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patrícia lavelle
No primeiro parágrafo do ensaio sobre o contista russo Nikolai Leskov der Erzähler,
de 1936, Benjamin constrói uma imagem: “Leskov como contador de histórias não sig-
nifica trazê-lo para mais perto de nós, mas aumentar a distância que nos separa dele.
Se o considerarmos com certo distanciamento, os traços grandes e simples que carac-
terizam o contador de histórias nele ganham relevo. Melhor dizendo, aparecem tal
como um rosto humano ou um corpo de animal podem aparecer num rochedo para
alguém que os examine a uma boa distância e do ponto de vista adequado.”
O rochedo aqui é a obra de Leskov. No relevo de seus contos, este leitor situado a
boa distância e do ponto de vista adequado projeta a figura do contador de histórias.
Numa carta endereçada à Werner Kraft, Benjamin reforça os contornos projetivos
desta figura, apresentando-a como um tipo: “Tenho me ocupado sobretudo com um
estudo sobre Nikolai Leskov no qual falo menos sobre este grande contista russo do
que sobre o tipo do contador de histórias em geral, sua relação com o romancista e
com o jornalista e seu lento desaparecimento da face da Terra”.1
Em toda narração – romances e relatos informativos inclusive –, podemos iden-
tificar uma instância que conduz a intriga: que seja impessoal e onisciente ou um
personagem da trama, ou ainda uma voz ou vozes indeterminadas. Ao evocar o con-
tador de histórias, Benjamin não se refere ao narrador como instância interna, ne-
cessária à estruturação de qualquer texto narrativo, mas a um ideal-tipo, se quisermos
usar esta categoria cunhada por Weber. Trata-se de uma representação sócio-histórica
que aqui funciona também como imagem: a figura arcaica do contador de histórias,
cujas origens pré-modernas se encontram na tradição oral, na transmissibilidade da
experiência tradicional (Erfahrung), perdida no mundo moderno.
A opção pela tradução por “contador de histórias” e não por “narrador” visa por-
tanto evitar a ambiguidade entre esta figura, espécie de personagem teórico esboçado
1 Gesammelte Briefe, v, p. 289.
por Benjamin e projetado na obra de Leskov, e a instância narrativa interna ao texto.
Afinal, dizer que não sabemos mais contar histórias ou que a arte de contá-las está
em vias de desaparecimento não significa afirmar o fim da possibilidade literária de
narrar, o que seria contraditório inclusive com a escrita de contos que o próprio Ben-
jamin vinha desenvolvendo desde os anos vinte. Numa certa recepção do Erzähler,
traduzido como “narrador”, essa confusão aconteceu.
Quando se lê o ensaio sobre Leskov no contexto desta produção ficcional de Ben-
jamin, a figura concreta do contador de histórias aparece claramente. O contista a re-
presenta ficcionalmente nestes textos como um tipo humano associado à transmissão
oral e à sabedoria prática. Neste sentido, a tradução por “contador de histórias” está
relacionada ao trabalho de pesquisa que desenvolvi também no estudo dos contos de
Benjamin, que eram inéditos no Brasil, e foram incluı́dos neste volume que concebi e
organizei para a editora Hedra, dentro da coleção Walter Benjamin.
Se o crı́tico Benjamin projeta um personagem sobre o material textual com o qual
opera, o contista o coloca em cena. Em algumas de suas short stories mais significa-
tivas, a instância narrativa é múltipla. Benjamin encaixa narrações dentro de outras
narrações, associando caracterı́sticas que seu ensaio atribui ao contador de histórias
a um narrador-personagem com o qual se relaciona um outro narrador, as vezes iden-
tificado na intriga ao autor do texto.
“O lenço”, por exemplo, inclui a minuciosa descrição de um marinheiro, o Capitão
O., que possui as caracterı́sticas sociológicas do “contador de histórias”, tal como o
ensaio sobre Leskov as apresenta. Entretanto, o Capitão O. não é o narrador predomi-
nante no conto. Na narrativa que se estrutura em torno de um eu com a qual o autor
do texto se confunde, o marinheiro é o personagem principal. Mas num determinado
momento também atua como narrador, contando uma história ao narrador em pri-
meira pessoa. O marinheiro aparece assim como uma espécie de alegoria que permite
apresentar numa intriga narrativa a figura do contador de histórias e, paradoxalmente,
o declı́nio de sua arte na modernidade.
Podemos encontrar um outro exemplo interessante em “O anoitecer da viagem”,
conto ambientado na Ibiza ainda quase selvagem do inicio dos anos 30, onde Benjamin
realizou longas estadias. O conto inicia com algumas considerações sobre o arcaı́smo
da economia da ilha numa voz narrativa neutra, em terceira pessoa, que introduz a
figura de Dom Rossello, comerciante de vinhos, proprietário da pequena taberna na
qual se pode beber e conversar. Logo percebemos que Dom Rossello é um contador
de histórias, o camponês que conhece as tradições e causos de sua ilha.
Ainda nesta voz narrativa em terceira pessoa, conta-se à sua mesa a história de
um estrangeiro que, logo antes da partida, ouvira com prazer as histórias da ilha até
descobrir, já no navio, que provavelmente teria sido roubado pelo dono da taberna.
Mas contra toda expectativa, o estrangeiro recebe do taberneiro um telegrama com
instruções para recuperar o dinheiro, esquecido por engano. O final do conto quebra a
neutralidade da narrativa em terceira pessoa, sugerindo uma situação de interlocução
entre o narrador e Dom Rossello. Este último empresta assim sua voz ao contador de
histórias e, agora em primeira pessoa, conclui o conto com uma máxima moral.
Estes dois exemplos permitem mostrar como Benjamin distingue o narrador in-
terno à escrita dos contos da figura do contador de histórias e, colocando-os face a
face, produz interessantes efeitos narrativos em sua própria produção ficcional. Daı́ o
interesse de descobrir estes textos ficcionais que lançam novas e interessantes pers-
pectivas sobre o conhecido ensaio sobre Leskov, agora em nova tradução.
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