele
notou sua aparência, não disse nada.
— Minha rainha.
— Espelho — exigiu. — Você me desviou do meu caminho? Disse
que Branca de Neve morreria, todavia ela vive e respira! E agora ela
se foi do chalé dos anões!
— Minha rainha, tivestes a chance de o destino mudar. Mas, em
vez disso, deixastes o bebê espichar. E agora tarde demais pode
estar.
— Ela era apenas um bebê! — defendeu-se Ingrid, sentindo-se
desesperada.
— Agora está crescida e a coroa pode por ela ser assumida —
disse-lhe o espelho. — Se uma ação tivesse sido tomada, esta sina
não teria sido encontrada.
— O que faço agora? — perguntou Ingrid. Por que o espelho tinha
que esfregar o fracasso na sua cara? — Preparei o mais forte dos
feitiços para que não me reconhecesse e fiz uma maçã envenenada
que acabará com ela com apenas uma pequena mordida! Mas, se
não puder encontrá-la para dar um jeito na situação, meu trabalho
terá sido em vão.
— Seu óbito seria lamentado e o povo se reuniria amontoado.
Mas, para ter um impacto mais acentuado, talvez o amor dela é que
deveria ser riscado.
A garota encontrara o amor naquele rapaz insípido? Deveria tê-lo
despachado assim que o viu. Ingrid emitiu um grito tão profundo que
não se surpreendeu em ver que a fissura no vidro voltara a crescer.
Parou de gritar de pronto, com o coração acelerado; as mãos, de
súbito, muito fracas. Em seu estado enfraquecido, se ela não
tomasse cuidado, acabaria caindo. Segurou-se na parede e espiou
o canto mais escuro do cômodo.
Katherine e seu mestre a observavam. Seu mestre parecia
raivoso, mas a irmã não parecia alarmada. De fato, parecia bem
convencida. O que Katherine sabia que ela desconhecia?
— A esperança dela como erva daninha vai se espalhando —
respondeu o espelho. — Assim como sua determinação. Saber que
seu pai vive lhe renovou o vigor de ir continuando.
Ingrid tentou manter o equilíbrio ante essa inesperada informação.
— Ela o encontrou? Como? — Seus olhos dispararam para
Katherine e seu mestre, ambos a observando curiosos. Ela desviou
o olhar rápido.
— O príncipe que dispensastes mostrou-lhe o trajeto. Armada
desse conhecimento, uma centelha nela se reacendeu. De imediato,
está sendo forjado um novo projeto.
Dispensara reverter o feitiço de pedinte. Se a garota tentava botar
as mãos no espelho, isso significava que estava vindo para o
castelo com aquele rapaz. Ela precisava ganhar tempo.
— Mostre-me a garota — pediu ao espelho.
A névoa do espelho clareou e lá estava Branca de Neve com o
seu belo príncipe, liderando o grupo de homenzinhos pela floresta.
Estavam se aproximando das minas. Ingrid sorriu. Uma ideia foi se
formando aos poucos. Era um tanto complicada, e, em seu estado,
ela não sabia se seria fácil de executar. Mas era de suma
importância que fizesse aquilo.
— Talvez haja uma maneira de enterrar a garota viva no final das
contas… junto com seu príncipe e os homenzinhos!
CAPÍTULO VINTE E UM

Branca de Neve

ELA ESTAVA VOLTANDO AO castelo, mas, dessa vez, não estava


sozinha. Pela primeira vez na vida, tinha amigos ao seu lado.
Amigos e talvez alguém que pudesse vir a ser algo mais… algum
dia. Mas havia assuntos mais importantes no momento.
— No que está pensando? — perguntou Henri enquanto
cavalgavam lado a lado pelo interior do reino.
Branca abaixou o capuz azul.
— Em coisas demais — admitiu. — Minha mente está tomada por
pensamentos.
Os anões negociaram no mercado ilegal um ou dois diamantes
para juntarem o suficiente para comprar cavalos que os levassem
até o vilarejo de Kurt e Fritz, mas tiveram que buscar os animais
numa fazenda na metade do caminho. O tempo passado fazendo
isso valera a pena. Acabaram acampando e conversando com os
fazendeiros — um homem chamado Moritz e sua esposa, Lina —
sobre sua missão. Lina chegou a chorar de alívio no momento em
que Branca lhe contou sua identidade.
— Precisamos de você mais do que nunca, Vossa Alteza — Lina
lhe disse, explicando como vinha sendo difícil lucrar quando a rainha
exigia cada vez mais dos suprimentos deles.
Em uma hora, Moritz retornara com diversos outros trabalhadores
da região e, juntos, Branca, Henri e os anões lhes contaram contra o
que lutavam. De pronto, os outros concordaram em juntar os
equipamentos e esperar pela ordem de invadirem o castelo. Branca
estava tão grata pela ajuda deles que poderia ter chorado.
Mas o atraso inesperado na fazenda significou que tinham perdido
um dia. A rainha pode estar nos vigiando, Branca pensou ao ver um
corvo sobrevoando. O tempo urgia, e eles precisavam chegar ao
vilarejo de Kurt e Fritz para conseguir mais reforços. A princípio, os
anões sugeriram que fossem por estradas e passagens menos
movimentadas até o vilarejo, para evitar chamar atenção para si.
Mas, como um grupo de nove provavelmente chamaria atenção de
todo modo, Zangado insistiu que viajassem o mais próximo possível
à rota que pegavam todos os dias para chegar às minas.
— Pelo menos, se tivermos que dar meia-volta, saberemos com
exatidão onde estamos — dissera aos outros, e todos concordaram.
Vinham cavalgando já há horas e, por fim, estavam se
aproximando das minas. Branca deveria ter se acostumado a tantas
viagens a essa altura, mas descobriu que achava cansativo. O fato
de estar tão ansiosa não ajudava muito. Ela tateou o bolso do peito,
onde o colar estava guardado em segurança, e ficou imaginando o
motivo de a mãe tê-la conduzido até o espelho em seu sonho.
Queria que matasse a irmã? Ou só a estava ajudando a encontrar
um modo de deter tia Ingrid? Sem a mãe para consultar, havia
tantos assuntos sobre os quais ela se sentia insegura. Mas, pelo
que se lembrava a respeito da mãe, ela sempre se preocupava em
fazer o que era certo para todas as pessoas. Haveria de querer que
Branca encontrasse um modo — o mais pacífico possível — de
retomar o que era seu. Disso a princesa tinha certeza. Claro, no que
se referia à Rainha Má, as coisas nunca saíam como planejado…
Branca olhou ao redor para o cenário campestre. Desde que
deixaram a fazenda de Moritz e Lina, passavam quilômetros e
quilômetros sem ver uma casa ou uma pessoa. Passaram pela
entrada da mina dos homens pelo que parecia ter sido há séculos,
mas Mestre explicou que existiam diversas cavernas pelas quais os
mineiros de diferentes vilarejos trabalhavam. Ela não fazia ideia de
que existiam tantas montanhas naquela parte do reino. Como tia
Ingrid pôde ter dito que as minas já não produziam mais nada?
— Você está bem? — perguntou Henri.
— Sim, mas há tanto com que se preocupar — respondeu
Branca. — Sinto-me responsável por todos vocês e pelo meu povo.
Não quero que nenhum mal lhes aconteça.
Henri sorriu com bondade.
— Tudo ficará bem. Sabíamos para o que tínhamos nos
prontificado ao concordar com a missão.
E quanto ao caçador que poupara sua vida? Branca não pôde
deixar de pensar nele. Ele dera a vida pela dela? Olho por olho, de
certa forma, levando-se em consideração o que seu pai fizera.
Branca estremeceu, depois inspirou fundo. Era hora de voltar a se
concentrar no presente. Aquela preocupação toda não serviria de
nada.
— Muito bem, vamos tratar de um assunto de cada vez. Hoje,
iremos ao vilarejo. Amanhã, reuniremos mais soldados. Antes que a
rainha tente nos impedir.
— Duvido que ela deixe o castelo para ir atrás de você —
comentou Henri. — O castelo é a fortaleza dela e onde o espelho
está. Com sorte, não teremos nada a temer até chegarmos aos
portões.
— Vejo fumaça adiante! — Mestre gritou, apontando para uma
fileira de árvores ao longe. — Devemos seguir por outro caminho?
— Não, vamos ficar no que estamos — Zangado disse aos outros.
— Tenho certeza de que é apenas alguém levantando
acampamento. Ninguém mora por estas partes. Ainda temos vários
quilômetros até chegarmos ao vilarejo de Kurt e Fritz. Estamos
apenas alcançando a entrada das minas.
Henri e Branca olharam um para o outro como se estivessem
pensando a mesma coisa. Havia algo de estranho naquela fumaça.
Ela não subia numa coluna só ou numa espiral, como um
redemoinho. Parecia estar se espalhando cada vez mais, ficando
mais escura a cada lufada. Logo se espalhou por toda a fileira de
árvores, até tomar conta do céu e o escurecer.
— Não creio que isso seja fumaça… Parecem nuvens carregadas
— disse Feliz. — Acho que uma tempestade se aproxima.
De repente, os cavalos em que estavam se agitaram. O do Mestre
empinou nas patas de trás, quase o derrubando. O vento aumentou,
carregando galhos de árvores numa rajada repentina. Ramos se
curvaram e vieram em seu rumo, como se estivessem tentando
suspender os cavaleiros. Um deles pareceu se esticar na direção de
Branca, como se tentasse agarrá-la. A menina teve um vislumbre do
seu período na Floresta Assombrada. Havia, sem dúvida, algo
errado.
— Temos que procurar abrigo agora mesmo! — gritou acima do
vento.
Mas já era tarde demais.
As nuvens se espalharam na direção deles como uma neblina
tóxica e logo os envolveu, tornando o céu preto como o breu. O uivo
do vento tornou quase impossível ouvir o que os outros diziam. Um
rimbombo estrondoso de trovão soou enquanto um raio atingiu a
terra a poucos metros do cavalo de Dengoso. Os animais
dispararam em diversas direções. O de Dunga disparou tão rápido
que ele quase foi lançado do cavalo, mas se agarrou aos estribos.
— Segure-se! — Henri gritou acima do vento.
Branca olhou desesperada de Dunga a Henri e desmontou,
sabendo que poderia fazer mais do chão. Os outros homens fizeram
o mesmo e ajudaram Dunga a se soltar do garanhão. Os cavalos
desapareceram nas trevas. O ar estava tão cheio de escombros que
era difícil ver a um palmo de distância. A chuva despencou muito
rápido e forte, como se fosse granizo. Eles precisavam se abrigar
em… onde?
— Para as minas! — Zangado gritou mais alto que um trovão. —
Por aqui!
Branca seguiu o som da voz do homenzinho, lutando para se
mover contra o vento. Procurou Henri, mas não conseguia enxergar
ninguém, por isso manteve os olhos na montanha rochosa diante
dela, na esperança de encontrar a entrada da caverna.
Um raio atingiu uma árvore próxima a ela, e o tronco grosso
começou a pender na sua direção. Alguém se lançou e a agarrou,
puxando-a para fora do caminho das chamas antes que fosse tarde
demais.
Ela ergueu o olhar.
— Henri! — disse, segurando-se a ele como se sua vida
dependesse disso.
— A entrada da caverna fica por ali — ele gritou. — Não solte da
minha mão!
— Nem você da minha! — Branca respondeu alto. Os dois
precisariam ficar juntos para encontrar o caminho na escuridão. Ela
conseguia ouvir gritos e seu nome sendo chamado no escuro, mas
o vento estava forte demais, e a princesa nem sequer era capaz de
virar a cabeça para olhar ao redor. Os dois se seguraram um ao
outro, avançando devagar na direção de uma sombra grande que
pairava adiante. Branca jogou seu manto por cima da cabeça deles,
tentando proteger seu rosto da chuva, que caía ainda mais forte,
atingindo suas costas e deixando vergões. Raios caíam um depois
do outro, cada vez mais próximos, enquanto ela e Henri se
esforçavam para avançar, na esperança de encontrar um lugar para
se abrigarem. De repente, Branca viu a entrada da caverna.
Zangado já estava lá dentro.
— Por aqui! — ela gritou, e ambos se esforçaram para dar um
passo após o outro até a entrada, despencando contra a parede da
caverna aliviados. Ela enxugou os olhos e olhou ao redor. Mestre,
Feliz e Dunga também estavam ali. Dois segundos depois,
Dengoso, Atchim e Soneca cambalearam para dentro.
— Graças aos céus todos vocês estão bem — disse.
Outro trovão rimbombou, e um galho caído foi lançado na direção
da entrada da caverna. Todos pularam para trás.
— Bruxaria! — declarou Zangado. — Há algo muito errado com
essa tempestade.
— A rainha! Ela está nos seguindo! — exclamou Dengoso.
Branca temia que estivessem certos.
— Vamos nos afastar da entrada. Aqui não é seguro.
Zangado apanhou uma lanterna na entrada da caverna e a
acendeu, tremendo.
— Sigam-me até lá embaixo — disse, e o grupo avançou mais
para o interior, cada homem apanhando uma lanterna para ajudá-los
a enxergar melhor. Ouviam os uivos da tempestade do lado de fora.
Era como se fosse despencar sobre eles a qualquer instante. —
Rápido, rápido! — pediu Zangado, parecendo sentir o mesmo.
Branca pegou uma lanterna, assim como Henri, e eles se
apressaram. O ar ficava mais frio conforme desciam, e Branca
sentiu o ritmo da respiração acelerar na escuridão. Zangado gritava
instruções. Havia tantas passagens que Branca receava que se
perdessem.
— Esperaremos que a tempestade passe aqui dentro — Zangado
disse ao chegarem a uma área mais ampla onde havia vagões
sobre trilhos, repletos de diamantes que brilhavam na escuridão.
Picaretas e pequenos engradados que serviam como mesas
estavam espalhados pela caverna, como se os homens tivessem
saído às pressas na noite anterior. Junto à parede rochosa, havia
uma fila de mesas para limpar os diamantes antes de serem
colocados nos vagões. O lugar era úmido e mofado. Água
condensada escorria pelas rochas, e estalactites se penduravam
como adagas. Branca poderia ter achado tudo isso bonito se não
estivesse tão preocupada com a tempestade do lado de fora. Aquilo
seria mesmo um feito da sua tia? Ainda conseguia ouvir o vento
uivante assobiando pela caverna, como se os estivesse seguindo
pelos túneis. Branca e Henri se sentaram em engradados próximos
a um túnel e colocaram suas lanternas no chão para iluminar o
ambiente.
Mestre sorriu para Branca para tranquilizá-la do outro lado.
— Ficaremos a salvo aqui embai…
Essa foi a última coisa que Branca o ouviu dizer antes que o chão
começasse a tremer e rochas caíssem acima deles. Branca e Henri
se moveram para dentro do túnel para evitar serem atingidos.
— Desmoronamento! — alguém exclamou.
— Para junto das paredes! — foi o grito abafado de Zangado.
Branca e Henri cobriram as cabeças e se agacharam junto à
parede, esperando que a avalanche de pedras parasse de cair, mas
os escombros continuaram surgindo, dificultando-lhes a respiração.
Então é assim que vou morrer, Branca pensou quando o mundo
ao seu redor escureceu. A Rainha Má por fim realizou seu desejo.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Ingrid

INGRID SE AFASTOU DO espelho, suas últimas forças


abandonando o corpo. Dera mais de sua alma ao espelho, e, em
seu estado alquebrado, isso foi mais exaustivo do que jamais fora. A
dor de cabeça foi instantânea, e suas mãos envelhecidas tremiam,
mas valera a pena. O espelho lhe dera o poder de que precisara
para invocar um grande temporal. Foi uma tempestade como
nenhuma outra, projetada para atacar a garota. E funcionara à
perfeição.
A oportunidade pareceu ser obra do destino. Com a chegada da
tempestade, Branca, seu príncipe miserável e aqueles homenzinhos
não tiveram escolha a não ser se protegerem numa caverna. Foi
quando Ingrid enviou raios repetitivos para a entrada, até que ela,
por fim, desmoronasse. A garota fora soterrada viva, no fim das
contas.
Ingrid soltou uma gargalhada estridente que desvaneceu quando
a dor de cabeça passou a ficar mais forte. Afundou-se no chão,
incapaz de encontrar forças para chegar aos seus aposentos.
— Espelho, espelho meu — sussurrou. — Quem é mais bela do
que eu?
Katherine começou a tomar forma no canto do quarto, mas, dessa
vez, não parecia estar se divertindo.
Deixe que o espírito dela venha, Ingrid pensou quando seus olhos
tremularam e ela os forçou a permanecerem abertos. Estava tão
cansada. Eu venci.
O espelho falou:
— Lábios vermelhos como a rosa, cabelos negros como o ébano,
pele branca como a neve. Branca de Neve ainda vive, e todos
saberão em breve.
— Não! — Ingrid disse num engasgo, mas a voz não parecia lhe
obedecer. Nem seus membros.
Enquanto Katherine assistia, Ingrid sucumbiu à dor e adormeceu
profundamente no chão frio.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Branca de Neve

ASSIM QUE OS ESCOMBROS por fim pararam de cair, Branca só


ouvia um silêncio sepulcral.
— Henri? — chamou nervosa, tossindo forte enquanto a poeira se
assentava ao seu redor. O ombro direito latejava, mas ela estava
inteira.
— Branca? — Henri também tossia. Ele cambaleou na direção
dela, e a princesa percebeu que ele tinha um corte na testa. O rapaz
caiu em seus braços, e os dois se ampararam.
Estamos vivos! Obrigada, mãe!, Branca pensou antes de ver a
parede de pedras diante dela.
Henri começou a tentar remover as pedras, mas a maioria era
pequena e não fazia diferença alguma. Então tentou uma tática
diferente, empurrando com força e grunhindo pelo peso de uma
rocha maior, antes de, por fim, despencar contra a parede.
Estavam presos.
— Zangado? — Branca, desesperada, procurava na escuridão,
tropeçando sobre pedras que tinham caído aos seus pés. —
Mestre? Soneca? Atchim? Dengoso? — Sua voz ficava cada vez
mais desesperada.
De súbito, uma luz iluminou a parede adiante, e Branca percebeu
que, por um milagre, Henri ainda estava com a sua lanterna. Ela
iluminava a pequena área da caverna em que se encontravam. De
outro modo, estariam cercados pela escuridão.
— Onde eles estão? — Branca começava a se sentir
claustrofóbica. — Dunga? Dunga, onde você está? — Mas Dunga,
claro, não falaria. Não conseguia, até onde ela sabia.
Os homens haviam sumido. Ela e Henri estavam presos num
túnel escuro. A entrada da caverna era do outro lado daquela
parede. Seu pai não fazia ideia de onde ela estava e jamais saberia
o motivo de não ter retornado. Inspirou trêmula, tentando não deixar
que a sensação esmagadora de fracasso a consumisse.
Henri a tomou nos braços de novo.
— Branca, está tudo bem.
Ela agarrou o ombro dele.
— Não conhecemos estes túneis. Temos que encontrar um meio
de reencontrá-los.
Os dois começaram a tatear ao redor da entrada do túnel
desmoronado em busca de algo que indicasse pedras ou
escombros soltos que pudessem ser retirados do caminho.
De repente, Henri teve outro acesso de tosse.
— Henri, por favor — Branca disse, estendendo o braço na
direção dele. — Sente-se. Continuarei tentando. Mas você tem que
descansar.
— Se não conseguirmos sair… pelo menos a minha vida não foi
vivida em vão — disse ele com suavidade.
A princesa ergueu o olhar para ele na luz fraca da lanterna.
— O que quer dizer com isso?
— Quando Kristopher morreu, senti certa obrigação em ocupar o
lugar que ele deixara na família e, mesmo assim, não importava o
que eu fizesse, não conseguia sair da sombra dele. — Sorriu com
tristeza. — Participar desta jornada e ajudá-la a mudar o seu reino
me deu um propósito. Se é aqui que vou morrer, quero que saiba
disso.
— Henri — disse ela, sentindo-se emocionada. De repente, notou
seus braços ao redor do pescoço de Henri e os braços dele
envolvendo sua cintura. Branca estava perto o bastante para ver a
fuligem nos cabelos e uma mancha na bochecha, e, mesmo assim,
ele nunca esteve tão belo.
Henri enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto dela e se
inclinou. Os lábios dele estavam a centímetros dos dela. Ela fechou
os olhos e esperou que se tocassem. Em vez disso, ouviu um som
metálico. Os dois saltaram para trás, surpresos.
O som ficou mais alto até que uma rocha começou a mexer e um
buraco apareceu, permitindo que luz do outro lado se infiltrasse.
Metade de um rosto ficou visível.
— Dunga! — exclamou Branca, esticando os dedos através do
buraquinho para tocá-lo.
De repente, ele desapareceu de vista e a carranca conhecida de
Zangado apareceu.
— Você está bem? E Henrich? — gritou.
— Estamos bem! — Branca exclamou aliviada. — Estão todos
bem do seu lado?
— Todos um pouco machucados, mas bem — respondeu. —
Tivemos sorte por Dunga ter trazido a picareta dele quando o céu
começou a cair. Foi a única que encontramos. A entrada da caverna
desmoronou. Vai levar um tempo até conseguirmos cavar uma
saída. Mas acho que você e Henrich conseguem sair por trás.
— Existe outra saída? — Henri se aproximou ao ouvir o que
Zangado dizia. — Este túnel tem uma saída?
— Sim! — respondeu Zangado. — Não acha que nós, mineiros,
desceríamos até aqui sem ter um plano reserva, acha? Apenas
sigam até chegarem ao lago. Vocês verão a luz que os conduzirá
até o outro lado da montanha.
— Mas e quanto a vocês? — perguntou Branca.
— Este túnel está bem bloqueado — explicou Zangado. —
Demoraríamos mais para cavar um caminho até vocês do que para
encontrar uma saída pela rota que entramos. Saiam vocês daqui, e
nos encontraremos de novo. Vão até o vilarejo de Fritz e Kurt. Não
fica longe do outro lado da montanha.
Branca esticou os dedos ao máximo para tocar na mão de
Zangado. Detestava a ideia de deixá-los para trás.
— Tem certeza?
— Sim, tenho! — garantiu Zangado, parecendo aborrecido. —
Vão, agora! Antes que a Rainha Má provoque o desmoronamento
de outro túnel. E certifique-se de que esse seu príncipe tome conta
de você.
— Tomarei — disse Henri. — Eu prometo. Até nosso reencontro,
amigos.
— Até daqui a pouco — Branca e Zangado repetiram e soltaram
as mãos.
Henri ergueu a lanterna e ofereceu a mão livre a Branca. Ela a
tomou e, juntos, mais uma vez prosseguiram para sair da escuridão.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Ingrid

AO DESPERTAR, POR FIM, Ingrid soltou um grito tão alto que


pensou que acordaria todo o castelo.
Que pena. Que ficassem acordados noite afora. Ela estava
acordada. Não dormiria, não descansaria, não pararia até que a
garota estivesse morta.
Apoiou-se nos braços cheios de veias saltadas e, devagar,
ergueu-se até ficar de pé. Katherine ainda estava lá, observando.
Sempre observando. Assim como o espelho. Ele se iluminou,
mostrando-lhe a imagem da garota andando com o príncipe à luz de
uma lanterna em meio à escuridão.
— Enquanto dormíeis, a mais bela e o príncipe encontraram
ajuda. Juntai vossas forças, ou vosso futuro permanecerá em
dúvida.
As palavras do espelho só fizeram Ingrid querer berrar ainda mais
alto. Dessa vez, o grito saiu na forma de uma tosse profunda, rouca.
Não conseguia acreditar nisso. Entregara o resto de sua alma ao
espelho, e a garota ainda vinha atrás dela? Como uma tempestade
monstruosa e um desabamento não bastaram para detê-la? Mas lá
estava a garota no espelho, andando até a luz no fim de um túnel e
escapando com o príncipe. Onde estavam os homenzinhos? Teriam
morrido? Ela não os via. Bem, melhor assim. Pelo menos sua
tempestade fizera algo de bom. Branca e o príncipe pareciam
preocupados.
— Conte-me o que estão dizendo! — Ingrid ordenou com voz
rouca. Mas, àquela altura, ela já sabia a resposta.
— Minha rainha, isso não posso executar — respondeu o
espelho. — Mas o propósito dela é claro como o rosto no espelho.
Não descansará até a vós chegar.
— Você fica dizendo isso, mas nunca como posso detê-la! —
Desgostosa, Ingrid derrubou diversos frascos de poções da mesa
mais próxima. Katherine se colocou diante dela, e seu mestre
apareceu também. Os dois assistiam-na andar de um lado a outro.
Ingrid olhou para o espelho através de Katherine. Precisava
controlar a raiva e pensar.
O espelho continuava fumegando. Seu rosto, em forma de
máscara, parecia solene.
— Vosso coração e vossa cabeça resistiram à minha assistência.
Só perante vossa decisão é que meus poderes têm certa
abrangência.
— Já chega! — berrou Ingrid. A garota não podia ter a sua coroa.
Ergueu os braços, preparando-se para destruir mais dos seus
pertences. Depois parou. — Chuva e vento podem não deter a
princesa, mas sei de algo que pode. — Sorriu com maldade,
pensando sobre o pouco que sabia da vidinha sem graça que a
garota levava. O que sabia, porém, podia bastar. Apressou-se para
fora do cômodo cavernoso e atravessou seu quarto. Abriu uma
fresta da porta e gritou para o guarda junto à soleira, escondendo o
rosto atrás do capuz.
— Guarda! Tenho um decreto real que deve ser expedido neste
instante.
— Sim, minha rainha — respondeu o guarda, parecendo
desnorteado. A voz dela estava diferente, mas ele não ousaria
questioná-la.
— Convoque a corte real e faça com que divulguem esta notícia
de pronto — ordenou. — A princesa não está desaparecida. Está
fugindo. É uma covarde, como o pai já foi.
Os olhos do guarda se arregalaram.
— Diga-lhes para expedirem um decreto de que a princesa é
traidora, e quem jurar lealdade a ela pagará com a vida. — Sorriu.
— E ofereça uma recompensa para quem a trouxer, com seus
companheiros, a mim.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Branca de Neve

QUANDO BRANCA E HENRI emergiram da caverna, a tempestade


passara e o ar rescendia a pinheiros. Os cavalos — se tivessem
ficado, o que ela duvidava — estavam do outro lado da montanha.
Teriam que fazer o caminho até o vilarejo de Kurt e Fritz a pé. Sem
provisões, a jornada lhes pareceu particularmente longa. Por fim, no
momento em que o sol começava a ser pôr atrás das montanhas,
avistaram fumaça. Dessa vez, contudo, não era do tipo apocalíptica.
Ela subia de uma chaminé de verdade.
— Conseguimos — disse Henri, parecendo aliviado ao apontar
para uma fileira de chalés na colina seguinte. — Tomara que os
amigos dos homens sejam hospitaleiros. Precisamos de água.
— Estou certa de que serão — assegurou Branca, abaixando
para apanhar um punhado de flores silvestres.
— O que está fazendo? — Henri perguntou, divertido.
— Vou levar um presente — explicou. — Não se deve aparecer
assim sem ao menos algum tipo de oferenda. Infelizmente, as
carnes secas que tínhamos preparado se perderam, mas flores são
sempre bem-vindas. — Ela juntou um punhado de flores roxas e as
ofereceu para que Henri cheirasse.
Ele inspirou e olhou para ela surpreendido.
— São adoráveis.
Fitaram-se um tanto desconcertados, e Branca já sentia a onda
de calor conhecida colorindo suas faces. Seu coração parecia bater
mais forte quanto se aproximava dele.
— Vocês aí! — um homem os chamou. Eles olharam em sua
direção e viram que conduzia um burro carregado de suprimentos
na colina. — Estão procurando por alguém?
— Sim — disse Branca, correndo até ele. — Estamos aqui para
ver Kurt e Fritz. Eles devem estar à nossa espera.
— Eu sou Kurt — anunciou o homem. Ele não tinha a estatura tão
diminuta quanto à dos anões, mas era pequeno. Também tinha
sardas espalhadas pelo nariz e cabelos bem ruivos. — Onde estão
Zangado, Mestre e os outros?
— Sou Branca de Neve — disse ela, apressando-se para lhe
oferecer as flores. — E, infelizmente, somos só nós.
— Você é a princesa? — Kurt ergueu uma sobrancelha, e ela
assentiu.
Não conseguia nem imaginar a aparência dos dois: Henri com o
corte na testa e ambos cobertos de poeira. Nenhum dos dois se
assemelhava à realeza.
— Por que os homens não estão com vocês? — perguntou Kurt.
— Eles disseram que vocês viajariam juntos.
Branca franziu o cenho. Como poderia explicar sem afugentá-lo?
— Eles não conseguiram vir, mas temos a benção deles para ter
vindo falar com vocês sozinhos.
Kurt pareceu considerar isso.
— Onde estão os seus cavalos?
Henri e Branca se entreolharam. Nenhum deles queria contar pelo
que tinham passado.
— Fugiram — explicou Henri. Um trovão soou ao longe,
assustando-os, e Henri e Branca trocaram mais um olhar. Seria
outra tempestade se aproximando? — Infelizmente, nosso tempo é
limitado. Seria possível conversarmos?
Kurt os encarou por um momento, depois concordou.
— Sigam-me.
Ele não era conversador, por isso Branca não insistiu. Em vez
disso, seguiram-no pelo resto do caminho até o vilarejo. Era bem
pequeno, com apenas uma fazenda ao longe e um aglomerado de
chalés que pareciam ter visto dias melhores. À medida que
andavam, Branca podia ver as pessoas espiando de janelas e
soleiras. Não sabia bem o que fazer, por isso só sorriu. Quando fez
isso, as pessoas pareciam recuar para as sombras, o que era
compreensível. Era uma técnica que ela mesma usara, ainda mais
quando se sentia constrangida. Mas agora a situação era diferente.
Tinha que ser a líder que o seu povo precisava que fosse. E era
uma líder em potencial deste vilarejo. Pelo menos podia ser, se eles
permitissem.
Kurt se virou para eles.
— Vou reunir os outros e nós os encontraremos no celeiro logo ali
adiante. — Apontou para a fazenda ao longe, e sua expressão se
endureceu. — É o único lugar grande o bastante para nos reunirmos
em segredo. Os guardas da Rainha Má incendiaram as outras duas
fazendas da região quando falhamos em atingir a produção
esperada para lhe vender.
— Lamento muito ouvir isso — disse Branca.
Kurt desviou o olhar.
— Fazemos o que podemos para evitá-la agora. — Ele apontou
de novo e ouviram mais um trovão. — É melhor irem antes que
sejam vistos. Ela tem olhos em toda parte, e hoje o tempo anda
muito esquisito, para dizer o mínimo.
— Ah, sim, nós sabemos — Branca falou sem pensar, e Kurt
esperou que ela continuasse. Ela não disse mais nada.
— Obrigado por sua hospitalidade. Esperaremos por vocês lá. —
Henri vestiu o capuz. Branca fez o mesmo.
O tempo permitiu que chegassem ao celeiro. Num dos cantos,
algumas poucas vacas ruminavam com tranquilidade, parecendo
menos preocupadas com outra tempestade do que as pessoas.
Diversos cavalos bateram os seus cascos, nervosos, dentro de suas
baias cheias de feno. Também havia um cercado onde galinhas
cacarejavam baixinho e, junto a ele, um jarro de água. Ela e Henri
foram até lá, apanhando duas canecas de lata de uma prateleira
próxima e beberam com avidez antes de se deixarem cair sobre
montes de feno. Trovões rimbombavam ao longe, e, depois de um
tempo, ouviram o som de uma garoa caindo sobre o telhado. O
tempo demorava a passar, e os olhos de Branca estavam pesados.
Ela se forçou a ficar acordada, mas o cansaço do dia pareceu levar
a melhor. Ao despertar pouco tempo depois, percebeu que apoiara a
cabeça no ombro de Henri. Ele abriu os olhos quando ela se
aprumou.
— Olá. — Ele sorriu
— Olá — Branca respondeu. — Nós adormecemos.
— É verdade. — Henri olhou ao redor. A chuva ainda caía e o
celeiro estava escuro. A noite tinha chegado. — E ainda estamos
sozinhos.
Branca franziu o cenho.
— Onde podem estar?
— Não sei. — Henri se levantou para ir até a porta.
Assim que fez isso, um grupo de pessoas carregando lanternas
entrou com Kurt. Havia mais ou menos uma dúzia de homens e
mulheres, assim como crianças, que se escondiam nas dobras da
saia das mães. Todos os olhos estavam voltados para Branca e
Henri.
Ela se levantou para cumprimentá-los.
— Olá! Muito obrigada por virem.
Kurt apontou.
— Esta é a princesa e este…?
— Henrich — Henri lhes disse. — O companheiro de viagem da
princesa.
— Pensamos que Zangado e seus homens fossem os
companheiros de viagem da princesa — comentou outro homem.
Ele também era baixo; tinha cabelos muito negros e uma barba
comprida. Branca suspeitava que aquele fosse Fritz. O brilho das
lanternas no celeiro escuro iluminava seu rosto. Ele parecia bravo.
Branca deu um passo à frente.
— Sim, é verdade. Infelizmente nos separamos durante a
tempestade e eles pediram que viéssemos sozinhos. Nós nos
reencontraremos perto do castelo.
Fritz não disse nada.
Nessa hora, uma mulher segurando um bebezinho se adiantou.
Ela carregava algumas cobertas.
— Tome, Vossa Alteza. São para vocês. Devem estar cansados
da viagem.
— Obrigada por sua gentileza — Branca disse a ela e aos outros.
— Estamos muito gratos por este celeiro e por todos vocês terem
concordado em nos encontrarem. Sei que Zangado e os outros não
estão conosco esta noite, mas é importante que eu fale com vocês a
respeito da rainha. — O ambiente estava silencioso, por isso ela
decidiu prosseguir. — Sei que os tempos têm sido difíceis. Não fazia
ideia de quanto até sair do castelo. Mas agora que aprendi tantas
coisas sobre como a rainha se comporta, sei que devo retomar o
reino. — Ainda assim não houve resposta. — No entanto, para fazer
isso, preciso de ajuda.
— Ajuda? — questionou Fritz.
— Sim — disse Branca, e Henri apertou sua mão de modo
encorajador. — Estou preparada para liderar meu povo. Era para a
rainha governar só até que eu chegasse à idade adulta, de todo
modo. Não creio que ela desista sem se opor, por isso acreditamos
que juntos somos mais fortes. Temos esperança de forçá-la a sair e
retomar o castelo.
Fritz deu um passo à frente.
— Espera que demos nossa vida para salvar a sua?
— Não, não é isso o que quero que aconteça… — Branca
começou a dizer.
— Devemos confiar na sua liderança quando nunca liderou na
vida? — perguntou Kurt. — E se você for igualzinha ao seu pai?
— Rezo para ser — Branca disse com determinação. — Ele foi
um líder excelente. — Eles começaram a rir, impedindo-a de
explicar a situação do pai.
A multidão se aproximou, e Branca percebeu que ela e Henri, na
verdade, estavam cercados. Um bebê começou a chorar, mas seu
choro mal era audível acima do som dos trovões.
— Pessoas de bem — interrompeu Henri. — Ela é a princesa. Por
favor, demonstrem um pouco de respeito.
— Respeito? — um homem perguntou. — Como nos demonstra?
Ela abandonou o reino. Não quer nos ajudar!
— Quero, sim! — protestou Branca.
O homem ergueu a faca que levava.
— Mentirosa! — Branca se assustou, e Henri a puxou para perto
de si. — Vocês aparecem aqui sem os anões, a pé, e no meio de
outra tempestade. Talvez sejam vocês quem estejam nos
amaldiçoando! Onde estão os outros homens? O que fizeram com
eles?
— Eles estão a salvo — disse Henri. — Nós garantimos.
— Então por que não estão aqui para jurar por vocês? — Fritz
questionou.
Kurt pegou um pergaminho que trazia às costas. Deixou-o se
desenrolar, e Branca arquejou de surpresa. Havia um retrato dela.
Acima estava escrito procurada.
— Existe um prêmio pela sua captura, princesa. Você abandonou
o seu povo, feriu nossos amigos e renegou a coroa. Irá comigo até a
rainha antes que ela imploda o reino inteiro tentando encontrá-la!
Estas tempestades não são mera coincidência. Estão acontecendo
porque você está aqui no nosso vilarejo!
— Deixem-me explicar — Branca disse à medida que eles se
aproximaram mais. Não havia lugar algum para onde ir. — É a
rainha que está os enganando.
— A rainha é a encarregada deste reino! — Fritz trovejou. — O
seu pai permitiu que isso acontecesse, e agora estamos sob o seu
jugo. Não sabe que ela pratica bruxaria? Não podemos poupar a
sua vida e esperar viver. Prendam-nos!
— Por favor! Esperem! — Branca gritou quando os aldeões mais
próximos seguraram seus braços.
Henri tentou se livrar da pegada deles.
— Soltem a princesa! — Seu adorado punhal caiu e aterrissou no
feno, de onde Fritz o pegou e ergueu.
— Eu sinto muito — desculpou-se a mulher que entregara as
cobertas a Branca antes, com os olhos brilhando de lágrimas. —
Não temos escolha. A rainha não tem misericórdia. Precisamos
entregá-la.
— E seremos bem recompensados por tê-la encontrado —
acrescentou Kurt.
Branca pressentiu que aquilo não terminaria bem. Quando raios
iluminaram o celeiro através das fendas nas paredes e um trovão
rimbombou, ela olhou ao redor à procura de uma rota de fuga.
Alguns dos homens berravam entre si, enquanto outros, junto a
diversas das mulheres, tentavam fazer com que eles raciocinassem,
mas ninguém cedia. Branca estava tonta. Mãe, me ajude, rezou
enquanto o bebê no colo da mãe passou a chorar ainda mais.
Nessa hora, Branca teve um instante de lucidez, em meio a tantos
gritos e palavras de ódio. Essas pessoas estão com medo. Não
querem me fazer mal. Sentem que não têm alternativa. Aquelas
pessoas não eram más. Eram o seu povo. Branca se lembrou da
pedinte que encontrara com a mãe há tantos anos. Sempre se
lembre do seu passado, Branca, e permita que ele a ajude a tomar
decisões quanto ao seu futuro, sua mãe lhe dissera.
— Por favor! — Branca insistiu. — Soltem Henri, e eu deixarei que
me levem à rainha. Não quero que ninguém se machuque.
— Branca, não — Henri começou a dizer, mas ela o silenciou e
falou direto com Kurt, cujo rosto pálido se iluminou pelo brilho dos
relâmpagos do lado de fora.
— Só o que peço é que me ouçam por mais alguns instantes —
implorou.
— Não! Você só tecerá mais mentiras! — declarou Kurt.
— Deixe-a falar! — alguém exclamou, e todos se viraram.
Uma pessoa deu um passo à frente e removeu o pesado capuz,
revelando um rosto bronzeado, cabelos castanhos longos e
cacheados e grandes olhos da mesma cor.
Surpresa, Branca arquejou.
— Anne?
A garota sorriu.
— Sabe o meu nome?
— Claro que sei. Você é a filha da costureira real.
— Não dê ouvidos às mentiras dela, Anne — Fritz começou a
dizer, mas Anne o cortou.
— Passei minha vida inteira vendo a princesa de longe — disse
aos demais — e posso lhes garantir que ela não é malvada. Ela é
muito solitária. A rainha não permite que ninguém a veja. Foi
abandonada, assim como o restante de nós. — Anne se virou para
ela. — Se ela diz que quer ajudar o reino, então, eu, de minha parte,
acredito nela.
Os olhos de Branca reluziram de lágrimas. Por tanto tempo
observara aquela garota, e, pelo visto, Anne estivera fazendo o
mesmo com ela.
— Obrigada — sussurrou.
Anne assentiu.
— Por certo, homens, vocês podem dispensar um pouco do seu
tempo para a princesa antes de devolvê-la à rainha para receber
sua recompensa, não?
Essas palavras envergonharam Kurt, Fritz e os outros, e eles
abaixaram as cabeças. As mulheres pareciam desgostosas com os
homens, isso era perceptível. Sustentada pela fé de Anne, Branca
sentiu um vigor renovado para se explicar.
— É verdade que estou fugindo, mas não por tê-los abandonado
— Branca lhes disse. — A rainha tentou me matar, pois sou uma
ameaça ao trono dela. — O ambiente estava silencioso, a não ser
pelo som da chuva caindo do lado de fora. — Fugi e venho
planejando minha volta ao castelo com a ajuda de Zangado e dos
seus homens, e também de Henri, aqui presente. — Ela sorriu para
ele. — Em vez de fugir, estou escolhendo lutar pela liberdade de
vocês e pela minha. Por tempo demais vivemos sob o domínio
sufocante da Rainha Ingrid, que só se preocupa consigo e nem um
pouco com seu povo.
— Isso é verdade — ouviu um dos homens resmungar.
— Ela não se preocupa que vocês trabalhem até cair num clima
como este para produzir alimento — prosseguiu Branca. — Cobra
impostos excessivos e dá pouco em troca. Meus pais me ensinaram
que o castelo deve ser um lugar partilhado com aqueles que
necessitam de abrigo. Se as pessoas tinham um assunto pendente,
eles gostavam de ouvi-las. Se precisassem de um pouco de alegria,
sempre havia uma festa para celebrar a riqueza do nosso reino.
— Eu me lembro disso — disse a mulher com o bebê, sacudindo
a criança para tentar acalmá-la. Ainda trovejava, e a voz dela era
tão suave que Branca aguçou os ouvidos. — A Rainha Katherine
sempre acolhia os súditos. Ela tinha uma palavra gentil para cada
um. Lembro-me de ter me dado uma flor quando eu era criança,
certa vez. Ela era muito bondosa.
— Sim, ela era. — O rosto de Branca se suavizou. — Mas a nova
rainha não é. Ela roubou as riquezas do nosso reino e as esbanjou
ao mesmo tempo em que destruía o nosso relacionamento com os
reinos vizinhos. Para que o reino sobreviva, o reinado dela deve
acabar.
— E como vai fazer isso? — perguntou Kurt, não parecendo estar
convencido da sua sinceridade. — Você não passa de uma menina.
— Posso ser apenas uma menina, mas tenho amigos agora, e
isso faz toda a diferença. Zangado e os outros estão a caminho do
castelo neste exato instante — disse Branca. — Planejamos
surpreender os guardas de modo que eu consiga entrar no castelo e
enfrentar a rainha. Podemos estar em menor número, mas nosso
coração e nossas palavras são verdadeiros. Faremos o que for
preciso para retornar este reino a mãos capazes.
Fritz pareceu pensativo e, em seguida, relanceou para os demais.
— Isso ainda não tem importância — declarou. — Ela agora
ofereceu um prêmio pela sua cabeça. Você não irá longe.
Branca sentiu um baque. Não podia negar que, com o decreto da
rainha, a tarefa deles seria ainda mais difícil do que tinham
antecipado. Todos agora estariam à sua procura. Como entraria na
vila sem ser notada?
— Ninguém pode entrar no castelo — disse outro. — Ninguém.
— Vocês esquecem que aquele castelo já foi o meu lar… um dia
— falou Branca. — Conheço seus segredos. Posso retornar sem
que me peguem… se me derem essa chance. Se lutarem ao meu
lado, eu não esquecerei. Prometo que, se o fizerem, não os
desapontarei.
Kurt relanceou para a esposa.
— Deixe-a tentar, Kurt — disse a mulher. — Ela é o nosso futuro.
Nosso futuro. Branca sorriu. A mãe teria gostado daquela mulher.
— Ajudem-nos a recuperar o que é nosso. Quem está conosco?
A princípio todos ficaram em silêncio.
— Eu estou — respondeu Anne, sorrindo.
Branca ficou extasiada.
— Mesmo apenas uma pessoa a mais já é alguma ajuda.
Obrigada.
— Não podemos permitir que esta rainha continue a arruinar a
nossa vida — Anne disse aos outros.
— A sua mãe não haveria de querer que você se arriscasse, Anne
— comentou um homem.
— É pelo nosso sustento — Anne lhe disse. — Vale a pena. Sei
que minha mãe concordaria.
Fritz se adiantou, segurando o punhal de Henri e usando-o para
cortar as amarras que o prendiam. Em seguida, Henri logo soltou
Branca.
— Eu ajudarei — disse Fritz, abaixando-se sobre um joelho.
— Eu também — concordou Kurt, e ele também se curvou diante
da princesa. Muitos dos outros homens fizeram o mesmo.
Branca riu em meio às lágrimas.
— Por favor, levantem-se! Temos muito trabalho a fazer! Não
tenho como agradecer o bastante pela fé que depositam em mim.
As pessoas no celeiro soltaram um grito de alegria, que elevou
ainda mais o moral de Branca.
— Lutaremos por você, princesa — disse Kurt. — Não nos
desaponte.
— Não desapontarei — declarou Branca.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Ingrid

ELA OBSERVOU O ESPELHO obcecada por várias horas para ter


notícias da captura da garota, mas nada acontecia.
— Mostre-me a garota de novo! — gritou para o espelho com sua
nova voz rouca, que começava a odiar. Mas não faria nada para
mudá-la até que estivesse com a garota. Não se distrairia com isso.
— No vilarejo ela dorme, minha rainha; mas em breve irá
despertar. Seu objetivo a guia tal qual um farol: a vós e ao castelo
de surpresa atacar. — O espelho lhe mostrou uma imagem de
Branca de Neve e do príncipe dormindo num leito feito de palha,
como animais. Como ninguém a capturara ainda?
— Ela não irá longe — disse Ingrid uma vez mais. — O povo me
entregará a sua cabeça numa bandeja!
— A princesa é amada por todos que encontra. Para levar a
melhor, outro método deveis procurar. — A neblina fumacenta do
espelho se dissipou e uma imagem dos anões apareceu.
Ingrid arquejou.
— Estão vivos! — Os homenzinhos marchavam enfileirados numa
colina. Estavam sujos e cansados, mas todos ali… e parecia que
havia diversos outros homens com eles, carregando picaretas e
outras armas. Não era um número grande, mas maior, com certeza.
— O grupo deles não é uma ameaça para mim — declarou Ingrid.
Porém, em seu íntimo, estava preocupada.
— Ambos sabemos que isso é um engodo — respondeu o
espelho. — Não tenteis vestir uma máscara. Vos trai o vosso
incômodo.
Ingrid não respondeu. Estava perdida em pensamentos. Como foi
que os homens sobreviveram à sua tempestade? Como os outros
não estavam interessados na sua recompensa? Dinheiro e poder
costumavam mudar tudo.
— O amor é a chave para a desgraçar — aconselhou o espelho.
— Fazei mal aos seus amados. Esse é o plano que vale a pena
fabricar.
A fumaça se dissipou, mostrando Branca uma vez mais. Os
homenzinhos podiam não estar mais ao lado dela, mas o príncipe
ainda estava. Sua presença estava começando a se tornar um
incômodo. O espelho estava certo.
De fato, algo teria que ser feito a respeito desse rapaz.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Branca de Neve

SEUS NOVOS AMIGOS NÃO tinham cavalos para emprestar, mas


tinham frutas, pão e água, e embalaram um pouco para a viagem de
Branca e Henri. Kurt e Fritz juraram que agrupariam mais homens
para se encontrar com os anões no castelo, ambos planejando
pararem com seus grupos em outros vilarejos de mineiros que
pensavam da mesma maneira ao longo do caminho. Branca estava
grata pela mudança de opinião deles e tinha esperanças de que um
grupo maior de apoiadores faria a diferença. Estavam em muita
desvantagem em comparação ao exército da rainha, que ainda
representava uma dificuldade a ser superada assim que a luta
começasse.
Anne se aproximou enquanto Branca e Henri se preparavam para
sair.
— Vou com vocês — disse a Branca.
Branca piscou, surpresa.
— E quanto à sua mãe e ao seu trabalho no castelo? A rainha
não ficará furiosa se você não aparecer?
— Eu disse à minha mãe que estou doente e que não poderei ir
com ela — explicou Anne. — Ela me dará cobertura, Vossa Alteza.
Branca corou com o uso do título.
— Por favor, chame-me de Branca.
— Branca — Anne repetiu com timidez. — Temos que garantir
que chegue ao castelo a salvo, com esse prêmio pela sua captura.
Será difícil se mover pelo reino sem ser notada.
— Se o seu vilarejo já viu o pergaminho que me anuncia como
PROCURADA, então suspeito que haja dúzias de mais como esse
espalhados pelo reino — Branca ponderou. — Não conseguirei ir a
parte alguma.
Henri mordeu o lábio ao encarar o céu claro.
— E a rainha já está acompanhando todos os nossos
movimentos. Uma nova tempestade pode aparecer a qualquer
instante. Como passaremos por ela?
— Acho que tenho uma ideia — sugeriu Anne — para permitir que
continue a espalhar a sua mensagem e prossiga até o castelo sem
ser vista. E seu príncipe também.
Branca corou. Henri não era exatamente o príncipe dela, era?
— Como?
Os olhos castanhos de Anne pareciam mostrar divertimento.
— Temos que tornar vocês dois invisíveis… e eu, por acaso,
conheço a pessoa certa para fazer isso: a Feiticeira Leonetta. As
pessoas do vilarejo às vezes a procuram.
— Uma feiticeira — Branca disse, surpresa. — Meu pai também
mencionou uma. — Branca logo contou-lhe a verdade a respeito
dele.
— Isso explica tanta coisa — falou Anne. — E, se for a mesma
feiticeira, então ela haverá de querer ajudá-la como ajudou seu pai.
Ela mora um pouco longe do caminho para o castelo, mas creio que
vai valer a pena ir até lá.
— Vamos visitar essa Feiticeira Leonetta, então — concordou
Branca.
Anne ofereceu-lhe um saco.
— Eu lhes trouxe roupas novas também. Alguns dos homens
emprestaram peças para Henri e, Branca, eu fiz as suas — Anne
contou. — De trajes descartados pela rainha. Minha mãe costuma
me obrigar a abandonar as roupas que ela não quer, mas eu não
gosto de ver as minhas criações serem desperdiçadas. — Os olhos
de Anne cintilaram.
Branca pegou um adorável vestido azul com um cinto dourado.
Havia até uma capa de viagem marrom-clara que fazia par.
— Anne, você é muito talentosa. Mas eu já sabia disso quando vi
o vestido de veludo verde que você fez, aquele com a capa
vermelha.
Os olhos de Anne se arregalaram.
— Como você o viu? A rainha o odiou!
Branca sorriu.
— Eu ouvi você conversando com a sua mãe no dia em que a
rainha lhe disse para se livrar dele. Ele era lindo demais para ser
jogado no lixo. Usei o tecido para cortinas.
— Eu achei mesmo que o tinha visto de passagem! Mas você
sempre fechava a porta tão rápido.
Branca corou.
— Minha tia se irritava quando eu conversava com outras
pessoas, por isso eu me isolava. Mas sempre achei que gostaria de
conversar com você.
— Sempre pensei o mesmo a seu respeito — disse Anne, e as
duas sorriram.
De roupas uma vez trocadas, Branca, Anne e Henri seguiram seu
caminho. Branca descobriu muitas coisas a respeito de Anne em
pouco tempo. Seu pai morrera quando ela ainda era bebê, e ela era
próxima da mãe. Anne não estava familiarizada com os pios dos
diferentes pássaros, como Branca e Henri, mas a princesa lhe
ensinou alguns. Antes que se dessem conta, Anne disse que
estavam próximos do destino deles.
— Ouço rumores sobre a feiticeira há anos, mas nunca tive
coragem de procurá-la — Anne explicou. — Quando vocês
apareceram, pedi a uma pessoa do vilarejo que já esteve aqui antes
que me explicasse o caminho. Acho que é aqui.
Pararam diante de um chalezinho localizado na encosta de uma
pequena colina. Coberto por musgo, com um telhado no qual
aparentemente crescia grama, parecia se misturar à montanha,
disfarçando sua presença. Anne pegou um pequeno pergaminho do
bolso e o consultou.
— Sequoias formando um círculo — disse. — Um bosque de
salgueiros no topo de uma colina… Sim, é aqui mesmo. Venham!
Anne se aproximou da porta e bateu três vezes seguidas.
A porta se abriu segundos depois. A mulher baixa tinha cabelos
compridos brancos e sua pele era tão enrugada que parecia falsa.
Os olhos azul-acinzentados estavam tão enevoados que Branca
chegou a se perguntar se ela seria cega.
— O que quer, princesa? — ela perguntou, revelando dentes
amarelados e apodrecidos.
Os olhos de Branca se arregalaram. Anne se apoiou sobre um
joelho e gesticulou para que os outros fizessem o mesmo.
— Feiticeira Leonetta, a princesa, seu príncipe e eu buscamos
sua sabedoria.
— Hum — Leonetta resmungou e tentou fechar a porta. — Vocês
não chegarão ao castelo assim, isso é certo.
— Espere! — exclamou Anne. — Sabemos disso. E é por isso
que eles precisam da sua ajuda.
— Não me envolvo com a política deste mundo — declarou
Leonetta, observando Branca com interesse. — E essa aí já deveria
estar morta como a mãe dela.
Branca estremeceu.
— Quase fui, mas escapei. Por favor, ajude-nos a encontrar uma
maneira de permanecermos invisíveis. Disseram-nos que é capaz
de fazer esse tipo de coisa acontecer.
— Sou, mas será difícil — disse a mulher. — Existe um prêmio
por sua cabeça. De ambos — falou, gesticulando na direção de
Branca e Henri. — E um pode não ser tão bem-sucedido quanto o
outro, no fim.
— Por favor — Branca insistiu, tirando o colar de pedras azuis de
dentro do bolso. — Acredito que um dia pode ter ajudado meu pai, o
Rei Georg.
A mulher ergueu uma sobrancelha negra em sinal de surpresa.
— É o colar que ele mantinha junto ao coração! Se o rei abriu
mão dele, então você de fato precisa da minha ajuda. Foi esse colar
que o protegeu por tantos anos. Entrem. — Voltou a olhar para o
céu. — Antes que ela veja. Rápido!
A feiticeira os apressou a entrarem na casinha abarrotada. Tinha
um único cômodo. Ervas e raízes, propositais ou por obra da
natureza, penduravam-se do teto, e um caldeirão borbulhava no
meio do lugar. Havia uma mesa larga com panelas e recipientes
contendo vermes e criaturas variadas, vivas e mortas.
— Conheci o rei enquanto viajava pelo reino para o qual ele foi
banido — contou Leonetta, andando até a mesa e examinando um
pote cheio de vermes. — Nos últimos tempos, a vida dele tem sido
tomada por tristezas, porém ele nunca perdeu a fé. — Olhou para
Branca. — Ele sabia que você seria uma excelente líder, caso
tivesse a oportunidade de reinar, e me implorou para vigiá-la e
protegê-la de longe. Tentei o máximo que pude, mas a rainha
dificulta as coisas. A magia das trevas dela é muito poderosa, e
você foi mantida prisioneira por tempo demais. O rei está certo em
depositar a confiança dele em você?
— Sim — prometeu Branca. — Não desapontarei o meu reino.
Leonetta a avaliou por um momento.
— Acredito em você. — A feiticeira começou a despejar
ingredientes numa panela. O líquido se tornou azul quando
acrescentou água. — Assim como acreditei nele. Por que acha que
enfeiticei esse colar para encobrir os movimentos dele das vistas da
rainha? Criei um feitiço que o ajudaria a permanecer invisível dentro
de casa. O rei merece um pouco de privacidade até, por fim, ser
libertado. — Apontou para Branca. — É você quem pode fazer isso.
— Eu sei. Não fracassarei. — Branca fez uma pausa. — Tirarei a
magia dela e a usarei para forçá-la a desistir do trono. Assim, levarei
meu pai de volta para casa.
Leonetta coçou uma verruga do queixo.
— E se for bem-sucedida e passar a usar a coroa, me ajudará se
eu pedir? Já que estou disposta a ajudá-la?
Branca não sabia bem o que pensar desse pedido. O que
Leonetta lhe pediria? Era uma decisão difícil, mas seus instintos lhe
diziam que podia confiar naquela mulher.
— Sim.
Leonetta mostrou o sorriso amarelo.
— Sei que vai, minha futura rainha. Vamos fazer com que você e
seu príncipe cheguem ao castelo sem serem vistos. — Picou
diversas ervas e as jogou na panela. Isso provocou uma pequena
explosão, mas ela não pareceu preocupada.
— Feiticeira Leonetta, quanto tempo vai levar para esse feitiço
ficar pronto? — Anne perguntou. — Não dispomos de muito tempo,
e suspeito que um feitiço como esse seja bem complicado.
— E é! — Leonetta concordou. — Motivo pelo qual não preciso de
interrupções. — Apontou um dedo para Anne. — Pode chegar o dia
em que você também precisará de mim, mas esse dia não é hoje.
Espere do lado de fora. Preciso me concentrar.
Anne olhou para Branca, e ela assentiu. Em seguida, Anne foi até
a porta.
— Devo avisá-los, vocês só permanecerão invisíveis até pisarem
nos terrenos do castelo. Uma vez lá dentro, estarão por conta
própria. — Leonetta voltou a falar depois que a porta se fechou, com
o rosto sério. — A rainha controla a magia dentro daquelas paredes.
Sugiro que confiem apenas um no outro e, mesmo assim, não se
deixem enganar pelas aparências.
Branca não entendia bem o que ela queria dizer com isso, mas
assentiu de todo modo.
— Como pretende nos tornar invisíveis? — Isso parecia ser a
coisa mais impossível no mundo.
Leonetta sorriu ao acrescentar quatro tenebriões na panela. Henri
começou a sentir ânsia.
— Não literalmente invisíveis, minha cara princesa. Em vez disso,
eu os encobrirei das vistas dela. Ela não será capaz de localizá-los,
pois sua aparência estará muito diferente para quaisquer pessoas
que encontrarem, inclusive para mim. — Com uma concha,
despejou o conteúdo borbulhante da panela em duas canecas e
entregou-as a Henri e Branca. — Bebam!
Henri olhou para sua caneca de caldo borbulhante com larvas de
besouro e voltou a sentir ânsia.
— Eu bebo primeiro.
— Não, eu faço isso — anunciou Branca. O rapaz estava fazendo
aquilo por ela, portanto ela deveria ser a primeira a se arriscar. Um
passo de cada vez. Com esse pensamento, Branca bebeu o
preparo. Tinha um sabor forte, parecido com gengibre, mas não era
tão amargo quanto imaginara.
Olhou para Henri. Ele inspirou fundo e bebeu de uma só vez. Em
seguida, fitaram-se. A aparência deles não tinha mudado.
— Não funcionou — disse Branca.
Leonetta soltou um som de reprovação.
— Ah, os descrentes! Olhem-se com isto! — Ela vasculhou uma
caixa no chão e tirou um espelhinho empoeirado de dentro dela.
Limpou o vidro no avental e o entregou a Branca. Henri se pôs atrás
dela e os dois fitaram seus reflexos. Ou o que deveriam ser o reflexo
deles.
Os olhos de Branca agora eram verdes em vez de castanhos.
Seus cabelos eram loiros e compridos, e estavam presos em duas
tranças no alto da cabeça. O corpo era mais largo que o seu e mais
baixo também, enquanto Henri parecia ter crescido uns cinco
centímetros e tinha cabelos negros em vez do costumeiro castanho.
Os olhos eram castanho-escuros, e os cílios compridos piscavam
com ansiedade enquanto ele fitava o rapaz do espelho.
— Isto é… algo difícil com que se acostumar — falou, tocando
nos cabelos em sua cabeça.
— Aproveitem! — disse Leonetta. — Amanhã enfrentarão as
consequências advindas de desafiarem a rainha. Precisarão de toda
sagacidade e fibra, portanto hoje deveriam continuar permitindo que
seu relacionamento floresça. Precisarão tirar forças dele.
Branca não entendeu o que Leonetta queria dizer com aquilo. Era
como se algo estivesse para dar muito errado, e, se era esse o
caso…
— Se pode ver o que vai acontecer, saber disso não nos ajudaria?
Leonetta se ocupou limpando o caldeirão.
— Ora, não prevejo o futuro! O futuro muda dependendo de quem
tenta mudá-lo. — Apontou para ambos. — Lembrem-se dos seus
sentimentos um pelo outro. — Branca e Henri se entreolharam,
depois desviaram o olhar. O rosto de Branca estava bem quente. —
O coração de vocês é mais forte do que percebem — explicou
Leonetta.
E, com isso, a feiticeira os empurrou para fora sem cerimônia
alguma. Em questão de segundos, trepadeiras cresceram diante da
porta, obstruindo-a.
Anne piscou para eles, maravilhada.
— Branca? Henrich? São vocês mesmos?
Branca segurou a mão de Anne para que ela não se assustasse
tanto.
— Sim! Somos, sim! — Começaram a gargalhar. Era quase
inacreditável.
— Estão disfarçados mesmo! — disse Anne. — Há um pequeno
vilarejo bem próximo ao castelo onde podemos celebrar. Tenho
esperanças de que os outros comecem a chegar à região amanhã,
assim poderemos decidir como invadir o castelo.
O calor do sol no rosto de Branca lhe fazia muito bem depois de
tanta chuva.
— Venham, vocês dois — Anne os chamou para segui-la pelo
caminho que os conduziria ao seu destino. Um gaio-azul os
sobrevoou e foi mostrando o caminho. Branca e Henri contaram a
Anne como tinha sido o resto de sua visita à feiticeira, incluindo o
fato de que o feitiço não continuaria depois que chegassem ao
castelo — embora ambos evitassem mencionar a observação da
mulher quanto ao sentimento crescente entre eles.
Estava começando a escurecer quando chegaram a uma taberna,
onde o aviso na porta sobre a captura de Branca tinha sido rasgado.
Branca ficou se perguntando se aquilo significava que as pessoas
ali dentro seriam amigas, e não inimigas. De todo modo, ela não se
revelaria. Anne decidira que seria mais seguro se fosse ela quem
iniciasse as conversas para avaliar se algumas pessoas poderiam
ser adicionadas ao grupo deles, enquanto Henri pagava por dois
quartos para aquela noite, dando um a Branca e Anne e ficando
com um para si. Seria estranho estar tão perto do castelo e deitar a
cabeça num travesseiro que não fosse o seu. A taberna era
barulhenta.
— Já conheci dois homens que estão aqui para ajudar a princesa
— disse Anne com um olhar firme quando voltou para junto de
Branca. — Disseram que o número de pessoas chegando está
aumentando, e eles estão acampando no bosque. Contaram que um
grupo de homenzinhos está no comando do ataque, mas que estão
esperando notícias da princesa para invadir o castelo. — Ela ergueu
a sobrancelha direita.
Os anões estavam a salvo. Graças aos céus.
— Deveríamos avisá-los que a princesa está bem e pronta para
retomar o castelo ao meio-dia — disse Branca. Meio-dia era a hora
em que os guardas costumavam fazer a refeição principal, se
tinham o que comer. Talvez isso desse um pouco de vantagem aos
seus amigos.
— Posso avisar aos demais que se preparem, então, mas ainda
existe a questão de como fazê-la entrar no castelo sem ser vista —
disse Anne.
— Talvez você possa nos levar em turnos. Eu poderia me
esgueirar primeiro para estar lá e criar alguma distração, se for
necessário, assim que Branca entrar — sugeriu Henri.
— É perigoso demais — protestou Branca. — Você já fez tanto.
Ele segurou sua mão.
— E ficarei feliz em fazer mais. Acredito em você. Por favor,
acredite em mim e me deixe fazer isto. — Ele a fitou nos olhos.
— Eu também acredito em você — disse a princesa, com
suavidade. Branca não queria soltar a mão de Henri. — Mas você
precisa tomar cuidado. Encontre um esconderijo até ser
absolutamente necessário intervir.
— Ficarei bem — assegurou-lhe ele.
— A cozinha — Branca disse de pronto, pensando na senhora
Kindred. — Diga a ela que é o novo padeiro. A rainha demitiu o
antigo. Você ficará bem lá.
— Está bem. Hoje à noite, irei encontrar os outros e comunicar
nosso plano — disse Anne. — Voltarei e levarei Henri primeiro, bem
cedinho, para que possamos entrar sem sermos vistos. Depois, saio
sorrateiramente e volto para buscá-la.
— Muito bem — concordou Branca. Muito dependia de Anne, mas
tinha fé de que ela daria conta.
Anne cobriu a cabeça com o capuz.
— Eu a encontrarei mais tarde no quarto, depois que tiver
encontrado os homens. Tente se distrair enquanto eu estiver fora.
Branca a abraçou.
— Tome cuidado, minha nova amiga.
Henri conduziu Branca até uma mesa e comida foi servida antes
mesmo de se darem conta, e bebida também. A taberna ficava mais
barulhenta à medida que mais pessoas entravam — viajantes,
moradores locais e até pedintes. Alguns eram mandados embora,
outros não. Henri ergueu seu copo.
— À nossa invasão ao castelo amanhã — brindou.
Ela ergueu seu copo e bateu no dele.
— Ao amanhã e a todos os dias que virão depois dele.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Ingrid

QUEM ERA ESSE RAPAZ? Um príncipe de um reino vizinho. Isso


ela sabia, mas como lamentava agora ter negado seu pedido de
recebê-lo no castelo quando ali viera. Preocupara-se que ele fosse
pedir a mão de Branca em casamento, por isso o mandara embora,
sem saber que a reencontraria. Como isso foi possível?
Como em tantas outras coisas que antecipara, estivera errada
nisso.
O caçador fracassara.
Branca encontrara um refúgio.
Agora, a princesa retornava ao castelo atrás da sua coroa.
O que o rapaz conseguia ao acompanhá-la dessa maneira?
Estivera observando-os desde que saíram ilesos da caverna e
seguiram até o vilarejo nos arredores. Tivera certeza de que alguém
ali que tivesse visto sua generosa recompensa pela captura da
princesa a teria entregado, mas não.
Em vez disso, Branca seguira pela estrada de novo, aproximando-
se do castelo a cada passo. E, dessa vez, não tinha apenas o rapaz
consigo. Havia uma moça também. Difícil saber quem era com o
capuz escondendo-lhe a cabeça, mas Ingrid acabaria descobrindo.
Não dormiria, não comeria, não respiraria até descobrir o que fazer
com Branca e seu príncipe.
— Mostre-me Branca de Neve — pediu pelo que, com certeza,
devia ser a décima vez naquele dia.
O espelho começou a fumegar e ela viu o reflexo rodopiar, ficando
roxo e depois verde-claro. Em seguida, a máscara em forma de
rosto apareceu.
— Infelizmente alguma coisa escapa à minha pista. A mais bela e
seu amado são como a neblina num dia de verão. Desapareceram
de vista.
— Não consegue encontrá-los? — O corpo inteiro dela ficou
tenso. — Como isso é possível? — Ingrid começou a andar para a
frente e para trás diante do espelho, sentindo-se como uma onça
prestes a atacar. De repente, Katherine apareceu e começou a
andar atrás dela. Ingrid balançou a capa, fazendo com que a
imagem da irmã desaparecesse. Por um tempo.
— Como debaixo da neve cujo nome recebeu, sumiu cada passo
seu. E a autoria é da magia — respondeu o espelho.
— Não! — Ingrid passou o braço por cima da mesa, derrubando
diversos frascos, que caíram no chão e se espatifaram. — Como
posso quebrar esse feitiço?
— Pelos portões do castelo precisam passar. Só então sua
verdadeira identidade irão revelar. Ao que tudo indica, vós deveis
esperar.
— Alguém deve estar escondendo-os! Quem? — ela estrepitou.
— Há um prêmio pela cabeça da princesa. O reino inteiro sabe
disso! Quem ousa me desobedecer? Quando os verei?
— A magia foi plantada como uma poderosa semente —
respondeu o espelho, e Ingrid emitiu um grunhido baixo que se
transformou em tosse na sua voz de velha pedinte. O espelho
prosseguiu: — Por uma feiticeira que ajudou o rei em seu tempo de
necessidade premente.
Ingrid teve uma vontade súbita de jogar objetos contra a parede.
Em vez disso, respirou fundo.
— Georg? — No mesmo instante, Katherine reapareceu ao seu
lado. Ela era um espinho que não saía de jeito nenhum. — Mas
como? Ele não pode passar pela nossa fronteira! Está preso pela
magia. Mostre-o para mim.
Uma imagem borrada apareceu no espelho e, pela primeira vez
nos últimos dias, Ingrid suspirou aliviada. Sim, lá estava ele,
andando de um lado a outro em seu chalé mofado, com uma
aparência bem pior. Percebeu que fazia muitos anos desde que o
vira pela última vez. Mas ainda estava onde o deixara. E, mesmo
assim, ele encontrara uma maneira de ajudar Branca…
— Como isso aconteceu? O que preciso fazer?
— Escolher — disse o espelho com simplicidade.
— Escolher? — Ingrid repetiu, confusa.
— A coroa ou seu espelho, qual ireis escolher? — respondeu o
espelho. — Se tentardes os dois ter, por certo ambos ireis perder.
— Não vou fazer nenhuma escolha! — vociferou Ingrid. —
Conquistei esta coroa! Dei tudo o que tinha para você também! Não
serei banida e não serei obrigada a escolher por uma garotinha que
não sabe o que é preciso para governar!
— A vida não é justa, disso bem sabeis — prosseguiu o espelho.
— Tentai manter tudo o que conquistastes e tudo, inclusive a mim,
para Branca de Neve perdereis.
— Mas como? — gritou Ingrid. — Ela só esteve na sua presença
uma vez e era apenas uma criança. Ninguém mais sabe que você
está aqui. Como ela poderia ter a mínima ideia do que você é
capaz? — Ingrid parou de andar de um lado a outro e agarrou a
moldura dourada do espelho para se amparar. — A menos… — A
imagem lhe veio de repente com tanta clareza que ela conseguia
visualizá-la. — Claro. Georg lhe contou.
— São fortes os laços que fazem a união — disse o espelho. —
Ela não tem como fracassar. A mais bela com o pai se consultou; ao
seu lado ela tem a nação.
— Pare de chamá-la assim! — exclamou Ingrid, e ela sentiu a
fissura antes mesmo de vê-la. Ergueu o olhar e viu a rachadura no
espelho crescendo. Sentiu uma repentina dor aguda no braço direito
e agarrou-o, arfando horrorizada, enquanto uma veia azul-
acinzentada aparecia da ponta dos dedos até o cotovelo, crescendo
e se espalhando como erva daninha. — O que está acontecendo?
— Tornamo-nos um — respondeu o espelho. — Meu futuro com o
vosso está selado. E o vosso está quase arruinado.
Mais estragos ao espelho causariam a sua morte? Era isso o que
ele queria dizer?
Ingrid não queria saber com certeza, mas suspeitava daquilo.
Estavam tão próximos assim? Nos recessos da mente, ela se
permitira imaginar, mas nunca por completo, já que o espelho
conseguia ouvir todos os seus pensamentos. Ele sabia de todas as
suas ações, e ela lhe dera esse privilégio. Agora seu corpo pagava
por isso.
— O que precisamos fazer? — sussurrou Ingrid, amparando o
braço, que ardia.
— Escolhei.
— Não. — Ingrid foi firme. — Não vou escolher. Preciso de
ambos. — Ela bateu no queixo, do qual saía um único pelo. — Tem
que haver outro modo. — Ela relanceou para o espelho fumegante e
teve uma ideia.
Forçar a garota a aparecer.
Isso.
A garota já estava vindo. Não havia como impedir isso. Portanto
ela deixaria Branca vir. Estaria pronta para recebê-la.
Ingrid relanceou para a maçã envenenada que permanecia sem
uso, acomodada no topo do cesto de frutas. Seu efeito ainda estaria
forte.
Branca sabia o que Ingrid mais queria: o espelho e a coroa. O que
sua sobrinha mais queria? Não era a coroa. Não, a garota jamais
parecera tão ávida pelo poder como ela. A garota perdera a mãe e o
pai. Crescera sozinha. O que ela mais queria era…
— Amor — respondeu o espelho.
Amor. Que tolice amar alguém. Isso enfraquecia as pessoas.
E era com isso que ela contava.
Quer dizer que não conseguiria atingir Branca usando os anões
ou o príncipe. Não tinha importância, existia outra pessoa amada de
que ela poderia se aproveitar. Chegara a hora de o Rei Georg
retornar ao castelo… Ou, mais precisamente, ficar à vontade no
calabouço, onde Branca jamais o encontraria.
Apanhou a maçã envenenada e a encarou. A garota viria atrás do
pai. E o veneno ainda funcionaria caso ela conseguisse levar a
maçã até Branca.
Ingrid sorriu. Tinha um plano e estava preparada para prosseguir
com ele até o fim.
— Espelho Mágico? Fique de olho na princesa — mandou Ingrid.
— Pela primeira vez em muito tempo não vejo a hora de receber
visitas.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Branca de Neve

POUCO ANTES DO AMANHECER, enquanto o resto da taberna e


o reino dormiam, Branca, Henri e Anne abriam caminho em meio ao
bosque, onde os reforços aguardavam na luz fraca da manhã
úmida. Havia uma leve neblina, dificultando a visão de Branca, mas
ela seguiu em frente. Estava ansiosa para rever os anões e os
aldeões que tivessem conseguido reunir. Talvez conseguissem ter
uns vinte. Mas, quando chegou ao topo da colina, arquejou de
surpresa.
Não havia vinte aldeões esperando por ela.
Havia centenas: homens e mulheres, idosos e jovens.
Vendo Branca, eles ergueram as armas.
— Quem é você? — trovejou Zangado.
E foi então que Branca se lembrou. Não se parecia mais consigo
mesma.
Henri pôs a mão no cinto onde guardava o punhal. Branca cobriu
a mão dele.
— Vai ficar tudo bem.
— Eu lhes trouxe a quem procuram — Anne anunciou, abrindo
caminho. — Podem não conseguir vê-la com clareza com os olhos,
mas eu sei com certeza que a pessoa por quem procuram está aqui,
na sua frente. Vocês só precisam prestar atenção ao som da voz
dela.
— Que tolice é essa? — Zangado ralhou. — Não conheço esses
dois! Quem são vocês? E o que fazem aqui?
— Onde está a princesa? — alguém gritou na multidão.
Branca temeu que os gritos logo os denunciassem. Deu um passo
à frente antes que a situação saísse do controle.
— Ela está bem aqui — disse, e os homens olharam para ela. —
A mesma que cozinhou e limpou ao seu lado no chalé está aqui,
diante de vocês. Mas, graças a um pouquinho de magia, não me
pareço nada comigo, e é por isso que consegui andar pelo reino
sem ser notada. — Como se novas provas fossem necessárias, um
cardeal pousou no ombro de Branca e piou com alegria.
— Branca? — Zangado repetiu.
— Sim — a princesa disse com uma risada de alegria,
evidentemente a própria. — Sou eu! Estou tão feliz em ver todos
vocês. Fiquei preocupada depois do desmoronamento da caverna.
Onde está Dunga? Ele está bem?
Dunga deu um pulo do meio da multidão e abraçou Branca pela
cintura com força.
— Dunga! Estou tão feliz que você esteja bem — ela exclamou.
— É você! — disse Feliz, apressando-se para junto dela para um
abraço rápido.
— Você fica melhor de cabelos castanhos — Zangado disse para
Henri antes de apertar sua mão. — Obrigado por trazê-la até aqui a
salvo.
Henri fitou Branca.
— Eu lhe garanto, ela é mais do que capaz de fazer isso sozinha.
Zangado se virou para Branca.
— É bom ver você… Bem, meio que ver você, mais ou menos.
— A magia só vai durar até eu chegar aos portões do castelo —
explicou Branca. — Fomos auxiliados por uma feiticeira. Foi ideia de
Anne.
— Quem é Anne? — Mestre perguntou.
Branca se virou para a garota, que permaneceu escondida sob o
capuz para evitar ser vista.
— Minha amiga. — Ambas as garotas sorriram. — Ela concordou
em levar Henri até o castelo agora, para que ele esteja lá dentro à
minha espera, caso eu precise de retaguarda para chegar aos
aposentos da rainha. Vou me esgueirar para dentro assim que a luta
começar. A distração me dará a oportunidade de entrar sem ser
notada e encontrar a rainha.
Zangado suspirou.
— Tem certeza de que não quer que a acompanhemos?
Branca segurou a mão dele.
— Preciso de vocês no castelo, liderando o restante dos homens.
É por sua causa e dos outros que um grupo deste tamanho se
reuniu aqui para nos ajudar. Você deve ser um bom orador.
Zangado corou.
— Apenas lhes disse a verdade. Precisamos que a Rainha Má
suma.
— Talvez você queira dizer umas palavrinhas? — sugeriu Mestre.
Branca olhou para o grupo de pessoas, com seus variados
tamanhos e formas. Alguns não carregavam nada além de um
estilingue, mas estavam todos ali, prontos para lutar por ela. Ela se
sentiu emocionada e deu um passo à frente.
— Meus leais súditos, sei que não parece, mas sou a princesa
perdida. Digo perdida porque é assim que me senti durante os
últimos anos em que vivi sob o jugo da Rainha Má. Aceitei meu
destino, pensando que não havia nada a fazer, mas percebi que
estava errada. Como filha do Rei Georg e da Rainha Katherine, sou
a herdeira por direito deste reino, e é minha função lutar pelo meu
povo. Quero que todos nós vivamos felizes e em harmonia do
melhor jeito que pudermos, e isso não pode acontecer com o atual
regime. Farei tudo o que puder para mudar isso. — Olhou ao redor
para os rostos solenes deles. — A sua presença aqui significa mais
do que consigo transmitir. Temos algo que a Rainha Má jamais terá:
amigos, familiares, aliados. Em resumo, temos uns aos outros.
Não podiam bater palmas — se não quisessem ser ouvidos —,
mas, um após o outro, homens se adiantaram para cumprimentar a
princesa deles com um aperto de mão. Quando Branca retornou
para junto de Henri e Anne, ambos estavam tão emocionados que
tinham lágrimas nos olhos, e Zangado enxugava o rosto com um
lenço.
— Isso foi lindo, Branca — sussurrou Anne.
— Falou como uma verdadeira líder — Henri concordou.
Zangado resmungou.
— Vamos parar de ficar aqui sentados sem fazer nada e ajudá-la
a se tornar uma. A que horas vamos?
— Ele tem razão — concordou Anne. — Está na hora de levar
Henri para o castelo.
Branca assentiu.
— Zangado, pode juntar todos e levá-los para perto do castelo?
Quando o relógio der meio-dia, será o momento de todos vocês
saírem dos seus esconderijos para invadir o castelo. Nesse meio-
tempo, estarei com Anne e entrarei escondida assim que a invasão
começar.
Zangado assentiu.
Branca olhou para o príncipe.
— Henri… isso significa que você ficará sozinho lá por horas.
— Eu sei — disse Henri. — Mas tive uma ideia. Anne, acha que
conseguimos pegar o uniforme de um dos guardas? Assim ficarei
disfarçado depois que passar pelos muros do castelo.
— Isso pode funcionar com os guardas, mas o espelho ainda vai
saber que você estará lá — Branca argumentou. — Deve
permanecer escondido.
— Ficarei — disse Henri. — Encontrarei algum lugar seguro. Mas
o uniforme ajudará.
— A cozinha — Branca o lembrou. — Procure a senhora Kindred.
Ela é uma pessoa gentil. E ninguém vai à cozinha.
— Então é na cozinha que vou ficar — prometeu Henri. Seus
olhos nunca se desviaram do rosto dela.
O céu já estava ficando rosado, e a neblina começava a se
dissipar. As nuvens se afastavam, e o azul-escuro da noite cedia
lugar para a manhã. Anne apertou o capuz ao redor da cabeça.
— Devemos nos apressar. Logo todos estarão acordados. — Ela
abraçou Branca com força. — Fique bem. Volto assim que puder.
— Você também, minha amiga — respondeu Branca e, depois,
virou-se para Henri.
Ela não sabia bem como agir. Deveria abraçá-lo? Apertar sua
mão? Não. O que poderia dizer ao rapaz que a protegera e aos
poucos vinha se tornando seu confidente mais confiável? Vê-lo se
preparar para partir a fez sentir uma dor que ela jamais sentira antes
em seu coração.
— Tome cuidado — disse.
— Você também — ele pediu com um sorriso suave. — Quero
que fique com isto. — Henri depositou algo frio em sua palma. Ela a
abriu. Era o punhal dele. Seus dedos resvalaram a gravação das
iniciais do irmão de Henri. — Para mantê-la segura enquanto eu
estiver longe.
— Não. — Branca tentou devolvê-lo. — Não posso aceitar. Você
ficaria desarmado!
Henri balançou a cabeça.
— Não preciso de uma arma. Sei que estará chegando e que me
protegerá. — Ele tocou nos seus cabelos e ela sentiu as faces se
aquecerem. — Você é gentil e inteligente, Branca. Uma das
melhores pessoas que conheço. Sinto-me seguro aos seus
cuidados.
Branca guardou o punhal no bolso da saia.
— E eu aos seus. Pode ficar com isto para mim, então? — Ela
pegou o colar da mãe de dentro do bolso e o depositou na mão
dele. — Faremos a troca mais tarde.
Ele guardou o colar no bolso do colete de couro.
— Eu o protegerei com a minha vida. Até daqui a pouco. —
Estendeu o braço e a beijou na mão.
Ela corou.
— Até daqui a pouco.
Ela observou Anne e Henri desaparecerem na linha formada
pelas árvores, sabendo que contaria os minutos até esse momento.
CAPÍTULO TRINTA

Ingrid

FINALMENTE A MARÉ VIRAVA a seu favor.


O Rei Georg estava trancado no calabouço junto a um esqueleto
que passara por situações muito piores que ele. Ingrid nem sequer
conseguia se lembrar quem tinha sido aquela pobre alma, mas
reconheceu Georg no segundo em que o viu. Mesmo depois de
todos aqueles anos, seus olhos azuis ainda eram aguçados.
— Quem é você? — perguntou ele.
Ingrid deu uma gargalhada aguda, numa voz nada parecida com a
dela.
— Quem acha que sou, querido Georg? Sou eu, sua esposa.
— Minha esposa morreu nas mãos da rainha quando Branca
ainda era uma menina! — trovejou Georg.
Ingrid sacudiu as grades.
— E sua nova esposa está bem na sua frente, escondida pelo
melhor dos disfarces.
— Magia das trevas! — Ele apontou um dedo vacilante na direção
dela. — Você é uma bruxa!
— Sim, e você já deveria saber disso a essa altura — Ingrid disse
soltando outra gargalhada. — Sentiu saudades?
— Você não ganhará esta batalha, Ingrid — disse Georg. — Ela a
matará.
— Gostaria de vê-la tentar. — Em seguida, Ingrid girou sobre os
calcanhares e deixou-o apodrecendo ali.
Quando chegou aos seus aposentos, o espelho estava cheio de
novidades.
— Ela ainda está nas sombras, embora o rapaz tenha se revelado
— disse. — Ele está aqui, em vosso castelo, onde pode ser
avistado.
O espelho mostrou o príncipe se esgueirando por uma porta com
a ajuda da mesma garota que estivera com Branca no dia anterior.
Ingrid assistiu à mulher abaixar o capuz. Reconheceu-a de imediato.
Era a filha da costureira. Ela e a mãe pagariam pela deslealdade.
Mais tarde.
Então a garota covarde enviara o rapaz na frente. Ela olhou para
a maçã ainda em sua posse. Talvez, no fim das contas, não
precisasse usá-la com a garota. O rapaz não faria ideia do que
estava para lhe acontecer. Enfim, ela poderia pôr as mãos nele,
atacando os aliados de Branca um a um. Isso só motivaria a garota
a entrar mais rápido no castelo. O fim dela seria iminente, então.
Envenene o rapaz em vez disso, a voz em sua mente disse. Ou
talvez fosse o espelho. Ela já não tinha mais como ter certeza.
A imagem embaçada de Katherine reapareceu. Encarou Ingrid
com seriedade, deixando-a desconfortável. Não havia um momento
no dia em que deixava de ver a irmã agora. Estava ficando louca,
não estava? Branca lhe causara isso.
Ingrid assistiu ao rapaz descer os degraus até a cozinha. A filha
da costureira voltou a subir a escada às escondidas, saindo de vista.
Talvez estivesse voltando para buscar Branca — o que significava
que o rapaz estava sozinho. A situação não podia ser melhor.
— O fim está próximo, o sol está forte — disse o espelho. — Se
não escolherdes, por certo será nossa morte.
Nunca.
Ela tinha um plano melhor. Entrelaçou os dedos e sorriu com
maldade.
— Acho que está na hora de conhecer o príncipe de Branca.
CAPÍTULO TRINTA E UM

Branca de Neve

ALGO ESTAVA ERRADO.


O sol agora estava a pino no céu, e Anne ainda não tinha
retornado. Os outros estavam ficando ansiosos, assim como Branca
de Neve.
Seria possível que Anne tivesse sido flagrada levando Henri para
o castelo? Estaria em perigo? Henri também? Branca não suportava
pensar que qualquer um deles estivesse nas garras da rainha.
— Acho que seria bom começarmos a ir até o castelo — disse
Zangado.
— Mas Anne ainda não voltou — Branca o lembrou. O bosque
estava tão silencioso que ela conseguia ouvir pessoas conversando
quando passavam por ali. Sempre que ouvia uma voz, pensava que
fosse Anne.
Teve um ímpeto de correr para o castelo para ver o que estava
acontecendo, mas seria tolice. Ela se revelaria no instante em que
pisasse na propriedade. Precisava esperar ali e confiar que Anne
voltaria para buscá-la.
— Está ficando movimentado demais por estas partes para
continuarmos aqui — Zangado comentou. — Temos que começar a
nos dispersar e seguir pelo vilarejo sem levantar suspeitas.
Fazia sentido. Mas onde estava Anne? Ouviu um farfalhar nos
arbustos, e ela e Zangado se viraram. Diversos homens se
aproximaram empunhando suas armas. Anne irrompeu por entre as
árvores, parecendo sem fôlego.
— Anne! — Branca correu em sua direção. As duas se abraçaram
por um instante. — Estou tão feliz que esteja bem.
— Sim — Anne a assegurou, segurando-a perto de si. — E Henri
também. Ele está na cozinha.
Branca exalou devagar.
— Que bom.
Anne se afastou.
— Tentei chegar antes, mas houve uma comoção no castelo.
Guardas se movimentando com presteza e juntando armas. Por um
momento, pensei que sabiam que você estava a caminho. —
Zangado e Branca se entreolharam. — Mas, em seguida, eu os vi
levando um homem ao calabouço. — Nervosa, Anne molhou os
lábios. — Branca, acho que era o Rei Georg!
Branca teve que se segurar. Deveria ter suspeitado que a rainha
não cederia sem lutar. Tentara matá-la, enviara tempestades para
destruí-la e colocara um preço em sua cabeça. Agora, retomara o
pai de Branca. Preocupava-a saber que ele estava na posse da
rainha; no entanto, havia uma parte sua contente com esse
desenrolar. Se o rei retornara ao reino, então sua maldição fora
anulada.
Sim, ele estava no calabouço, mas ela tinha certeza de que Ingrid
não o mataria. Sabia que Branca estava chegando, e seu pai seria
usado como isca.
— Ele ficará bem — Branca a tranquilizou. — Todos nós
ficaremos assim que tudo isto acabar. — Anne pareceu confusa. —
Vamos logo para o castelo.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Ingrid

O MANTO ANDRAJOSO QUE usava não serviria, mas isso era fácil
de resolver. Movendo-se entre a pilha de vestidos descartados que
sua costureira fizera, escolheu algo mais parecido com a roupa de
uma camponesa. Escondeu os cabelos brancos debaixo de um
lenço e teve esperanças de que o vestido de juta marrom que vestia
fosse mais apropriado para a cozinha. A peça pinicava que era uma
loucura. Como é que as pessoas usavam esse tipo de tecido? Ela já
tinha se esquecido disso há tempos.
No corredor, encontrou um guarda e falou com ele das sombras,
fazendo-se passar por uma daquelas incessantes criadas que
estavam sempre por perto, até ter demitido boa parte delas.
— Você! A rainha quer que procure a senhora Kindred de
imediato e a envie para o mercado para comprar ervas frescas. Sua
Majestade gostaria de comer pato assado no jantar e não vai gostar
se eu lhe der um não como resposta.
— Sim, senhora. — O guarda se afastou apressado.
Se a mulher fizesse mesmo um pato assado para o jantar, seria
um banquete digno de ser saboreado. À noite, Ingrid teria triunfado,
e o espelho saberia que ela estivera certa ao lutar por todas as
coisas pelas quais tanto se esforçara.
Ingrid segurou firme o cesto de maçãs enquanto se apressava
pelas sombras. Desceu as escadas, sentindo o ar ficar mais frio à
medida que chegava ao subsolo. Sentiu o cheiro de cozido fervendo
no fogo ao entrar no cômodo. A senhora Kindred já tinha saído e a
cozinha estava vazia. Ou parecia estar. Em silêncio, andou
procurando espaços grandes o suficiente nos quais o príncipe
poderia se esconder.
Seus olhos aterrissaram num armário grande. Havia um igual
àquele na casa em que ela e Katherine passaram a infância. Estava
quase sempre vazio, nunca tendo os ingredientes de que ela
precisava para preparar as refeições. Mas esse armário estaria
cheio de farinha, açúcar e outros itens básicos. Ingrid relanceou
para a mesa. Todos esses ingredientes estavam sobre ela em vez
de bem guardados.
Ela andou até o armário e abriu a porta. Ali estava o príncipe,
agachado, parecendo suado e preocupado. Perfeito.
— O que temos aqui?
O príncipe se levantou de um salto, vestindo o uniforme de um
guarda. Onde foi que arranjara aquilo?
— Por favor, não diga nada — pediu o príncipe. — Não estou aqui
para roubar. A senhora Kindred disse que eu podia ficar aqui por um
instante.
Aquela mulher seria demitida de imediato.
Bem, depois que o pato assado fosse servido.
— Claro! — Ingrid disse em sua voz rachada. — Mas é muito
mais confortável aqui fora do que no armário. Venha!
O rapaz hesitou.
— Não creio que eu deva ser visto.
— Tolice! — disse Ingrid. — Sou a assistente da senhora Kindred
e só ficarei por aqui enquanto ela estiver fora. Venha. Sente-se.
Coma alguma coisa! Você está com uma aparência péssima.
O rapaz riu de bom gosto.
— Estava quente ali. Obrigado, gentil senhora.
— De nada — disse e fingiu que se ocupava na cozinha,
movendo colheres e tigelas, sem fazer nada mais. Seus olhos não
se desviaram do cesto de maçãs sobre a mesa. — Diga, está com
fome?
— Um pouco — admitiu ele. — Mas, por favor, não se dê ao
trabalho. Só ter um lugar para ficar por enquanto já basta.
Ingrid moveu o braço no ar. Ele ardeu com o gesto; ainda estava
dolorido.
— Eu insisto. — Movendo-se até o cesto de maçãs, Ingrid mirou o
exemplar envenenado no topo da pilha.
Escolhei, o espelho a chamou.
Ela o ignorou. As mãos tremiam quando as esticou para o cesto.
Ofereceu a envenenada com as mãos enrugadas.
— Tome. Uma maçã adorável. Gosta de maçãs?
O príncipe sorriu ao fitar a mão dela. Ele era um belo rapaz. Uma
pena que a princesa o arrastara para aquela confusão.
— Sim, gosto. Parecem deliciosas.
— Espere até provar uma, querido. — A voz dela tornou-se um
sussurro. Seu coração começou a bater forte e ela sentiu todos os
nervos do corpo formigarem. — Vá em frente. Experimente.
O príncipe pegou a maçã das mãos dela.
— Obrigado por sua gentileza.
— Mas é claro! As melhores maçãs do reino! — São lindas de
morrer.
Ela prendeu a respiração quando ele aproximou a fruta dos lábios.
Assistiu ansiosa o momento em que deu e engoliu a primeira — e
última — mordida. A mudança no rosto dele foi instantânea.
— Acho que há algo de errado com esta — disse.
Ele cambaleou para trás, caindo sobre uma pilha de panelas,
derrubando tampas no chão num estrondo. Esticou a mão para
pegar algo no bolso, mas não tirou nada dali. Se era para ser uma
arma, ele a perdera. Ela ficou ali de pé, entrelaçando os dedos com
prazer, e assistiu ao rapaz cair no chão.
— Sinto-me tão estranho. — Ele a fitou. — Socorro.
Ela viu a maçã cair da mão dele e rolar pelo chão. Ela aterrissou
deixando a marca da mordida visível. Já estava começando a
escurecer.
Ingrid emitiu uma gargalhada tão alta que acreditou que pudesse
despertar os mortos.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Branca de Neve

BRANCA SEGUIU ANNE PELO bosque com a mente no pai, em


Henri e no castelo que pairava ao longe.
Planejaram tudo o que podia ser planejado. O restante estaria a
cargo do destino.
Fique comigo, mãe, pensou, observando a revoada de pássaros
que avançava na direção do castelo e, quem sabe, do viveiro.
Ajude-me a salvar o nosso reino.
A mãe não respondeu, claro. Branca não a via em seus sonhos
desde a noite em que sonhara com o espelho. Seu pai agora estava
aprisionado, e Henri se escondia em algum lugar do castelo,
correndo perigo. Todos estavam. Os homens se espalharam em
diversas direções para entrar sorrateiros no vilarejo sem serem
notados e estavam prontos para lutar por ela. Todos se colocaram
na linha de fogo pela princesa. Recusava-se a fazer qualquer outra
coisa que não fosse vencer.
Mas como sairia de fato vitoriosa? Sentiu o punhal de Henri no
bolso da saia e tateou-o para se lembrar de que ele estava lá. O pai
dela queria que a Rainha Má morresse. Chegariam a isso? Branca
não conseguia se imaginar segurando a lâmina na mão, muito
menos fazendo mal a alguém com ela. Não era como a tia. Não
matava a sangue frio. Desejou, pela milésima vez, que pegar o
espelho bastasse para obrigá-la a partir sem nunca mais olhar para
trás. Se não, teria que reavaliar a situação.
Avançaram pela estradinha rural, em meio a arbustos, pelo que
pareceu uma eternidade, com o castelo pairando acima delas.
— Por aqui — Anne a chamou, conduzindo Branca por uma via
do vilarejo que parecia estranhamente pacata. As ruas que ela
imaginara que estariam cheias estavam desertas. Percebeu um
anúncio pregado a um poste de ferro. Haveria uma celebração ao
meio-dia, e todos os aldeões deveriam comparecer. A
sincronicidade desse evento inesperado encheu seu coração de
medo. Teria isso a ver com seu pai?
Antes mesmo de começar a imaginar do que poderia se tratar,
ouviram gritos e o som de alguém correndo. Será que Zangado dera
início à invasão cedo demais?
Um homem passou por elas com um olhar desvairado.
— A rainha é uma bruxa! — exclamou, ficando de frente para
Branca. — Fiquem longe da praça do vilarejo! Fujam! Escondam-se!
Senão a Rainha Ingrid as amaldiçoará também.
Amaldiçoará?
Branca começou a correr, ignorando o chamado de Anne e os
gritos nas ruas. Empurrou os outros para chegar à frente da
multidão e o viu deitado.
Não era seu pai. Era Henri.
O seu Henri. Deitado num caixão de vidro.
— Não! — gritou, abrindo caminho pelos portões até a plataforma
onde ele estava deitado, pálido como a morte. Seu corpo estava à
mostra no seu túmulo de vidro. Engoliu o choro ao se aproximar
dele, sabendo muito bem que a magia desaparecera no instante em
que passara pelos portões do castelo.
— É a princesa! — alguém exclamou.
— Branca! Espere! — Ela ouviu Anne gritar.
Mas não podia esperar. Tinha que alcançar Henri. Abriu o caixão
de vidro e deitou a cabeça no peito dele, tentando ouvir o som mais
importante do mundo: a batida de seu coração.
Ela não ouviu nada. Em vez disso, sentiu-se sendo puxada da
plataforma e arrastada na direção do castelo por um guarda, que ria
na sua cara.
— Bem-vinda ao lar, Branca de Neve.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Ingrid

DA SUA JANELA, ELA conseguia ver o pandemônio, e o sorvia


como se fosse o mais maravilhoso elixir. O corpo do rapaz estava à
mostra para todo o vilarejo, e o medo nos rostos era palpável. A
rainha observou Branca de Neve sendo arrastada para longe do
esquife de vidro do rapaz. A princesa seria trazida aos seus
aposentos a qualquer instante. O “exército” de Branca de Neve, se é
que se podia chamá-lo assim, fora afugentado.
Ingrid deu as costas para a janela com uma sensação de
satisfação presunçosa. O espelho estivera errado. Ela podia ter
tudo.
Escolhei, o espelho, de modo surpreendente, lhe implorava de
novo. Ingrid olhou na direção do cômodo do espelho e viu Katherine
e seu mestre assistindo com tristeza. Ela os ignorou e foi direto para
a porta, onde ouviu uma repentina comoção.
Segundos mais tarde, um guarda a abriu, lançou Branca de Neve
para dentro e fechou a porta atrás de si com rapidez, como fora
instruído.
Ingrid viu Branca cair no chão com uma expressão de puro terror.
Seu plano funcionara. Branca de Neve estava arrasada. Agora era a
hora de acabar de vez com ela.
— Levante-se! — Ingrid grasnou, e Branca ergueu a cabeça
surpresa.
— Quem é você? — sussurrou, encarando Ingrid.
Ingrid revirou os olhos. Às vezes se esquecia de que ainda não
tivera tempo de reverter o feitiço, a despeito das mãos enrugadas.
— Fui eu quem amaldiçoou seu príncipe — ela riu, e o rosto de
Branca empalideceu. A voz de Ingrid ficou mais grave. — Sim. Sou
eu. Sua rainha, criança! Você não é a única que sabe disfarçar a
aparência com magia. Agora, levante-se e mostre-me algum
respeito. — Branca de Neve ficou de pé. — Venha comigo! — Ingrid
a chamou. Katherine e seu mestre andaram em silêncio ao lado
dela, mas Ingrid não estava preocupada. O espelho precisa ver
como isto tudo termina, pensou. Então, jamais voltará a me
questionar.
O cômodo estava iluminado apenas pelo espelho, que fumegava
e emitia luzes verdes e amarelas.
Branca o encarou, horrorizada.
— Então é verdade. Esta é a fonte do seu poder. Um espelho
mágico.
— Eu sou a fonte do meu poder — declarou Ingrid. — Passei
décadas trabalhando para ter esta coroa! Acha mesmo que seria tão
tola a ponto de permitir que uma criança a tomasse de mim?
— Henri está morto? — sussurrou Branca. Prendeu o fôlego
enquanto aguardava pela resposta.
Ingrid pressionou os lábios.
— É como se estivesse. Ele não tinha o direito de entrar neste
castelo para ajudá-la a tirar o trono de mim. — Os olhos da tia
faiscavam. — Como ousa me desafiar?
— Esse trono pertence à minha família — Branca disse trêmula,
mas se aprumou. Katherine se moveu, ficando logo à direita dela. —
Sei o que fez com meu pai. Sei agora que ele não me abandonou.
— Aquele tolo não estava em condições de governar um reino!
Ele era fraco! — Ela manquejou à frente. Seu olhar chispava.
Branca inspirou fundo.
— Se fizer algum mal a ele… se o ferir como fez com minha
mãe…
Ingrid gargalhou ante a ameaça.
— Não preciso fazer mal algum a ele. Ele mesmo o fará, sem ter
ninguém por quem viver! Ele não conseguiu sobreviver sem a sua
mãe!
— A quem você mandou matar! — gritou Branca.
Ingrid sentiu uma dor aguda do lado direito e ficou calada. Olhou
de Branca a Katherine, que estava tão perto que estaria tocando na
garota, caso isso fosse possível. Se Ingrid fosse capaz de se
arrepender de algo, seria da morte da irmã. Mas Katherine, tal qual
a filha, fora incapaz de deixá-la em paz.
— Não é tão simples quanto você faz parecer — Ingrid disse
baixinho.
— Ela era sua irmã — argumentou Branca. — Ela a trouxe para
ter uma boa vida neste castelo, e você a traiu. Deixou-me sem mãe
quando eu ainda era uma criança pequena. Dilacerou o coração do
meu pai, depois lançou um feitiço do amor e o baniu daqui!
Ingrid se recusou a olhar para Branca ou Katherine ao falar:
— Você era uma criança, incapaz de entender como era o mundo.
A sua mãe ameaçou o meu futuro e me deixou sem escolha.
Houve uma batida à porta, e tanto Branca quanto Ingrid se
sobressaltaram. Ninguém jamais ousara entrar nos seus aposentos
antes, muito menos se aproximar do cômodo secreto e tentar entrar.
— Minha rainha! — Ingrid ouviu uma voz abafada exclamar. —
Derrubaram os portões do castelo! Não conseguiremos contê-los,
há muitos deles! Temos de tirá-la daqui.
Ingrid olhou para Branca, que, de repente, parecia mais
amadurecida.
— Sempre há escolha — Branca enunciou. — Você escolheu
mandar matar a Rainha Katherine para proteger o seu espelho
precioso.
Ingrid avançou na direção de Branca.
— Não pronuncie o nome da minha irmã na minha frente!
— Minha rainha! Tem que se apressar! — a voz repetiu.
— Escolhei — o espelho declarou para todos ouvirem.
— O espelho fala? — questionou Branca, hipnotizada pelo rosto
em forma de máscara que começava a aparecer no vidro.
— Logo será tarde em demasiado. Agi de imediato. Remediai
vosso descuido! — o espelho disse a Ingrid.
Ingrid tapou os ouvidos, incapaz de pensar com clareza com toda
aquela confusão. Branca se aproximou dela.
— Sei a verdade agora, e o restante das pessoas logo saberá
também — declarou Branca. — Sobre todos nós… Rei Georg,
Rainha Katherine…
Ingrid puxou os cabelos brancos desgrenhados, crispando o rosto
de ódio.
— Eu disse: não pronuncie o nome da minha irmã!
— Minha rainha! Tem que se apressar! — o guarda do outro lado
da porta disse uma vez mais.
— Katherine! — Branca repetiu numa voz mais alta e mais clara
do que momentos antes. — Katherine! Katherine! Katherine!
Ingrid não suportava mais. Começou a gritar tão alto que o som
fez as paredes vibrarem. As rachaduras no espelho começaram a
aumentar.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Branca de Neve

OS GRITOS DA TIA foram tão agudos que forçaram Branca de


Neve a cobrir os ouvidos. A tia fazia o mesmo. O som da própria voz
parecia fragmentar seu corpo.
A outrora poderosa Rainha Má se transformara numa bruxa velha,
e a Branca só restava imaginar o motivo por ela não ter tentado
retornar à antiga forma. O feitiço, Branca percebia agora, devia estar
exaurindo suas forças.
Agora, Branca. Agora!, uma voz dentro dela ordenou. Agora o
quê?, queria perguntar. A voz se parecia com a da mãe. Talvez
fosse a sua própria voz. Por algum motivo, naquele cômodo escuro
e frio, onde tanto mal reinava, ela conseguia sentir a presença da
mãe guiando-a. E também sentia uma autoconfiança forte e
crescente que nunca experimentara antes. Apesar do perigo.
Apesar das perdas, ela não sentia medo.
O guarda dissera que seu exército estava invadindo o castelo.
Alguém encontraria seu pai no calabouço e o libertaria. Tia Ingrid
seria desprovida da sua coroa. Mas e o espelho? Desde o momento
em que entrara naquele cômodo, ela conseguia senti-lo puxando-a
para si, atraindo-a. Aquele espelho com o rosto em forma de
máscara obscurecera a alma de sua tia. Convencera-a a matar a
irmã, a enganar o pai de Branca e a sentenciá-la à morte. Sim,
foram todas ações feitas pela tia, mas era evidente que o espelho a
influenciara. Algo tão hediondo não deveria existir. Agora, Branca!
Agora!, ouviu a voz em sua mente repetir.
Ao erguer os olhos, conseguiu ver o espelho rachando. A fissura
se espalhava em diversas direções, como a teia de uma aranha.
Conforme ele rachava, os gritos de Ingrid ficavam mais altos. Era
quase como se o espelho a estivesse dilacerando e, apesar de tudo
o que acontecera, Branca sentiu pena da mulher diante dela.
Seria o bastante se destruísse o espelho antes que ele destruísse
tia Ingrid?
O coração de Branca começou a acelerar no peito. Buscou o
punhal de Henri para ver se ele ainda estava no seu bolso. O aço
frio estava ali. Seus dedos seguraram o cabo.
Agora, Branca! Agora!
Ela podia não ser capaz de cravar a lâmina no coração da tia,
mas não tinha escrúpulos quanto a quebrar um espelho. Branca deu
um passo à frente, erguendo o punhal acima da cabeça.
A tia se virou devagar.
— O que está fazendo? — exclamou.
— Branca de Neve, a mais bela do reino — disse o espelho, e
Branca falseou. — Poderias ser tão mais se nas minhas mãos
depositasses teu destino.
Por um instante, Branca hesitou.
— Não fale com ela! — berrou Ingrid, mas as pernas pareciam
falhar. Ela caiu no chão de quatro.
— Toca no vidro e deixa-me mostrar-te o caminho — continuou o
espelho. — Tu és mais forte que tua rainha. Poderias controlar este
dia com ajuda minha.
— não! — Berrou Ingrid e avançou de joelhos. — Não toque nele!
Branca não precisava das orientações da tia. Não seria enganada
pelas mentiras do espelho.
Cravou a lâmina bem fundo na rachadura, partindo ainda mais a
superfície do espelho. O brilho começou a se intensificar e o verde
se tornou vermelho, enquanto Branca atacava infinitas vezes. A tia
berrava, mas Branca continuou atacando o espelho até, por fim, ele
se estilhaçar em um milhão de pedacinhos. O vidro explodiu, e um
vento forte e o som parecendo um rugido acompanharam a
explosão. A Rainha Má foi empurrada para trás, e Branca caiu no
chão, cobrindo o rosto quando vidro vermelho flamejante voou pelo
cômodo, estilhaçando janelas e mergulhando o castelo inteiro na
escuridão.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Ingrid

AO ABRIR OS OLHOS, tudo o que Ingrid sentiu foi uma dor


profunda. Ela ergueu as mãos e viu sangue escorrendo pelos
braços enrugados. Não sabia bem onde estava.
Ergueu o olhar, assustada em ver que havia uma mulher parada
junto a ela.
— Katherine? — grasnou, não reconhecendo a própria voz.
— Sou Branca de Neve — a mulher respondeu. — Você será
julgada pelos seus crimes. Guardas, levem-na.
— O quê? — ela gritou quando dois homens a suspenderam e a
puxaram pelos braços. Os guardas não estavam uniformizados. De
fato, pareciam-se com camponeses! Tentou se desvencilhar, mas
eles a seguravam com firmeza. Doía ser tocada.
As janelas do cômodo estavam quebradas, permitindo a entrada
da luz do dia. Seus olhos se ajustaram, e ela percebeu que o piso
estava cheio de cacos. Olhou para a moldura do seu precioso
espelho. Estava vazia. O vidro fora destruído por completo.
Depois de todos os sacrifícios feitos para chegar até ali — ter
abandonado seu mestre e assistido à morte dele, envenenado
Katherine, banido Georg, ordenado ao caçador que matasse Branca
de Neve, envenenado o príncipe dela —, acabara sem nada. Seu
espelho, seu companheiro mais confiável e servo fiel se fora, e sua
vida estava arruinada. Fitou as mãos envelhecidas, que agora
tremiam. Não podia continuar como uma velha pedinte por nem
mais um instante. Seus olhos dispararam para a mesa de poções,
onde diversos frascos tinham caído, seus líquidos se derramando no
chão.
— Deem-me um minuto. — Ela precisava reverter o feitiço. Os
homens não a soltaram. — Sou a rainha! Mereço respeito!
Os homens zombaram.
— Não me parece a rainha. Você a viu, princesa?
— Não, não vi. — Branca a encarou. — Essa mulher matou a
rainha. Por favor, levem-na para o calabouço, onde poderá pensar
sobre seus crimes em confinamento solitário.
Não estava sendo sentenciada à morte?
O confinamento solitário não a assustava. Passara a vida toda
sozinha.
Mas o espelho sempre estivera ao seu lado.
Branca a observava em silêncio. Do lado de fora dos aposentos
de Ingrid, alguns dos seus guardas fiéis eram levados, e os
corredores se enchiam de aldeões, parabenizando uns aos outros,
celebrando. Ela queria gritar que o castelo não era o lugar deles,
mas sabia que ninguém a ouviria. Ninguém se deu ao trabalho de
dispensar nem sequer um olhar para a velha pedinte que passava
por eles a caminho do calabouço. Os homens não disseram nada
quando foi colocada na cela escura para a qual tinha enviado Georg
há apenas algumas horas. Estava sozinha.
Por um momento, pelo menos.
Quando os olhos de Ingrid se ajustaram à luz, viu seu mestre e
Katherine aparecerem ao seu lado. Os fantasmas — frutos da sua
imaginação, ou da sua mente desvairada, ou o que quer que de fato
fossem — estavam ali para lhe fazer companhia. O fantasma do seu
mestre desapareceu rápido, mas o de Katherine permaneceu.
Que poético, no fim, Katherine estar ali ao seu lado. Seu coração
se retorceu de repente quando ela percebeu o que não poderia ser
desfeito. No entanto, Katherine estava ao seu lado agora. Ingrid
estendeu a mão para tocar o fantasma da irmã. Viu a imagem dela
dar um lento sorriso triste e, depois, esvanecer como fumaça, para
nunca mais ser vista.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

Branca de Neve

BRANCA EMERGIU DOS APOSENTOS sombrios da tia, trêmula,


mas viva, e encontrou todos comemorando nos corredores escuros.
Alguém estava acendendo os archotes e as lanternas da passagem,
enchendo-a de luz, mas Branca não queria ficar. Queria se afastar o
mais rápido possível dos aposentos da tia. De súbito, sentia-se
muito cansada.
— Branca! Branca! — Anne veio correndo na direção dela, e
Branca se deixou cair em seus braços, as duas aos prantos. —
Você está bem! Quando vimos as janelas se estilhaçarem, tememos
o pior.
— Eu estou bem — Branca a tranquilizou e afastou-se para olhar
para a amiga. — Mas Henri…
Anne segurou-a pelos ombros.
— Eu sei.
Os olhos de Branca se encheram de lágrimas.
— Você está ferida — disse Anne, erguendo os braços de Branca,
que tinham cortezinhos e sangravam devido aos estilhaços. —
Deixe-me limpá-la. Fique aqui.
— Não — opôs-se Branca. — Meus ferimentos podem esperar.
Quero vê-lo.
— O seu pai? — perguntou Anne. — Ele já está aqui.
Branca se referia a Henri, mas, em seguida, ela o viu: seu pai, de
volta ao castelo. Ele se apressou para ficar junto dela com Zangado,
Mestre e os outros homenzinhos. Anne a soltou, e Branca correu até
ele, jogando-se em seus braços.
— Você está a salvo! — disse o pai, afagando-lhe os cabelos
como fazia quando ela era pequena. — Eu estava tão preocupado.
— Assim como eu estava — disse Branca, engolindo o choro. —
Quando ouvi que ela estava com você, fiquei sem saber no que
pensar.
— Estou bem, mas Branca… — Os olhos do pai procuraram
hesitantes pelos dela. — Henrich está…
Morto.
— Sim, eu sei. — Ela não suportava dizer a palavra.
— Esse é o antigo rei? — Ela ouviu alguém dizer, e ambos se
viraram.
— Rei Georg? Voltou para nós? — outro exclamou enquanto uma
multidão se juntava ao redor deles.
— Sim! A Rainha Má me baniu há muitos anos, mas finalmente
estou livre da maldição dela, graças à minha filha — o pai disse ao
povo reunido.
— Apanhem roupas limpas para o rei — alguém exclamou, e o
levaram dali.
Pessoas ao redor começaram a chorar, abraçando-se e
comemorando, e Branca, apesar de toda alegria que sentia por eles,
estava entorpecida.
— Branca?
Branca de Neve se virou e viu Feliz, Soneca e Atchim parados ao
lado de Dunga. Os quatro tiraram os gorros.
— Quando ouvimos o que aconteceu com Henrich, não pudemos
acreditar — falou Soneca. — Tínhamos que ver com nossos
próprios olhos.
— Um caixão de vidro. — Atchim balançou a cabeça. — Branca,
sentimos muito. Os guardas nos contaram que o trouxeram da
cozinha. Deve ter acontecido lá embaixo. Dunga encontrou isto e
quer que você veja.
Dunga deu um passo à frente, estendendo uma maçã vermelha
com uma única mordida. A marca da mordida se tornara preta como
carvão, como se tivesse sido marcada por magia. Branca sabia que
Ingrid deve tê-lo enganado para comer uma maçã envenenada,
sentenciando-o à morte.
— Lamentamos muito, Branca. — Feliz deixou uma lágrima
escorrer. Branca sentiu um nó se formando na garganta.
— Alguém deveria alertar o reino dele para que venham buscar o
corpo — disse Mestre.
— Henrich merece um funeral digno de herói — Zangado disse,
concordando. — O rapaz era um bom homem. — Ele, Mestre e
Dengoso retiraram os gorros. Atchim assoou o nariz com um lenço e
fungou. Dunga, todavia, continuou apontando para a maçã. Branca
não entendia o que ele queria mostrar. Estava envenenada; isso ela
entendia. A rainha era a responsável por isso. O que mais havia
para se saber?
É como se estivesse, ela se lembrou de a velha pedinte ter lhe
dito quando perguntou se Henri estava morto, e algo naquelas
palavras lhe pareceu estranho. É como se estivesse.
“É como se estivesse” não significava que estivesse morto de
verdade, certo? Dunga sorriu para ela quando esse entendimento se
transpareceu no rosto dela.
Branca saiu correndo pelo corredor em meio aos outros.
— Branca! Aonde você vai? — Anne exclamou.
Os homenzinhos chamaram-na, mas ela continuou apressada.
Precisava ter certeza. Atravessou as portas do castelo e correu
até a plataforma, onde o corpo inerte de Henri jazia no caixão de
vidro. Uma multidão permanecia agrupada do lado de fora dos
portões, assistindo.
— É Branca de Neve! — diversas vozes celebraram. — É a
princesa! Ela nos salvou!
Branca queria se aproximar do seu povo e tranquilizá-los de que a
Rainha Má desaparecera e não retornaria. Mas, naquele momento,
só conseguia pensar em Henri. Ao se aproximar do caixão, seus
passos desaceleraram. Vê-lo deitado ali encheu-a de sofrimento e
medo, mas ela também sentia um raio de esperança. Se havia
alguma possibilidade de ele estar vivo, tinha que saber.
Levantou a tampa de vidro e pressionou o ouvido no peito dele
uma vez mais. Em seguida, prendeu a respiração e esperou algum
sinal. Alguma coisa, qualquer coisa que lhe dissesse que “é como
se estivesse” não significasse de fato morto. Se tivesse algum sinal,
ela procuraria a feiticeira. Tentaria encontrar uma cura para aquela
magia. Mas não ouviu nada. Lágrimas começaram a rolar pelas
faces de Branca.
— Henri, eu sinto muito — disse e recolou o punhal no bolso do
rapaz. De dentro do bolso da jaqueta dele, pegou o colar da mãe.
Tirando-o, segurou-o nas mãos. O seu punhal a ajudara, mas o
colar de Katherine não o protegera.
A mãe amara tanto seu pai que teria feito qualquer coisa por ele e
por Branca. O amor verdadeiro era assim. Seria isso o que
começara a sentir por Henri antes de ele ter sido arrancado dela?
Ele parecia tão belo e tranquilo deitado ali, como se só estivesse
dormindo. A princesa sentiu uma necessidade tão grande que não
conseguiu se conter.
— Até a próxima, Henri — sussurrou ao seu ouvido e, em
seguida, inclinou-se sobre ele e beijou-o com suavidade nos lábios.
Quando os lábios se afastaram, preparou-se para fechar o caixão
pela última vez.
Ela ouviu um arquejo, como se um peixe estivesse em busca de
água.
Os olhos de Henri farfalharam ao se abrirem e se depararam com
os dela.
— Branca? — disse, rouco.
— Henri! — Branca gritou, as lágrimas escorrendo mais rápido.
Ela o puxou para ajudá-lo a se sentar e ouviu o início da comoção
ao seu redor. Os anões vieram correndo, assim como seu pai e
Anne. A notícia que o príncipe despertara se espalhou, um grito de
alegria se fez do lado de dentro dos portões do castelo e, logo, do
lado de fora também.
— Ela o salvou! — Feliz exclamou, com lágrimas de alegria.
Henri olhou para Branca, que ainda chorava.
— Você me salvou — ele repetiu.
— O amor verdadeiro o salvou — Mestre lhe disse enquanto
Georg os fitava com lágrimas nos olhos.
Branca e Henri se olharam e sorriram.
Talvez fosse isso mesmo.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

Branca de Neve

Alguns meses depois…

— APRESENTANDO SUA MAJESTADE, a Rainha Branca de


Neve!
A sala do trono explodiu em aplausos estrondosos.
Seu pai trajava as mais belas roupas, a coroa pousava no topo da
cabeça, onde deveria sempre ter permanecido, mas, naquele dia,
ele a retirou e a depositou na cabeça de Branca. Segurou-lhe a mão
quando ela se levantou e parou na beirada da plataforma da sala do
trono, olhando para centenas de pessoas. Anne estava ali com sua
mãe, ambas nomeadas, de modo oficial, costureiras da realeza. A
senhora Kindred estava ao lado da família, que se juntara a ela na
cozinha. Zangado, Soneca, Atchim, Dunga, Dengoso, Feliz e Mestre
estavam bem à frente, aplaudindo em seus uniformes. Foram
nomeados emissários especiais da rainha, e seu trabalho era viajar
pelos vilarejos do reino conversando com as pessoas e se
informando de suas necessidades e seus problemas. Branca sabia
que eles seriam excelentes nisso (embora tivessem que controlar o
temperamento de Zangado de tempos em tempos). Depois de anos
passando os dias na escuridão das minas, eles mereciam viver à luz
do dia.
Diante do seu povo, satisfeita com a recém-descoberta felicidade
deles, parecia-lhe que já vivera algo assim antes. Podia se ver de pé
ao lado dos pais naquele exato lugar enquanto criança, e a
sensação era bem parecida: ela se sentia amada.
Depois de meses de transição, continuaria por conta própria.
Branca estava pronta. Seu pai a preparara para isso.
Com o desaparecimento da Rainha Má, o reino acolheu a
mudança. Branca e o pai passaram os últimos meses trabalhando
juntos para desfazer o que havia sido feito de errado no reino
durante o reinado de Ingrid, e as ideias de melhoria de Branca
estavam sendo colocadas em prática por ali. As fronteiras foram
reabertas e o comércio foi bem recebido, com pessoas vindo de
todos os lugares para expressar a esperança que sentiam em
relação a um intercâmbio de sucesso. Os impostos foram reduzidos,
e fazendeiros e mineiros aproveitaram a oportunidade de lucrar com
aquilo que plantaram e extraíram do solo. Medidas de segurança
foram implantadas, a fim de tornar o trabalho nas minas menos
perigoso. Canais de comunicação oficiais foram estabelecidos, de
modo que a troca entre os vilarejos se tornasse mais aberta e
ilimitada, para que o povo pudesse se beneficiar da integração de
comunidades.
Mas talvez a maior e mais importante mudança que fizeram foi
reabrir o castelo para o povo. Aqueles em busca de trabalho ali
eram recebidos de braços abertos, e Branca sorria ao ver tantos
rostos novos pelos corredores. As festas no jardim, implementadas
por sua mãe, foram reestabelecidas, com crianças correndo felizes
pelo terreno e se maravilhando com os pássaros que Katherine e
Branca sempre amaram tanto. Eles já não residiam mais no viveiro
— Branca sentiu que era hora de que todos aqueles que viviam
aprisionados fossem soltos, e os pássaros não eram exceção. No
entanto, surpreendeu-se por tantos deles ainda agraciarem o jardim
por trás dos muros do castelo e visitarem suas janelas. Livres, eles
encontraram um lar, assim como ela.
Naquele dia haveria mais uma festa, dessa vez para Branca.
Depois de anos sendo a princesa esquecida, ela agora era a
rainha.
— Está pronta para receber o seu povo, Vossa Majestade?
Baixou o olhar para o belo jovem no degrau abaixo dela. Ele
vestia um paletó azul royal com uma capa vermelha e parecia tão
belo quanto no dia em que ela, nervosa, o vira pela primeira vez
através da janela do castelo, ouvindo seu chamado. O braço dele
estava esticado na espera do seu, e, dessa vez, ela não hesitou.
— Sim, estou, de verdade — respondeu Branca, que lhe sorriu
enquanto saíam da sala do trono debaixo de aplausos
ensurdecedores.
Henri a fitou com orgulho.
— Sei disso.
Branca não conseguia parar de sorrir. Ele a fazia infinitamente
feliz, e ela estava tão animada por ele ter concordado em ficar no
reino. Seu cargo oficial era agora adido comercial entre os reinos
vizinhos, inclusive o dele, mas, de maneira extraoficial, ele era o
coração e a alma da rainha, e ela não se surpreenderia se um dia
num futuro não muito distante, anunciassem que queriam se casar.
Mas, por ora, ela tinha um trabalho importante a fazer.
Ao chegarem à entrada do jardim, onde mais súditos
aguardavam, um cardeal voou e aterrissou nos degraus que ela
limpara tantas vezes na vida. Ele cantarolou uma canção alegre, e
Branca só conseguia pensar que ela significava uma coisa: eu te
amo. Pois sua mãe estaria sempre com ela.
— Sinto como se tivesse aguardado a vida toda por este
momento — Branca confessou a Henri.
Mas agora não haveria mais espera.
A hora de Branca de Neve chegara.
E, mesmo que isso não fosse um “felizes para sempre”, chegava
bem perto disso.
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TWISTED

TALES
ESTA OBRA INÉDITA NO BRASIL TRAZ A DISTORÇÃO DA
HISTÓRIA MUNDIALMENTE CONHECIDA, EXPLORANDO UMA
VERSÃO OUSADA E SOMBRIA DE UM DOS MAIORES
SUCESSOS DA DISNEY!

Quando Jafar rouba a lâmpada do Gênio, ele faz uso de seus dois
primeiros desejos para se tornar sultão e o feiticeiro mais poderoso
do mundo. Assim, Agrabah passa a viver sob o medo, à espera do
terceiro e último desejo de seu novo líder. A fim de parar a loucura
do ambicioso feiticeiro, Aladdin e a princesa Jasmine, agora
deposta, precisarão unir a população de Agrabah em uma rebelião.
No entanto, a luta por liberdade passa a ameaçar a integridade do
reino, acendendo as chamas de uma guerra civil sem precedentes.
O que acontece a seguir? Um pivete se torna líder. Uma princesa
se torna revolucionária. E os leitores nunca mais irão enxergar a
história de Aladdin da mesma maneira.
COMO FUTURA RAINHA DE ARENDELLE, A PRINCESA ELSA
LEVA UMA VIDA CHEIA DE EXPECTATIVAS E
RESPONSABILIDADES – SEM FALAR DAS DÚVIDAS. QUE TIPO
DE GOVERNANTE ELA SERÁ? QUANDO TERÁ DE ESCOLHER
UM PRETENDENTE? E POR QUE SEMPRE TEVE O
SENTIMENTO DE QUE TEM UM PEDAÇO IMPORTANTE DELA
FALTANDO?

Depois da morte inesperada dos pais, Elsa é forçada a responder


a essas perguntas mais cedo do que esperava, tornando-se a única
governante de seu reino e ficando mais solitária do que nunca. Mas,
quando poderes misteriosos começam a se revelar, Elsa passa a se
lembrar de fragmentos da infância que parecem ter sido apagados –
fragmentos que incluem uma garota de aparência familiar.
Determinada a preencher o vazio que sempre sentiu, Elsa deve
cruzar seu reino gelado em uma jornada angustiante, a fim de
quebrar uma terrível maldição… e encontrar a princesa perdida de
Arendelle.
AO VOLTAR PARA O LUGAR DO ABSURDO DE SUA INFÂNCIA,
ALICE SE ENCONTRA EM UMA MISSÃO PARA INTERROMPER A
LOUCA MARCHA MILITAR DA RAINHA DE COPAS ATRAVÉS DO
PAÍS DAS MARAVILHAS… E PARA ENCONTRAR SEU LUGAR
NOS DOIS MUNDOS.

Alice é diferente das outras garotas de dezoito anos que vivem na


Kexford vitoriana, e considera isso perfeitamente normal. Ela prefere
passar as tardes douradas tirando fotos com sua fiel câmera,
conversando com a ultrajante tia Vivian ou visitando as crianças na
praça em vez de recepcionar visitantes ou fazer bordados. Mas,
quando Alice revela as últimas fotos de seus vizinhos, aparecem
rostos estranhamente familiares no lugar: a Rainha de Copas, o
Chapeleiro Maluco, até a Lagarta! Há algo bastante anormal neles,
mesmo para as criaturas do País das Maravilhas. E, em seu
autorretrato, Alice encontra a imagem mais perturbadora de todas:
uma garota de cabelos escuros, presa e ferida, implorando por sua
ajuda.

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