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O tema da morte não é de forma alguma uma discussão atual. Foram muitos os
filósofos, historiadores, sociólogos, biólogos, antropólogos e psicólogos a
discutir o assunto no decorrer da História. Isto porque a morte não faz parte de
uma categoria específica; é uma questão que atravessa a história, é sobretudo
uma questão essencialmente humana.
Dentro dos vários enfoques teóricos que possibilitam a reflexão sobre a morte,
um deles nos interessa em especial: o enfoque psicanalítico. Foi esse enfoque
que deu corpo às nossas indagações sobre a morte, seja através da análise
pessoal, seja através da teoria propriamente dita.
A concepção que se tem sobre a morte e a atitude do homem diante dela, tende a
se alterar de acordo com o contexto histórico e cultural. Sem dúvida o advento
do capitalismo e seus tempos de crise, fez surgir uma nova visão sobre a morte,
que segundo Torres, (1983), tem a ver com o surgimento do capital como força
principal de produção. Neste sentido, o vivo pode tudo e o morto não pode nada,
já que teve sua vida produtiva interrompida.
DADOS HISTÓRICOS
Possuímos uma herança cultural sobre a morte que define nossa visão de morte
nos dias atuais. Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983), as interpretações
atuais sobre a morte constituem parte da herança que as gerações anteriores, as
antigas culturas nos legaram.
Faremos então, um pequeno passeio pela história para que possamos entender
como foi construída a idéia da morte encontrada nos dias de hoje.
Segundo Áries (1977), na Vulgata, o livro da Sabedoria, após a morte, o justo irá
para o Paraíso. As versões nórdicas do livro da Sabedoria rejeitaram a idéia de
Paraíso descritas no livro original pois, segundo os tradutores, os nórdicos não
esperam as mesmas delícias que os orientais, após a morte. Isso porque os
orientais descrevem que o Paraíso tem “a frescura da sombra”, enquanto os
nórdicos preferem “o calor do sol”. Estas curiosidades nos mostram como o ser
humano deseja, ao menos após a morte, obter o conforto que não conseguiu em
vida.
Esses exemplos nos trazem uma idéia de continuidade em relação à morte, não
sendo a mesma, considerada como um fim em si. Havia uma certa tentativa de
controle mágico sobre a morte, o que facilitava sua integração psicológica, não
havendo portanto, uma cisão abrupta entre vida e morte. Isso sem dúvida
aproximava o homem da morte com menos terror.
Apesar da familiaridade com a morte, os Antigos de Constantinopla mantinham
os cemitérios afastados das cidades e das vilas. Os cultos e honrarias que
prestavam aos mortos, tinham como objetivo mante-los afastados, de modo que
não “voltassem” para perturbar os vivos.
A Idade Média foi um momento de crise social intensa, que acabou por marcar
uma mudança radical na maneira do homem lidar com a morte. Kastenbaum e
Aisenberg (1983) nos relatam que a sociedade do século catorze foi assolada
pela peste, pela fome, pelas cruzadas, pela inquisição; uma série de eventos
provocadores da morte em massa. A total falta de controle sobre os eventos
sociais, teve seu reflexo também na morte, que não podia mais ser controlada
magicamente como em tempos anteriores. Ao contrário, a morte passou a viver
lado a lado com o homem como uma constante ameaça a perseguir e pegar a
todos de surpresa.
Kübler-Ross (1997) descreve que são cada vez mais intensas e velozes as
mudanças sociais, expressas pelos avanços tecnológicos. O homem tem se
tornado cada vez mais individualista, preocupando-se menos com os problemas
da comunidade. Essas mudanças tem seu impacto na maneira com a qual o
homem lida com há morte nos dias atuais.
O homem da atualidade convive com a idéia de que uma bomba pode cair do céu
a qualquer momento. Não é de se surpreender portanto que o homem, diante de
tanto descontrole sobre a vida, tente se defender psiquicamente, de forma cada
vez mais intensa contra a morte. "Diminuindo a cada dia sua capacidade de
defesa física, atuam de várias maneiras suas defesas psicológicas" Kübler-Ross
(1997)
Mannoni (1995), citando Áries, conta que a morte revelou sua correlação com a
vida em diversos momentos históricos. As pessoas podiam escolher onde iriam
morrer; longe ou perto de tais pessoas, em seu lugar de origem; deixando
mensagens a seus descendentes.
Para Mannoni, nos dias atuais, 70% dos pacientes morrem nos hospitais,
enquanto no século passado, 90% morriam em casa, perto de seus familiares.
Isto ocorre porque, nas sociedades ocidentais o moribundo é, geralmente,
afastado de seu círculo familiar.
“O médico não aceita que seu paciente morra e, se entrar no campo em que se
confessa a impotência médica, a tentação de chamar a ambulância (para se livrar
do “caso”) virá antes da idéia de acompanhar o paciente em sua casa, até o fim
da vida.” Mannoni (1995)
A morte natural deu lugar à morte monitorada e às tentativas de reanimação.
Muitas vezes, o paciente nem é consultado quanto ao que deseja que se tente
para aliviá-lo. A medicalização da morte e os cuidados paliativos, não raro,
servem apenas para prolongar o sofrimento do paciente e de sua família. É
muito importante que as equipes médicas aprendam a distinguir cuidados
paliativos e conforto ao paciente que está morrendo, de um simples
prolongamento da vida.
Segundo Bromberg (1994) nossa cultura não incorpora a morte como parte da
vida, mas sim como castigo ou punição.
Desde muito cedo, ainda bebês, quando passamos a distinguir nosso próprio
corpo do corpo da mãe, somos obrigados a aprender a nos separar de quem ou
daquilo que amamos. A princípio, convivemos com separações temporárias,
como por exemplo, a mudança de escola. Mas chega uma hora, que acontece a
nossa primeira perda definitiva: alguém que nos é muito querido, um dia, se vai
para sempre. É justamente esse “para sempre” que mais nos incomoda.
Porém, quanto mais conscientes estivermos de nossas mortes diárias, mais nos
preparamos para o momento da grande perda de tudo que colecionamos e
nutrimos durante a vida: desde toda a bagagem intelectual, todos os
relacionamentos afetivos, até o corpo físico.
Esse quadro atual nos revela a dimensão da cisão que o homem tem feito entre
vida e morte, tentando se afastar ao máximo da idéia da morte, considerando
sempre que é o outro que vai morrer e não ele. Nos lançamos então à questão da
angústia e do medo em relação à morte.
É a angústia gerada ao entrar em contato com a fatalidade da morte, que faz com
que o ser humano mobilize-se a vencê-la, acionando para este fim, diversos
mecanismos de defesa, expressos através de fantasias inconscientes sobre a
morte. Muito comum é a fantasia de existir vida após a morte; de existir um
mundo paradisíaco, regado pelo princípio do prazer e onde não existe
sofrimento; de existir a possibilidade de volta ao útero materno, uma espécie de
parto ao contrário, onde não existem desejos e necessidades. Ao contrário
dessas fantasias prazerosas, existem aquelas que provocam temor. O indivíduo
pode relacionar a morte com o inferno. São fantasias persecutórias que têm a
ver com sentimentos de culpa e remorso. Além disso, existem identificações
projetivas com figuras diabólicas, relacionando a morte com um ser
aterrorizante, com face de caveira, interligado a pavores de aniquilamento,
desintegração e dissolução.
O homem é o único animal que tem consciência de sua própria morte. Segundo
Kovács (1998): "O medo é a resposta mais comum diante da morte. O medo de
morrer é universal e atinge todos os seres humanos, independente da idade,
sexo, nível sócio-econômico e credo religioso."
Para a Psicanálise Existencial enunciada por Torres, (1983): "... o medo da morte
é o medo básico e ao mesmo tempo fonte de todas as nossas realizações: tudo
aquilo que fazemos é para transcender a morte.”
Esse fato é constatado por Mannoni (1995): "Nossas sociedades hoje, defendem-
se da doença e da morte pela segregação. Existe aí algo importante: a segregação
dos mortos e dos moribundos caminha junto com a dos velhos, das crianças
indóceis (ou outras), dos desviantes, dos imigrantes, dos delinqüentes, etc."
Segundo Torres (1983): "A sociedade ocidental não sabe o que fazer com os
mortos. Um intenso ou íntimo terror preside as relações que ela intervém com
esses 'estranhos' - corpos que bruscamente deixaram de produzir, deixaram de
consumir - máscaras que não respondem a nenhum apelo e resistem a todas as
seduções."
A autora segue falando dessa segregação em outro momento, quando diz que a
mesma se dá através da rejeição ao moribundo. São acionados neste processo,
alguns mecanismos que tentam negar ou encobrir a concretude da morte.
Mas não são somente os pacientes terminais que provocam incômodo por
remeter-nos diretamente à questão da morte. Os idosos também nos trazem a
idéia da morte e não é sem razão que isso acontece. Com o progresso da ciência
no combate à mortalidade, a associação entre morte e velhice passou a ser cada
vez maior. Segundo Kastembaum e Aisenberg (1983), esse evento relega a morte
a um segundo plano, algo que só acontece com o outro (velho). Segundo
Mannoni (1995) o idoso nos remete a uma imagem degradada e aviltada de nós
mesmos, e é dessa imagem insuportável que advém a segregação, já discutida
anteriormente.
Para o homem, uma criatura incapaz de aceitar sua própria finitude, não é fácil
lidar com um prognóstico de morte. No fundo, o grande medo da morte é o medo
do desconhecido.
Freud (1914) nos fala que a morte de um ente querido nos revolta pois, este ser
leva consigo uma parte do nosso próprio eu amado. E segue dizendo que, por
outro lado, esta morte também nos agrada pois, em cada uma destas pessoas
amadas, há também, algo de estranho.
O LUTO
Segundo Freud (1916), "O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido,
como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante." E segue
dizendo que o luto normal é um processo longo e doloroso, que acaba por
resolver-se por si só, quando o enlutado encontra objetos de substituição para o
que foi perdido.
Segundo Parkes (1998), o luto pela perda de uma pessoa amada “envolve uma
sucessão de quadros clínicos que se mesclam e se substituem... o
entorpecimento, que é a primeira fase, dá lugar à saudade, e esta dá lugar à
desorganização e ao desespero, e é só depois da fase de desorganização que se
dá a recuperação.”
O autor segue dizendo que “o traço mais característico do luto não é a depressão
profunda, mas episódios agudos de dor, com muita ansiedade e dor psíquica.”
Diante da morte, o consciente sabe quem perdeu, mas ainda não dimensiona o
que perdeu. Por que um luto não realizado leva à melancolia, um estado
patológico capaz de durar anos e anos?
Para Freud, (1916) algumas pessoas, ao passar pela mesma situação de perda,
em vez de luto, produzem melancolia, o que provocou em Freud a suspeita de
que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Para justificar essa
premissa, o autor fez uma série de comparações entre o luto e a melancolia,
tentando mostrar o que ocorre psiquicamente com o sujeito em ambos os casos
O autor fala ainda sobre o melancólico, que vivencia a perda, não do objeto como
no luto, mas como uma perda relativa ao ego. "No luto, é o mundo que se torna
pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego
para nós como se fosse desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e
moralmente desprezível..."
A este respeito nos fala também Mannoni, (1995): "Em alguma parte existe, aí,
uma identificação com o objeto perdido, a ponto de tornar a si mesmo, enquanto
objeto (de desejo), um objeto abandonado."
Para cada enlutado, sua perda é a pior, a mais difícil, pois cada pessoa é aquela
que sabe dimensionar sua dor e seus recursos para enfrentá-la. No entanto, há
muitos fatores que entram em cena, quando se trata de avaliar as condições do
enlutado, seus recursos para enfrentar a perda e as necessidades que podem se
apresentar.
FREUD, Sigmund . “Sonhos com Mortos”. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.IV e V. Imago, Rio de Janeiro,
1987