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Anais do

I Colóquio Internacional de Teoria e


Crítica Literária e
II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e
Identidades
1ª edição: 2022. Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Estadual do
Maranhão (EdUEMA). A reprodução integral ou parcial do texto poderá ser feita mediante a
autorização da EdUema e consentimento de seus respectivos autores. Direitos reservados desta
edição: Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

"Os conteúdos dos artigos publicados são de total responsabilidade dos autores e autoras."

Capa Conselho Editorial - Continuação


Rafael Albuquerque Costa Ana Lucia Abreu Silva
Ana Lúcia Cunha Duarte
Diagramação Cynthia Carvalho Martins
Edson Rodrigues Cavalcante Eduardo Aurélio Barros Aguiar
Emanoel Cesar Pires de Assis
Divisão de Editoração Emanoel Gomes de Moura
Jeanne Ferreira de Sousa da Silva Fabíola Oliveira Aguiar
Helciane de Fátima Abreu Araújo
Editor Responsável Helidacy Maria Muniz Corrêa
Jeanne Ferreira de Sousa da Silva Jackson Ronie Sá da Silva
José Roberto Pereira de Sousa
Design Editorial José Sampaio de Mattos Jr
Ferdinan Silva de Sousa Luiz Carlos Araújo dos Santos
Marcelo Cheche Galves
Revisão do volume Marcos Aurélio Saquet
Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim Maria Medianeira de Souza
Maria Claudene Barros
Conselho Editorial Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Alan Kardec Gomes Pachêco Filho Wilma Peres Costa

FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C695a I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária. II Colóquio Nacional de Literatura,


Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades (I e II: 2022: São Luís - MA)

Anais: I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Colóquio Nacional de


Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades / Algemira de
Macêdo Mendes, José Henrique de Paula Borralho, Josenildo Campos Brussio, Maria
Aracy Bonfim e Silvana Maria Pantoja dos Santos (Orgs.). São Luís: EdUEMA, 2022.

615 p.; online.


ISBN: 978-85-8227-276-3.

1. Literatura. 2. Teoria Literária. 3. Crítica Literária. 4. Memória. 5. Subjetividades. 5.


Identidade. I. Autora (es). II. Título. III. Localidade.
CDD: 869.2
Indices para catálogos sistemáticos:
Literatura: Teoria e Crítica Literária
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA

GOVERNADOR DO ESTADO
Carlos Orleans Brandão Júnior

REITOR
Prof. Dr. Gustavo Pereira da Costa

VICE-REITOR
Prof. Dr. Walter Canales Sant’ana

PRÓ-REITOR DE GESTÃO DE PESSOAS – PROGEP


Prof. Dr. José Rômulo Travassos da Silva

PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO – PROPLAD


Prof. Dr. Antonio Roberto Coelho Serra

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PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PPG


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PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E ASSUNTOS ESTUDANTIS - PROEXAE


Prof. Dr. Paulo Henrique Aragão Catunda

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Profa. Dra. Fabiola Hesketh de Oliveira

DIRETORA DO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS –


CECEN
Profa. Dra. Maria Goretti Cavalcante de Carvalho

COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - UEMA


Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho

VICE-COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LETRAS – UEMA


Prof. Dr. Emanoel César Pires de Assis
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica
Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória
e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades
REALIZAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Letras da UEMA – PPGL/UEMA

COMISSÃO ORGANIZADORA
Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes
Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho
Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio
Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim
Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos

COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Dra. Adriana Aparecida De Figueiredo Fiuza (UEL/UNIOESTE)
Profa. Dra. Alexandra Santos Pinheiro (UFGD)
Profa. Dra. Algemira de M. Mendes (UESPI /UEMA)
Profa. Dra. Ana Mafalda Leite – Universidade de Lisboa
Prof. Dr. André Rezende Benatti - UEMS/UFMS
Prof. Dr. Carlos André Pinheiro – UFPI
Profa. Dra. Elisabete da Silva Barbosa - UEBA
Prof. Dr. Elter Manuel Carlos – Universidade de Cabo Verde
Profa. Dra. Lucilene Machado Garcia Arf - UFMS
Profa. Dra. Joana Darc Rodrigues da Costa - CESTI/UEMA
Prof. Dr. Jorge Fernando Jairoce – Universidade Pedagógica de Maputo
Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho - UEMA
Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio - UFMA
Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa – UFMA
Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim -UFMA
Profa. Dra. Maristela Kirst de L Girola – UNISINOS
Profa. Dra. Marta Francisco de Oliveira - UFMS
Prof. Dr. Roberto Francavilla – Universidade de Genova
Prof. Dr. Sidney Barbosa - UnB
Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos – UEMA/UESPI
Profa. Dra. Tereza Maria Alfredo Manjate – Universidade Eduardo Mondlane –
Maputo
Apresentação

Os anais do I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA e o II


COLÓQUIO NACIONAL DE LITERATURA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE:
DESLOCAMENTOS E IDENTIDADES, eventos realizados pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da UEMA, em parceria com os Programas de Pós-Graduação do Brasil e do
exterior: UESPI, PROCAD/Amazônia/CAPES/PGCult/UFMA, UEMA e UESB, Escola Superior
de Educação do Instituto Politécnico de Viseu-Portugal, Universidade Temple, dentre outros.
Nesta edição, reuniu investigações voltadas às teorias e críticas literárias, aos conceitos de
cultura, memória e identidade. Buscamos pensar as interfaces entre deslocamentos e
identidades no contexto da sociedade contemporânea, por meio de subjetividades, a partir
do fazer estético. O evento aconteceu de 07 a 09 de junho de 2022. Tivemos apresentações,
debates, conferências, mesas redondas e simpósios.
Devido ao COVID-19, o evento ocorreu de forma on-line através da plataforma
DOITY/ https://doity.com.br/colintcrilit22.

A Organização.
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

Sumário
LITERATURA, INSÓLITO FICCIONAL E IMAGINÁRIO: RELATOS DE 9
PESQUISAS, DESAFIOS E PERSPECTIVA
Carlos Ribeiro CALDAS FILHO (PUC-Minas)
Josenildo Campos BRUSSIO (UFMA)

MEMÓRIAS DE UMA GAROTA ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA ESPECIAL: 21


O AUTO LUTO NA OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS, DE AYA KITO
Atos Daniel Pereira da SILVA (UESPI)

O FLÂNEUR, O MITO E O OUTRO MUNDO POSSÍVEL, EM DESEJO DE 31


KIANDA, DE PEPETELA
Adriano Guedes CARNEIRO (UFF)

LITERATURAS AFRICANAS PÓS-COLONIAIS: TENSÕES ENTRE AS VISÕES 40


DE MUNDO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO NAS ESTÉTICAS DE
LUANDINO VIEIRA, GERMANO ALMEIDA E MIA COUTO
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO)

ENTRE A IDENTIDADE NACIONAL E A CONDIÇÃO FEMININA: BREVE 48


ANÁLISE COMPARATIVA DAS OBRAS DE NOÉMIA DE SOUSA,
CONCEIÇÃO LIMA E ANA PAULA TAVARES
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO)

O ROMANCE NÃO ESTÁ MORTO: A METAFÍSICA NIVOLESCA 57


UNAMUNIANA COMO RESPOSTA À DESUMANIZAÇÃO DA ARTE DE
GASSET
Walter Pinto de OLIVEIRA NETO (UFMA)
Márcia Manir Miguel FEITOSA (UFMA)

MEDEIA: A ESSÊNCIA DO FEMININO 70


Brenda Lima dos SANTOS (UFC)
Yls Rabelo CÂMARA (UFC)

O GRITO E A DOR DOS EXCLUÍDOS NAS BATALHAS DE POESIA (SLAM 79


POETRY): UMA ANÁLISE DA PERFORMANCE DA TRAVESTI BIXARTE
Rian Lucas da SILVA (IFPB)
Hermano de França RODRIGUES (UFPB)

AS AVENTURAS DE BAMBOLINA: LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE 92


IMAGENS EM CONTEXTO DE ESCOLA PÚBLICA
Júlio César Lima FERNANDES (UNICAP)
André Luiz de ARAÚJO (UNICAP)

ASSOMBRAÇÃO: A CONFIGURAÇÃO DA IMAGEM DO CASARÃO DO 102


MARECHAL RONDON NO ASSENTAMENTO ANTÔNIO CONSELHEIRO
Maria Madalena da Silva DIAS (UNEMAT/PPGEL)
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

A PALAVRA POÉTICA EM FERREIRA GULLAR E IRAIDE DA SILVA 113


MARTINS: uma análise memorialística na literatura e cultura popular
maranhense
Luís Fernando Lima CAMELO (UFMA)
Rubenil da Silva OLIVEIRA (UFMA)

“A CIDADE ME VIGIA”: EXPERIÊNCIAS DO URBANO EM OS 128


CLANDESTINOS DE FERNANDO NAMORA
Karina Frez CURSINO (UFF)

FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA 142


LIBERTA
Roman LOPES (Univesp)

O INSÓLITO FICCIONAL EM BORGES: UM ESTUDO SOBRE O MILAGRE 155


SECRETO E A CRENÇA NO SOBRENATURAL
Mariany Lopes ALMEIDA (PUC Goiás)
Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás)

OS SALÕES LITERÁRIOS NA FRANÇA MODERNA: memória e cultura na 165


Paris do Séc. XVIII
José Barroso de OLIVEIRA FILHO (UESPI)
Raimunda Celestina Mendes da SILVA (UESPI)

A CRÍTICA DIALÓGICA DA ESCOLA DE GENEBRA 178


Carolina Rangel SILVA (USP)

A VIDA LITERÁRIA NA “NOVA ATENAS BRASILEIRA”: TRAJETÓRIAS 186


NEGRAS DE NASCIMENTO MORAES E ASTOLFO MARQUES
Patricia Raquel Lobato Durans CARDOSO (UFSC)

ASTERIX E O FANTÁSTICO: ENTRE HISTORIOGRAFIA E SUBVERSÃO 197


Rafael Silva FOUTO (UFSC)

AS VISITAS DO DR. VALDEZ PELO VIÉS PSICANALÍTICO: RELAÇÕES 210


ENTRE LITERATURA E PSICANÁLISE
Nelsilene dos Santos SILVA (UEPB)
Reginaldo Oliveira da SILVA (UEPB)

HISTÓRIA LITERÁRIA, MODERNISMOS E A TEMÁTICA DO INSÓLITO 218


Joachin de Melo AZEVEDO NETO (UPE/Campus Petrolina)

GUIMARÃES ROSA, MACHADO DE ASSIS E MARCOS FÁBIO BELO MATOS 230


E AS MEMÓRIAS AMOROSAS UNIVERSAIS
Evandro Abreu Figueiredo FILHO (UEMA)
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

SÍMBOLOS ATRÁS DA PORTA: UMA REFLEXÃO SIMBÓLICA E 243


PSICANALÍTICA SOBRE O QUE ESTÁ DO LADO DE DENTRO
Dayanna Roberta Costa da ROCHA (UEPA)
Izabelly Reis LOUREIRO (UEPA)
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)

ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO E A VISIBILIDADE NOS CONTOS DE 256


LYGIA FAGUNDES TELLES E EDGAR ALLAN POE
Mariluz Marçolla Ferreira AVRECHACK (PUC-SP)

UM ENTRE-LUGAR DE ENUNCIAÇÃO NA NARRATIVA 270


CONTEMPORÂNEA: SORRIA, VOCÊ ESTÁ NA ROCINHA
Josivânia da Cruz VILELA (UEPB)
Wanderlan ALVES (Orientador – UEPB)

A MEMÓRIA COMO MEDIADORA PARA A RESISTÊNCIA CONTRA O 283


RACISMO ESTRUTURAL: UMA EVOCAÇÃO SUBJETIVA EM “PONCIÁ
VICÊNCIO’’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Adrielly da Silva GOMES (UNICAP)
André Luís de ARAÚJO (UNICAP)

PELOS CAMINHOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA NO POEMA CANTO À 293


CIDADE DE SÃO LUÍS DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ
Luis Claudio dos Santos FERREIRA FILHO (UEMA)
Luzilene Nunes de SOUSA (UEMA)
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA)

AUTOBIOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DO NARRADOR EM CAZUZA 305


Erika Maria Albuquerque SOUSA (UEMA)
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)

A MENINA SEM PALAVRA: O SILENCIAMENTO E A CRÍTICA PÓS- 317


COLONIAL EM MIA COUTO
João Batista TEIXEIRA (FMB)
Renata Martins de LEMOS (FMB)

DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE E DA CRITICIDADE NOS ANOS 329


FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: O GÊNERO PODCAST NA SALA DE
AULA
Giovanna Silva da SILVA (UEPA)
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)

REFLEXÕES SOBRE O CORPO FEMININO NA LITERATURA PORTUGUESA 338


NO ROMANCE OS TRÊS CASAMENTOS DE CAMILLA S. DE ROSA LOBATO
DE FARIA
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

A VISÃO DO FEMININO NAS POESIAS CONTEMPORÂNEAS DE ANGÉLICA 349


FREITAS
Bianca Socorro Salomão SANTIAGO (UEPA/PPGELL)
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA/PPGELL)

CONSCIÊNCIA E CORPO DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO 358


NO CONTO SONO, DE HARUKI MURAKAMI
Vitor Yukio Ivasse ALVES (PUC Goiás)
Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás)

ESCRITA DE SI, ESCRITA DO OUTRO: A TENSÃO ENTRE AUTOFICÇÃO E 368


ESCREVIVÊNCIA NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO
Caroline da Conceição Barbosa da PURIFICAÇÃO (UFBA)
Luciene Almeida de AZEVEDO (UFBA)

PELOS BECOS DA MEMÓRIA: CONTRAPONTOS ENTRE A MORTE DO 376


AUTOR E A ESCREVIVÊNCIA
Caroline SERGEL (Unioeste)
Mariana Elizabeth Ceris Burtett GUDINO (Unioeste)
Valdeci Batista de Melo OLIVEIRA (Unioeste)

ORALIDADE EM CAZUZA: MEMÓRIA CULTURAL MARANHENSE 388


Valéria de Carvalho SANTOS (UEMA)
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)

CAZUZA: PASSADO, MEMÓRIA E RECONSTRUÇÃO 401


Êmile Raquel Soares de SOUSA (UEMA)
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)

ESCRITOS URBANOS E LITERATURA: A MEMÓRIA FEMININA 414


RETRATADA EM QUARTO DE DESPEJO
Tainá Dias de CASTRO (UFV)
Hugo Martins GOMES (UFV)

A LITERATURA E OS “NOVOS” MEIOS DE COTEJAR ESTILO: UM ESTUDO 423


ESTILOMÉTRICO COM FANFARRAS (1882), DE TEÓFILO DIAS
Ana Paula Nunes de SOUSA (UFSC)

MEMÓRIA E CIDADE: UMA LEITURA DA OBRA O CHAMADO DA NOITE, 434


DE CARLOS RIBEIRO
Vanessa Mayara Cavalcante OLIVEIRA (UEMA)
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)

AUTOFICÇÃO: A ESCRITA DE SI EM DIVÓRCIO, DE RICARDO LÍSIAS 443


Thauana Mara de Carvalho SILVA (UFT)
Rejane de Souza FERREIRA (UFT)
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

A CIDADE DE SÃO LUÍS E OS PERCURSOS MEMORIALÍSTICOS EM 455


QUATROCENTONA CÓDIGO DE POSTURAS & IMPOSTURAS LÍRICAS DA
CIDADE DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (2021), DE LUÍS AUGUSTO
CASSAS
Ana Caroline Nascimento OLIVEIRA (UEMA)
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)

MEMÓRIA E ESPAÇO CABO-VERDIANO: IMPACTOS NA FORMAÇÃO DA 466


IDENTIDADE DOS SUJEITOS MARGINALIZADOS
Igor Luid de Souza OLIVEIRA (UFMA/PGLB/CCEL)

FILOSOFIA E LITERATURA: TEMPO E MEMÓRIA EM INGLÊS DE SOUSA 480


Messias Lisboa GONÇALVES (UFPA)
Antônio Máximo FERRAZ (UFPA)

A SUBALTERNIDADE FEMININA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE 489


CONCEIÇÃO EVARISTO
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)

ENTRE AS PATAS DO LOBO: LIBERDADE E/OU APRISIONAMENTO 502


FEMININO EM “A COMPANHIA DOS LOBOS”
Mirian Lúcia FERREIRA (UFCAT)

O RACISMO RETRATADO NA NARRATIVA ÚRSULA DE MARIA FIRMINA 513


DOS REIS E NO CONTO MARIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Welliton dos Anjos BARBOSA (UESPI)
Antonio Vinícius da Silva NASCIMENTO (UESPI)
Debora Keyte Rodrigues LIMA (UESPI)
Jailma Santana SILVA (UESPI)
Luana Clenilda de SOUSA (UESPI)
Maria Aurilene de SOUSA (UESPI)
Mariza de Moura Machado GUIMARÃES (UESPI)
Mônica Maria Feitosa Braga GENTIL (UESPI)
A PRESENÇA DO INSÓLITO NA FICÇÃO MARANHENSE/CAXIENSE: DUAS 538
MULHERES DE TERRAMOR
Aerlys Pinheiro do SANTOS (UEMA)
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)
VITORIA E CHICA DA SILVA: PERSONAGENS HISTÓRICAS E LITERÁRIAS 552
NO BRASIL COLÔNIA
Jade Mariam Carvalho SILVA (UFDPar)
Sávio Roberto Fonsêca de FREITAS (UFPB)

SIGNIFICADOS JUSTAPOSTOS: UMA ANÁLISE A RESPEITO DAS 563


ESCOLHAS TERMINOLÓGICAS UTILIZADAS POR REINA ROFFÉ NA OBRA
AVES EXÓTICAS
Marta Mickaele Almeida ARRUDA (UEPB)
Maria Luana Caminha VALOIS (UFPE)
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES: IDENTIDADE REFLETIDA NO 574


ESPELHO DA LÁGRIMA
Gisele Silva OLIVEIRA (UFSC)

LITERATURA CONTEMPORÂNEA MARANHENSE DE AUTORIA 588


FEMININA: DECOLONIZANDO A MATRIZ COLONIAL DE PODER EM
QUEM É ESSA MULHER? (2018), DE MILENA CARVALHO
Thais Nascimento da SILVA (UFMA/CNPq-IC)
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)

DECOLONIZANDO A MATRIZ COLONIAL DE PODER EM A CASA DO 599


SENTIDO VERMELHO (2013) DE JORGEANA BRAGA
Jocileide Silva SOUSA (UFMA/CNPq-IC)
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)
LITERATURA, INSÓLITO
FICCIONAL E IMAGINÁRIO:
relatos de pesquisas, desafios e
perspectiva
Carlos Ribeiro CALDAS FILHO (PUC-Minas)1
Josenildo Campos BRUSSIO (UFMA)2

RESUMO

O presente texto apresenta relatos de pesquisas realizadas no campo da literatura do insólito


em suas múltiplas faces com o fantástico, o estranho, o maravilhoso, o horror, o suspense e
o ficcional. Trata-se de um artigo teórico-expositivo, de caráter descritivo-bibliográfico,
dividido em duas partes: na primeira, retratamos o plano teórico-conceitual sobre a
literatura do fantástico e do insólito ficcional nas discussões de de Tzvetan Todorov (2010),
Irène Bessière (2009) e Filipe Furtado (2009), sem refutar as contribuições de Ítalo Calvino
(2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas
(2014), entre outros; na segunda, realizamos uma síntese das principais propostas e
inovações teóricas e críticas sobre o campo do insólito ficcional apresentadas no simpósio
temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário do I Colóquio Internacional de Teoria e
Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade:

1 Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em seu Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião. Research Associate ("Pesquisador Associado")
do Departamento de Teologia e Religião da University of Pretoria (Universidade de Pretoria), África
do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa GPPRA - Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte
- certificado junto ao CNPq.
2 Professor Associado II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia do Centro de
Ciências de São Bernardo, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras-UEMA), da Universidade Estadual do Maranhão.
Líder do LEI (Laboratórios de Estudos do Imaginário) da UFMA/São Bernardo. E-mail:
josenildo.brussio@ufma.br.

9
Anais

deslocamentos e identidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da


Universidade Estadual do Maranhão, nos dias 08, 09 e 10 de junho de 2022. Como resultados,
temos que os relatos apresentados e discutidos no simpósio trazem desafios e novas
possibilidades para os estudos do fantástico e do insólito ficcional, que eclodem em novas
perspectivas, olhares inovadores, diálogos interdisciplinares e rupturas crítico-teórico-
epistemológicas.

Palavras-chave: Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário.

ABSTRACT

The present text presents reports of research carried out in the field of literature of the
unusual in its multiple faces with the fantastic, the strange, the wonderful, the horror, the
suspense and the fictional. This is a theoretical-expository article, with a descriptive-
bibliographic character, divided into two parts: in the first, we portray the theoretical-
conceptual plan on the literature of the fantastic and the fictional unusual in the discussions
of de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière (2009) and Filipe Furtado (2009), without
refuting the contributions of Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani
(2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), among others ; in the second, we
carry out a synthesis of the main theoretical and critical proposals and innovations about the
field of the fictional unusual presented at the thematic symposium Literature, Fictional and
Imaginary Unusual of the I International Colloquium of Literary Theory and Criticism and II
National Meeting of Literature, Memory and Subjectivity: displacements and identities,
promoted by the Postgraduate Program in Letters, of the State University of Maranhão, on
June 08, 09 and 10, 2022. As a result, we have that the reports presented and discussed at
the symposium bring challenges and new possibilities for the studies of the fantastic and the
fictional unusual, which emerge in new perspectives, innovative perspectives,
interdisciplinary dialogues and critical-theoretical-epistemological ruptures.

KEYWORDS: Literature, Unusual Fiction and Imaginary.

PROLEGÔMENOS (IN)SÓLITOS

A literatura fantástica é um campo de investigação que tem se destacado cada vez


mais nos estudos literários, dessa maneira, diversos caminhos têm sido delineados por
teóricos nacionais e internacionais. No presente estudo, destacaremos a linha do fantástico
enquanto gênero literário, do estranho e do maravilhoso, proposta por Todorov (2010) e a
linha que adota o fantástico como um modo literário, proposta por Irène Bessière (2009),
posteriormente entendida como ficção do meta-empírico, pelo pesquisador português Filipe
Furtado (2009).
No plano metodológico, trata-se de um artigo teórico-expositivo, de caráter
descritivo-bibliográfico, dividido em duas partes. Na primeira, retratamos o plano teórico-
conceitual sobre a literatura do fantástico e do insólito ficcional nas discussões de Tzvetan

10
Anais

Todorov (2010), Irène Bessière (2009) e Filipe Furtado (2009), sem refutar as contribuições
de Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil
(2013), David Roas (2014), entre outros.
Na segunda parte da pesquisa, realizamos uma síntese das principais propostas e
inovações teóricas e críticas sobre o campo do insólito ficcional apresentadas no simpósio
temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário do I Colóquio Internacional de Teoria
e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade:
deslocamentos e identidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade Estadual do Maranhão, nos dias 08, 09 e 10 de junho de 2022.
Vale ressaltar que o presente texto não se propõe a apresentar uma proposta teórico-
metodológica inovadora para a literatura fantástica, tampouco uma nova sistematização
sobre os estudos do fantástico; outrora, demonstra as escolhas e caminhos teórico-
metodológicos dos autores para adentrar no labirinto (CALVINO, 2009) da literatura do
fantástico.
Dito isto, pretendemos fazer um convite ao mundo do maravilhoso, do estranho, do
insólito ficcional, do fantástico a partir da experiência do evento e dos relatos que trazemos
dos debates que têm sido travados em torno do tema na atualidade, com as suas diversas
vertentes teóricas a partir das abordagens tecidas nos últimos anos por pesquisadores
brasileiros e internacionais.

REVISÃO DE LITERATURA: o insólito ficcional

O cerne do presente estudo está constituído pelos conceitos sobre o fantástico do


teórico búlgaro Tzvetan Todorov, presentes na obra Introdução à literatura fantástica
(2010), pelos conceitos de Irène Bessière em seu artigo O relato fantástico: forma mista do
caso e da adivinha (2009); e pelo conceito de Fantástico (MODO) (2009), do crítico português
Filipe Furtado; além das contribuições de estudiosos como Ítalo Calvino (2009), Flávio
Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), entre
outros.
Um passeio pela Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov (2010) é um
percurso essencial para um mergulho reflexivo sobre as bases teóricas para a compreensão
da literatura fantástica. Rigoroso com a questão do método, o teórico búlgaro traduz a sua
preocupação com a escolha de um método científico que dê conta de observar o fenômeno –

11
Anais

o fantástico – e descrevê-lo, sem se preocupar com a quantidade de ocorrências ou dedução


de leis universais a partir desses fenômenos em obras literárias, mas com a coerência lógica
da teoria que lhe dê consistência.
Nesta esteira, Todorov (2010) visa descobrir “uma regra que funcione através de
vários textos e nos permita lhes aplicar o nome de ‘obras fantásticas’ e não o que cada um
deles tem de específico”. Daí a escolha de Northrop Frye como base epistemológica e teórica
para pensar as questões complexas sobre as teorizações dos gêneros literários e apresentar
o seu plano de trabalho para a literatura fantástica.
Agora bem, como sabemos, a literatura existe em tanto esforço por dizer o que a
linguagem corrente não pode dizer. Por esta razão, a crítica (a melhor) tende sempre a
converter-se em literatura; só é possível falar do que faz a literatura fazendo literatura. A
literatura pode constituir-se e subsistir somente a partir desta diferença com a linguagem
corrente. A literatura enuncia o que só ela pode enunciar. Quando o crítico haja dito tudo
sobre um texto literário, não haverá ainda dito nada; pois a definição mesma da literatura
implica não poder falar dela (TODOROV, 2010, p. 14).
No exceto acima, Todorov (2010) ratifica a prolixidade em definir, categorizar,
classificar os gêneros literários, dada a amplitude das sistematizações, mas admite que só é
possível se fazer uma crítica à literatura “fazendo literatura”. Segundo Calvino (2014), “seja
como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita, na
qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem compostos
pela mesma matéria verbal” (p. 84).
Definir o fantástico não é tarefa fácil, primeiro porque o desafio se intensifica quando
se pretende compreender o que se entende por “sobrenatural”, que para Todorov (2010),
“ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo
seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da
realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos” (p. 15).
Seguindo essa linha, Filipe Furtado (2009) afirma que o sobrenatural se caracteriza
pela impossibilidade de comprovar de modo universalmente válido a sua existência no
mundo conhecido. Para o italiano Remo Ceserani (2006), assim como para Furtado (2009),
os elementos sobrenaturais são na narrativa fantástica uma de suas características mais
expressivas, isso porque dela surge com mais ou menos intensidade a relação e o
envolvimento do leitor com a história.

12
Anais

Todorov (2010) aponta que, desde o século XIX, o tema já havia sido tratado por
diversos autores e correntes (francesa, alemã, inglesa), e destaca as iniciativas do filósofo e
místico russo Vladimir Soloviov que define o fantástico como “um fenômeno estranho que
pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A
possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico” (p. 16) e pelo autor inglês
especializado em histórias de fantasmas, Montague Rhodes James, como “uma porta de saída
para uma explicação natural, , mas teria que adicionar que esta porta deve ser o bastante
estreita como para que não possa ser utilizada” (p. 16), além da concepção alemã de Olga
Reimann que afirma: “O herói sente em forma contínua e perceptível a contradição entre os
dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele mesmo se assombra ante as coisas
extraordinárias que o rodeiam” (idem).
Para o teórico búlgaro, o fantástico caracteriza-se pela hesitação, vacilação comum ao
leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da “realidade”.
Dessa maneira, o gênero fantástico “mais que ser um gênero autônomo, parece situar-se no
limite de dois gêneros: o maravilhoso e o estranho” (TODOROV, 2010, p. 24), resultando em
novos subgêneros literários como o fantástico-maravilhoso e o fantástico-estranho.
Apesar da densidade dos argumentos de Todorov para uma teoria do gênero
fantástico, há autores que versam outra linha de pensamento, como Filipe Furtado (2009),
David Roas (2014) e Irène Bessière (2009).
Filipe Furtado (2009) postula o meta-empírico como um modo que abarca uma
heterogeneidade de textos e gêneros por intermédio de um fator que lhes é comum: o
sobrenatural, integrando o conto de fadas, o gótico, o maravilhoso, o estranho, a ficção
científica e outras modalidades e o insólito ficcional. Neste ponto, opõe-se a Todorov
ampliando o entendimento do que vem a ser o campo da ficção insólita que pode abranger
tanto o sobrenatural “quanto outras que, não o sendo, também podem parecer insólitas e,
eventualmente, assustadoras” (FURTADO, 2009, p. 2). Para o teórico português, “todas elas,
com efeito, partilham um traço comum: o de se manterem inexplicáveis na época de
produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus
princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva” (idem).
Gama-Khalil (2013) observa que, para os dois teóricos, Todorov e Furtado, “no
fantástico, ocorre a permanência da hesitação/ambiguidade. Portanto, mesmo contrariando
a visão todoroviana de hesitação, Furtado chega a conclusões muitíssimo similares a ela”
(GAMA-KHALIL, 2013, p. 23). E continua: “A diferença que ele estabelece é a de que a

13
Anais

permanência da ambiguidade é uma questão interna à narrativa, ao passo que, para Todorov,
a hesitação estaria também condicionada à recepção do acontecimento insólito (GAMA-
KHALIL, 2013, p. 24).
O escritor e crítico literário David Roas também discorda de Todorov sobre o critério
basilar da hesitação como caracterização do fantástico. Para o teórico espanhol, “não se trata
simplesmente de introduzir um elemento impossível (sobrenatural) em mundo parecido ao
nosso” (ROAS, 2014, p. 97), mas provocar no receptor o escândalo racional “diante da
possibilidade de que suas convicções sobre a realidade deixem de funcionar” (idem).
Para Roas (2014), o fantástico causa uma transgressão da realidade, ele atua entre
irrompendo os limites das fronteiras do intransponível, provocando o estranhamento do
real, consequentemente, desencadeando o ameaçador, o incompreensível, o medo, a
inquietude, por fim, essa ameaça, essa transgressão se traduz no efeito fundamental do
fantástico.
Outra perspectiva crítica a obra todoroviana é apresentada pela pesquisadora Irène
Bessière, que propõe o fantástico como um modo literário, e não um gênero. Para a teórica
francesa, o fantástico não é senão um dos métodos da imaginação, cuja fenomenologia
semântica se relaciona tanto com a mitografia quanto com o religioso e a psicologia normal
e patológica, e que, a partir disso, não se distingue daquelas manifestações aberrantes do
imaginário ou de suas expressões codificadas na tradição popular. O fantástico pode ser
assim tratado como a descrição de certas atitudes mentais” (BESSIÈRE, 2009, p. 186).
Como se vê, para Bessière, o fantástico não define uma qualidade atual de objetos ou
de seres existentes, nem constitui uma categoria ou um gênero literário, mas supõe uma
lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para
o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e
do imaginário coletivo (2009, p. 186).
Apesar do engessamento genológico de Todorov em relação ao fantástico, de maneira
que a simples alteração na construção narrativa pode mudar o gênero que se realiza; para
Bessière, a simples manifestação do insólito e da incerteza na narrativa garantem a
realização do fantástico. Mesmo discordando neste ponto, ambas as teorias (Todorov e
Bessière) têm em comum o insólito, pois é necessária a manifestação, no plano narrativo, de
algo que fuja às regras convencionais da racionalidade própria do senso comum (GARCIA,
2011).

14
Anais

No Brasil, merece destaque, a trajetória desenvolvida pelo pesquisador fluminense


Flávio Garcia frente ao Seminário Permanente de Estudos Literários, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (SePEL.UERJ), que iniciou em 2007, na Faculdade de Formação de
Professores de São Gonçalo (campus da UERJ), com os Painéis Reflexões sobre o insólito na
narrativa ficcional, atividades acadêmicas que resultaram na promoção de grandes eventos
nacionais e internacionais em torno do tema como os Encontros Nacionais O Insólito como
Questão na Narrativa Ficcional, surgidos em 2009, no Instituto de Letras (ILE) da UERJ, e o I
Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, cuja segunda edição se deu em 2014,
igualmente com pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, portuguesas e
estrangeiras.
Em 2011, grupos de pesquisa certificados junto ao Diretório de Grupos do CNPq e
pesquisadores isolados, representando seus programas de pós-graduação e dando
visibilidade aos projetos individuais, reuniram-se para criar, junto à ANPOLL, o Grupo de
Trabalho “Vertentes do Insólito Ficcional” que, tendo por objeto o “insólito”, conforme a
perspectiva teórica adotada e segundo as tendências da tradição crítica, congraça estudos
acerca das diferentes vertentes do fantástico, que podem ser identificados nos seguintes
modos, gêneros ou subgêneros: Fantástico, Maravilhoso, Estranho, Sobrenatural, Absurdo,
Realismo-Fantástico, Realismo-Mágico, Realismo-Maravilhoso, Realismo-Animista, Ficção
Científica, Romance Policial, Romance de Mistério, Horror, Terror, Pavor (GARCIA, 2015, p.
9).
Outro guia de estudos para os temas do fantástico é a obra A literatura fantástica:
caminhos teóricos, da pesquisadora Ana Luiza Silva Camarani (2014), que nos oferece um
quadro dos principais teóricos sobre a literatura fantástica. Sua obra nos apresenta, na
primeira parte, “Reflexões teóricas e críticas precursoras”, o precursor teórico, Charles
Nodier e as reflexões de Guy de Maupassant; em seguida, a autora apresenta as ideias de
Pierre George-Castex que, no início da segunda metade do século XX, reativa os estudos
teóricos, críticos e histórico literários sobre essa modalidade literária.
Na segunda parte do estudo, sobre os “Textos fundadores”, focaliza os textos teórico-
críticos iniciadores, considerando as reflexões de Vax, Caillois, Todorov, Bellemin-Noël e
Bessière, dos quais procura assinalar as ideias que julga mais pertinentes. Na terceira parte,
“A evolução da teoria”, busca apontar alguns críticos que, a partir dos textos iniciadores
reavaliam as propostas ali contidas, trazendo sua contribuição para a definição e
compreensão do fantástico literário: Finné, Furtado, Malrieux, Tritter, Ceserani, Viegnes e

15
Anais

Roas. Por fim, na quarta parte, dedica-se à “Teoria e crítica no Brasil”, com os textos de Paes
e Rodrigues, que datam dos anos 80 do século passado.
Como se vê, a literatura fantástica é um vasto campo de estudos, com diversas
abordagens teóricas no Brasil e pelo mundo. Mas não se pode negar que desponta como um
gênero (TODOROV, 2010) ou modo (BESSIÈRE, 2009) literário profícuo e prolixo que ainda
proverá muitos debates e discussões no campo da teoria e crítica literárias.

PESQUISAS SOBRE O INSÓLITO FICCIONAL NO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE


TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA E II ENCONTRO NACIONAL DE LITERATURA, MEMÓRIA
E SUBJETIVIDADE: DESLOCAMENTOS E IDENTIDADES

As discussões travadas no evento nos chamaram atenção para o desenvolvimento dos


estudos relacionados ao campo do fantástico. Muito trabalhos apresentados no Simpósio
Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário, realizado neste I Colóquio
Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: deslocamentos e identidades refletiram a diversidade das
pesquisas em torno da literatura fantástica no Brasil, visto que contamos com a participação
de pesquisadores de todos os cantos do país.
O Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário foi organizado com
previsão para submissão de, no máximo, 12 trabalhos e tivemos a boa surpresa de 21
trabalhos inscritos. Os trabalhos foram divididos em dois blocos, durante dois dias de
apresentação, dia 08/06 (11 trabalhos) e 09/06 (10 trabalhos). Houve a ausência de alguns
participantes de maneira que ocorrem 7 apresentações no dia 08/07 e 6 apresentações no
dia 09/06, totalizando 13 trabalhos apresentados no simpósio temático.
No primeiro dia, foram apresentados os seguintes temas: 1 - O INSÓLITO FICCIONAL
NO CONTO "RUMO AO OCIDENTE", DE PRIMO LEVI, apresentado por Thiago Felício Barbosa
Pereira; 2 - O INSÓLITO FICCIONAL EM BORGES: UM ESTUDO SOBRE O MILAGRE SECRETO
E A CRENÇA NO SOBRENATURAL, apresentado por Mariany Lopes Almeida, Elizete Albina
Ferreira; 3 - ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO E A VISIBILIDADE NOS CONTOS DE LYGIA
FAGUNDES TELLES E EDGAR ALLAN POE, apresentado por Mariluz Marçolla Ferreira
Avrechack, Maria José Pereira Gordo Palo ; 4 - ASTERIX E O FANTÁSTICO: ENTRE
HISTORIOGRAFIA E SUBVERSÃO, apresentado por Rafael Silva Fouto; 5 - HISTÓRIA
LITERÁRIA, MODERNISMOS E A TEMÁTICA DO INSÓLITO, apresentado por Joachin de Melo

16
Anais

Azevedo Neto; 6 - FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA
LIBERTA, apresentado por Roman Lopes; 7 - AS AVENTURAS DE BAMBOLINA -
LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE IMAGENS, apresentado por Júlio César Lima
Fernandes, André Luís de Araújo.
No segundo dia, prosseguimos com as apresentações: 8 - CONSCIÊNCIA E CORPO
DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO NO CONTO “SONO”, DE HARUKI MURAKAMI,
apresentado por Vitor Yukio Ivasse Alves, Elizete Albina Ferreira; 9 - COUP D'OEIL
CIENTÍFICO: UMA ANÁLISE DAS NARRATIVAS DE BERILO NEVES À LUZ DO MARAVILHOSO-
CIENTÍFICO, apresentado por Irismar Lustosa Rocha, Daniel Castelo Branco Ciarlini; 10 -
AMÉRICA LATINA É O QUINTAL: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A SOLIDÃO A PARTIR DA
REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM ÚRSULA EM CEM ANOS DE SOLIDÃO, DE GABRIEL
GARCÍA MÁRQUEZ, apresentado por Fábio Júnior Vieira da Silva; 11 - O SI-MESMO COMO
OUTRO EM EXCERTOS SELECIONADOS DE EDWARD LEAR E QORPO-SANTO, apresentado
por Fernanda Marques Granato; 12 - INSÓLITAS METAMORFOSES NA LITERATURA: O
FANTÁSTICO EM “AÇUDE”, DE ROBERTO BELTRÃO, apresentado por Ivson Bruno da Silva;
13 - “PRECISO ESCONDER O QUÃO DURO É O ABRAÇO DE FERRO DA DOR”: OS ESTÁGIOS
DO LUTO VIVENCIADOS POR WANDA MAXIMOFF NA SÉRIE WANDAVISION (2021),
apresentado por Vitor Hugo Sousa Oliveira, Renata Cristina da Cunha).
Os debates realizados no Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e
Imaginário nos apontaram que os temas do fantástico, do insólito ficcional caminham por
novas perspectivas interdisciplinares. Muitos trabalhos utilizaram como base teórica-
referencial os textos de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière, David Roas (2014), Flávio
Garcia (2007), Filipe Furtado (2009), entre outros; e teceram diálogos com a psicanálise de
Freud, as fenomenologias das imagens poéticas de Gaston Bachelard, as estruturas
antropológicas do imaginário de Gilbert Durand, a geografia humanista fenomenológica de
Yi Fu Tuan, o duplo de Otto Rank e Edgar Morin, só para citar algumas das abordagens que
sustentaram as teses apresentadas.
Por isso, a proposta do simpósio temático trilhou uma abertura entre a literatura e
fantástico, sem abrir mão da intersecção entre o fantástico e o imaginário. Para Calvino
(1990), Balzac teria sido um dos primeiros escritores a tratar as questões do fantástico, ao
citar que “Para todas essas singularidades, o idioma de hoje só encontra uma palavra: é
indefinível.” (p. 82), aproximando-as do campo do imaginário: “Admirável expressão, que
resume toda a literatura fantástica; ela diz tudo o que escapa às percepções precárias de

17
Anais

nosso espírito; e quando a colocais sob os olhos de um leitor, ele se vê lançado no espaço
imaginário...” (p. 82).
Vemos em Balzac a dificuldade em situar, pelas palavras, o universo que
caracterizamos como literatura fantástica. A palavra “indefinível” conduz a esfera do
“indizível”, aquilo que não podemos nomear, por desconhecimento ou incapacidade
linguística, mas que possui existência própria no espaço-tempo.
Para Maciel (2013), “esses elementos insólitos não possuem ligação fixa ou
verdadeira com a realidade e são responsáveis por despertar o imaginário do leitor, fazendo
com que ele sinta a estranheza dos fatos e ao mesmo tempo não busque reminiscências na
realidade para explicá-los” (p. 43).
Como dissemos na seção anterior, a relação entre o imaginário e o fantástico é
estreita, uma linha tênue, conforme aparece nas palavras de Todorov: “ou se trata de uma
ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação” (2010, p. 15), ou de Bessière: “o fantástico
não é senão um dos métodos da imaginação (2009, p. 186), enfim, temos a concretização
desse efeito.

CONSIDERAÇÕES CREPUSCULARES SOBRE O INSÓLITO FICCIONAL

O campo do insólito ficcional, do fantástico, do maravilhoso, é um terreno arenoso ou


um mar de surpresas, como bem atesta Calvino (2009), “o prazer do fantástico está no
desenvolvimento de uma lógica cujas regras, cujos pontos de partida ou cujas soluções
reservam surpresas” (p. 154), recheado de complexidades e tensões entre o real e o
sobrenatural, o estranho e o maravilhoso, o imaginário e os duplos existentes na ficção
literária.
O I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional
de Literatura, Memória e Subjetividade: deslocamentos e identidades com o Simpósio
Temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário, demonstrou-nos o quanto o tema ainda
instiga diversos pesquisadores no Brasil e no mundo para discutirem sobre a temática.
Sabemos que a literatura fantástica reflete a crise generalizada de valores que a
contemporaneidade vive, produto ficcional de um imaginário pós-moderno, que se traduz
em fenômenos sobrenaturais ou meta-empíricos, que foi, pouco a pouco, saindo da
marginalidade e ganhando espaço tanto na produção ficcional quanto nas formulações
teóricas e na crítica que sobre eles se desenvolve. Para o professor Flávio Garcia (2011),

18
Anais

“pensar o fantástico, já no século XXI, obriga a repensar as categorias, em sentido lato, que
de sua literatura participam” (p. 8). Por essa, razão entendemos que as discussões sobre o
fantástico ou insólito ficcional são emergentes e ainda terão muito a nos oferecer neste início
de milênio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Fronteiraz, vol. 3, nº 3, Setembro/2009. [p. 185 – 202].

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CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura
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mecanismos de construção narrativa. 1 ed. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. ISBN: 978-85-
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__________. A CONSTRUÇÃO DO INSÓLITO FICCIONAL E SUA LEITURA LITERÁRIA:


procedimentos instrucionais da narrativa. In: I Congresso Nacional de Linguagens e
Representações: Linguagens e Leituras, UESC - Ilhéus – BA, 14 a 17 de outubro, 2009.

GARCIA, Flavio; PINTO, Marcello de Oliveira. Caderno de resumos e programação -


Vertentes do fantástico no Brasil: tendências da ficção e da crítica - VI Encontro Nacional O
Insólito como Questão na Narrativa Ficcional / XIV Painel Reflexões sobre o insólito na
narrativa ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015.

GARCIA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.) Vertentes teóricas
e ficcionais do insólito - Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso Internacional
Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como Questão na

19
Anais

Narrativa Ficcional / XI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional. Rio de


Janeiro: Dialogarts, 2013.

MACIEL, Lilian Lima. A BOLSA AMARELA COMO ESPAÇO DE IRRUPÇÃO DO INSÓLITO. IN:
GARCIA, Flávio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.). Vertentes
teóricas e ficcionais do insólito – Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso
Internacional Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como
Questão na Narrativa Ficcional / XI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional.
Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013. / ISBN 978-85-8199-015-6.

ROAS, David. A Ameaça do Fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,


2010.

20
MEMÓRIAS DE UMA GAROTA
ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA
ESPECIAL: O AUTO LUTO NA
OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS,
DE AYA KITO
Atos Daniel Pereira da SILVA (UESPI)1

RESUMO

Este trabalho pretende analisar, diante uma perspectiva psicanalítica literária, o luto
antecipado — também conhecido como auto luto — vivenciado por Aya Kito em sua obra
Um litro de lágrimas (2013), evidenciando os processos psíquicos no trabalho de luto diante
da perspectiva da perda iminente da própria vida após a descoberta de uma doença
incurável. Para tal, aborda-se o conceito de auto luto de RANDO (1986) e fases do luto de
KUBLER-ROSS (2008) mantendo um diálogo teórico literário entre os escritos de AYA KITO
(2013) e as ideias dos autores. A partir da seleção de trechos da obra foram levantadas
quatro categorias de análise: o diagnóstico da doença – o modo como Aya vivencia esta
situação; negação – o ser lidando com o tempo após o diagnóstico de uma doença incurável;
barganha – ideia de morte e o possível amparo religioso desta vivência; aceitação –
conformismo com a doença. Diante disso, constou-se que Aya passa pelas fases do luto, que
são compreendidas por negação, revolta, barganha e aceitação, possibilitando uma
compreensão do fenômeno investigado, assim, desvelou-se a experiência do auto luto como
uma preparação para o enfrentamento da sua morte, com toda a complexidade envolvida
nesta vivência.

1 Mestrando em Letras – UESPI, bolsista CAPES, atosdaniell1@gmail.com

21
Anais

Palavras-chave: Auto luto, Fases do luto, Memória.

ABSTRACT

This work intends to analyze, from a literary psychoanalytic perspective, the anticipated
mourning — also known as self mourning — experienced by Aya Kito in her work A Liter of
Tears (2013), highlighting the psychic processes in mourning work in the face of the
perspective of imminent loss. of life itself after the discovery of an incurable disease. To this
end, the concept of self-mourning by RANDO (1986) and stages of mourning by KUBLER-
ROSS (2008) are approached, maintaining a theoretical literary dialogue between the
writings of AYA KITO (2013) and the authors' ideas. From the selection of excerpts from the
work, four categories of analysis were raised: the diagnosis of the disease – the way Aya
experiences this situation; denial – being dealing with time after the diagnosis of an incurable
disease; bargaining – idea of death and the possible religious support of this experience;
acceptance – conformism to the disease. Therefore, it was found that Aya goes through the
stages of mourning, which are understood as denial, revolt, bargaining and acceptance,
enabling an understanding of the phenomenon investigated, thus, the experience of self-
mourning was revealed as a preparation for facing the his death, with all the complexity
involved in this experience.

KEYWORDS: Anticipatory grief, Stages of grief, Memory.

LÁGRIMAS E O AUTO LUTO

Ao longo da história, a morte foi um evento social fundador da humanidade. Em cada


cultura, entendida como um universo de símbolos e significados que permitem aos sujeitos
de um grupo interpretar suas experiências e orientar suas ações, os ritos fúnebres
facilitaram a integração da morte, a transformação dos sobreviventes e o continuem da vida
humana.
No ano de 1962 nascia no Japão à garota Aya Kito. Ela tinha uma vida comum, até que na
adolescência, especificamente aos quinze anos, descobre que possui uma doença incurável,
que vai atrofiando seu corpo e lhe tirando os movimentos. Tal doença tem o nome de
degenração espinicerelebar, que é compreendida como:

Uma doença hereditária autossômica recessiva, descoberta por Nicholaus


Friedreich, em 1863, que acomete principalmente a medula espinhal e o
cerebelo, levando ao aparecimento de sintomas como dificuldade motora,
inicialmente em membros inferiores, distúrbios de equilíbrio, dificuldades
de marcha, assinergias e ataxia. Trata-se de uma doença lentamente
progressiva e sem cura. (PINHEIRO, 2012, p. 144).

22
Anais

A partir do diagnóstico, a mãe de Aya aconselha que ela registre um diário para o
médico saber como conjuntura o dia-a-dia dela e observar o quanto a doença comprometia
a vida da garota. Contudo Aya foi além, começou a externar seus pensamentos, o que a
consternava e o que pensava e sonhava para o futuro. Seu diário intitulado um litro de
lágrimas (2013) foi publicado no Japão em 1986, dois anos antes de Aya deixar o plano
material. Kito travou uma dura batalha contra a doença por mais de dez anos e embora da
desmedida dor que teve de aguentar, jamais perdeu a esperança, como corroborado no seu
diário. Na maior parte das vezes, o autor de um diário é um narrador solitário que descreve
suas vivências e experiências apenas para si mesmo (BORTOLAZZO, 2010). Mas no caso de
Aya, ela transforma lágrimas em textos que tocam muitos corações:

Tantas vezes você se perguntou: por qual motivo derramei tantas lágrimas?
E hoje eu posso responder a você minha filha. Suas lágrimas se
transformaram em palavras que acalmam muitos corações. Elas foram
capazes de notar que não estão sozinhas. Você não está mais chorando por
aí não é mesmo Aya? (KITO, 2013, p. 133).

O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que
estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de uma doença degenerativa traz consigo o
estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com tais doenças passam por
todos os estágios do processo de luto antes mesmo de falecerem.
O luto antecipatório — também conhecido como auto luto — é um fenômeno cuja
conceituação foi elaborada pelo psiquiatra alemão Erich Lindemann e cuja descoberta
ocorreu no período da Segunda Grande Guerra ao observar as esposas dos soldados que, ao
retornarem da guerra, estes tinham dificuldades de inclusão ao seu núcleo familiar, visto que
suas esposas realizavam um processo de elaboração como se, realmente, eles tivessem
morrido (FONSECA, 2012). Nesse caso, elas aceitavam a morte antes de ela, de fato,
acontecer. Segundo o psiquiatra, este processo se desenvolve em função da separação a qual
indica ou uma ameaça ou um perigo real do membro vir a falecer e não em função da morte
em si; por isso, há um pressentimento de sua finitude.
O processo de elaboração da morte é realizado a partir de cinco estágios de maneira
sucessiva e com possibilidade de variação. Conforme a psiquiatra Kübler-Ross (2008), o
enlutamento inicia na fase de negação e termina com a aceitação, entre estas duas, há a
barganha e a revolta. No processo de luto antecipatório, estes estágios seguem a mesma

23
Anais

dinâmica proposta por Kübler-Ross, no entanto, existe um estágio adicional que não há no
luto normal: a esperança. (ALDRICH, 1974 apud FONSCESA, 2012).
Rando (1986) refere-se ao luto antecipado como um conjunto de processos
desencadeados pelo paciente de uma crescente ameaça de perda é um processo de luto sobre
aspectos psicossociais vivenciados pelo paciente, no período entre o diagnóstico e a morte.
luto antecipatório pode ser entendido como o tipo de luto que antecede a perda real e
apresenta as mesmas características e sintomas dos estágios iniciais do luto normal.
É muito importante entender a diferença entre o luto, que é um fenômeno natural e
faz parte de nossas vidas, e o auto luto, que é um processo complexo. O luto é considerado
saudável como a aceitação da mudança ocorrida, tanto em relação ao mundo exterior quanto
à ausência permanente de um ente querido. Há muitos aspectos a serem considerados, mas
em geral, se há um aumento de processos de luto persistentes, bem como de
comportamentos obsessivos, é um processo de luto complexo. Os processos defensivos são
característicos do luto e tornam-se patológicos à medida que persistem e acabam se
tornando parte da vida do enlutado (KOVÁCS, 1992).
De acordo com Kubler-Ross (2008) nem todas as pessoas irão vivenciar seu luto de
maneira semelhante, na ordem que é apresentada. “Nosso luto é tão individual como nossas
vidas” (KUBLER-ROSS, 2008, p.07). Assim, uma mesma pessoa pode ir da fase da negação
para a barganha, como da barganha para a raiva e voltar para a anterior. Cada luto é único
para os humanos, com suas características e diferenças. No presente trabalho iremos focar
no luto perante a situação de possível morte vivenciada por um sujeito, nesse caso Aya,
apresentando as fases do luto nessa circunstância.
Nesse estudo, portanto, o objetivo é investigar como fenômeno de luto antecipatório
ocorre a partir da leitura dos escritos de Aya Kito (2013) e sua luta contra uma doença
degenerativa. Nesse caso, o luto antecipatório será utilizado conforme o delineado por
Kübler-Ross, pois há o contexto da doença envolvida no fenômeno de enlutamento.

MÁQUINA DO TEMPO

É notável que estudos acerca do auto luto sejam escassos quando comparados à
produção científica existente relacionada a outros quadros de saúde mental (Silva; Nardi,
2010). Assim, pode-se dizer que o tema da morte e as questões relacionadas com o mesmo

24
Anais

ainda são considerados como um tabu, um tema interditado que muitas vezes é sentido como
fracasso, por profissionais da área da saúde (Costa; Lima, 2005).
Como elucidado por Kübler-Ross (2008), o estágio inicial do luto é a negação, na obra
1 litro de lágrimas, ao descobrir a doença, Aya não aceita que terá que perder sua juventude
na cama de um hospital fazendo exames e mais exames a fim de descobrir maneiras para
retardar sua doença, já que a mesma não tem cura.
Em trechos da obra Aya afirma querer uma máquina do tempo para voltar aos tempos
em que não estava doente: “Quero construir uma máquina no tempo e voltar ao passado. Se
não fosse por essa doença, eu conseguiria me apaixonar e não depender de ninguém para
viver.“ (KITO, 2013, p. 39). A ideia de voltar no tempo para Aya está atrelada ao pensamento
de não estar mais doente.
A negação de Aya parte do pressuposto de que ela teria que deixar a escola em que
estuda para fazer parte de uma escola especial, já que a sua doença avança de maneira
acelerada:

Faltam 4 dias até o fim das aulas. Parece que por minha causa, todos estão
segurando mil garças de papéis. A imagem deles segurando-os com tanto
esforço, guardarei no fundo dos meus olhos para que eu nunca esqueça,
mesmo estando separados. Mas eu queria que dissessem: Aya, não vá. (KITO,
2013, p. 50).

Além da ocorrência de que mudar para uma escola especial para pessoas com doenças
degenerativas era como um atestado de invalidade para Aya, o fato de seus colegas de classe
estarem mais preocupados com as provas finais, ocasionava a sensação de rejeição e
desdenho, acarretando na intensificação desse processo de negação.

LÁGRIMAS DE REVOLTA

Nas fases do luto, a revolta é compreendida como o momento em que os sujeitos


despontam da introspecção intensa da negação e, finalmente, começam a externalizar um
sentimento, que será denominado de revolta. (BRANDÃO, 2021).
Durante esse processo de revolta, Aya sempre pergunta para si mesma o motivo de
estar doente: “Por que essa doença me escolheu? Destino é algo que não se pode colocar em
palavras.” (KITO, 2013, p. 46). Essa ideia de negação dada pela personagem é também
atrelada ao destino, como se ela fosse fadada a sofrer com tal doença por ela ser hereditária.

25
Anais

No estágio da revolta, há também a procura de culpados e questionamentos, tal como:


Por que eu? Com o intuito de aliviar o imenso sofrimento. Além disso, lembranças das
abstenções e planos não realizados podem se refletir em um comportamento hostil. “Agora
penso que você foi muito mimada pelas pessoas! Finalmente percebi. Você dependeu demais
das pessoas! Por isso, a Youko e a Yoshiko acabaram se cansando! Percebi tarde demais”
(KITO, 2013, p. 103). Aya começa a martirizar-se sobre ações que poderiam ter sido tomadas
para um outro rumo da história, gerando grande angústia. “Mamãe, dentro do meu coração:
existe você, que sempre acreditou em mim. A partir de agora conto com você. Desculpa por
causar tanta preocupação.” (KITO, 2013, p. 121). A mesma dar início a uma série de
pensamentos de que sua existência, enquanto pessoa doente atrapalha a vida das pessoas.

Eu gosto do som das bolas ecoando no ginásio, da sala quieta depois da aula,
da paisagem que se vê da janela, do piso de madeira do corredor, das
conversas em frente à sala de aula, gosto de tudo. Talvez eu só esteja
incomodando, talvez eu não esteja ajudando ninguém, mesmo assim, eu
quero ficar aqui. Afinal, aqui é o lugar onde estou. (KITO, 2013, p. 101).

Por conta do estágio da revolta, usualmente ocorre uma circunstância mental um


pouco descolado da realidade e, dependendo da personalidade, a pessoa pode parecer
incontrolável, com atitudes de autodepreciação. No caso de Aya, o sentido de incômoda era
a matriz dessa autodepreciação.

LÁGRIMAS E DEUS

Como mencionado aqui, a barganha é um dos estágios do luto e a mesma é


compreendida como os pensamentos de que as coisas podem voltar a ser como antes
prevalecem e a pessoa tenta negociar consigo mesma ou com os outros para que isso
aconteça (BRANDÃO, 2021). Por ser o último estágio do luto, trata-se de uma tentativa de
adiar os temores diante da situação. Assim, os indivíduos buscam firmar acordos com figuras
que, segundo suas crenças, teriam poder de intervenção sobre a situação.
Geralmente, esses acordos e promessas são direcionados a uma entidade divina. Na
obra da Kito (2013), Aya tem conversas usuais com os kamis, que são compreendidos como
os “seres divinos responsáveis por manter o equilíbrio entre o homem e a natureza gerando
uma harmonia entre os dois” (RIBEIRO, 2018). Em um desses dialagos Aya pergunta por
qual motivo sua existência ainda persiste:

26
Anais

Por qual motivo eu estou vivendo? Aonde devo ir? Apesar de não conseguir
respostas, se escrevo, meus sentimentos melhoram. Estou à procura de
muitas mãos, mas não consigo alcançá-las, não consigo percebe-las, apenas
sigo em direção à escuridão, apenas ouço minha voz que grita sem
esperanças. (KITO, 2013, p. 79).

A barganha é a última etapa do luto, nesse estágio o enlutado ainda tem expectativas,
trazendo para a situação de Aya, uma garota doente, a perspectiva de um diagnóstico de
melhora ou até mesmo cura ainda era esperado pela mesma.

UM LITRO DE LÁGRIMAS

Após todas as etapas de negação, revolta e barganha, temos a aceitação. Comumente


é compreendida como o último estágio do luto convencional. Nessa última fase do luto, é
quando a pessoa percebe que não vai mais conseguir voltar no tempo e ter de novo aquilo
que perdeu por perto, contudo que vai tocar sua vida.
Em um litro de lágrimas (2013), esse processo de aceitação por parte de Aya da sua
condição de saúde, acontece no momento em que ela notícia para os colegas de classe sua
mudança de escola. “Para que hoje eu possa falar desse assunto com um sorriso no rosto, foi
preciso de no mínimo um litro de lágrimas” (KITO, 2013, p. 131).
É normal que mesmo após a aceitação venham lembranças, alguma tristeza
momentânea e saudosismo, mas nada que paralise a pessoa. “A realidade é muito cruel,
muito rígida. Não posso nem ao menos sonhar. Se imaginar o futuro, ainda outras lágrimas
escorrem.” (KITO, 2013, p. 128).
Aqui, é quando Aya aceita sua doença de uma vez por todas e vive com isso, entretanto
como um ferimento, que antes era aberto, contudo que cicatrizou, não doendo mais
involuntariamente como antes, só que a sua marca está ali. “Eu realmente não quero dizer
coisas como 'eu quero voltar como as coisas eram antes.' Eu reconheço como estou agora, e
continuarei a viver.” (KITO, 2013, p. 113). Pensar no futuro é a analogia para a ferida, que
aqui é vista como a consequência da doença.
A ocorrência de se permanecer viva é algo que fortalece Aya, “O fato de eu estar viva
é uma coisa tão encantadora e maravilhosa que me faz querer viver mais e mais.“ (KITO,
2013, p. 134). Como dito anteriormente, no estágio da aceitação o sujeito tem a noção de que
não será capaz de voltar no tempo. “Não consigo mais voltar ao passado. Nem meu coração,

27
Anais

nem meu corpo.” (KITO, 2013, p. 143). Aya entende que não pode fazer nada, apenas olhar
para o futuro com a esperança de dias melhores.

PARA UM LUGAR SEM LÁGRIMAS

Como elucidado aqui, Kubler (2008) destacou um estágio suplementar que não há no
luto normal, a esperança. Esse estágio não consiste especificamente na esperança pela cura
de um câncer, doença auto-imune ou degenerativa como no caso de Aya, mas sim na
esperança de partir desse plano material da melhor forma possível. “O que tem de mais em
cair? Você pode se levantar de novo. Quando você cai, aproveite ao máximo a chance de olhar
para cima e ver o céu. Você o verá se espalhando infinitamente acima de você e sorrindo para
baixo. Sorria, você está vivo!" (KITO, 2013, p. 142).
A esperança de Aya a essa altura da vida não era regida pela expectativa de uma
possível cura e sim pela apreciação de pequenas coisas da vida. “Quando você acha que as
coisas são difíceis, essa é a hora que você está amadurecendo como pessoa. Se você superar
a escuridão, um novo dia maravilhoso virá.” (KITO, 2013, p. 159). A esperança de Aya
sustentava-se nos elementos da natureza, como o céu e as flores “Se eu fosse uma flor, minha
vida seria um botão. Esse começo de juventude quero guardar sem arrependimentos.” (KITO,
2013, p. 121). E também em alguns sentimentos como o de amadurecimento.

PARA ALÉM DAS LÁGRIMAS

O fenômeno do auto luto e sua estrutura habitam na significação sobre a doença


degenerativa de Aya, que se abrolha de várias maneiras e de convênio com seu jeito de sentir
e vivenciar esta forma de luto, e também da maneira em como suportar a compreensão de
se ser um sujeito para a morte. Estes distintos sentidos se situam perante o quanto o
indivíduo têm no mundo as possibilidades de ser algo. O auto luto propõe assentimento da
finitude, autorizando uma ressignificação de anseios e impressões relativas à morte.
A prática de estudar o auto luto desvendou a problemática enfrentada pelos seres
humanos de assimilar a morte enquanto procuram respostas para a mesma. Foi realizável
constar comportamentos diversos defronte da morte, atrelados a história de vida relatada
por Aya, tal como a configuração de albergar e preparar o processo de morte. Compreende-
se que há variantes modos de enfrentamento do luto, que combóiam desde a negação,

28
Anais

revolta, barganha, aceitação e por fim a esperança no caso de pacientes com doenças
incuráveis.
O auto luto é um tempo vultoso, pois aparelha o paciente desvincular os elos que ele
tem em sua vida e permitir uma melhor compreensão da ideia de deixar o plano material. É
um compromisso que o sujeito deve assumir para aprender a conviver com a realidade da
morte. A análise das categorias permite afirmar que o sujeito no mundo é um indivíduo
único, repleto de possibilidades subjetivas e formas concretas de perceber, viver e vivenciar
a realidade. A partir da ideia de estar morrendo, nascem às palavras de Aya que uma das
formas que a mesma enxerga de encarar a morte.
A existência é sinalizada por possibilidades existenciais. O homem é um indivíduo de
probabilidades alcançadas durante a existência. Após receber o diagnóstico, Aya surgiu com
significados distintos baseados em seu tempo e modo de existência. Diante da finitude da
experiência e da possibilidade de morte, Aya exibe comportamentos distintos em sua
experiência de auto luto. Com isso em mente, considera-se importante o aprofundamento de
pesquisas relacionadas a essa temática envolvendo aqueles que passam por uma doença
incurável e tem que elaborar o auto luto da própria morte.

REFERÊNCIAS

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didático pedagógico ou de como as crianças escrevem e tecem considerações sobre o
ato de escrever. 2010. 64 f. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) -
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http://hdl.handle.net/11449/118365. Acesso em: 25 mai. 2022

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FLACH, K. et al . O luto antecipatório na unidade de terapia intensiva pediátrica: relato de


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29
Anais

KITO, A. 1 Litro de Lágrimas: Diário da Aya. Tradução: Karen Hayashida. São Paulo:
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2022.

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O FLÂNEUR, O MITO E O
OUTRO MUNDO
POSSÍVEL, EM DESEJO DE
KIANDA, DE PEPETELA
Adriano Guedes CARNEIRO (UFF)1

RESUMO

Esta comunicação tem como objetivo analisar O desejo de kianda (1996), do escritor
angolano Pepetela, sob a perspectiva de que o mesmo discute a construção do mito como
forma de recuperar os rumos da revolução/independência angolana. A kianda é o espírito
das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do Kinaxixi, bem
na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e cortaram a mafumeira, a sua árvore
sagrada. No romance, observamos esta força intemporal buscando recuperar seu território,
como força da natureza em face da cultura humana. Kianda precisa colocar abaixo os prédios
para recuperar seu lugar. As disputas políticas e a retomada da guerra civil, entre o MPLA –
Movimento pela Libertação de Angola e a UNITA – União Nacional pela Independência Total
de Angola – não importam, perante a força do espírito ancestral de kianda. A personagem
Carminda incorpora a transformação política do MPLA que, de movimento socialista passou
em 1992 para a defesa da economia de mercado, após o naufrágio da União Soviética. E seu
marido, João Evangelista é uma espécie de flanêur tecnológico que, mesmo no auge da sua
observação, não consegue perceber o que está acontecendo à sua volta. Aguarda, como todos,
calmamente a queda inevitável de seu prédio, como metáfora do fim do mundo em que todos
aguardam pacientemente nas suas rotinas, enquanto o mundo é destruído. Para tanto se

1Doutorando em Literatura Comparada e bolsista CAPES. Desenvolve a pesquisa com o título


provisório de: “Pepetela e o passado sobrevivente. E se o flanêur pudesse ser um cágado?” E-mail:
adrianoguedes.carneiro@hotmail.com

31
Anais

utiliza do pensamento de Aby Warburg, Walter Benjamin, George Didi-Huberman, Maria


Thereza Abelha Alves, entre outros.
Palavras-chave: kianda; flanêur; sobrevivência; resistência; passado colonial.

ABSTRACT

This communication aims to analyze The desire of kianda (1996), by the angolan writer
Pepetela, from the perspective that he discusses the construction of the myth as a way of
recovering the paths of the Angolan revolution/independence. Kianda is the spirit of the
waters of Kaluanda mythology and who inhabits the ancient Lagoa, and today Largo do
Kinaxixi, right in the central region of Luanda. From Lagoa, he passed to Largo and they cut
down the mafumeira, his sacred tree. In the novel, we observe this timeless force seeking to
recover its territory, as a force of nature in the face of human culture. Kianda needs to tear
down the buildings to regain her place. Political disputes and the resumption of civil war
between the MPLA – Movement for the Liberation of Angola and UNITA – National Union for
the Total Independence of Angola – do not matter, given the strength of the ancestral spirit
of kianda. The character Carminda embodies the political transformation of the MPLA, which
changed from a socialist movement in 1992 to the defense of the market economy, after the
sinking of the Soviet Union. And her husband, Joao Evangelista, is a kind of technological
flaneur who, even at the height of his observation, cannot perceive what is happening around
him. He calmly awaits, like everyone else, the inevitable collapse of his building, as a
metaphor for the end of the world in which everyone waits patiently in their routines, while
the world is destroyed. For that, it uses the thought of Aby Warburg, Walter Benjamin, George
Didi-Huberman, Maria Thereza Abelha Alves, among others.

KEYWORDS: kianda; flanêur; surviving; resistence; colonial past.

Primeiro eu quero agradecer aos organizadores do Iº Colóquio Internacional de


Teoria e Crítica Literária e do Iº Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividades:
Deslocamentos e Identidades e também aos organizadores deste Simpósio nº 1 sobre
“História e Literatura Africana em Língua Portuguesa Oficial”, através da Profª Drª Vanessa
Neves Riambau Pinheiro (UFPB) e a Profª Drª Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins
(UFRB) por terem aceito o resumo desta comunicação. Agradeço também à monitora
Olivânia Rocha e aos colegas com quem tenho a oportunidade de dividir esse espaço.
O objetivo desta comunicação é analisar o romance O desejo de kianda (1996), do
escritor angolano Pepetela, sob a perspectiva de que este livro discute a construção do mito
como forma de recuperar os rumos da revolução/independência angolana, principalmente
a abertura de mercado de 1992 e o fim do socialismo.
Pepetela é o grande nome da literatura angolana, forjado na luta pela independência
e na formação do novo país africano. É um contador de estórias, uma espécie de griot
moderno, na acepção mais elevada que este termo possa receber, pois foram eles – os griots
32
Anais

-, nas sociedades bantu, na maioria ágrafas, “os responsáveis por registrar e recontar, quando
necessário, informações valiosas e historicamente relevantes com precisão” (FOURSHEY et
al, 2019, p. 79). Entre uma gama de atividades e competências dentro do grupo comunal, eles
ofereciam coesão, senso de pertencimento e explicação sobre as questões fundamentais que
os envolviam, mantendo vivas as chamas da tradição. Tal como, guardadas as devidas
proporções, faz Pepetela em sua escrita, que tem o compromisso permanente com o
processo de construção de Angola.
Perambulando entre o factum e o fictum, o vencedor do Prêmio Camões de 1997 é o
autor de uma obra vasta e diversificada. Alguns dos seus principais textos versam sobre
acontecimentos relevantes para a história angolana, inspirados em fatos e eventos que o
próprio escritor testemunhou, ou poderia ter testemunhado, como por exemplo, em
Mayombe (1979), onde guerrilheiros, na região de Cabinda, debatem as dificuldades da luta
e do futuro país a ser construído, ou em Geração da utopia, em que também se discute o
processo de independência, mas cobrindo um tempo histórico maior (1961-1992), desde a
CEI – Casa dos Estudantes do Império até o desencantamento com os rumos da libertação
nacional2. Nestes livros, suas memórias pessoais transformam-se em ficção, pois eles
acompanham o trajeto de vida de Pepetela. O escritor foi para Lisboa com o fim de estudar
Letras, mas abandonou o curso e ingressou no MPLA – Movimento Popular para Libertação
de Angola; graduou-se em Sociologia, na Argélia e participou da guerra de independência.
Após o 11 de novembro de 1975, fez parte do governo até 1982, tendo sido vice-ministro da
Educação3, por sete anos. Passou, então, a lecionar na Universidade Agostinho Neto e
dedicou-se à carreira literária. Foi presidente e um dos fundadores da União dos Escritores

2 Geração da utopia centraliza seu enredo em um grupo de angolanos que se conhecem em Lisboa,
em razão, principalmente, da Casa de Estudantes do Império. Esta que de fato teve um papel muito
importante no processo de construção da independência de Angola. Essa “geração da utopia”, da qual
Pepetela também fará parte, é aquela que tomará parte ativa na luta pela libertação, mas também é
aquela que se desencantará com os rumos da independência e a impossibilidade de realização dos
ideais utópicos. Interessante é o significado do termo “utopia”, oriundo do livro de Thomas Morus, A
utopia, como algo que está sempre à frente; algo que buscamos. Se o alcançarmos, deixa de ser utopia
e só é utopia porque nunca o alcançamos e está sempre à nossa frente.

3 De 1976 até 1982.

33
Anais

Angolanos. E em 2002 recebeu o Prêmio Nacional de Cultura e Artes, pelo conjunto da obra,
em Angola4.
Em O desejo de kianda, não há a definição do que é a kianda. Sabemos que ela é o
espírito das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do
Kinaxixi, bem na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e, do momento em que
ocorre a narrativa, faz trinta anos atrás, por volta de 1966, cortaram a mafumeira, a sua
árvore sagrada. No livro no máximo são dadas algumas pistas e até uma conceituação
negativa, quando está presente a forte crítica à colonização, porque kianda não é uma sereia:

– Pode ser Kianda a cantar, Kianda se manifesta de muitas maneiras – disse


ele para Cassandra. – Umas vezes são fitas de cores por cima das águas, pode
ser um bando de patos a voar de maneira especial, um assobio de vento,
porque não um cântico?
– Tenho visto uns desenhos de Kianda. Metade mulher, metade peixe.
– Não – disse mais velho Kalumbo com súbita irritação. – Isso é coisa dos
brancos, a sereia deles. Kianda não é metade mulher metade peixe, nunca
ninguém lhe viu assim. Os colonos nos tiraram a alma, alterando tudo, até a
nossa maneira de pensar Kianda. O resultado está aí nesse País virado de
pernas para o ar5 (PEPETELA, 1995, p. 57).

Foi a colonização que destruiu o país. Ela retirou a alma da nação, alterou tudo e virou
o país de pernas para o ar. Aliás, usando outro elemento da cultura bantu: o cágado. Se ele
está de pernas para o ar é que o mundo saiu da sua ordem, virou de pernas para o ar.
Maria Thereza Abelha Alves, em “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, chama a
atenção para o fato de que somente a criança, Cassandra, e o mais velho, Kalumbo6, dão-se

4 Recentemente, em 24/11/2020, em sessão da Academia Angolana de Letras, quando Pepetela foi o


moderador para a realização de uma conferência, ministrada por Filipe Zau, reitor da Universidade
Independente de Angola, sobre a adoção das línguas africanas no ensino em Angola, o currículo do
autor de Mayombe foi apresentado pelo sociólogo Paulo de Carvalho. E, de todos os prêmios
recebidos pelo autor, foram citados apenas dois: o Camões de 1997 e o Nacional de 2002. Sem
dúvidas, os mais importantes.

5 País virado de pernas para o ar pode remeter ao cágado virado de pernas para o ar como símbolo
de que a ordem natural da coisa está ferida, conforme A gloriosa família – o tempo dos flamengos.
“Subvertia a ordem do mundo, punha o cágado de patas para o ar? Como um cágado de patas para o
ar ficou o meu dono, quando o major o chamou, uma semana depois, para lhe comunicar uma decisão
que tinha tomado, com a anuência de Hans Molt” (PEPETELA, 1997, p. 172).
6 Ver o texto de Maria Thereza Abelha Alves: “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, presente em
Portanto...Pepetela (2009), p. 179 e seguintes.

34
Anais

conta do que realmente está acontecendo com os prédios que estão caindo, ao longo do livro.
Kianda quer retomar a velha Lagoa, onde havia uma mafumeira e que agora é o Largo do
Kinaxixi:

Ali perto devia ser o sítio onde há trinta e tais anos derrubaram a mafumeira
de Kianda, quando construíram a praça. Toda aquela zona fora uma lagoa e
havia uma mafumeira7 que foi cortada e chorou sangue pelo cepo durante
uma semana. Ouviu a estória um dia, ali mesmo numa esplanada do Kinaxixi,
quando se sentou com o maior respeito à mesa onde se encontravam dois
escritores, Luandino Vieira e Arnaldo Santos, grandes sabedores das coisas
de Luanda8 (PEPETELA, 1995, p. 26).

Na sana de recuperar a antiga lagoa que agora é o Largo do Kinaxixi9, Kianda porá
abaixo todos os prédios construídos ao redor. As pessoas, os seus móveis e todas as
quinquilharias que possuem não desabam, mas flutuam até o chão.
Tudo isso acontece, em Luanda, em meio ao ligeiro processo de paz e à retomada, em
1992, da guerra civil, entre o MPLA – Movimento Popular pela Libertação de Angola e a
UNITA- União Nacional para a Independência Total de Angola.
A Guerra de Independência em Angola que começou em 1961 com a invasão da cadeia
de São Paulo por integrantes da UPA – União dos povos de Angola para libertar presos
políticos e se estendeu até 1974, quando a Revolução dos Cravos em Portugal fez cessar o
conflito armado. Em 11 de novembro de 1975, em Luanda, foi proclamada a Independência
por Agostinho Neto, líder do MPLA. O MPLA tinha um matiz socialista e recebia apoio de
Moscou e dos países do leste europeu. A independência foi contestada por outros grupos
como a UNITA e a FNLA – Frente Nacional para a Libertação de Angola e o país mergulhou
em guerra civil até 2002, quando houve assassinato do líder da UNITA, Jonas Savimbi, pondo
fim ao conflito.

7 A mafumeira, sumaúma ou samaúma (Ceiba pentandra) é uma planta tropical da ordem malvales
e da família malvaceae (antiga bombacaceae).
8 Linda essa passagem em que são convocados os dois escritores angolanos como detentores do
conhecimento e guardadores de memória. Fortalece a noção de que os escritores cumprem um papel
social como os antigos griots, como guardadores das antigas estórias.
9 Lagoa do Kinaxixi que ainda presenciamos em A gloriosa família – o tempo dos flamengos.

35
Anais

No romance, acompanhamos a trajetória das personagens Carmina Cara de Cu, ou


simplesmente CCC10 e seu marido João Evangelista. Ela é uma militante e quadro ativo da
direção do MPLA que cresceu muito na burocracia interna do partido e nestes tempos de
abertura econômica, após um período de pequena depressão pessoal, está se transformando
numa grande empresária com o negócio de importações. Após o fim da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, Angola em 1992 resolve deixar de lado a economia socialista e entrar
na economia de mercado. Do dia para a noite o MPLA deixa de ser socialista e passa a apoiar
o neoliberalismo, sem se apear do poder. Na obra de Pepetela, em muitos sentidos, CCC
antecipa outra personagem famosa de Pepetela, o Vladimiro Caposso de Os predadores
(2005), já que fará uso de sua posição política para auferir vantagens econômicas e
financeiras particulares claras.
João Evangelista, ao contrário, é o maior exemplo da passividade. Seu emprego de
fachada foi arranjado pela esposa. Passa o dia fazendo a guerra de mentira em jogos de
computador. Sua vida é contemplativa. Contempla as ações de Carmina, ainda que por vezes
seja instado a manifestar opinião sobre algum assunto. Mas em geral apenas observa.
Inclusive observa os prédios a cair11e as pessoas que vão ficando desalojadas:

João Evangelista resolveu interromper o jogo e ir deitar uma olhadela na


praça, embora o espetáculo já não fosse novo. De facto, era o mesmo de
sempre, com as pessoas a procurarem as suas coisas no entulho acabado de
se formar. O largo do Kinaxixi estava agora rodeado de escombros, excepto
no lado direito de quem desce, onde ficava o mercado (PEPETELA, 1995, p.
54).

João Evangelista é uma espécie de flâneur, um observador, um sonhador. Sua índole


de flânerie vai ainda mais longe, pois antecipa um novo tipo de flâneur – o indivíduo que
passará horas ao computador, no celular (telemóvel) em redes sociais, por exemplo,
acompanhando a vida alheia, contemplando as fotos, as mensagens, os memes e outras coisas
presentes no ambiente virtual. Poderíamos dizer que é o flâneur tecnológico.
Walter Benjamin, em Passagens, sugere a comparação entre a rapidez da
modernidade, da multidão, com a vagarosidade, a lentidão e a solidão necessárias ao flâneur.

10 Pepetela brinca com um certo gosto por siglas com o uso de CCC.
11 Será que os prédios caem como metáfora da abertura democrática, como desabitação e fim do
sonho da revolução angolana?

36
Anais

Tanto que o pensador berlinense aponta a linha de produção, auge do capitalismo industrial,
reivindicada pelo taylorismo (Criado pelo engenheiro norte-americano – e muito estudado
ainda em Administração de Empresas – Frederick Taylor, o chamado taylorismo é o sistema
em que se procura obter o máximo de produção gastando o mínimo tempo e esforço. Está
normalmente associado ao fordismo, relativo a John Ford, o criador da marca de automóveis.
Representa o auge do capitalismo industrial que transformará o operário – retirando-lhe
ainda mais sua humanidade – em uma máquina, como tão bem retratado no filme “Tempos
modernos” (1936) de Charles Chaplin) como a grande inimiga da flânerie.
Para Benjamin o flâneur desafia as vertentes do capitalismo, entre elas a pulsão pelo
consumismo, pela aquisição de bens, traduzida na ideia de que o tempo deve ser dotado de
utilidade e portante estimado em capital, como produção, como que a dizer: “Produza,
produza, produza!” grita o capataz olhando para o seu relógio12, enquanto o proletário labuta
até o próximo sinal da fábrica. Pois “time is money” diz o jargão atualíssimo. O flâneur, por
lado diametralmente oposto, na inutilidade da sua observação13, da sua atividade
contemplativa permanente, desafia a modernidade. Imóvel na sua condição queloniana, não
liga ao tempo, permanece apenas apreciando, olhando, assistindo, sem produzir
necessariamente utilidade (pelo menos segundo a ótica capitalista). Ainda que o flâneur
sinta-se atraído pelas luzes das galerias, das vitrinas, das passagens.
Em O desejo de kianda, Pepetela parece também nos dizer que existem forças
maiores do que a da conjuntura política, da organização social, por exemplo. São forças
ancestrais, muito antigas e que não devem ser desafiadas. São forças anteriores ao homem.
É a desmistificação do mito, dando-lhe uma localização histórica. A kianda é a representação
de uma Angola anterior à colonização. Pepetela também nos diz que não será somente o
elemento português que definirá os angolanos como angolanos, mas que seriam angolanos
com ou sem a chegada portuguesa (ou qualquer outro nome). Os portugueses são apenas
mais um elemento e não o fundamental. Pepetela manifesta assim uma tentativa de ruptura,

12 A concepção de controlar o tempo como ideia de poder aparece XV, das Teses sobre o conceito de
história (1940) de Walter Benjamin: “Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa
consciência se fez valer. Chegando o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos
de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres”
(BENJAMIN, 2016, p. 250).
13 Evidentemente, sob a ótica capitalista, toda a observação e agir do flâneur é inútil, pois não produz
mercadoria, não produz riqueza. É tempo perdido.

37
Anais

e de independência cultural, em face a uma cultura, digamos, lusófona. Ou, pelo menos,
procura se posicionar neste espaço lusófono em uma posição de menor submissão. Os países
colonizados do sul estão eternamente condenados a reproduzirem para o mundo a sua
condição subalterna ad infinitum?
É possível ainda pensar junto com George Didi-Huberman e Aby Warburg na ideia de
Nachleben que, embora construída num contexto histórico preciso: o do Renascimento do
quatrocento europeu. No entanto, associando-a à ideia de sobrevivência podemos
analogicamente aplicar à ideia de kianda, como sendo uma ideia que sobreviveu ao
colonialismo português. Diz Didi-Huberman:

Hoje tornamos a nos debruçar sobre essa ideia porque ela nos parece trazer
uma lição teórica apropriada para “refundar”, por assim dizer, alguns
grandes pressupostos de nosso saber sobre as imagens em geral. (…) O valor
geral da Nachleben resulta de uma leitura e, portanto, de uma interpretação
de Warburg: recruta apenas a responsabilidade de nossa própria construção
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 59).

Aby Warburg desenvolveu a ideia da Nachleben, através do Atlas de Mnemosyne, em


que, tomando por base a arte pictórica, os afrescos e pinturas renascentistas, e nas obras de
autoria de Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del Cossa e também nas de autoria de Poliziano
e Pico della Mirandolla14. Nesse Atlas há o recolhimento de imagens que sugerem, permitem
a conclusão de uma preservação, de uma sobrevivência de imagens de um tempo anterior.
Esse tempo é denominado como o tempo antigo e essas imagens sobreviventes são
entendidas como fantasmas, como oriundas do tempo dos fantasmas, por Warburg. Será que,
a partir da delineação do projeto de Warburg, é possível tecermos um mesmo raciocínio para
tentarmos explicar a sobrevivência de elementos da cultura angolana, pois ainda que não
estejamos trabalhando com algum tipo de arte pictórica, a literatura produz imagens em
nossa consciência a partir do texto lido, como cenas, objetos, ideias e ainda outras coisas.
Podemos imagina que a kianda é uma espécie de nachleben?
A destruição empreendida pela kianda no Largo do Kinaxixi parece nos alertar para
dois outros motivos: a necessidade de consertar os erros, pois é preciso desfazer para

14 Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del Cossa foram pintores. Ao passo que Poliziano e Picco della
Mirandola foram respectivamente draumaturgo e filósofo renascentistas. Referimos esses autores
como aqueles que tiveram textos ou obras publicadas por Warburg durante a sua vida.

38
Anais

refazer, para consertar todos os problemas e a outra questão é: por que as personagens
continuam com suas vidas normalmente enquanto o seu mundo em redor está sendo
destruído? Preocupação ambiental do autor, já que em nossa vida real também parecemos
assistir impávidos à destruição do nosso mundo?

REFERÊNCIAS:

ALVES, Maria Thereza Abelha. “O desejo de kianda: crônica e fabulação”. In CHAVES, Rita.
MACEDO, Tânia. Portanto…Pepetela. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução por Sérgio Paulo Rouanet. Revisão técnica por Márcio Seligmann-Silva.
Obras Escolhidas. Volume I. 8ª edição. 3ª reimpressão. São Paulo, Editora Brasiliense, 2016.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização por Willi Bolle. Tradução por Irene Baron,
Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. 1ª reimpressão. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2019.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos


fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto
Editora, 2013.

FOURSHEY, Catherine C. GONZALES, Rhonda M. SAIDI, Christine. África Bantu: de 3500


a.C. até o presente. Tradução por Beatriz Silveira Castro Filgueiras. Petrópolis: Editora
Vozes, 2019.

PEPETELA. Geração da utopia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

__________. O desejo de kianda. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996.

__________. Predadores. Rio de Janeiro, Língua Geral, 2007.

WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. Volume 1. Tradução por Cássio
Fernandes.

39
LITERATURAS AFRICANAS
PÓS-COLONIAIS: TENSÕES
ENTRE AS VISÕES DE
MUNDO DO COLONIZADOR E
DO COLONIZADO NAS
ESTÉTICAS DE LUANDINO
VIEIRA, GERMANO ALMEIDA
E MIA COUTO
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO)1

RESUMO

A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa impressão
que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um período
marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, conforme
Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2010), a pós-colonialidade não surge necessariamente
com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta da mesma forma
nos diferentes países desse continente. Uma vez que não existe um único modelo de sujeito
e de discurso pós-colonial, é preciso considerar as especificidades (geográficas, históricas,
culturais, econômicas e sociais) a partir das quais os enunciadores se apoiam para proferir
discursos de afirmação identitária. Tais especificidades, gestadas nas tensões próprias a cada

1 Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. E-mail: samira.letras@gmail.com

40
Anais

comunidade, podem ser observadas como pano de fundo das distintas realidades ficcionais
construídas por Luandino Vieira, Germano Almeida e Mia Couto. Posto isso, o presente
trabalho tem por objetivo refletir sobre narrativas (“A fronteira de asfalto”, “O dragão do
Atlântico” e “A viagem da cozinheira lagrimosa”) escritas pelos autores citados,
considerando a diferença na representação das figuras do colonizador e do colonizado.
Rompendo com os estereótipos criados e reproduzidos sobre a África pelos europeus, as
obras selecionadas para objeto de estudo revelam o desejo de livrar as culturas e as
identidades africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da
construção de um olhar crítico sobre a realidade local que denuncia as mazelas produzida
pela longa dominação do branco colonizador.

Palavras-chave: Luandino Vieira, Germano Almeida, Mia Couto, Literaturas Africanas em


Língua Portuguesa, Literaturas Pós-Coloniais.

ABSTRACT

The word “post-colonial”, thought in its most immediate sense, can give the false impression
that the resulting concept deals with a critical tendency born in a period marked by the end
of colonialism and that establishes a new order. However, according to Susana Pimenta and
Orquídea Ribeiro (2010), post-coloniality does not necessarily arise with the political
independence of African nations, nor does it manifest itself in the same way in the different
countries of that continent. Since there is no single model of post-colonial subject and
discourse, it is necessary to consider the specificities (geographic, historical, cultural,
economic and social) from which enunciators rely to convey discourses of identity
affirmation. Such specificities, gestated in the specific tensions specific of each community,
can be observed as a background to the different fictional realities constructed by Luandino
Vieira, Germano Almeida and Mia Couto. Having said that, the present work aims to reflect
on narratives (‘A fronteira de asfalto’, ‘O dragão do Atlântico’ and ‘A viagem da cozinheira
lagrimosa’) written by the aforementioned authors, considering the difference in the
representation of the colonizer and of the colonized. Breaking with the stereotypes created
and reproduced about Africa by Europeans, the works selected as object-matter of this study
reveal the desire to free African cultures and identities of colonialist images, discourses and
interpretations through the construction of a critical look at the local reality which
denounces the ills produced by the longstanding domination of the white colonizer.

KEYWORDS: Luandino Vieira, Germano Almeida, Mia Couto, African Literatures in


Portuguese Language, Post-Colonial Literatures.

A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa
impressão que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um
período marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, como
bem observam Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2013), a pós-colonialidade não surge
necessariamente com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta
da mesma forma nos diferentes países desse continente. Os efeitos do colonialismo, diga-se
de passagem, estão presentes ainda nos dias de hoje, posto que os antigos colonizadores

41
Anais

apenas mudaram as táticas e as formas de dominação: saímos (nós, países da periferia do


capitalismo) de uma estrutura de controle da metrópole em relação à colônia para,
posteriormente, sermos atingidos por uma relação de tutela e intervenção dos países de 1º
mundo sobre os de 3º mundo e chegamos, atualmente, na política de dependência do sul-
global perante o norte-global.
Por isso, a possível ideia de ruptura com os processos colonizadores possibilitada
pela junção linguística “pós-colonial” não se sustenta. O termo “pós” deve ser compreendido,
portanto, no sentido de tentativa de ultrapassar, por meio da desmontagem dos discursos do
colonizador, as epistemologias universalizantes de origem europeia que resultaram em
imagens negativas do continente africano, desconstrução que visa recuperar a história e as
identidades das culturas africanas silenciadas, mistificadas e inferiorizadas pelo
colonialismo. Para se contrapor ao colonialismo, por sua vez, é necessário reconhecer a
brutalidade desse sistema que, juntamente com o capitalismo e o imperialismo, sustentou o
projeto da modernidade e viabilizou a ordem econômica atual engendrada pelo racismo, pela
subjugação dos sujeitos não-brancos.
O conceito de pós-colonial está intimamente relacionado aos movimentos de
resistência pela independência ocorridos em África nas décadas de 1950, 1960 e 1970 e pode
ser compreendido, segundo Luciana Ballestrin (2017), em três grandes fases. A primeira
delas, o pós-colonialismo anticolonial, englobaria a produção dispersa do Pan-Africanismo e
de intelectuais militantes ligados ao marxismo revolucionário, a exemplo de Amílcar Cabral,
Aimé Césaire e Frantz Fanon. A segunda fase, denominada pós-colonialismo canônico, seria
marcada pelo estudo de Edward Said que deu origem à obra “Orientalismo”. Tal tendência -
que dialoga com os estudos pós-estruturalistas, com o desconstrutivismo, com a teoria
crítica e com os estudos literários - investiga os efeitos da colonialidade, tendo por foco a
desconstrução do olhar da Europa sobre a África. Entre os seus principais representantes,
além de Said, estão Stuart Hall, Homi Bhabha e Gayatri Spivack. Por fim, a terceira fase
consistiria na perspectiva decolonial, na qual se observa a radicalização da crítica à
modernidade com o retorno à práxis revolucionária, sobretudo, por meio da relação
estabelecida entre o grupo de estudos subalternos (desenvolvido ao longo da década de
1970 no sul asiático) e grupos latino-americanos reunidos em torno da temática
“Modernidade/Colonialidade”.
Diante desse breve quadro histórico é possível perceber que não existe um único
modelo de sujeito e de discurso pós-colonial (PIMENTA; RIBEIRO, 2013). E isso implica dizer

42
Anais

que é preciso considerar as especificidades (geográficas, históricas, culturais, econômicas e


sociais) a partir das quais os enunciadores se apoiam para proferir discursos de afirmação
identitária. A validade dessa premissa pode ser verificada quando analisamos, de forma
comparada, as estéticas de Luandino Vieira, Germano Almeida e Mia Couto.
A maior parte da produção de Luandino Vieira foi gestada antes da independência de
Angola em relação à metrópole portuguesa (1975), por isso, a literatura do autor já trazia
em seu âmago a força da resistência ao colonialismo. Além disso, o escritor atuou de forma
ativa nos movimentos de libertação do país, pagando com a própria liberdade pelo seu
engajamento político – ao todo, Luandino permaneceu preso por onze anos acusado de
associar-se ao MPLA. Esse aspecto combativo pode ser verificado no conto “A fronteira de
asfalto”, publicado na obra A cidade e a infância (2007), no qual o escritor aborda de forma
crítica a segregação entre negros e brancos, refletida inclusive no espaço da cidade.
Na narrativa em questão, Ricardo, um menino negro, e Marina, uma menina branca,
começam a ter problemas para manter uma relação de amizade iniciada na infância. A família
da jovem (e a sociedade como um todo, encarnada pela instituição escolar citada
rapidamente no conto) não vê com bons olhos a presença de Ricardo no mesmo local e se
inserindo (ainda que de forma periférica) no círculo social destinado ao colonizador. Convém
acentuar que a narrativa deixa evidente tal separação na materialidade do espaço: Marina
vive em uma casa confortável cercada por ruas asfaltadas, enquanto Ricardo habita uma
pequena taipa rodeada por estradas de terra. É possível transitar pelos diferentes lugares
(por isso, o autor fala em fronteira e não em barreira), mas não há mobilidade sem riscos. De
fato, o desfecho do conto enfatiza a tensão vivida constantemente pelo colonizado, bem como
a impossibilidade de sua integração em uma sociedade estruturada em torno do privilégio
branco e da exclusão do elemento negro: Ricardo morre ao bater com a cabeça no meio fio
na tentativa de fugir da repressão policial.
O clima de tensão e de marginalização da população negra presente no conto de Vieira
diz muito sobre a forma violenta como se deu o processo de independência em Angola. O
país conseguiu a sonhada autonomia a duras penas, inicialmente pela organização da luta
armada, depois pelas mãos do MPLA, movimento que se firmou como força política no país
entre 1965 e 1970. Não bastasse todas as dificuldades inerentes à guerra contra o julgo
colonizador, os movimentos pró-independência apresentavam-se fraturados pelos
desacordos ideológicos: o MPLA (o maior deles) era marxista-leninista; o FNLA era
anticomunista; e a UNITA estabeleceu laços de colaboração com a África do Sul, onde

43
Anais

vigorava o apartheid. Conforme Zoraide Silva (2016, p. 173-174), houve inclusive momentos
em que a elite branca local se organizou com o objetivo de implantar no país uma “solução ‘à
rodesiana’”, que nada mais era que uma cópia do regime segregacionista instaurado na
Rodésia do Sul. De acordo com a pesquisadora, vencer o colonizador em um momento
marcado pela divisão do mundo não foi suficiente: “a guerra civil sobreviveu à própria
Guerra Fria. Seus desdobramentos, infelizmente, continuam a afetar a Angola dos dias de
hoje” (SILVA, 2016, p. 179).
Germano Almeida, por sua vez, parece abordar a tensão entre colonizador e
colonizado, buscando reforçar certa necessidade de defesa da identidade nacional
caboverdiana. A crônica “O dragão do Atlântico”, publicada em Estórias Contadas (1998), é
um exemplo dessa postura, uma vez que o texto ironiza uma suposta tentativa de aculturação
por uma nova nação, a chinesa, em um momento em que Cabo Verde, independente, buscava
se inserir dentro da nova ordem mundial. Em determinado trecho, lemos:

...as nossas casas foram sobressaltadas por uma rouca e sedutora voz que
diretamente dos estúdios da Rádio Nacional nos comunicava a ruidosa
novidade de que o nosso pacato arquipélago estava em breve destinado a ser
o “Hong Kong de África”. Assim surpreendidos por tão afrontosa ameaça, a
nossa imaginação entrou em imediato pânico coletivo. Por que Hong Kong
se já somos Cabo Verde? perguntávamos. (ALMEIDA, 1998, p. 28)

Na citação fica evidente a certeza de uma identidade nacional com contornos bem
estabelecidos. É importante assinalar que Cabo Verde, diferentemente de outras nações
africanas marcadas por disputas internas entre grupos étnicos, não teve grandes
dificuldades em alcançar certa coesão identitária no pós-independência, uma vez que a
mestiçagem entre brancos e negros ocorreu em larga escala durante a colonização e
viabilizou a ascensão social da população mestiça (MARTINS, 2009, p. 47). Diante de um
passado recente regido pelo colonizador europeu, o narrador da crônica se recusa a aceitar
a possibilidade de uma nova tentativa de dominação nos planos econômico, político e
cultural. Rejeitando a figura do dragão chinês, o cronista apresenta a tartaruga como símbolo
da cabo-verdianidade:

...nenhum outro animal é melhor para nos caracterizar do que a tartaruga.


[...] carrega com ela não apenas a paciência dos séculos como a sua própria
esperança. [...] Com esforço e trabalho pode ser que cheguemos a uma
identificação tão completa e perfeita que quando se encontrar escrito

44
Anais

“deixemos viver as tartarugas” se comece a ler “deixemos viver os cabo-


verdianos”. (ALMEIDA, 1998, p. 30)

A comparação, um tanto irônica, entre o povo de Cabo Verde e a tartaruga é de uma


preciosidade literária irretocável. O animal, típico da região, já foi parte da alimentação local,
aspecto que incorporaria o nativismo, a peculiaridade espacial, à identidade nacional. Além
disso, a imagem de longevidade e de esperança da tartaruga, construída no texto, consegue
representar a perseverança da luta pela independência, ao mesmo tempo em que critica a
lentidão desse processo. Vale lembrar que Cabo Verde não alcançou sua autonomia por meio
da luta armada, mas com base na negociação diplomática com o governo português –
pacifismo que casa muito bem com a figura da tartaruga. Assim sendo, a ficcionalização do
slogan estatal “deixemos viver os cabo-verdianos” é significativo diante dos fatos históricos,
pois ao invés de propor uma atitude reativa e violenta de autoafirmação, busca antes a
compreensão alheia (do colonizador) por meio de um pedido, uma súplica.
Em Mia Couto, quando se trata de delinear a identidade nacional moçambicana, há
momentos em que se percebe certa tentativa de conciliação entre o colonizador e o
colonizado, mas sem o apagamento das violências perpetradas pelo branco europeu. É o que
acontece no texto “A viagem da cozinheira lagrimosa”, presente em Contos do nascer da terra
(2014). Os dois protagonistas da narrativa são sujeitos incompletos. De um lado, temos o
sargento colonial Antunes Correia e Correia que perdeu parte do corpo ao pisar em uma
mina terrestre; de outro, a cozinheira Felizminha, empregada do sargento, que se queixa de
não ser “alguém”, vendo-se, portanto, como inferior, em falta. Apesar de se sentir
insignificante, Felizminha possui um grande dote: seu tempero inconfundível, obtido por
meio de suas lágrimas derramadas propositalmente nas panelas para dar um delicado sabor
aos pratos. Assim, como sugere o próprio nome da personagem, a felicidade do patrão é ter
para si uma serviçal capaz de alimentá-lo com a melhor comida, produzida graças às tristezas
de outros tempos vividos por essa mulher negra. Não obstante as diferenças raciais, sociais
e econômicas, a relação das personagens é afetuosa.
Felizminha cuidou do sargento, com todo o desvelo, quando este sofreu o acidente
que o mutilou; Antunes, por sua vez, se mostra preocupado com a condição da cozinheira.
Não é preciso outros ingredientes para que essas duas metades de gente se tornem um só
ser, um casal. Em certo momento, a empregada oferece a solução para a solidão do patrão, a
saber: arranjar uma mulher para dar sentido à vida. E ele, embora afirmasse que não se dava

45
Anais

bem com as pretas, descobre-se apaixonado pela gorda cozinheira proveniente do litoral,
onde a maresia faz farfalhar as folhas dos coqueirais. Na sequência dos acontecimentos,
Antunes convida Felizminha para viajar, sem avisar-lhe o destino. A empregada aceita, ainda
que temorosa da ideia de habitar uma terra de branco. O desfecho do conto é de uma beleza
tão singela quanto o tempero atribuído à personagem:

Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança.


Então o sargento, perante o olhar público, deu-lhe a mão. Nem se
entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos
envergonhados. _Vamos – disse ele. Ela olhou os céus, receosa por, daí a um
pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na
velha carrinha, mas para o seu espanto Correia não tomou a direção do
aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e
perguntou: Para que lado fica essa terra dos coqueiros? (COUTO, 2014, p. 22)

No conto, não é o negro que precisa se encaixar na realidade e nos modelos do branco
europeu, mas este que busca fazer do território africano o seu lar, adaptando-se, em prol do
coletivo. Juntos os dois encenam a metáfora do povo moçambicano. Na literatura de Couto,
toda ela produzida no pós-colonialismo, há a defesa de um pensamento mestiço (PIMENTA;
RIBEIRO, 2010). Portanto, a refundação de Moçambique, enquanto nação independente, não
implica no retorno mítico a uma África primitiva destituída do elemento branco e sem o
conflito identitário. Não por acaso esse modo de estruturação da sociedade aparece na ficção
do escritor.
Segundo Marçal Paredes (2014), a instauração de um partido único (a Frelimo) no
período da primeira república foi decisiva para a construção de uma identidade nacional
menos fragmentada, haja vista a diversidade de comunidades tribais existentes em
Moçambique. Devido aos conflitos étnico-raciais, a identidade moçambicana não se apoiou
em um retorno às origens, às identidades tribais, mas numa recusa tanto destas últimas,
quanto do legado do colonizador. Nesse sentido, restava apenas olhar para o futuro e tentar
traçar uma identidade nova, focalizando o vir a ser do país (PAREDES, 2014, p. 146). No
conto de Mia Couto, a viagem de núpcias empreendida pelo sargento e pela cozinheira condiz
com essa tentativa de unificar as classes e construir um novo espaço social.
Por muito tempo, a historiografia da África foi pensada por um prisma europeizante,
de base iluminista, que condenou os países desse continente a uma história periférica, um
apêndice, em relação àquela maior, tida por universal. Nesse contexto, os valores do velho
mundo europeu (tais como a hierarquização social em classes e o uso da escrita para

46
Anais

documentar a história nacional) foram empregados para a análise das sociedades africanas,
resultando na desqualificação de todas as culturas, tidas como tribais e incivilizadas. Dado
esse olhar negligente, mal intencionado e mal balizado em termos de teoria crítica, a África
passou a ser tratada como um país uniforme e atrasado ao invés de ser pensado como o
continente rico e plural que de fato é. Somente após o século XX, com a ascensão dos
discursos pós-coloniais e o surgimento da intelectualidade africana, as mistificações em
torno do território africano começam a ruir. As obras dos escritores mencionados aqui são
uma amostra dessa tendência, pois revelam esse desejo de livrar as culturas e identidades
africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da reescrita de suas
próprias narrativas nacionais pelas mãos dos filhos da terra.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Germano. Estórias contadas. Lisboa: Caminho, 1998.

BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Modernidade/Colonialidade sem “Imperialidade”?


O Elo Perdido do Giro Decolonial. Revista Dados, Rio de Janeiro, vol. 60, nº 2, p. 505-540,
2017.

COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

MARTINS, Amarilis Barbosa. Relações entre Portugal e Cabo Verde antes e depois da
independência. 2009. 115 f. Dissertação (Mestrado em Espaço Lusófono: Lusofonia e
Relações Internacionais) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2009.

PAREDES, Marçal de Menezes. A construção da identidade nacional moçambicana no pós-


independência: sua complexidade e alguns problemas de pesquisa. Anos 90, Porto Alegre,
vol. 21, nº 40, p. 131-161, dez. 2014.

PIMENTA, Susana; RIBEIRO, Orquídea. O sujeito pós-colonial em Castro Soromenho,


Luandino Vieira e Mia Couto. In: MOREIRA, Fernando; RIBEIRO, Orquídea (Ed.). Mosaicos
Culturais I: Olhares e Perspectivas. Trás-os-Montes e Alto Douro: CEL, 2013. p. 9-21.

SILVA, Zoraide Portela. Guerra colonial e independência de Angola: o fim da guerra não é o
fim da guerra. Transversos, Rio de Janeiro, vol. 7, nº 7, p. 154-184, set. 2016.

VIEIRA, José Luandino. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

47
ENTRE A IDENTIDADE
NACIONAL E A CONDIÇÃO
FEMININA: BREVE ANÁLISE
COMPARATIVA DAS OBRAS
DE NOÉMIA DE SOUSA,
CONCEIÇÃO LIMA E ANA
PAULA TAVARES
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO) 1

RESUMO

A tentativa de circunscrever as características que fundamentam o universo poético e


estético de um escritor já é, em si mesma, uma tarefa complexa. Essa dificuldade se amplifica
consideravelmente quando o pesquisador tem diante de si uma obra vinculada a uma
“vertente” ainda controversa dentro dos Estudos Literários, como é o caso da escrita
feminina. Apesar de nascer cercada de pré-julgamentos, a categoria “literatura feminina” tem
sido utilizada atualmente de forma positiva (e, muitas vezes, reivindicatória) por autoras
conscientes de que a sua condição de mulher atravessa a apreensão da linguagem e, logo, a
sua produção. Este é o caso de Noémia de Sousa (moçambicana), Conceição Lima (são-
tomense) e Ana Paula Tavares (angolana), poetas que, quando analisadas
comparativamente, revelam partilhar de um mesmo território imagético, demarcado pela
performance das identidades (nacionais e de gênero). Tal semelhança provém não só da
língua oficial compartilhada, mas do sentimento de pertencimento a um continente que,

1 Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. E-mail: samira.letras@gmail.com

48
Anais

constituído de nações plurais e ricas em termos de cultura, sofreu quase em sua totalidade
com os efeitos perversos do colonialismo perpetrado pelos países europeus desde o período
moderno. Na poesia das autoras, subsiste em maior ou menor grau, o grito de liberdade, o
desejo de independência (do colonizador e do patriarcado). O presente trabalho tem por
objetivo refletir sobre a produção poética das escritoras citadas, visando identificar dois
núcleos comuns: um deles, centrado na reelaboração da identidade nacional; enquanto o
outro trata da construção da identidade da mulher negra africana.

Palavras-chave: Noémia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula Tavares, Literaturas


Africanas em Língua Portuguesa, Escrita feminina.

ABSTRACT

The attempt to circumscribe the characteristics that underlie the poetic and aesthetic
universe of a writer is, in itself, a complex task. This difficulty is considerably amplified when
the researcher has before him/her a work linked to a “trend” that is still controversial within
Literary Studies, as is the case of women’s writing. Despite being born surrounded by pre-
judgments, the category “female literature” has currently been used in a positive (and often
demanding) way by authors who are aware that their condition as a woman goes through
the apprehension of language and, therefore, its production. This is the case of Noémia de
Sousa (Mozambican), Conceição Lima (Sao Tome and Principe) and Ana Paula Tavares
(Angolan). These poets, when comparatively analyzed, reveal that they share the same
imagery territory, demarcated by the performance of gender and national identities. This
similarity comes not only from the shared official language, but also from the feeling of
belonging to a continent made up of plural and culturally rich nations and that suffered
almost entirely from the perverse effects of colonialism perpetrated by European countries
since the modern period. In the authors’ poetry, to a greater or lesser degree, the cry for
freedom, the desire for independence (from the colonizer and patriarchy) subsists. The
present work aims to reflect on the poetic production of the aforementioned writers, aiming
to identify two common nuclei: one is focused on the re-elaboration of national identity,
while the other deals with the construction of the identity of black African women.

KEYWORDS: Noémia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula Tavares, African Literatures in
Portuguese Language, Women’s writing.

A leitura comparada da obra poética de Noémia de Sousa (moçambicana), Conceição


Lima (são-tomense) e Ana Paula Tavares (angolana) revelam um universo comum entre as
diferentes escritoras provenientes de países africanos falantes da língua portuguesa. Tal
semelhança provém não só da língua oficial compartilhada, mas do sentimento de
pertencimento a um continente que, embora constituído de nações plurais e ricas em termos
de cultura, sofreu quase em sua totalidade com os efeitos perversos do colonialismo
perpetrado pelos países europeus desde o período moderno. Na poesia das autoras, subsiste
em maior ou menor grau, o grito de liberdade, o desejo de independência. A diferença de
intensidade será definida pelo contexto histórico de produção das obras: Sousa escreve em

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um momento em que seu país sofria um regime repressor, enquanto Lima e Tavares
produzem literatura no período pós-independência, nos tempos de “paz”, razão pela qual as
duas últimas poetisas já não precisam reivindicar a identidade nacional, exaltar os heróis da
terra e combater o inimigo estrangeiro (AMORIM, 2020). O período pós-colonial é marcado,
sobretudo, pela institucionalização do cânone e das estéticas de teor revolucionário. A nova
poesia revisita a memória nacional sem precisar levantar bandeiras, além de abrir o campo
literário para a experimentação estética e para a reflexão sobre outras temáticas. Assomado
a isso, a singularidade do ser mulher, em face às opressões do patriarcado, constitui um outro
ponto de contato ao qual, ouso dizer, nenhuma escritora consegue fugir, ainda que negue a
classificação de “literatura feminina” devido ao peso negativo de literatura menor
(secundária, de gueto) que tal designação recebeu e ainda recebe por parte da crítica
especializada. Ao ler a obra das autoras é possível, portanto, identificar dois núcleos comuns:
um deles, diz respeito à busca pela reelaboração da identidade nacional; enquanto o outro
trata da construção da identidade da mulher negra africana. A seguir, pretendo demonstrar
como as poetas supracitadas trabalham de forma inovadora esses aspectos.
Noémia de Sousa é considerada a mãe da literatura moçambicana, dado o caráter
fundador de sua obra, detentora de certa expressão identitária e de teor combativo. De
acordo com Petra Goricki (2018), a autora publicou o seu primeiro poema no jornal
Mocidade Portuguesa antes dos vinte anos, passando a colaborar posteriormente com o
jornal O Brado Africano, enquanto chefe responsável pela página feminina. Começou
timidamente, usando abreviaturas do seu nome e assinando com pseudônimos, sendo Vera
Micaia o mais famoso deles. Foi em Portugal, após aproximar-se de figuras centrais da luta
pela independência, a exemplo de Amílcar Cabral, que a poeta passou a criar cada vez mais
orientada pelo sentimento revolucionário. Nesse sentido, arte e política se apresentam
alinhadas no verso sousiano, servindo de combustível estético para o desejo de ver o país
livre do colonialismo. Convém lembrar que a autora teve sua única obra publicada em livro
apenas um ano antes de seu falecimento, dada a censura pela qual passava Moçambique nos
tempos de luta pela independência. Antes disso, os poemas circularam de forma esparsa em
jornais e revistas ou clandestinamente por meio de uma versão fotocopiada composta de 40
poemas (OLIVEIRA, 2008).
Sangue negro é uma obra organizada, subdividida por temáticas, a saber: Nossa Voz;
Biografia; Munhuame, 1951 (nome da cidade moçambicana onde a poeta passou parte da
vida); Livro de João (dedicado ao preso político João Mendes, amigo da autora); Sangue

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Negro e Dispersos. As temáticas exploradas na antologia tratam da solidariedade racial, da


representação do povo oprimido, da resistência ao colonialismo, da reivindicação das
origens africanas ancestrais, do cansaço diante das dificuldades de luta pela liberdade, da
mãe negra. Ainda que o eu-lírico fale na primeira pessoa do singular em alguns dos poemas,
os versos de Sousa fazem ecoar a voz coletiva do povo moçambicano (GORICKI, 2018). Em
razão dessa especificidade, a crítica especializada associa a obra da poeta ao movimento
neorrealista devido à representação da miséria vivida pelas classes mais baixas e pelo tom
de denúncia social. Tais elementos são observáveis no poema “Negra”:

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos


quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de África.

Mas não puderam.


Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados


foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE (SOUSA, 2001,
[n.p.])

A leitura do poema não deixa dúvidas sobre a centralidade do papel da mulher negra
no continente, associando-a também à figura da mãe África. Em especial, a poeta denuncia
as falsas imagens (estereotipadas, exóticas) disseminadas sobre esse território pelos povos
de outros continentes, ressaltando que somente os da terra são capazes de desvendar e

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cantar os mistérios da mãe negra. Algo semelhante se verifica no poema “Sangue negro” que
se constitui como um louvor ao continente, à mãe, e denuncia as mazelas causadas pelo
colonialismo. A poeta canta a beleza de suas raízes metaforizadas no som do batuque,
reproduzido por meio de onomatopeia, e no sangue, signo relacionado ao elo familiar
(GORICKI, 2018). Os poemas citados são em verso livre, abusam da expressão oral da língua
e da mistura linguística, além de recuperar a imagem do tambor para trazer certa
ritualização ao ato de narrar as dores de seu povo tal como o faz um mestre Griot.
Por sua vez, Conceição Lima também se debruça sobre a construção identitária,
buscando revelar as marcas que definem a cultura e o povo de São Tomé e Príncipe, mas sem
incorrer nos essencialismos e idealizações. No livro A dolorosa raiz do micondó, o leitor pode
encontrar poemas que criticam o colonialismo e reverberam o canto de libertação ao mesmo
tempo em que falam das disputas internas pelo poder, a exemplo de “Anti-epopéia”:

Aquele que na rotação dos astros


e no oráculo dos sábios
buscou de sua lei e mandamento
a razão, a anuência, o fundamento

Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha


Aquele cujo trono dos mortos provinha
Aquele a quem a voz da tribo ungiu
chamou rei, de poderes investiu

Por panos, por espelhos, por missangas


por ganância, avidez, bugigangas
as portas da corte abriu
de povo seu reino exauriu. (LIMA, 2012, p. 20)

Nesse poema, surge aos olhos do leitor a figura do chefe de uma tribo responsável por
facilitar a dominação colonial em troca de bugigangas, por ganância. Em Lima, o
pertencimento identitário está vinculado a certa nativização, diferenciando-se da vertente
que apela aos mitos ancestrais. Mais que isso, conforme Naduska Palmeira (2012), a poética
da autora não reduz a identidade aos sentimentos patrióticos, nem o feminino aos lugares
convencionais. É antes plural e diversa. Ao tratar da identidade, a poeta considera o novo
contexto do mundo globalizado, das grandes migrações, do esfacelamento do eu frente a essa
realidade transitória. Esse aspecto pode ser verificado, por exemplo, no poema “Canto
obscuro às raízes”:

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Em Libreville
não descobri a aldeia do meu primeiro avô.
[...]
O meu oral avô
não legou aos filhos
dos filhos dos seus filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido. (LIMA, 2012, p. 11-13)

Como o próprio título sugere, o eu-lírico se depara com a impossibilidade de


rastreio das origens. Tal dificuldade, abordada no poema, faz um paralelo ao fato histórico
relativo à forma de ocupação desse território. Segundo relatos históricos, São Tomé e
Príncipe era uma ilha deserta até o século XV, sendo povoada pelos portugueses e por
negros escravizados de outras regiões da África durante o período das grandes navegações
(GONÇALVES; PEREIRA, 2020). Trata-se, portanto, de uma nação crioula, marcada pela
mistura cultural de diferentes povos e nações (entre elas, Moçambique, Serra Leoa, Benin,
Angola e Cabo Verde) em situação de trânsito (seja ele voluntário ou forçado). Esse aspecto
é exemplarmente observável no poema “Kalua”, presente em O útero da casa, no qual o
processo de migração e mestiçagem, que promoveu o nascimento do povo santomense, é
belamente representado pela figura de uma mulher, cuja aparência, vestimenta e
linguagem remontam às terras moçambicanas.

Teu nome tão breve e tão outro


Sem nenhum adorno
Tua voz tão prestes, tão pouca no Budo-Budo
Tua saia de riscado, de pano soldado
Tua ração de úchua, teu peixe salgado
Teu jeito de dizer parana em vez de banana

Tuas mãos delgadas, meninas


Tão mãos, tão servas, multiplicando as horas
Teu canto de além-mar e de ilha
Tua estatura anciã na saudade detida

E Magaída, tua filha


que nunca a Moçambique foi e diz quitxibá. (LIMA, 2004, p. 34)

No poema, o eu-lírico assinala que a filha de Kalua, chamada Magaída, embora nascida
em São Tomé, usa palavras de origem outra, demonstrando que algo das raízes permanece
mesmo quando ocorre a mistura étnica. Tal poema também nos permite observar como o
feminino é trabalhado pela poeta sem idealizações, com um olhar quase antropológico. Kalua
é uma mulher das classes baixas, cuja vida se resume a servir aos outros em silêncio. A poeta

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faz, assim, uma crítica à opressão de gênero, humanizando a personagem que é descrita com
delicadeza. O corpo feminino, esgotado pelo trabalho, é também o corpo que gera o povo
miscigenado de Moçambique.
Já a poética de Ana Paula Tavares, quando retoma a tradição cultural, volta os olhos
para o mundo agrário da vida coletiva. Esse olhar, contudo, também não será idealizado: a
crítica à forma opressora de tratamento às mulheres nas sociedades tribais é abordada em
diferentes poemas. Tavares, em sua obra, parte de outro paradigma, diferente do da tradição
que ora precisava combater o colonialismo e o Estado opressor, ora refundar os valores
nacionais de seu povo, para tanto buscando uma compreensão identitária e cultural
unificadora e ancestral. Em Ritos de passagem, a poeta se vale de metáforas de frutos para
tratar de uma realidade concreta, cotidiana, campestre: os ciclos da vida, o amor, as crianças,
a liberdade, enfim, aspectos que caracterizam as sociedades pastoris. O erotismo e o amor
também são abordados a partir dessa realidade local, rural. Ao escolher retratar as vivências
das mulheres do meio rural e dar voz aos pastores do sul, Tavares reestabelece a
humanidade do corpo social, contestando as representações estereotipadas vinculadas a
essa parte da população e valorizando sua cultura. A sensualidade, inerente à escolha das
imagens, é a marca do poema “A abóbora menina”:

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos


vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela desaguam todos os rapazes. (TAVARES, 2011, p. 19)

Acima, o leitor pode encontrar um exemplo significativo da estética da autora que fala
do corpo erotizado feminino a partir de elementos da natureza. O próprio título já sinaliza a
fusão: a menina é como a abóbora, guarda segredos em seu ventre jovem e redondo, onde
futuramente os rapazes desaguarão. Nesse sentido, Tavares rompe com o imaginário da
mulher purificada, impedida de perceber o próprio corpo e seus desejos eróticos. É também
comum na poesia de Tavares a referência a signos caracterizados pela cor vermelha (o vinho,

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o sangue, o fogo) para retratar a fertilidade, aliando ritualização e erotismo visando


sacralizar os desejos do corpo (NUNES; LIMA, 2021). Os sentidos sensoriais são
constantemente inseridos nos versos para conectar o eu-lírico à natureza.
A análise comparativa das estéticas de Sousa, Lima e Tavares demonstram a
preocupação dessas poetas em revisitar criticamente tanto a identidade nacional, marcada
pelas violências do colonialismo, quanto a identidade feminina, atravessada pelo machismo
vigente. Convém assinalar as dificuldades enfrentadas pelos países africanos no pós-
independência: Moçambique, São Tomé e Príncipe e Angola mergulharam em guerras civis
sangrentas por longo período. Por tal razão, a questão nacional permaneceu na ordem do dia
mesmo com a queda do regime colonial, sendo que esta temática assumiu novas vestes. Logo,
é preciso considerar as especificidades das produções artísticas a partir dos contextos locais.
Em resumo, na poesia de Noémia, poetisa que escreve durante o período colonial,
observa-se um desejo mais premente de libertação e um sentimento ufanista ao falar de seu
país e continente, sendo que a representação da mulher está intimamente ligada ao projeto
de valorização da África, a mãe. Já na obra de Conceição, a identidade nacional é revisitada a
partir dos desdobramentos históricos, de modo crítico, sem deixar-se limitar pelos
sentimentos patrióticos, posto que a autora escreve após a independência. A tônica crítica
também acompanha a representação feminina, abordada a partir dos silenciamentos e
opressões sofridas pelas mulheres dentro das sociedades tradicionais africanas. Por fim, na
poesia de Ana Tavares, o foco se dá na representação da população do interior rural,
valorizando essa identidade tão discriminada na sociedade angolana. Ao se voltar para a
figura feminina, a autora aponta para um rumo inovador que reposiciona a mulher dentro
da literatura enquanto corpo atravessado pelo desejo erótico.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Bernardo Nascimento. O local e além: as poéticas em trânsito de Paula Tavares e


Conceição Lima. Via Atlântica, São Paulo, nº 38, p. 221-250, dez. 2020.

GONÇALVES, Elén Rodrigues; PEREIRA, Prisca Augustoni de Almeida. A poética da relação


na obra de Conceição Lima. NEPA/UFF, Niterói, vol. 12, nº 25, p. 31-42, jul./dez. 2020.

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Anais

GORICKI, Petra. A poesia de Noémia de Sousa e a Negritude. 2018. 63 f. Dissertação


(Mestrado em Letras) – Departamento de Estudos Românicos da Universidade de Zagreb,
Zagreb, 2018.

LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó: poesia. São Paulo: Geração Editorial, 2012.

_____. O Útero da Casa. Lisboa: Caminho, 2004.

NUNES, Fernanda Cardoso; LIMA, Maria Graciele de. Uma poética dos sentidos na obra de
Gilka Machado e de Ana Paula Tavares. Cacto, Petrolina, vol. 1, nº 1, p. 79-91, 2021.

OLIVEIRA, Jurema José de. A poética e a prosa de: Alda Lara, Noémia de Sousa, Ana Paula
Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades
XXV, Petrolina, vol. 7, nº 25, p. 71-78, 2008.

PALMEIRA, Naduska Mário. As ilhas sob a pele da linguagem: a poética de Conceição Lima.
In: Colóquio Internacional São Tomé e Príncipe numa perspectiva interdisciplinar,
diacrónica e sincrónica, 2012, Lisboa. Anais...Lisboa: IUL, 2012. p. 383-391.

SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001.

TAVARES, Ana Paula. Amargos como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

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O ROMANCE NÃO
ESTÁ MORTO: A
METAFÍSICA
NIVOLESCA
UNAMUNIANA COMO
RESPOSTA À
DESUMANIZAÇÃO DA
ARTE DE GASSET
Walter Pinto de OLIVEIRA NETO (UFMA)1
Márcia Manir Miguel FEITOSA (UFMA)2

RESUMO

1 Graduação em Letras pela UEMA. Mestrando em Letras pela UFMA. Pesquisador do grupo de
pesquisa TECER (UEMA) e POLIFONIA (UFMA). Bolsista CAPES. E-mail:
walteroliveira16@outlook.com.
2 Graduação em Letras pela UNICAMP. Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) e Doutorado em
Letras (Literatura Portuguesa) pela USP. Atualmente é Professora Titular do departamento de Letras,
Bolsista de Produtividade do CNPq - nível 2 e docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em
Cultura e Sociedade e PG-Letras da UFMA. E-mail: marcia.manir@ufma.br.

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Anais

O seguinte trabalho aborda o embate filosófico e estético entre dois dos pensadores mais
importantes da modernidade: Miguel de Unamuno (1864-1936) e José Ortega y Gasset
(1883-1955). No começo do século XX, Gasset argumentava que o gênero se encontrava
numa crise sem antecedentes, sendo, com isso, iminente sua extinção. Para Unamuno, pelo
contrário, o romance ainda podia e devia sofrer mutações benéficas no âmbito estético e
metafísico. Nesse sentido, objetivamos confrontar tais perspectivas: uma que sugere a
remodelação radical de todas as manifestações artísticas da cultura por meio de uma
desumanização em que o sujeito e sua tentativa de transcender à imanência devem ser
erradicadas; e a outra, que humaniza a arte, mais concretamente a arte romanesca, a tal
ponto de dar-lhe às personagens uma roupagem autosubjetiva sem as interferências
próprias de seu autor. A fim de fundamentar nossa pesquisa, valemo-nos de alguns textos
desses pensadores em que expõem suas ideias sobre o romance (GASSET, 1982; UNAMUNO,
2009); estética (GASSET, 1986); comentadores (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); e romances
que ilustram ambas as teorias (UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). A partir dos suportes
supracitados, constatamos que a novela unamuniana, nomeada pelo autor e alguns críticos
de nivola, expressa algumas inovações tanto no aspecto estético como filosófico,
demostrando que o romance se abre em par a novas possibilidades criativas no século XX.

Palavras-chave: Romance. Unamuno. Gasset. Desumanização.

ABSTRACT

The following paper discusses the philosophical and aesthetic clash between two of the most
important thinkers of modernity: Miguel de Unamuno (1864-1936) and José Ortega y Gasset
(1883-1955). At the beginning of the 20th century, Gasset argued that the genre was in an
unprecedented crisis, and that its extinction was imminent. For Unamuno, on the contrary,
the novel could and should still undergo beneficial mutations in the aesthetic and
metaphysical spheres. In this sense, we aim to confront these perspectives: one that suggests
the radical remodeling of all artistic manifestations of culture through a dehumanization in
which the subject and its attempt to transcend immanence should be eradicated; and the
other, which humanizes art, more concretely the art of the novel, to the point of giving the
characters a self-subjective clothing without the author's own interferences. In order to
ground our research, we make use of some texts of these thinkers in which they expose their
ideas about the novel (GASSET, 1982; UNAMUNO, 2009); aesthetics (GASSET, 1986);
commentators (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); and novels that illustrate both theories
(UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). From the supports, we find that the Unamunian novel,
named by the author and some critics as nivola, expresses some innovations in both aesthetic
and philosophical aspects, demonstrating that the novel opens up on par with new creative
possibilities in the twentieth century.

KEYWORDS: Novel. Unamuno. Gasset. Dehumanization.

A humanização ontológica da nivola

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Anais

A primeira vez que o termo nivola aparece no romance mais conhecido, talvez, do
autor: Niebla (1914). Nessa obra, Miguel de Unamuno experimenta processos narrativos
inovadores no romance espanhol, como o diálogo entre o autor empírico e sua personagem
no fim do enredo, a autonomia da personagem e o nivelamento das vozes do autor e do
herói/anti-herói.
Dado que o romance modernista ainda se encontrava em período de
amadurecimento, Don Miguel achou necessário modificar a nomenclatura concedida ao
gênero, anunciando, assim, que o que o leitor estava lendo não é uma novela3, mas algo
diferente, ou seja, uma nivola. Mas o que seria a nivola em si? E o que é mais importante: tem
alguma implicação prática, estética ou filosófica a nomeação de um novo gênero?

A nivola, mais que um conjunto de ideias teóricas e estruturais, representa


uma atitude do autor perante o processo de criação do texto literário. O
procedimento do escritor se evidencia na liberdade absoluta para a criação
de leis próprias, sem se ater aos paradigmas estéticos precedentes ou
contemporâneos. Essa liberdade formal e narrativa, contudo, deve orbitar
próxima aos dilemas existenciais do homem, sendo, na concepção de Don
Miguel, a maior dentre todas, o sentimento trágico da vida: a disputa
axiomática entre razão e fé (OLIVEIRA NETO & SOUSA, 2020, p. 9).

Nesse trecho, identifica-se um elemento fulcral do romance unamuniano: a


interioridade do ser e seus axiomas existenciais. Seus personagens, que considera tão
humanos quanto os indivíduos de carne e osso por apresentarem ambos os mesmos dilemas
que constituem suas existências, estão carregados e, em certa forma, fadados a uma
ontologia própria; esta, por seu lado, desmembra-se e retorna sem sínteses ao autor. Dito de
outra forma, as personagens possuem uma subjetividade desarraigada do autor, porque eles,
na concepção de Unamuno, são autônomos. Ao mesmo tempo, seus seres ficcionais fazem
parte dele, dado que os considera filhos espirituais que, juntos, formam o todo contraditório
de sua identidade.
Essa concepção egológica da nivola se transforma no seu arquétipo de romance.
Unamuno menciona que todas as grandes obras romanescas, ou seja, aquelas que se
eternizam, são as autobiográficas, as que estão impregnadas do espírito de seu autor. O
leitor, por sua vez, deve confrontar o autor e o texto literário, interrogá-los para interrogar-
se a si mesmo; e, em última instância, tornar-se o próprio deus da obra, em detrimento do

3 O equivalente a novela em português é romance. Ou seja, romance [port] = novela [esp].

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Anais

deus primogênito que a significou primeiro, o autor empírico, a fim de que cada romance que
leia lhe sirva para seu aprimoramento humano. Vejamos como essa ideia se funde na nivola.

A nivola: La tía Tula

Em La tía Tula (1921), acompanhamos a história de Gertrudis, mais conhecida como


Tula, a qual vive com sua irmã, Rosa, e seu cunhado, Ramiro. Na primeira parte do romance,
Tula serve de conselheira praticamente maternal de sua irmã, algo mais jovem e menos
disposta à reflexão. Pouco depois de Rosa dar à luz, falece. Porém, numa última conversa
entre as irmãs antes desse incidente, a mais nova pede à mais velha que ajude Ramiro a
cuidar de seus filhos.
Algum tempo indefinido depois – pois a nivola sucede em tempos vagos, oníricos,
como se de um sonho longo se tratasse –, Ramiro se casa com Manuela, a empregada do lar,
com quem tem outro filho. Não obstante, a nova esposa de Ramiro morre devido a
complicações no segundo parto, deixando novamente o homem viúvo.
Na terceira e última parte da narrativa, Ramiro e Tula convivem numa tensão
amorosa não saciada por escolha de Tula, a qual consideraria a consolidação desse laço
afetivo uma traição a sua irmã e seus sobrinhos, amados por ela como se fossem seus filhos.
Nesse conflito sem resolução, Ramiro morre, cedendo de bom grado a guarda de seus
descendentes à que considera o grande amor de sua vida.
Há uma moral cristã em Tula semelhante à que Unamuno defende em alguns ensaios
teológicos, como La agonía del cristianismo (1925). Essa moral, mais que associada à
servidão ou ao instinto maternal inerente à mulher – de acordo com os preceitos patriarcais
–, em realidade tem caracteres existenciais e metafísicos. Tula, ao abdicar do amor e da
maternidade carnal, opondo-se, assim, ao destino determinado socialmente ao seu gênero,
faz ato de uma vontade íntima e, por isso, vitalista, no intuito de formar a identidade que sua
subjetividade lhe pede.
Ainda, essa subjetividade serve como pontapé inicial para a imortalização, ou seja, o
desenvolvimento da identidade se considera, na filosofia e literatura unamunianas, um
elemento apriorístico para alcançar a eternidade (GIMÉNEZ, 2011). Não obstante, a
imortalidade não se cerra na conquista da identidade, mas auxilia-a no propósito de
transmitir ao outro essa busca incessante e agônica de si, formando-se, portanto, uma ética
sempre no porvir.

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Anais

Tula logra traspassar essa ética agônica aos seus filhos espirituais, com os quais se
perpetua uma vez cumprida sua missão terrenal:

Mantenía la unidad y la unión de la familia, y si al morir ella afloraron a la


vista de todos, haciéndose patentes, divisiones intestinas antes ocultas,
alianzas defensivas y ofensivas entre los hermanos, fue porque esas
divisiones brotaban de la vida misma familiar que ella creó. Su espíritu
provocó tales disensiones y bajo de ellas y sobre ellas la unidad fundamental
y culminante de la familia. La tía Tula era el cimiento y la techumbre de aquel
hogar (UNAMUNO, 2007, p. 165).4

Como presenciado no trecho acima, Tula consegue o que se propôs com tanto esforço
após desafios de várias índoles, até mesmo o de renunciar à carne. Não porque considere a
carnalidade maternal e sexual negativa, mas porque, como afirma Giménez (2011), a
materialidade espiritual, a metafísica, parece-lhe a única sublime.
Todavia, vale a pena determo-nos em outro ponto importante para entender a
ideologia do autor: La tía Tula não representa defesa alguma à castidade. Como dissemos, os
personagens que fazem parte das narrativas de Unamuno são peças que, unidas, refletem a
personalidade do autor. Assim, Tula é apenas uma das faces da identidade de seu criador,
sendo Rosa e Ramiro, que vivem mais de acordo com seus impulsos sensitivos, outra delas.
Em definitiva, La tía Tula é uma nivola pela psicologização das personagens, pelo
espaço único e simplificado – como na tragédia clássica –, pelas antíteses e oxímoros típicos
da literatura mística, e pela elipse temporal que dá ao texto a sensação de uma diegese
onírica; mas também pelo protagonismo dos personagens e seus dilemas demasiado
humanos, como se não fossem reais pela voluptuosidade do drama em que estão envolvidos,
e, ao mesmo tempo, como se fossem reais pelos dilemas existenciais que padecem, os quais
são passíveis de identificação por parte do leitor de qualquer parte do planeta.

A desumanização das vanguardas

4 “Mantinha a unidade e a união da família, e se ao morrer ela aflorou à vista de todos, fazendo-se
patente, divisões intestinais antes ocultas, alianças defensivas e ofensivas entre seus irmãos, foi
porque essas divisões brotavam da vida familiar em si que ela criou. Seu espírito provocou dissensões
e embaixo delas e sobre elas a unidade fundamental e culminante da família. A tia Tula era o cimento
e o teto daquele lar” (T.N.).

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Anais

A humanização da nivola encontra sua nêmesis nas vanguardas. No tocante à


literatura, estas absorvem dos novos rumos estéticos um esvaziamento ontológico pela
radicalização da desconfiança na subjetividade já iniciada nos movimentos artísticos
modernistas. O Surrealismo, Dadaísmo, Cubismo, Novo expressionismo, entre outros,
influenciam a própria ideia de romance, que nessa nova linguagem encontra uma autonomia
que rejeita a realidade extra-romanesca (GASSET, 1982).
A Geração de 98, principalmente Unamuno, Antonio Machado (1875-1939) e Pío
Baroja (1872-1956), antipatizaram com esses novos rumos literários pela hipotética
superficialidade neobarroca de sua proposta. As críticas desses autores se agudizam
concomitantemente ao seu envelhecimento, momento da vida em que radicalizam sua
rejeição à vanguarda – a qual consideram uma continuação do modernismo – e à geração de
vanguarda espanhola, também conhecidos como Geração de 27.
No período de auge das vanguardas, escreve Unamuno Cómo se hace uma novela
(1924), em que patenteia uma abstrata teoria do romance ou uma antiteoria do romance,
dado que ele não dá elementos práticos que ajudem, tecnicamente falando, a escrever uma
obra. Em lugar disso, Don Miguel divide seu texto nas seguintes partes: (1) o comentário de
um amigo, Jean Cassou, sobre a personalidade de Unamuno; (2) o esboço de um romance;
(3) o comentário do autor sobre o esboço do romance; (4) e uma série de reflexões sobre a
ficção, os literatos, as escolas geracionais de artistas etc (UNAMUNO, 2009).
Nessa última divisão, não economiza em impropérios à estética gongórica e aos
discípulos contemporâneos do poeta barroco:

[...] Góngora, no tanto se propuso repetir un cuento bello cuanto inventar un


bello idioma. Pero, ¿es que hay idioma sin cuento ni belleza de idioma sin
belleza de cuento? […] Y toda esa poesía que celebran [referindo-se à
Geração de 27] no es más que mentira. ¡Mentira, mentira, mentira! El mismo
Góngora era un mentiroso (UNAMUNO, 2009, p. 164).5

Unamuno chama Góngora e aos gongoristas de mentirosos por não falarem a verdade,
sendo para o bilbaíno a verdade na literatura tudo aquilo que fala da condição trágica da vida,
ou seja, a luta dialética assintética do ser com a razão e a fé.

5 “[…] Góngora não se propôs repetir um belo conto, mas inventar um belo idioma. Porém, é que há
idioma sem conto nem beleza de idioma sem beleza de conto? [...] E toda essa poesia que comemoram
[referindo-se à Geração de 27] não é mais que mentira. Mentira, mentira, mentira! O próprio Góngora
era um mentiroso” (T.N.).

62
Anais

Mais otimista foi com o vanguardismo o filósofo Ortega y Gasset. Ele soube ver com
um pouco mais de confiança as novidades artísticas provenientes dos outros espaços de
Ocidente. Considerou que a irrupção das vanguardas no cenário europeu se deu como
sintoma do esgotamento da arte moderna, a qual não tinha como seguir copiando a realidade
pela falta de realidades que copiar e pela falta de modos de copiar a realidade.
A arte moderna, segundo Gasset (1986), pecava por ancorar-se no mundo externo,
isto é, no fenômeno, e no interno, no humanizado. Essas fórmulas vigorantes durante
décadas já não satisfaziam o espírito dos jovens artistas, que buscavam revolucionar a
linguagem artística por meio de mudanças que atingissem as raízes, procurando a
contrariedade do status quo.
É a partir dessa nova filosofia da arte que Gasset formula seu famoso ensaio A
desumanização da arte (1925). Nesse texto, patenteia algumas noções basilares sobre o novo
espírito, tais como: em primeiro lugar (1), o vanguardismo aparece porque as formas
tradicionais estão rígidas, mortas, então, em lugar de criticar a novidade seus detratores,
deveriam entender o porquê da aparição dessa nova cara da arte e, ato seguido, ver seu
aspecto positivo. Em segundo (2), Ortega menciona que a arte desumanizada, mais que uma
arte em si, é uma proposta teórica, um programa que se formula no próprio produto artístico.
Assim, uma obra vanguardista é a ideia que um determinado autor vanguardista tem da obra
de arte. Em terceiro (3), entende que essa escola ainda está em evolução, precisando, por
isso, definir seus limites e borrar seus excessos para não se perder na mera intenção em
detrimento da busca pela qualidade. Em quarto (4) e último, o espectador dessa arte tem que
se adaptar às suas exigências receptivas, vê-las como opostas à realidade e não como
consequência desta (GASSET, 1986).
Partindo dessas bases, Gasset define os setes traços elementais das tendências
vanguardistas:

Si se analiza el nuevo estilo se hallan en él ciertas tendencias sumamente


conexas entre sí. Tiende: 1., a la deshumanización del arte; 2., a evitar las
formas vivas; 3., a hacer que la obra de arte no sea sino obra de arte; 4., a
considerar el arte como juego, y nada más; 5., a una esencial ironía; 6., a
eludir toda falsedad, y, por tanto, a una escrupulosa realización. En fin, 7., el
arte, según los artistas jóvenes, es una cosa sin transcendencia alguna
(GASSET, 1986, p. 25-26).6

6 “Ao analisar o novo estilo se acham nele certas tendências sumamente conexas entre si. Tende: 1.,
à desumanização da arte; 2., a evitar as formas vivas; 3., a fazer que a obra de arte não seja senão obra

63
Anais

Esses paradigmas agrupados e conceitualizados pelo filósofo foram importantes para


os romancistas da Geração de 27. Não tão importante foi sua teoria para os poetas que faziam
parte desse agrupamento, dado que “preferían reivindicarse de la poesía pura más que de la
deshumanización, aunque entretuvieran parentescos con la estética de la desrealización y
de la metáfora definida por Ortega” (GIUSTINIANI, 2013, p. 298).7
Não obstante, é importante assinalar que na Geração de 27 não houve muitos
romancistas, e os que se destacaram, não o fizeram tanto quanto os poetas e os dramaturgos.
Isso porque a lírica se comprovou como o terreno fértil para as experimentações formais que
tinham em mente; ademais, consideravam a prosa o terreno da burguesia. De qualquer
forma, podemos destacar uma figura algo esquecida pela crítica e, não obstante, a mais
assumida seguidora da teoria orteguiana: Rosa Chacel (1898-1994).

O romance desumanizado: La Sinrazón

A autora da cidade de Valladolid não duvida em afirmar que a geração artística da


qual fez parte deve a Ortega y Gasset e sua ideia da arte desumanizada alguns pilares que
marcariam suas produções, ao menos às de suas primeiras etapas, nas que estão
impregnados dos princípios vanguardistas: “los escritores de mi generación empezamos a
escribir sabiendo que Ortega estaba allí, ¡ojo avizor!, implacable, irreductible” (CHACEL,
1989, p. 150).8 E, em outro texto, complementa:

[...] la juventud de entonces se adhería a la prosa de Ortega, que tenía el


poder de centrar su atención en la forma. La forma se nos descubría como
imperativo quehacer... quiero decir que la perfección de la forma, el rigor de
la palabra nos descubría las formas del mundo, nos hacía detener la mirada
en la forma, que es el modo más certero de profundizar. La detención en la

de arte; 4., a considerar a arte como jogo, e nada mais; 5., a uma ironia essencial; 6., a eludir toda
falsidade e, portanto, a uma escrupulosa realização. Enfim, 7., a arte, segundo os artistas jovens, é
uma coisa sem transcendência alguma” (T.N.).
7 “Preferiam reivindicar a poesia pura mais que a desumanização, ainda que tivessem semelhanças
com a estética da desrealização e da metáfora definida pro Ortega” (T.N.).
8 “Os escritores de minha geração começaram a escrever sabendo que Ortega estava ali, colocando o
olho! Implacável, irredutível” (T.N.).

64
Anais

forma culmina en contemplación y ahonda o zambulle o excava en


conocimiento (CHACEL, 1993, p. 312).9

De acordo com o comentado pela autora, podemos entender, primeiro, que a


preocupação com a forma é absoluta, e, segundo que é na forma que o conteúdo eclode. Essa
sua preocupação e a de sua geração encontra distância com os paradigmas da nivola no
tocante à hierarquia entre forma e conteúdo. Enquanto Unamuno voga por uma estética que
corresponda aos dissabores existenciais do sujeito moderno, Chacel procura distanciar-se
do acontecimento e das surpresas do indivíduo perante os fenômenos, a fim de que seja a
linguagem a que forneça dados da consciência das personagens; dados, contudo,
fragmentados, oníricos, por vezes insignificantes do ponto de vista ontológico, mas ainda
dados à espera de que o leitor os decifre e signifique (HIDALGO, 2007).
A narrativa dos romances desumanizados de Chacel também perde quase todo peso
argumentativo, deixando um vazio preenchido pelas oscilações dos estados subjetivos das
personagens. Todavia, essa consciência não se esvai no jogo fechado do psiquismo do
monólogo interior ou do fluxo de consciência – técnicas mais comuns à nivola –, pois entende
que a obra de arte não é reflexo dos sentimentos próprios, mas a revelação de uma
“intimidad expresada, una interpretación que saca a los objetos del mundo real para
impregnarlos de la intimidad subjetiva de un hombre y de una cultura” (SÁENZ, 1994, p.
114).10
Essa ideia de expressar a intimidade do eu/personagem através de uma conexão
escondida – e ainda assim latente no texto – com o mundo, assemelha-se ao conceito
orteguiano da circunstância, em que o eu não pode ser o eu senão por meio da circunstância,
entendida esta como o tempo histórico e o espaço geopolítico onde o sujeito está inserido
(GASSET, 2014).
No romance chaceliano não conseguimos palpar o tempo e o espaço, nem sequer por
meio de intuições vagas, mas, ainda assim, entendemos e empatizamos com a aparente

9 “A juventude daquela época aderia à prosa de Ortega, que tinha o poder de centrar sua atenção na
forma. A forma aparecia para nós como um imperativo do que fazer...quero dizer que a perfeição da
forma, o rigor da palavra nos descobria as formas do mundo, nos fazia deter o olhar na forma, que é
o modo mais certeiro de aprofundar. A detenção na forma culmina na contemplação e imerge ou
mergulha ou escava em conhecimento” (T.N.).
10 “Intimidade expressada, uma interpretação que tira os objetos do mundo real para impregná-los
da intimidade subjetiva de um homem e de uma cultura” (T.N.).

65
Anais

impossibilidade das personagens de sair da condição ôntica. Nesse espaço árido do ente é
onde Chacel quer deixar a sós o leitor com o texto, buscando o espanto deste para com a
intranscendência que forma sua vida. Por esse motivo Sáenz (1994) denomina o texto da
autora de romance de investigação existencial.
Em La sinrazón (1960), o personagem principal, Santiago Hernández, projeta num
caderno longas reflexões a respeito do que lhe acontece. Basta dizer que são poucos os
acontecimentos padecidos, colocando mais ênfase nas projeções mentais advindas dos
fenômenos corriqueiros, sem se perder no histrionismo ou em resoluções transcendentais
típicas da nivola. O que Santiago quer, em definitiva, em palavras dele, é: “llegar al límite de
la razón, a la razón de la sinrazón. Porque la mayor sinrazón que a mi razón se hace es que
exista ese límite y que queden más allá de las fuentes de todas las cosas por las cuales la
razón se desvive” (CHACEL, 1989, p. 562).11
A sinrazón à qual ele se refere tem aproximações com a noção de arte desumanizada,
cuja procura pela suspensão do sentido da razão, seja humanizada ou da própria linguagem
artística em si, conforme sua pretensão primeira e última. Assim, encontrar a coerência
interna às coisas passa por não buscá-la, deixando-a suspensa, sendo o que são sem a
inferência de um eu/Deus que as ressignifique:

Los puntos más elevados que he llegado a alcanzar en mis explicaciones, han
sido a pretensión de poder, la petición, que haría mover las alas de la
mariposa. Esto, quiere decir, estrictamente, la respuesta. Esto significa ver a
Dios; y es sabido que no es posible verle sin morir. El golpe de audacia del
luchador es, a pesar de eso, querer verle (CHACEL, 1989, p. 576).12

Nesses trechos expostos de La sinrazón, vemos a necessidade de tornar em arte uma


teoria – ou uma teoria em arte –, como diz Ortega (1986). Os personagens adquirem a
roupagem teorética de seus autores e a propagam numa espécie de confissão daquilo que

11 “Chegar ao limite da razão, à razão da ‘semrazão’. Porque a maior ‘semrazão’ que cria a minha
razão é fazer que exista esse limite e que fiquem para além das fontes de todas as coisas pelas quais
a razão se desvive” (T.N.).
12 “Os pontos mais elevados que cheguei a alcançar em minhas explicações, foram a pretensão de
poder, a petição, que faria mexer as asas da mariposa. Isto, quer dizer, estritamente, a resposta. Isto
significa ver a Deus; e se sabe que não é possível vê-lo sem morrer. O golpe de audácia do lutador é,
apesar disso, querer vê-lo” (T.N.).

66
Anais

seus criadores não têm coragem de expressar ou não conseguem colocar em perspectiva
senão por meio do canal comunicativo da ficção (HIDALGO, 2007).
Esse elemento teórico/filosófico é o elo mais visível entre a nivola e o romance
desumanizado, pois em ambas manifestações romanescas há uma intenção, há uma ética em
direção ao leitor. Porém, enquanto em Unamuno o autor se desdobra para dar às
personagens peças de sua consciência, em Chacel o autor desaparece a priori quando a
narrativa desumanizada inicia.
Não fica evidente, também, nos romances vanguardistas da Geração de 27 quais as
posturas que o personagem – em cuja sombra só podemos intuir abstratamente seu autor –
possui. Há, antes de tudo, o deflúvio de uma personalidade possível e ficcional, a qual é
lançada sem alicerces semânticos muito específicos, deixando ao leitor, portanto, um peso
maior no que tange à sua interação com a realidade intraliterária, o que propicia a exigência
de uma “entrega, cohesión o contribución de su propia sustancia a un trasunto de lo
contemplado” (CHACEL, 1993, p. 74).13
Esse nível de abertura não é possível na nivola, já que a aproximação de Unamuno
com o texto é maior. Isso se dá porque Unamuno considera que sua literatura é ele próprio:
“mi obra soy yo mismo que me estoy haciendo día a día y siglo a siglo” (UNAMUNO, 2009, p.
20).14 Eis o ponto decisivo de separação entre a nivola e o romance desumanizado.

Considerações finais

Como explanamos, nas primeiras décadas do século XX aparece na Espanha duas


orientações estéticas diametralmente opostas: a nivolesca e a desumanizada. A nivolesca,
patenteada por Miguel de Unamuno, defende um tipo de romance, literatura e arte capaz de
explorar os temas íntimos e metafísicos que inquietam o ser moderno. Já a arte
desumanizada, teorizada por Gasset e acompanhada pela geração de vanguarda, quer
esvaziar o indivíduo para assim introduzi-lo numa realidade intra-artística, isenta de
qualquer fator mimético que o lance para fora de sua experiência poética.

13 “Entrega, coesão ou contribuição de sua própria substância a uma transição àquilo contemplado”
(T.N.).

14 “Minha obra sou eu mesmo que estou me fazendo dia a dia, século a século” (T.N.).

67
Anais

Ambos os autores tiveram uma relevância acentuada no espaço e tempo em que


viveram, marcando alguns debates que permanecem até hoje no âmbito estético, tais como:
a arte precisa ter uma ética? a arte tem que se propor mudar o mundo? ou ainda: a arte pode
mudar o mundo? Qualquer resposta nossa seria ousada em excesso, pelo que, por enquanto,
contentamo-nos em mostrar dois autores timidamente conhecidos no Brasil, e que, pelo aqui
exposto, podem conduzir o leitor, a partir de métodos estético-filosóficos distintos, a refletir
sobre sua existência e a de seus pares.

REFERÊNCIAS

CHACEL, Rosa. La lectura es secreto. Barcelona: Júcar, 1989.

CHACEL, Rosa. La Sinrazón. Madrid: Grupo Libro, 1989

CHACEL, Rosa. Sendas perdidas de la Generación del 27. In: Rosa Chacel. Obra completa
(III). Valladolid: Centro de estudios literarios fundación Jorgue Guillén, 1993

GASSET, José Ortega y. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza, 1982.

GASSET, José Ortega y. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética. 8. ed.
Madrid: Revista de Occidente: Alianza, 1986.

GASSET, José Ortega y. Meditaciones del Quijote. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014.

GIMÉNEZ, María Dolores García. (IN)Mortalidad y dimensión poiética de la Fe en


Miguel de Unamuno. Tese (doutorado) – Universidad de Sevilla, Departamento de
Filosofía y Lógica y Filosofía de la Ciencia, 360 f. 2011.

GIUSTINIANI, Eve Fourmont. Ortega y las artes. Una estética raciovitalista. Zamora Bonilla,
Javier (Dir.), Guía de Ortega, Granada, 2013, p. 293-309. Disponível em: https://hal-
amu.archives-ouvertes.fr/hal-01475050. Acesso em: 23 dez. 2020.

HIDALGO, Cora Requena. La deshumanización del arte en Rosa Chacel. Artifara, n. 7, 2007,
p. 79-86. Disponível em:
https://www.ojs.unito.it/index.php/artifara/article/view/6481/5570. Acesso em: 25 abr.
2022.

OLIVEIRA NETO, Walter Pinto de; SOUSA, Karla Cristhina Soares. A nivola como precursora
do romance metafísico: um diálogo sobre literatura entre Miguel de Unamuno e Simone de
Beauvoir. In: Anais do 8º Seminário Nacional e 2º Seminário Internacional de Língua e
Literatura: Conversas Remotas. Passo Fundo, 2020, p. 1-14.

SÁENZ, María López. La influencia de la estética orteguiana en Rosa Chacel. In: Actas del
Congreso en homenaje a Rosa Chacel, Logroño, Ed. Universidad de La Rioja, 1994, p.
107-118. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/555081.pdf. Acesso
em: 25 abr. 2022.

68
Anais

UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. 1ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009.

UNAMUNO, Miguel de. La tía Tula. 30ª ed. Madrid: Espasa Calpe, 2007.

69
MEDEIA: A ESSÊNCIA
DO FEMININO
Brenda Lima dos SANTOS (UFC)1
Yls Rabelo CÂMARA (UFC)2

RESUMO

Este trabalho é um estudo comparativo entre as duas versões mais famosas da tragédia de
Medeia: as peças de Eurípides e de Sêneca, com o objetivo de identificar as características
mais marcantes dessa personagem mitológica e elucidar que essas mesmas características
estão presentes na essência do feminino. Para além disso, fizemos, a priori, uma pesquisa de
natureza interpretativa e de abordagem qualitativa para melhor dissertarmos sobre esta
seara. Assim, constatamos que mesmo com as tentativas de marcar a personagem como uma
mulher sem escrúpulos, vilã e representante de tudo o que não deve ser seguido, o feminino
resiste e permanece, mostrando-se resiliente, ressignificando-se e atualizando
possibilidades. Destarte, o presente trabalho, pretende contribuir para que as obras
literárias que lidam com o protagonismo feminino revolucionário sejam lidas e analisadas
através de novos parâmetros, de lentes mais condizentes com a atual situação da mulher na
maioria das sociedades ocidentais, sem perder de vista a fidelidade ao tempo da narrativa, a
fim de não incorrermos em anacronismos. Para tanto, com o fito de embasar nossas
considerações, nos baseamos teoricamente nos trabalhos de Beauvoir (2019), Sousa (2013)
e Kury (2013). Concluímos que a Medeia Euripidiana carrega aspectos e críticas presentes
no interior tanto da figura feminina quanto das lutas empreendidas desde a Antiguidade
Clássica por todo ser que se identifica com o feminino. Já a Medeia senequiana demonstra
tudo o que as sociedades normalmente esperam de uma mulher e tudo aquilo que ela não
deve ser.

1 Licencianda em Letras Português na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bolsista do Programa de


Educação Tutorial (PET-HUMANIDADES). Membra do Grupo de Estudos Filhas de Avalon (Felesc/Uece). E-
mail: brenda.santos@aluno.uece.br.
2 Doutora e Mestra em Filologia Inglesa (Universidad de Santiago de Compostela), com Estágio Pós-Doutoral

em Educação (Uece). Universidad de Santiago de Compostela (USC). Líder do Grupo de Estudos Filhas de Avalon
(Feclesc/Uece). E-mail: yls.camara@hotmail.com.

70
Anais

Palavras-chave: Tragédia; Medeia; Feminino; Essência Feminina.

ABSTRACT

This work is a comparative study between the two most famous versions of Medea's tragedy:
the plays of Euripides and Seneca, with the objective of identifying the most striking
characteristics of this mythological character and elucidating that these same characteristics
are present in the essence of the feminine. Furthermore, we carried out, a priori, a research
of an interpretive nature and a qualitative approach to better discuss this area. Thus, we
found that even with the attempts to mark the character as an unscrupulous woman, villain
and representative of everything that should not be followed, the feminine resists and
remains, showing itself to be resilient, resignifying itself and updating possibilities. Thus, the
present work intends to contribute for the literary works that deal with the revolutionary
feminine protagonism to be read and analyzed through new parameters, of lenses more
consistent with the current situation of the woman in the majority of the western societies,
without losing sight of the fidelity to the time of the narrative, in order not to incur in
anachronisms. Therefore, in order to support our considerations, we theoretically base
ourselves on the works of Beauvoir (2019), Sousa (2013) and Kury (2013). We conclude that
the Euripidean Medea carries aspects and criticisms present within both the female figure
and the struggles undertaken since Classical Antiquity by every being that identifies with the
feminine. The Senecan Medea, on the other hand, demonstrates everything that societies
normally expect from a woman and everything that she should not be.

KEYWORDS: Tragedy; Medea; Female; Feminine Essence.

INTRODUÇÃO

Medeia é uma das personagens trágicas mais antigas e famosas da Literatura


ocidental. Filha de Eetes, rei da Cólquida, apaixonou-se pelo grego Jasão quando esse chegou
ao seu país com uma missão difícil de cumprir e cujo êxito dependia da participação da
princesa. Depois de a cumprirem, os dois fogem e enfrentam diversas outras dificuldades e
aventuras.
Ao longo dos anos, eles constroem uma vida juntos e têm dois filhos. Contudo, depois
de dez anos, Jasão comunica a Medeia que irá se casar com a filha do Rei Creonte. Por isso, a
informa que ela deverá ir embora da cidade, mas que os filhos ficarão com ele. Assim, sem
família, expulsa da terra onde construiu sua vida, sem marido, filhos, amigos e/ou aliados,
Medeia se vê sozinha. Essa situação a conduz para uma decisão extrema: destruir a vida do
homem que devastou a sua, matando o que ele diz ser seu bem mais precioso: os filhos.
As tragédias de Sêneca e Eurípedes, as duas versões mais famosas que abordam a
história da personagem Medeia, conduzem, muitas vezes, os leitores à conclusão de que ela
é uma mulher sem escrúpulos, coração ou humanidade, dado o infanticídio praticado pela

71
Anais

personagem. Apesar disso, ao olharmos e compararmos as duas versões e os estudos sobre


ela realizados ao longo dos anos, podemos concluir que o ato é apenas uma das várias
desculpas eleitas pela história da crítica literária para colocá-la como a vilã – nada muito
diferente do que acontece com a figura do feminino ao longo da História.
Independentemente da situação e da posição que uma mulher ocupa em dada
sociedade, se sair da curva da normalidade e da obediência passiva, é um monstro, uma
bruxa, um ser que deve ser exilado, excluído e esquecido. Partindo disso, este estudo tem
como objetivo analisar a figura de Medeia nas tragédias de Eurípides e Sêneca, destacando
os elementos que marcam a essência da personagem, exemplificando que são esses mesmos
elementos os que constituem a alma do feminino. Para isso, teremos como base fundamental
para a análise, Simone de Beauvoir (2019), com o conceito de feminino como “o Outro”; Ana
Alexandra Alves de Sousa (2013), para explorar a figura de Medeia; e Gama Kury (2013),
com a análise e comentários sobre as personagens do teatro grego.

METODOLOGIA

Na busca por compreender como se dá a caracterização de Medeia como a essência


do feminino, o berço e lar de toda figura feminina, empreendemos uma pesquisa de caráter
qualitativo e de cunho bibliográfico, tendo como base livros, artigos, dissertações e teses que
abordam a personagem em questão.
Nessa pesquisa, analisamos os textos de acordo com a visão do feminino como o
Outro. Para atender aos propósitos da análise, utilizamos Beauvoir (2019), com o conceito
de Outro; Sousa (2013), com o estudo da personagem Medeia e a peça de Sêneca; Kury
(2013), com o estudo sobre as peças gregas, analisando a figura da personagem na tragédia
de Eurípedes.
Assim, essa investigação é fruto de um levantamento bibliográfico sobre a
personagem em tela em repositórios universitários e buscadores digitais, utilizando-nos de
descritores específicos para filtrar trabalhos acadêmicos acerca dela, como as palavras-
chave supramencionadas no resumo. Trata-se de um estudo de natureza básica, de
abordagem qualitativa e de objetivo exploratório, cujo cerne é analisar como todo feminino
pode, em algum momento, retornar ou se encontrar em seu “estado Medeia”.

72
Anais

MEDEIAS: as Personagens de Eurípides e Sêneca

Eurípedes está longe de ser o primeiro autor a citar Medeia em sua tragédia; as
primeiras referências à personagem foram feitas por Hesíodo, na Teogonia
(FERREIRA,1997). Segundo Hesíodo (2007), a filha do filho do sol e da virgem do Oceano,
Medeia, nasceu subjugada ao amor, graças a Afrodite. A tragédia de Eurípedes, Medeia, é
muito mais reflexiva e crítica do que a de Sêneca no sentido de olhar para a figura do
feminino, já que ele consegue ressaltar a singularidade da alma feminina. Dessa forma, a
personagem do tragediógrafo tem como características a inteligência, o amor, a força, a
culpa, a solidão, a resistência de ir contra tudo aquilo que era exigido dela e o sofrimento que
é ser mulher desde o nascimento – aspectos que definem o ser feminino desde a gênese da
sociedade.
Podemos perceber isso em uma longa fala da personagem, na qual ela expõe toda a
carga de sofrimento que carrega por causa de seu sexo desde o nascimento, além de falar
sobre o dote pago para servir a um marido que não escolheu, correndo o risco ainda de ser
repudiada:

[...] Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as
mais sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar,
assim, um dono, a nosso corpo - mal ainda mais doloroso que o primeiro.
Mas o maior dilema é se ele será mau ou bom, pois é vergonha para nós,
mulheres, deixar o esposo (e não podemos rejeitá-lo). (KURY, 2013, p. 217).

Além de discorrer sobre o fato de carregar o fardo do silêncio, a Medeia euripidiana,


fala sobre a imagem que a sociedade histórica construiu para o feminino, como seres
incapazes de praticar boas ações. Contudo, a protagonista utiliza essa verdade para afirmar
que se as mulheres não foram feitas para boas ações, “[...] não há, para a maldade, artífices
mais competentes do que nós!”. (KURY, 2013, p. 225).
Nessa versão, a maldade supracitada está voltada para o infanticídio, ato praticado
por uma mãe, que no lugar de amar incondicionalmente os filhos, ama o marido mais do que
a sua própria prole. Por isso, quando se vê sem o esposo, sabendo que os filhos são
importantes para ele, decide matar as crianças para destruir a vida do ex-marido.
É sobre a mulher abandonada que recai toda a responsabilidade de atos ruins,
violentos e crimes que foram realizados pelo casal Medeia e Jasão. Ao abandonar o lar, o
marido também abandona a responsabilidade que tinha de cumplicidade para com a esposa.

73
Anais

Assim, ela se vê sozinha, sendo acusada de crimes que cometeu em nome do marido, para
ajudá-lo, exilada, sem família e com a proibição de partir com os filhos. Dessa forma, uma
outra característica do feminino demonstrado por Medeia, no ato do filicídio, é a compaixão.
Ela tinha o conhecimento de como funcionava a vida dentro da Corte, sabia como os
filhos do primeiro casamento seriam vistos depois que os herdeiros reais nascessem: eles
seriam os bastardos, rejeitados, uma ameaça que deveria ser eliminada. Se não por isso, os
primeiros filhos seriam acusados dos crimes cometidos pelos pais, uma vez que a mãe não
estaria presente para ser julgada, devido ao exílio, e o pai, marido da princesa, não seria
acusado de nenhum crime; seriam condenados à morte.
Medeia viu que os filhos já estavam mortalmente feridos. Dessa forma, ela viu “[...] a
necessidade de permitir que a morte venha aos que estão morrendo.”. (ESTÉS, 2018, p.17).
Ela demonstrou a sua compaixão nesse ato, inspirada pelo arquétipo da mulher selvagem3,
irmã dos lobos. Ela foi dotada de uma força e grande resistência, demonstrando a profunda
intuição na preocupação com seus filhos, sua matilha. Medeia se adaptou às circunstâncias
com uma determinação feroz e uma coragem extrema.
Em Sêneca, a preocupação em criticar ou refletir sobre a sociedade não está muito
presente, até porque seu foco era difundir o Estoicismo, corrente que acreditava que o
homem deveria se submeter à razão e buscar sempre seguir um caminho equilibrado em
busca da virtude. Então, para ele, o excesso de amor, ódio e desejo de vingança de Medeia
fazem dela um exemplo de tudo o que é ruim e que não deve ser imitado: “[...] uma Medeia
rejeitada pelo marido e parceiro sobrepõe-se a figura desamparada do ser humano que
perdeu a justificação de sua vida.”. (GALDINO, 2008, p. 442).
Por isso, segundo Sousa (2013), a personagem principal pode ser caracterizada como
intrépida, desafiadora, vingativa, impulsiva e absoluta. Dessa forma, não há críticas em
relação à forma como ela foi tratada, mas Sêneca ressalta, mesmo que inconscientemente, o
poder da retórica de Medeia, que consegue não só convencer Jasão de que o perdoou e que

3 Segundo Estés (2018), a mulher selvagem é definida como [...] a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a
intuição, a vidência, é a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a continuarem a
ser multilíngues: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão, da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela
deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pelo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem
as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la. (...) Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito
tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Os pássaros que nos contam segredos pertencem a
ela. Ela é a voz que diz: ‘Por aqui, por aqui’. (p.27)

74
Anais

acredita que a decisão dele é correta, como consegue convencer o rei de que precisa de mais
um dia antes de partir, dia esse no qual consolida a sua vingança.
Esse domínio do discurso que ela possui causa um amedrontamento nos homens,
inclusive no rei, que ao perceber a inteligência de Medeia e a forma como ela conduz suas
conversas, atribui aspectos negativos à figura do feminino que contesta e pensa. Os
comentários de Creonte comprovam o que afirma Beauvoir (2019) sobre a visão que a
sociedade machista tem sobre o feminino que se rebela contra o que lhe é imposto:

[...] a carne feminina é detestável a partir do momento em que uma


consciência a habita. O que convém à mulher é ser puramente carne; A
mulher ideal é perfeitamente estúpida e submissa; está sempre preparada
para acolher o homem e nunca lhe pede nada.”. (BEAUVOIR, 2019, p.273)

A Medeia senequiana não se ocupa nem se preocupa em falar de sua condição como
feminino, diferentemente do que encontramos na tragédia de Eurípedes. Nessa peça, o foco
é a vingança. Contudo, podemos encontrar muito da essência do feminino nessa Medeia,
principalmente em relação ao desejo de mostrar o seu valor, indo contra tudo o que era
esperado dela; Medeia não se deixa quebrar, mesmo sendo privada de seu pai, pátria e reino,
deixada sozinha numa terra estrangeira (SOUSA, 2013, p. 43).

O Feminino

Ao longo da História, “[...] a mulher sempre foi, se não a escrava do homem, ao menos
sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições [...]”
(BEAUVOIR, 2019, p. 17). Por esse motivo, tudo de ruim que acontece(u), desde os
primórdios dos tempos, foi, vem sendo ou é atribuído às mulheres. Elas carregam, desde
antes de seus nascimentos, o peso de serem as que desviam, as pecadoras, as que seduzem,
as bruxas.
Sendo assim, a sociedade planta na consciência feminina que elas devem pagar a sua
penitência buscando a aceitação masculina. Logo, elas aprendem, desde o primeiro alento,
que devem obedecer sem questionar; se ousarem ir contra essa regra sofrerão as
consequências: rejeição, abandono e exílio. Sem embargo, o que essa sociedade esquece é
que o feminino nasce sabendo que sua caminhada será solitária independentemente do que
fizer. O verdadeiro lar feminino “[...] é a floresta virgem, emaranhada e sem trilhas; um

75
Anais

campo nevado onde até as marcas dos pés dos passarinhos sumiram. Aqui nós vamos
sozinhas e achamos até melhor.”. (WOOLF, 2014, p. 137).
Medeia se vê nessa floresta quando é informada sobre o abandono de Jasão. Ao invés
do que era esperado, a aceitação, ela mostra a sua firmeza e força, expondo que o verdadeiro
significado de força não é ter músculos bem exercitados, fama de herói e que,
definitivamente, a força não é um atributo apenas masculino:

Ser forte não significa desenvolver os músculos e exercitá-los. Significa, sim,


encontrar nossa própria numinosidade sem fugir, convivendo ativamente
com a natureza selvagem ao nosso próprio modo. Significa ser capaz de
aprender, e ser capaz de aguentar o que sabemos. Significa manter-se firme
e viver. (ÉSTES, 2018, p. 113).

Perder o marido, na sociedade grega da época, para uma mulher, era o fim de sua vida
social, uma vez que “Somente através do matrimônio a mulher grega conquistava o seu lugar
social: primeiro como esposa do cidadão, e em seguida como mãe, ao gerar filhos legítimos
para a comunidade em que vivia.”. (Maria Regina CÂNDIDO, 1996, p. 232). Assim, Medeia
demonstra, ao resistir, o arquétipo da mulher selvagem que é/está presente no ser feminino,
provando que a passividade, esperada como algo biológico da mulher, não passa de um
destino que tentam lhe impor (BEAUVOIR, 2019).
Consequentemente, olhar para a personagem trágica de Medeia não é ver apenas uma
personagem louca, vingativa, assassina ou uma mãe desnaturada. Pelo contrário: olhar para
ela é ver o destino de todo ser feminino, arrancada de sua família e pátria, iludida, submissa
por amor. Medeia conheceu o sofrimento e amadureceu com ele. Ela prova que a essência
feminina é a força, a coragem, o amor, a dor e, principalmente, a resistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da provocação vivida durante as leituras das duas versões da tragédia de


Medeia, surgiu o interesse pela pesquisa científica e por essa personagem, uma vez que ela
representa, através de suas características principais, a essência do feminino. Algumas
questões levantadas durante esse breve estudo ainda permanecem sem resposta porque
estamos no início de nossa investigação. Portanto, são questões que apontam para um estudo
mais aprofundado no futuro.

76
Anais

Em uma análise da figura feminina criada e mantida pela sociedade patriarcal e


machista atual, foi possível verificar a relação com Medeia, personagem principal da tragédia
homônima, nas versões de Eurípides e Sêneca. Portanto, verificamos que a Medeia
Euripidiana carrega aspectos e críticas presentes no interior tanto da figura feminina quanto
das lutas empreendidas desde a Antiguidade Clássica por todo ser que se identifica com o
feminino. Já a senequiana, demonstra tudo o que a sociedade espera de uma mulher e tudo
aquilo que ela não deveria ser. Não obstante, ao mesmo tempo que demonstra todo esse
repúdio, nos mostra também a força que nasce do ser feminino ao ser excluída, traída e
injustiçada.
Vimos que Medeia representa a essência do feminino, pois suas características
principais são características presentes em todo ser que se identifica como feminino, que
são, dentre outras: solidão, compaixão, força, retórica e poder. O sentimentalismo, muitas
vezes tido como uma característica negativa feminina, pode ser visto na tragédia que é o
remédio que a sociedade patriarcal e machista tem desejado, mas que não se permite
vivenciar, uma vez que para ela, essa peculiaridade do feminino deve ser isolada e
permanecer em quarentena até o momento em que seja vacinada com o silêncio e entenda
que deve seguir calada. O que se esquece é que o feminino nos invade, que ele nos preenche,
provando que mesmo com a tentativa de esquecimento e de apagamento, as mulheres
resistem e o feminino segue conquistando espaço.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2019.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2019.

CÂNDIDO, Maria Regina. Medeia: ritos e magia. Phoinix. v. 2, n. 1, p. 229-234, jan. 1996.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/phoinix/article/view/35533/19639
Acesso em: 05 de jan. 2022.

DUTRA, Enio Moraes. O mito de Medeia em Eurípedes. Letras. v.1, n.1, p. 66–75, jan. 1991.
Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11403 Acesso em: 05 de
jan. 2022.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da Mulher Selvagem. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

77
Anais

FERREIRA, Luísa de Nazaré. A fúria de Medeia. Humanitas. v. XLDC, n.49, p. 61-84, 1997.
Disponível em:
https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas49/04_Ferreira.pdf
Acesso em: 05 de jan. 2022.

GALDINO, Marcelino. Medeia. Revista Eutomia. v. 1, n. 02, p. 440-45, dez. 2008. Disponível
em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1967 Acesso em: 05 de
jan. 2022.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007.

KURY, Gama. O melhor do teatro grego: edição comentada: Prometeu acorrentado, Édipo
rei, Medeia, As nuvens. Rio de Janeiro: Clássicos Zahar, 2013.

SOUSA, Ana Alexandra Alves de. Sêneca: Medeia. Coimbra: Annablume, 2012.

WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros Ensaios. Cosac & Naify: São Paulo, 2014. p.
133-147.

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O GRITO E A DOR DOS
EXCLUÍDOS NAS BATALHAS
DE POESIA (SLAM POETRY):
UMA ANÁLISE DA
PERFORMANCE DA
TRAVESTI BIXARTE
Rian Lucas da SILVA (IFPB) 1
Hermano de França RODRIGUES (UFPB) 2

RESUMO

A Slam Poetry, costumeiramente (re)conhecida apenas como ‘slam’, trata-se de uma


manifestação de poesia falada que já não se restringe somente ao espaço acadêmico, mas
migra, sobretudo, para as ruas e periferias das cidades, configurando-se, pois, como um ramo
da literatura marginal/periférica. Nessa (re)modelagem de poesia, diversos sujeitos –
comumente invisibilizados e relegados à obscuridade e ao esquecimento – têm espaço e voz
para (trans)formar as suas próprias vivências, dores e existências em arte, ou melhor, em
poesia. Nesse sentido, o presente estudo objetiva analisar a poesia falada de Bixarte, nome
artístico da paraibana Bianca Manicongo, vencedora do Slam Resistência, na edição de 2021,
com o fito de averiguar o modo com o qual a poeta incorpora, em sua fala, um discurso de

1 Graduado em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pelo Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). rian.lucas@academico.ifpb.edu.br.
2 Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
Professor Adjunto III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e do Programa de
Pós-Graduação em Letras (UFPB). hermanorg@gmail.com.

79
Anais

resistência ao colocar em evidência as relações sociais enfrentadas por uma travesti


mediante uma sociedade extremamente arcaica e preconceituosa. Metodologicamente,
realizamos, em primeiro lugar, a transcrição de sua poesia, que ocorre de forma falada em
vídeo via plataforma YouTube, para o texto escrito; em seguida, iniciamos as análises a partir
do texto já transcrito. Para as análises, pautamo-nos em estudos diversos de autores que
incluem, por exemplo, Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) e D’Alva (2014). Por fim,
demarcamos a importância das batalhas de poesia enquanto formas de literatura
marginal/periférica, tendo em vista a sua capacidade estética e literária de lançar luz tanto
sobre temáticas importantes e urgentes quanto sobre indivíduos que ainda permanecem à
deriva dos processos políticos e sociais da conjuntura atual.

Palavras-chave: Literatura periférica. Batalha de poesia. Poesia falada. Travesti. Bixarte.

ABSTRACT

Slam Poetry, customarily (re)known only as 'slam', is a manifestation of spoken poetry that
is no longer restricted to the academic space, but migrates, above all, to the streets and
outskirts of cities, configuring itself , therefore, as a branch of marginal/peripheral literature.
In this (re)modeling of poetry, various subjects – commonly invisible and relegated to
obscurity and oblivion – have space and voice to (trans)form their own experiences, pains
and existences into art, or rather, into poetry. In this sense, the present study aims to analyze
the spoken poetry of Bixarte, artistic name of Bianca Manicongo, from Paraíba, winner of the
Slam Resistance, in the 2021 edition, with the aim of verifying the way in which the poet
incorporates, in her speech, a discourse of resistance by highlighting the social relations
faced by a transvestite in an extremely archaic and prejudiced society. Methodologically, we
carried out, firstly, the transcription of his poetry, which occurs in a spoken form on video
via the YouTube platform, to the written text; then, we started the analysis from the already
transcribed text. For the analyses, we rely on several studies by authors that include, for
example, Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) and D’Alva (2014). Finally, we
demarcate the importance of poetry battles as forms of marginal/peripheral literature, in
view of their aesthetic and literary capacity to shed light both on important and urgent
themes and on individuals who still remain adrift of the political and social processes of
current juncture.

KEYWORDS: Peripheral literature. Poetry battle. Spoken poetry. Transvestite. Bixarte.

Considerações iniciais

Historicamente, a poesia falada (spoken word) dos slam – fenômeno poético que se
abrangeu pela cidade de São Paulo e pelo Brasil – assume ligação – ainda que indireta, por
vezes – não somente com os aedos e rapsodos da antiga Grécia, como também com os
repentistas e cordelistas do Nordeste brasileiro (NEVES, 2017).
Assim, ao aproximar-se da canção popular e das batalhas de rap, as batalhas de poesia
se firmam enquanto uma prática coletiva e, por isso, estabelece-se no limite entre o oral, o

80
Anais

escrito e o verbal, tornando a performance do slamer – nome que se dá a quem participa das
batalhas de poesia – um elemento primordial na apresentação de seus versos. Nas
composições, não obstante abarquem uma infinidade de temáticas, é corriqueiro que os
conteúdos temáticos, que aqui podem ser entendidos como os enredos, circunscrevam
questões ligadas a pautas sociais e políticas da contemporaneidade comprometidas com a
diversidade e, sobremaneira, com a inclusão de pessoas ainda (in)visíveis, a fim de expor as
problemáticas da sociedade.
A partir disso, este estudo objetiva analisar uma poesia falada que foi a vencedora do
Slam Resistência, na edição de 2021, da artista Bixarte, nome artístico para Bianca
Manicongo. Ao tomar esse ponto de partida, analisaremos a maneira como a poeta incorpora,
em sua fala, um discurso pautado sob a resistência, pois coloca, em evidência, relações sociais
problemáticas vividas por uma travesti face a uma sociedade ainda transfóbica.
De forma metodológica, realizamos, em primeira instância, a transcrição de sua
poesia – que se apresenta de forma falada em vídeo postado na plataforma YouTube – para
o texto escrito; logo em seguida, iniciamos, assim, a análise em torno do texto escrito. Nesse
sentido, partimos, então, de uma pesquisa de caráter qualitativo de vertente bibliográfica-
interpretativa, pautada, teoricamente, em estudos de autores diversos, dentre os quais
citamos: Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) e D’Alva (2014).
Em último prisma, acreditamos que o presente estudo pode colaborar de forma
positiva aos estudos de gênero e, acima de tudo, de literatura tida como marginal/periférica,
pois realça e lança luz a respeito de sujeitos travestis que ainda sofrem com as mazelas
históricas e que, além disso, são relegados ao silenciamento, à opressão e, por vezes, até
mesmo à morte.

Slam Poetry: à procura de contextualizações, definições e entendimentos

Inicialmente, a Slam Poetry, comumente conhecida como slam, refere-se a uma


manifestação específica de poesia falada dentro da cultura do Hip-Hop, que tem se
estabelecido como uma cena cultural bastante crescente em todo o país. Criada entre o fim
dos anos de 1980 e no decorrer da década de 1990, o slam tem sua gênese nas periferias dos
Estados Unidos e, por desenvolver-se, em sua maioria, nos centros urbanos, o slam encontra-
se ligado a atividades urbanas cuja interação social é indispensável, o que faz com que seja
comumente relacionado ao Hip-Hop (ALVES; SOUZA, 2020).

81
Anais

É válido frisar que, de acordo com Neves (2017), o termo “slam” é uma onomatopeia
da língua inglesa usada para significar o som de uma batida de porta ou janela. A autora ainda
ressalta que esse termo pode ser comparado à nossa “pá”, em língua portuguesa. Ademais,
esse termo também pode se referir às etapas finais de torneios de, por exemplo, baseball,
tênis, bridge e basquete.
De todo modo, o que se sabe é que a onomatopeia foi emprestada, inicialmente, por
Marc Kelly Smith – trabalhador de construção civil e poeta – para nomear o Uptown Poetry
Slam, evento de cunho poético surgido em Chicago, por volta de 1984 (NEVES, 2017).
Já no Brasil, por outro lado, Roberta Estrela D’Alva, atriz, diretora musical,
pesquisadora, apresentadora de programa infantil na TV Cultura e slammer3 brasileira, foi a
responsável por trazer, de acordo com Neves (2017), o “Poetry Slam”, mais especificamente
em dezembro de 2008, ao fundar o ZAP! Slam, em São Paulo. Para ela, pode-se conceituar o
Poetry Slam de amplas maneiras, a saber:

[...] uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão


poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo
mais uma forma de entretenimento. De fato, é difícil defini-lo de maneira tão
simplificada, pois, em seus 25 anos de existência, ele se tornou, além de um
acontecimento poético, um movimento social, cultural, artístico que se
expande progressivamente e é celebrado em comunidades em todo mundo
(D’ALVA, 2014, p. 109).

Sob uma nova linha de pensamento, também é plenamente cabível associar o evento
dos slams a um mecanismo de “arena”, pois, nesses espaços, discursos poéticos se
“digladiam” (NEVES, 2017). Em virtude disso, expressões do slam possuem a capacidade de
tensionar práticas que se intercalam, a exemplo das marcas culturais, orais, escritas e visuais
e, sendo assim, tais expressões situam-se no limite entre a literatura, a música, a arte e, acima
de tudo, o ativismo social (FREITAS, 2020).
Outro fator que não pode ser desconsiderado é o de que, para além de cenários
acadêmicos e elitistas, o slam chega às praças, às escolas, às escadas de prédios e a marcantes
espaços de circulação pública (ALVES; SOUZA, 2020). Freitas (2020) corrobora do mesmo
pensamento ao destacar que a poesia, nas batalhas de slam, deixa o ambiente acadêmico e
abandona, portanto, os modelos tradicionais de curadoria e de produção de sentido na

3 Na poesia falada, o “slammer” é o responsável por escrever os textos e memorizá-los antes da


apresentação.

82
Anais

medida em que flerta com a canção popular e, assim, torna-se prática coletiva que se
estabelece entre o oral e o visual, tornando a performance um elemento primordial. Nesse
diapasão, Alcade (2016) até arrisca dizer que, na contemporaneidade, a capital paulista
conta com 25 slams, somando, aproximadamente, 50 slams espalhados em todo o Brasil. Os
mais conhecidos, porém, são estes: ZAP! Slam; Slam da Guilhermina; Slam Resistência; Slam
das Minas.
Entretanto, esses movimentos não podem ser entendidos como construções livres e
aleatórias no sentido concreto, pois as batalhas de poesia também possuem regras –
mecanismo esse que, por sua vez, pode variar a depender do local. Apesar disso, é comum,
conforme Freitas (2020) apregoa, algumas características similares, tais como: a
necessidade de que os textos criados sejam sempre inéditos e autorais; a duração, que
permanece em torno de três minutos, no máximo; a ausência de adereços e/ou instrumentos
musicais; a presença de jurados especialistas ou, em alguns casos, o próprio público ouvinte
é convidado a dar notas ao artista que variam entre zero e dez.
Por outro lado, há, para D’Alva (2014), três regras básicas que norteiam todo e
qualquer slam: “os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-lo, deve
ter no máximo três minutos e não devem ser utilizados figurinos, adereços, nem
acompanhamento musical” (D’ALVA, 2014, p. 113). Por causa dessa última regra, Neves
(2017) informa que os slammers precisam se concentrar bastante tanto na voz quanto no
corpo, posto que não poderão utilizar-se de subterfúgios cênicos nas suas performances.
Alcade (2016) informa que o objetivo final dos slams não é conseguir ganhar sucesso
na mídia, tampouco obter dinheiro com seus eventos, mas, acima de tudo, o movimento
objetiva se fazer ser ouvido. Para ele, compartilhar a poesia oral, ler, declamar, escrever,
promover batalhas e transformar suas vivências em arte e educação por meio da linguagem
são os maiores desafios dos slammers no mundo atual.
Dessa forma, por se tratar de uma poesia falada, a linguagem oral, nesse sentido,
assume total significância. Consoante à socióloga e teórica Djamila Ribeiro (2017), a
linguagem pode ser compreendida como uma forma de manutenção do poder de um grupo
maioritário sob outro minoritário, uma vez que se pode ouvir e/ou calar grupos sociais,
reivindicar o lugar de fala e, também, o direito à voz de cada sujeito, o que permite que
indivíduos mesclem, em suas composições, aspectos vividos por eles mesmos.
Não à toa, a poesia falada pode ser um excelente meio para que populações, como a
negra, falem sobre si, destacando o seu próprio local de fala a fim de mostrar a realidade e a

83
Anais

negritude deste grupo específico, pois “quando pessoas negras estão reivindicando o direito
a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, 2017, p. 43). Daí, pois,
a necessidade de se refletir sobre o lugar de fala, haja vista que fazer isso implica a criação
de uma postura ética reivindicada pela prática do slam.
É notório, assim sendo, que os slammers produzem narrativas4 poéticas, em primeiro
plano, escritas, para depois serem performadas. Estas produções são capazes de reafirmar
suas origens, relatar suas próprias vivências, expor seus sentimentos, posições políticas e
seus protestos enquanto seres que se inserem como porta-vozes de grupos socialmente
marginalizados, conforme postula Barbosa (2020).
O slam coloca-se, portanto, enquanto um local em que a pluralidade e a multiplicidade
de vozes se mesclam, formando diversas narrativas de vida. Daí, portanto, o fato de que os
slams partem sempre do princípio da coletividade, pois ele se constitui mediante contato
com o outro (ALVES; SOUZA, 2020), uma vez que na maioria dos poemas, Freitas (2020)
destaca que o significado dos textos se constitui não só por meio da narrativa, ecoado em
primeira pessoa acerca da experiência individual e subjetiva da pessoa, como também por
intermédio da relação existente entre a voz, o corpo e, por fim, as histórias do público que as
ouve.
A respeito disso, Paul Zumthor (2007) demonstra todo aquele que lê ou declama algo
em voz alta consegue tocar o outro pelas orelhas, ao passo que aquele que escuta é,
diretamente, capturado não só pela melodia, mas também pelo ritmo impresso durante o ato
de declamação. Em suas próprias palavras, “escutar o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo,
sua voz que vem de outra parte” (ZUMTHOR, 2014, p. 81).
Para o estudioso, à medida que nos colocamos à disposição para ouvir o outro,
também escutamos a nós mesmos e ao nosso corpo, tendo em vista que, para o pesquisador
francês, a voz trata-se de um corpo que se lança ao outro para poder, assim, retornar a si
mesmo. Nessa ótica, a performance oral é, para além de linguagem verbal, também gestual,
tomada por ritos que exigem a participação do corpo em uma espécie de “teatralidade” ou
de “espetacularidade” (ZUMTHOR, 2007).

4 Neste estudo, adotamos a perspectiva de Barbosa (2020) ao dizer que narrar é, antes de tudo,
contar histórias, uma forma peculiar de entender não só o mundo, mas a nós mesmos também,
processo esse que se inicia desde mesmo a nossa infância, quando aprendemos a ouvir e a fabular.

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Anais

Apesar de tudo, Neves (2017) ressalta que a aceitação dos cânones tradicionais dessa
literatura tida como periférica não é pacífica. Dentre algumas justificativas para isso, alguns
apontam a “problemática” que reside no fato de essa poesia romper com a linguagem culta e
optar por valorizar termos e gírias próprias da periferia.
Stella (2015) confirma que essa literatura pode, de fato, provocar desconforto no
contexto literário nacional, tendo em vista que os indivíduos periféricos passam, então, a
reivindicar seu espaço na medida em que querem ser considerados como escritores. No
entanto, a estudiosa reitera a necessidade e a importância da legitimação das múltiplas vozes
que eclodem nesses espaços, indicando que é preciso conceber essa manifestação artística
não como um elemento exótico e/ou, muito menos, de valor estético inferior.
Com isso, percebemos que esse tipo específico de literatura, apesar de, por vezes,
diminuída e menosprezada, desempenha o seu papel enquanto arte e, em virtude disso, é
digna de ser estudada como qualquer outra. Diante disso, na seção seguinte, apresentaremos
uma análise aprofundada acerca da poesia transcrita da artista Bixarte.

O grito e a dor da travesti: uma análise da poesia falada de Bixarte

Antes mesmo de partir para a análise da poesia, é crucial explicar, ainda que de forma
breve, sobre a artista aqui tomada como referência para este estudo. Dessa forma, Bianca
Manicongo, artisticamente identificada como ‘Bixarte’, é poetisa, escritora, atriz e uma das
maiores expoentes do Rap Paraibano. Em dezembro de 2021, apresentou-se na edição Slam
Resistência com seu texto extremamente potente ao destacar, por meio de sua poesia falada,
a vivência, existência, resistência e dor de uma travesti face a uma sociedade ainda marcada
pela heterossexualidade e enraizada por fortes preconceitos contra aqueles que fogem de
normas preestabelecidas pelo convício social moderno. Na ocasião, convém ressaltar
também que a poetisa foi a vencedora da batalha de poesia da edição de 2021.
A seguir, apresentamos a transcrição da poesia da artista. Antes disso, consideramos
relevante frisar que essa transcrição não anula nem exclui a possibilidade de o leitor
procurar o vídeo para assisti-lo, uma vez que, ao transcrever o texto, seja ele qual for,
sabemos que isso não oferece o pleno entendimento a respeito da forma como o sujeito se
expressou, agiu e/ou esboçou reações – marcas típicas da oralidade. Além disso, ressaltamos
que tentamos manter, ao máximo, o uso de termos utilizados pela própria artista, ou seja,

85
Anais

não adequamos certos termos para a norma-padrão, pois acreditamos que, caso o
fizéssemos, desmereceríamos a estrutura linguístico-textual pretendida pela poeta.

Quadro 1 - Transcrição5 da poesia falada de Bixarte

Juro que em cada esquina e as brancas rica bem casada


tenho medo de virar inclusive economicamente sossegada.
pois na última que virei E eu me pergunto até onde a pobreza
eles tentaram me matar. vai ser a falta de consciência que eles têm
cês sabe burguesia safada
Disse que não me amava que da hipocrisia cês são tudo refém.
não me via na TV
que eu era muito trava e só queria me cumê. Eu lembro na noite passada
ele chegava perto de mim
Levantou a mão bateu ele passava a mão no meu corpo
o ferro logo puxou e eu dizia Deus que ele leve o meu celular
dois tiro foi disparado e que eu não chegue em casa um corpo morto
Pá pá pois eu não quero ser o motivo da minha mãe
chorar.
mais uma trava que ele matou.
Eu não quero chegar em casa
com uma vela nos peitos braços cruzados
A polícia inocenta quem arranca coração
e nunca mais a minha voz ela escutar.
travesti não tá segura nem na igreja nem no
busão.
É por isso que eu falo Mainha, eu te prometo que eu vou ser muito
feliz
só enxergo a maldade
o meu nome é Bixarte
nasça com o seu corpo cis e conheça a liberdade.
eu não sou prostituta
eu sou poeta e atriz.
Homem branco colonizador
E mais: vocês não vão encontrar o meu corpo
é visto como herói da pátria
preso numa viatura
até quando a preta no altar abandonou.
se vocês me queriam fazendo programa
E falo isso porque tô cansada

5 SLAM RESISTÊNCIA. Bixarte (vencedora) - Final Slam Resistência - dezembro 2021. Youtube. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=3EehckxB2qU. Acesso em: 15. mai. 2022.

86
Anais

de ver mainha sempre sendo as outras prazer: eu sou a própria literatura

FONTE: Os autores (2022)

Logo na primeira linha do verso, há um prenúncio de uma afirmação que será feita
em virtude de um medo do eu-lírico ao dizer: “juro que em cada esquina tenho medo de
virar”. Até então, não se sabe quem é esse sujeito que diz sentir medo de algo que,
aparentemente, é natural à maioria das pessoas. Em seguida, o medo sentido é justificado,
no poema, pela voz que declama quase ter morrido simplesmente pelo fato de ter
atravessado uma esquina: “pois na última que virei / eles tentaram me matar”.
É pertinente perceber que há lacunas nesse primeiro momento da poesia: primeiro
porque o leitor ainda não sabe o porquê determinada pessoa teria medo pelo simples ato de
atravessar um lugar e, segundo, pelo uso do “eles” ao apontá-los como responsáveis por
tentar matar esse ser. Não se sabe ainda, portanto, a quem o eu-lírico estaria se referindo.
Não obstante o leitor possa vir a se sentir perdido nesse primeiro caso, logo adiante
tudo lhe é entregue, uma vez que o eu-lírico, ao contar uma história, revelou que alguém lhe
disse que ela era muito “trava” e que só servia para “comer”. Ao leitor se revela, pela primeira
vez, o sujeito que parece gritar de dor, o tempo inteiro, na poesia. A própria abreviação
utilizada, que possui, em seu valor semântico, um valor negativo e transfóbico, foi descrita
pelo eu-lírico desse modo porque é justamente a forma como as outras pessoas se referiam
a ela.
Ao dar prosseguimento à análise, o que se vê em seguida é uma apresentação típica
de violência física à travesti. O “levantar a mão” já indica esse ato agressivo e, para realçar o
aspecto da agressão, inclui-se a morte desse sujeito: “dois tiros foi disparado”. A respeito
disso, de acordo com o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), responsável por
monitorar dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos
os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil
(PINHEIRO6, 2022).

6 Informações a respeito disso podem ser buscadas na matéria redigida por Ester Pinheiro, via “Brasil
de Fato”, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-
lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo. Acesso em: 16. jun.
2022.

87
Anais

É interessante perceber também que, nos trechos, surge a utilização oculta do “ele”
como o autor do assassinato “mais uma trava que ele matou”. Pode-se inferir que, assim
como no caso anterior, apesar de haver uma ocultação de quem seria esse ser, trata-se da
própria sociedade como um todo e, de modo mais afunilado, de transfóbicos que se
consideram no direito de decidir o fim da vida dessas pessoas.
Face à menção ao assassinato brutal de travestis, o eu-lírico realiza uma crítica
àqueles que, por lei, deveria proteger as pessoas: os policiais. Pode-se notar isso a partir do
verso “a polícia inocenta quem arranca coração”, que desmascara e demonstra um lado frio
e cruel dos oficiais – estes sendo os indivíduos que deveriam colocar-se à disposição para
culpabilizar os que são preconceituosos. Esse viés de crítica do eu-lírico persiste na mesma
construção ao mencionar que travestis não se encontram seguras nem na igreja – templo
este que poderia ser acolhida – nem no ônibus, local público e, apenas aparentemente, livre
a todos. Além disso, surge ainda a ideia apontada de que nascer em um corpo cis implica
conhecer a liberdade. A cisgeneridade, grosso modo, pode ser compreendida como a
condição de qualquer pessoa em que sua identidade de gênero corresponda,
necessariamente, ao gênero que lhe foi dado no nascimento. A travesti, neste contexto, não
conhece a liberdade justamente por não apresentar essa correspondência com a condição
que lhe foi imposta desde a sua gênese.
Para além disso, o eu-lírico contina a tecer críticas ferrenhas a outras estruturas
sociais, como a do homem branco, aqui apresentado como o “colonizador”, que consegue ser
visto como herói apesar de todo o sofrimento que causou aos colonizados. Para isso, o eu-
lírico compara essa relação colonizadora com a de uma mulher preta quando é abandonada
no altar, pois, como se sabe, mulheres pretas, ao longo da história, foram preteridas, mas não
preferidas, ao passo que mulheres brancas, por outro lado, casam-se e vivem uma vida
econômica estável. Há, nessa ótica, uma disparidade de cor bastante notória.
Encaminhando-se ao final da poesia, o eu-lírico, desta vez em primeira pessoa e
abandonando o uso do “ele(s)”, conta uma história a partir de um relato: em uma noite,
determinado sujeito – que não foi nomeado – passava a mão pelo corpo dessa mulher sem o
seu consentimento, haja vista o medo forte que sentia a ponto de clamar “que ele leve o meu
celular / e que eu não chegue um corpo morto”. Nesse encontro, o sujeito sente-se aflito e
perturbado em virtude da expectativa de que poderia morrer naquele lugar pelas mãos dessa
pessoa que passava por seu corpo. Nota-se, nesse viés, o conhecimento que as travestis já
têm acerca das estatísticas alarmantes sobre a morte de seu grupo.

88
Anais

Encerra-se a poesia, então, com uma promessa carregada de um tom lírico e


extremamente emotivo: a promessa à mãe de que essa travesti seria muito feliz – que vai
contra a ideia de que travestis são infelizes e morrem antes de alcançar determinado
patamar de felicidade. Com isso, ela conclui ao mostrar-se como sujeito autônomo e dona de
si na medida em que se apresenta como “Bixarte”, mas não sendo prostituta, mas poeta e
atriz. Aqui, o eu-lírico demarca, com nitidez, que não é prostituta porque é comum que as
pessoas associam as travestis diretamente ao ramo da prostituição, conforme ressalta
Benedetti (2013).
Para intensificar essa relação, o eu-lírico afirma que não morrerá, que não será mais
um número diante dos casos de assassinato contra travestis, pois a sociedade não irá
encontrar o corpo dessa pessoa em uma viatura – remetendo à prisão – nem no ócio da
prostituição, mas, acima de tudo, irá encontrar na literatura.
Compreende-se, nesse sentido, que o próprio eu-lírico vê-se como poeta pertencente
às artes e, de modo mais específico, à literatura, pois há um entendimento de que, nesse
espaço, poderá ter mais liberdade para falar sobre si mesma e sobre suas vivências e
experiências enquanto sujeito digno de amar, de viver e, acima de tudo, de existir.
Considerações finais

Nesta pesquisa, pudemos compreender as contextualizações históricas a respeito do


surgimento das batalhas de poesia, de modo a refletir sobre a sua gênese, primeiros
movimentos e, sobretudo, as características que norteiam esse movimento poético que tem
se espalhado pelo Brasil ao longo dos últimos anos.
Ressaltamos, também, o fato de que essa literatura tida como marginal e/ou periférica
ainda não é, amplamente, aceita pelos cânones literários atuais. Apesar disso, conforme foi
destacado, os slamers não buscam nenhuma aceitação, tampouco fama com seus textos, uma
vez que o objetivo principal vai bastante além desse ideal: que é o de poder contar, por si
mesmo, vivências e experiências de luta, dor e resistência do grupo social a que
pertencem/convivem.
Em virtude disso, notamos a importância desse movimento na medida em que surge
como um espaço de voz e de visibilidade para todos aqueles que, por séculos, tiveram de
permanecer relegados a processos de silenciamento e, também, de invisibilidade. Nas
batalhas, portanto, abraça-se a ideia da coletividade, pois uns precisam dos outros e vice-
versa.

89
Anais

O objetivo geral desta pesquisa foi alcançado a partir do momento em que se realizou
a análise em torno da poesia da poeta Bixarte. Com essa análise, tornou-se visível que a
linguagem empregada pela artista, conforme vimos, é carregada de uma potência artística
capaz de transformar dor e tristeza em arte.
Reiteramos, por fim, a necessidade de que outros trabalhos, como este aqui proposto,
possam surgir cada vez mais, com o propósito de que as batalhas de poesias tenham seu
lugar de privilégio no terreno da literatura brasileira e, ademais, artistas diversos espalhados
pelo mundo à fora consigam encontrar, na literatura, um caminho para a (sobre)vivência,
debate e reflexão tanto sobre si quanto sobre o outro.

REFERÊNCIAS

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ALCALDE, Emerson; ASSUNÇÃO, Cristina; MOTTA, Rodrigo; CHAPÉU, Uilian (Orgs.). Slam da
Guilhermina: três ponto zero. 1.ed., São Paulo: 2016.

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manifestação cultural na escola. Travessias, v. 14, n. 2, p. 233-250, 2020.

BARBOSA, Liége Freitas. Entre Peleia e Chamego: Um estudo de práticas, performances e


ambivalências em batalhas de poesia do SLAM no RS. 234 f. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação, Porto Alegre, BR-RS, 2020.

BENEDETTI, Marcos. A batalha e o corpo: Breves reflexões sobre travestis e prostituição.


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D’ALVA, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. São Paulo:
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FREITAS, Daniela Silva de. Slam Resistência: poesia, cidadania e insurgência. Estudos de
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MANICONGO, Bianca. Quando comecei recitar poesia, sempre sonhei em pisar nesse
lugar. 4. jan. 2021. Instagram: @bixarte. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CYUl43ejHJh/. Acesso em: 15. mai. 2022.

NEVES, Cynthia Agra de Brito. Slams – letramentos literários de reexistência ao/no mundo
contemporâneo. Linha D'Água (Online), São Paulo, v. 30, n. 2, p. 92-112, out. 2017.

RIBEIRO, Djamila. Feminismos Plurais: O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento,
2017.

90
Anais

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15. mai. 2022.

STELLA, Marcello Giovanni Pocai. A batalha da poesia: o slam da Guilhermina e os


campeonatos de poesia falada em São Paulo. In: Ponto Urbe – Revista do núcleo de
antropologia urbana da USP. São Paulo, 2015.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

91
AS AVENTURAS DE
BAMBOLINA: LITERATURA
INFANTIL E LEITURA DE
IMAGENS EM CONTEXTO DE
ESCOLA PÚBLICA
Júlio César Lima FERNANDES (UNICAP)1
André Luiz de ARAÚJO (UNICAP)2

RESUMO

Desde o mês de maio do ano 2017, a Escola Municipal Lúcia Giovanna Duarte de Melo, em
João Pessoa - PB, desenvolve junto às crianças matriculadas, um projeto de leitura, efetivado
pela parceria com a Universidade Federal da Paraíba. Esta ação pedagógica permanente têm
sido um suporte que abarca momentos de formação aos professores, como também a
aplicação de estratégias de leitura literária. A proposta presente é apresentar aos leitores o
sub-projeto de leitura que foi aplicado nas turmas do infantil 5 durante o ano de 2019.

Palavras-chave: Leitura, Literatura, escola.

ABSTRACT

Since May 2017, the Lúcia Giovanna Duarte de Melo Municipal School has developed a
reading project with the enrolled children, carried out in partnership with the Federal
University of Paraíba. This permanent pedagogical action has been a support that
encompasses moments of teacher training, as well as the application of literary reading

1 Doutorando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.


2 Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco

- UNICAP.

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Anais

strategies. The present proposal is to present to readers the reading sub-project that was
applied in the children's 5 classes during the year 2019.

KEYWORDS: Reading, Literature, school.

1 Introdução

Dentro do grande projeto de letramento literário “Lúcia Giovanna no mundo da


Literatura Infantil”, há quatro subprojetos diferentes, sendo cada um deles focado em um
ano (Período) específico dos anos iniciais da Educação Básica. Todos esses subprojetos
convergem na ideia de propiciar experiências literárias significativas para os leitores em
formação.
O presente subprojeto, visa a descrever e refletir sobre as ações desenvolvidas junto
às crianças das turmas do Pré-II, com idade entre 5 e 6 anos. Ao todo, há três turmas, com
mais ou menos vinte e seis alunos em cada uma delas. O que se sabe sobre os pequenos, em
relação à experiência literária, é que nem todos possuem familiaridade com a leitura, embora
seja notável o gosto de folhear livros na biblioteca e na sala de aula e de apreciar os
momentos de contação que acontecem durante as aulas. Por essa razão, as atividades de
contação de histórias contribuem significantemente para a formação leitora desses alunos
que, salvo exceções, não teriam acesso à literatura por outros meios.
Falando especificamente sobre o livro que subsidia o subprojeto em pauta, foi
adotada a obra As Aventuras de Bambolina, escrita e ilustrada por Michele Iacocca, publicado
no Brasil em 2006 pela Editora Ática. A supramencionada obra é um livro de imagem (sem
palavras escritas, narrado exclusivamente por ilustrações) que aborda questões sensíveis
como abandono, sentimento de solidão, descarte de bens materiais e o problema de crianças
em situação de vulnerabilidade.
O livro faz isso retratando várias situações vividas pela personagem principal,
Bambolina, uma boneca de pano que, de início, pertence a um menino. A história começa
quando o garoto dono de Bambolina ganha de presente uma nova boneca, mais moderna,
dessa vez de corda, e joga a antiga fora. A partir daí, se inicia, de fato, "as aventuras de
Bambolina": ela, a boneca, passa por muitos donos e lugares (artista de rua, crianças sem
teto, policiais, delegacia) e acaba sendo abandonada por todos, até ser encontrada por um
lixeiro e levada por ele a um restaurador/colecionador, que cuida dela e a transforma em
estrela de um show.

93
Anais

A escolha da história de Bambolina não foi feita ao acaso. A literatura infantil


possibilita a sensibilização da criança frente às questões cruciais de seu desenvolvimento
psíquico e emocional. Nesse contexto, As Aventuras de Bambolina permite que os alunos
reflitam sobre os temas abordados no enredo e também consigam projetar suas próprias
vivências e experiências. Nas palavras de Heloíse Martins Machado:

Quando ouvimos histórias, podemos sentir as emoções das personagens


como a alegria, a tristeza, a raiva, o pavor, a segurança, o desconforto, a
tranquilidade, entre outras. Dessa forma, ler e contar histórias é suscitar o
imaginário, ter curiosidade para ser respondida em meio a tantas perguntas,
encontro de deias para resolver os conflitos das personagens, possibilitar a
vivência de impasses de nossa sociedade e conhecer possibilidades de
soluções; é se identificar com algumas características das personagens e,
assim, iniciar um processo de criação de sua própria identidade. (p. 7638-
7639, MACHADO, 2015).

E é pensando justamente nessa intersecção entre literatura e a vida cotidiana da


criança que o subprojeto se inscreve: permitindo que, depois da contação da história, o aluno
leve para a sua casa o livro e uma boneca-réplica da personagem principal, prolonga-se a
experiência literária de um jeito lúdico e são envolvidos outros agentes, como pais e
familiares, uma vez que as crianças poderão contar a eles suas próprias versões da história.
Todos os detalhes da ação serão descritos no tópico destinado à Metodologia. Por ora, é
importante salientar o papel crucial que as professoras desempenham ao longo da execução
das atividades.
Reconhecendo que cabe ao professor a tarefa de mediar o processo de aprendizagem
e letramento, ele deve instigar a curiosidade dos alunos e tomar para si a responsabilidade
de prover um contato agradável com a leitura, intelectualmente ativo e desafiador. Ainda
segundo Machado,

[...] o papel do educador é propiciar experiências positivas com os livros e


suas histórias de forma lúdica e divertida, a fim de despertar a curiosidade
das crianças para o mundo letrado, instigando-os assim a se tornarem
leitores críticos e encantados pelo mundo da leitura. É preciso, então, olhar
para a literatura infantil, principalmente nessa faixa etária de 6 anos,
compreendendo-a como um recurso essencial para o processo de
alfabetização e letramento, bem como para o desenvolvimento social e
psicológico infantil, uma vez que amplia sua criatividade, leitura de mundo,
linguagem e imaginação. (p. 7650, MACHADO, 2015)

94
Anais

Assim, o subprojeto As Aventuras de Bambolina se mostra mais do que necessário,


uma vez que ele se integra aos objetivos escolares de alfabetização, além de cumprir a função
de apresentar o universo da literatura para as crianças e também de torná-las sujeitos de
suas próprias histórias, visto que elas poderão viver, na prática, suas próprias aventuras com
a personagem Bambolina.

2 Objetivos

a. Experienciar o texto literário;


b. Identificar e descrever personagens;
c. Compreender as relações de sentido entre as imagens;
d. Exercitar a linguagem oral e escrita;
e. Aumentar o vocabulário a partir das discussões feitas em sala;
f. Envolver a família em processos de leitura;
g. Aguçar a imaginação e a criatividade.

3 Recursos

a. Livro As Aventuras de Bambolina, de Michele Iacocca;


b. Sacola de tecido estampado;
c. Boneca de pano, de cerca de um metro, representando a personagem Bambolina;
d. Ficha de leitura.

4 Metodologia

A execução do subprojeto As Aventuras de Bambolina se divide em três momentos


diferentes: o antes, que funciona como uma etapa motivadora, que tem como objetivo fazer
com que os alunos “entrem no clima” da proposta; o durante, que consiste na própria
contação da história e de tudo que envolve essa contação; e o depois, que mostra como a
literatura se faz presente depois da história ter sido contada, como os alunos prolongam essa
experiência.

4.1 Antes

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Anais

Antes da leitura da história e de qualquer ação serem realizadas, é preciso envolver a


família dos alunos para que entendam como funcionarão as ações e atividades. Assim, faz-se
necessário realizar uma reunião com os pais dos alunos para explicar os objetivos deste
subprojeto e também para apresentar o livro norteador (As Aventuras de Bambolina) e a
boneca-personagem da Bambolina. Em linhas gerais, deve-se dizer que a boneca é a
personagem principal do livro trabalhado em aula e que a ideia do subprojeto é propiciar
uma experiência literária significativa a partir da leitura e da possibilidade de levar a boneca-
personagem junto do livro para a casa, para que as crianças recontem a história e criem suas
próprias aventuras.
Uma vez que este passo seja feito, coloca-se em prática, finalmente, a ação junto as
crianças. Deve-se mostrar o livro buscando o encantamento. É necessário guiar os olhos das
crianças para que elas se interessem pela história contida dentro do livro. Assim, deve-se
ressaltar os aspectos visuais da capa, fazendo com que os alunos se atentem às cores, aos
elementos da capa, aos elementos pré-textuais presentes no livro e também às personagens
principais, além de, claro, fazer com que eles percebam que ler um texto sem palavras
também é uma forma de leitura.
Recomenda-se que essa primeira aproximação entre os alunos e o livro aconteça na
sala de aula. As crianças e as professoras mediadoras podem se
sentar em círculo e, nessa formação, trazer à baila a discussão de alguns dos temas do
livro e perguntar o que enxergam na imagem (quem elas acham que é “Bambolina”; o que
elas veem na capa, se sabem onde está escrito o nome do autor e do ilustrador da obra, etc).

4.2 Durante

O primeiro contato das crianças com o livro As Aventuras de Bambolina deve ser
mediado pela professora. Ele pode ser apresentado aos alunos junto da réplica da
personagem.
É indicado que a professora-mediadora faça perguntas que agucem a curiosidade dos
pequenos, direcionando seus olhares para detalhes de caracterização e composição da
personagem. Algumas das perguntas sugeridas são:

a. Do que vocês acham que se trata essa história?

96
Anais

b. Quem é Bambolina?
c. Com o que ou com quem Bambolina se parece?

Uma vez que o livro e a personagem tenham sido apresentados, a professora pode
permitir que os alunos toquem e brinquem com a boneca-personagem Bambolina. Em
seguida, deve-se, então, realizar a contação da história. A ideia é que a professora estimule
as crianças a trazerem seus conhecimentos prévios para ajudar a contribuir na construção e
no desenvolvimento do enredo. Isso é especialmente válido quando se pensa em livros de
imagem, que é o caso de As Aventuras de Bambolina.
Segundo Duarte, Silva e Formiga (2017):

O livro de imagem concede ao leitor, qualquer que seja a faixa etária, a


oportunidade de coautoria, uma vez que abre o espaço para que ele crie
virtualmente a narrativa, dependendo de sua criatividade e de sua
experiência leitora. (DUARTE; SILVA; FORMIGA, 2017).

Esse ato de contar em conjunto, estimulado a partir da mediação, tende aser ri co: se
a professora fizer perguntas a respeito das personagens que aparecem na narrativa e
também sobre os espaços em que a boneca circula (“quem é o homem que dança com
Bambolina?”, “por que ela foi jogada fora?”, “por que as crianças fugiram do policial?”, “quais
os lugares pelos quais Bambolina passou?”, etc.), os alunos, voluntariamente, contribuirão
com suas distintas visões sobre as mesmas imagens e, assim, o sentido será construído de
forma coletiva.

4.3 Depois

Pensando que a experiência literária se estende para além do ato de ler a história,
elaboramos algumas ações que podem ser executadas após a contação. A ideia é que o
conjunto dessas ações faça com que a supramencionada experiência literária não se encerre
em si mesma e se estenda para além das paredes da escola, afetando não só os alunos como
também seus familiares e a comunidade escolar como um todo.
Assim, durante a semana, a cada dois dias, um aluno é sorteado para levar uma sacola
para casa, contendo a boneca réplica da personagem Bambolina e o livro As Aventuras de
Bambolina. A criança que levar a sacola para a casa deve ser orientada a contar a história do

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Anais

livro para um familiar, envolvendo outras pessoas no processo de leitura. Além disso, ela
deve ser estimulada a criar e a viver suas próprias aventuras com a personagem.
A dinâmica da ação deve continuar mesmo depois dos alunos trazerem o livro de volta
para a escola. Após o retorno, a criança deve recontar a história de Bambolina para a turma
e também narrar sua experiência com a personagem.
Dessa forma, cada um, a seu modo, irá relatar o que viveu com Bambolina
(exercitando sua capacidade de organização de ideias e sua criatividade) e também recontar
a história que fora contada antes, em sala de aula. Esse reconto é especialmente interessante
quando se pensa que:

Ouvir várias vezes a mesma história ou canção, brincar das mesmas coisas,
são para ela [a criança] atividades saudáveis ao seu desenvolvimento, pois
não só ajudam a entender condutas humanas como operar com sentido
pessoal de acordo com o significado social. (GRACILIANO; MELLO, 2018).

Outra ação que pode ser executada é a da escrita de uma ficha de leitura do livro (ver
apêndice). Essa atividade, que é solicitada não só na ação do subprojeto, mas também em
toda e qualquer contação efetuada na escola, consiste em fazer com que o aluno ilustre e
escreva a história que ouviu na contação, visando exercitar a escrita e a imaginação das
crianças. É importante que esta atividade seja feita em sala e seja mediada pela professora.
É pedido, assim, que a professora escreva no quadro o nome do livro e do autor da
obra em pauta e, em seguida, distribua para os alunos as fichas. Na frente da ficha, a criança
é orientada a recontar por escrito a história de Bambolina – mesmo que de um jeito não
convencional, uma vez que estas crianças se encontram nos estágios iniciais de alfabetização
e ainda não dominam, obviamente, questões relacionadas à norma padrão. É pedido também
que ela ilustre o que conta. Uma vez que o aluno tenha concluído a atividade, a professora
deve, no verso da ficha, reescrever o que o aluno contou dentro do registro padrão.
Dessa maneira, graças ao conjunto de ações relacionadas à experiência literária (o
antes, o durante, o depois), Bambolina tende a contribuir para que a criatividade e a
imaginação de cada criança fiquem cada vez mais aguçadas, fazendo com que elas percebam
que leitura não é feita apenas de palavras, mas também de imagens. E que percebam
também, desde cedo, que ler literatura é algo que pode propiciar diversão, contentamento e
também aprendizagem.

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5. Resultados: considerações e reflexões

Durante o ano de 2019 as ações descritas neste subprojeto foram, de fato, executadas.
Ao longo dos processos, as professoras se depararam com alguns desafios e alguns relatos
inusitados. Neste tópico, elencaremos alguns destes desafios e relatos e, partindo deles,
faremos algumas reflexões sobre a prática e os efeitos observados na comunidade escolar.
Logo no início, foi especialmente interessante notar o envolvimento e engajamento
das crianças. Um exemplo desse engajamento foi quando elas, vendo um dos professores da
escola com um violão na mão, pediram que cantassem “a música da Bambolina”. De maneira
orgânica e lúdica, alguns versos foram criados em cima de uma melodia improvisada. Esses
versos viraram “a música da Bambolina” e foram entoados em ocasiões diversas. Abaixo, a
letra da canção:

Bambolina {8 vezes}
Bambolina é uma boneca
Que não pode jogar fora
Ela pula, ela senta, ela anda e rebola.

Não foram apenas as crianças que se engajaram no subprojeto. Os pais dessas


crianças também. Há famílias que se comprometeram tanto com o projeto que contribuíram
em deixar a personagem Bambolina cada vez mais bem cuidada. Certa vez, depois de algumas
idas às casas das crianças, a boneca apareceu com um pequeno rasgo no braço. O pai de um
dos alunos, vendo aquilo, pediu autorização para costurar Bambolina e deixá-la novinha.
Essa atitude ilustra muito bem o envolvimento e o cuidado das famílias. Isso sem contar que
as famílias também são envolvidas em situações de leitura, já que seus filhos recontam a
história quando levam o livro e a personagem para a casa.
Ainda assim, há alguns pais que não aceitam que os filhos levem a personagem para a
casa, às vezes por questões religiosas ou por questões culturais. Todavia, esses casos, perto
do todo, acabam sendo exceções. Pensando nessas crianças e no fato de que algumas delas
manifestaram o desejo de participar das atividades, as professoras, então, têm reservado um
espaço nas aulas para que esses alunos também possam (re)contar para a turma a história
do livro.
A respeito das aventuras que os alunos vivenciaram com as personagens, há inúmeras
histórias curiosas. Houve quem dissesse que Bambolina fez xixi na cama, que dançou ballet,

99
Anais

que brincou de carrinho e até que acordou a criança “jogando um balde de água com sabão”.
Uma das alunas contou, inclusive, que acordou no meio da noite e viu “Bambolina com aquele
olhão” a vigiando. Quando indagada pela professora se teve medo, a criança foi enfática ao
dizer que não, que “aquele olhão dizia ‘vai dormir mais!’”.
É interessante notar como a boneca-personagem ganha, pela imaginação das crianças,
ares de “real”. A fabulação e a criatividade se tornam elementos ativos da experiência
literária. A boneca, nesses contextos, acaba virando mais do que uma mera boneca, ela é
encarada como personagem e vira uma amiga que, de fato, vivência junto dos pequenos uma
porção de aventuras. Não à toa, ela já participou, na qualidade de convidada, de festas de
aniversário, brincadeiras e piquenique.
Isso se reflete e transparece também quando alguns dos alunos reescrevem a história
de Bambolina nas fichas de leitura – espaço este que, originalmente, fora desenvolvido para
que a criança recontasse a história do livro. A criatividade é tamanha que há quem registre
suas próprias aventuras, acrescentando elementos que não estavam no enredo original.
Ciente disso, as professoras começaram a pensar que talvez, no próximo ano, seja
interessante, como tarefa, desenvolver no papel, deliberadamente, também as próprias
fabulações das crianças – como se elas fossem autoras não só do reconto da história, mas de
suas próprias aventuras com Bambolina.
Não obstante o fato de que as crianças desenvolveram a imaginação e trabalharam
suas habilidades de escrita, a experiência do subprojeto propiciou uma onda de leitores mais
atentos. Depois de Bambolina, as crianças passaram a prestar mais atenção nas imagens, a
observar mais detalhes dos cenários e na fisionomia das personagens. Algumas crianças
passaram a distinguir, por exemplo, rua, túnel e viaduto; além de chamar a atenção das
professoras a alguns detalhes do enredo. Eles passaram, também, a completar o sentido das
imagens com suas próprias experiências (o homem que dança com Bambolina na história
original, segundo as crianças, é “o homem do saco”) e, na hora do reconto, passaram a
estabelecer conexões visíveis entre as partes da história com uso de recursos de coesão (“e
depois...” e “e aí”, principalmente).
A mudança de percepção (e, consequentemente, prática) também atravessou as
professoras que, notando o interesse das crianças, passaram a fazer, durante outras
contações, perguntas mais específicas sobre as imagens – tornando-se assim mediadoras
mais atentas. Algumas delas, que até então não tinham experiência na leitura e na mediação
de livros de imagens, disseram que passaram a preferir usar livros desse tipo em suas aulas

100
Anais

por causa do leque de possibilidades de trabalho, já que, no livro de imagens, “uma coisa
puxa a outra” e as experiências tendem a ser riquíssimas, uma vez que as crianças, sentindo-
se mais à vontade com esse tipo de literatura, parecem se engajar e se apropriar das histórias,
justamente por perceberem que imagens também podem contar histórias de forma mais
ativa e autônoma: se em livros ilustrados ou em materiais de leitura com texto verbal as
crianças tendem a entregar os objetos para a professora, com os livros de imagem elas se
tornam exímias contadoras, que não só descrevem o que veem, mas que também
concatenam ideias e criam enredos possíveis a partir das imagens.
Diante de tudo, pode-se dizer que, embora o subprojeto ainda esteja em andamento,
as transformações e consequências observáveis a partir dele já são sentidas nas frentes
descritas até aqui. Isso faz com que acreditemos que As Aventuras de Bambolina, o livro, está
sendo um passo importante na bagagem leitora das crianças e que As Aventuras de
Bambolina, o subprojeto, está sendo um passo igualmente importante na formação leitora
dos alunos e das alunas.

REFERÊNCIAS

CHAGAS, Lilalne Maria de Moura; DOMINGUES, Chirley. A literatura infantil na alfabetização


da criança leitora. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 33, n. 1, p. 77-95, jan./abr. 2015.

DUARTE, Cristina Rothier; SILVA, Ana Paula Serafim Marques da; FORMIGA, Girlene
Marques. Lendo imagens e compondo histórias em A Pequena Marionete, de Gabrielle
Vicente. SELIMEL – X Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna, Estrangeira e de
Literaturas. Universidade Federal de Campina Grande, nov. de 2017.

GRACILIANO, Eliana Cláudia; MELLO, Maria Aparecida. A Organização do Ensino de


Leitura de Histórias Para Crianças Na Educação Infantil. In:

IACOCCA, Michele. As Aventuras de Bambolina. São Paulo: Editora Ática, 2000.

MACHADO, Heloíse Martins. A literatura infantil, a contação de histórias e o processo


inicial de escolarização: em discussão a proposta do MEC. Educere - XII Congresso Nacional
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SEGABINAZI, Daniela Maria; SOUZA, Renata Junqueira de; GIROTTO, Cyntia Graziella
Guizelim Simões. Educação Literária: infância, mediação e práticas escolares. Tubarão (SC):
Copiart, 2018.

101
ASSOMBRAÇÃO: A
CONFIGURAÇÃO DA IMAGEM
DO CASARÃO DO MARECHAL
RONDON NO ASSENTAMENTO
ANTÔNIO CONSELHEIRO
Maria Madalena da Silva DIAS (UNEMAT/PPGEL)1

RESUMO

Há neste estudo a ânsia de problematizar a partir de um conjunto de narrativas de


testemunho e histórias de si do livro “Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro” (2009)
a representação do casarão do Marechal trazendo a dimensão da relação do homem do
campo com a terra. Desse conjunto de narrativas, selecionamos para analisar a configuração
da imagem do Casarão as narrativas: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido
Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com
a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez...”, “A cobra e o casarão”, “História de
assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no
casarão” e “Casarão assombrado”. Do livro habitado por vozes, o poder de fala é exclusivo
dos homens e das mulheres que ocupam a posição de comunidades frágeis, por serem
ignorados pelos aparelhos de Estado. Se a história que o povo conta parece viver profundo
desprestígio, num país que não se quer ouvir falar de povo; ainda mais grave quando o povo
é aquele denominado de vagabundo, roceiro e arruaceiro; sim, aqueles que lutaram pela
reforma agrária. Organizaram-se em Movimento de retorno pela terra (MST), se uniram e

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PPGEL) da Universidade do Estado de


Mato Grosso – UNEMAT campus de Tangará da Serra. Bolsista CAPES/Edital 013/Amazônia Legal/2020. E-
mail: maria.dias@unemat.br

102
Anais

conquistaram o direito de retornar ao campo. Para pensar essa questão, partimos de


conceitos teóricos apresentados por Antonio Candido e Gaston Bachelard.

Palavras-chave: Casarão Assombrado: Espaço: Narrativas Orais e Comunidade.

ABSTRACT

In this study, there is an eagerness to problematize, from a set of testimonial narratives and
self-stories from the book “Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro” (2009), the
representation of Marechal’s big old mansion, bringing the dimension of the rural man’s
relationship with the land. From this set of narratives, we have selected narratives to analyze
the image configuration from the Casarão: “Família e acampamento”, “Escola Marechal
Candido Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”,
“Contente com a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez…”, “A cobra e a mansão”,
“História de assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra
motorista no casarão” and "Casarão assombrado". From the book inhabited by voices, the
power of speech is exclusive to men and women who occupy the position of fragile
communities, as they are ignored by the State apparatus. If the story that the people tell
seems to experience a deep loss of prestige, in a country that doesn't want to hear about the
poor; it gets even more serious when those people are called vagabonds, peasants and
troublemakers; yes, those who fought for agrarian reform. They organized themselves into
the Landless Rural Workers' Movement in Brazil (MST), united and won the right to return
to the countryside. To think about this question, we have used theoretical concepts
presented by Antonio Candido and Gaston Bachelard.

KEYWORDS: Haunted House: Space: Oral Narratives and Community.

Por que um casarão pode despertar interesse? Diriam alguns que a prosa deste texto
deveria começar contando a história desse casarão. Outros duvidariam da sua existência, não
fosse seu antigo dono um cidadão ilustre, desses que a História não cansa de consagrar como
o herói. E, acaso, há heróis neste país? Aliás, como falar de heróis nestes tempos tenebrosos?
Avancemos. Fato é que a história oficial já foi contada. Quem não sabe do Marechal Rondon
e o telégrafo levando progresso para o sertão? Pois, sim. Pois, sim. O casarão foi do Marechal
Rondon2 que andou até por estas bandas de Tangará da Serra, passando por Barra do Bugres,
como destemido homem do telégrafo. Verdade que até hoje progresso não veio por estas
bandas, nem telégrafo, nem ferrovias, não há por léguas e léguas, nunca houve, nem sei se
um dia haverá. Fato é também que o sertão ganhou uma rota como ânsia de progresso.
Não falaremos do Marechal, falaremos de narrativas que dão vida a um lugar,
falaremos de histórias que o povo conta. Como diria Machado de Assis, acaso o leitor não se

2 Mais informações sobre as Expedições Telegráficas na localização do casarão ler o capítulo “Comissão de
Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas V” na obra Rondon conta sua vida (2010), de Esther Viveiros.

103
Anais

interesse por histórias, por histórias que o povo conta, deite fora este texto. Quem mesmo
quer saber? E dentre as histórias do povo deste sertão, uma delas chamou-nos a atenção: as
histórias do casarão, localizado no Assentamento Antônio Conselheiro3. São histórias
contadas por seus moradores, assentados, vigilantes da terra. Da história ouvida da boca,
contada por mais de um, há de ser verdade, não é, não? Essa coisa de espreitar a verdade na
sabedoria popular. Tanto em tanto de ouvir as histórias do povo do assentamento, se achou
tanto em tanto de verdade que se colocou em livro. E está lá para todo mundo vê. Para todo
mundo lê.
O livro Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro, publicado em 2009, organiza um
conjunto de narrativas de testemunho/ou histórias de si, a partir do lugar do homem
assentado, construindo uma imagem do homem e da sua relação com a terra. Desse conjunto
de narrativas, selecionamos para analisar a configuração da imagem do Casarão. As
narrativas escolhidas são: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido Rondon”, “A
organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com a terra”, “O
fantasma do casarão ataca mais uma vez...”, “A cobra e o casarão”, “História de assombração”,
“Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no casarão” e “Casarão
assombrado”.
Do livro habitado por vozes, o poder de fala é exclusivo dos homens e das mulheres
que ocupam a posição de comunidades frágeis, por serem ignorados pelos aparelhos de
Estado. Se a história que o povo conta parece viver profundo desprestígio, num país que não
se quer ouvir falar de povo; ainda mais grave quando o povo é aquele denominado de
vagabundo, roceiro e arruaceiro; sim, aqueles que lutaram pela reforma agrária4.
Organizaram-se em Movimento de retorno pela terra (MST), se uniram e conquistaram o
direito de retornar ao campo. Em território de latifundiário, de agronegócio, quem vai querer

3 O Assentamento Antônio Conselheiro, situado no Estado do Mato Grosso, é um dos maiores assentamentos
da América Latina, o território que o compõe é bem extenso, 38.337 hectares e é cortado por 527 quilômetros
de estrada. Geograficamente, abrange os municípios de Tangará da Serra, Barra dos Bugres e Nova Olímpia e,
é resultado de uma luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Comporta hoje um total de 999
famílias divididas, espacialmente, em sessenta e três agrovilas e, em três microrregiões: Zumbi dos Palmares,
na região de Nova Olímpia; Che Guevara na região de Tangará da Serra e Paulo Freire na região da Barra dos
Bugres. A divisão legal do assentamento ocorreu no ano de 1998, porém, as lutas iniciaram bem antes, os
primeiros registros que se tem de que os assentados já acampavam essa região é de 9 de outubro de 1996.
4 Maiores informações sobre o movimento de luta pela terra, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e a origem do Assentamento Antônio Conselheiro ler os artigos: “Movimento dos homens e
mulheres e a luta pela terra no Mato Grosso”, “Um olhar sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra – MST” e “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita de Si” na obra Olhares: realidade,
construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice Vilalva (Org) [et/al].

104
Anais

saber de histórias de assentados? O homem do campo e a narrativa do seu retorno à terra,


tal qual em êxodo, precisa contar o que foi essa experiência. Há o desejo neste sujeito em
conquistar a terra, bem como conquistar a casa própria, a casa que é o seu lugar de morada,
de proteção. Segundo Gaston Bachelard (1993, p. 200), a casa tem uma simbologia muito
significativa na história de cada indivíduo, “a casa é nosso canto do mundo [...] nosso
primeiro universo”, ou seja, a casa é nosso espaço de pertencimento no mundo, ela nos
permite uma espécie de reconhecimento. Se a casa é um símbolo de conquista, a narrativa é
o meio de expressar essa conquista, e o meio pelo qual o homem expressa seu lugar no
mundo, desde o mundo em que habita ao mundo em que deseja. E nesse sentido, como
explica Antônio Candido, a estrutura narrativa carrega e faz emergir as condições de uma
sociedade e as identidades complexas do seu discurso.
As narrativas do retorno ao campo formulam pela contingência de um meio de
produção (social e histórico) e reproduz pela linguagem, pela formulação de cada narrativa,
suas bases sociais e históricas como representação do mundo. Bem verdade que um mundo
mutilado, desigual, injusto e cruel.
Os assentados tiveram um longo percurso de luta para sair da cidade e realizar o
grande desejo de ter a posse de um pedaço de terra: “encontrar um pedaço de terra, onde a
gente pudesse criar a família” (2009, p. 41) e “trabalhar no que era da gente” (2009, p. 29).
Essas narrativas mostram a força do grupo, que viveu o seu passado no campo, e no presente
narra o seu retorno à terra para reviver as suas origens/raízes “sempre gostei de trabalhar
na terra” (2009, p. 50).
A luta de homens e mulheres para edificar o assentamento foi árdua tanto para a
conquista da terra “possuir uma terra” (2009, p. 36), quanto para ter a tão sonhada casa,
“não tínhamos casa [...] Essa casa foi pelo financiamento” (2009, p. 52). Para eles, ter a posse
da casa representa uma mudança de realidade de vida, pois ao possuí-la, deixam um passado
de aprisionamento e privações por causa de aluguel. A casa, de acordo com Bachelard, é um
espaço sagrado, é o lar do indivíduo, é um espaço no qual o sujeito busca por segurança. Se
a marca do discurso em todas as narrativas é a do retorno, do desejo pela casa e pelo lar, os
assentados encontram uma casa que refugia outro passado, com o qual não há identidade,
nem semelhanças.

105
Anais

A terra cortada da fazenda Tapirapuã5 para alojar os assentados na construção do


Assentamento Antônio Conselheiro, guarda na sua história um casarão, construído no ano
de 1906. Morada de passagem de um dos maiores heróis nacionais. Além de guardar um
passado distante, anterior aos testemunhos dos assentados, o casarão é o principal espaço
do enredo de muitas narrativas presentes no livro. A casa, chamada de Casarão pelos
assentados, pelo tamanho da morada de ninguém, pela força em que sobressai ao tempo,
numa terra de lutas, pelo passado de latifúndio que representa. O Casarão é a morada de
ninguém que assume outras ocupações no assentamento, sem perder o seu valor histórico,
contrasta com o presente e o futuro das casas modestas dos assentados. Um Casarão à beira
do rio Sepotuba, rodeado por um imenso quintal, cheio de árvores e plantas. O idílio para
qualquer assentado. Eis que essa casa já estava lá, feita já grandiosa por alguém e para
alguém, mesmo sendo casa de ninguém. É o Casarão que representa a figura do patrão, do
latifundiário, tal qual a casa grande (não tão velha) e a tão conhecida senzala. A relação que
os assentados têm com suas casas e este casarão é muito distinta. Os assentados chamam as
suas moradas de “barracos”, “nós fizemos um barraco” (2009, p. 29), sem poder para sonhar
com um casarão. Assim, o casarão além de trazer uma metáfora do passado opressor, vivido
pelos assentados “depois que eu entrei dentro desse sítio aqui, eu nunca trabalhei pra fora
pra adquirir recurso. Vivo daqui” (2009, p. 50), representa uma metáfora de tudo o que os
assentados lutaram contra a sujeição a posição de empregado mal remunerado “sempre
pensei que, no dia que eu pegasse um pedaço de chão pra mim sobrevivê, eu numa saia pra
enriquecer fazendeiro” (2009, p. 50).
O casarão une dois tipos de sujeitos pelas histórias dessa casa grande, pois há
narrativas narradas tanto por moradores do assentamento quanto por narradores que não
vivem na comunidade, sendo que seu vínculo com o assentamento é o de prestador de
serviço na comunidade e com o casarão é de usá-lo como alojamento6. Os contadores dessas
histórias marcam bem sua função no espaço.

5 Mais informações sobre a fazenda Tapirapuã no artigo “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita
de Si” na obra Olhares: realidade, construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice
Vilalva (Org) [et/al].
6 Não há pesquisas cientificas sobre a Escola Estadual Marechal Candido Rondon. Apenas para fins de conhecimento
sobre a casa de Marechal Rondon e o uso da mesma como alojamento há uma matéria jornalística “Casa de Marechal
Rondon é tombada como patrimônio histórico em MT” (2012) no site G1. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-
grosso/noticia/2012/03/casa-de-marechal-rondon-e-tombada-como-patrimonio-historico-em-mt.html. Visualizado no
dia 28 de junho de 2021 às 15 horas.

106
Anais

Renata Lourenço, que se propõe a contar a história do casarão, diz logo no início
“Moro no assentamento Antônio conselheiro há 8 anos [...] Eu vou contar a história do
casarão. Lá na agrovila 10, tinha uma velhinha” (2009, p. 80). Sebastião Pinto de Souza, assim
como Renata, começa falando de sua relação com o espaço, o assentamento: “Moro em
Tangará há muito tempo. Trabalhei um ano e meio puxando alunos na escola Marechal [...]
algo que aconteceu comigo” (2009, p. 107).
As noites na grande casa do assentamento não são como as noites na maioria das
casas na cidade. O Casarão de ontem do Marechal Rondon e o Casarão de hoje no
assentamento, com luz elétrica, acabando-se com o tempo, sem conservação, isolado,
distante, com paredes úmidas é um local com cheiro forte de mofo, cheio de entulhos, muitos
insetos e roedores. É nesse espaço mal iluminado que ocorrem ruídos e aparições estranhas.
Adriana de Fátima Novais foi uma das pessoas que morou no casarão enquanto
trabalhava na escola, situada no mesmo terreno, “moro e trabalho aqui na escola”:
“Aconteceu comigo”. “Dizem, que o lugar é mal-assombrado”. Ela descreve a experiência
como “algo de outro mundo”. Adriana narra que estava sozinha no quarto do casarão “eu
tava sozinha” e era noite “apagando todas as luzes pra gente dormi”. Ela narra com muito
respeito e medo “A coisa, a assombração resolveu puxar o meu travesseiro, daí, sim, que eu
fiquei com medo” (2009, p. 81). Ela não teve apenas uma experiência com a assombração: “E
não foi só essa vez que eu vi. Da outra vez que eu senti, parecia [...] alguém me olhando; assim,
passou do meu lado. Olhei não era nada [...] Eu estava sozinha” (2009, p. 82).
Sebastião Pinto de Souza, assim como Adriana de Fátima Novais, também já havia
escutado histórias sobre o casarão “o Reginaldo [...] o trem não deixou ele dormi [...] puxava
ele pela perna [...] Ele disse que o cara chegava de cavalo, entrava pela cozinha andava no
corredor”. Sua experiência com o fantasma do casarão aconteceu também no período da
noite “era base de meia noite [...] eu percebi que abriu a porta [...] Eu fiquei todo arrepiado,
de cabelo em pé [...] Chegô aonde eu estava e começo a me enforcar, e foi me enforcando [...]
eu rezei [...] e ele foi embora” (2009, p. 107).
O motorista contou para os outros colegas de trabalho e eles riram e não acreditaram:
“Daí, no outro dia, pegou o Santiago [...] sozinho a gente num dormia mais aí no casarão [...]
passado uma semana, pegou o outro motorista, o Marcelo [...] eles acreditaram em mim [...]
Muitos não acreditam ainda. Eu não duvido mais” (2009, p. 108).
As narrativas são experiências que possuem o casarão como o elo entre os sujeitos,
tornando-se meio comunicativo de acessibilidade e comuns aos integrantes do

107
Anais

assentamento. Tais narrativas, portanto, estão aliadas a um sistema simbólico vigente, uma
vez que os narradores utilizam um discurso reiterado por outrem, representando a
expressão de uma sociedade, a comunidade do Assentamento Antônio Conselheiro.
Diferente de Sebastião e Adriana, Oscarino Santana, narrador de acontecimentos
sobrenaturais no casarão, é um morador do assentamento. Ele demarca isso no seu discurso
“Resido aqui no assentamento Antônio Conselheiro, na agrovila 17. Trabalho no colégio
Marechal Rondon”. Ele narra que também à noite estava dormindo no casarão e teve um
encontro com o fantasma “eu vi que era barulho de cavalo [...] ele desceu do cavalo [...] veio
para o lado do quarto que nós tava dormindo [...] eu vi quando a porta abriu [...] Eu queria
gritá” (2009, p. 109). As histórias de assombro, a figura do sobrenatural habitando um
espaço social e econômico. O Casarão é lugar de fantasmas. Há na narrativa de Sebastião e
Oscarino a permanência desse mesmo conteúdo narrado, o fantasma que vem a cavalo. É
possível perceber que nessas narrativas o conteúdo traz aspectos de marcação discursiva do
grupo, na reiteração do elemento sobrenatural. Aconteceu comigo e com ele também. E todos
remendando o dia, igualmente aos outros narradores, trazendo a afirmação que viu/viveu:
“esse casarão do marechal Candido Rondon é assombrado” (2009, p. 109).
Assim, além de as narrativas trazerem como características a transmissão de
experiências, elas trazem a comunicação expressiva de uma crença, de uma verdade
compartilhada: o casarão é assombrado. O narrador ainda faz um alerta “Todas as pessoas
que dormem sozinho aqui, essa criatura assombra eles” (2009, p. 110).
Renata diz que a velhinha da agrovila 10 lhe contou a história do casarão. Segundo a
idosa, o casarão já teve escravos morando lá antigamente e que o marechal Cândido Rondon,
visto pela história oficial como o herói das linhas telegráficas, era “muito antiquado [...]
Aquelas coisas antigas dele”. Há no casarão, no meio da grande sala, um buraco no chão
chamado de “o túnel” pelos moradores do assentamento, “no casarão tinha um túnel que
dava direto no rio”. Existem muitas histórias sobre a utilidade que o Marechal dava para o
túnel. O Marechal é descrito por essa narradora como cruel, “todas as maldades do Marechal”
no hábito de matar os escravos “O Marechal ficou bravo, foi atrás desses escravos, matou-os
e jogou seus corpos no túnel” (2009, p. 80). Segundo a narrativa dos assentados, o casarão
foi palco de acontecimentos ruins.
Essas histórias de assombro dos assentados carregam um significado histórico e
social. Tais narrativas configuram o mundo habitado do assentamento, configuram a terra e,
nela, o espaço da casa. São as histórias que o homem do campo conta. São histórias de

108
Anais

assentados. Quem dirá se são verdadeiras, senão eles próprios? E com essas narrativas tanto
a simbologia da casa deixa o lugar de morada segura quanto a imagem do Marechal Rondon
está subtraída da condição de herói. Essa necessidade em contar e compartilhar as
experiências de assombro no casarão é uma dinâmica e uma experiência coletiva, ou seja,
contar a história habita a rotina do assentamento como forma integradora da sua
complexidade e sua identidade. Narrar é uma experiência que permite o ato de
compartilhamento. É pela necessidade de contar a história que se formula uma identidade
complexa como registro na fronteira entre o histórico e o simbólico, entre o natural e o
sobrenatural. Deste modo, essas histórias possuem uma repercussão muito grande e
significativa dentro da comunidade, na voz dos assentados e dos não-assentados.
As narrativas do fantasma do casarão fazem com que os sujeitos tenham uma
interação social dentro do espaço em que vivem, uma vez que há tanto entre os moradores
do assentamento quanto os moradores do casarão uma ação discursiva. O casarão é um
símbolo cultural de pertencimento para uns e de mau presságio para outros, porque “a arte
é um sistema simbólico de comunicação inter-humana” (Candido, 2006, p. 31), uma vez que
as narrativas de assombro, que são relatadas na comunidade, passam a simbolizar o
pertencimento do sujeito ao grupo, elas se apresentam como legado e herança cultural
passada pela oralidade dentro da comunidade. Existe uma transmissão direta dos valores e
crenças que resulta na/da expectativa social. Ademais, elas também se apresentam como
uma narrativa de alerta quando contada aos novos sujeitos que aparecem na comunidade,
principalmente, os sujeitos chamados de “pessoas da cidade”. Pessoas que acabam
usurpando, na visão da maioria dos assentados, os empregos gerados dentro da comunidade,
como nas escolas e nos postos de saúde que, para eles, devem ser ocupados pelas “pessoas
da comunidade”, pois somente o povo da comunidade conhece suas próprias necessidades e
anseios. Essas narrativas de assombro servem para manter esses intrusos em estado de
vigília, pois ao contar sobre a assombração do casarão, “quando você dúvida de alguma coisa
[...] atrai os maus fluidos” (2009, p. 94), se estabelece um limite e um alerta.
A história do fantasma do casarão circula nas vozes de dois tipos de sujeitos: o
assentado e aquele que trabalha na escola e habita temporariamente o Casarão. A casa do
Marechal se apresenta como um espaço simbólico de habitação/morada (ainda que
temporária). Segundo Gaston Bachelard, a casa é um espaço que nos fornece imagens: o
casarão fornece aos seus moradores imagens discursivas, entre essas imagens está a do
assombro. Pessoas habitam o casarão; se “todo espaço verdadeiramente habitado traz a

109
Anais

essência da noção de casa” (Bachelard, 1993, p. 200), o casarão não constitui em uma morada
tranquila como a dos assentados; mas, sim, uma morada desassossegada e cheia de
mistérios.
Sabemos que o ato de habitar é essencial ao ser humano, se a primeira morada é a
barriga da mãe, a segunda é a casa. Há, desta forma, também uma interação dos moradores
do casarão com esse espaço. Assim, os alojados se relacionam com o espaço do casarão como
suas casas. Quando os sujeitos que estão alojados no casarão levam seus pertences para lá,
como um simples porta-retrato ou até mesmo um fogão para cozinhar, esse simples fato de
levar objetos pessoais representa, inconscientemente, um pertencimento ao espaço. Com o
ato de levar coisas pessoais, os alojados dizem indiretamente que estão fixando morada no
casarão. Eles sentem que o casarão lhes pertence, mesmo que por uma estada curta, pois eles
habitam naquele espaço. Esse espaço os molda e influencia as atitudes e o discurso narrativo
desses sujeitos. O casarão recebe os alojados, acolhe e assombra: “a casa é um dos maiores
poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos” (Bachelard, 1993,
p. 201). No espaço casarão, as narrativas de assombro nomeiam a imagem do fantasma. Ao
ouvir os relatos, é possível perceber um pacto social entre os falantes no qual todos
enxergam, se não a mesma coisa, uma coisa muito semelhante. Ou seja, o casarão mantém os
narradores, tanto do próprio casarão quanto os da comunidade, fazendo uma tessitura de
narrativas com um enredo muito parecido. Há entre os moradores uma tradição
ininterrupta: narrar a história do casarão. O que chamamos aqui de tradição é este ato de
transmitir pela oralidade de uma geração a outra histórias, crenças e costumes de um povo.
Assim a vida social no assentamento se faz por meio de um ritual que consiste na repetição
do passado do casarão, sua história na época do Marechal, inspirando novas experiências
narrativas, a assombração do casarão no presente da enunciação.
As narrativas organizadas no Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro são
narrativas de retorno do homem para o campo. Entre este homem do campo e o homem
alojado no casarão prevalece o discurso narrativo ressignificando a história e trazendo o
sobrenatural, pois celebram em suas vozes uma experiência que é própria do assentamento.
Esse discurso narrativo está estritamente ligado ao meio de vida e organização social do
assentamento, visto que representa uma tradição cultural que traz a consciência de dois
grupos distintos que se assemelham e se completam. Porém, ao mesmo tempo em que o
casarão carrega uma imagem negativa, porque foi palco de acontecimentos muito ruins que
mantém no local viva uma assombração, na memória do assentado o casarão traz à

110
Anais

lembrança o passado não completamente superado, ultrapassado de tudo o que representa


uma Casa Grande (o trabalho escravo, a violência, a morte). O Casarão é a memória viva de
um passado histórico ainda não superado pela realidade dos assentados. A simbologia do
casarão abre horizontes complexos de significação: edifica na experiência a necessidade de
narrar mesmo as coisas terríveis e cruéis de uma história não oficial, contrariando assim a
História, desmontando o heroísmo e registrando o não-reconhecimento do herói Marechal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise proposta é um olhar transversal sobre “O Casarão de Rondon” ponto de


referência no processo de ocupação da Fazenda Itapirapuã, localizado estrategicamente à
margem esquerda do Rio Sepotuba (rio abaixo), em direção noroeste-norte, formando uma
simbiose com o cotidiano da vida dos assentados (homens e mulheres que têm vida e gostam
da terra) e de trabalhadores externos (alojados) que gravitam no espaço em que se localiza
o casarão. É espaço de memória, presente no contexto das relações sociais do assentamento,
tomando formas diversas: na perspectiva sobrenatural; como memória de um passado de
opressão; e, como símbolo de uma conquista, permeada por uma trajetória de lutas pela
terra, forjada no âmbito das lutas desencadeadas pelo MST.
O casarão traz desde a gênese da ocupação daquele latifúndio uma simbologia que ao
longo do tempo, tomou forma de uma lenda, quando seus ocupantes (professores, motoristas
e demais trabalhadores da escola) ocupam aquele espaço para suas estadas durante o
período de trabalho. Para esses, “O Casarão de Rondon” se apresenta como uma simbologia
mítica, que aterroriza por ser mal-assombrado, enfeitiçado, local habitado por assombrações
e fantasmas que atormentam a noite e o sono de quem se aventura a dormir ou habitar o
“casarão”. É um espaço em que o cotidiano da vida se mistura com o sobrenatural, servindo
inclusive de repelente para corpos e almas que buscam trabalhar na escola e que são
percebidos por intrusos, isto porque, ocupariam postos de trabalhos de membros da
comunidade. Nesse caso, o sobrenatural toma forma viva na função de repelir intrusos.
Para além da dimensão sobrenatural que é dada ao casarão, está presente no
imaginário e na memória das pessoas e do MST como um símbolo do latifúndio e da opressão,
encarnado na figura do Marechal Cândido Rondon, militar que transitou por aquele espaço
no processo de avanço dominante em direção ao noroeste e norte do Brasil. Nesta
perspectiva, o casarão é a simbologia de uma relação de poder, em que a tônica foram as

111
Anais

relações de opressão, pois tratava-se de expedições intrusas em áreas indígenas, com o


propósito de expandir as fronteiras de desenvolvimento na perspectiva dos colonizadores.
A figura de Rondon é controversa, assim como o casarão.
Por outro lado, a ocupação da fazenda e por conseguinte do casarão se coloca também
como um símbolo de uma conquista, forjada na luta de centenas e milhares de famílias
vinculadas ao MST que conquistaram a terra, a terra que era um latifúndio, e que agora é
terra de trabalho e de produção da vida material e imaterial para muitas famílias. O casarão
também o é, pois faz parte da conquista. É uma forma viva de contraposição a uma lógica
colonizadora, calcada na opressão e no latifúndio. Ocupar o casarão tem significado de luta,
e na luta, a caminhada rumo à libertação opressora.
Assim, o casarão é muito mais que o Casarão. É um símbolo cultural de pertencimento
para uns e de mau presságio para outros. É memória sobrenatural que aterroriza seus
moradores (é tenso morar no Casarão), é memória que expressa as relações de luta pela
terra, é símbolo de luta contra a opressão, é permanente luta de homens e mulheres para
permanecerem na terra de trabalho e de memória, lócus de produção da vida material. É
cultura e história, forjadas na luta pela terra e para nela permanecer. Como brasa acesa, é
memória viva de homens e mulheres moradores e moradoras do Assentamento Antônio
Conselheiro.

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: SCHWARCZ, 2004.

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. Ed. São Paulo: Centauro, 2015.

ROSA, Marinês, LAFORGA, Gilmar, VILALVA, Walnice (Org.) Olhares: realidade, construção,
saberes na terra em assentamento de Mato Grosso. São Paulo: Artes e Ciência, 2012.

VILALVA, Walnice, LAFORGA, Gilmar (Org). Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro.


Tangará da Serra: Gráfica e Editora Sanches LTDA. 2009.

VIVEIROS. Esther Maria Terestrello da Câmara. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2010.

112
A PALAVRA POÉTICA EM
FERREIRA GULLAR E IRAIDE
DA SILVA MARTINS: uma
análise memorialística na
literatura e cultura popular
maranhense
Luís Fernando Lima CAMELO (UFMA)
Rubenil da Silva OLIVEIRA (UFMA)

RESUMO

Este trabalho está vinculado ao campo dos Estudos Culturais e Literatura Comparada,
analisando assim fronteiras discursivas entre a poesia de Ferreira Gullar e Iraide da Silva
Martins. O presente artigo visa conhecer as características sociais na poesia gullariana e
iraidiana, estabelecendo assim um diálogo da ideia de poesia social por suas próprias
reflexões críticas. Com isso, a pesquisa tem como destaques duas poesias da literatura
brasileira contemporânea: “Dois e dois: quatro” (1966) e “Intolerância” (2020),
evidenciando a posição estética dos poemas como instrumentos de crítica social para a
literatura e cultura popular maranhense. O estudo proposto traz as concepções de memória
e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do
vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as
poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida. À
vista disso, a pesquisa tem como aporte teórico observações de autores como Carvalho
(2021), Corrêa (2016), Cevasco (2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015).

Palavras-chave: Vida; Memória; Poesia Social; Literatura Maranhense.

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Anais

ABSTRACT

This work is linked to the field of Cultural Studies and Comparative Literature, thus analyzing
discursive boundaries between the poetry of Ferreira Gullar and Iraide da Silva Martins. The
present article aims to know the social characteristics in Gullarian and Iraqi poetry, thus
establishing a dialogue of the idea of social poetry through its own critical reflections. With
this, the research highlights two poems from contemporary Brazilian literature: “Dois e Dois:
Quatro” (1966) and “Intolerância” (2020), evidencing the aesthetic position of the poems as
instruments of social criticism for literature and popular culture. from maranhão The
proposed study brings the conceptions of memory and its manifestations in literature and
culture, understanding memory as a record of what has been lived, rescue of images,
preservation and repair of human experience. Thus, the poems describe a constant action of
the human being that is the search for the meaning of life. In view of this, the research has as
theoretical support observations of authors such as Carvalho (2021), Corrêa (2016), Cevasco
(2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015).

KEYWORDS: Life; Memory; Social Poetry; Literature from Maranhão.

INTRODUÇÃO

Historicamente, a literatura desempenha uma dupla função, vale-se como expressão


artística e também como meio de transmitir conhecimentos. Começou a existir através da
oralidade com o objetivo de perpetuar as histórias e a cultura para as gerações seguintes.
Deste modo, pode-se afirmar que a literatura é o reflexo do que somos, de nossos anseios,
interesses, e está sempre associada com as características histórico-sociais de cada tempo. A
partir do século V a.C. existe uma separação da literatura em gêneros, elaborado por
Aristóteles em sua obra Poética. São eles: o gênero dramático, gênero épico ou narrativo e
gênero lírico.
Mas, o que é poética? Para que a poética da palavra? Para entendermos essas
concepções é importante frisar que a obra de Aristóteles desperta no decurso dos séculos à
expressão “ciência da literatura”, vista como a base teórica dos estudos literários. A Poética
significaria a denominação de uma ciência, e que hoje é chamada de “teoria da literatura”.
Nesse contexto, a obra de Aristóteles é iniciada com uma proposição que hoje em dia parece
ser perceptível, “Poesia é imitação”. Assim, Aristóteles comprende que a imitação é algo
natural no ser humano, o que ele comprova na certeza de que as primeiras coisas que o
homem aprende é por imitação dos outros, e essa representaria uma das origens da poesia,
enquanto a outra estaria relacionada com o caráter dos homens que fazem a imitação, cada

114
Anais

um deles dando origem a um tipo de representação artística diferente. Ou seja, a poética da


palavra.
O sentido originário da palavra poética descolonaliza a cultura, pois a língua é muito
viva, e ela reflete todas as relações da sociedade. Diante disso, o estudo destaca duas poesias
da literatura brasileira contemporânea, Dois e dois: quatro (1966) e Intolerância (2020),
destacando a posição estética dos poemas como instrumentos de crítica social na literatura
e cultura popular maranhense. Assim, a poética da palavra apresenta-se como recurso
político, social, poético e cultural.
O que é poesia social ou literatura de engajamento? A quem se destina essa produção?
A denominação de literatura engajada ou poesia social tem sido questionado em debates no
meio acadêmico, filosófico e literário, e inclusive há indagações se a literatura engajada pode
tornar-se um “gênero literário”. Verifica-se que, é um aspecto da literatura poética, na qual
os valores políticos e sociais são destacados para aproximar-se do leitor.
Ainda assim, pelo fato de a literatura também ser uma cotidiana prática social, que
atinge múltiplos leitores, impactando-os, socializando-os é que diversos autores observam
um importante instrumento para denunciar as mazelas e injustiças sociais. Deste modo, que
a literatura de engajamento, cada vez mais, vem ganhando espaço socialmente, observando
assim que a prática literária tem suas crises e desafios, onde a litertaura pode enfrentar e
abordar. Dessa forma, surgiu a poesia social, e frente a essa linha de pensamento temos
Ferreira Gullar e Iraide Martins, que usaram da palavra, demarcada pela autenticidade de
uma linguagem corpo a corpo com a poesia.
Importante salientar que mediante as leituras e as interpretações dos poemas
estudados é que a memória integra o presente e o passado, além de projetar o futuro,
proporcionando reconhecimento, reencontro, significado, sentido de que não haveria a
memória sem o sujeito. É a memória social que constrói a identidade cultural do sujeito.
O estudo proposto traz essas concepções de memória e suas manifestações na
literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do vivido, resgate de
imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma
ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida.
A pesquisa tem como objetivo conhecer as características sociais na poesia gullariana
e iraidiana, estabelecendo assim um diálogo da ideia de poesia social por suas próprias
reflexões críticas. Partindo desse fazer poético, mediante a representação da realidade e
estética, o trabalho está dividido em três subtópicos.

115
Anais

Em “Algumas palavras sobre a literatura maranhense”, conheceremos um pouco da


realidade e fatos decisivos para a prática literária no Maranhão, assim como suas
características e evolução no decorrer dos tempos, tais como 1832 a 1868, destaque para
Odorico Mendes, João Lisboa, Gonçalves Dias; 1868 a 1894, destaque para Aluísio Azevedo,
Coelho Neto, Graça Aranha; 1894 até os dias atuais, além de fazer um paralelo sobre a
literatura e a representação social de Gullar à Iraide.
No tópico “Gullar e ditadura: Dois e dois quatro”, analisaremos a produção poética de
Ferreira Gullar, através de sua criação no período de vigência da ditadura militar no Brasil,
fase em que o escritor tenta resistir à ordem ditatorial por meio de uma atuação
revolucionária, que se reflete na produção de poemas ousados e questionadores. Assim, o
foco central será no poema Dois e dois: quatro, destacando o poema como instrumento de
crítica social.
Em “A sopa poética de Iraide Martins”, situaremos a poesia da professora Iraide da
Silva Martins no cenário da literatura bacabalense, e principalmente da literatura
maranhense, para compreendermos algumas questões que fazem parte do modo como a
poetisa constrói seus poemas e que podem elucidar as relações de sua poesia. Dessa forma,
frisaremos o poema Intolerância para analisar sua construção poética, fazendo assim uma
ligação à memória e poesia social de Ferreira Gullar.
Por fim, com o intuito de definir os aspectos da poesia de Ferreira Gullar e Iraide
Martins a serem tratados neste trabalho, recorremos à Memória Coletiva, de Maurice
Halbwachs (2006); os Estudos Culturais em Maria Cevasco (2003); Literatura Comparada
em Sandra Nitrini (2015); além da percepção de como os poemas podem servir de
instrumentos de crítica social.

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A LITERATURA MARANHENSE

Existem várias formas e contextos para entendermos as contribuições histórico-


sociais de um lugar, com isto, destacamos a arte e a literatura como propagação eficiente
dessa construção. Grande parte do Brasil termina por conhecer o lugar por meio das obras
literárias que o descrevem. No Maranhão não é diferente, alguns de seus escritos descrevem-
no através de uma sutilieza em destaque para suas belezas naturais e seu processo histórico.
Para fixar essas ideias, o Grupo de Estudos em Literatura Maranhense – GELMA – destaca

116
Anais

alguns pontos centrais na visão do escritor Antônio dos Reis Carvalho (1874-1946). Diante
desses estudos, a literatura maranhense é dividida através de ciclos, a pontuar:

O primeiro ciclo vai de 1832 a 1868; principia com a célebre poesia de


Odorico Mendes, Hino à tarde, publicada no Rio de Janeiro em 1832, e fecha-
se com a revista literária Semanário Maranhense, que suspendeu a
publicação em 1868, tendo durado apenas dois anos. Os Primeiros Cantos,
de Gonçalves Dias, vindos à luz no Rio de Janeiro, em 1846, são o livro
representativo desse período. O segundo ciclo compreende cerca de vinte e
seis anos, de 1868 a 1894. A sua obra representativa é O Mulato, de Aluísio
Azevedo, publicada em 1881, na cidade de São Luís. O terceiro ciclo,
finalmente, vai de 1894 até hoje. É iniciado com o livro de Inácio Carvalho,
Frutos Selvagens, publicado em São Luís naquele ano. A obra principal deste
período são os Mosaicos, de Domingos Barbosa, publicados em São Luís, em
1808, se se abstrair o Canaã, de Graça Aranha, publicado no Rio de Janeiro,
em 1904, livro de autor maranhense, pertencente, pela idade, mais ao
segundo que ao terceiro ciclo, e pensado e escrito fora do Maranhão.
(CARVALHO, 2021, p.11)

Apesar de ter deixado uma pequena contribuição para as pesquisas sobre a literatura
maranhense, o nome de Antônio dos Reis Carvalho ainda é pouco conhecido. Além de
ensaísta e poeta, Antônio dos Reis Carvalho, nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de abril
1874, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1946, foi também dramaturgo, jornalista e professor.
Merecedor de respeito e estima, o escritor foi bastante admirado por seus contemporâneos,
porém, com o transcorrer do tempo, decaiu no esquecimento. Sua maior contribuição dentro
desse estudo é intitulado A literatura maranhense, que foi publicado como primeiro verbete
do vigésimo volume da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, em 1923.
Vários outros escritores ajudam com a divulgação da cultura maranhense através de
seus estudos. Cada qual dispõe uma forma de escrita, com suas especificidades e grande
valor na construção do legado histórico-cultural do Maranhão. Escritores maranhenses,
como Aluíso Azevedo e Josué Montello, mostram a questão racial em sua literatura, recortes
para O Mulato e Tambores de São Luís, obras inspiradas na vida maranhense da época.
Destacam-se também, Arthur Azevedo, Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, João do Vale,
Gonçalves Dias, Graça Aranha, Maria Firmina dos Reis, Raimundo Correia, Humberto de
Campos e vários outros.
Em artigo publicado pela Revista Plural nº 3, Abril/2012, Ricardo Leão - maranhense,
doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp – sintetiza essa arte literária abordando
que “o Maranhão é terra de nomes que a todo momento deveriam ser cultuados e lembrados
pelos seus filhos”. Ele complementa:

117
Anais

O Maranhão é berço de grandes representantes da intelectualidade


brasileira, dignos de serem eternizados na nossa memória (jamais
esquecidos). E não seria, não é mesmo, para nos sentirmos honrados,
orgulhosos de ser maranhenses? [...] A verdade é que fomos perdendo a
consciência (e temos que lembrar, a cada nova geração) de que esta terra já
erigiu monumentos da cultura e da literatura brasileira e de língua
portuguesa, cuja memória poderia, poderá ser evocada periodicamente, em
colégios, academias, universidades... instituições que, a propósito, deveriam
impor-se como baluartes de uma cultura detentora de insignes
representantes da nossa história, da nossa literatura, da inteligência
brasileira. Enfim, investir-se da missão difusora desses valores eternos.
(LEÃO 2012, p.40).

Dessa forma, percebe-se que a Literatura Maranhense é magnifica, pois consegue


apresentar pontos importantes da formação de seu povo, refletindo assim as tradições e
culturas dos nossos antepassados, carregadas de encantos em suas histórias, poesias,
cordéis, apresentando musicalidade em seus enredos que descrevem as belezas do
Maranhão.
Hoje, quando falamos em Literatura Maranhense, o grande destaque nacional está em
Maria Firmina dos Reis, sua obra Úrsula (1859), também considerado o primeiro romance
brasileiro de temática abolicionista, marcado pela presença do negro escravo (sofrido,
explorado, à mercê de um sistema escravista, desumano e injusto) e pelo que se pode dizer,
hoje, um sentimento de brasilidade, de quem anseia e projeta, para um futuro não tão
distante, o sonho de uma pátria-mãe acolhedora, em que todos possam viver e conviver em
igualdade de condições, inclusive a mulher, com direito à escolaridade, podendo ler e
escrever como os homens. Obra que inaugura um novo olhar, quanto à problemática da
escravidão, à medida que a autora “assume o ponto de vista do outro, tanto no que diz
respeito à representação dos escravizados, quanto no inédito enfoque das relações de
dominação patriarcal sob a perspectiva da mulher” (DUARTE, 2004, p. 443).
Sendo uma arte, a literatura consegue apresentar e descrever tradições, épocas e
lugares. É assim na escrita maranhense. Conhecer grandes nomes da literatura é de suma
importância para que a história seja protegida, e sendo assim, não seja esquecida ou
estancada. No Maranhão, em várias cidades, além de São Luís, dispõe de artigos, estudos,
projetos, artigos e até mesmo paisagens arquitetônicas em praças demonstram o valor dos
escritores da literatura maranhense.

118
Anais

Como diz a pesquisadora Dinacy Mendonça Corrêa, em sua tese de doutorado


intitulado Da Literatura Maranhense: romance e romancistas maranhenses do Século XX:

Evocamos o velho jargão a caracterizar esta nossa terra gonçalvina e a


encher de orgulho a Athenas Brasileira: “o Maranhão é terra de poetas” –
como ainda se faz comum dizer/ouvir neste nosso Estado, sobretudo nesta
“Ilha Magnética”, “Ilha do Amor”, “Ilha-Poesia”, “Ilha Rebelde”, “Cidade dos
Azulejos”, e ultimamente também “Jamaica Brasileira”, onde, em cada
esquina, pode haver um poeta em transportes líricos. Já o nosso romance,
aqui, ainda é desconhecido, esquecido. Não obstante, como nos está sendo
dado constatar, aqui também se produz o romance. Esperamos, pois, que
este trabalho venha a contribuir para que possamos reconhecer e dizer,
numa completude: “O Maranhão é terra de poetas e de romancistas”. Assim
seja. (CORRÊA, 2016, p.201).

GULLAR E A DITADURA EM “DOIS E DOIS: QUATRO”

Em 10 de setembro de 1930 nascia, em São Luís do Maranhão, José de Ribamar


Ferreira. Com o pseudônimo de Ferreira Gullar, se tornaria um dos nomes mais relevantes
da literatura brasileira do século 20, por seu trabalho como escritor, poeta, crítico de arte,
tradutor, memorialista, teatrólogo e ensaísta.
Durante a adolescência despertou seu interesse pela poesia, largando as brincadeiras
na rua para dedicar-se à leitura. Aos 18 anos, já trabalhava como redator no jornal Diário de
São Luís e finalizava seu primeiro livro, Um pouco acima do chão (1949), lançado com apoio
do Centro Cultural Gonçalves Dias. Ainda no final dos anos 1940, trabalhou como radialista
na Rádio Timbira e como colaborador do caderno literário do Diário de São Luís. Em 1950,
venceu o concurso literário do Jornal de Letras, com o poema O galo. No ano seguinte, se
mudou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como redator da Revista do Instituto de
Aposentadoria e Pensão do Comércio, e pouco tempo depois, passaria a fazer parte da equipe
da revista O Cruzeiro, como revisor.
Em 1953, se casa com a atriz Thereza de Aragão, com quem teve três filhos e
permaneceram juntos até 1994. Além de seu casamento, o ano de 1953 foi marcado pelo
lançamento de seu livro A luta corporal e pelo seu começo como redator na revista Manchete.
No período que viveu no Rio de Janeiro, também trabalhou para o Diário Carioca e para o
Jornal do Brasil.
Nos anos 1960, Ferreira Gullar dirigiu a Fundação Cultural de Brasília e foi
responsável pela criação do Museu de Arte Popular. Além disso, trabalhou no jornal O Estado

119
Anais

de São Paulo e se tornou presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos
Estudantes (CPC/ UNE).
Exilado desde 1971, após ser preso pela ditadura militar com outros artistas e
músicos, como Caetano e Gil, ele vai retornar ao Brasil em 1977. A partir daí, passa a
trabalhar como roteirista de televisão para a Rede Globo, onde trabalhou por 20 anos e viria
a escrever, em parceria com Dias Gomes, os roteiros de Araponga (1990) e As Noivas de
Copacabana (1992). Entre 1992 e 1995, atuou como diretor da Funarte. Ferreira Gullar
faleceu em 2016, aos 86 anos.
Ferreira Gullar poeta, estudioso da cultura brasileira, da poesia brasileira, da música,
da arte brasileira, era um teórico de crítica brasileira. “Dois e dois: quatro” foi publicado em
um livro que reúne obras de Gullar escritas entre 1962 e 1975. No poema, o eu lírico compara
sua convicção de que a vida vale a pena a outras certezas que ele tem.
Para compreendermos o poema em estudo é preciso saber que o escritor viveu o
período da ditadura militar no Brasil. O golpe militar de 1964 deu início à ditadura, que
perseguiu e torturou políticos, intelectuais, artistas, operários e outros cidadãos que se
manifestaram contra o regime. A censura vetou a exibição e a divulgação de livros, filmes,
peças de teatro, músicas, programas de televisão.
Esses acontecimentos afetaram a produção literária e, segundo a crítica, o movimento
concretista – poesia nova, em que o poema passa a ser ele mesmo um objeto de apreciação,
foi a mais marcante novidade da poesia brasileira que começou a se produzir nos anos de
1950-1960, ou seja, a primeira tendência da poesia brasileira contemporânea – mantinha-se
à margem dessa realidade. Assim, alguns poetas que tinham aderido ao concretismo
romperam com o movimento e começaram a produzir poemas que dizem respeito à
realidade imediata em que vivia a maior parte do povo.
Propunham o retorno ao verso, o emprego de uma linguagem mais simples e direta e
o uso da poesia como instrumento de participação política. É o caso de Ferreira Gullar, o
autor do texto lido. Se não soubéssemos essa característica de Ferreira Gullar, não
conseguiremos entender o poema Dois e dois: quatro. Sabendo disso, que Ferreira Gullar
nasceu em 1930 e morreu em 2016, vejamos trechos do poema:

“Como dois e dois são quatro


sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena” (GULLAR, 2010, p.66).

120
Anais

Observa-se que o poema fala sobre esse contexto ditatorial, analisando o trecho
acima, consideremos que ele fala o tempo todo no poema de “pão caro”, coisas caras,
“liberdade pequena”, não se podia falar tudo. Isso é um contexto da ditadura militar, 1964-
68. Porém, o poema também contextualiza a atualidade do Brasil.
Quando a gente ler uma poesia como essa de Ferreira Gullar é muito provável que
associamos aos dias de hoje, não tem como a gente ler e associar ao nosso cotidiano no Brasil.
Apesar de ter sido escrito em um período de ditadura militar, mas também ele é um poema
contemporâneo. A literatura é atemporal! Os problemas são os mesmos, seja em 1964, seja
em 2021-2022, e isso é uma característica da boa literatura, da boa arte, que é ser atemporal,
que é falar de questões que continuam com o passar do tempo.

[...] como é azul o oceano


e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena [...] (GULLAR, 2010, p.66)

Esse trecho também fala sobre a período militar, fala de esperança. A lagoa alí
representa a esperança de dias melhores. Essa lagoa que está atrás de tantos problemas que
estamos vivenciando hoje, ela é quem nos dar esperança de que as coisas vão passar, nada
dura para sempre.
Por conseguinte, o poema de Gullar está estruturado em versos livres, fazendo parte
assim da literatura contemporânea, apresenta algumas figuras de linguagens, como anáforas
(repetição de palavras no início dos versos), além de contemplar a simbologia do contexto
da ditadura militar. O mais importante desse poema é relacioná-lo aos nossos dias.
Segundo o crítico Alfredo Bosi, na fase mais participante de Ferreira Gullar é possível
perceber o abandono dos experimentos no corpo da palavra e uma opção pela estrutura mais
tradicional do verso. A mensagem assume o primeiro plano, em detrimento da forma, e o
engajamento social se evidencia. um primeiro olhar sobre sua poesia permite discernir-lhe
temas e imagens que se repetem obsessivamente e apontam para a existência de “uma
personalidade poética bastante coesa no interior da obra” (BOSI, 2003. p.171). Segundo o
crítico, o aprofundamento desse olhar, após algumas releituras, avança para a identificação
de um “universo bem determinado”, de modo que o leitor fica tentado a “desenhar-lhe o
mapa”. (BOSI, 2003. p.171).

121
Anais

Assim, além do poema “Dois e dois: quatro” (1966), de Ferreira Gullar, o estudo
contempla também o poema “Intolerância” (2020), de Iraide Martins, as falas de
concepções de memória e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a
memória como registro do vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da
experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é
a busca do sentido da vida.
Partindo dos pressupostos teóricos sobre estudos literários comparados, temos
Sandra Nitrini. Em seu livro Literatura Comparada. História, Teoria e Crítica, ela apresenta
conceitos como influência, imitação e originalidade, assim como apresenta as principais
teorias que contribuíram mais recentemente para o desenvolvimento da estética da
recepção e a intertextualidade. Vejamos como Nitrini pontua o termo “literatura
comparada”:

O termo surgiu justamente no período de formação das nações, quando


novas fronteiras estavam sendo erigidas e a ampla questão da cultura e
identidade nacional estava sendo discutida em toda a Europa, [...] ampliando,
portanto, seu objeto de interesse no campo das relações inter-literárias e em
consonância com o movimento geral dos estudos literários que abrem
espaço para as chamadas literaturas não canônicas. (NITRINI, 2000, p. 20 e
279).

O livro Literatura Comparada, de Tânia Franco Carvalhal, complementa essa análise:

A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um


país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por
outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por
exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história,
as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as
ciências, a religião, em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou
outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão
humana. (REMAK apud COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p.175).

A partir dessa definição no campo dos estudo comparatista dos estudos literários, fica
compreensível que, a Literatura Comparada não exclui o contexto social, histórico e político
da metodologia comparatista nos objetos de estudo, incorporando meios e materiais no
campo de investigação.
É válido destacar que os estudos de Carvalhal são de suma importância para os
estudos comparados, uma vez que ela enfatiza e destaca reflexões sobre a natureza e o

122
Anais

funcionamento dos textos e sobre as relações que a literatura mantém com outros sistemas
semióticos, abrindo caminhos para a intertextualidade e procedimentos de criação literária.

A SOPA POÉTICA DE IRAIDE MARTINS

Iraide da Silva Martins, bacabalense, nascida em 21 de setembro de 1962. Graduada


em Letras pela UEMA, pós-graduação em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas
(UnB), dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB/Bacabal), sindicalista e militante no
movimento feminista.
Fundadora da cadeira nº 4 da Academia Bacabalense de Letras – ABL, onde exerceu
por duas vezes o cargo de vice-presidente. Professora de Língua Portuguesa da rede estadual
de ensino, exerceu a função de Gestora Regional de Educação.
No meio artístico atuou junto a outros artistas pela valorização da produção artístico-
cultural da região. Produziu e dirigiu o projeto “Sopa, Música e Poesia”, em parceria com a
Academia Bacabalense de Letras, sarau que durou oito meses, no ano de 2015. Amante das
mais variadas linguagens artísticas, entre seus escritores prediletos estão: Carlos
Drummond de Andrade, Cora Coralina, Elisa Lucinda, Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa
e Patativa do Assaré.
A Professora Iraide da Silva Martins faleceu em 2020, aos 57 anos.
Bacabal possui em sua história social o florescer de poetas e escritores nativos que
produziram e permaneceram sepultados pelo anonimato por décadas. Não raro se torna a
admiração da comunidade local ao saber que bacabalense também escreve literatura.
Hoje tem sopa, Música e Poesia. Esse evento acontecia todas as quintas no Restaurante
Colher de Pau, o bar da Janete, idealizado pela poetisa Iraide Martins, que recebia um grande
número de poetas e amantes da arte e depois dos recitais, era servida uma saborosa sopa.
Tomemos como destaque a querida e imortal, professora Iraide da Silva Martins, e
seu poema “Intolerável” para ilustrar a palavra poética dessa bacabalense que nos deixou um
legado de glórias e resistência.

Intolerável mania de acreditar


Acreditar, simplesmente. Ponto final?
Não! Ponto contínuo. (MARTINS. 2020).

123
Anais

Percebe-se que a grande Iraide em sua escrita magnífica conversa com seu leitor,
traçando uma reflexão. Os poemas parecem empurrar seus leitores para um estado de
meditação que se prolonga para muito além da leitura. O título “Intolerável” traz esse recado
em seu discurso poético. Que não se consegue tolerar; que não se pode suportar; que não é
aceitável; insuportável: comportamento intolerável; pessoa intolerável.

Quanto mais acredito, mais cética permaneço


Ante ao crepúsculo.
Já viste o entardecer nas fases de lua cheia? Magnífico!
Encerra e inicia novo ciclo
“alumêa”, ou será “alumia”? (MARTINS. 2020).

Este poema é belo, é intrigante, é complexo, é filosófico, é poético. Percebe-se que a


escrita é como se fosse uma ruptura de perpetuação à vida. E pode sim fazer um paralelo à
escrita de Gullar, uma vez que ambos têm uma visão otimista da vida “sei que a vida vale a
pena/embora o pão seja caro”.

O mundo. O dos iluminados,


O dos desanimados
E a história segue seu rumo
A contada e a descontada.
Mas não se desaponte.
Se não quiser tropeçar
Procure um atalho
Ou construa uma ponte.
Ponto. (MARTINS, 2020).

A voz feminina parece rebelar-se, queixar-se, dando ênfase ao significado puro do


título do poema. Se compararmos ao “Dois e dois: quatro”, de Ferreira Gullar, veremos que
tem esse sentido de instigar o leitor a buscar um conceito do que é a vida em sua plenitude.
Apesar dos altos e baixos, cada ser humano é único e deve buscar sua plenitude no seu
percurso de vida. Como a própria Iraide diz “a história segue seu rumo”.
Além disso, a pesquisa investiga também como Ferreira Gullar e Iraide Martins na
condição de escritores maranhenses recuperam essa memória dentro de suas narrativas.
Como esses autores percorrem nos escritos, os vestígios de uma memória para restabelecer
uma história de vida filosófica.
Conforme Maurice Halbwachs (2006), a memória sempre estará relacionada ao
passado, ou melhor dizendo, associadas às leituras do passado mediante lembranças, cujos

124
Anais

vazios são complementados com nossa criatividade e experiências. Deste modo, “se o que
vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas,
inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente”.
(HALBWACHS, 2006, p. 29).
Halbwachs (2006) relata ainda que, nossas lembranças são coletivas, mesmo que se
trate de eventos que somente nós participamos ou objetos que foram visto somente por nós.
O escritor diz que, isso se sucede, pois jamais estamos sós e sempre levamos pessoas que não
se confundem. Então, para recordar uma lembrança não é necessário que outras pessoas
estejam presentes sob uma forma material e sensível. Se a memória é o caminho de
autoconhecimento do poeta/poetisa, então é só através dela, e somente dela que a voz
narrativa vai se reconstruindo e assim passamos a conhecer a voz que fala no poema.

Não bastante reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento


passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução
funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso
espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes
para aquele e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte
e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo.
Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo
tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 2006, p. 39).

Os poemas em estudo descrevem essas lembranças que buscam o significado na vida.


O/A poeta(a) quer de alguma forma ter certeza de que “a vida vale a pena”. Sendo assim,
fazendo referência aos Estudos Culturais, Maria Cevasco (2003) nos diz que “a posição
teórica dos estudos culturais se distingue por pensar as características da arte e da sociedade
em conjunto, não como aspectos que devem ser relacionados, mas como processos que têm
diferentes maneiras de se materializar, na sociedade e na arte. [...] Os elementos
normalmente considerados externos a um projeto artístico ou intelectual - por exemplo, o
modo de vida de uma determinada sociedade - são internos na medida em que estruturam a
forma das obras e dos projetos que, por sua vez, articulam os significados e os valores dessa
sociedade”. (CEVASCO, 2003, p.64).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura contemporânea pode sim, humanizar o homem, além de ser utilizada


como instrumento de crítica social. No que se refere da poesia, conhecida especificamente

125
Anais

por exprimir os estados de ânimo dos sujeitos, passa a inserir na modernidade fatos levam a
refletir e questionar a vida em sociedade, além de entender nossa condição humana. Com
isso, possibilita um novo olhar para a realidade. Neste trabalho procuramos demonstrar a
relevância da atuação de Ferreira Gullar e Iraide Martins tanto na literatura quanto em seu
papel de intelectuais da Poesia Social no Brasil.
A fim de alcançar o objetivo proposto no desenvolvimento da pesquisa, fez-se
necessário um mapeamento da obra poética de Gullar e Iraide. Importante esclarecer que,
considerando-se o que tem sido publicado há décadas sobre sua obra e atuação estética e
política, dentro e fora do Brasil, sua poética vai muito além do que foi discutido e
interpretado neste trabalho. Além disso, investigamos os processos memorialísticos e
autobiográficos, sem perder de vista a relação entre os poemas que compuseram o corpus.
Ferreira Gullar deixa claro que sua poesia sempre teve uma aproximação da
realidade: “Devo dizer que a ligação com o real foi sempre uma necessidade em minha
poesia” (GULLAR, 2006b, p. 163). E a sua produção poética realmente se situa na realidade
e também no artístico, estabelecendo em seus escritos uma relação entre memória e história.
Memória, pois, em algumas obras, ele rememora o seu passado e baseado nisso realiza seus
poemas. Como salienta Jacques Le Goff: “A poesia, identificada com a memória, faz desta um
saber e mesmo uma sabedoria, uma Sophia. O poeta tem o seu lugar entre os “mestres da
verdade” (LE GOFF, 1990, p. 434), isto é, o escritor que trabalha com a memória, transforma
sua poesia em um saber fundamentado, pois é histórico.
Assim sendo, podemos considerar parte do percurso poético de Gullar e Iraide
formam uma verdade, justamente por estabelecer o momento real, de sua memória, sendo o
conceito de verdade entendido como aquilo que realmente acontece/aconteceu. Os dois
poemas são lindos, instigantes, reflexivos, filosóficos. A vida, realmente, vale a pena.
Ao aproximarmos a complexidade da obra de Ferreira Gullar e da obra de Iraide
Martins, observamos muitos pontos em comum, entre eles, a evolução da abordagem de
crítica social, buscando o entendimento do homem no mundo, ou seja, poesias de
resistências e de engajamento. A poética de ambas é ampla, valorizando as características da
literatura brasileira contemporânea. Assim, tanto Iraide quanto Gullar podem ser
considerados escritores empenhados com as causas sociais e do homem em seu texto.
Portanto, são várias as perspectivas de leitura da poética da palavra. Essa pluralidade
de leituras que demonstra a sua atualidade. As poesias em estudo, “Dois e dois: quatro”
(1966) e “Intolerância” (2020), podem ser vistas como ponto de reflexão e crítica à

126
Anais

sociedade da qual fazem parte. Muitos pontos acabam por nos revelar aspectos da realidade,
da política, da ética e, até mesmo, do trágico, que foi o caso do regime ditatorial no Brasil.
Entretanto, é a relação de humanidade, a dimensão humana que estabelece com o
interlocutor que faz a obra em análise atemporal e passível de interpretações várias. Gullar
e Iraide, em vários pontos, vai além da relação pessoal dos temas que abordam, eles
conseguem despertar no leitor a sensação de reconhecimento, transcedendo assim, a relação
autor-texto, atingindo seu alvo que é o homem-sociedade, em que podem reconhecer suas
faltas e excessos do cotidiano em que vive.

REFERÊNCIAS

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literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.

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NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2000.

127
“A CIDADE ME VIGIA”:
EXPERIÊNCIAS DO URBANO
EM OS CLANDESTINOS DE
FERNANDO NAMORA
Karina Frez CURSINO (UFF)1

RESUMO

O presente trabalho tem como principal objetivo propor um diálogo entre paisagem urbana
e literatura a partir do romance Os Clandestinos (1972), de Fernando Namora, visando
demonstrar o quanto o jogo ficcional do autor explora a paisagem e a ambiência urbanas
para criar sensações e estabelecer significados. Para tal tarefa, são utilizadas teorias a
respeito da paisagem e da interação que a mesma estabelece com a narrativa. A metodologia
adotada é baseada na recolha e leitura de bibliografia que verse sobre a obra de Namora e
sobre a presença da paisagem na literatura, intuindo analisar como os personagens do
escritor estão incorporados no espaço citadino e o que a velocidade desse contexto traz como
consequência para a existência dos mesmos. O estudo conta, principalmente, com a teoria
sobre espaço/corpo, de Félix Guattari (1992), com os Pontos de vista sobre a percepção
de paisagens, de Michel Collot (2012), com A arquitetura e os sentidos (2011), do
filósofo/arquiteto Juhani Pallasmaa, além do livro Literatura e Paisagem em diálogo
(2012), organizado por Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos, entre outros. O trabalho
se vale ainda do conceito de dromologia, cunhado por Paul Virilio (1993), de modo a pensar
na aceleração dos corpos no espaço urbano e na consequente angústia dos mesmos. A
articulação das teorias assinaladas com o texto literário proposto transmite indícios

1 Doutoranda em Literatura Comparada pelo programa de Estudos de Literatura da Universidade


Federal Fluminense (UFF) / Bolsista CAPES. Orientada pelo Prof. Dr. Silvio Renato Jorge. E-mail:
karina.friburgo@gmail.com

128
Anais

relevantes para demonstrarmos a paisagem citadina como um mecanismo da criação


literária do escritor.
Palavras-chave: Fernando Namora; literatura portuguesa; paisagem; cidade; neorrealismo.

ABSTRACT

The main objective of this work is to propose a dialogue between urban landscape and
literature from the novel Os Clandestinos (1972), by Fernando Namora, aiming to
demonstrate how much the author's fictional game explores the urban landscape and
ambience to create sensations and establish meanings. For this task, theories about the
landscape and the interaction that it establishes with the narrative are used. The
methodology adopted is based on the collection and reading of bibliography that deals with
Namora's work and the presence of landscape in literature, intuiting to analyze how the
writer's characters are incorporated in the city space and what the speed of this context
brings as a consequence for their existence. The study relies mainly on the theory of
space/body, by Félix Guattari (1992), Points of view on the perception of landscapes, by
Michel Collot (2012), with The architecture and the senses (2011), by the
philosopher/architect Juhani Pallasmaa, in addition to the book Literature and Landscape
in Dialogue (2012), edited by Carmen Negreiros, Ida Alves and Masé Lemos, among others.
The work also uses the concept of dromology, coined by Paul Virilio (1993), in order to think
about the acceleration of bodies in urban space and their consequent anguish. The
articulation of the indicated theories with the proposed literary text conveys relevant
evidence to demonstrate the city landscape as a mechanism of the writer's literary creation.

KEYWORDS: Fernando Namora; portuguese literature; landscape; city; neorealism.

O presente trabalho tem como principal objetivo refletir sobre a experiência da


cidade no romance Os Clandestinos (1972), do escritor português Fernando Namora. Autor
de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nos anos 70 e 80, Namora escreveu
poesias, romances, contos, memórias e impressões de viagem. Em sua primeira fase de
produção literária dialogou de forma direta com os ideais neorrealistas, e, portanto, esteve
muito engajado com as questões sociais de sua época. Porém, sua escrita é marcada por fases
distintas, apresentando diferentes faces ao longo do tempo. O momento que por ora nos
interessa é o ciclo citadino, que o mesmo desenvolveu produtivamente a partir de um olhar
atento ao interior dos personagens, deixando evidências para analisarmos suas obras desse
período a partir de um diálogo profícuo entre o indivíduo e a cidade que o cerca.
Namora transitou por gêneros literários diversos, mas cabe salientar que ele inicia
sua trajetória como escritor a partir da poesia. Por mais que ele tenha sido reconhecido
internacionalmente por sua prosa, não podemos esquecer a importância como poeta em sua
caminhada literária, pois seus primeiros versos influenciaram diretamente suas publicações
posteriores. Em seus livros iniciais de poesia: Relevos (1938) e Mar de Sargaços (1939)

129
Anais

encontramos poemas que dão destaque aos elementos cotidianos da atmosfera citadina de
Lisboa, característica essa que mais tarde vai ecoar fortemente em sua prosa urbana, como
ocorre, por exemplo, em Os Clandestinos, que tem como cenário, predominantemente, as
ruas de Lisboa. Os aspectos negativos da vida na cidade, primeiramente evocados nas
poesias iniciais de Namora, são deixados de lado para a criação de obras sintonizadas
diretamente com os ideais neorrealistas. Tais publicações vão delimitar um segundo ciclo de
escrita, iniciado, segundo Álvaro Salema (2003), pela publicação de Casa da Malta, em 1945,
e organizado pelas obras que têm como ambiente o campo, fazendo do meio rural pano de
fundo e também eixo norteador na constituição dos personagens, geralmente, camponeses.
Mais tarde, contrapondo-se ao cenário campestre, inicia-se, a partir da publicação de O
Homem Disfarçado, em 1957, seu ciclo citadino, no qual o autor escreveu livros que têm
como marca o contexto urbano.
Para realçarmos o momento em que Namora elege a cidade como espaço primordial
de suas obras, escolhemos analisar brevemente como os elementos da cidade de Lisboa são
trabalhados em Os Clandestinos, demonstrando o quanto os espaços, além de algumas
vezes demarcarem geograficamente uma localização, estabelecem trocas com os corpos
narrados, provocando sensações nesses personagens. O romance escolhido foi publicado em
1972 e está inserido no ciclo urbano do autor, marcado pela relação dos indivíduos com a
cidade, principalmente, com Lisboa. Sendo assim, intuímos percorrer esses espaços
lisbonenses, tecidos juntamente com os personagens, indicando o quanto a paisagem
ressalta as emoções dos sujeitos narrados, participando ativamente do jogo narrativo.
Percebemos que a interação entre o homem e o espaço urbano é ponto chave no
romance, sendo evidenciada, entre outras coisas, pelo ritmo acelerado da cidade e pelos
corpos incapazes de comunicarem-se verdadeiramente uns com os outros. Essa
desarticulação do sujeito com o mundo ao qual está inserido atravessa a trajetória de escrita
de Fernando Namora, ganhando ainda mais relevo no ciclo citadino, onde é possível
propormos um diálogo entre os dramas existenciais dos personagens com o contexto
citadino em que os mesmos se encontram.

DESENVOLVIMENTO

Selecionamos algumas teorias que refletem, sobretudo, sobre espaço, paisagem,


sujeitos e literatura, o que possibilitou projetarmos um olhar transdisciplinar para a

130
Anais

interação entre os personagens e os elementos da paisagem urbana, criados e escolhidos por


Namora de maneira a despertar sentidos e evocar emoções em suas obras. A cidade se tornou
o grande centro de suas narrativas no fim dos anos 50. Tal mudança de cenário traz também
personagens e sensações diferentes para os leitores, o que nos permite estabelecermos
ressonâncias entre o novo contexto escolhido (Lisboa dos anos 60/70/80) e a própria
Literatura.
De acordo com o historiador interdisciplinar Carl Emil Schorske (1989), o
pensamento europeu do século XIX desconstruiu a ideia Iluminista de cidade como espaço
de emancipação humana e de realização do potencial utópico das sociedades, instaurando
uma visão da urbe pela falência dessas expectativas, passando a representar a cidade a partir
de seus vícios e problemas. É iniciado um processo de desvalorização da cidade como
conceito, tanto no pensamento político-social quanto nas artes e na Literatura: “Sem a
brilhante imagem da cidade como virtude, herança do Iluminismo, a ideia de cidade como
vício dificilmente teria se tornado tão forte na mentalidade europeia” (SCHORSKE, 1989, p.
51). Por esse viés, observamos que a metrópole oitocentista assume, nas diversas formas de
expressão artística, um caos urbano para a época, evidenciado por uma desumanização e
desagregação moral e psicológica do homem urbano. Essa ideia de cidade caótica que
prevalece no século XIX começa a surgir com frequência na Literatura, tendo como um dos
grandes expoentes Charles Baudalaire e a figura do flâneur, “que é uma espécie de botânico
do asfalto para quem a vida na sua inesgotável riqueza de variações só se desenvolve entre
as pedras cinzentas da calçada (BENJAMIN, 2020, p. 39). Tal modo de registrar na Literatura
as experiências urbanas passa a ser cada vez mais recorrente a partir, especialmente, de
Baudelaire.
No caso da Literatura portuguesa é Cesário Verde que instaura efetivamente uma
visão melancólica sobre a cidade de Lisboa. O olhar inaugural que o poeta dedica aos
elementos do cotidiano, transformando objetos não líricos em líricos, torna-o uma figura
singular, pronta para ser revisitada por literatos posteriores. Em sua poesia, os
marginalizados são convertidos em matéria para os versos, tais como os operários, a
peixeira, o pequeno proprietário, projetando na Literatura portuguesa uma nova perspectiva
de observar e descrever os espaços, principalmente, as ruas de Lisboa. Apesar de não ter sido
compreendido e reconhecido enquanto vivo, a partir da leitura que Fernando Pessoa fez de
Cesário, sua voz começa a ecoar em muitas outras vozes posteriores. Compartilhando a ideia
proposta por Silvio Renato Jorge em seu texto “Pelas Ruas de uma cidade triste: Lisboa e

131
Anais

as imagens da solidão” (2020), percebemos que Namora acompanha o olhar angustiado a


respeito da cidade de Lisboa, iniciado na Literatura portuguesa por Cesário Verde em O
Sentimento dum Ocidental e continuado por Fernando Pessoa, em especial, pela voz de
Álvaro de Campos.
Fernando Namora seguiu a linha dos observadores atentos de uma Lisboa já encarada
como urbe e de seus consequentes problemas, refletidos em seus habitantes. Dessa forma,
Os Clandestinos, juntamente com as outras narrativas do ciclo urbano do autor, são textos
que carregam em comum o discurso de um determinado tempo histórico e que falam da
representação da cidade moderna que emergia naquele momento. A caracterização da
Lisboa de Namora é marcada temporalmente no fim dos anos 50 até os anos 80, porém as
sensações dos indivíduos narrados nos oferecem a possibilidade de estabelecermos
ressonâncias com as reflexões sobre os sujeitos e as cidades da atualidade, permitindo uma
reflexão atemporal, pautada na transposição de teorias contemporâneas para pensar
também nas obras do autor.
Félix Guattari, filósofo francês, em seu capítulo “Espaço e corporeidade”, um dos
estudos que compõe a obra Caosmose (1992), parte do princípio da interação entre corpo
e espaço, propondo uma indistinção entre tais categorias, ressaltando uma inseparabilidade
entre os mesmos. Essa relação entre espaço/corpo é muito cara para começarmos a refletir
sobre paisagem e literatura, uma vez que na obra escolhida os personagens e seus corpos se
mostram em tessitura com os ambientes urbanos nos quais estão inseridos, parecendo
mesmo serem indissociáveis de tais contextos. Para o autor, a paisagem desencadeia afetos
e provoca sensações nos corpos, causando uma experiência de subjetivação do espaço. Sendo
assim, ele defende que o alcance dos espaços construídos vai bem além de suas estruturas
visíveis e funcionais: “... a cidade, a rua, o prédio, a porta, o corredor... modelizam, cada um
por sua parte e em composições globais, focos de subjetivação”. (GUATTARI, 1992, p. 161).
O arquiteto e filósofo finlandês, Juhani Pallasmaa, também destaca em sua obra Os
olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (2011), a direta relação estabelecida entre
espaço/corpo: “Nossos corpos e movimentos estão em constante interação com o ambiente;
o mundo e a individualidade humana se redefinem um ao outro constantemente”
(PALLASMAA, 2011, p. 38).
O olhar filosófico de Pallasmaa sobre a arquitetura e sobre os espaços permite
considerarmos a troca estabelecida entre os indivíduos e os ambientes, e consequentemente,
as paisagens. Em Essências, livro que reúne quatro ensaios do autor a partir desse viés da

132
Anais

Filosofia, o arquiteto traz uma reflexão sobre o intenso intercâmbio entre os corpos e os
espaços habitados. Mais especificamente no ensaio Espaço, lugar, memória e imaginação,
presente no livro citado, nos deparamos com o olhar sensível do arquiteto/filósofo sobre a
experiência na cidade, espaço de nosso maior interesse no presente trabalho: “A experiência
de um lugar ou espaço sempre é uma troca curiosa: à medida que me assento em um espaço,
o espaço se assenta em mim. Vivo em uma cidade, e a cidade vive em mim.” (PALLASMAA,
2018, p. 25).
Percorremos a experiência dos corpos narrados no romance de Fernando Namora a
partir desse diálogo do indivíduo com o espaço urbano, observando, principalmente, como a
angústia humana se entrelaça com o narrar dos elementos da própria cidade, evidenciando
a relação dos sentimentos dos personagens com os ambientes. Pallasmaa (2011) discorre
sobre a associação do isolamento e da angústia existencial com o espaço urbano e também
com a tecnologia. Mesmo que por meio de transposições e deslocamentos temporais entre a
cidade de Pallasmaa e a Lisboa de Namora, podemos pensar na crise existencial de Vasco,
personagem central da obra analisada, a partir das reflexões do teórico finlandês. De acordo
com o filósofo/arquiteto: “A cidade contemporânea é a cidade dos olhos, do distanciamento
e da exterioridade” (PALLASMAA, 2011, p. 31).
Considerando essa interação entre corpo e espaço, acreditamos ser possível olhar
para Os Clandestinos buscando refletir sobre a associação dos personagens com a paisagem
urbana lisbonense, explorada no livro. O espaço urbano de Lisboa está constantemente em
questão, ainda quando não de maneira explícita, se evidencia a partir da própria angústia, da
solidão, do esvaziamento das relações, dos corpos acelerados ou até mesmo da falta de
paisagem natural no ambiente urbano.
Em introdução para o livro Literatura e Paisagem em diálogo (2012) as
organizadoras Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos estabelecem significativas
considerações a respeito da interação entre a Literatura e a paisagem. Nessa seção
introdutória percebemos a importância dos modos de olhar para o estabelecimento das
relações entre os espaços, as artes e os sujeitos. Notamos que são modos de olhar, pois não
se trata apenas da visão, mas sim da percepção sobre essa associação entre corpos e espaços,
refletindo sobre o estar no mundo e o estar também na escrita. Compreendemos dessa
maneira que a paisagem não é um objeto apenas para ser visto ou texto para ser lido, mas
compreende-se como um meio de troca entre indivíduo e espaço.

133
Anais

Para Michel Collot (2012), em Pontos de vista sobre a percepção de paisagens, o


termo paisagem é muito polissêmico dando margem a diversas interpretações que podem ir
desde o senso comum aos estudos científicos. Pensando nisso, o teórico traz duas definições
de dicionário para a palavra, sendo que em ambas aparece a questão do olhar, ou seja, de sua
característica visível. Dessa forma, a paisagem se mostra, inicialmente, como um espaço
percebido. Porém, enquanto construção simbólica, a paisagem não pode ser determinada
apenas por um único dado sensorial; ela se constitui pelo recebimento de vários dados
sensoriais e pela organização desses dados em forma de sentido. Contribuem ainda para a
definição da paisagem outros aspectos, como o ponto de vista, a ideia de parte e a ideia de
todo, detalhadamente explorados por Collot, pois para o teórico, a paisagem caracteriza-se
como um espaço disponível ao olhar e também acessível a um corpo, sendo ao mesmo tempo
público e privado, suscetível de uma modelagem a partir de um sujeito.
Refletindo sobre essa comunicação entre corpo e espaço, e concentrando a visão na
paisagem citadina, exploramos o artigo Poesia e Paisagem urbana: diálogos do olhar, da
professora Ida Alves, presente em Literatura e Paisagem (2012), de forma a especificar a
espacialidade que pretendemos observar em Os Clandestinos. Tal artigo foi de extrema
valia para a composição do estudo aqui proposto, pois além de focar na paisagem urbana
também se debruça sobre a Literatura Portuguesa, área de nosso interesse. Apesar de fazer
uma análise da paisagem na poesia, foi muito possível pensarmos também na narrativa
através de tais apontamentos. Alves (2012) salienta a atenção dada pela poética portuguesa
à vida urbana, manifestando assim peculiaridades desse contexto, tais como as contradições
sociais, culturais e identitárias e as tensões existenciais, ao mesmo tempo em que
observamos uma velocidade cada vez mais acelerada nas relações. A autora evidenciou essas
características na poesia a partir dos anos 70 à atualidade. Essas marcas de urbanização
aparecem já bem ilustradas em Os Clandestinos, publicado em 1972.
O conceito de dromologia, cunhado por Paul Virilio em sua obra O Espaço Crítico
(1993), no qual o filósofo estuda os efeitos da aceleração da velocidade na sociedade, tecendo
considerações a respeito da complexidade das relações sociais contemporâneas é muito caro
para refletirmos sobre o espaço urbano na Literatura. Segundo Virilio (1993), a dromologia
é uma área de estudo interdisciplinar sobre a velocidade e o modo como a mesma é capaz de
mudar a percepção do tempo e do espaço e, portanto, causando entre outras consequências
a sensação de um sujeito desarticulado espacialmente e temporalmente.

134
Anais

As colocações sobre esse indivíduo que se sente deslocado na paisagem urbana muito
nos interessa, pois os personagens da narrativa escolhida passam por tensões com o meio
no qual se encontram. A velocidade da vida urbana parece atravessar esses corpos, fazendo
com que os mesmos não se enquadrem, demonstrando uma vivência errante frente ao
contexto no qual vivem. São figuras que não conseguem estabelecer relações significativas,
parecendo sempre viver superficialmente, sem participar inteiramente de nenhuma
situação. São pessoas que estão em constante afastamento, seja da sociedade em geral, seja
da própria família. Muitas vezes parecem seres incompreendidos, sujeitos “fora do tempo”.
Pensando nessa expressão “fora do tempo”, muito nos vale o estudo sobre a problematização
entre o tempo do indivíduo e o tempo da cidade, desenvolvido por Ana Fani Carlos (2001).
Carlos (2001) levanta essa incompatibilidade entre o tempo individual e o tempo coletivo
acelerado, sentido nas transformações urbanas, mostrando o quanto o indivíduo não
acompanha esse ritmo intenso e acaba sofrendo as consequências de estranhamento dessa
disparidade temporal.
As teorias analisadas permitem a produção do diálogo entre paisagem urbana e
literatura, fornecendo indícios para percorrermos Os Clandestinos a partir da ótica que
coloca o sujeito e a cidade em constante troca, na qual o indivíduo insere suas marcas no
espaço urbano e vice-versa. O romance tem como figura central Vasco Rocha, um conhecido
escultor que no passado foi militante de esquerda. As lembranças do tempo de ativista
político surgem em forma de memórias que vão e vêm na narrativa. Ele relembra os dias de
perseguição, prisão e tortura. Vasco recorda o quanto precisou se esconder, mudando de
nome, de país, e consequentemente, perdendo algumas características de sua personalidade.
A clandestinidade necessária no passado parece nunca ter fim. Através da narração da rotina
de um Vasco já consolidado como escultor observamos um homem que tenta
incessantemente passar oculto pela vida, pela esposa Maria Cristina e pela sociedade que o
rodeia. Ele tem frequentemente a sensação de que a cidade o vigia, assim como quando era
perseguido pela polícia política em tempos de ativismo (conforme relembra na citação
abaixo). Observamos que ele procura constantemente se esconder, seja por meio dos
encontros extraconjugais com Jacinta no apartamento discreto de Bárbara, seja em sua
própria personalidade reservada:

Percebi depois que era seguido. Dirigimo-nos para as ruas que, mesmo
àquela hora, tivessem algum trânsito, e, na primeira oportunidade,
estacionei num sítio onde o nosso carro poderia passar despercebido

135
Anais

entre os demais. [...] Mas uma intranquilidade indefinida dizia-me que


eu continuava a ser seguido. [...] Ainda hoje sinto essa intranquilidade.
Ainda hoje sinto que toda a cidade me vigia, que olhos secretos estão
dentro e fora de mim, que me é necessário ocultar o que sou e não sou,
ainda hoje não sei quando as palavras e gestos me pertencem. E se é de Maria
Cristina, de Jacinta, do Veres, dos esbirros, ou de toda a cidade, que tento
dissimular o que talvez já não mereça dissimulações. (NAMORA, 1972, p.
172, grifo nosso).

A cidade de Lisboa aparece no livro como um espaço pronto a vigiar, funcionando na


narrativa como um mecanismo que reforça a angústia e a intranquilidade de Vasco. O
contexto urbano, apresentado em Os Clandestinos, é determinado por um ritmo veloz,
característico da cidade moderna, apontado nas teorias acima investigadas. Essa velocidade
exerce influência na vida do personagem central, causando desconforto e fazendo com que
ele se sinta deslocado. No início do livro a avenida é comparada a um rio que corre,
demonstrando a aceleração e a consequente repetição daquele espaço:

Era mais ou menos assim de todas as vezes, nessa avenida que parecia um
rio. O rio descia, correndo, suspendia-se ali, remoinhando, e passava
adiante; mas entre chegar e passar adiante, muitas coisas podiam acontecer,
muita gente poderia reconhecê-lo, a ele, Vasco Rocha, escultor a quem meia
Lisboa tirava o chapéu [...]. (NAMORA, 1972, p. 10, grifo nosso).

Assim como Lisboa corre como um rio também o seu pensamento e as suas memórias
acompanham a velocidade das ruas. Suas lembranças aparecem como percepções
fragmentadas e confundem-se em seu presente:

O tempo ia correndo, a avenida rugia, chamando-o, ouvia-se o crescer e o


bater final das ondas do tráfego, ecos de voragem e cansaço, e gradualmente
apercebia-se que as suas congeminações, o fluir desconexo da memória, a
juntar coisas que pouco ou nada tinham umas com as outras [...] mas
logo a apartá-las também, se afastavam cada vez de Jacinta e de Maria
Cristina, embora ele tivesse de partir de qualquer delas, ou de ambas
simultaneamente, para chegar a esse reencontro com um Vasco que talvez
nunca houvesse existido ou só existia através de determinação em o
reconstituir (NAMORA, 1972, p. 317, grifo nosso).

A partir dessas duas citações do romance podemos perceber algumas imagens da


cidade moderna, exploradas por Namora, e as consequências que tais aspectos urbanos
podem causar em indivíduos como Vasco. A Lisboa colocada em destaque na narrativa é a
dos anos 60/70, o que pode ser deduzido através de eventos recordados no livro, como, por

136
Anais

exemplo, a Greve da Carris2, em 1964. Na época relatada pelo autor, muitas transformações
urbanas, que começaram a emergir ainda no século XIX, continuam ocorrendo na capital
portuguesa. Nos anos 50, Lisboa “trata-se de uma cidade alargada, já dentro da definição
regionalizada de «Grande Lisboa» (FRANÇA, 1980, p. 118).
Por mais que a Lisboa contextualizada em Os Clandestinos não fosse uma metrópole
como a Paris da época vale ressaltarmos que os aspectos da modernidade já se encontravam
naquele espaço. Notamos que as imagens mais recorrentes da essência da cidade moderna e
do sujeito moderno, tais como a artificialidade, a inautenticidade e a percepção fragmentada,
apontadas pela especialista em sociologia urbana Luciana Andrade (1996), podem ser
facilmente projetadas na Lisboa de Namora.
A artificialidade, apontada pela autora, nos leva ao modo de viver superficial
demonstrado por Vasco no romance, repleto de vivências falsas, representadas por seres
mecanizados, que se assemelham às máquinas, dominados por gestos repetitivos,
comandados pelo tempo artificial do relógio: “Nesse momento, preparava-se para acertar
escrupulosamente o relógio pelo Tissot gigante que trepara ao telhado do arranha-céus da
praceta” (NAMORA, 1972, p. 10). É um viver sem autenticidade, moldado pelas convenções
sociais ou movido pelo poder do dinheiro, gerando pessoas mascaradas. Os mecanismos
dessa cidade moderna fazem com que Vasco tente buscar uma clandestinidade cotidiana,
mas que acaba não sendo suficiente para fugir completamente daquele espaço:
Um dia, Jacinta dissera-lhe: << Que cor tem o mundo na tua cabeça?>> E Bárbara
repetia-lhe quase o mesmo. Bárbara e talvez alguém mais. Por isso, confundia as pessoas:
os teus horrores, as suas máscaras, os seus ressentimentos, não tinham um alvo definido.
Era o ambiente. Os medos, as frustrações, pertenciam à atmosfera que respiravam. O que
ainda restava de vivo ardia sob a clandestinidade quotidiana, mas era já um calor gretado.
Nele progredia a lava do enfado e da passividade. Assim acontecia a ele e aos outros − que
tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos (NAMORA, 1972, p. 121,
grifo nosso).

2 No dia 1 de julho de 1968, teve início a Greve da Carris (também conhecida como “Greve da mala”).
Os trabalhadores da Carris lutavam por melhores condições de salário. Iniciaram uma ação de
protesto, não cobrando bilhetes, deixando as malas de cobrança nas estações e ocupando as estações
de recolha de autocarros à noite. Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/greve-da-mala-foi-ha-50-
anos/55999.

137
Anais

O uso de máscaras para suportar o viver falso a que estavam condicionados é atrelado
na citação acima “à atmosfera que respiravam”. É por meio da existência de Vasco que o
medo e as frustações, intensificados pelo ambiente urbano, são revelados de maneira mais
evidente. Porém, através da passagem em análise, vemos que essa relação se estende aos
outros personagens, reforçando a troca existente entre o corpo e a cidade: “Assim acontecia
a ele e aos outros − que tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos”
(NAMORA, 1972, p. 121, grifo nosso).
Essa clandestinidade cotidiana leva, entre outras coisas, a um esvaziamento das
relações. O casamento de Vasco com Maria Cristina é o reflexo desse desgaste e da falta de
interação, advindos da ambiência citadina, caracterizada pelos seus “precários redutos de
um viver comunicativo” (NAMORA, 1972, p. 160). O desencanto e o desconforto, observados
no casamento, se estendem para o seu trabalho. O escultor passava horas em seu estúdio,
mas começava a desconfiar de sua atividade, demonstrando que até mesmo a arte poderia
entrar no círculo vicioso da vida urbana burguesa. Assim como o estúdio passou a ser um
local do desencontro o mesmo parece acontecer com os cafés. Espaços recorrentes nas obras
do ciclo urbano de Namora, os cafés apresentam significativa importância no cenário
citadino lisbonense do período narrado. Em Os Clandestinos, apesar de aparentar funcionar
como ambiente de reuniões também revela a convivência superficial e artificiosa que se
observava nesses estabelecimentos. A relação instituída pelos indivíduos que convivem no
café era baseada na repetição que regia suas existências, funcionando mais como um meio
que favorecia o não encontro:

“Os dias eram iguais, iguais os silêncios e as pessoas − o hábito, um


certo desamor por si próprios, soterrara-os na indiferença. O café tinha
por vezes a atmosfera de um velório [...]” (NAMORA, 1972, p. 225, grifo
nosso).

Assim como o café e a importância que o mesmo transmite para o cenário urbano em
transformação também notamos a presença de outros elementos da cidade de Lisboa que
juntos vão dando corpo ao plano narrativo espacial que Namora quer destacar e relacionar
com os personagens. O apartamento de Bárbara, local de encontro de Vasco e Jacinta,
também é um espaço fundamental daquela cidade em constante transição. A arquitetura,
marcada pelo cinza do cimento, revela o crescimento desse tipo de construção:

138
Anais

“Do quarto de Bárbara, do quinto andar de um prédio de cimento, com


persianas que punham um dique ao rumor exterior, Vasco estava à parte
do formigueiro, do seu rodopio ao mesmo tempo assustador e euforizante”
(NAMORA, 1972, p. 211, grifos nossos).

Nos momentos que Vasco está no apartamento de Bárbara as janelas ganham espaço
de destaque no texto. São as frestas das persianas, indicadas na citação anterior, que
permitem o enquadramento pelo qual Vasco observa a vida urbana que o cerca. A janela que
esconde o personagem é a mesma que possibilita que ele veja a Lisboa em transformação, o
que o faz querer cada vez mais se isolar daquele contexto: “Olhou a rua, os táxis que se
enfiavam nas raras abertas do trânsito, esperando que um deles fosse abrandar, que num
deles, enfim, descesse Jacinta” (NAMORA, 1972, p. 210, grifo nosso). Nesse trecho, Vasco
observa pela janela e aguarda ansiosamente a chegada de Jacinta, que sempre faz questão de
atrasar, reforçando as angústias do escultor. No capítulo final da obra, ele toma a decisão de
não esperar mais pela amante e se libertar de tudo o “que em si se pervertera” (NAMORA,
1980, p. 258):

Achava-se mesmo um estranho a tudo o que o rodeava: alcova, odores e o


estendal de horrendos bibelôs que apetecia atirar pela janela. Estranho e
surpreso de se encontrar ali. Tinha agora os nervos singularmente
apaziguados. Se havia um resto de inquietação, era para se ver lá fora, na rua,
na inebriante mistura da rua. As coisas não seriam tão simples como ainda
há pouco lhe pareciam, mas saberia enfrentá-las. E com outra força. E
também com outra pureza (NAMORA, 1972, p. 331, grifo nosso).

Dessa forma, tenta partir em busca da sua utopia – a demanda da sua felicidade –, que
parece que não passará disso mesmo: uma utopia, irrealizável face às suas relações
familiares e sociais profundamente desvirtuadas, reforçadas pelo meio em que se encontra.

Considerações finais

Levando em consideração a exposição teórico-literária até aqui colocada, nosso


intuito foi evidenciar o diálogo produtivo entre paisagem e literatura, demonstrando de que
maneira Fernando Namora se utilizou do espaço urbano para compor seus personagens e
criar significados a partir da composição dos elementos citadinos em sua escrita. O livro
escolhido permitiu exemplificar o quanto a cidade de Lisboa exerce influência e participa da

139
Anais

criação da narrativa, contribuindo, entre outras coisas, para exacerbar a angústia dos
personagens.
Os apontamentos da paisagem urbana, observados em Os Clandestinos e destacados
pelas próprias citações do livro, foram extremamente produtivos para pensarmos as marcas
espaciais na narrativa. Através da ambientação urbana do romance em questão, concluímos
que a escrita de Namora não se limita em percorrer lugares geograficamente estabelecidos,
já que muitas vezes até sem descrever em detalhes a paisagem, o escritor consegue ir além
da mesma quando demonstra, a partir do sentimento dos personagens, o que determinados
espaços podem criar e intensificar nos corpos.

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140
Anais

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Paulo, n. 27, p.47-57, 1989.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

141
FOI UM RIO QUE
PASSOU EM MINHA
VIDA: O MERGULHO DA
PALAVRA LIBERTA
Roman LOPES (Univesp)1

RESUMO

A insistência em uma apresentação sintetizada de reflexões que se espraiam e submergem


em incontáveis e vastas esferas só pode ter como destino as gavetas emboloradas dos entes
acadêmicos inflexíveis e amorfos. Não é possível resumir um sonho. Entretanto, para que as
pessoas que se aventurarem na leitura das linhas abaixo, acima e aos lados possam,
vagamente, supor o que as espera, vamos arriscar alguns tópicos emoldurados. O princípio
de que toda palavra é uma metáfora inicia a tortuosa viagem em direção ao rio pós-
metafórico, cujo mergulhar é o objetivo. Com esse princípio a cartografar nossos caminhos,
arriscamos a trilha da negação de uma linguagem literal, vista apenas como imposição de um
colonialismo discursivo que molda os nossos processos expressivos em nome de uma
pretensa comunicabilidade. O princípio e a negação são os pincéis a colorir o trajeto dos
estados de sentidos das palavras, cuja metaforicidade se aprofunda à medida que nos
distanciamos das margens do rio. Na beleza do estado pós-metafórico alcançamos as
profundezas e nos tornamos rio, para com isso libertarmos as palavras de qualquer tipo de
imposição discursiva, fazendo-as existirem na imanência de suas forças sonoras, imagéticas
e sinestésicas.

Palavras-chave: colonialismo discursivo; estados de sentidos; pós-metáfora.

1 Especialista em Estudos da Linguagem pela UNIGRAN e em Literatura Contemporânea pela


Faculdade São Luís. Mestre em Artes Cênicas pela UNESP. E-mail: roman.lopes.v@gmail.com

142
Anais

ABSTRACT

The insistence on a synthesized presentation of reflections that sprawl and submerge into
countless vast spheres can only be destined for the moldy drawers of inflexible and
amorphous academic entities. It is not possible to summarize a dream. However, so that
people who venture to read the lines below, above and to the sides can vaguely guess what
awaits them, we will venture a few framed topics. The principle that every word is a
metaphor begins the tortuous journey toward the post-metaphoric river, whose dipping is
the goal. With this principle mapping our paths, we risk the denial of a literal language, seen
only as an imposition of a discursive colonialism that molds our expressive processes in the
name of an alleged communicability. Principle and negation are the brushes to color the path
of the words' states of meaning, whose metaphoricity deepens as we distance ourselves from
the river's banks. In the beauty of the post-metaphoric state we reach the depths and become
a river, and thereby free the words from any kind of discursive imposition, making them exist
in the immanence of their sonic, imagetic, and kinesthetic forces.

KEYWORDS: discursive colonialism; sense states; post-metaphor.

Prelúdio meramente elucidativo, embora dispensável

O décimo linear prescrito para esse espaço anterior à desenvoltura das ideias que
temos a seguir cumpre a função protocolar de indicar aos possíveis leitores desses devaneios
algumas facilidades para lidarem com os caminhos a percorrerem nas subsecutivas laudas…
Entretanto, o caminho é de pedras! Não há facilidade possível no mergulho em um rio
desconhecido. Apenas a coragem do mergulhar e a vontade de tornar-se rio, para um correr
fluído e livre, justificam a escolha em prosseguir na leitura. Uma leitura que leva a pessoa
leitora à doçura de uma dolorosa libertação discursiva, assim como a um encontro
sinestésico com as palavras. Bebamos, juntas e juntos, a seiva melodiosa da palavra que,
liberta de suas funções discursivas, transforma-se em imagem, som e fúria.

Molhando os pés em águas já conhecidas

Partimos, nessa jornada aventureira pelos caminhos dos discursos, de um princípio


fundamental: toda palavra é uma metáfora! Essa proposição, de lúdica polêmica, poderia ser
vista como uma premissa. Entretanto, a polissemia do princípio torna-se mais atraente, uma
vez que, além de apontar para o seu caráter fundante na estruturação de uma argumentação,
a ideia de que algo está começando carrega forte carga de entusiasmo por parte desse
pretenso proponente, que em verdade é um mero diletante…

143
Anais

Ultrapassando o campo das obviedades, onde toda palavra pode, em qualquer


medida, ser utilizada metaforicamente, queremos lançar aos quatro ventos e às inúmeras
vazões a ideia de que o processo de originação das palavras, enquanto síntese das
elaborações de pensamentos, é em verdade um processo de metaforização de uma
experiência.
Os signos linguísticos são o material de que se serve o homem em sua
atividade cognoscitiva, de modo que a criatividade está na contínua seleção
cognoscitiva que se opera face à realidade e não na combinação dos símbolos
como tal. Estes não passam de um recurso institucionalmente garantido para
exercerem aquela atividade primeira. (MARCUSCHI, 2000, p. 74).

Com essa desarrazoada, adentramos a um rizoma de ideias, onde a metáfora tem a


função primeva de qualquer estabelecimento comunicacional, pois é ela que nos possibilita
transformar a experiência em um conjunto simbólico compartilhável, dando imagem ao
invisível, sabor ao insípido, aroma ao inodoro... “A metáfora é um modo novo de conhecer e
comunicar o mundo assim conhecido. Ela é, de certa forma, um recurso reestruturador da
realidade, criando novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo restrito à realidade
puramente factual” (MARCUSCHI, 2000, p. 76).
O sentido da experiência trazido pela palavra enquanto metáfora natural possibilita
um sem número de ilações. A metáfora é uma experiência comunicacional da vida! É a
construção simbólica de um discurso! Quando alguém utiliza uma metáfora, quer de alguma
forma compartilhar uma experiência e acredita que o uso literal2 das palavras não
corresponde à plenitude da experiência... “A chamada linguagem literal não só pode ter
metáforas como está repleta delas e de forma sistemática” (LIMA, 2003, p. 169).
Entretanto, abraçando o caos rizomático no qual pretendemos mergulhar, afirmamos
com a segurança dos pássaros em voo profundo que o pretenso sentido literal das palavras
é apenas um estado congelado do fluir metafórico permanente das palavras, condição
paradoxalmente deliciosa, que é imanente a esse ente travesso da nossa experiência.
Os padrões de comunicação pedem um significado mais reconhecível, para que os
processos de comunicação sejam mais rápidos e mais efetivos. Por isso, o chamado sentido
literal das palavras é apenas um dos possíveis sentidos que a palavra pode assumir,
congelado por regras de comunicação.

2 Grifo necessário, embora ainda incompreensível.

144
Anais

Estamos, então, assumindo diante de possíveis rostos banhados pela incredulidade,


que não existe um sentido literal para as palavras, pois esse é apenas um dos possíveis
sentidos que qualquer palavra pode assumir, em uma experiência comunicacional que é
naturalmente aberta e fluída. A construção de discursos, enquanto reconstrução simbólica
da própria experiência do viver, ao modo dos mergulhos das ariranhas e das danças dos
enamorados, tem como elemento essencial o processo de elaboração metafórica, processo
esse que acaba cristalizado nesse aqui negado sentido literal apenas porque o discurso
precisa atender a demandas oriundas da necessidade de controle dos sistemas de vida,
necessidade implantada como um chip a ecoar seus sussurros sedutores de poder em nossas
combalidas convicções.

As pedras do leito represado

A produção dos discursos está relacionada à maneira como a pessoa carrega as


marcas de um padrão impositivo de comportamento. De maneira geral, esses discursos são
produzidos e lidos a partir de parâmetros que reforçam a imposição de modelos de conduta
e de pensamento.

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8).

Mesmo quando os discursos, de alguma maneira, confrontam as estruturas de


controle social, muitas vezes acabam por reproduzir suas premissas, quando não no
conteúdo, na forma. E isso acontece porque está enraizada nas pessoas a necessidade de
passar uma mensagem fechada para as outras. Essa necessidade, criada na artificialidade das
estruturas de controle social, acaba por bloquear a fluidez discursiva, represando-a em
sentidos aceitos pela condescendência do já posto.
É de exorbitante translucidez que estamos diante da criatura férrea do colonialismo
discursivo, com seus tentáculos que acariciam enquanto sufocam, deslizam enquanto
encarceram, beijam enquanto engolem. O colonialismo discursivo baliza um perímetro onde
se vende a ideia de que precisamos nos comunicar de maneira higienizada, sem ruídos de
nenhuma espécie, pois esse asseio pressupõe a eficiência e a lisura das comunicações. E,

145
Anais

justamente, essa higienização é que carrega o Cavalo de Tróia de um sistema discursivo


repressor.
A base do nosso sistema comunicacional é colonialista porque pressupõe uma linha
direta, em sentido único, entre quem emite o discurso e quem recebe, reforçando ainda uma
dinâmica na qual quem emite detém a verdade sobre o discurso e cabe a quem recebe a
passiva situação de receptáculo vazio a ser preenchido por uma mensagem já previamente
elaborada. E quando isso não acontece, recai sobre a pessoa que recebe o ônus da ignorância.
As subjetividades que, naturalmente, fazem parte desse processo são simplesmente
desprezadas, em nome de uma aparente comunhão que, em verdade, disfarça as relações de
poder, das mais ínfimas às mais estratosféricas, enraizadas na epiderme social.

O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso;
não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria
que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda,
indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha
expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria
senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz’; E a
instituição responde: ‘Você não tem por que temer começar; estamos todos
aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito
tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra,
mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que
ele lhe advém’. (FOUCAULT, 1996, p. 7).

Uma das ferramentas utilitárias da construção discursiva colonialista é a planificação


padronizada em nome de um corporativismo vendido em embalagem cúmplice. Um dos
reflexos mais evidentes desse padrão revestido pelo brilho azulejado da compreensão é a
delimitação das palavras em supostos sentidos literais, criando assim um monumento que
represa todas as possibilidades comunicativas existentes.

Para entender o mundo, ou para tentar compreendê-lo, a tradução da


experiência em linguagem não basta. A linguagem mal toca a superfície da
nossa experiência e transmite de uma pessoa a outra, num código
convencional supostamente compartilhado, notações imperfeitas e
ambíguas. (MANGUEL, 2017, p. 13).

Logicamente esse manifesto pela dissolução do literal não pretende imprimir um


caráter absolutista à emancipação dos discursos, pois não alimentamos a ilusão de que uma
ruptura cabal seja o caminho. Na esteira da utopia que impulsiona os desejos libertários
desse dileto viajante das paixões, o caminho que nos parece mais fluvial é aquele que

146
Anais

prescruta duas possibilidades: a justaposição da literalidade como um estado transitório da


palavra, utilizado em situações de imediaticidade; a batalha vicejante para que o universo da
criação literária possa ser um rio caudaloso, onde a compreensão seja atravessada por
leituras outras, dinâmicas simbólicas sinestésicas, tornando plenitude o que é apenas
interlocução.
Nosso hábito preguiçoso é generalizar. Vamos descobrir que, assim como o
átomo – uma vez aberto – contém um universo, do mesmo modo, se nos
demorarmos amorosamente no interior de uma frase, encontraremos em
cada palavra e em cada sílaba ressonâncias que nunca são duas vezes iguais.
(BROOK, 2019, p. 15).

Será essa proposição um absurdo desmedido, fruto de uma mente alucinada que não
respeita o já consagrado? Será a mera conjectura de um diletante que deseja uma
importância que não possui? Precisamos, verdadeiramente, de uma preocupação que
aparenta uma desimportância utilitária para o desenrolar da vida cotidiana? E, mesmo que
todas essas questões sejam superadas, como é possível essa libertação sem cairmos na
desorganização sistemática das comunicações?

Mergulhando em correnteza acalentadora

Comecemos a entrada nesse rio pela proposição de que a literalidade é um estado


transitório dos discursos. Podemos afirmar, sem corrermos o risco de uma armadilha
analítica, que o pergolado sentido literal das palavras, mesmo em seu estado mais
congelante, admite em seu bojo mais de uma possibilidade de significado. Basta pensarmos
que muitas palavras são polissêmicas. Em verdade, todas as palavras possuem potencial
polissêmico. A polissemia das palavras é um fenômeno muito fluido… As diversas acepções
das palavras vêm e vão, de acordo com as dinâmicas culturais da sociedade... “Uma mesma
palavra pode receber diferentes acepções em função do contexto, e algumas dessas acepções
podem se congelar em sentidos polissêmicos” (MOURA, 2008, p. 187).
A polissemia das palavras permite-nos arriscar um mergulho, talvez blasfemo, para
afirmar que mesmo no universo da literalidade, as palavras podem ter mais de um
significado, relacionado ao contexto da construção discursiva. Isso reforça a essência
metafórica de todas as palavras e nos brinda com uma literalidade mais alargada, pois
pertencente a um fenômeno de perene reconstrução simbólica.

147
Anais

Se pensarmos o discurso como o espaço onde os sentidos se produzem,


reverberando o que já foi sócio e linguisticamente reiterado, e, ao mesmo
tempo, revertendo, estendendo ou até mesmo desconstruindo essas
reiterações, num jogo articulatório entre a cognição, a língua e o uso,
podemos tratar a metáfora como um fenômeno que evidencia essa complexa
teia que forma e é formada por novos (mas nunca totalmente inéditos) e
velhos (mas sempre muito vivos) sentidos. (VEREZA, 2010, p. 211).

Para desfazer o nó que parece estar nos envolvendo nessa construção discursiva meio
caótica, reforçando, ainda, o caráter necessariamente padronizador – será? – do sentido
literal das palavras, substituiremos esse conceito pelas ideias de sentido imediato e de
sentido consagrado, ambos navegando na pretensa calmaria da dominância dos significados
discursivos. O sentido imediato é aquele que pede pouca mediação. Ao ouvirmos – ou lermos
– uma palavra, conseguimos criar sentido para ela sem a necessidade de muitas associações
mentais, permitindo-nos uma construção de significação muito rápida. O sentido consagrado
é aquele que já recebeu uma validação pública, seja na ordem histórica, seja na ordem social
ou qualquer outra ordem que qualquer leitora ou leitor possa imaginar. A palavra já faz parte
do nosso arcabouço imaginário, pois os possíveis sentidos são plantados, numa escala
industrial, em nossas referências discursivas.
Pela possibilidade plural do literal, conforme fartamente martelado à guisa de um
diletante nietzschiano, assim como pelo quadro pintado em cores vivas da metaforicidade
imanente nas palavras, não falamos mais em sentidos das palavras, mas em estados de
sentidos que as palavras podem assumir nas diversas construções discursivas. A ideia de
estados de sentidos coloca a palavra em um fluir permanente, trazendo uma possibilidade
mais dinâmica do uso das palavras. O mergulho nesse rio é cada vez mais profundo e nos
coloca diante de um relativamente assustador – e, por isso mesmo, maravilhoso – vazio de
controle, deixando-nos à deriva nessa água... “O vazio é um desafio desconfortável para o
diretor e para o escritor, bem como para o ator. Pode um espaço ser deixado aberto, para
além de tudo o que a gente pensa, acredita e deseja afirmar” (BROOK, 2019, p. 46).
Nesse espaço aberto, que em verdade é o fluir constante das águas, vamos nadar nos
estados de sentidos, cada qual com sua força de correnteza, proporcionando possibilidades
múltiplas de mergulhos. E todos esses estados de sentidos têm na metáfora a sua essência
primeva, sendo que a intensificação ou o abrandamento da emanação metafórica de cada
palavra e de cada discurso localizam cada um deles. Vale ressaltar que usamos os estados de
sentidos tanto para referenciar palavras (entes travessos basilares para as construções
discursivas), como para os discursos (reunião desses entes para agenciamentos de

148
Anais

elaborações), pois ambas as presenças podem ser atravessadas por esses estados. Da mesma
forma, esses estados estão presentes tanto no ato da construção dos discursos como no ato
da fruição, sendo todas as pessoas agentes comuns de produção desses estados.

As palavras são notas musicais para os conceitos, mas os próprios conceitos


são hieróglifos para certas sensações que retornam sempre, sãs ou em
grupo, como grupos de sensações. Não basta para a compreensão mútua
usar as palavras, é preciso adequá-las para aquela determinada espécie de
acontecimentos interiores, enfim é necessária uma experiência comum.
(NIETZSCHE, 2001, p. 208).

O estado pré-metafórico de sentidos é aquele no qual a palavra é usada em seu sentido


imediato ou consagrado. Mesmo quando tratamos das condições polissêmicas da palavra. É
um estado onde a produção de sentidos está atrelada ao coletivo, ao chamado senso comum,
aos padrões culturais. É um estado de águas calmas, onde o mergulho não se faz necessário
e podemos lidar brandamente com as palavras, molhando-nos apenas para que se estabeleça
a sensação de unidade úmida entre pessoas. É nesse estado em que se encontra a maioria
dos eventos de comunicação do nosso cotidiano.
O estado pré-metafórico lida com a chamada criatividade primária. É uma
criatividade que não passa por uma mediação individual. A pessoa lida diretamente com os
padrões. Importante dizermos que a criatividade primária não representa nenhuma espécie
de criatividade menor ou menos importante. Apenas refere-se ao ato criativo – pois é disso
que tratamos na produção de discursos – que consegue produzir sentido com uma mediação.
E essa mediação, de forma geral, atende a um padrão estabelecido, uma vez que a significação
imediata ou consagrada é a primeira a nos chegar. Ficamos satisfeitos, boiando na calmaria
de uma correnteza delicada, quase inexistente. E esse boiar nos deixa aconchegados em
nosso território de segurança, que partilhamos social e culturalmente.

A forma visível é cavada pela escrita, arada pelas palavras que agem sobre
ela do interior e, conjurando a presença imóvel, ambígua, sem nome, fazem
emergir a rede das significações que a batizam, a determinam, a fixam no
universo dos discursos. (FOUCAULT, 1988, p. 23).

Adentrando a uma correnteza um pouco mais forte, mas ainda com os pés no fundo
do rio, brincamos com o estado metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de
forma a possibilitar a entrada em outros universos de sentidos. Com isso, a construção de
sentidos é mais individualizada, escapando do senso comum. No entanto, não é uma

149
Anais

construção totalmente livre, pois há uma linha tênue, difusa que liga esse processo de
construção aos sentidos imediatos ou consagrados. Nadamos em polissemias, catacreses e
metonímias, numa coreografia pleonasticamente hiperbólica, que nos enchem de ares
eufemistas e antitéticos. Um nadar um pouco mais despreocupado e, talvez, um pouco mais
irresponsável. No entanto, um nadar dançante que nos leva a outra dimensão de
possibilidades discursivas.
O estado metafórico lida com a chamada criatividade secundária ou relacional. O
sentido não vem sozinho. Ele é tecido em uma trama de conexões, que se relacionam para a
construção de sentidos. Porém, essa trama é limitada pelo sentido imediato ou consagrado.
Podemos colocar os pés no fundo do rio no momento em que quisermos, como raízes a nos
manterem em uma margem de segurança bastante apaziguadora. E essa segurança nos leva
ao risco de alguns mergulhos. Mais uma vez, a criatividade secundária não tem nenhum
caráter seletivo, mostrando que o ato criativo precisa de, pelo menos, duas mediações para
alguma construção de sentido. Essa segunda medição possui um caráter mais
individualizado, mesmo que ainda tenha alguma relação, mesmo que tênue, com os sentidos
imediatos ou consagrados.
Os processos de comunicação cotidiana, pelos quais fincamos os pés nas margens da
pré-metáfora, algumas vezes apelam ao estado metafórico, seja por reivindicar, mesmo que
sem intenção, a polissemia de algumas palavras, seja pela intenção de dar uma marca mais
pessoal aos discursos, mesmo que essa intenção seja inconsciente. Também no estado
metafórico podemos abrir as portas da criação literária, o que não significa que essa porta já
não estivesse aberta no estado pré-metafórico. Entretanto, é no universo das analogias,
espaço próprio das metáforas, que a criação literária mergulha sua exuberante presença. E
as analogias são galhos entrelaçados que, ao mesmo tempo em que se deixam balançar ao
vento, mantêm-se ligados aos troncos e às raízes... “O espaço das analogias é, no fundo, um
espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo
homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo” (FOUCAULT, 1999,
p. 31).
Mergulhando sem medo e nos deixando levar pela correnteza mais potente,
dancemos o estado pós-metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de forma
completamente livre, sem nenhum pressuposto a mediar o processo de construção de
sentidos. A estruturação do discurso não segue nenhum padrão e qualquer tentativa de
abordagem a partir dos sentidos imediatos ou consagrados é inócua. O discurso é de tal

150
Anais

forma aberto que a relação com ele se estabelece em outras bases, impossíveis de serem pré-
elaboradas. Cada operação discursiva é única, movida por impulsos que ultrapassam a
consciência de si mesmos. Não existe nenhuma necessidade comunicativa, apenas o desejo
expressivo, sem ponto de partida, nem porto de chegada, nem caminho estabelecido de
jornada. Apenas o fluxo discursivo, movido por pulsões incontroláveis que só querem existir
no partilhar simbólico das experiências.

Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa


multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela
aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como
se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente
linhas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24).

O estado pós-metafórico lida com a chamada criatividade terciária ou rizomática. O


sentido não vem de lugar nenhum. O processo de construção de sentido é de tal forma
individualizado, que mesmo uma única pessoa pode ir para direções completamente
diferentes a cada contato com o texto ou mesmo durante um único processo. Além disso, esse
sentido construído se dilui completamente quando tenta sentar-se no trono da consciência,
pois o seu lugar sobrevivente é justamente o fluxo rizomático do desejo... “Deixarão que
vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é
fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que
o desejo se move e produz” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23).
A dificuldade – além da contradição – em explicar o estado pós-metafórico faz com
que exaltemos a sonoridade, o colorido e as inúmeras possibilidades sinestésicas das
palavras. Enquanto brindamos com os pés fincados no leito discursivo da margem pré-
metafórica, bem como enquanto nadamos mansamente nas águas ajoelhadas da metáfora,
lidaremos com as palavras e os discursos de forma consciente, sempre em busca de uma
pretensa comunicação, que em verdade, na maioria das vezes, serve apenas como
reprodução superficial e padronizada de experiências que, ao vestirem falsamente a
roupagem da individualidade, criam ainda uma ilusória ideia de comunhão, pois o
compartilhamento se dá justamente no esvaziar das individualidades presentes.
Mergulhemos, então, na correnteza texturizada da pós-metáfora, onde os nossos pés
não servem de suporte, pois não alcançamos o fundo controlável dos discursos. Resta-nos,
com isso, o abandono aos sabores e aromas da experiência discursiva plena, para sentirmos

151
Anais

o paroxismo da partilha vivencial! “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido
por ela e levado bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 1996, p. 5).
A comunicação cotidiana – talvez – não permite esse correr solto das águas, essa livre
manifestação rizomática dos discursos, pois ela se alimenta mais da compreensão de
mensagens do que do compartilhar de experiências. E essa compreensão precisa ser a mais
imediata possível e a mais padronizada, em nome da evolução dinâmica do cotidiano.
Existem alguns espaços para as manifestações metafóricas, mesmo que parcos e pouco
frequentes.
O que propomos, a partir dessa constatação, é que os processos literários possam
agenciar esses mergulhos. O universo da criação literária não pode ser contaminado pela
padronização e pelo imediatismo de mensagens prontas. Tanto as pessoas que escrevem
como as pessoas que leem (ou as pessoas que falam e as que escutam, em processos literários
desenhados na oralidade), devem permitir-se o movimento pelos estados de sentidos, numa
travessia constante desse rio discursivo, a fim de aproveitar sempre o melhor que essas
águas podem oferecer.

Encerramento metapropositivo

A imagem de um rio, aqui desenhada talvez com contornos difusos, foi a maneira
encontrada para unir forma e conteúdo em uma dança fluída, sinuosa e, por isso mesmo,
mais viva. As duas margens igualmente pré-metafóricas e sua única correnteza central pós-
metafórica eliminam a possibilidade de uma abordagem sequencial e evolutiva dos estados
de sentidos, abordagem essa totalmente desproposital em relação ao que pretendemos
enquanto proposição.
Queremos sentir todas as águas, desde as mais calmas até as mais caudalosas e, mais
do que isso, queremos nadar em todas elas, atravessando esse rio e sendo atravessados por
ele para, no abandono ao fluxo maravilhoso das dinâmicas – essas sim permanentes – dos
discursos, possamos experimentar a plenitude das experiências discursivas.
Que essas águas, turbulentas e tranquilas, nos venham em forma de criações literárias
mais livres, já que sonhar com esses mergulhos em processos de comunicação cotidiana seria
mais um delírio utópico desse pretenso proponente! Que consigamos, ao menos nas
experiências literárias, seja na condição de autoria, seja na condição de leitura, mergulhar
sem medo!

152
Anais

Quando deixamos o nosso discurso seguir livre a sua dinâmica essencial,


naturalmente ele vai atravessar os diversos estados de sentidos, sem nenhuma direção
definida e sem um sentido único. O que precisamos é nos deixar levar por essa dinâmica, sem
medo e sem freio, mergulhando assim nas águas correntes dos discursos, banhando-nos na
plenitude da experiência. Não existe uma fórmula, mas existe o princípio de abertura a essas
dinâmicas, que chamamos de princípio travesso (duplo sentido da palavra) ... “Você pode
sentir que começou a permitir que as coisas cheguem até você, que cessou de perguntar o
que elas significam e que, enquanto aprendeu a permitir que elas apareçam, você se torna
parte delas” (GUMBRECHT, 2016, p. 39).

OS LAGOS REFERENCIAIS:

BROOK, Peter. Na ponta da língua: reflexões sobre linguagem e sentido. São Paulo:
Edições Sesc, 2019. 95 p.

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NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro.


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153
Anais

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Letras da UFF – Dossiê: Letras e Cognição, n. 41, p. 199-212, 2010.

154
O INSÓLITO FICCIONAL
EM BORGES: UM
ESTUDO SOBRE O
MILAGRE SECRETO E A
CRENÇA NO
SOBRENATURAL
Mariany Lopes ALMEIDA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)1
Elizete Albina FERREIRA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)2

RESUMO

Jaromir Hladik é um escritor judeu preso e acusado de algo impossível de fugir: ser judeu em
terras alemãs nazistas. O escritor, que desafia a lógica temporal em suas obras, agora é o
protagonista de sonhos que perturbam a racionalidade do tempo e da existência do
sobrenatural. Em sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao divino, porém, o que
ganha são apenas dois minutos. O evento narrado no conto parece claro e sem maiores
questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação: qual o
tempo real concedido ao escritor? Um ano? ou dois minutos? Nestas condições, propõe-se
um estudo sobre o insólito presente no conto O milagre secreto, da coletânea de contos
Ficções (1944), do escritor Jorge Luis Borges, sob a perspectiva da literatura fantástica e seus
subgêneros. Segundo Tzvetan Todorov (2010), em Introdução à Literatura Fantástica, o

1 Aluna de graduação em Letras – língua portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.


E-mail: mariannylopesalmeida@gmail.com
2 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
E-mail: elizetealbinaferreira@gmail.com

155
Anais

insólito se constrói enquanto uma qualidade do fantástico-estranho, levando o leitor a


acreditar na presença de leis que fogem da naturalidade dentro da narrativa. Dessa forma,
será necessário utilizar como suporte teórico autores que se debruçaram sobre o estudo do
fantástico, porque entende-se que os estudos ligados à Literatura Fantástica e seus diversos
subgêneros são imprescindíveis para compreender a riqueza da obra de Borges. Esta
discussão se organizará em duas partes: a primeira de cunho teórico e descritivo,
apresentando as teorias que fundamentam a pesquisa e, no segundo momento, o foco será
discutir como tais teorias podem ser encontradas na narrativa ficcional de Borges.

Palavras-chave: Literatura Fantástica. Insólito. Jorge Luis Borges. Sobrenatural.

ABSTRACT

Jaromir Hladik is a Jewish writer jailed and accused of something impossible to escape: being
a Jew in Nazi German lands. The writer, who challenges temporal logic in his works, is now
the protagonist of dreams that deranges rationality of time existence of the supernatural.
The event narrated in the tale seems clear and without major questions, but in the subtext,
we can notice the birth of a hesitation. In these conditions, it is proposed a study on the
uncommon present in the short story The secret miracle, from the collection of short stories
Fictions (1944), by the writer Jorge Luis Borges, from the perspective of fantastic literature
and its subgenres. According to Tzvetan Todorov (2010), in Introduction to Fantastic
Literature, the unusual is constructed as a quality of the fantastic-strange, leading the reader
to believe in the presence of laws that are beyond natural within the narrative. Therefore, it
is necessary to use as theoretical support authors who focused on the study of the fantastic,
because it is given for granted that studies related to Fantastic Literature and its various
subgenres are essential to understand the richness of Borges' work. This discussion will be
organized in two parts: the first it is a theoretical descriptive nature, presenting the theories
that underlie the research and, in the second moment, the focus will be to discuss how such
theories can be found in Borges' fictional narrative.

KEYWORDS: Fantastic Literature. Unusual. Jorge Luis Borges. Supernatural.

Considerações iniciais

É da natureza humana tender a acreditar em seres ou explicações que fogem da


naturalidade na qual estamos inseridos. Podemos perceber no decorrer da historiografia
diversas manifestações de crenças no sobrenatural: a Grécia trouxe uma vasta contribuição
com mitos em deuses com poderes que regem a Humanidade; o povo cristão, por acreditar
em um Deus único e soberano que, sozinho, criou todo o universo e os que nele habita; na
idade média, acreditou-se em seres humanos bruxos capazes de concretizar magias através
de barganhas feitas com seres ilógicos.
Não obstante, essa crença em coisas que extrapolam o meio ao qual vivemos refletiu
na Literatura. Tzvetan Todorov (2010, p. 30) afirma que estamos no âmago do fantástico na

156
Anais

medida em que nos deparamos com personagens ou eventos que não têm explicação
familiar. Desta forma, analisaremos o conto “O Milagre Secreto” a partir da perspectiva
fantástica e da sua relação com o insólito ficcional.
O insólito ficcional é um subgênero – ainda em discussão quanto a sua categorização
– e é a expressão de eventos anormais ou irregulares dentro da narrativa.

Se o insólito não decorre normalmente da ordem regular das coisas, senão


que é aquilo que não é característico ou próprio de acontecer, bem como não
é peculiar nem presumível nem provável, pode ser equiparado ao
sobrenatural e ao extraordinário, ou seja, àquilo que foge do usual ou do
previsto, que é fora do comum, não é regular, é raro, excepcional, estranho,
esquisito, inacreditável, inabitual, inusual, imprevisto, maravilhoso.
(GARCIA, 20014, p. 20).

Assim, o insólito se liga à literatura fantástica na medida em que ambos são formas
de estruturar eventos mundanos sobre-humanos ou sobrenaturais.
O caráter insólito do fantástico nasce no seio do fantástico-estranho. Em outras
palavras, podemos observar na teoria de Todorov duas formas de tentar explicar um
acontecimento fantástico: o estranho e o maravilhoso.
O fantástico nasce na hesitação, tanto do personagem, quanto do leitor, é um aspecto
da narrativa em que não se sabe ou não se pode explicar algum evento, e é enfraquecido no
momento em que se busca a sua justificativa: para uma narrativa que envereda para o
(sobre)natural – para aquilo que está além da percepção daquele mundo natural –, estamos
no território do que Todorov chamou de maravilhoso. Mas, quando se consegue chegar a
uma conclusão aceitável, mesmo que talvez essa conclusão não tenha uma explicação, o que
se tem é um acontecimento estranho.

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser
explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve
optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão de
sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo
continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas por nós. (TODOROV, 2010, p. 30).

Dessa forma, investigaremos de que forma o milagre concedido a Jaromir Hladik se


relaciona com o fantástico e o seu caráter insólito.

157
Anais

Aproximações e distanciamentos entre o fantástico e o insólito ficcional na obra


borgiana

Jorge Luis Borges ficou conhecido como um grande autor de Literatura Fantástica do
século XX. Ao lado de outros autores hispano-americanos, se destacou como mestre do conto
e do fantástico segundo David Roas (2014). O conto, como declara Roas em “A ameaça do
Fantástico”, é por si só um lugar propício para a manifestação do fantástico, porque é uma
narrativa relativamente curta e que, muitas vezes, termina de forma abrupta e aberta.
Todorov diz que “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 30-
31). Assim, nota-se que o fantástico é, sobretudo, uma hesitação, um momento em que o
personagem e o leitor experenciam algo que até então não tem explicação.
O Milagre Secreto integra a coletânea de contos Ficções, publicado em 1944 pelo
escritor argentino Jorge Luis Borges. Borges é conhecido como um grande nome da
Literatura Fantástica do século XX. Para Italo Calvino, um dos aspectos que chama a atenção
para a escrita de Borges é a sua forma de narrar, posto “[...] que inventou a si mesmo como
narrador.” (CALVINO, 1990, p. 63)

A ideia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido
escrito por um outro. Um hipotético autor desconhecido, que escrevia em
outra língua e pertencia a outra cultura – e assim comentar, resumir,
resenhar esse livro hipotético. [...] O que mais me interessa ressaltar é a
maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor
congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos.
(CALVINO, 1990, p. 63).

O escritor deste conto de Borges não gostava de seus livros publicados e queria
começar uma nova forma de escrever através de seu livro em construção cujo título seria “Os
inimigos”:

Esse drama observava as unidades de tempo, de lugar e de ação; transcorria


em Hradcany, na biblioteca do barão de Roemerstadt, numa das últimas
tardes do século XIX. Na primeira cena do primeiro ato, um desconhecido
visita Roemerstadt. (Um relógio bate as sete, uma veemência de último sol
exalta as vidraças, o ar traz uma apaixonada e reconhecível música
húngara.). (BORGES, 2007, p. 139).

158
Anais

Em O milagre secreto, Borges nos apresenta Jaromir Hladik, um homem judeu que tem
por ofício a escrita. Narrado em 1939, na Alemanha nazista, o conto discorre sobre a prisão
desse homem, o crime: ser judeu, e a sua condenação seria a morte por fuzilamento. Ao se
ver sem saída ou perspectiva, o que resta a Hladik é imaginar de mil formas a sua própria
morte. “Em vão repetiu para si mesmo que o ato simples e geral de morrer era o temível, não
as circunstâncias concretas. Não se cansava de imaginar essas circunstâncias: absurdamente
procurava esgotar todas as variantes (BORGES, 2007, p. 137).
Dessa forma, percebe-se que, antes de sofrer pelas mãos que lhe tirariam a vida,
Hladik sofre pelo ato de perder a vida. O que lhe era caro – a vitalidade – ia ser arrancada. O
medo da morte – e de tudo que não sabemos que vem com ela – era o que tirava o sono do
condenado. Para o cristianismo, a morte é senão a coroação, para aqueles que creem, da vida
eterna, uma vida tranquila e uma paz que transcende todo e qualquer entendimento. Mas,
para o materialismo3, ela é apenas o fim, não marca mais que o fim da vida, é o vazio.
Esses múltiplos caminhos e especulações acerca da morte e do tempo percorrem o
imaginário de Jaromir Hladik e também a própria narrativa do conto, que discorre muito
acerca da brevidade da vida e a relatividade do tempo.
Há, na mitologia grega, dois deuses que tomam conta do tempo: Cronos e Kairós.
Cronos é um titã, filho de Gaia, que é a terra, e Urano, e é a personificação do tempo dos
homens, portanto, do tempo cronológico e linear. Dessa forma, não há como fugir de Cronos,
pois ele é o dono do tempo – é o próprio tempo.
Em contrapartida, existe Kairós, que tem uma concepção de tempo diferente. Kairós
não segue o tempo linearmente, mas um tempo específico, fora da temporalidade
cronológica, por isso, é conhecido como o “tempo de Deus” na Teologia. Podemos ver
passagens na Bíblia Sagrada que discorrem sobre o tempo de Deus: “[...] Não se esqueçam
disto: para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe, 3,8)4. Assim, em
sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao Ser divino, porém, o que ganha são apenas
dois minutos do ponto de vista de Cronos. O evento narrado no conto parece claro e sem

3 O materialismo rejeita a ideia de coisas que fogem do que é material, físico, palpável. “Segundo
Fernandes (1984) o materialismo histórico-dialético designa um conjunto de doutrinas filosóficas
que, ao rejeitar a existência de um princípio espiritual, liga toda a realidade à matéria e às suas
modificações. É uma tese do marxismo, segundo a qual o modo de produção da vida material
condiciona o conjunto da vida social, política e espiritual” (FERNANDES, 1984 apud ALVES, 2010)
4 BÍBLIA, 2 Pedro. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.
p. 1550-1553.

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Anais

maiores questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação:
qual o tempo real concedido ao escritor? um ano? ou dois minutos? Temos duas concepções
para entender o que aconteceu a Hladik: de alguma forma, até então desconhecida, o escritor
conseguiu um ano como solicitado – ou até mais, já que do ponto de vista de Kairós o tempo
passa de forma diferente –; ou o que aconteceu não passou de uma ilusão vivida pelo
condenado e, de certa forma, pelo leitor do conto.
No dia 19 de março de 1939, Jaromir Hladik é preso. Sua sentença de morte foi fixada
para o dia 29 de março, às 9h. Em primeira instância, temos o personagem escritor, que não
consegue terminar de escrever seu romance, cujo título é “Os inimigos”. Assim, na prisão, faz
uma súplica a Deus.

Se de algum modo eu existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas,


existo como autor d’Os Inimigos. Para pôr termo a este drama, que pode me
justificar e te justificar, necessito um ano a mais. Concede-me esses dias, tu,
a Quem pertencem os séculos e o tempo. (BORGES, 2007, p. 141).

Jaromir Hladik parece acreditar em um ser capaz de modificar a temporalidade dos


homens, e é nessa crença a que ele se agarra em seus últimos dias, a fim de conseguir
terminar seu trabalho. Na sua última noite, dia 28 de março, o escritor sonha com uma
biblioteca, e o que ele procurava no meio das grandes prateleiras era apenas uma coisa: Deus.
E, nessa busca, tem sua oração concedida através da voz de um ser que ele não vê, mas que
responde alto e bom som: “Uma voz ubíqua disse-lhe: “o tempo de seu trabalho foi
concedido”. Aqui Hladik despertou.” (Borges, 2007, p. 141). Se buscarmos na Bíblia Sagrada,
perceberemos que há vários versículos que narram uma voz – deduzida por quem a ouve
como a do próprio Deus, que fala de algum lugar, mas que não tem corpo: “Depois do
terremoto houve fogo, mas o Senhor não estava no fogo. E, depois do fogo, veio um suave
sussurro. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com a capa, saiu e ficou na entrada da caverna.
E uma voz disse: “O que você faz aqui, Elias?”.” (1Re, 19, 12-13).3
Dessa forma, no dia 29 de março, momentos antes da execução de Hladik, algo
acontece no quartel que deixa o mundo congelado.

3 BÍBLIA, 1 Reis. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão,
2016. p. 430-472.

160
Anais

Uma pesada gota de chuva roçou uma de suas têmporas e rolou lentamente
por sua face; o sargento vociferou a ordem final. O universo físico deteve-se.
As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo
permaneciam imóveis. O braço do sargento eternizava um gesto inacabado.
Numa laje do pátio uma abelha projetava uma sombra fixa. O vento cessara,
como num quadro. Hladik ensaiou um grito, uma sílaba, um torcimento da
mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais
tênue rumor do mundo estagnado. [...] adormeceu, depois de um tempo
indeterminado. Quando despertou, o mundo continuava imóvel e surdo.
(BORGES, 2007, p. 142-143).

Podemos observar que algo atípico ocorre nesse momento, algo insólito. O insólito se
caracteriza como algo que foge das leis que regem o sistema vigente, portanto, é uma
anormalidade dentro da narrativa.
O que se tem, afinal, é uma imprecisão do que realmente aconteceu no conto, visto
que o tempo cronológico volta após o momento em que Jaromir consegue terminar seu
romance pendente: “pôs fim ao seu drama: já não lhe faltava resolver senão um epíteto.
Encontrou-o; a gota d’água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, mexeu o
rosto, a quádrupla o derrubou. Jaromir Hladik morreu no dia 29 de março, às nove horas e
dois minutos da manhã.” (BORGES, 2007, p. 144).
Se considerarmos que o evento ocorrido não passou de um tipo de alucinação por
parte do protagonista, o que se conclui é que reina o tempo cronológico, assim, de alguma
forma desconhecida, houve um evento insólito, daí a intervenção de Kairós e do tempo de
Deus, o homem foi visitado por um Ser que está além da linha tênue do relógio, que o
transporta para um dimensão onde o tempo é medido de forma diferente, assim, horas
podem se comprimir a segundos ou vice-versa porque não se tem precisão cronológica.
Entramos no que Todorov vai chamar de estranho puro. Para o teórico,

Obras que pertencem a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem


perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma
maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares,
inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no
leitor reação semelhante àquelas que os textos fantásticos nos tornaram
familiar. A descrição é, como vemos, ampla e imprecisa [...]. (TODOROV,
2010, p. 53).

Aqui temos um problema em mãos: parece não haver explicação para o que acontece
a Jaromir Hladik “pelas leis da razão” (TODOROV, 2010, p. 53), como Todorov afirma acima.

161
Anais

Assim, não é definitivo e assertivo dizer que o evento pertence ao gênero estranho puro.
Portanto, passemos a observá-lo de outra forma: fantástico-maravilhoso.
O fantástico-maravilhoso é uma outra instância da Literatura Fantástica. Nele, os
acontecimentos fantásticos acabam na aceitação do sobrenatural dentro da narrativa.

No fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas


que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do
sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois
este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado,
sugere-nos realmente a existência do sobrenatural. O limite entre os dois
será então incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos detalhes
permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2010, p. 58).

Logo, parece lógico concluir que o milagre secreto que foi concedido a Jaromir Hladik
por uma espécie de entidade que se assemelha ao Deus narrado na Bíblia – que fala e que
ouve os que nele creem –, seja um evento que se assenta no fantástico puro, porque
permanece sem explicação já que não nos é fornecido no conto formas que possam
comprovar o que de fato aconteceu, além da última frase que o encerra: “Jaromir Hladik
morreu no dia 29 de março, às nove horas e dois minutos da manhã” (BORGES, 2007, p. 144).
Mas há ainda um outro olhar sobre a obra. Umberto Eco, em seu livro Obra Aberta,
argumenta sobre as possiblidades que o autor deixa a cargo do leitor ao ler a obra e
reescrevê-la, no sentido da interpretação.

[...] uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma
seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa
recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos
sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada
obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz
uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja
compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia
dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma
situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente
condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendencias, preconceitos
pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica
segundo uma determinada perspectiva individual. No fundo, a forma torna-
se esteticamente válida na medida em que pode ser vista e compreendida
segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza de· aspectos e
ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria. (ECO, 1991, p. 40).

O leitor é um coautor da obra tendo em vista que a lê e a enxerga a partir de suas


vivências, crenças, pré-conceitos. Assim, para um leitor cético, é provável que o evento

162
Anais

ocorrido seja estranho, insólito, mas que apresenta uma explicação: o homem teve um
momento de perda de consciência e percepção da realidade, por exemplo. Mas há
possibilidade para um olhar mais fantástico, daí a crença no sobrenatural e em algo que foge
às leis naturais que regem o mundo no qual a estória se passa.
Portanto, a participação do leitor é indispensável dentro da literatura fantástica,
porque pressupõe-se a sua contribuição em acatar eventos que distorcem a realidade
natural, o que faz com que ele os aceite mais facilmente do que em outros gêneros literários,
mesmo que isso exija que o leitor burle as suas próprias crenças, já que, dentro da narrativa
fantástica, “a participação do leitor é fundamental para a existência do fantástico, porque o
leitor precisa contrastar a história narrada com o fato real extratextual para considerá-lo
como relato fantástico.” (ROAS, 2014, p. 26).

Considerações finais

O fantástico nos inquieta porque, segundo David Roas (2014), é uma “subversão do
nosso mundo”. No entanto, o autor argumenta que a simples presença de elementos
sobrenaturais não garante o elemento fantástico na narrativa, contudo, o fantástico precisa
do sobrenatural para que possa existir. “O fantástico situa o leitor diante do sobrenatural
com o propósito de levá-lo a perder sua segurança diante do mundo real” (ROAS, 2014, p.
25).
O cenário narrado em “O milagre secreto” nos é familiar porque se passa em um
momento histórico: a Alemanha nazista e a perseguição aos judeus, isso faz com que os
eventos do conto sejam aceitos como verdadeiros pelo leitor, mas há o evento insólito que
confunde e distorce a realidade.
Em seu livro “Os inimigos”, Hladik pretendia discutir, em forma versada, sobre “as
unidades de tempo, lugar e ação” (BORGES, 20107, p. 139). Seu enredo soa familiar com a
própria realidade insólita vivida pelo escritor. Borges parece fazer um jogo de realidade e
ficção misturando realidades: primeiro Jaromir Hladik enquanto escritor; em seguida uma
segunda camada, em que se situa a realidade de seu livro em construção; e uma terceira, na
qual Borges infere a invasão da segunda dentro da primeira. O resultado que se tem é uma
estória passível de diversas análises e conclusões, mas nenhuma parece sustentar-se por
tanto tempo – uma contribuição do fantástico.

163
Anais

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164
OS SALÕES LITERÁRIOS
NA FRANÇA MODERNA:
memória e cultura na
Paris do Séc. XVIII
José Barroso de OLIVEIRA FILHO (UESPI)1
Raimunda Celestina Mendes da SILVA (UESPI)2

RESUMO

No século das luzes (XVIII), a França vivia uma intensa efervescência cultural e grande
insatisfação com as injustiças na sociedade, sob os poderes do regime monárquico. Com isso,
impõe-se o impetuoso desejo de iluminar mentes a independer dos poderes vigentes do
antigo regime. Com mais vigor, os salões literários encontros para leituras, debates,
declamação pública de versos, poemas e canções entre aristocratas e burgueses. A
participação das mulheres nessas reuniões de sociabilidade e atitudes sustentava a
existência dos salões franceses. Uma aristocracia ociosa, uma classe média ambiciosa, uma
vida intelectual ativa, a densidade social de um grande centro urbano, tradições sociáveis e
um certo feminismo aristocrático dava o tom de inconformação do momento. Facilmente
percebe-se a riqueza memorialística existente nesses espaços de memórias, individual e
coletiva - os salões literários de Paris nesse período da história, que não desapareceu em
1789, com a revolução francesa. Dessas proposições preliminares, tem-se que o objetivo
desse estudo é demonstrar os rastros históricos de memória na sociedade parisiense a partir
da participação ativa de homens e mulheres nesses lugares de recreação, estudos e debates.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Estadual do Paiuí – UESPI.

E-mail: josebarrosorh@hotmail.com
2 Doutora em Letras pela PUCRS, professora da graduação e do PPGL da Universidade Estadual do
Piauí – UESPI. E-mail: raimundacelestina@cchl.uespi.br

165
Anais

Para tanto, alguns teóricos auxiliaram na composição da pesquisa, em que se destacam


Maurice Halbwachs (2003), Gaston Bachelard (1993), Ecléa Bosi (2003), Aleida Assmann
(2011), dentre outros. Acredita-se, assim, que este estudo se faz cabível nas discussões sobre
literatura e memória. A partir deste estudo, pôde-se observar que os salões literários de Paris
podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento,
pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que
movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma
representação memorialística que narra um terminado período de efervescência cultural na
Paris do séc. XVIII.

Palavras-chave: Memória; Cultura; Salões Literários; Paris; Séc. XVIII.

ABSTRACT

In the century of enlightenment (XVIII), France was experiencing an intense cultural


effervescence and great dissatisfaction with the injustices in society, under the powers of the
monarchic regime. With this, the impetuous desire to enlighten minds independent of the
prevailing powers of the old regime is imposed. With more vigor, the literary salons meet for
readings, debates, public recitation of verses, poems and songs between aristocrats and
bourgeois. The participation of women in these meetings of sociability and attitudes
supported the existence of French salons. An idle aristocracy, an ambitious middle class, an
active intellectual life, the social density of a large urban center, sociable traditions and a
certain aristocratic feminism set the tone of nonconformity of the moment. It is easy to see
the memorial richness existing in these spaces of memories, individual and collective - the
literary salons of Paris in that period of history, which did not disappear in 1789, with the
French revolution. From these preliminary propositions, the objective of this study is to
demonstrate the historical traces of memory in Parisian society from the active participation
of men and women in these places of recreation, studies and debates. To this end, some
theorists helped in the composition of the research, in which Maurice Halbwachs (2003),
Gaston Bachelard (1993), Ecléa Bosi (2003), Aleida Assmann (2011) stand out, among
others. It is believed, therefore, that this study is appropriate in discussions about literature
and memory. From this study, it was possible to observe that the literary salons of Paris can
be understood as a moment that generated records of behavior, thought and intellectual
production that characterized the identity of social groups that moved the old Paris during
the 19th century. XVIII. Therefore, these halls today bring a memorialistic representation
that narrates a finished period of cultural effervescence in Paris in the 19th century. XVIII.

KEYWORDS: Memory; Culture; Literary Halls; Paris; Century XVIII.

INTRODUÇÃO

A memória desempenha um papel fundamental na construção da subjetividade e se


configura como um campo propício à conservação das lembranças mais impactantes,
individuais e ou coletivas, como foi a história da sociedade parisiense do século XVIII sob a
tutela do antigo regime monárquico. Para (BOSI, 2003, p. 53), “A memória é, sim, um trabalho

166
Anais

sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.” Nesse
sentido, o presente estudo objetiva demonstrar os rastros históricos de memória na
sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nos lugares de
recreação, estudos e debates. Os salões literários desse período contribuíram para suscitar,
nos convidados e frequentadores desses espaços, debates que giravam em torno da grande
insatisfação advinda das injustiças sociais do poder monárquico. Evocando esses espaços de
sociabilidade e debates que carregam memórias da cidade de Paris, leva-se à confirmação de
Assmann (2011, p.317-318), que aponta as palavras de Cícero3, ao relacionar os locais, e seu
potencial de memória:

Grande é a força da memória que reside no interior dos locais – a frase de


Cícero pode servir de impulso para quem se questiona a respeito de uma
força específica da memória e do poder dos locais. O grande teórico da
mnemotécnica romana tinha uma noção clara do significado dos locais para
a construção da memória. [...] O próprio Cícero cumpriu a passagem dos
lugares da memória para os locais de recordação, segundo sua própria
experiência, que as impressões captadas em um cenário histórico “são mais
vivas e atenciosas” que outras assimiladas por ouvir falar [...]

Toma-se aqui os salões parisienses como “locais” de memórias, estes, de invenção


italiana do século XVI, que floresceu na França ao longo dos séculos XVII e XVIII. A palavra
“salão” apareceu pela primeira vez na França em 1664 (da palavra italiana salone, ela própria
de sala, o grande salão de recepção das mansões italianas). O primeiro salão de renome na
França foi o Hôtel de Rambouillet, não muito longe do Palais du Louvre, em Paris,
administrado por sua anfitriã, a romana Catherine de Vivonne, marquesa de Rambouillet
(1588-1665), de 1607 até sua morte. No primeiro e renomado salão Catherine de Vivone
estabeleceu regras de etiqueta que se assemelhavam aos códigos anteriores da cavalaria
italiana. Regras que se replicaram nos salões parisienses, fazendo valer as práticas culturais
de “refinamento francês”, que, mesmo sofrendo alterações, são mantidas até os dias atuais.
Cafés, restaurantes e, principalmente, os salões literários eram frequentados
essencialmente pela elite burguesa e pelos intelectuais da época para conversar, estreitar
laços, jogar, discutir política, fumar, jantar, ler jornais e recitar poemas. Esses eventos

3 Estadista, orador e filósofo romano, Marco Túlio Cícero nasceu no ano 106 a.C. em Arpino, Itália, e morreu em
43 a.C. em Formia, Itália. Cícero é considerado o primeiro romano que chegou aos principais postos do governo
com base na sua eloquência e no mérito que obteve nas suas funções de magistrado civil. É um dos maiores
oradores e pensadores políticos romanos.

167
Anais

ocorriam em ambientes reservados, em casas privadas, que na concepção memorialística


Bachelarleana seria “algo fechado [que] deve guardar as lembranças, conservando-lhe seus
valores de imagens” (BACHELARD, 1993, p.25). Para Bachelard (1993, p. 26), a casa “abriga
o devaneio [...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”, configurando-se como “uma
das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do
homem”. Em suas discussões assevera que “é graças à casa que um grande número de nossas
lembranças está guardado” (BACHELARD, 1993, p. 27).
Assim, na investigação de Bachelard, vê-se que nesses espaços de vivências e de
sentido, há um elemento a mais no recôndito desses ambientes privados, a ser lembrado
pelos ocupantes da casa, a grande sala, ou salão, especialmente ornamentado para esses
encontros de estudos e debates. É importante lembrar, no entanto, que segundo Antoine Lilti,
(2005), nos séculos XVII e XVIII, a palavra “salão” “não nomeava as reuniões, mas designava
somente a peça da casa – a grande sala, para os convidados, a qual se impunha
progressivamente nas casas urbanas desse período”, onde a arte da conversação e
sociabilidade atribuída aos franceses progredira nos salões do século XVIII.
A partir do estudo teórico mencionado, pôde-se observar que os salões literários de
Paris podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento,
pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que
movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma
representação memorialística que narra um determinado período de efervescência cultural
na Paris do séc. XVIII.

OS SALÕES LITERÁRIOS DE PARIS: lugares de memória

Nas vivências dos salões literários parisienses, era bastante necessário e


imprescindível, haver, além dos assuntos, da programação, a presença de um anfitrião que
recebesse os convidados e que de alguma forma os selecionava para estarem ali presentes
‘fisicamente’, um tipo de “cicerone”, ou seja, um mediador, pessoa que conduzia os visitantes.
A prática de receber bem nesses encontros era levada a sério e, com efeito, evidenciava-se
não somente a opulência e glamour nesses espaços literários, como a mobília, a decoração
exuberante, etiqueta, bons modos, como também assentia sentido especial à presença dos
participantes, convidados ilustres, geralmente intelectuais, pessoas de classe social alta,

168
Anais

como se vê nos salões da França no século XVII, prática que perpassou séculos, alcançando
os séculos XVIII, XIX e os dias atuais.
Nessas residências particulares, ambientes repletos de significados e com aura
própria, damas inspiradoras, donas de salão conduziam e propiciavam aos visitantes,
convidados e frequentadores, espontânea atividade criadora do espírito, gerando momentos
de rica fruição, reflexão e de argumentação. Ali se formava a opinião pública e se iniciava a
contestação ao poder monárquico e eclesiástico, sobretudo com relação à vida na urbe
francesa. Nesse contexto, essas casas apresentam-se como um espaço de memória, pois
trazem marcas do passado. Como dito por Bachelard (1993, p.26), a casa “abriga o devaneio
[...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”; sentimentos de acolhimento e
subjetividades percebidos em Marcel Prust (2018) quando o príncipe Luís Napoleão,
incansável

[...] expressava pela centésima vez diante de alguns íntimos, no salão da rua
de Berri, seu desejo de ingressar no exército, sua tia, a princesa Mathilde,
desolada com essa vocação que lhe roubaria o mais amado dos seus
sobrinhos, exclamou, dirigindo-se aos presentes: - Vejam só que obstinação!
– Mas, infeliz, só porque tiveste um militar na família, isso não é motivo!...
Ter um militar na família! Reconhecemos ser difícil lembrar com menos
ênfase seu parentesco com Napoleão I. (PROUST, 2018, p.25).

Sobre isso, Ecléa Bosi (2003) destaca que as memórias pertencentes aos seres
humanos privilegiam os questionamentos, sonhos e desejos que permeiam o seu íntimo,
refletem os aspectos subjetivos e estão em constante diálogo com as ações desse indivíduo
na sociedade. De acordo com a estudiosa,

pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando
com as percepções imediatas, como também empurra, “decola” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante,
oculta e invasora. (BOSI, 2003, p. 36).

Percebe-se que na condução e vivências no espaço dos salões parisienses alocados


em residências particulares, existem marcas de um lugar de memória que causam
ressonâncias subjetivas surpreendentes do passado, triste ou agradável. Se agradável,
adoçam a vida e deseja-se segurá-la pelo braço, como se vê em Proust (2018) no salão da
princesa Mathilde, em que diz:

169
Anais

Quando se pensa que esse salão [...] foi um dos centros literários da segunda
metade do século XIX; que Mérimée, Flaubert, Goncourt, Sainte-Beuve
vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade, com uma familiaridade
tão completa que a princesa chegava a convidá-los a almoçar de improviso;
que eles não tinham segredos literários para com ela e ela não tinha reservas
principescas para com eles; que ela lhes prestou favores até o fim – não
somente favores cotidianos (Sainte-Beuve dizia: “Sua casa é uma espécie de
ministérios das graças”), mas favores de grande repercussão, daqueles que
põe fim a perseguições, dissipam preconceitos, facilitam o trabalho, auxiliam
no sucesso, adoçam a vida, mudam um destino. (PROUST, 2018, p.30).

As expressões, “vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade” e “Sua casa é
uma espécie de ministérios das graças”, confirmam o que diz Halbwachs sobre a importância
do espaço familiar, o primeiro que se tem contato, de modo que os membros da família
acabam fazendo parte da memória dos indivíduos que ali residem, em que ensinamentos são
transmitidos, caracterizando aquilo que o autor denominou de memória coletiva.
Evidencia-se, também a importância da memória coletiva ao afirmar que “nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso
acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Destaca-se que Halbwachs
não desconsidera a existência da memória individual, mas declara que em interação com o
social, a memória do indivíduo está atrelada a diferentes contextos e a vários participantes.
Quando os acontecimentos são partilhados pelo grupo, a memória deixa de ser individual
para tornar-se uma memória coletiva. Assim, a memória do indivíduo é constituída pelas
memórias dos diversos grupos de que ele participa e é influenciado.
Os salões literários de Paris, portanto, podem ser compreendidos como um momento
que se gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que
caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc.
XVIII. Logo, compreende-se que os salões literários parisienses canonizaram mansões que
iam desde as glamourosas organizações internas dos casarões, até o impecável
comportamento da alta classe durante os encontros.
Hoje, esses casarões, não possuem mais a função de moradia de seus primeiros donos,
mas são lugares de memória, ecoam rastros históricos e reminiscentes que narram um
período da antiga Paris durante um período em que as mulheres passaram a emergir na
sociedade impondo sua voz ao lado de pensadores do sexo masculino, seus cônjuges e
intelectuais.

170
Anais

A SOCIABILIDADE FEMININA NOS SALÕES DE PARIS NO SÉC. XVIII

Segundo Rivière (2004), na década de 1990, consolidou-se na França a definição de


sociabilidade como o conjunto das relações dos indivíduos na sociedade, considerando tanto
as particularidades do sujeito e do contexto no qual ele se encontra, quanto às estruturas que
ajudam a moldá-lo como ser social. Percebe-se que “A partir de relações concretas entre os
indivíduos, [...] a análise da rede oferece os meios para pensar a sociabilidade por ela mesma,
conferindo-lhe um valor explicativo para um conjunto variado de comportamentos sociais”
(RIVIÈRE, 2004, p. 229). Pode-se afirmar que a sociabilidade é resultado do convívio entre
seres que pretendem estabelecer vínculos e estreitar laços.
Nesse sentido, vê-se o esforço das mulheres parisienses para a construção desses
laços, colocando-se na sociedade. Observa-se esse engajamento em Arendt (1994) na
narrativa biográfica de Rahel Varnhagen, na qual ela constrói-se a si mesma num movimento
seguido por outras mulheres ao longo do século XVIII, tão ou mais famosas do que ela.

Refiro-me à sociabilidade dos salões e à importância das relações de amizade


para os homens, mas especialmente para as mulheres que desejavam mais
do que o enaltecimento da maternidade e a condescendência das convenções
sociais. [...] foi no seu salão que as relações de amizade se consolidaram e
novas foram estabelecidas. Através das amizades Rahel conseguiu criar um
lugar para si não no sentido burguês e intimista, mas no sentido iluminista
de um indivíduo social, dotado de personalidade, charme, “espírito” e
conhecimento. [...] manejava bem os requisitos necessários para a vida
social, sendo capaz de agregar com sua inteligência e personalidade, pessoas
bastante diferentes ao seu redor; de estabelecer um espaço de conversação
franca, de atualização, de trocas culturais e também do prazer de estar
juntos. (ARENDT, 1994, p.25).

No viés aqui considerado, a sociabilidade feminina nos salões de Paris, salienta-se que
estes eram instituições fundamentais para a vida literária dos séculos XVII e XVIII,
organizados por mulheres proeminentes, que passaram a ser o centro da vida no salão e
como reguladoras poderiam selecionar seus convidados e decidir os assuntos dessas
reuniões sociais.
Dentre outros salões do século XVIII, que também atraiam pessoas para trocas
culturais, aponta-se neste estudo quatro renomados salões e suas respectivas salonnières,

171
Anais

que geravam admiração e atraiam personalidades: 1. Madame Geoffrin (1699‒1777) – Marie


Thérèse Rodet Geoffrin, seu salão era frequentado por grandes filósofos e enciclopedistas de
seu tempo, tendo sido representativo para a sociedade iluminista. 2. Madame Necker (1737‒
1794) – Suzanne Curchod, Franco-Suíça era conhecida como Madame Necker, mas também
por possuir o salão mais frequentado no Ancien Régime. 3. Madame de Staël (1766‒1817) –
Anne Louise Germaine, importante mulher no iluminismo francês. Escritora e romancista,
influenciou politicamente seu zeitgeist. 4.Contessa Maffei (1814‒1886) – Clara Maffei,
exerceu papel importante de mecenas e seu salão recebeu grandes personalidades como seu
amigo pessoal, Balzac.
Esses encontros de pessoas letradas eram comumente chamados de círculos,
sociedades ou academias (quando se tratava de uma), sendo que o termo “salão” tomou o
sentido que hoje utilizamos somente no início do século XIX. Porém, é importante deixar bem
clara a diferença que havia entre os salões e as academias, porque destas as mulheres
estavam excluídas.
Os encontros de homens e mulheres letrados que hoje chamamos de salões literários
tinham o objetivo de proporcionar a leitura coletiva de textos literários, científicos ou
filosóficos e a conversação amigável sobre os temas que essas leituras suscitavam.
Normalmente eles tinham um dia fixo da semana para acontecer, como, por exemplo, aos
sábados na residência de Madeleine de Scudéry e, às quartas-feiras, na de Madame de Sablé.
Disseminados depois da experiência famosa e bem sucedida de Catherine de Vivonne-
Savelli, a Marquesa de Rambouillet, os salões foram espaços que colocaram em evidência as
mulheres sábias, onde puderam romper barreiras ao seu crescimento intelectual e
desenvolver a sua capacidade crítica, formular opiniões e debater os temas do conhecimento
de igual para igual com os homens.
Os temas desses encontros giravam em torno de tópicos sociais, políticos literários.
Compartilhavam-se pontos de vista e opiniões sobre o que essas leituras tratavam. Nessas
discussões, igualmente interrogavam-se e colocavam em xeque a cultura parisiense
institucionalizada do antigo regime; arraigada, cristalizada, impeditiva, prejudicando a
participação das mulheres no cenário cultural em diferentes instâncias sociais, nas práticas
culturais e representações coletivas. Nesse sentido, Dena Goodmann (1989, p.333) aponta
que ao criarem os salões, havia nas salonnières o anseio “o objetivo inicial e principal por
trás dos salões era o de satisfazer as necessidades educacionais autodeterminadas das
mulheres que os iniciaram". Para essas mulheres, o salão era um substituto socialmente

172
Anais

aceitável para a educação formal que lhes era negada, porquanto reduzia a marginalização
das mulheres nesse quesito.
As limitações para as mulheres no acesso à educação, eram consideráveis na
sociedade, pois “a distância entre a leitura e a escrita era ainda maior do que para os homens,
porque segundo os padrões culturais vigentes, escrever poderia significar um aprendizado
inútil para elas, além de perigoso” (ZECHLINSKI, ano, 2012 página 32).
Em relação a estas questões de disparidade cultural, no caso das mulheres, as
diferenças em relação aos homens no acesso à educação e aos bens culturais levaram Peter
Burke (1999) a concluir que as mulheres nobres formavam um grupo intermediário entre a
elite, à qual pertenciam socialmente, e a não-elite, à qual pertenciam culturalmente. A
opinião de Peter Burke (1999, p.385) converge com a de Anne E. Duggan

Por toda parte um vão estava se formando, que separava aqueles que
possuíam capital financeiro e cultural daqueles que não possuíam. Mulheres
da classe alta se encontravam nos dois lados do vão. Financeiramente
separadas das mulheres e homens das outras “classes”, elas, no entanto, se
encontravam às vezes do outro lado dos trilhos no que se referia ao capital
cultural, para não mencionar direitos legais.

“Os trilhos” (“the tracks”), na expressão utilizada em inglês, é uma referência a um


delimitador social, pois moram do outro lado dos trilhos dos trens as pessoas de condição
social mais baixa, evidenciando divisão de classes e forte conotação de caráter econômico.
A memória cultural atua, portanto, preservando a herança simbólica
institucionalizada, à qual os indivíduos recorrem para construir suas próprias identidades e
para se afirmarem como parte de um grupo. Isso é possível porque o ato de rememorar
envolve aspectos normativos, de modo que, "se você quer pertencer a uma comunidade, deve
seguir as regras de como lembrar e do que lembrar". Assim, as mulheres das classes mais
privilegiadas, para alcançarem um nível cultural mais alto, tornando-se leitoras, possuidoras
de livros e, mais ainda, para serem escritoras, deveriam somar à sua superioridade de classe
outras vantagens pessoais, como ter, por exemplo, um pai humanista e preocupado com a
sua educação. O estudo de Sara Gwyneth Ross sobre a República Veneziana mostra como era
importante para uma mulher ser apoiada por uma figura masculina que acreditasse em seu
potencial intelectual, para que ela pudesse entrar nos círculos de conhecimento.
Madeleine de Scudéry foi a primeira mulher a receber uma pensão real como
escritora e muito de seu sucesso deveu-se justamente à sua habilidade em fazer amizades

173
Anais

com homens influentes, como Valentin Conrart, um dos fundadores da Academia Francesa
que prestavam serviços ao poder real e depois disso se tornavam conhecidos pelo público.
Assim, os homens de letras, para obterem sucesso, dependiam não só do seu talento, mas
também de uma rede de relações pessoais que compunha a orquestra da república das letras.
Dessa forma, as instituições da vida literária, como as academias e os salões literários,
passaram a ter uma importância fundamental no panorama do mundo da crítica e da palavra
escrita na sociedade francesa do Antigo Regime.
Acresce que, chama atenção de quem aprofunda-se no estudo em questão, sentir o
esforço empreendido pelas mulheres parisienses do século das luzes, para colocarem-se na
sociedade e poder mostrar o quanto são capazes; e que, para além do enaltecimento da
maternidade, condescendência das convenções sociais, de boas esposas e boas donas de
casa, também questionarem seu lugar social; de elaborar e expressar suas próprias ideias e
de serem filósofas, escritoras, atrizes de teatro, artistas plásticas; enfim, conseguir
visibilidade, criar um lugar para si na vida social, sendo capazes de agregar com sua
inteligência e personalidade, pessoas e estabelecer espaço de conversação e de leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo demonstrar os rastros históricos de memória na


sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nesses lugares de
recreação, estudos e debates por meio de um estudo de cunho bibliográfico, considerou-se a
contribuição teórica de Maurice Halbwachs, Bachelard, Ecléa Bosi, Aleida Assmann, que
discutem a teoria sobre a memória como representação coletiva de um determinado grupo
social.
Pôde-se compreender que Halbwachs (2003), estudioso do conceito de memória
coletiva, que esta permanece coletiva e nos são lembradas por outros ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso
acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30); ou seja, depende da
ausência ou presença de outros que se constituem como grupos de referência. Bachelard
(1993), investiga, o estudo das imagens poéticas do espaço, enfatizando sobre a
representatividade da casa, que “é graças à casa que um grande número de nossas
lembranças está guardado” (BACHELARD, 1993, p. 27).

174
Anais

Bosi (2003), pesquisadora da memória social destaca que as memórias pertencentes


aos seres humanos [...] refletem os aspectos subjetivos e estão em constante diálogo com as
ações desse indivíduo na sociedade, e que “A memória aparece como força subjetiva, ao
mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2003, p. 36),
Aleida Assmann (2011), por sua vez concentra-se em estudos de antropologia cultural,
memória cultural e comunicativa.
A partir do estudo teórico mencionado, pôde-se observar que os salões literários de
Paris podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento,
pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que
movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma
representação memorialística que narra um determinado período de efervescência cultural
na Paris do séc. XVIII.
Ademais, a participação das mulheres nos salões, embora alguns julgarem ações de
frivolidades, outros defendem, visto que nos eventos as mulheres organizavam a agenda, os
debates e estabeleciam contatos com pessoas que poderiam ajudar seu escritor protegido,
indicar a obra dele e facilitar o encontro com indivíduos influentes. Proust (2018, p.30)
comenta que, “A princesa não senta mais. Vai de um a outro, recebendo os recém-chegados,
misturando-se a cada grupo, tendo para cada um uma palavra particular, pessoal, que fará
com que, mais tarde, ao chegar em casa, cada um acredite ter sido o centro das atenções da
noite”. As mulheres não apenas intermediavam reflexões e publicações, mas também
escreviam livros; porém, ao contrário dos homens, elas não possuíam apoio para a
publicação de livros e, quando dispunham de uma produção própria, enfrentavam desafios
maiores para se tornarem parte do meio intelectual.
Naturalmente, a maneira sensível, autônoma e inteligente que as mulheres ricas do
século XVIII encontraram para ver seus anseios realizados, deu-se, abrindo suas casas, e
como dito por Bachelard, (1993, p.26) a casa “abriga o devaneio [...] protege o sonhador [...]
permite sonhar em paz”. Sonho conquistado pelas salonnières parisienses por meio de
espaços de sociabilidades, os salões literários por elas abertos em suas residências. Este
estudo, em momento algum propôs-se em esgotar a temática aqui abordada. Outras
pesquisas serão bem-vindas ao apesentar contextos socioculturais que deram início as
manifestações de insatisfações que passaram a ser assuntos nos salões literários. Trabalhar
a participação de grandes nomes da intelectualidade parisiense do séc. XVIII que

175
Anais

contribuíram para o acontecimento dos salões literários também se faz de grande valia para
os estudos acadêmicos.

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ZECHLINSKI, Beatriz Polidori. Três autoras francesas e a cultura escrita no século XVII
gênero e sociabilidades. Beatriz Polidori Zechlinski. - Curitiba, 2312. 229 f. Tese
(Doutorado Ciências Humanas, Letras e Artes) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2012.

177
A CRÍTICA DIALÓGICA DA
ESCOLA DE GENEBRA
Carolina Rangel SILVA (Universidade de São Paulo)1

RESUMO

O trabalho aborda a importância que o estabelecimento de um diálogo entre filosofia e


literatura possui para a crítica literária, tomando como referência a crítica concebida pela
Escola de Genebra. A perspectiva adotada retoma o questionamento acerca das
determinações formais do saber e das diferentes concepções de verdade estabelecidas
durante a história das ideias. Nesse sentido, as reflexões remetem à relação transacional
entre os modos de apreensão poético e filosófico da realidade a partir da noção de
subjetividade implicada na crítica literária do grupo em questão. A particularidade formal da
crítica produzida pela Escola torna possível reconhecer o campo de atuação delineado
durante a leitura da obra literária, ao evidenciar a posição do sujeito em relação à experiência
fornecida pelo texto. Tal posição não consolida uma definição categórica e conceitual do
sujeito, pois a atuação da consciência crítica não assume uma concepção essencialmente
positiva ou poética da linguagem. Em se tratando do viés crítico abordado, o lugar do sujeito
para a Escola de Genebra não se define categoricamente, mas evoca a relação dialógica entre
a poesia e a filosofia que, em relação à ideia central do simpósio, coaduna com o pensamento
de Benedito Nunes sobre o tema. Assim, o trabalho busca apresentar o sujeito como o lugar
central onde a transação entre a filosofia e a poesia se torna possível.

Palavras-chave: Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário.

ABSTRACT

This production broaches the importance that the stablishment of a dialogue between
philosophy and literature has for literary criticism, taking as reference the criticism

1 Doutora em Letras – Área: Estudos Linguísticos, Literários e tradutológicos em Francês.


Universidade de São Paulo. carol_rangel@hotmail.com

178
Anais

conceived by the Geneve School. The perspective adopted resumes the questions about the
formal determinations of knowledge and the diferente conceptions of truth established
during the history of ideas. In this sense, the reflections refer to the transactional
relationship between the poetic and philosophical apprehension of reality from notion of
subjectivity implied in the literary criticism of the group in question. The formal particularity
of criticism produced by the School makes it possible to recognize the space of action
autlined during the Reading of literary work, by highlighting the subject´s position in relation
to the experience provided by the text. Such a position does not consolidate a categorical and
conceptual definition of the subject, since the performance of critical consciousness does not
assume na essentially positive or poetic conception of language. In terms of the critical
approach addressed, the place of subject for Geneva School is not categorically defined, but
evokes the dialogic relationship between poetry and philosophy that, in relation to the
central idea of this symposium, is in line with the thought of Benedito Nunes about the
subject. Thus, the work seeks to presente the subject as the central place where the
transaction between philosophy and poetry becomes possible.

KEYWORDS: Criticism, poetry, philosophy, epistemology, Geneva School.

O recorte que proponho aqui tem como objetivo expor o caráter necessário que
possui o diálogo entre a filosofia e a literatura para a reflexão crítica-literária da Escola de
Genebra. Cumpre dizer que o papel fundamental desempenhado por esse diálogo não é algo
difícil de ser reconhecido durante a leitura dos textos produzidos pelos autores desse grupo.
Ao contrário disso, a aproximação entre a filosofia e a literatura aparece de forma explícita
na obra de cada um dos críticos que participam desse conjunto. Tendo em vista o foco central
do presente seminário2, achamos por bem iniciar nossa reflexão a partir de um texto de
Marcel Raymond que aborda diretamente nosso tema. Trata-se de um texto inicialmente
apresentado pelo crítico em Strasbourg, em uma conferência realizada no ano de 1963 e
publicado no ano seguinte, em Genebra, com pouquíssimas alterações.
Nesse texto, cujo título é Cultura aberta e linguagem poética, Marcel Raymond reflete
acerca da situação em que se encontra a cultura literária naquele momento, bem como sobre
o tipo de fundamentação teórica que está por trás do valor conferido à linguagem poética e,
consequentemente, ao conhecimento que envolve esse tipo de produção. Com efeito, a crítica
literária da Escola de Genebra tem como princípio fundamental a consciência do sujeito a
respeito das determinações que lhe são impostas pela situação presente.
A consciência a respeito do contexto atual que envolve a produção crítica literária da
Escola de Genebra é tão essencial para a reflexão de Marcel Raymond que Jean Starobinski a

2 Texto apresentado originalmente no simpósio Literatura e Filosofia:diálogos multifacetados –


viagem, memória e subjetividade

179
Anais

descreve como uma forma de resistência fundamental. Devemos ter em mente a radicalidade
dessa resistência, uma vez que Starobinsky frequentou o curso ministrado por Marcel
Raymond na Universidade de Genebra entre os anos 1934 e 1942, período este que coincide
com as conquistas nazistas e com o estado francês de Vichy. Nesse sentido, o vínculo entre a
elaboração teórica e a atualidade da consciência definia a direção opositiva da práxis crítica.
Conforme recorda Starobinski, Marcel Raymond fazia seus alunos compreenderem a
necessidade de abordar a obra literária a partir da consciência posicionada no instante
presente ou, para melhor dizer, a partir do momento histórico em que suas existências
estavam situadas3.
De fato, podemos reconhecer o caráter imprescindível que esse posicionamento
possui na produção de Marcel Raymond através da forma como ele fundamenta sua reflexão
crítica no exame da situação em que os estudos literários se encontram no momento
histórico em que a conferência se realiza em Strasbourg. Sendo assim, tanto a
particularidade da situação, quanto as limitações teóricas que ela implica são apresentadas
no texto supracitado a partir da seguinte reflexão:

Acontece que os representantes da cultura que chamaremos de literária, em


sentido amplo (sendo a literatura inseparável das disciplinas filosóficas e
históricas), sofrem hoje um complexo de inferioridade. Segue-se que uma
primeira tentação os espera, que eu gostaria de evitar: a de bancar o
perdedor, de dobrar o joelho diante do que parece óbvio: a saber, que nós,
literatos, somos arrastados por um maremoto, ultrapassados pelo evento, e
que nossas preocupações, nossas opções fundamentais são anacrônicas.
(RAYMOND, 1964, p.253).4

O trecho em questão possui elementos que são essenciais para a compreensão da


peculiaridade da crítica literária concebida pelos autores desse grupo. Como dissemos antes,
entendemos que essa peculiaridade passa precisamente pelo estabelecimento de um diálogo
entre a filosofia e a literatura. Comecemos nossa análise por aquilo que o crítico considera
um perigo a ser evitado: a tentação de assumir o comportamento de um sujeito que admite
ter sido engolido pela onda dos acontecimentos, ou ainda, “ultrapassado” pelo evento. A
primeira coisa que chama nossa atenção é a maneira como o autor adverte sobre o erro a ser
evitado por meio da utilização de metáforas. O uso desse tipo de linguagem para descrever

3 Cf. 3 Starobinski, Jean. Les Aproches du Sens: Essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013 p.311

4 Salvo indicações contrárias, as traduções são de nossa autoria.

180
Anais

a condição atual da crítica literária exigiria um trabalho de interpretação bastante cuidadoso


por parte do leitor, tornando-o atento aos detalhes mais caprichoso do estilo empregado. No
entanto, o próprio crítico se apressa em explicitar de modo inequívoco o sentido de suas
palavras ao relacionar o arrebatamento da onda ao caráter anacrônico do objeto e das
escolhas que envolvem a reflexão crítica-literária.
Com efeito, como afirma o crítico genebrino, Jean Starobinski, diante da diversidade
de caminhos possíveis para desvendar uma obra literária, pode-se afirmar que “(...) toda
crítica implica uma escolha” (STAROBINSKI, 2013, p. 33). Nesse sentido, a afirmação de
Starobinski aponta para o epicentro do maremoto antecipado por Raymond: a insegurança
que acompanha a escolha a ser feita pelo crítico, tendo em vista a especificidade do seu objeto
e o método de análise que precisa adotar para validar o conhecimento que a obra literária
possibilita alcançar. A tentação que Marcel Raymond deseja evitar se refere à atitude do
crítico diante da zona de instabilidade que a própria forma literária institui. O foco da escolha
aqui não é tanto a opção pelo método x ou y, mas a direção que o procedimento adotado
estabelece. O que está em jogo é a decisão de ficar no espaço literário ou adotar um
procedimento seguro para escapar da instabilidade do terreno no qual a literatura se
assenta.
Para compreendermos as causas dessa instabilidade, teríamos que considerar o
processo de origem e formação da crítica enquanto gênero literário, bem como os obstáculos
que envolvem a consolidação do domínio literário como centro produtor de conhecimento.
Desse modo, o risco que envolve a cultura literária correlaciona diversos elementos que
historicamente institucionalizaram um modelo específico de conhecimento. Infelizmente
não dispomos de tempo hábil para esmiuçar cada um desses fatores, por isso convém apenas
esclarecer que se trata de um modelo comprometido com a tradição da ciência positivista.
Com efeito, a primeira tentação, à qual Raymond se refere é a de utilizar a estrutura
formal dos métodos científicos e a linguagem conceitual que lhe é característica como esteio
para a atuação da crítica literária. E de fato, quando a produção literária é integrada à ordem
cientificista, o crítico passa a dispor de uma lógica mecânica capaz de controlar
objetivamente o desenvolvimento da análise, pois submete a obra às determinações exatas
do domínio escolhido. Contudo, as condições necessárias para controlar a experiência
literária de modo a garantir a estabilidade formal do objeto não se baseia em uma relação
“fraternal”, ou para melhor dizer, em uma relação entre iguais. Pelo contrário, as relações
que caracterizam o compromisso entre a atuação da crítica e a estrutura positivista do

181
Anais

conhecimento cientifico impõem critérios que reduzem a expressão literária a mero auxiliar,
obrigando o crítico a assumir pressupostos e objetivos alheios a sua matéria para orientar a
interpretação do texto.
Não é à toa que Marcel Raymond descreve a assimilação dos métodos científicos como
um ato de submissão por parte do crítico que assume o papel de perdedor e dobra os joelhos
diante do que parece óbvio, a saber, que a instabilidade literária foi transposta pela eficiência
cientifica. Na prática, os críticos da Escola de Genebra apontam o preço cobrado da literatura
pela segurança da lógica positivista quando examinam o que acontece com a crítica literária
que assenta sua produção nos campos vizinhos que constituem o território da ciência.
Lembremos que, nesse momento, estamos pensando no campo das ciências humanas.
Como mostra uma análise de Jean Starobinski a respeito desse tema, a sociologia,
ciência das estruturas da vida social; psicologia, ciência da personalidade, linguística, ciência
da linguagem, cada um poderia incluir obras literárias no campo de sua pesquisa. A
dificuldade que ronda essa inclusão é a obrigação que se impõe aos críticos de voltar para a
escola e de modo a se formarem linguistas, sociólogos ou psicólogos.
Em outras palavras, segundo a posição expressa pelo crítico da Escola de Genebra, a
crítica literária, nos casos citados por ele, deixa de ser crítica literária para ser uma crítica
sociológica, crítica psicológica, crítica linguística etc. Por esse motivo a Escola de Genebra
coloca a exigência de refletir sobre as condições necessárias para a prática de uma reflexão
verdadeiramente comprometida com o caráter literário do conhecimento produzido por ela.
Retornando ao texto de Marcel Raymond, que serve de fundamento para nossa
apresentação, se por um lado a submissão à lógica cientificista acaba por suplantar o caráter
literário da crítica, por outro lado é impossível ignorar as transformações operadas durante
o desenvolvimento histórico da ciência moderna sobre a própria concepção de saber. Nesse
sentido, como afirma o autor, é preciso evitar ainda “uma segunda tentação, compensadora
da primeira, seria a da orgulhosa e vã retaliação: a ciência, ou nova ciência, Leva o mundo à
ruína; só nós saberemos, se ele deve ser salvo!” (RAYMOND, 1964, p.254)
Evitamos assim um erro comum àqueles que conferem aos críticos da Escola de
Genebra um sentimento de total aversão a qualquer procedimento vinculado às ciências ou
a preocupações que remetem à história das ideias. Ao contrário disso os críticos do grupo
reconhecem que a negação de todo arcabouço cientifico para instaurar uma espécie de
conhecimento literário puro implicaria a completa autonomia da reflexão em relação a todos
os métodos e parâmetros que fossem alheios à forma literária. E como o próprio Raymond

182
Anais

afirma, o fato é que hoje uma cultura literária que pretende extrair toda a sua substância de
seus próprios recursos e ser autossuficiente, dificilmente é concebível.
Dessa maneira, levando-se em conta as condições que pautam a prática dos estudos
literários, torna-se patente, para a Escola de Genebra, que o estabelecimento de um diálogo
com outras formas de saber é essencial. Contudo, é preciso considerar que dentre as
condições que envolvem um diálogo real, é fundamental que haja o reconhecimento mútuo
entre as partes que o estabelecem. Com isso queremos dizer que é preciso encontrar um
meio para suprimir qualquer tipo de hierarquia entre as diferentes formas de saber
envolvidas.
Como dissemos há pouco, a Escola de Genebra não ignora as transformações
históricas pelas quais passou o modo de enunciação do saber ou procedimentos
reconhecidos para a obtenção do conhecimento verdadeiro. Tanto as consequências de tais
transformações, quanto a necessidade de superar as limitações impostas por elas são
consideradas no texto de Raymond, quando o autor afirma o seguinte:

A necessidade de um diálogo entre estudiosos e literatos é essencial, ainda


que esse diálogo, solvente, se torne curto, ainda que a dificuldade de
encontrar uma linguagem comum, capaz de quebrar uma dupla surdez,
pareça quase intransponível. (RAYMOND, 1964, p. 254).

Desse modo, é a partir do reconhecimento dos limites, que a crítica literária manifesta
o desejo de sobrepuja-los. Como disse Marcel Raymond, o caminho para isso não é o da
retaliação, mas o do diálogo. A dificuldade de estabelecer o tipo de relação necessária para a
troca dialógica, por sua vez, exige a criação de um espaço transacional por parte do crítico.
Nesse sentido, os críticos da Escola de Genebra enxergam no trabalho a ser desenvolvido
pela consciência do leitor o mesmo sopro, a mesma inspiração que possui a obra literária.
Apesar da dificuldade que existe em encontrar este meio comum o crítico reconhece
que há espaços onde a possibilidade de interlocução é maior. Nessa apresentação vamos nos
restringir àquele apontado por Raymond como o mais natural: a filosofia. Devido ao tempo
reduzido que dispomos aqui, iremos apenas indicar o caminho adotado pelo crítico no texto
em questão, destacando que o diálogo entre a literatura e a filosofia atua como um elemento
de identificação para a formação e integração dos componentes da Escola de Genebra.
Devemos destacar também que os modos como cada um dos críticos atuam para composição
de tal espaço não são idênticos, nem estão subordinados a um quadro estático normativo.

183
Anais

No nosso caso, após enunciar a necessidade de encontrar uma linguagem comum


suficiente para interromper a dupla incapacidade de escuta que essas duas esferas do saber
demonstram uma em relação à outra, o caminho adotado por Raymond não supõe a
aplicação de sinais norteadores ou a identificação de referência conceituais que visem
esclarecer, iluminar de modo inequívoco o sentido da produção literária. Pelo contrário, ao
invés de buscar iluminar mutuamente essas duas esferas do saber, o crítico empurra o leitor
para a zona obscura que as duas possuem em comum.
Verdadeiramente, a realização do diálogo proposto por Raymond depende de
oferecer à reflexão do leitor não o fato literário que a luz da ciência ou da história evidencia,
mas sim a parte poética do objeto literário que ainda falta iluminar. Em poucas palavras,
podemos dizer que é através da perturbação do desejo de esclarecimento filosófico que a
crítica literária da Escola de Genebra se constituí.Para colocar em outros termos, não é sobre
o que já foi iluminado pela ciência ou pela filosofia que os críticos da Escola de Genebra
concentram sua abordagem, mas para aquilo que ainda não tem, nem nunca terá lugar à luz
do saber positivo instituído. Por fim, o que os críticos da Escola de Genebra fazem é
precisamente restaurar a atualidade da obra literária ao acolher juízos intraduzíveis e não
conceituais que normalmente são descartados pelas instâncias produtoras de conhecimento.
Sendo assim, voltemos à citação inicial, retirada do texto de Marcel Raymond
apontada no princípio desse trabalho: “Acontece que os representantes da cultura que
chamaremos de literária, em sentido amplo (sendo a literatura inseparável das disciplinas
filosóficas e históricas), sofrem hoje um complexo de inferioridade” (RAYMOND, 1964,
p.253). Desse modo, nosso texto teve início nessa sensação reprimida, um afeto que toma os
representantes da cultura literária: o complexo de inferioridade que experimenta o autor
moderno. Nessa perspectiva, Benedito Nunes possui um texto que pode nos ajudar a
compreender uma crítica literária, como a da Escola de Genebra, instaurada a partir da
impotência da expressão humana e do conflito ético que daí deriva.
Em relação à contraposição entre a filosofia e a poesia, Nunes confere à literatura “a
verdade essencial relativa à ação humana, a verdade do ethos, de que a filosofia não pode
falar. Mas pode a filosofia, ironicamente, sem omitir-se, falar dessa sua impossibilidade (...)”
(NUNES, 2011, p. 17). Com efeito, os críticos da Escola de Genebra não limitam suas reflexões
à impossibilidade de enunciação apontada pela própria expressão filosófica, mas obrigam a
filosofia a escutar no seu próprio silêncio o que eco longínquo da linguagem literária.

184
Anais

REFERENCIAS

NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. A Palo Seco-Escritos de Filosofia e


Literatura, v. 3, n. 3, 2011.

RAYMOND, Marcel. Vérité et poésie: études littéraires. Suisse: Editions de la Baconnière,


1964.

STAROBINSKI, Jean. Les aproches du sens: essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013.

185
A VIDA LITERÁRIA NA “NOVA
ATENAS BRASILEIRA”:
TRAJETÓRIAS NEGRAS DE
NASCIMENTO MORAES E
ASTOLFO MARQUES
Patricia Raquel Lobato Durans CARDOSO1 (UFSC)

RESUMO

A historiografia literária de Brito Broca (2005), mais próxima da crônica jornalístico-


literária, que visa pensar a vida pessoal e interpessoal dos escritores com seus grupos e redes
sociais, suas dissonâncias e assonâncias, e, além disso, destacar figuras que foram esquecidas
pela crítica e cânones literários, é muito valiosa para a literatura enquanto ramo do
conhecimento, uma vez que retira a auréola de seres divinos dos escritores, iluminados e
escolhidos, posicionando-os como realmente são – homens e mulheres de seu tempo –,
sujeitos social e historicamente determinados. Nessa perspectiva, o presente artigo tem o
objetivo de colocar em destaque dois intelectuais negros maranhenses, José Nascimento
Moraes e Raul Astolfo Marques, ambos do final do século XIX, pensando-os como iniciadores
de uma literatura afro-brasileira (DUARTE, 2014), porém desenvolvida por meio de
articulações e posições diferentes que reverberam tanto nos seus textos quanto em seus
lugares ideológicos ou lugares de fala, assim como permitem vislumbrar o campo intelectual
(BOURDIEU, 2010) ou vida literária do que se convencionou chamar na historiografia
maranhense de Ciclo Neo-ateniense. As análises concentram-se principalmente nas suas
trajetórias intelectuais, nas suas atuações jornalísticas e nas suas principais obras: Vencidos
e Degenerados, de Nascimento Moraes, e A nova Aurora, de Astolfo Marques.

1 Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Literatura. E-mail: duranspat@gmail.com

186
Anais

Palavras-chave: Literatura maranhense. Intelectuais negros. Nascimento Moraes. Astolfo


Marques. Literatura afro-brasileira.

ABSTRACT

The literary historiography of Brito Broca (2005), closer to the journalistic-literary


chronicle, which aims to think about the personal and interpersonal life of writers with their
groups and social networks, their dissonances and assonance and, in addition, highlight
figures that were forgotten by critics and literary canons, is very valuable for literature as a
branch of knowledge, since it strips the writers of the halo of divine, enlightened and chosen
beings and positions them as they really are - men and women of their time – socially and
historically determined subjects. In this perspective, this article aims to highlight two black
intellectuals from Maranhão - José Nascimento Moraes and Raul Astolfo Marques - from the
late 19th century, thinking as initiators of an Afro-Brazilian literature (DUARTE, 2014), but
developed by through different articulations and positions, which reverberate both in their
texts and in their ideological places or places of speech, as well as allowing a glimpse of the
intellectual field (BOURDIEU, 2010) or literary life of what is conventionally called in the
historiography of Maranhão Neo-athenian Cycle. The analyzes focus mainly on his
intellectual trajectories, his journalistic performances and his main works: Vencidos e
Degenerados, by Nascimento Moraes and A nova Aurora, by Astolfo Marques.

Keywords: Literature from Maranhão. Black intellectuals. Nascimento Mores. Astolfo


Marques. Afro-Brazilian Literature.

Broca (2005) salienta que o campo literário, assim como todo campo intelectual, não
é povoado só com textos, mas por redes de sociabilidade, incluindo o afetivo e o ideológico,
que se interpenetram. Ao contrário do que se pode pensar, mesmo estando situado em um
mundo de inteligência, no qual, teoricamente, os indivíduos reprimiriam suas emoções a
serviço da razão, de acordo com Sirinelli (2010), as relações de atração, amizade, hostilidade,
rivalidade, ruptura, briga e rancor desempenham papel decisivo, assim como as fofocas, as
intrigas, os boatos, as polêmicas.
De certa forma, Broca (2005) antecipa discussões que vão se dá de forma mais
profunda e sistemática a partir da década de 1970, quando, conforme Culler (2016), a teoria
literária passa a se preocupar não só com questões puramente de natureza literária, mas com
uma massa de textos teóricos sobre coisas que são importantes à literatura e que vão
desembocar em todas as mudanças que se tem atualmente nessa área de conhecimento.
Nessa perspectiva, este artigo, fruto de uma comunicação, tem o objetivo de colocar
em destaque dois intelectuais negros do final do século XIX, pensando-os como precursores
de uma literatura afro-brasileira a partir de atuações regionais no que a historiografia
maranhense chama de “Ciclo ou Fase Neoateniense”. Esse termo é escrito aqui entre aspas

187
Anais

para indicar que se trata atualmente de uma classificação historiográfica discutível e que tais
autores encaixados nesse período não representavam uma homogeneidade.
Para entendermos melhor a vida literária do Maranhão no século XIX, é preciso dizer
que a historiografia tradicional local (LOBO, 2008; CARVALHO, 1912; MEIRELES, 1955;
MORAES, 1977) afirma que a literatura maranhense teve três grandes ciclos ou fases no
século XIX. Para esses pesquisadores, antes desse século e do advento do Romantismo não
existia o que se pode chamar de literatura maranhense, mas literatura sobre o Maranhão. A
partir do regresso de uma elite econômica e intelectual que estudou em Coimbra e a
instituição da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, começou a aparecer
uma vida intelectual maranhense. Em termos literários, isso se deu com a aparição das obras
de escritores que foram se inserindo no chamado “Grupo Maranhense”, cujo início foi em
1832 com a publicação de Hino à tarde, de Odorico Mendes. Devido à vida literária intensa
nesse período e com a monumentalização da cidade, a criação de órgãos de publicação e
circulação de escritos e o sucesso literário de escritores do calibre de Gonçalves Dias, João
Lisboa, dentre outros, a capital maranhense recebeu o título de Atenas Brasileira. Para
resumir esse acontecimento, Corrêa (1993, p. 29) coloca que “a mitologia da Atenas
brasileira correlacionou o principium sapientiae grego ao papel desempenhado pelo Grupo
Maranhense no desafio de responder às exigências constitutivas de uma cultura brasileira”.
Aí está o primeiro ciclo.
O segundo ciclo nasce com uma literatura realista/naturalista e se configura pelo
esvaziamento intelectual do Maranhão, uma vez que esse ciclo foi constituído por
maranhenses estudantes da Faculdade de Direito de Recife e se caracterizou por escritores
que construíram suas trajetórias fora da sua terra natal. Por esse motivo, essa geração é
chamada de “Grupo dos Emigrados”. Não há um consenso na historiografia no que diz
respeito ao marco inicial desse grupo, mas o seu início se dá no final da década de 1860. O
motivo da saída desses intelectuais foi a divergência de ideias entre a população tradicional
e os intelectuais liberais. Nesse grupo está Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Graça Aranha,
Coelho Neto, Raimundo Corrêa, etc.
A partir desse esvaziamento literário interno, que via o Maranhão sem seus cérebros
mais brilhantes, nasceu o terceiro grupo da literatura maranhense, com a publicação de
Frutos Selvagens, de Inácio Xavier de Carvalho, em 1893. Esse grupo de intelectuais queria
reativar a literatura maranhense feita em sua terra e se inspirava na primeira geração para
isso. Como coloca Broca (2005), urgia restabelecer a supremacia intelectual da decantada

188
Anais

Atenas Brasileira. No entanto, não só intelectualmente falando, as condições materiais já não


eram as mesmas devido à forte instabilidade econômica e política no final do século XIX. Com
essa herança de reviver o passado, mas, ao mesmo tempo, uma pecha, eles se
autodenominaram de Os novos atenienses, mas foram considerados pelos historiadores de
“Grupo Decadentista”. É nesse ciclo que tem Antonio Lobo como grande líder e no qual estão
incluídos os dois literatos objeto de nossa reflexão – José do Nascimento Moraes e Raul
Astolfo Marques. Prefere-se, porém, afirmar que ambos são contemporâneos a dizer que
fazem parte do mesmo ciclo, pois, como vai ser possível perceber, suas posições literárias e
ideológicas, às vezes, desenvolvem-se em orientações divergentes.
Os dois intelectuais têm uma origem muito parecida. Ambos são de origem humilde e
tiveram que batalhar para conseguir uma educação que lhes permitissem transitar no meio
intelectual de sua época. Nascimento Moraes nasceu em São Luís do Maranhão em 19 de
março de 1882, e faleceu em 21 de fevereiro de 1958, na mesma cidade. Era filho de Manoel
do Nascimento Moraes, negro, analfabeto, sapateiro e ex-combatente da guerra do Paraguai,
e de Maria Catarina Vitória, ex-escrava e feirante. Teve uma educação formal difícil,
alcançando o curso preparatório para o Liceu Maranhense e uma passagem pela Academia
Militar, por isso grande parte dessa formação deveu-se ao seu autodidatismo. Tornou-se
professor de Geografia do Liceu Maranhense, e de Português e Geografia na Escola Normal e
em várias outras escolas particulares do Maranhão.
Igualmente, Astolfo Marques nasceu em São Luís do Maranhão em 11 de abril de 1876
e faleceu na mesma cidade, em 28 de maio de 1918. Acredita-se que sua mãe era uma escrava
alforriada chamada Delfina Maria da Conceição Marques. Não há registro de pai em sua vida.
Astolfo Marques tinha mais seis irmãos. Depois de exercer várias profissões, ajudando sua
mãe a entregar roupas e levando recados, seu primeiro emprego regular foi de servente na
Biblioteca Pública, onde pôde, com seu autodidatismo, obter instrução por meio da leitura e
desenvolver suas experiências literárias entre a limpeza e arrumação dos livros, já que essas
tarefas faziam parte de suas funções na casa. Mais tarde, após deixar o emprego de servente,
ocupou vários cargos públicos, como Secretário Interino da Instrução Pública e do Liceu
Maranhense (FUNDAÇÃO, 1976).
Apesar de mais velho, Marques morreu muito mais jovem que Moraes, que pôde
desenvolver mais sua escrita e sua posição política. Desde muito jovem e exercendo
diferentes funções, Moraes colaborou em vários jornais, como: Diário de São Luís, A
campanha, O Maranhão, A pátria, O jornal, A tribuna, A hora, Diário do Norte, O globo, Correio

189
Anais

da tarde, A imprensa, Regeneração, Notícias, Diário do Maranhão, Atenas, Correio da manhã e


O imparcial. Teve como pseudônimos Braz Sereno, Sussuarana, João Sem Terra, Zé
Maranhense, João Ventura, Valério Santiago e Junius Viactor. Suas obras publicadas foram:
Puxos e repuxos (1910), uma compilação de seus textos em ocasião da polêmica com Antônio
Lobo; Vencidos e degenerados (1915), romance; Neurose do medo (1923), crítica política que
analisa o governo de Raul Machado; Os contos de Valério Santiago (1972), publicação
póstuma que reúne contos escritos na década de 1940 para a Revista Atenas, suplemento
literário do jornal O imparcial. Escreveu também folhetins, dentre os quais contabilizam-se
os seguintes: Amor Original e Mestre André, entre outros, publicados no jornal A campanha.
Marques teve uma escrita literária menor no sentido de quantidade. Colaborou em
vários periódicos da imprensa maranhense, como Revista do Norte, Diário Oficial, Diário do
Maranhão, Os Novos, Pacotilha, O Jornal. Foi correspondente do Jornal do Comércio de Caxias;
O Norte, de Barra do Corda; O Comércio, de Teresina, dentre uma lista infindável. Fundou a
Oficina dos Novos e o periódico Os novos, em 1900, juntamente com Francisco Serra e João
Gomes. Foi jornalista e tradutor, contista e ensaísta. Seus livros publicados foram: Natal, de
1908, livro de cinco contos que mostra quadros da cena festiva dessa data comemorativa; A
vida maranhense, outro livro de contos, de 1905, que trata de cenas relacionadas ao cotidiano
de festas maranhenses; A nova aurora, novela maranhense que trata principalmente do
período relacionado à Proclamação da República, de 1913; e o livro de esboço político,
intitulado Dr. Luís Domingues, de 1910, que, como o nome indica, trata-se de uma crítica
política sobre o citado governador.
Ambos se integraram às agremiações literárias de sua época e, durante algum tempo,
foram colegas e contemporâneos nessas agremiações. Na Oficina dos Novos, Nascimento
Moraes foi o primeiro presidente e Astolfo Marques assumiu o papel de fundador, secretário,
tesoureiro, presidente; ambos colaboraram com o jornal dessa instituição denominado Os
novos. No entanto, Moraes rompeu com a Oficina e criou uma outra agremiação chamada
Renascença Literária, que tinha como periódico A Renascença. Astolfo Marques manteve-se
naquela agremiação até seu encerrammento. Essas e várias agremiações literárias
alicerçaram o caminho para a criação da Academia Maranhense de Letras, em 1908, da qual
consta como fundador Marques em um grupo de doze intelectuais. Para ele foi instituída a
Cadeira nº 10, patrocinada por Henriques Leal. Diferente de Marques, Moraes, mesmo tendo
essa elástica produção, só entrou para o grupo dos imortais em 1935, ocupando a cadeira 11,
cujo patrono foi João Lisboa, e, por duas vezes, presidiu a instituição.

190
Anais

É bem provável que a diferença nesse percurso de reconhecimento e consagração


tenha a ver com a questão racial e, principalmente, com a postura em relação a essa temática.
Ambos eram negros em uma sociedade racista, de abolição recente e preconceituosa, mas a
forma como desenhavam as suas posições e trajetórias intelectuais negras eram bastante
diferentes.
Moraes tinha uma crítica afiada. Ousou em ser crítico literário ao longo de sua vida,
sem poupar a ninguém. Na prosa jornalística, tornou-se a voz de denúncia dos problemas
sociais e contra as injustiças, mantendo-se atuante nas cinco primeiras décadas do século XX.
Como professor, tinha grande preocupação com a educação pública e os métodos de ensino,
por isso seus artigos tinham um caráter pedagógico, com a finalidade de instruir o povo,
praticando, por meio do jornalismo, seu ofício de mestre. Condenava o analfabetismo,
sugeria a reforma da educação brasileira e afirmava que a educação era o principal fator de
mudança da realidade brasileira nos seus artigos. Defendia uma educação revolucionária,
uma revolução que partisse do povo, a partir de sua própria realidade (MORAES, 1982).
Seu engajamento às suas posições ideológicas firmes lhe rendeu uma série de
consequências. Uma delas foi o rompimento com o grupo que fundaria a Academia
Maranhense de Letras, que tinha Antonio Lobo como seu principal articulador. A partir daí
começou a sofrer uma série de ataques na imprensa de sua época, inclusive com
manifestações racistas, numa polêmica que durou alguns anos no cenário maranhense e que
deixou de discutir aspectos formais de obras literárias para atingir pessoalmente cada lado
de sua disputa.
Lobo externalizava todo o racismo daquela sociedade, afirmando ser de uma raça
caucásia e superior, e, de todas as formas, inferiorizando racialmente e intelectualmente o
adversário. No dia 30 de julho de 1910, Galliza, o pseudônimo de Lobo, atacou Valério
Santiago, pseudônimo de Moraes:

O negro é sempre isto: ou tem talento


Ou não tem raciocínio e é peru;
Ou Patrocínio é, ou é jumento;
Ou Luiz Gama, ou tu. […]
A prevenção, porém, fazer-te quero agora
E com ela bem sei que te desbanco:
Si o publicares, meto-te a espora
E o relho cru, até ficares branco. (GALLIZA, 1910, p. 2).

191
Anais

Moraes tentou continuar o debate no nível da crítica e da historiografia, mas em


diversos momentos teve que se defender e tratar sobre a sua negritude. Abriu seu artigo do
dia 01 de agosto de 1910 com um parêntese para responder aos insultos que havia lhe feito:

Negro! Eis aí o insulto, a palavra com que eles pensam que nos esmagam, que
nos reduzem a última expressão!
Que não diriam se fossemos brancos da ilha, ou mesmo caboclo!
Negro! É o grito de terror, de medo e de ódio, é o grito do vencido, do nulo,
do inabilitado que não pode discutir e nem sabe fazer o que todo mundo sabe
- insultar!
Negro! Repetem tomados pela cólera, possuídos por uma idiota indignação!
[…]
Estamos satisfeitíssimos com esta amostra que deram do seu elevado
preparo e grandeza intelectual e moral!
Na verdade, é digno de nota, que um homem talentoso e de muito saber
escreva versos ameaçando de chicote, relho cru, etc. o adversário!!!...
Nada mais edificante, majestoso e eloquente, para quem brilha como estrela
de primeira grandeza literária, para quem guia espíritos de moços
inexperiente que lhe seguem as lições!!!... (MORAES, 1910, p.10).

Em outro momento, mais uma vez, Moraes se levantou contra Lobo no sentido de
mostrar a sua ancestralidade e reverter os ataques racistas que vinha sofrendo:

Um TIPO DE RAÇA CAUCÁSIA NO MARANHÃO!!![…]


Lobo literato, Lobo “chefe de uma intelectualidade”, diz pela imprensa que
só o branco é capaz das grandes empresas! Grita que só os brancos são
superiores!
Nega, assim, o “colosso” toda uma história literária! Nega, na sua
inconsciência os extraordinários monumentos da literatura e cultura
brasileira!
Nega André Rebouças, Tobias Barreto, Basílio da Gama. Laurindo Rabello,
Luiz Gama, Ferreira de Menezes, Carlos Gomes, José Maurício, José do
Patrocínio, Gonçalves Dias, Guimarães Passos, João de Deus, do Redo, João
Gronwell, Aluisio, Americo, Arthur Azevedo, Cruz e Sousa, Hemeterio dos
Santos, Sergio Martinho, Joaquim e. do Nascimento. Hermenegildo A. da
Encarnação, Euclides da Cunha, Eduardo Ribeiro, Th. Vaz, Jonas da Silva, José
Verissimo, Indio do Brasil, Silvio Romero, Alves de Miranda e tantíssimos
outros que não podemos agora enumerar. Mas para achatar Lobo bastaria
citar Gonçalves Dias, à custa de quem ele tem feito muitos discursos. Lobo
terá perdido de todo a razão? Estaria Lobo completamente desequilibrado
para escrever que só é superior o “branco”? O Lobo caucásio estará tomando
gosto com a sociedade maranhense, com os homens cultos de nosso meio?
Nem os próprios brancos te louvarão a injustiça! (MORAES, 1910, p.21).

Diante desses insultos, questiona-se onde estaria Astolfo Marques nesse momento? O
que teria sentido vendo um homem negro, assim como ele, sofrer toda essa humilhação? E
que tal humilhação vinha de seu grande amigo Antonio Lobo? Em meio a tantos que foram

192
Anais

chamados ou citados na polêmica e que quiseram se retratar, Marques foi o único que
permaneceu indiferente, mesmo quando afirmaram que ele era inferior a Nascimento
Moraes e que só era reconhecido porque era da panelinha de Lobo. Não entrou na conversa.
Não escreveu nem para Lobo, nem para Nascimento. Permaneceu neutro, mesmo já tendo
sido elogiado pelos dois que estavam na polêmica.
Assim era a escrita de Astolfo Marques. Uma escrita que queria parecer neutra,
principalmente no que concerne às questões raciais. Enfatiza-se o parecer, porque Astolfo
não deixava de tratar sobre as questões mais urgentes de sua época, como instabilidade
política, problemas da República, escravidão, abolição e questões raciais, mas esses temas
apareciam no detalhe, ou seja, muito mais nos textos literários do que nos artigos
jornalísticos. No que diz respeito às polêmicas, o seu nome não estava registrado nessas
estruturas de sociabilidade e não se tem notícia de seu rompimento com Antonio Lobo. Este,
por sua vez, no final de sua vida, rompeu com todos os seus amigos, morrendo na mais
completa solidão. Enfim, o perfil de Astolfo era de uma aparente não implicação ideológica.
Mesmo vivendo na época em que vivia, ao contrário de Marques, Moraes tinha uma
escrita combativa e autoafroidentificada, sendo hoje reconhecido como um literato afro-
brasileiro. No caso de Marques, não foi até agora reivindicado um lugar na literatura afro-
brasileira para esse intelectual. Será que o contexto social, político, individual em que se
encontrava não dava margem para expressar o seu pertencimento racial? Será que a sua
sobrevivência enquanto escritor dependia do apagamento de sua identidade negra?
Marques não tinha essa escrita combativa, porém suas obras literárias não se furtavam em
discutir essas questões de uma maneira menos explícita e menos categórica.
Podemos perceber isso por meio de seus romances. Em Vencidos e Degenerados,
publicado em 1915, Moraes constrói uma São Luís negra, com personagens negros que se
envolvem politicamente para produzir melhores contextos de vida para si e para os outros,
mas são perseguidos por isso, ou mesmo vencidos e degenerados, como o próprio título já
expressa. A trama se desenvolve a partir de datas históricas que delimitam seu início e fim:
o dia da abolição da escravatura no dia 13 de maio de 1888, às oito horas da manhã, e a
Proclamação da República em 15 de novembro de 1900 (primeiro aniversário da data). A
história se passa em São Luís, capital maranhense. A escolha dessas duas datas é simbólica e
permite estabelecer entre elas uma relação de causalidade.
Contudo, é importante perceber que a consecução dos fatos revela uma quebra de
expectativa em relação aos tons das duas comemorações, pois a festa da abolição é uma festa

193
Anais

popular, alegre, do povo humilde, dos oprimidos, dos negros, enfim, uma festa de esperança;
já a festa da República era apenas uma solenidade esvaziada de sentido, burocrática, elitista,
uma festa que frustrava o povo, que se manifestava por meio de insultos àqueles ares que
eram republicanos, mas não democráticos (MORAES, 1968). Percebe-se explicitamente uma
decepção com a República por meio de uma denúncia em relação à não concretização dos
ideais sonhados com o regime político estabelecido.
Essa discussão em torno dos mesmos fatos históricos se apresenta no romance de
Marques, A nova Aurora, publicado em 1913 – uma república elitista e uma abolição popular
-, porém a São Luís negra de Marques é harmonizada com cenas que estão relacionadas ao
modo como a elite maranhense encarava tais fatos acontecidos. Na verdade, visões
contraditórias mantinham a cena equilibrada para que não se pudesse notar o tratamento
do tema da negritude. Isso se pode observar quando não se tem explicitamente uma tomada
de posição política, uma vez que a República era criticada, mas depois harmonizada com a
ideia de esperança, o que não ocorre em Moraes.
Presta-se homenagem tanto aos republicanos quanto aos monarquistas nas duas
dedicatórias do livro. A própria abolição começa sendo narrada como um problema para a
economia, destacando, inclusive, uma indenização para os donos de escravos e, mais tarde,
sendo exaltada como regeneração social e grande dinamizadora da economia maranhense
que se tornava industrial. Ao mesmo tempo que o texto exalta nomes como Eusébio de
Queiroz, José do Patrocínio e outros abolicionistas, coloca ao lado deles a Princesa Isabel,
destacando-a sempre como “A Redentora”, sem que se possa perceber se se trata de uma
menção irônica ou não.
Ao mesmo tempo em que o texto oferece grande destaque ao fuzilamento de homens
negros por se rebelarem contra a República, acredita no conceito histórico republicano. Em
meio a tudo isso, todas essas fricções, contrastes ou contradições do texto, elementos que
estão na sua própria tessitura, extrapolam para o âmbito estético e se consolidam por meio
da dificuldade de se definir o próprio gênero literário, classificado em sua capa como “novela
maranhense”. Em muitos momentos, o texto se constrói mesmo enquanto conteúdo não
ficcional, tendo sido antes publicado em partes como artigos de jornais.
O título já expressa uma doçura e uma noção de esperança que torna o texto menos
pesado e mais camuflado, embora o autor não se furte em narrar assuntos importantes para
a época. A escolha por essas questões e não por outras, ainda que sejam menos
problemáticas, já sugere um nível de comprometimento com os problemas de sua sociedade

194
Anais

maranhense e brasileira, produzindo uma atitude ética que coloca a escrita de Marques como
possibilidade de reflexão sobre diversas temáticas, dentre elas a questão racial. Isso está
presente nas obras dos dois literatos, porém, enquanto Moraes dá visibilidade à questão
racial, a escrita de Marques mergulha num jogo de visibilidade-invisibilidade das relações
raciais que estão imbricadas em sua condição social e racial. Cada um descobriu a seu modo
como jogar o jogo, ou seja, a identificar as estratégias que lhes permitiram atuar como
literatos/intelectuais na sociedade maranhense nos primórdios da Primeira República.
Enquanto Moraes explicita a sua literatura negra, Marques a guarda nas estruturas
mais profundas de interpretação. Enquanto Moraes usa tanto o jornalismo quanto a
literatura para a denúncia, Marques prefere escondê-la por meio da sensibilidade do molde
literário. Para a época, esse segundo modo era uma literatura possível, mas não menos
literatura afro-brasileira do que a primeira.
Marques e Moraes são duas trajetórias negras e maranhenses que seguiram caminhos
diferentes na luta antirracista.

REFERÊNCIAS

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BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil – 1900. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
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Obras Célebres. Rio de Janeiro: Sociedade Internacional, 1912. v. 20. p. 9737-9754.

CORRÊA, Rossini. Formação social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São


Luís: SIOGE, 1993.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária hoje. In: CECHINEL, André (Org.). O lugar da teoria
literária. Florianópolis: EdUFSC, 2016, p. 83-100.

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195
Anais

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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÈMOND, René (Org.). Por uma história
política. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 231-269.

196
ASTERIX E O
FANTÁSTICO: ENTRE
HISTORIOGRAFIA E
SUBVERSÃO
Rafael Silva FOUTO (UFSC)1

RESUMO

Asterix (Astérix, em francês) é uma série de quadrinhos mundialmente famosa, criada


originalmente em 1959 pela dupla francesa René Goscinny e Albert Uderzo e continuada, a
partir de 2013, por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad. Narra as aventuras de Asterix e seu
companheiro Obelix, membros de uma vila gaulesa de guerreiros indômitos logo após o
período das Guerras Gálicas. Em uma versão imaginária desse momento histórico, a pequena
vila na Gália resiste aos romanos graças à poção mágica criada pelo druida Panoramix, que
dá super força aos gauleses. O contato com vários povos tanto do período em que se passa a
narrativa quanto de épocas posteriores permite às histórias de Asterix mesclar aspectos da
realidade historiográfica com a fantasia, com comentários sociais embasados na comédia
textual e visual. Desse modo, trabalhando a questão das histórias em quadrinhos como
gênero híbrido dentro da literatura (MESKIN, 2009; PIZZINO, 2016), o presente trabalho
analisa o fantástico em Asterix como um elemento de subversão, conforme explanado por
Rosemary Jackson (1981). Por esse viés, as aventuras de Asterix e Obelix contra os romanos
e outras culturas buscam subverter a historiografia com o objetivo de questionar aspectos
contemporâneos como opressão, resistência, colonização e mesmo estratificação econômica,
tendo como base a poção mágica que torna a vila de Asterix o epicentro de transformações
sociais.

Palavras-chave: Histórias em quadrinhos, literatura fantástica, subversão.

1 Mestre em Inglês pela UFSC, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura – UFSC.
Órgão financiador: CAPES. E-mail: rafaelfouto@gmail.com.

197
Anais

ABSTRACT

Asterix (Astérix, in French) is a world-famous comic book series, originally created in 1959
by French duo René Goscinny and Albert Uderzo, and continued from 2013 onwards by Jean-
Yves Ferri and Didier Conrad. It narrates the adventures of Asterix and his companion Obelix,
members of a Gallic village of indomitable warriors shortly after the period of the Gallic
Wars. In an imaginary version of this historic moment, the small village in Gaul resists the
Romans thanks to the magic potion created by the druid Getafix, which gives the Gauls super
strength. Contact with various peoples both from the period in which the narrative takes
place and from later times allows Asterix's stories to mix aspects of historiographical reality
with fantasy, with social commentary based on textual and visual comedy. Thus, by working
on the issue of comics as a hybrid genre within literature (MESKIN, 2009; PIZZINO, 2016),
this work analyzes the fantastic in Asterix as an element of subversion, as explained by
Rosemary Jackson (1981). From this perspective, the adventures of Asterix and Obelix
against the Romans and other cultures seek to subvert historiography in order to question
contemporary aspects such as oppression, resistance, colonization and even economic
stratification, based on the magic potion that makes Asterix’s village the epicenter of social
transformations.

Keywords: Comics, fantasy literature, subversion.

Introdução

Asterix (Astérix, em francês) é talvez um dos quadrinhos mais reconhecido


mundialmente, traduzido para 83 línguas e 29 dialetos, com diversas adaptações para o
cinema e em formato de animações. Criado originalmente pelos franceses René Goscinny e
Albert Uderzo em 1959, as aventuras de Asterix e seu amigo Obelix continuaram a ser
escritas por Uderzo após o falecimento de Goscinny em 1977, sendo atualmente produzidas
por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad, com um total de 39 volumes desde 2021. Passando-se
no ano 50 a.C., em uma pequena aldeia de gauleses, a narrativa ocorre após a conquista
romana na Gália, conforme descrita por Júlio César em De Bello Gallico (“Comentários sobre
a Guerra Gálica”, em latim), sendo ele muitas vezes o antagonista principal nos quadrinhos.
Os gauleses dessa aldeia são chamados de “irredutíveis”, uma vez que continuam a resistir
ao poderio romano, ao contrário do resto da Gália. Com a ajuda da poção mágica feita pelo
druida Panoramix, que concede super força aos habitantes da vila, Asterix e seus amigos são
capazes de derrotar todos os esforços romanos em dominá-los. Por vezes terminam por
zombar tanto de Roma quanto de César, sendo a frase “esses romanos são loucos!” uma piada
recorrente ao longo dos volumes.

198
Anais

Goscinny e Uderzo criam em Asterix uma versão cômica de diversos aspectos


históricos da Antiguidade romana, utilizando-se do mito fundador francês que coloca os
gauleses como os ancestrais da França e de seu espírito de resistência. Dessa perspectiva
histórica retiram também diversos mitos e estereótipos referentes não apenas aos gauleses,
mas às culturas ditas celtas, que aparecem desde a nomenclatura dos personagens a seus
hábitos culturais, expandindo para os diversos grupos com que Asterix e Obelix entram em
contato. Por consequência, uma análise a respeito de Asterix deve considerar também seus
elementos historiográficos, bem como a relação destes com o fantástico e o meio visual das
histórias em quadrinhos.

Fantasia, historiografia e histórias em quadrinhos: subversão e hibridização

A classificação conceitual das histórias em quadrinhos talvez seja, até hoje, uma das
mais difíceis de ser feita. Caminhando no limiar entre literatura e arte visual, os quadrinhos
desenvolvem características que fogem a ambos esses campos, criando uma forma de
narrativa única. Christopher Pizzino (2016) compreende a situação das histórias em
quadrinhos como um meio textual considerado ainda ilegítimo, mesmo havendo a ascensão
atual da noção de graphic novel e dos filmes baseados em quadrinhos de super heróis. Há,
nesse sentido, um entendimento tácito de que histórias em quadrinhos eram originalmente
um meio voltado ao público juvenil e que agora merecem um certo nível de atenção adulta
por sua maturação ocasionada pelo cinema (PIZZINO, 2016). Ainda que não mais
marginalizado no mesmo nível que no passado, muitas vezes se compreende esse meio como
inferior a outras formas de arte, excluindo-o, por exemplo, do campo da literatura. O que isso
gera, conforme Pizzino, é um grau de autoconsciência da ilegitimidade dos quadrinhos na
cultura por parte dos próprios escritores desse meio, algo que Pizzino nomeia de autoclasm,
ou “autorrompimento” (2016), isto é, a necessidade que esses autores de histórias em
quadrinhos encontram de justificar a relevância de seu próprio trabalho dentro do meio,
sendo um problema de status social. No caso de Asterix, o mero estudo de uma história em
quadrinhos de caráter cômico e fantasioso soma novas camadas de ilegitimidade a esse
autoclasm, uma vez que explora mais dois aspectos contra os quais a academia e a sociedade
demonstram resistência: o fantástico e a comédia dentro da literatura, considerados
historicamente formas menores de arte.

199
Anais

Desse modo, torna-se importante a legitimação dos quadrinhos como arte e, mais
importante, sua posição em relação à literatura. Aaron Meskin (2009) sugere classificar as
histórias em quadrinhos como uma forma híbrida de arte, visto que determinados
quadrinhos se aproximam ou se afastam daquilo que se pode compreender como literatura,
mas simultaneamente descendem desta em sua evolução como gênero artístico e textual. A
relação com a imagem, entretanto, vai além do que ocorre na literatura tradicional ou mesmo
no cinema, sendo algo que Scott McCloud (1994) chama de uma dança silenciosa entre o
visível e o invisível, o jogo contido entre os quadros que permitem compreender o todo, e
exigem o esforço visual do leitor para ser compreendido. Essa dança, conforme McCloud, é
única às histórias em quadrinhos; nesse sentido, ele se mostra contra a ideia dos quadrinhos
como híbrido entre arte gráfica e ficção em prosa, porque não há necessidade da presença
de texto para de fato ocorrer a dança visual mencionada. Contudo, o caso dos quadrinhos
que incluem textos não pode ser ignorado, e a hibridização proposta por Meskin não seria
no sentido de uma mera junção dos dois elementos apontados por McCloud, mas sim uma
mistura deles:

Image and text determine narrative content in standard comics by working


together (i.e. by ‘blending’ in some important sense) rather than remaining
distinct as do text and pictures in traditional illustrated literature. Words and
pictures in comics do then typically combine to create a unified, albeit complex,
whole. (MESKIN, 2009, p. 235).2

De fato, no caso específico de Asterix, poder-se-ia falar de uma dupla hibridização, não
apenas estrutural, entre ilustração e texto, mas também temática, entre historiografia
tradicional e fantasia, a relação imagética entre as culturas materiais históricas
representadas na ilustração e seu uso de maneira fantástica, que é misturado ao texto para
criar o efeito cômico. Dessa maneira, Goscinny e Uderzo trabalham simultaneamente com os
achados arqueológicos disponíveis a respeito dos gauleses e com o imaginário popular
desses povos, utilizando-os com o propósito de fazer diversos comentários sociais e culturais
a respeito da modernidade. A identificação de Asterix como obra de fantasia, por sua vez, é

2 “Imagem e texto determinam o conteúdo narrativo em histórias em quadrinhos padrões ao


trabalharem em conjunto (ou seja, “misturando-se” em algum sentido importante) em vez de
permanecerem distintos como o fazem texto e imagens na literatura ilustrada tradicional. Palavras e
imagens nos quadrinhos tipicamente se combinam para criar um todo unificado, embora complexo”.
Tradução nossa.

200
Anais

claramente apontada por John Clute e John Grant no famoso trabalho The Encyclopedia of
Fantasy (1997), especialmente em sua capacidade de satirizar contextos históricos e sociais
por meio do fantástico.
Cabe ressaltar, nessa perspectiva, a necessidade já apontada por Rosemary Jackson
(2009) em localizar a escrita da fantasia em seu contexto social de produção. Uma análise
estruturalista como a de Tzvetan Todorov (1970), por exemplo, não daria conta de
caracterizar os aspectos fantásticos trazidos por uma história em quadrinhos como Asterix,
calcada na observação de especificidades culturais. Assim, a discussão trazida por Todorov
e outros referente a diferenciação entre os conceitos de “fantasia” e o “fantástico” não será
trazida na análise aqui presente: ambos as palavras serão abordadas de maneira
intercambiável, a primeiro como substantivo, e a segunda como seu adjetivo. Ainda
conforme Jackson, a fantasia seria uma literatura do desejo, buscando a experiência daquilo
que é entendido como algo culturalmente ausente ou perdido (JACKSON, 2009). Desse modo,

In expressing desire, fantasy can operate in two ways (according to the


different meanings of ‘express’): it can tell of, manifest or show desire
(expression in the sense of portrayal, representation, manifestation, linguistic
utterance, mention, description), or it can expel desire, when this desire is a
disturbing element which threatens cultural order and continuity (expression
in the sense of pressing out, squeezing, expulsion, getting rid of something by
force). In many cases fantastic literature fulfils both functions at once, for
desire can be ‘expelled’ through having been told of and thus vicariously
experienced by author and reader. In this way fantastic literature points to or
suggests the basis upon which cultural order rests, for it opens up, for a brief
moment, on to disorder, on to illegality, on to that which lies outside the law,
that which is outside dominant value systems. (JACKSON, 2009, p. 2).3

Nesse sentido, a autora reforça que a fantasia não se focaria em um


transcendentalismo, na invenção de mundos não humanos, mas sim na subversão daquilo

3 “Ao expressar o desejo, a fantasia pode operar de duas maneiras (de acordo com os diferentes
significados de 'expressar'): pode contar, manifestar ou mostrar desejo (expressão no sentido de
retrato, representação, manifestação, enunciado linguístico, menção, descrição), ou pode expulsar o
desejo, quando esse desejo é um elemento perturbador que ameaça a ordem e a continuidade cultural
(expressão no sentido de pressionar, espremer, expulsar, livrar-se de algo pela força). Em muitos
casos, a literatura fantástica cumpre ambas as funções ao mesmo tempo, pois o desejo pode ser
‘expulso’ através de ter sido contado e, assim, vicariamente experimentado pelo autor e pelo leitor.
Assim, a literatura fantástica aponta ou sugere a base sobre a qual repousa a ordem cultural, pois se
abre, por um breve momento, à desordem, à ilegalidade, ao que está fora da lei, ao que está fora dos
sistemas dominantes de valor”. Tradução nossa.

201
Anais

que é deste mundo, transformação do familiar em algo aparentemente outro e estranho. Atua
em uma relação simbiótica com o real, uma vez que não pode se desfazer dele, apenas
expressar o desejo por algo diferente desse real, ou expulsar esse desejo de modo a mostrar
aquilo que escapa ou é mal visto pela ordem dominante. Considerando o elemento central
satírico em Asterix, a presente análise seguirá o conceito de fantasia como subversão de
Jackson para investigar as maneiras como Goscinny e Uderzo (e, em menor grau, Uderzo
apenas) expressam o desejo pela desordem e diferença em sua visão de um passado
particularmente próximo da modernidade.

Asterix e a Gália passada: espelhos das ansiedades contemporâneas

A hibridização contida em Asterix inclui também um passado tremendamente


preocupado com o presente em seus anacronismos. Roma e Júlio César são mostrados por
Goscinny e Uderzo como os grandes vilões da pequena vila de gauleses indômitos,
especificamente por causa de seu imperialismo: ao situar as histórias de Asterix por volta do
ano 50 a.C., os autores delimitam a narrativa dentro de um período histórico colonial para
várias regiões da Europa, norte da África e Oriente Médio, como é possível ver no seguinte
exemplo:

Figura 1 – O período histórico de Asterix

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 2022, p. 5.

202
Anais

Vários grandes chefes haviam de fato sido derrotados por Roma, sendo Vercingetorix,
líder de uma aliança de diversas tribos gaulesas, um dos mais famosos. Repete-se o mito dos
gauleses como antepassados dos franceses modernos, já desmistificado por vários
historiadores e acadêmicos, mais famoso entre eles o pesquisador Jean-Louis Bruneaux
(2018), como fruto de uma invenção nacionalista criada no século XIX para prover a nação
francesa de um passado heroico, em que a trágica figura de Vercingetorix é apropriada para
representar o espírito resiliente francês. Entretanto, como pode ser visto na Figura 1,
Goscinny e Uderzo ao mesmo tempo subvertem essa narrativa ao localizarem a aldeia de
gauleses irredutíveis na região da Armórica: conforme John Koch (2006), historicamente
uma província que de fato causou problemas ao controle romano, essa região também é
palco das migrações de povos bretões vindos das Ilhas Britânicas para o continente, razão
pela qual recebe hoje o nome de Bretanha (Bretagne, em francês). A Bretanha é, até hoje, de
uma cultura diferente do resto da França, dita “céltica” em função dos falantes da língua
bretã, aparentada ao idioma galês. Desse modo, a escolha da Armórica como pátria de Asterix
e seus amigos reforça tanto a alteridade quando a celticidade desse grupo em particular de
gauleses, epicentro do fantástico nos quadrinhos. Não apenas isso, essa relação de
parentesco entre todos os grupos que são chamados atualmente de “celtas” é reforçada,
como se pode se ver no volume 8 dos quadrinhos, Asterix entre os Bretões:

Figura 2 – O parentesco celta em Asterix

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1985, p. 6.

Assim, os bretões são chamados de parentes dos gauleses, pressagiando a relação


íntima que haveria entre esses dois povos na Gália romana. Como um híbrido entre literatura
e arte visual, tem-se a piada imagética da frota romana observada por dois bretões que pouco

203
Anais

se intimidam com sua presença, comentando-a de modo positivo, ao mesmo tempo em que,
textualmente, invertem substantivo e adjetivo, referência à gramática do idioma inglês
moderno falado na Grã-Bretanha. Por meio desse aparente anacronismo se desvela
novamente uma subversão da historiografia pelos autores, de modo a posicionar a cultura
moderna da Inglaterra no mesmo espaço geográfico da antiguidade.
Figura central para o desenvolvimento do fantástico em Asterix, a imagem do druida
é talvez o aspecto mais literário incluído por Goscinny e Uderzo. Cercados pelas brumas do
tempo, os druidas se mostram até hoje como uma classe de indivíduos cujas práticas são
largamente desconhecidas, e mesmo durante a Idade Média já haviam se tornado parte do
imaginário literário, especialmente no que tange à mitologia irlandesa (KOCH, 2006). Em
Asterix, a mesma ideia do druida como praticante de magia é ressaltada:

Figura 3 – Asterix e os druidas

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1983a, p. 10

Toda a caracterização apresentada pelos quadrinhos segue a famosa descrição feita


por Plínio, o Velho em sua História Natural (77 d.C.). Os druidas de Asterix, portanto, vestem-
se com robes brancos, e com uma foice dourada colhem visgo de carvalhos, que utilizam para
a fabricação de poções e magias. Como é a única descrição sobrevivente de um ritual
druídico, o relato de Plínio é até hoje considerado essencial para o estudo dessa temática,

204
Anais

sendo influente em todas as representações posteriores a respeito dos druidas. Barry


Cunliffe (2010), por exemplo, considera que a informação provida por esse naturalista
romano é confiável em vários aspectos, e possivelmente baseada em escritos anteriores do
historiador grego Timeu. Goscinny e Uderzo retomam essa mesma descrição de maneira
cômica, com os druidas competindo para subir e colher visgo em uma mesma árvore, e
discutindo suas foices e magias de maneira informal, como se estivessem em uma convenção.
Subvertem, dessa maneira, o próprio fantástico já contido na descrição histórica dos druidas,
banalizando em sua sátira as atitudes dessa suposta casta de magos altivos e respeitáveis.
Ainda assim, como principal propiciador do sobrenatural na narrativa, o druida
Panoramix da vila dos gauleses irredutíveis é capaz de produzir o mais importante veículo
do fantástico em Asterix, a poção mágica que dá super força aos habitantes da vila:

Figura 4 – A poção mágica de Asterix

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 2002, p. 21.

Como mostra a Figura 4, essa poção permite a Asterix arremessar, estapear e surrar
todos os soldados romanos que encontra em seu caminho, ainda que não lhe garanta
invulnerabilidade a eles. Obelix, por outro lado, é capaz de tudo isso por conta própria, já que
caiu em um caldeirão cheio da poção quando era bebê – uma das piadas recorrentes entre
os volumes é o desejo de Obelix em beber a poção, apenas para ser lembrado do que ocorreu
em sua infância e dos efeitos perigosos em bebê-la novamente. Como esperado, esse efeito
mágico abre caminhos para que Asterix e Obelix possam causar destruição e discórdia no
próprio coração de Roma, desmoralizando César e seus esforços para conquistar a diminuta
e indômita vila gaulesa. Essa desmoralização ocorre em todos os níveis, desde a constante
caça a exércitos romanos, descritos quase como uma delicadeza culinária por Obelix, até
mesmo aos jogos de gladiadores no Coliseu de Roma. Este último é infiltrado pela dupla no

205
Anais

volume Asterix Gladiador, e desmoralizado quando conseguem incutir uma consciência de


classe entre os gladiadores e convencê-los em jogar simples jogos de adivinhação entre si em
vez de lutarem publicamente, para o desalento dos romanos. Desse modo, a poção mágica é
também o elemento primário do fantástico como comentário social subversivo nos
quadrinhos, possibilitando não apenas as revoltas da vila gaulesa aos romanos, mas também
outros povos e culturas que Asterix e Obelix encontram em suas aventuras. Cabe ressaltar,
nesse sentido, o impacto da poção no volume Asterix e o Domínio dos Deuses, que envolve
diversas análises sociais relevantes, em especial quanto à questão da exploração trabalhista
e a escravidão, conforme é possível ver na figura seguinte:

Figura 5 – O uso da poção mágica como elemento de subversão em Asterix

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1983b, p. 16

A crítica social fica clara nessa passagem, não menos pela escolha de um escravo
africano para representar o líder dos escravos no acampamento romano, algo certamente
possível e talvez comum na Antiguidade, mas que remete principalmente à colonização
europeia – e francesa – na África e nas Américas e à escravidão durante a era moderna. A
escolha da maneira de representar esse escravo é questionável, uma vez que claramente se
utiliza de estereótipos racistas na construção fenotípica do personagem, algo esperado em
uma obra feita por dois franceses brancos no início dos anos 1970, fato este que requer uma
discussão específica aprofundada, infelizmente inviável na presente análise. Entretanto, a
presença de Asterix e Obelix oferecendo a poção mágica para que o líder dos escravos se
revolte contra seus mestres é uma poderosa mensagem social, provocando a inversão de
poderes dentro do acampamento, representada posteriormente pelos escravos ganhando
poder de negociação e salários pelos seu trabalho. Não se pode evitar verificar que, nessa
negociação entre Asterix e o líder de escravos, talvez se encontre também ansiedades
modernas da sociedade francesa em lidar com seu passado escravocrata, expressando o

206
Anais

desejo, conforme apontado por Jackson (2009), em modificar e reparar por meio do
fantástico essa dívida histórica.
Por fim, um último elemento fantástico que merece menção em Asterix é a presença
do bardo Chatotorix (Assurancetourix, no original francês, e Cacofonix, na tradução
portuguesa). Para esse personagem, Goscinny e Uderzo trabalham novamente com a
subversão de expectativas do fantástico apontada por Jackson (2009), por meio da inversão
do papel do bardo histórico, originalmente um grande mestre da poesia, exaltação e música
nas fontes da Antiguidade a respeito dos gauleses (KOCH, 2006). Em Asterix, todavia,
Chatotorix é desafinado e considerado péssimo em suas canções, com a piada recorrente de
terminar sempre amarrado próximo a uma árvore nos banquetes que concluem cada volume
dos quadrinhos. Contudo, no volume Asterix e os Normandos, Chatotorix demonstra uma
habilidade fantástica própria:

Figura 6 – Chatotorix e a inversão das habilidades do bardo histórico

Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1969, p. 38

Os normandos, buscando descobrir o que é o medo, vêm até a Gália e raptam o


medroso Encucadix, sobrinho do chefe Abracurcix. Asterix e Obelix tentam resgatar o garoto,
mas é Chatotorix quem rouba a cena no volume: suas canções são tão ruins que fazem com
que todos os inimigos sumam de seu caminho, até entornando o leite das vacas que têm o

207
Anais

desprazer de ouvi-lo. Mais importante, suas habilidades fazem com que os normandos
sintam o medo pela primeira vez e fujam também, concluindo assim a missão de resgate. Em
outras ocasiões, como em As 1001 Horas de Asterix (UDERZO, 1987), Chatotorix é capaz até
mesmo de fazer chover com sua música, demonstrando que suas habilidades (ruins) são, de
fato, mágicas. É nessa fusão entre relato histórico dos bardos – em particular em sua
capacidade de satirizar os oponentes, conforme mencionada em fontes medievais insulares
(KOCH, 2006) – e inversão paródica de sua função social que Goscinny e Uderzo subvertem
mais uma vez a realidade.

Considerações finais

Com base no que foi analisado, pôde-se verificar que junto à hibridização de forma
em Asterix, isto é, a união entre literatura e arte visual dos quadrinhos, soma-se uma segunda
hibridização, de caráter narrativo: a fusão entre historiografia e fantasia. A escolha de
gauleses como o foco das histórias não é à toa, uma cultura celta oprimida e apagada
historicamente, possibilitando a comparação com a realidade atual das culturas falantes de
línguas celtas, que ainda vivenciam os efeitos da vida às margens, linguística e
geograficamente, das sociedades europeias, na chamada “franja céltica”. Por meio da
representação dessa pequena vila gaulesa cercada pelo domínio romano por todos os lados,
Goscinny e Uderzo se remetem à figura universal do underdog, o azarão cujas chances de
vencer são ínfimas, e subvertem essa figura de modo a torná-la um constante vencedor,
utilizando simultaneamente o veículo underdog das artes, as histórias em quadrinhos.
Expressam, por meio da poção mágica, o desejo do oprimido por uma força que o permita
não apenas se revoltar contra o opressor, mas derrotá-lo ao ponto de ser deixado livre em
sua própria posição marginal. Dessa maneira, Asterix demonstra a razão pela qual sua
narrativa – e as histórias em quadrinhos em geral – continua a ocupar um espaço especial
nos dias atuais. Mesmo após a morte de seus criadores, Asterix dialoga, através de seus
personagens fantásticos semi-históricos, com os debates sociais contemporâneos que visam
romper e desfazer os sistemas culturais dominantes há séculos. Esses opressores são loucos!

REFERÊNCIAS

BRUNEAUX, Jean-Louis. Les gaulois: vérités et légends. Paris: Perrin, 2018.

208
Anais

CLUTE, John; GRANT, John (orgs.). The encyclopedia of fantasy. London: Orbit, 1997.

CUNLIFFE, Barry. Druids: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.

GOSCINNY, René; UDERZO, Albert. Asterix e os godos. Tradução de Eli Gomes. Rio de
Janeiro: Record, 1983a.

______. Asterix e os normandos. Tradução de Eli Gomes. Rio de Janeiro: Cedibra, 1969.

______. Asterix entre os bretões. Tradução de Jorge Faure Pontual. Rio de Janeiro: Record,
1985.

______. Asterix gladiador. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record, 2002.

______. Asterix o domínio dos deuses. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record,
1983b.

______. Asterix o gaulês. Tradução de Tânia Calmon. Rio de Janeiro: Record, 2022.

JACKSON, Rosemary. Fantasy: the literature of subversion. London and New York: Routledge,
2009.

KOCH, John T. Celtic culture: a historical encyclopedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006.

McCLOUD, Scott. Understanding comics: the invisible art. New York: HarperPerennial, 1994.

MESKIN, Aaron. Comics as literature? British Journal of Aesthetics, Oxford, v. 49, n. 3, p. 219-
239, jul. 2009.

PIZZINO, Christopher. Arresting development: comics at the boundaries of literature. Austin:


University of Texas Press, 2016.

UDERZO, Albert. As 1001 horas de Asterix. Tradução de Gilson D. Koatz. Rio de Janeiro:
Record, 1987.

209
AS VISITAS DO DR. VALDEZ
PELO VIÉS PSICANALÍTICO:
RELAÇÕES ENTRE
LITERATURA E PSICANÁLISE
Nelsilene dos Santos SILVA (UEPB)
Reginaldo Oliveira da SILVA (UEPB)

RESUMO

A literatura é um vasto mundo a ser explorado, as narrativas ultrapassam os fatos expostos


ficcionalizados e transfiguram aquilo que é dito, ou seja, o que se conserva imêmore atrás do
que já foi pronunciado, ouvido ou até mesmo lido. Freud (1908) já articulara que a literatura
é uma escola que instrui a “ler” escritos e almas. Sendo assim, a literatura com suas
representações e significações, tende a contribuir significativamente com a psicanálise, bem
como a psicanálise tem o poder de contribuir com a literatura para elucidar as indagações
elencadas durante uma análise ou até mesmo no proceder à leitura. Encontramos em João
Paulo Borges Coelho uma narrativa construída a partir da história e da memória do povo
moçambicano. No romance “As visitas do Dr. Valdez”, a narrativa apresenta e sugere um
imbricado entrelaçamento entre a literatura e a psicanálise pois o enredo alimenta-se de
memórias e lembranças de um passado presentificado. A memória funciona como mediadora
entre os acontecimentos do passado e do presente, tornando-se, componente importante na
construção dos personagens e de suas histórias. Quanto a sua ficção, João Paulo Borges
Coelho, desenvolve de uma maneira clara as referências históricas, utilizando-as
principalmente como elemento da crítica social. Tais referências aos fatos históricos
permitem ao leitor um vislumbre do Moçambique durante quase um século de invasões,
início e fim de guerras, a memória é o instrumento crucial para ampliar o conhecimento do
leitor a respeito da crítica colonial.

Palavras-chave: Memória, João Paulo Borges Coelho e Freud.

210
Anais

ABSTRACT

Literature is a vast world to be explored, narratives go beyond fictionalized exposed facts


and transfigure what is said, that is, what remains immemorial behind what has already been
pronounced, heard or even read. Freud (1908) had already articulated that literature is a
school that instructs to “read” writings and souls. Therefore, literature with its
representations and meanings tends to contribute significantly to psychoanalysis, as well as
psychoanalysis has the power to contribute to literature to elucidate the questions listed
during an analysis or even in reading. We find in João Paulo Borges Coelho a narrative built
from the history and memory of the Mozambican people. In the novel “The Visits of Dr.
Valdez”, the narrative presents and suggests an imbricated intertwining between literature
and psychoanalysis. For the plot feeds on memories and memories of the past. Memory
works as a mediator between past and present events, thus becoming an important
component in the construction of characters and their stories. As for the text, João Paulo
Borges Coelho clearly develops the historical references, using them mainly as an element of
social criticism. Such references to historical facts allow the reader a glimpse of Mozambique
during almost a century of invasions, beginning and end of wars, memory is the crucial
instrument to expand the reader's knowledge about colonial criticism.

Keywords: Memory, João Paulo Borges Coelho and Freud.

AS VISITAS DO DR. VALDEZ PELO VIÉS PSICANALÍTICO: RELAÇÕES ENTRE


LITERATURA E PSICANÁLISE

João Paulo Borges Coelho, filho de mãe moçambicana e pai português, nascido no
Porto, em 1955, mas que cedo foi viver com os pais em Moçambique, adquirindo a
nacionalidade deste país. Historiador, ficcionista e professor de História Contemporânea de
Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, assim como
também atua na função de professor convidado no Mestrado em História da África da
Universidade de Lisboa.
A literatura é um vasto mundo a ser explorado, as narrativas ultrapassam o explanado
e os fatos expostos transpassam aquilo que é dito, ou seja, o que se conserva imêmore atrás
do que já foi pronunciado, ouvido ou até mesmo lido. Freud (1908) já articulava que a
literatura é uma escola que instrui a “ler” escritos e almas.
A narrativa de um autor é uma elegante quimera sobre sua própria vida, seu relato é
dirigido aos seus leitores na busca de atenção e visibilidade. O escritor está dirigindo sua
narrativa a um “outro”, pois tudo o que ele almeja é ser escutado e percebido.
Sendo assim, a Literatura de ficção com suas representações e significações tende a
contribuir significativamente com a Psicanálise, bem como a psicanálise tem o poder de

211
Anais

contribuir com a literatura para elucidar as indagações elencadas durante uma análise ou
até mesmo durante a leitura.
Portanto, podemos observar uma obra literária como sendo a construção de uma
fantasia, pois retomando a teoria freudiana, Lacan (1986) que aponta três dimensões na
fantasia, fazendo uma relação com os três pontos psíquicos por ele proposto: O real, o
simbólico e o imaginário.
Assim, a literatura pode ser observada como uma espécie de tela de projeção, na qual
o leitor tem acesso ao mundo do escritor e dos personagens, encontrando no exercício da
escrita e da leitura, uma maneira de ligar-se ao outro, estabelecendo um sentido para a
própria vida, utilizando-se da fantasia e do imaginário como ferramenta de defesa mediante
as situações traumáticas vivenciadas e ou observadas.
Abordar a literatura e a psicanálise é desenvolver um olhar diverso, capaz de reger à
apreensão de significados para além do que se apresenta como mera aparência, em favor do
que está implícito nas entrelinhas. Portanto, o escritor se desobriga da obediência ao real, o
que o atribui total liberdade de reflexão e criação.
Logo, a literatura permite a cada indivíduo transformar o mistério, o inútil, a
humilhação e o sofrimento dela proveniente, em criação e reflexão buscando dar sentido ao
caos, para isso a melhor forma de aprimoramento é a escrita literária.
Freud (1909), confere a denominação “cenas originárias” aos acontecimentos reais,
traumatizantes, cuja a lembrança por vezes é elaborada ou camuflada por fantasias.

O aspecto que me escapou na solução da histeria reside na descoberta de


uma fonte diferente, da qual emerge um novo elemento da produção do
inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que (...)
remontam sistematicamente as coisas que as crianças entreouvem em idade
precoce e que só compreendem numa ocasião posterior. (Carta Freud-Fliess
de 06/04/1897 apud Masson, 1986, p. 235).

É notório que Freud busca explorar a fantasia, a qual ele atribui concepção de
“fachadas psíquicas”, sendo assim em seus estudos, aponta que o que desencadeia as
neuroses podem ser elementos imaginários, que provocam o trauma, mesmo que que o
mundo da fantasia esteja situado entre o mundo interior, onde a satisfação se dê por meio
da imaginação, e o mundo exterior, que impõe os fatos reais, é visível que o mundo do sujeito
em neurose é originalmente o mundo do inconsciente.

212
Anais

Conjunturas traumáticas conferem a possibilidade de ver a personagem de uma obra


por meio de sua ótica dos acontecimentos. Segundo Freud:

[...] o termo “traumático” não tem outro sentido senão o sentido econômico.
Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à
mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser
manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em
perturbações permanentes da forma em que essa energia opera. Esta
analogia nos compele a descrever como traumáticas também aquelas
experiências nas quais nossos pacientes neuróticos parecem se haver fixado.
Isto nos proporia uma causa única para o início da neurose. Assim, a neurose
poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da
incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse
excessivamente intenso. (Freud, 1917 [1916-17] a, p.283).

É nesse momento que apreendemos o desaparecimento dos limites entre interno e


externo, de maneira que o trauma apareça ligado àquilo que os personagens das narrativas
trazem como experiência traumáticas e os danos que tais traumas desencadeiam em suas
histórias.
Na obra de João Paulo Borges Coelho, em especial no romance “As visitas do Dr.
Valdez” temos um enredo que nos apresenta um imbricado entrelaçamento entre a literatura
e a psicanálise.
A narrativa mescla fatos históricos e o dia a dia de uma família herdeira de costumes
dos colonizadores, a mesma circula entre o tempo presente, onde encontramos os momentos
de pré-independência e o passado por meio das memórias das personagens duplamente
herdeiras, uma vez dos bens da família e da colonização portuguesa.
Durante a narrativa podemos acompanhar três personagens, as irmãs Sá Caetana, Sá
Amélia e o criado Vicente, todos carregados de traumas e sofrimentos, o cotidiano dessas
três personagens é o ponto para os constantes rebates na narrativa ao passado da família
das irmãs que cresceu tendo, a família de Vicente como criada, passando o fardo de geração
para geração.
A referência aos fatos históricos no texto nos permite um vislumbre dos traumas e
sofrimentos vividos pelo personagem subalternizado Vicente, pois o autor se vale do olhar
colado às personagens, capturando e transmitindo suas angústias, medos e, a culpa que
Vicente sente em ter que permanecer obedecendo ou negando os ensinamentos que seu pai
lhe transmitiu.

213
Anais

No transcorrer da narrativa, que inicia focada na história da família de Sá Caetana e


Sá Amélia, ambas filhas de Ana Bessa e órfãs de pai, começa a tomar novos rumos e voltar os
olhares para a história de Vicente, neto do primeiro criado da família, Vicente tem na figura
do pai Cosmo Paulino, uma representação de lealdade e submissão à família de Ana Bessa.
Quando as irmãs e o criado Vicente se veem obrigados a seguir para a cidade de Beira,
Vicente desenvolve um novo olhar, surgem questionamentos e reflexões acerca dos traumas
vividos, o fato que desencadeia esse novo olhar é o surgimento do Dr. Valdez; médico amigo
das irmãs que já morreu, mas devido ao surto de loucura de Sá Amélia, Sá Caetana convence
Vicente a se fantasiar de Dr. Valdez, antigo amigo da senhora, com o intuito de distraí-la e
acalmá-la.
A personagem Sá Amélia é norteada por um certo ar de alienação, o que ao mesmo
tempo se apresenta como uma justificativa para seus caprichos.

- Por hoje está resolvido – concluiu Sá Caetana tapando a irmã com o lençol,
dando um jeito ao quarto desarrumado para apagar os traços da crise que
de alguma maneira a envergonhavam.
- E amanhã? Amanhã a patroinha vai querer saber quando chega esse doutor
- disse Vicente, intranquilizando a patroa. – Ela lembra-se sempre daquilo
que lhe faz falta.
Vicente conhece bem Sá Amélia, a quem chama patroinha talvez pelos modos
infantis da senhora. Conhece-a melhor que ninguém, de passar as tardes
contando-lhes histórias tal como Nastácia as contava quando ela era
pequena. E quem atravessa a vida ouvindo histórias estás sempre disposto a
acreditar. Saber, além disso, que Sá Amélia se arranja todos os dias com
cuidado, não vá uma visita inesperada apanhá-la descomposta. Custa-lhe vê-
la ao fim da tarde, quando ela invariavelmente conclui que já não virá
ninguém e se deixa apagar numa grande decepção. Sabe que por detrás da
loucura da doença e da idade ela é capaz de usar da lembrança para cobrar
o que lhe devem com a mesma facilidade com que recorre ao esquecimento
para se isentar de responsabilidades. (COELHO, 2016, P. 41-42).

O fragmento acima ilustra os conflitos vividos pelas irmãs, Sá Caetana envergonhada


com a condição da irmã. Sá Amélia, alienada oscilando entre momentos de lucidez e delírios.
Vicente observando-a na busca de identificar como o comportamento de ausência da patroa
serve como uma fuga da realidade e consequentemente das responsabilidades. Ela se utiliza
dos delírios para se isolar em meio as suas memorias.
Para solucionar o problema Vicente encontrou uma solução:

Vicente encarou a patroa com um ar sorrateiro, embora também inseguro.


Já pensou na solução, só não sabe é como ela será recebida.

214
Anais

- Amanhã serei eu o Dr. Valdez! – disse, após curta pausa, esforçando um ar


inocente. Como se a proposta lhe tivesse saído espontânea.
Sá Caetana surpreendeu-se. Depois relutou. Como pode um jovem fazer de
adulto? Como pode um criado fazer de Doutor? Como pode, até um preto
fazer de branco?
[...]
Sá Caetana acabou assim por aceitar. (COELHO, 2016, P. 42)

O jovem ao visitar a senhora vestido de médico, desperta para questionamentos sobre


os traumas aos quais toda a vida viveu, ao está na pele daquele que detém o poder questiona-
se sobre a fragilidade do argumento da superioridade racial.
Nesse momento da narrativa podemos observar como o olhar de Vicente muda a
partir do momento que ele começa a observar o mundo através do olhar do Dr. Valdez.
Quando Vicente partiu com as irmãs para cidade de Beira, seu pai Cosmo Paulino lhe
deixou um último ensinamento:

“’Vais com a Senhora Grande, entendes?’ [...] ‘Vais para fazer tudo o que ela
te mandar, sem exceção. [...] Quando ela te ordenar alguma coisa será a mim
que ordena. E se desobedeceres, serei também eu próprio quem desobedece.
Entendes?’” (COELHO, 2019, p. 29).

Portanto, a submissão ensinada pelo pai, passa a refletir as angústias vividas por
Vicente ao despertar para um novo olhar do mundo. Olhar esse que não mais aceita a
submissão como obrigação, olhar que questiona a legitimidade da argumentação para os
traumas vividos.
Podemos notar que ao mesmo tempo que Vicente vê o médico refletido no espelho, o
médico retornar à ação ao notar Vicente por detrás do olhar.

Horas em que foi constituído um doutor que era o velho doutor que ele via
passar quando criança. [...] Tanto tempo levou a preparar-se porque também
por dentro se quis transformar. Como pensa um branco? Como sente um
branco? Como age um homem branco? Já mascarado, passeou-se na
escuridão do quarto para lá e para cá, procurando entrar na pele do Dr.
Valdez. (COELHO, 2019. p. 49).

No fragmento acima disposto, Vicente está se preparando para encenar o Dr. Valdez
pela primeira vez. Já nesse momento surgem os primeiros questionamentos do personagem
com relação a representação do outro, o colonizador, branco e que representa seu oposto.

215
Anais

Ao se vestir de Dr. Valdez faz com que Vicente perceba que o “branco” é tudo aquilo que a ele
é negado em uma sociedade dominada pelo outro.
Por causa da encenação Vicente poderá pela primeira vez sentar no sofá da casa em
que mora, recebe a autorização para conversar de igual para igual com Sá Amélia e Sá
Caetana.
A máscara utilizada por Vicente confere a ele o poder de se conhecer sentimentos
nunca antes permitidos, como a indignação diante de injustiças praticadas pelas irmãs, pois
enquanto criado ele não tem a permissão para conhecer tal sentimento. No entanto, quando
ele é o médico, seu status social lhe confere o poder de ultrapassar a fronteira de submissão.

Senta-se pela primeira vez naquele sofá que conhece tão bem por tantas
vezes lhe ter sacudido o pó. Sentar-se ali tem um gosto especial que ele não
sabia ainda definir, não só por ser mais macio para o rabo do que a esteira
onde se senta a ouvir futebol português e simangemange nas tardes de
domingo, ou a lata de petróleo que lhe serve de assento ao jantar. Sentar-se
ali no sofá é gozar uma promiscuidade nova com um mundo que tão bem
conhece, mas que até agora lhe estava vedado. (COELHO, 2016, p. 58).

Ao transcorrer da narrativa fica evidente que Vicente vai questionando os traumas e


lugares a ele conferido, enquanto que Sá Amélia dá indícios de que a loucura é uma forma
encontrada por ela para falar o que ela não teria coragem sem esses momentos de demência.
Portanto, toda a composição de uma circunstância traumática é causada por diversos
fatores que muitas das vezes vão além do sujeito, fatores esses, associados ao social.
O que nos remete ao objetivo do tratamento psíquico, pois desde os primórdios da
obra de Freud, que consistiu em trazer a consciência as lembranças recalcadas, Freud conclui
que recordar não é retratar os acontecimentos de uma maneira fiel, pois os mesmos
constituem um material que foi processado e transformado psiquicamente. Sendo assim, as
experiências vividas são ressignificadas no contexto dadas experiências atuais.
Como podemos observar no seguinte fragmento:

O material presente em forma de traços de memória estaria sujeito de


tempos em tempos a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma
retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha
teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se
desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de
indicações [...] os sucessivos registros representam a realização psíquica de
épocas sucessivas da vida (Freud, [1896a] 1974: 254-5).

216
Anais

Portanto, a tese de Freud de retratação, onde ele afirma que somente haverá trauma
psíquico posteriormente ao acontecimento traumático, nos remete para o fato de que
retomar as memórias consistiria na articulação de dois tempos, onde o segundo momento
estaria ressignificando o primeiro.
Assim sendo, aos analisar uma obra literária pelo viés da Psicanálise nos possibilita
adentrar não apenas no mundo exterior dos personagens, mas principalmente em seu
mundo interior e assim ressignificando os traumas vividos.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. O conhecimento do inconsciente e o método psicanalítico. In.:


_______. Primeiros Escritos Filosóficos.

COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr. Valdez. São Paulo: Editoria Kapulana, 2019.

FREUD, S. Obras completas, Vol. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e


outros textos (1914-1916).

FREUD, Sigmund. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996.

FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. 7: O chiste e sua relação com o inconsciente
(1905).

217
HISTÓRIA LITERÁRIA,
MODERNISMOS E A
TEMÁTICA DO INSÓLITO
Joachin de Melo AZEVEDO NETO (UPE/Campus Petrolina)1

RESUMO

A noção do modernismo é concebida enquanto movimento artístico que produziu


manifestações estéticas a partir do processo de modernização das sociedades industriais. Já
a ideia de história literária consiste na constatação de que se trata de um campo teórico e
metodológico que se apresenta como uma alternativa mais consistente empiricamente do
que a proposta generalizante da história da literatura. Este trabalho tem como objetivo
lançar reflexões, de maneira ensaística, acerca de determinadas representações modernistas
do insólito. A literatura modernista é uma leitura não apenas do belo, mas também do medo,
do horror, das desconfianças e do desencanto moderno conforme autores canônicos como
Dostoievsky (1821-1881), Kafka (1883-1924) e até mesmo para Freud (1856-1939): pai da
Psicanálise. O entrelaçamento, portanto, de ficções modernistas com a temática do insólito
visou causar estranhamentos e questionamentos diante de hábitos culturais presentes no
processo de formação das sociedades industriais.

Palavras-chave: História Literária, Modernismo, Insólito.

ABSTRACT

The notion of modernism is conceived as an artistic movement that produced aesthetic


manifestations from the process of modernization of industrial societies. The idea of literary

1 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor adjunto
de História Contemporânea e Historiografia e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa de
Política e História Literária – GEPPHIL na Universidade de Pernambuco – UPE/Campus Petrolina.
Contato: joachin.azevedo@upe.br

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history, on the other hand, consists in the realization that it is a theoretical and
methodological field that presents itself as a more empirically consistent alternative than the
generalizing proposal of the history of literature. This work aims to launch reflections, in an
essayistic way, about certain modernist representations of the unusual. Modernist literature
is a reading not only of the beautiful, but also of fear, horror, distrust and modern
disenchantment according to canonical authors such as Dostoievsky (1821-1881), Kafka
(1883-1924) and even for Freud (1856-1881). 1939): father of psychoanalysis. The
intertwining, therefore, of modernist fictions with the theme of the unusual aimed to cause
estrangement and questioning in the face of cultural habits present in the process of
formation of industrial societies.

KEYWORDS: Literary History, Modernism, Unusual.

Este trabalho tem como objetivo lançar reflexões, de maneira ensaística, acerca de
determinadas representações modernistas do insólito. Em termos de história literária, a
literatura modernista é uma leitura não apenas do belo, mas também do medo, do horror,
das desconfianças e do desencanto com as sociedades industriais. Esse é o mote principal de
autores canônicos como Freud (1856-1939): pai da Psicanálise, Dostoievsky (1821-1881) e
Kafka (1883-1924). Discussões e representações feitas por esses autores serão tratadas
como chaves de leitura para uma melhor compreensão da condição humana no mundo
contemporâneo. O entrelaçamento, portanto, de ficções modernistas com a temática do
insólito visou causar estranhamentos e questionamentos diante de hábitos culturais
presentes no processo de implantação da razão moderna.
No ensaio Teoria da história literária, traduzido para português e publicado no Brasil
em 1965, o crítico literário estadunidense Howard M. Jones elenca uma série de
preocupações em relação à legitimação de um campo de estudos que eclodia em meio ao
advento da interdisciplinaridade nas ciências humanas. Segundo H. M. Jones, a história
literária enfrentava, na época, desafios morais e estéticos. O primeiro deles deve-se ao fato
de que “salvo nos seminários universitários, o animal humano toma a página impressa
calmamente e não como um problema de casuística” (JONES, 1965, p. 16). Não querendo
adentrar aqui na labiríntica discussão sobre a relação entre leitor e escrita ou sobre uma
suposta hierarquia entre leitura contemplativa e a analítica, endosso a constatação, ainda
bastante atual, do autor de que o outro grande impasse desse campo de pesquisa diz respeito
à pluralidade e as dissensões em torno tanto do conceito de “história”, bem como o de
“literatura”.
As provocações de H. M. Jones – embora possuam fortes limitações patrióticas, porque
legitimam a oficialização nacionalista de uma história literária estadunidense – ainda estão

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Anais

revestidas de certa atualidade ao colocar em pauta as contradições que revestem o conceito


de história literária e ao clamarem para que a atividade literária não seja reduzida, por
historiadores e críticos, a uma espécie de espelho do mundo vivido ou de mero reflexo das
relações humanas. A saída proposta pelo citado autor foi a de considerar que, ao se construir
uma reflexão sobre uma determinada história literária partindo de recortes temáticos bem
delimitados, os estudiosos da escrita precisam dominar e equilibrar as tensões entre os
procedimentos metodológicos que embasam interpretações criteriosas e cognitivas dos
textos com a constatação de que as artes possuem suas próprias dinâmicas estéticas. Essa
proposta nos conduz a perspectiva, ainda válida, dentre outras, de que trabalhar com o
campo da história literária é considerar a “literatura como experiência comunizada” (Idem,
p. 24).
Em outros termos, isso significa levar em conta as implicações sociais, políticas e
culturais dos textos artísticos precisam ser sempre levadas em conta pelos estudiosos dessa
ampla área de investigações. O processo de interpretação aprofundada da ficção modernista
pode e deve ser enriquecido a partir de procedimentos comparativos que busquem colocar
a literatura em constante diálogo com artigos de opinião, correspondências, imagens
diversas, periódicos, magazines, diários, notas e até mesmo catálogos de bibliotecas. Dessa
forma, penso a história literária a partir da verificação de que se trata de um campo teórico
e metodológico que se apresenta como uma alternativa mais consistente empiricamente do
que a genérica e inalcançável ideia de uma história da literatura.
Segundo os críticos literários James McFarlane e Malcolm Bradbury, ao prefaciarem
a obra Modernismo: guia geral (1890-1930), o modernismo enquanto movimento literário foi
bastante expressivo e abarcou manifestações políticas, teorias e grupos sociais, ocorrendo
em diferentes lugares e momentos. Alguns manifestos presentes nessa fase eram feitos
através de redes de intelectuais, que tinham em comum o gosto pela discussão de teorias e
correntes estéticas, passando de um país a outro e também por meio de pequenos grupos
ativistas formados por produtores culturais. O modernismo enquanto expressão estética e
experiência histórica representa, a partir de fins do século XIX, na Europa, um novo olhar
para a arte, bem como suas funções (McFARLANE; BRADBURY, 1989, p. 19).
Na mesma obra, John Fletcher e M. Bradbury, esclarecem que a noção de modernismo
é concebida enquanto movimento artístico que produziu manifestações estéticas a partir do
processo de modernização das sociedades industriais. Nesse sentido, a prosa modernista
questiona não apenas os limites da representação da realidade, mas também propõe

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rupturas ou mesmo dilatações em relação a noção de mundo vivido e real. Nesse sentido, o
romance modernista agrega, para conseguir atender a essa complexa proposta, uma série de
considerações em torno da composição e criatividade artística; representações da
intimidade psicológica dos indivíduos; um desconfortável ou fatídico mal-estar niilista em
relação aos padrões burgueses de comportamento e, em alguns casos, a radical defesa das
liberdades narrativas.
Esses postulados permitem aqui compreender temáticas frequentes nas obras de
cânones modernistas como o misticismo de cunho simbolista, a autoconsciência literária dos
autores, o futurismo, a paródia, o pastiche, a ironia, a introversão, o mitológico, o atemporal
e, sobretudo, o compromisso com a destruição estética dos ideais de beleza que perpassam
o classicismo greco-latino e de engajamento político no caso do realismo. Daí a potência
vanguardista, por exemplo, de obras como Em busca do tempo perdido (1913-27), de Marcel
Proust; O homem sem qualidades (1930-43), de Musil; Ulysses (1914-21), de James Joyce e
Mrs. Dalloway (1925), de Virgínia Woolf, na medida em que se tratam de romances nos quais,
de modo resumido, pode-se constatar que “a literatura é um ordenamento posterior aos
desencontros caóticos da vida” (FLETCHER; BRADBURY, In: Idem, p. 335).
Ainda de acordo com Fletcher e Bradbury, “o romance modernista”, enquanto
instrumento feito para pensar e interpretar as sociedades contemporâneas, explorou “a
confusão da vida humana, entre a Poesia e a História, entre o símbolo metamórfico e seu
lugar no tempo desordenado” (Idem, p. 336). Daí a supervalorização feita por diversos
artistas modernistas em relação a autonomia do campo artístico, pois essa tendência estética
tem sérias dúvidas não só a respeito do que se pode entender enquanto realidade, mas
também no tocante aos discursos que orientam a atividade criativa apenas para a finalidade
de se adequar a percepção dominante tanto de ficção, bem como do verdadeiro.
Em se tratando da ideia de insólito, o criador da Psicanálise, Sigmund Freud (1856-
1939), forneceu relevantes considerações, inclusive, em diálogo com a história literária. Na
antologia Escritos sobre literatura, traduzida para português em 2014, o autor interpretou a
dimensão simbólica de temáticas como o parricídio e o insólito presentes nas obras de
escritores como Ernest T. Hoffman e Dostoievsky. Para Freud, a literatura é uma leitura não
apenas do belo, mas do medo e do horror. Sobre o conceito de insólito ou estranho
(unheimlich), sugere que a palavra é o contrário de familiar (heimish). Para o autor, o
conceito dá conta do estranhamento que acontece quando algo novo e não familiar é inserido
em uma rotina.

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Anais

O insólito, portanto, é tudo aquilo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas
que veio à tona. Analisa esse tema de investigação a narrativa “O homem da areia”, da obra
Contos noturnos, do escritor de literatura fantástica Ernest Hoffmann. Qual o motivo do
Homem de areia, que arranca os olhos das crianças? O protagonista Natanael sempre
relembra, mesmo já adulto, quando teve contato com esse mito folclórico ao longo de sua
infância. Não consegue esquecer também a misteriosa morte do pai.
A mãe assustava o pequeno Natanael e seus irmãos para não saírem das suas camas:
se saíssem, seriam vítimas da crueldade do homem da areia. Natanael decide esperar pelo
Homem da área para se certificar de sua aparência horrenda, mesmo com muito medo. O
efeito de estranhamento no conto é que o Homem da areia é o Dr. Coppelius, advogado da
família e ao mesmo tempo seu pai que havia sido dado como falecido. A partir daí o enredo
não deixa claro o que é realidade ou a imaginação da criança. Freud discorre sobre o
seguinte: o medo de ferir os olhos acompanha os indivíduos durante toda a vida. O medo de
se cegar é um substituto simbólico para o medo da castração:

Portanto, também aqui o fator infantil é de fácil comprovação; mas deve-se


notar que, no caso do Homem de Areia, trata-se do despertar de um antigo
medo infantil (...). A fonte do sentimento estranho não seria aqui um medo
infantil, mas um desejo infantil ou mesmo uma crença infantil. Parece uma
contradição; é bem possível que seja apenas uma variante, que possa vir a
favorecer nossa compreensão. E. T. A. Hoffman é o mestre inigualável do
estranho na literatura. O seu romance Elixir do Diabo apresenta todo um
feixe de motivos aos quais se poderia atribuir o efeito estranho da história.
(FREUD, 2014, p. 52-3).

A fonte que causa estranhamento nesse conto não é um medo infantil, mas um desejo
infantil que é constantemente reprimido pelos adultos que o cercam, seja a mãe, o advogado
da família ou até mesmo pela memória de seu falecido pai. O elixir do diabo, novela de autoria
do escritor citado, trata de uma sociedade de sósias nos quais os indivíduos são submetidos
a um tratamento que os deixam iguais uns aos outros, fisicamente, mentalmente, chegando
inclusive a haver comunicação telepática entre indivíduo e sósia. Essa sociedade entra em
crise após, por meio do uso do elixir, os sósias se tornarem imagens aterrorizantes do eu
originário. Para Freud, o romance trata de neuroses obsessivas. A sociedade descrita no livro
de Hoffmann é constituída de indivíduos que vivem mais no universo dos pensamentos do
que na vida material e querem, portanto, driblar a morte, alcançar a eternidade. É um

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Anais

romance sobre superestimação narcisista: um traço típico da sociedade de consumo


contemporânea.
Nesse sentido, a literatura russa também chamou a atenção de Freud por causa da
densidade com a qual representou a conturbada condição psicológica moderna. Ao explorar,
com uma ousadia bastante modernista, as implicações psicanalíticas da ficção de
Dostoievsky, deduziu que o escritor russo tinha personalidades distintas como as de
intelectual, neurótico, ético e pecador. Considerou a obra Os irmãos Karamazov (1879) uma
das mais altas realizações da literatura mundial. Na leitura de Freud, Dostoievsky lembrava
os bárbaros que durante o grande processo de migração territorial dos povos antigos,
matavam e faziam disso uma penitência indireta.
A preocupação com a moralidade é um traço muito peculiar do comportamento russo
e o resultado do embate travado por Dostoievski contra a hipocrisia das elites de seu tempo
não foi nada glorioso, na medida em que o literato russo acabou “por se submeter tanto à
autoridade mundana como à espiritual e, pela veneração ao tzar e ao deus dos cristãos, ele
retrocede a um tacanho nacionalismo russo” (Idem, p. 10) e, de acordo com os lamentos de
Freud, “Dostoievsky deixou de ser um mestre e um libertador dos homens, indo se associar
a seus verdugos; o futuro cultural da humanidade pouco terá devido a ele” (Idem, ibid.).
Outro ponto que o psicanalista considerou importante esclarecer foi a impertinência de
julgamentos negativos da literatura desse escritor eslavo com base na destacada empatia
por toda sorte de criminosos diluída em várias de suas obras.
Para Freud, a imensa generosidade e amor pela condição humana de Dostoievsky
dividia espaço com um estilo artístico que agregou também uma forte pulsão destrutiva. Sua
preferência por personagens brutais, assassinos e egoístas pode ter sido uma sublimação e
não a manifestação de uma suposta inclinação do autor russo para o mundo do crime. Sua
pulsão de destruição foi orientada para dentro de si e não para fora, como fazem criminosos
comuns. Assim, o psicanalista detectou também estruturas masoquistas e sádicas presentes
nas obras e vida privada do escritor.
Embora já exista um amplo debate acadêmico que aponta para as lacunas que podem
ser suscitadas no método de interpretação que relaciona a personalidade do escritor com
seus textos ficcionais, em termos de história literária esse procedimento, desde que seja
sempre considerado a liberdade criativa do fazer artístico, pode ainda render reflexões
instigantes. Desde que tomadas as devidas precauções teóricas, evidentemente, afim de
evitar se cair em determinismos.

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Notas do subterrâneo, de Dostoievsky, obra publicada originalmente na Rússia em


1864, será analisada aqui enquanto marco ficcional que se vale de uma estética insólita para
oferecer um prognóstico da modernidade. Longe de almejar fazer um aprofundamento de
uma pretensa análise psicológica do homem dos subterrâneos, interessa aqui, para este
começo de conversa, compreender que esse polêmico personagem, longe de espelhar o
modo através do qual seu criador enxergava o mundo, é na verdade um sintoma – ou até
mesmo um paradigma – de sua época. Antes de detalhar melhor a vida desse personagem, o
autor russo coloca os leitores diante das amarguradas ruminações de pensamentos do
homem do subterrâneo por meio das quais se pode ter uma ideia do seu niilismo geracional:

Sim, no século XIX, um homem inteligente deve, está moralmente obrigado a


ser, em essência, uma criatura sem caráter; o homem que tem caráter, o
homem de ação, é fundamentalmente uma criatura limitada. Essa é minha
convicção de quarenta anos. Tenho agora quarenta anos, e quarenta anos são
toda uma vida, são a mais irremediável velhice. Viver mais de quarenta anos
é impróprio, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? – Respondei,
sincera e honestamente. Dir-vos-ei quem: os idiotas e os inúteis.
(DOSTOIEVSKY, 1989, p. 11).

A ironia ferina e, muitas vezes, autodepreciativa; a sensibilidade doentia; a ausência


de prazer em sua existência e a supervalorização de ciúmes, crueldade e vários formas de
ódios cotidianos expressadas por esse personagem realmente condiz com um momento
biográfico no qual Dostoievsky atravessava uma crise marcada pelas rondas constantes da
polícia do Tzar em torno de seu trabalho; dívidas de diversas ordens; cobranças financeiras
feitas por familiares; vários traumas e ressentimentos relativos aos dez anos de cárcere
político, por ter se envolvido com um círculo de militantes liberais na juventude, que
cumpriu na Sibéria. Porém, Notas do subterrâneo é um texto que continua tendo bastante a
dizer em torno da desencantada relação entre intelectuais e modernidade. Sobretudo,
quando se trata da intelligentsia que habita sociedades inseridas no chamado capitalismo
periférico.
Nesse sentido, o crítico Malcolm Bradbury, em O mundo moderno: dez grandes
escritores (1989), sugere um arguto roteiro de leitura para uma melhor compreensão das
conotações vanguardistas de Notas do subterrâneo ao considerar que esse homem
profundamente ofendido e humilhado é um icônico herói anti-moderno:

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De seu esconderijo num canto, o homem do subterrâneo viria a exercer uma


influência duradoura sobre a literatura do modernismo. Nesse personagem
sem caráter nascia uma nova figura, e sua voz confessional e irônica,
autoconsciente e desconfiada em relação a sua própria autenticidade seria
ouvida muitas vezes nas páginas das obras de ficção modernas. (...)
Dostoievsky quis revelar as contradições e as crises de sua época. Mas a nova
era que se seguiu viria a reconhecer constantemente neles, em seus conflitos,
dilemas e ódios explosivos, algo que se tornaria um componente
fundamental da literatura da modernidade. (BRADBURY, 1989, p. 42).

A leitura de uma modernidade, marcada pela ascensão de potências industriais e seus


ditames, mesmo ainda estando em sua forma embrionária, mas que já era percebida como
angustiante, entediante e opressora, condiz com as sensibilidades modernistas que
buscaram dessacralizar os próprios pilares da modernidade. Ou seja, o ceticismo desse
personagem diante de ideias românticas, revolucionárias e fraternas, além da descrição de
uma cidade como São Petersburgo enquanto urbe insalubre, promíscua e marcada por uma
cultura política autoritária, fazem das Notas do subterrâneo um dos mais vívidos
testemunhos de uma consciência, mesmo que seja ficcional, bastante potente de
contradições morais que podem ser encontradas não só na Rússia Tzarista, mas em muitas
culturas que conciliaram modernidade e relações sociais baseadas em servidão.
Esses postulados, por exemplo, forneceram elementos suficientes para embasar um
criterioso estudo histórico e literário intitulado Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade (1986), de autoria do filósofo Marshall Berman. O próprio título
do trabalho, que parte de uma metáfora de Karl Marx (1818-1883) para caracterizar a
volatilidade dos valores, no chamado mundo burguês, indica que o autor buscou tratar de
certas experiências culturais que estão na contramão de uma definição do moderno a partir
de ênfases nas ideias de cálculo de interesse ou de que esse período foi estabelecido por
forças puramente racionais. Chama a atenção de Berman, portanto, formas dialéticas do
desenvolvimento europeu que mesclam tragédia humana e progresso; as ruas das
metrópoles industriais transformadas em fonte de inspiração artística e o chamado
modernismo do subdesenvolvimento.
São Petersburgo, “a mais clara expressão da modernidade no solo da Rússia”
(BERMAN, 1986, p. 170), erguida em meio a um pântano de difícil acesso, o que implicou em
inúmeras perdas humanas, foi idealizada pelo Tzar Pedro I, em 1703, para ser um tipo de
vitrine do luxo e distinção ostentados pela aristocracia russa. É nesse ambiente
profundamente conservador que o modernismo russo, desde seus primórdios, apresenta-se
vinculado a uma consciência bastante crítica que procurou trazer para a literatura a voz de

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Anais

suburbanos, estudantes pobres, burocratas de baixo escalão no serviço público, presos


políticos, místicos, criminosos comuns e outros tantos sujeitos marginalizados pela então
ordem feudal dominante.
Embora seja um personagem bastante atormentado, sempre temendo ou lamentando
as consequências de suas ações, o Homem do subterrâneo, de Dostoievsky, aspira por ter sua
dignidade reconhecida na cidade em que vive. Esse anseio é bem ilustrado pela passagem na
qual, após anos se sentindo humilhado por ter de ceder espaço para um oficial militar nas
ruas, para não haver um choque de ombros, entre subalterno e um alto funcionário público
em via pública, o protagonista do romance decide, de propósito, esbarrar nesse superior
hierárquico em meio a uma Avenida Nevsky já tomada por reformas urbanas:

Mas Dostoievsky é, aí, especialmente sensível ao mostrar com as nuanças da


degradação emergem não das anormalidades de seu herói, mas da estrutura
e operação normal da vida de Petersburgo. O Projeto Nevski é um moderno
espaço público que oferece uma fascinante promessa de liberdade; e, no
momento, para o funcionário pobre da rua, as configurações de casta da
Rússia feudal são mais rígidas e humilhantes do que nunca. (Idem, p. 213-
14).

Em linhas gerais, é neste pequeno gesto cotidiano de insubmissão – meticulosamente


planejado – que reside a redenção do Homem do subterrâneo. De pária egoísta e covarde,
esse indivíduo “agiu decisivamente para mudar a sua vida” (Idem, p. 217). Mesmo que a
afronta ao poder, personificado no monólogo por um arrogante oficial militar, nunca mais se
repita, essa atitude “dramatiza tão poderosamente a luta pelos direitos humanos – por
igualdade, dignidade e reconhecimento – que Dostoievsky nunca poderia ter se
transformado num escritor reacionário” (Idem, ibid.). O próprio Marshall Berman salienta
que por mais que tenha se reconciliado com a igreja ortodoxa russa e Nicolau I, vários
estudantes choraram copiosamente durante o enterro do escritor russo em 1881. Evidência,
portanto, de que o modernismo, muitas vezes insólito, de Dostoievsky é portador de
vigorosas sementes da rebeldia.
Em se tratando do potencial da ficção do escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883-
1924) para a exploração da temática do insólito enquanto promissor filão de estudos
voltados para a história literária, optamos aqui por um diálogo entre A Metamorfose,
romance-conto publicado em 1915, trechos do diário do autor escritos entre 1909 e 1923,
bem como amostras da fortuna crítica já existente em torno da literatura kafkiana.

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Anais

Basicamente, a prosa de Kafka brotou de referenciais caóticos, de um testemunho pessimista


e profético em torno da percepção da modernidade e do capitalismo burocrático enquanto
alicerces de selvas de pedra nas quais todos travam uma luta solitária e egocêntrica contra
todos. Personagens kafkianos constatam a brutalidade da ausência de sentido do mundo,
mas são condenadas a compactuar até serem triturados pelas engrenagens que fazem
funcionar uma irracional e opressora ordem dominante.
Os diários de Kafka foram reunidos e publicados, pela primeira vez, em 1937, a partir
de seleção feita por Max Brod, amigo pessoal do escritor, com o título Tagebücher und Briefe
[Diários e cartas] pela editora Heinrich Mercy Sohn. A versão completa, também organizada
por M. Brod, intitulada Tagebücher 1910-1923 [Diários 1910-1923], só veio a público em
1951. A edição traduzida para português, utilizada aqui, partiu do minucioso trabalho do
tradutor Sergio Tellaroli que teve contato com os doze cadernos originais sem pauta,
contendo de vinte a cinquenta páginas, além de nove folhas soltas, nos quais Kafka mesclou
experimentações literárias, crítica cultural, observações do cotidiano e reflexões
existenciais. Trata-se de uma excelente fonte de informações acerca do fazer literário do
escritor na medida em que, justamente, não foi feito com o intuito de vir a público.
Considerados, hoje em dia, marcos fundamentais do modernismo, esses textos
intimistas possuem interessantes revelações acerca das motivações literárias de Kafka, que
a partir de suas próprias convicções, registradas em outubro de 1921, será considerado aqui
enquanto esteta do desespero:

Ainda que meus recursos sejam miseráveis, “sob circunstâncias idênticas”


até mesmo os mais miseráveis deste mundo (sobretudo considerando-se a
fraqueza da vontade), cabe-me, com eles, e do meu ponto de vista, buscar
alcançar o melhor; é um sofisma vazio dizer que, com esses recursos, eu só
poderia alcançar uma coisa, o desespero, e que este seria, portanto, o melhor.
(KAFKA, 2021, p. 636).

Linhas escritas no auge de turbulências pessoais que afetavam a vida privada e a


saúde do autor, morto precocemente por tuberculose, que apontam para o seguinte
questionamento: o que significa extrair o melhor desse desespero? De fato, implica em
transformá-lo em inspiração artística. Essa condição pessoal angustiante forneceu as lentes
necessárias para que Kafka enxergasse, com desencanto, a crueldade por trás de uma
modernidade sedimentada teoricamente em ideais libertários, mas que na prática promoveu

227
Anais

uma padronização e controle bestial da condição humana que foi radicalizada mais ainda
durante a ascensão dos Estados totalitários na Europa.
A metamorfose, obra de ficção fantástica, com fortes elementos surrealistas, publicada
originalmente em 1915, é iniciada da seguinte maneira: “Numa manhã, ao despertar de
sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco
inseto” (KAFKA, 2020, p. 02). Quer dizer, no universo ficcional de Kafka, o simples ato de
despertar em um mundo industrial de tendências opressoras é bastante perigoso e insólito.
A desconfiança radical dos pilares institucionais da ordem burguesa, como a família, a
atividade policial e os dogmas religiosos, fizeram de Franz Kafka um escritor maldito cuja
obra foi considerada proibida em países da Europa oriental mesmo sob ocupação de um dito
Estado marxista como no caso do russo. Apesar da censura, a atualidade profética dessa
literatura distópica fez com que Kafka seja “provavelmente o escritor deste século que mais
cativa a imaginação moderna” (BRADBURY, 1989, p. 217).
Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guatarri, em Kafka: para uma literatura menor
(2003), propõem uma leitura da obra do escritor tcheco distanciada das perspectivas mais
comuns, focadas nas questões do trágico e da culpabilidade e mais enfocada na temática da
alegria e política. O fato dessa ficção com elementos surrealistas que conferem ao mundo
burguês um sistema pessimista de coordenadas ter sido escrita por um judeu
desterritorializado em solo europeu, tendo optado em representar aspectos desumanos da
lei; a violência da autoridade patriarcal e a barbárie enquanto elemento fundante da cultura
industrial, a tornam uma literatura menor no sentido de buscar dar voz para minorias; para
os desajustados. Nesse sentido, o modernismo de Kafka é considerado politicamente
revolucionário por esses comentadores (Cf. DELEUZE & GUATARRI, 2003).
Esta breve e ensaística reflexão pretendeu fornecer elementos imprescindíveis para
a exploração da temática do insólito a partir de cânones do modernismo que ocupam lugar
de destaque artístico na chamada história literária. Conforme pode-se deduzir, o uso de
recursos fictícios que visam questionar poeticamente a padronização de comportamentos, a
subserviência ou complacência diante de ordens sociais e políticas autoritárias não invalida
a literatura modernista enquanto testemunho histórico. Pelo contrário. Escritores como
Dostoievsky e Kafka com suas terríveis visões sobre as humilhações enfrentadas pelas
pessoas comuns, impotências cotidianas diante dos abusos de poder cometidos pela ordem
dominante e a frágil distinção entre autoridades e criminosos forneceram valiosas
representações simbólicas da psicologia do mundo contemporâneo.

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Anais

REFERÊNCIAS:

BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.
Carlos Felipe Moisés {et. al.}. São Paulo. Companhia de Letras, 1986.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho.
Lisboa: Alvim & Assírio, 2003.

DOSTOIEVSKY, Fiodor. Notas do Subterrâneo. Trad. Moacir Castro. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.

FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Organização de Iuri Pereira. São. Paulo: Hedra,
2014.

JONES, Howard M. Teoria da História Literária. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Editora
Lidador, 1965.

KAFKA, Franz. Diários (1909-1923). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Todavia, 2021.

____. A metamorfose. Belém/PA: UNAMA/NEAD, 2020.

McFARLANE, James; BRADBURY, Malcolm. Modernismo: Guia Geral (1890-1930). Trad.


Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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GUIMARÃES ROSA,
MACHADO DE ASSIS E
MARCOS FÁBIO BELO
MATOS E AS MEMÓRIAS
AMOROSAS UNIVERSAIS
Evandro Abreu Figueiredo FILHO (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2

RESUMO

Este trabalho assevera sobre as memórias amorosas universais e será embasado pelas obras
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Dom Casmurro, de Machado de Assis; e Crônicas
de Menino, do escritor maranhense Marcos Fábio Belo Matos. Destarte, o texto aborda
dilemas sentimentais que Riobaldo vivenciava na sua relação com Diadorim, na primeira
obra, e da obsessão, do ciúme, da amargura, dentre outros aspectos, que Bentinho sentia no
seu relacionamento com Capitu no segundo romance. São dilemas subjetivos que
ultrapassam o regional para se inscreverem como sentimentos humanos universais. As
análises feitas, nas obras mencionadas acima, serão inter-relacionadas com passagens da
narrativa Crônicas de Menino referentes aos casos amorosos vividos pelo autor/narrador na
sua infância/adolescência, tendo por alicerce as três dimensões do amor: Eros, Philia e
Ágape. Assim, busca-se a visão de como essas memórias amorosas são indispensáveis para a
composição mais ampla de percepções memorialísticas universais em Crônicas de Menino.
Nessa perspectiva, o escopo deste trabalho foi investigar as memórias amorosas universais
em Grande Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino. Dessarte, o artigo teve
como questão norteadora: quais as memórias amorosas universais encontradas em Grande

1 Mestre em Letras com ênfase em Teoria Literária pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
E-mail: evandrofilhoteo@yahoo.com.br
2 Doutora em Ciência da Literatura pela UEMA/UFRJ. E-mail: sogemorais@gmail.com

230
Anais

Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino? Para a elaboração deste constructo,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, tendo por base textos de teóricos, como: Assis (2016),
Rosa (2001), Fromm (2015) e Matos (2005). Assim, percebeu-se que o Amor e outros
sentimentos humanos são construídos pelos autores Rosa, Assis e Marcos Fábio a partir do
Regional, mas que transcendem para se inserirem no Universal.

Palavras-Chave: Memórias amorosas universais. Literatura maranhense. Dimensões do


amor.

ABSTRACT

The present study assert about the universal loving memories and it is based on the works
of Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa; Dom Casmurro, Machado de Assis; and Crônicas
de Menino, of the maranhense writer Marcos Fábio Belo Matos. Thus, the article approches
sentimental dilemmas, in the relationship between Riobaldo and Diadorim, in the first work,
of the obssession, the jelous, the bitterness, among other aspects, that Bentinho felt in his
relationship with Capitu in the second romance. These subjective dilemmas overtake the
regional in order to subscribe as universal humans feelings. The analysis done, on the woks
mentioned above, will be inter-related with narrative passages of Crônicas de Menino
regarding love affair experienced by the author/narrator in his childhood/adolescence,
having as foundation the three dimensions of love: Eros, Philia and Ágape.Therefore, we
search the view how those memories of love are indispensable to compose a wide universal
memorialistic perceptions in Crônicas de Menino. In this way, the article had as guiding
question: which universal loving memories were founded in Grande Sertão: Veredas, Dom
Casmurro and Crônicas de Menino? The elaboration of this construct, we have used a
bibliographic research, based on theoretical text, such as: Assis (2016), Rosa (2001), Fromm
(2015) and Matos (2005). As a result, we realized that The Love and other humans feelings
are construtecd by the authors Rosa, Assis and Marcos Fábio from regional, but they
transcend to be inserted in the Universal.

Keywords: Universal Loving Memories. Maranhense Literature. Dimesion of Love.

Considerações Iniciais

O propósito deste artigo, no que se refere aos dilemas sentimentais, as memórias


amorosas universais e as dimensões do amor em Grande Sertão: Veredas (2001), Dom
Casmurro (2016) e, consequentemente, na analogia feita com Crônicas de Menino (2005),
pauta-se nos pressupostos de que os mais diversos sentimentos, vingança, medo, ódio, amor,
saudade, arrependimento, ciúme, amargura, solidão, obsessão, presentes em maior ou
menor escala nas obras, compõem a memória individual e, posteriormente, a cultural dos
indivíduos. Tais sentimentos são comuns a todas as pessoas, se universalizam e trazem à
tona reminiscências que marcam para sempre os sujeitos.

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Anais

O mesmo pode ser percebido no tocante às dimensões do amor: Eros, Philia e Ágape.
Cada uma é responsável por administrar, cotidianamente, nas pessoas, esse sentimento
indispensável à humanidade. O primeiro, extremamente passional, sexual, pode ser
percebido de duas formas: Eros Vulgar, terreno, e Eros Divino, platônico, sem contato físico.
Já o segundo é voltado mais para a amizade, o carinho, externado à família e aos amigos, é
sólido, pois constrói parcerias, elos significativos. O terceiro, por sua vez, se estabelece a
partir da perspectiva de um amor puro, desinteressado, visa à coletividade, à humanidade.
Destarte, no livro Crônicas de Menino (2005), alguns desses sentimentos alocados e as
dimensões do amor aparecem, gradativamente, na narrativa e estabelecem inter-relações
que perpassam do regional ao universal, e isso, através da memória individual, gera uma
transmissão da identidade cultural ou coletiva a pessoas que, consequentemente,
compartilham essas lembranças.

Guimarães Rosa e Machado de Assis e as Memórias Amorosas Universais

O romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, pertence à Geração de 45 do


Pós-Modernismo brasileiro e é considerado uma das narrativas que mais contributos
deixaram para o cenário literário mundial. A obra possui particularidades marcantes: a
linguagem e a originalidade, estas que receberam e recebem muitos elogios por críticos da
literatura do mundo inteiro, presentes no estilo da personagem Riobaldo, principalmente
quando rememora o amor reprimido por Diadorim, seus medos, suas angústias e suas lutas.
Com relação ao título do livro Grande Sertão: Veredas, deve-se ter em mente que o
grande Sertão expressa, além de um espaço geográfico, uma série de outros significados que
ligam o homem ao seu contato com o meio ambiente; assim, em muitas passagens, a narração
deixa de lado o tom de reprodução para dar lugar a aspectos contados fielmente já que o
romancista nasceu no Sertão e pôde rememorar elementos por ele vividos. Nesse cenário,
faz-se essencial uma abordagem sobre as memórias amorosas universais em Grande Sertão:
Veredas, ao se falar sobre os dilemas sentimentais de Riobaldo com relação à Diadorim.
Nessa vertente, a mente do jagunço estava desordenada, cheia de questionamentos,
angústias, por causa do amor impossível que este sentia por ela. A partir dos sentimentos
guardados por Diadorim, nascem temas universais, comuns a todas as pessoas, como: a
vingança, o medo, o ódio, o amor, a saudade e o arrependimento.

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Anais

Uma boa parte desse mosaico de sentimentos e das aflições de Riobaldo surge através
do caráter de ambiguidade de Diadorim, que apresenta questões maniqueístas e acaba por
introduzi-lo no ambiente jagunço, pois ela também é nomenclaturada como Reinaldo, já que
se traveste de homem para se inserir na jagunçada, e, desse modo, o amor entre eles não
poder ser concretizado, primeiramente por Riobaldo não saber da verdade, e depois, já
sabendo do mistério que o seu amigo/amor carrega, para que a sua verdadeira identidade
não possa ser descoberta. Nessa perspectiva, Pereira cita:

A necessidade de reviver os caminhos traçados ao lado do amigo conduz o


protagonista a uma travessia memorialística pelo Sertão. Diadorim,
personagem ambígua, configura-se, concomitantemente, como luz e sombra,
desejo e repulsa, ordem e desordem, visto que é ele quem encaminha o
narrador para o universo jagunço, assim como é sua lembrança que organiza
o imaginário narrativo de Riobaldo. (PEREIRA, 2012, p. 12).

Nessas circunstâncias, Riobaldo perpassa por um turbilhão de emoções por causa do


sentimento que alimenta por Diadorim, dentre eles o medo; assim, aparece o medo da
guerra, o medo do “Demo” e o medo contra si próprio. Ele, posteriormente, descobre que
Diadorim é, na verdade, uma mulher, porém, com medo da revelação e do impacto que
causaria no ambiente rude e masculinizado do Sertão, sofre durante toda a narrativa e só
revela a verdade no final para o doutor que mantém com ele um diálogo/monólogo no
romance.
Com relação ao Amor, outro tema universal presente em Riobaldo, devido ao seu
tumulto mental ocasionado por Diadorim, este pôde vivê-lo três vezes: com a própria
Diadorim, com Nhorinhá e com Otacília; nesse contexto, um complementa o outro, um nutre
o outro, pois o amor platônico pela jagunça é concretizado de maneira carnal com a segunda
e experimentado quase que devocionalmente, por meio de oração, com a terceira. Assim,
Riobaldo vê em Otacília a oportunidade de dizimar os seus muitos pecados e de manter uma
vida serena, pacata, longe dos conflitos, através das preces feitas por ela. Os amores
experienciados por Riobaldo podem ser percebidos através das dimensões do Amor que,
ainda, serão abordados neste artigo: o Eros, no seu relacionamento com a prostituta
Nhorinhá, quando se materializa a paixão entre o homem e a mulher, quando o Amor passa
a ser sensual e carnal, representado pelo sexo; o ágape, na sua união com Otacília, quando há
um Amor puro, genuíno, livre de interesses pessoais, um Amor santo e cheios de sacrifícios;
e o Amor Philia, na sua relação com Diadorim, que é caracterizado por um Amor entre

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Anais

amigos, familiar, mas que se transforma posteriormente em platônico, chamado também de


Eros divino. Nesse último caso, Riobaldo queria manter com Diadorim um Amor Eros, porém,
como este não foi concretizado, ele a tratou como irmão e, em razão disso, sofreu bastante.
Outros temas universais em Riobaldo, e que têm forte ligação com o seu desajuste
emocional oriundo do convívio e das lembranças de Diadorim, são o ódio, a vingança e a
saudade. Estes sentimentos surgem quando os jagunços Hermógenes e Ricardão assassinam
Joca Ramiro, pai de Diadorim, e Riobaldo faz um pacto com a sertanista para vingar a sua
morte. Desse modo, combateram até que, no final, na batalha do Paredão, Hermógenes e
Diadorim tombaram, e isso levou ao desespero Riobaldo que não teria mais o seu grande
amor lutando ao seu lado nem compartilhando aventuras no sertão; destarte, a saudade
surge e, com ela, as reminiscências são narradas pelo velho fazendeiro ao doutor (ROSA,
2001). Nessa abordagem, deve-se observar que, por causa da impossibilidade de amar
Diadorim, Riobaldo volta-se para outras questões com o intuito de desviar o seu pensamento
da jagunça, o que gera essa miscelânea de abordagens comuns a todas as pessoas, como as
temáticas já mencionadas neste texto.
Referente à obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, ela foi publicada pela primeira
vez em 1899 e faz parte da escola realista, no Brasil, que predominou na segunda metade do
século XIX. Tal escola e obra são caracterizadas pela crítica social latente a algumas
instituições, como a burguesia, a monarquia e o clero. Nessa perspectiva, o título do livro,
que possui 148 capítulos, é explicado pelo próprio narrador já com a idade um pouco
avançada; destarte, ele diz que recebeu de um poeta iniciante o epíteto de Dom Casmurro,
pois este, ao tentar ler alguns de seus versos a ele, foi surpreendido pelo cochilo de Bentinho
no decorrer da leitura. Chateado, o poeta começou a chamá-lo de Casmurro que significa
“fechado em si mesmo”, “que não demonstra alegria em nada”; em outras palavras, é uma
crítica ao burguês, sonolento, cansado de não fazer nada, pois evitava o labor e vivia ocioso
socialmente.
A narrativa também polemiza sobre o caráter de Capitu, esposa de Bentinho, que, por
ataques sucessivos de ciúmes por parte deste, é vista, por vários leitores, como adúltera; no
entanto, o autor não explicita, no texto, se ela realmente traía o seu esposo. Esse ciúme deriva
de um complexo de inferioridade de Bento Santiago que provém de uma personalidade com
características dele ser um “menino eterno” ou “puer aeternus” já que não consegue se
desvencilhar da proteção e do cuidado da sua mãe, dona Glória; nessa vertente, ele usa esse
distúrbio como um sistema de defesa. Dessa forma, Capitu é vista como uma personagem

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Anais

forte, decidida e é a detentora dessa fragilidade da alma de Bentinho que, por não ter
controle da situação, acaba por sucumbir ao ciúme (GRINBERG, 2000).
Nesse cenário, assim como ocorre com Riobaldo e a influência marcante de Diadorim
na sua existência em Grande Sertão: Veredas, a personagem Bento Santiago, de Dom
Casmurro, desconfiado da fidelidade de Capitu, também traz, em suas memórias amorosas,
temas universais comuns que podem servir não somente para um homem velho da cidade
do Rio de Janeiro, casado com uma mulher, possuidora de “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada”, mas para todos que têm a sensação da presença de uma pessoa adúltera ao seu
lado; assim, essas temáticas são, além do ciúme, já falado acima, a amargura, a neurose, a
solidão, a obsessão e o parasitismo social já que Bentinho não trabalha, vive de renda.
O narrador de Dom Casmurro neurótico, amargurado e obsessivo surge a partir da
habilidade de Machado de Assis em conduzir as análises sobre o psicológico das suas
personagens; Capitu manipula Bento Santiago a ponto deste, movido pelo Amor,
representado pela dimensão Eros, e pelo ciúme doentio, não controlar a sua mente, muitas
vezes fugindo um pouco da realidade. Nesse sentido, tudo passa a girar naquilo que ele
acredita e não no que, de fato, acontece, daí as incertezas pairarem acerca da suposta traição
de Capitu visto que não se conhecem os episódios contados na visão dela.
Todo esse conjunto de temas amorosos universais, inerentes ao romance, e o clima
nada amistoso no casamento, por vezes Capitu pede o divórcio, acabam por deixar o
narrador solitário posto que, cheio de dúvidas e angústias, manda Capitu e Ezequiel, seu
filho, para a Suíça a fim de tentar organizar a sua mente e a sua vida. Capitu manda-lhe cartas
saudosas, afetuosas e sem ódio; porém, Bentinho, ainda motivado pelo ciúme obsessivo,
responde a ela friamente. Com a morte de Capitu, Bento Santiago continua amargurado e
cheio de neuroses, principalmente relacionadas ao ciúme, pois, com o regresso de Ezequiel,
ele percebe traços de Escobar em seu rosto. Nesse ambiente, a amargura é tão grande que,
quando o filho, formado em Arqueologia, pede dinheiro a ele para realizar uma viagem de
pesquisa pelo Oriente, o narrador diz “antes lhe pagasse a lepra” (ASSIS, 2016, p. 182).
Ezequiel não morreu de lepra, mas de tifo; isso aumenta mais a solidão de Bentinho.

As Dimensões Universais do Amor

Quando se fala em Amor, é fulcral a necessidade de se entender questões relacionadas


às suas dimensões a fim de que não haja confusão sobre a linha demarcatória de cada uma.

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Anais

No sentido amplo, a palavra está atrelada a um relacionamento longevo, quiçá permanente,


com outra pessoa e, também, a um forte sentimento, quase inexplicável, quando se está
diante dessa pessoa. Conforme essa visão, o Amor pode ser calmo, sereno, harmônico, mas
também pode ser violento, opressor e obsessivo; nos dois casos, há a certeza de que todos os
indivíduos já viveram, vivem ou viverão esse sentimento.
Já semanticamente, o vocábulo Amor possui inúmeros significados. Assevera-se sobre
Amor a uma mulher ou a um homem, Amor de amigos, Amor pela humanidade, Amor pela
família, por irmãos, pelo seu país, Amor pelo trabalho, Amor a Deus, ao próximo, enfim a
muitas coisas, objetos ou animais; porém o que se sobressai como o modelo a ser seguido é
o Amor entre um homem e uma mulher, ou seja, que entrecruzam o corpo e a alma em busca
de uma felicidade arrebatadora. Dessa maneira, os demais sentidos do termo parecem se
esconder por trás deste, o que dá a entender que eles não existem ou não têm importância
os seus conhecimentos (BENTO XVI, 2005).
Nessas circunstâncias, três são as dimensões universais do Amor que devem ser
levadas em consideração: Eros, Philia e Ágape, elas são responsáveis por gerir esse
sentimento nos sujeitos, nas mais variadas situações do dia a dia. O Amor Eros expressa a
concepção de Amor entre um homem e uma mulher em que prevalece um imenso desejo
passional, sexual, sensual, além do indivíduo ser dominado pelo deleite, pela satisfação e pelo
prazer carnal. Já o Amor Philia é aquele voltado para a sua família e amigos; por fim, o Amor
Ágape volta-se para a humanidade, para causas existenciais.
Desse modo, o Amor Eros dissemina a percepção do desejo efetivado entre duas
pessoas que se atraem e se envolvem e, também, o sentido da sensualidade, além de, em
muitos casos, significar apenas prazer, gozo. Nesse cenário, o Amor erótico é o desejo
exacerbado da união, da fusão com outro indivíduo; não tem o caráter social, coletivo, mas
sim exclusivo, o que o torna, em muitas situações, a dimensão de Amor mais enganosa que
existe já que individualiza e, às vezes, se torna obsessiva, como o que ocorreu com Bento
Santiago e Capitu, em Dom Casmurro (FROMM, 2015).
Outra informação relevante, referente ao Amor Eros, é a divisão dessa dimensão
proposta, na obra de Platão O Banquete, por Pausânias; este divide esse Amor em Eros
Vulgar, ou Amor terreno, e Eros divino, ou Amor divino. Para ele, o primeiro é uma atração
pela beleza de um indivíduo com o intuito de se chegar ao prazer físico e à procriação; já o
segundo, parte da atração física, entretanto evolui para um Amor cuja essência é análoga ao
divino. Assim, a partir do Eros divino, há uma progressão para o Amor platônico, aquele em

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que não existe a concretização de uma relação amorosa por inúmeros motivos, ou também
pode ser um Amor não correspondido, daí ser considerado difícil e impossível (MARQUES,
2010).
No que se refere ao Amor Philia, este é entendido como uma sensação de empatia
natural, de extensa amizade, estima, de carinho, dado aos amigos e a familiares. Esta
dimensão do Amor é um sentimento resistente, sólido e profundo do coração que dissemina
parcerias, companheirismo e propaga os mais nobres afetos entre os entes queridos. O Amor
Philia possui como características: a lealdade, a sinceridade, a reciprocidade, a gentileza, o
bem-estar das outras pessoas; assim, quando não existe mais o brilho do Amor Eros, é o
Amor Philia que continua a manter os casais juntos.
A última dimensão de Amor existente é o Ágape que se exterioriza, a priori, nos
seguintes formatos: Amor de Deus ao homem, Amor do homem a Deus e, posteriormente,
Amor do homem ao seu próximo; nessa conjectura, existem algumas características para
esse Amor, como: é um Amor genuíno, puro, é desinteressado, pois não visa a interesses
próprios, mas coletivos, ligados à humanidade; é intransponível, invencível, não escolhe a
quem amar, ou seja, para essa dimensão amorosa, até o mais execrável dos indivíduos é
digno de ser amado.
Na visão do apóstolo Paulo, o Amor Ágape não é insensato, inconstante, leviano, não
se envaidece, ensoberbece, não é injusto, não deseja o mal, é caridoso, piedoso, é sereno. Para
ele, essa dimensão por tudo se atormenta, em tudo acredita, confia, em tudo espera e suporta.
Nessa perspectiva, esse Amor é originado em Deus que o publiciza aos Seus seguidores, e
estes fazem desses ensinamentos a lição, o alimento do dia a dia; desse modo, essa dimensão
acaba por retomar a Ele.

Dimensões do Amor em Crônicas de Menino

A obra Crônicas de Menino apresenta, de certa forma, umas, em menor escala, outras,
em maior, as três dimensões do Amor mencionadas acima nesta dissertação. No livro, o autor
Marcos Fábio Belo Matos aborda o Amor Eros, representado pelo Eros divino (Amor
platônico), colocado por Pausânias em O Banquete, de Platão, em algumas passagens da
crônica; aparece também, em muitos trechos do livro, o Amor Philia (dimensão que se
exterioriza com mais frequência); e, em apenas uma crônica, surge a dimensão Ágape.

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Anais

Com relação ao Amor Eros, a obra não aborda esta dimensão com as características
iniciais dela, ou seja, a presença da sensualidade e do amor carnal, presentes em Grande
Sertão: Veredas, simbolizado pelo relacionamento de Riobaldo com a prostituta Nhorinhá, e
em Dom Casmurro, refletido pela relação doentia, ciumenta entre Bentinho e Capitu, esse fato
é facilmente explicado porque se trata de um livro voltado para um público infantojuvenil.
Nessa perspectiva, Marcos Fábio traz, para Crônicas de Menino, o Eros divino ou Amor
platônico em duas narrativas: Meninas e Sesi. O autor menciona na sua crônica Meninas:

Meninas eram o alvo de todas as nossas atenções. Não havia muitas no grupo
que eu frequentava. Mas as que andavam por lá eram bem bonitinhas!... As
meninas com quem eu convivia eram do Sesi ou da igreja. As da minha rua
eram poucas, quase todas mais velhas que eu. Algumas meninas me
arrancaram paixões infantis. E ficaram lá no fundinho da lembrança, uma
doce saudade de irrealizações. (MATOS, 2005, p. 49).

Desse modo, percebe-se um Amor não concretizado, guardado na memória do


narrador, transcendental, preso no mundo das ideias, como idealizado por Platão; estas
mesmas particularidades aparecem também na crônica Sesi apresentada a seguir:

[...] Enquanto vivi em Bacabal, vivi no Sesi. E por lá aprendi um monte de


coisa boa. Por lá conheci e convivi com os meninos e as meninas de quem até
hoje tenho saudades. Por lá me apaixonei um monte de vezes, vivi alguns
namoricos e muito platonismo [...] (MATOS, 2005, p. 43).

Percebe-se claramente uma inter-relação entre o Eros, de Matos, e o Eros, de


Guimarães Rosa visto que ambos são platônicos. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo vive o
seu platonismo de forma dolorosa, pois, no primeiro momento, pensa ser
Diadorim/Reinaldo, homem; posteriormente, ao saber da verdade, não pode assumir o
relacionamento com medo dela ser descoberta pelos outros jagunços e ser expulsa do bando.
Assim, Rosa comenta:

Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a
mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino: porque eu
tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de
Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado. (ROSA,
2001, p.123).

O Eros sensual, carnal, também chamado de Eros vulgar, não é discutido em Crônicas
de Menino como em Grande Sertão: Veredas e Dom Casmurro. No primeiro romance, esse

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Anais

amor é compreendido pelas mãos de Riobaldo e da prostituta Nhorinhá, esta que satisfazia
os desejos sexuais, ardentes, de Riobaldo visto que ele não podia viver toda essa volúpia com
Diadorim/Reinaldo. Nessa direção, Rosa esclarece:

Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: — “Dorme-


comigo…” Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça
Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de
mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes. Nhorinhá
prostituta, pimenta branca, boca cheirosa, o bafo de menino-pequeno.
Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucúia vai se levar no mar.
(ROSA, 2001, p. 121).

Em Dom Casmurro, o Amor Eros é representado pela obsessão, pelo ciúme doentio de
Bentinho por Capitu. Antes do casamento, os dois enamorados lutam contra tudo e todos
para ficarem juntos, mas, quando isso acontece, Bento Santiago surge como uma figura
insegura, infeliz, possessiva e ciumenta, o que acaba por destruir a sua família. Nessa
vertente, Barthes comenta sobre o ciúme que, para ele, nasce de o medo da pessoa
extremamente apaixonada perder o seu posto, ser preterida por outro. Dessa forma:

Como ciumento, sofro quatro vezes porque sou ciumento, porque me


reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme fira o outro, porque me deixo
sujeitar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por
ser louco e por ser comum (BARTHES, 2003, p. 69).

Em Crônicas de Menino, o Amor Philia aparece em vários trechos da obra, como nas
crônicas A Serraria e Dona Conceição. Nessa perspectiva, seguem algumas passagens com a
presença dessa dimensão: “[...]Paizinho tinha também uma carroça, com a qual ia pegar casca
de arroz para fazer caeira – caeira é um monte de madeira coberta com casca de arroz, para
fazer carvão[...]”; Paizinho era o nome carinhoso que todos chamavam o avô do narrador.
“[...] Quando ele passava lá em casa, não tinha jeito: desvencilhava-me do que estivesse
fazendo e ia com ele pegar a carrada lá na usina. Às vezes, ia embaixo, no eixo, perto do rabo
do cavalo [...]”. “[...] Outras vezes, ele me dava a felicidade de ir em cima, segurando o cabresto
e guiando a carroça. Ia orgulhoso, sorriso nos lábios e acompanhado pelo olhar amoroso do
meu avô[...]” (MATOS, 2005, p. 45 – A Serraria). Nessa abordagem, o Amor Philia, como já
mencionado antes, caracteriza-se pelo Amor aos amigos e, no caso da crônica A Serraria, a
familiares.

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Anais

Já em Dona Conceição: “Dona Conceição era professora particular, ensinava na casa


dela, uma casa simples, mas muito aconchegante [...]. Logo que chegávamos, tínhamos que
tomar-lhe a benção. De início, fazíamos por respeito. Depois, por respeito e um sentimento
familiar[...]” “[...] Ceição ensinava com amor e atenção [...]” “[...]Dia desses encontrei Ceição
na rua. Parei o carro e fui falar com ela. Mostrei-lhe minha filha. Desejei-lhe felicidades. Dei-
lhe uns dois abraços. Mas antes de tudo, tomei-lhe a benção.” (MATOS, 2005, p. 59). Nessa
narrativa, Marcos Fábio assevera sobre o amor a uma antiga professora, que se transformou
em amiga e, consequentemente, o autor passou a vê-la como um familiar.
A obra Dom Casmurro não apresenta o Amor Philia. No entanto, Grande Sertão:
Veredas aborda essa dimensão ainda na interação entre Riobaldo e Diadorim quando aquele
não sabia o segredo guardado por este que, para vingar a morte do seu pai, Joca Ramiro, teve
que se vestir de homem e viver junto com a jagunçada pelos sertões de Minas Gerais. Dessa
maneira, o Amor Philia em Rosa simboliza os mesmos aspectos abordados por Matos, ou seja,
o Amor por amigos, no caso de Marcos Fábio também o Amor pela família. Com relação ao
que foi falado, Rosa lembra:

Aprendi a medir a noite em meus dedos. Achei que em qualquer hora eu


podia ter coragem. Isso que vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça
aos goles, dormida com a gente encostado em coronha de sua arma. O que
carece é a companheiragem de todos no simples, assim irmãos. Diadorim e
eu, a sombra da gente uma só uma formava. Amizade, na lei dela. Como a
gente estava, estava bem (ROSA, 2001, p. 152).

O Amor Ágape aparece, de modo tímido, somente em um trecho no livro Crônicas de


Menino: “[...]Mamãe teve uma crucial influência na minha formação. Tinha pouco estudo, mas
muita vivência, uma fantástica experiência de vida, uma formidável capacidade de dar
conselhos certos. O seu senso de humanidade, de respeito e de justiça carrego ainda hoje[...]”
(MATOS, 2005, p. 53 - Mamãe). Destarte, aparece o Amor pela humanidade na presença da
mãe do narrador ao aconselhar as pessoas e, consequentemente, tentar melhorar o mundo,
característica fulcral dessa dimensão do Amor. O Amor Ágape não aparece em Dom
Casmurro, mas está consolidado em Grande Sertão: Veredas na figura de Otacília que
representa o Amor puro e verdadeiro de Riobaldo.
Por esta análise comparativa das obras Grande Sertão, Dom Casmurro e Crônicas de
menino, ficou demonstrado que o Amor e outros sentimentos humanos são construídos pelos

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Anais

autores Rosa, Assis e Matos, respectivamente, a partir de experiências humanas regionais,


mas que tais afetos transbordam este limite para se inserirem na perspectiva Universal.

Considerações Finais

O escopo deste artigo foi analisar as memórias amorosas universais e as dimensões


do amor em Grande Sertão: Veredas (2001) e Dom Casmurro (2016) e suas inter-relações com
Crônicas de Menino (2005). Assim, fundamentou-se na análise de que as diversas catarses
que aparecem nas duas obras, vingança, medo, saudade, amor, ódio, amargura, solidão,
obsessão, constituem reminiscências individuais e, em seguida, as coletivas ou culturais dos
sujeitos a partir de uma regionalidade até atingir o aspecto universal. A pesquisa buscou
também conhecer, de forma mais aprofundada, as três dimensões do amor: Eros, Philia e
Ágape, sentimento este fulcral para os sujeitos pertencentes a uma sociedade.
As temáticas discutidas neste trabalho científico não se encerram aqui, há ainda
muitas outras abordagens a serem trabalhadas e bastantes autores maranhenses que, ainda
desconhecidos, precisam estar a aparecer para o grande público, para os leitores,
pesquisadores, professores. A literatura maranhense é rica, cheia de nuances e percepções,
estas se intertextualizam com outras literaturas do passado e do presente e deixam
contributos sociais fundamentais para o crescimento dos sujeitos aptos por conhecimentos.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2016.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia Valéria


Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fonseca, 2003.

BENTO XVI. Carta encíclica Deus Caritas Est. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005.

FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes - selo Martins. 2015.

GRINBERG, Luiz Paulo. A traição de Bentinho: um estudo sobre a psicopatologia do ciúme e


da traição. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. São Paulo, n. 18, p.
67 – 76, 2000.

MARQUES, Marcelo P. Amor platônico. Revista Cult, São Paulo, v. 146, mai. 2010.

MATOS, Marcos Fábio Belo. Crônicas de Menino. São Luís: Banco do Nordeste, 2005.

241
Anais

PEREIRA, Fernanda Perpétua. As trímeras de Riobaldo: a constituição de uma


personagem como narrador. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho. São José do Rio Preto – SP, p. 119. 2012.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.

242
SÍMBOLOS ATRÁS DA
PORTA: UMA REFLEXÃO
SIMBÓLICA E PSICANALÍTICA
SOBRE O QUE ESTÁ DO
LADO DE DENTRO
Dayanna Roberta Costa da ROCHA (UEPA)1
Izabelly Reis LOUREIRO (UEPA)2
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)3

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo principal centrar-se na observação das manifestações
líricas presentes nos poemas musicados “Atrás da Porta”, de Francisco Buarque de Hollanda
e Francis Victor Walter Hime, e “Do Lado de Dentro”, de Marcelo Camelo de Sousa, a fim de
demonstrar como essas duas construções trazem em seu repertório a possibilidade de temas
capazes de criar uma paisagem metafísica em um chamado universo imaginário próprio do
autor e que são recorrentes ao longo de toda produção. A relevância deste estudo evidencia-
se em buscar a imagem da visão feminina nesses textos poéticos contemporâneos. Dessa
forma, pode-se destacar a criação desse todo a partir do elemento simbólico “porta” nas

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas


pela UEPA. Especialista em Língua Portuguesa e Análise Literária pela UEPA. Graduada em Letras -
Habilitação em Língua Portuguesa - pela UFPA. E-mail: drcr34@gmail.com
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas
pela UEPA. Especialista em Saberes, Linguagens e Práticas Educacionais na Amazônia pelo IFPA.
Graduada em Letras - Habilitação em Língua Portuguesa - pela UFPA. E-mail:
izareisloureiro@gmail.com
3 Doutor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Língua Portuguesa pela USP. Mestre em
Literatura Brasileira pelo CES/JF. Graduado em Letras pela UNAMA. E-mail: ru-98@hotmail.com

243
Anais

canções citadas, permitindo o recurso linguístico da intertextualidade, uma das ferramentas


que viabiliza a ideia comunicativa entre obras, a partir de um fio condutor, como o jungir de
elementos, com o propósito de estabelecer uma relação entre elas a partir da perspectiva
psicanalítica e simbólica. A análise leva em conta uma abordagem temática da porta como
uma espécie de paisagem sentimental metafórica e ambígua de aprisionamento consensual
e de liberdade conquistada pela figura feminina. Para embasar tal estudo, serão utilizados
autores como Sigmund Freud, através de suas Obras completas (2014); A simbologia da
porta, por Chevalier e Gheerbrant (2007) e A poética do espaço em Bachelard (1958).

Palavras-chave: Porta. Psicanálise. Relação Amorosa. Submissão. Liberdade

ABSTRACT

The main objective of this work is to focus on the observation of the lyrical manifestations
present in the poems set to music “Atrás da Porta”, by Francisco Buarque de Hollanda and
Francis Victor Walter Hime, and “Do Lado de Dentro”, by Marcelo Camelo de Sousa, in order
to demonstrate how these two constructions bring in their repertoire the possibility of
themes capable of creating a metaphysical landscape in a so-called imaginary universe of the
author and which are recurrent throughout the entire production. The relevance of this
study is evident in seeking the image of the feminine vision in these contemporary poetic
texts. In this way, the creation of this whole can be highlighted from the symbolic element
porta in the aforementioned songs, allowing the linguistic resource of intertextuality, one of
the tools that enables the communicative idea between works, from a guiding thread, such
as the joining of elements, in order to establish a relationship between them from a
psychoanalytic and symbolic perspective. The analysis takes into account a thematic
approach to the door as a kind of metaphorical and ambiguous sentimental landscape of
consensual imprisonment and freedom conquered by the female figure. To support this
study, authors such as Sigmund Freud will be used, through his Complete Works (2014); The
symbology of the door, by Chevalier and Gheerbrant (2007) and The poetics of space in
Bachelard (1958).

Key-words: Door. Psychoanalysis. Loving relationship. Submission. Freedom.

Considerações iniciais

A canção “Atrás da porta”, dos compositores Francisco Buarque de Hollanda e Francis


Victor Walter Hime, assim como “Do lado de dentro”, composta por Camelo Marcelo de Souza
apresentam o recurso linguístico da intertextualidade, uma das ferramentas que viabiliza a
ideia comunicativa entre obras a partir de um fio condutor, como o jungir de elementos, com
a intenção de estabelecer uma relação entre elas.
Essas duas construções trazem em seu repertório a possibilidade de temas capazes
de criar uma paisagem metafísica num chamado universo imaginário próprio do autor e que
são recorrentes ao longo de toda produção. Dessa forma, pode-se destacar a criação desse

244
Anais

todo a partir do elemento simbólico porta nas canções citadas. Em ambas as composições, o
elemento exibe uma espécie de transição de ambiente, de um estar fora para um estar
dentro; de um elemento que fecha e deve ser aberto e que também deve ser fechado se
estiver aberto; uma espécie de zona de conforto e/ou zona de desconforto, como se fosse a
demonstração de um ritual de passagem ou mesmo a representação medieval do bem e do
mal. Além disso, há a indicação de utilidade de delimitação de um espaço físico para um
espaço único de acesso, sendo possível dar mais importância ao elemento quando pensado
na presença ou ausência do mesmo.
As ideias que permeiam essa produção acadêmica abrangem a possibilidade de um
olhar não voltado tão somente ao plano do conteúdo, de modo que seja centralizado apenas
na análise dos aspectos histórico e social da figura feminina, mas também que sejam
alicerçadas no plano expressivo, ou seja, no plano da forma, permitindo o desvendar das
camadas interpretativas e de composição das duas obras, exibindo as habilidades e
estratégias trazidas pelos autores, assim como os estratos sensíveis da estruturação das
escolhas e seleções vocabulares presentes. Dessa forma, configurando-se no alinhar dos dois
planos, tanto o do conteúdo quanto o da forma, como o parâmetro solicitado pela BNCC -
Base Nacional Comum Curricular - garantindo a oportunidade de leituras variadas no
ambiente escolar, a apresentação do estilo particular do autor, o esmiuçar dos versos e com
tudo isso a amplitude de análises.
Sendo assim, cabe ao presente trabalho analisar a influência da simbologia da porta
como um elemento de destaque que configura, de forma expressiva, o ritmo da relação
amorosa presente nas duas composições acima citadas, bem como a conduta feminina no
que diz respeito à tensão vivida dentro de uma relação erótica e sensualizada, mas marcada
de pelo sofrimento amoroso da partida o que trará à tona o caráter psicanalítico de análise.
Para isso, o uso de autores como Sigmund Freud, através de suas Obras completas (2014); A
simbologia da porta, por Chevalier e Gheerbrant (2007) e A poética do espaço em Bachelard
(2009) estarão fundamentando essa produção.
Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, a mesma se fará da seguinte maneira:
apresentar-se-á por meio de subtópicos os versos de ambas as composições Atrás da porta 4
e Do lado de dentro 5 que demonstrem, primeiramente, a perspectiva de análise do elemento

4 https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45113/

5 https://www.letras.mus.br/los-hermanos/67556/

245
Anais

simbólico porta e, segundamente, a interpretação psicanalítica do estado tensivo do eu lírico


alinhado ao encontro do universo criado a partir do elemento simbólico, a fim de observar
momentos em que se extraiam a paisagem sentimental metafórica e ambígua de
aprisionamento consensual e de liberdade conquistada pela figura feminina.

A imagem simbólica da porta: criação de um universo imaginário em trânsito

Em A poética do espaço, de Gaston Bachelard, reconhece-se um tratado poético sobre


as imagens desencadeadas a partir de diferentes lugares recorrentes na literatura: a casa, o
porão, o sótão, a cabana, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha e o canto. Com ênfase
na representatividade da vida e das relações afetivas desses locais no texto literário.
Bachelard afirma que, através do locus, pode-se chegar a uma fenomenologia da imaginação,
de modo a conhecer a imagem em sua origem, em sua essência e pureza (BACHELARD, 2009,
p. 20).
Desse modo, o autor defende a análise interdisciplinar, unindo Literatura, Filosofia e
Psicologia, especialmente quando trata do papel do fenomenólogo, o qual deve fazer, como
tarefa primeira, “o esforço preciso para compreender o germe da felicidade central, seguro
e imediato, de modo a encontrar a ‘concha inicial’ em toda moradia, mesmo no castelo”
(BACHELARD, 2009, p.199). Sendo assim, vislumbrar o papel da porta nas produções
apresentadas requer uma busca ao cerne dessa concha inicial, representada pela moradia
em que esse portal se encontra.
Em ambas as canções aqui analisadas, esse germe da felicidade central pode ser
compreendido como os lares em que dois casais, que partilham de uma relação amorosa,
vivem ou viveram juntos. Na obra de Camelo, tem-se a menção a um castelo. Na de Chico
Buarque e Francis Victor, a menção ao lar – e embora não haja a palavra exata de qual tipo
de edifício seria esse, o portal que cerceou os personagens indica objetos pertinentes a um
quarto de dormir, como nas referências aos pés da cama, ao tapete, ao pijama, e, em foco no
nosso trabalho, à porta.
Sobre o papel de tal objeto que cerra um espaço do outro, há diversos símbolos a
serem recorridos para analisá-lo. À luz da simbologia de Chevalier e Gheerbrant, “a porta
simboliza local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o
desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema” (CHEVALIER e GHEERBRANT,
2009, p. 734-735). Na canção “Do lado de dentro”, essa representação relacionada a um rito

246
Anais

de passagem pode ser vista no trecho “Abre essa porta/Que direito você tem/ De me privar”,
no sentido de que a privação da qual trata o eu-poético o limita a uma circustância
desconhecida de inabilidade, inadvertido sobre a transferência de seus poderes para quem
o quer fora do recinto, separado pela porta fechada. Em outras palavras, ao questionar sobre
os direitos de quem o afasta, esses dois mundos se distanciam pelo portal trancado, criando
uma nova passagem, ou seja, uma nova fase para esse casal.
Enquanto isso, em “Atrás da Porta”, há a ideia desses opostos simbólicos entre dois
mundos, o tesouro e a pobreza extrema, quando, no trecho “Sem carinho, sem coberta/No
tapete atrás da porta/Reclamei baixinho/ Dei pra maldizer o nosso lar/ Sujar teu nome/ Te
humilhar”, essas desventuras amorosas também se apresentam como ponto de separação de
quem antes viveu juntos. Aliás, essa tensão tipifica algo que ocorreu recentemente na vida
dos amantes, percebida pela expressão “dei pra maldizer”, a partir da qual entende-se um
sentido de que esse comportamento não era assumido pelo eu-lírico antes, mas passou a ser
conveniente após o infeliz evento que o casal sofreu em seu relacionamento.
Assim, atravessada por maledicências, o que outrora era o recinto e ninho de amor,
supostamente harmonioso desse casal, passou a ser um lar tenebroso, frio e solitário. Com
referência ao abandono, intrincado pelos vocábulos que explicitam alguém exposto e
descoberto, é possível ver uma maneira de expressar a situação de pobreza afetiva em que
se encontra essa mulher, como nas palavras que se referem a um sentimento de mágoa e
também de superioridade, ratificado nos trechos “sujar teu nome” e “te humilhar”.
Apenas nesses dois excertos, são múltiplas as possibilidades de interpretação do
símbolo porta, pelo seu valor dinâmico e psicológico. A Chevalier e Gheerbrant, isso se deve
ao fato de tal objeto “não somente indica[r] uma passagem, mas convida[r] a atravessá-la. É
um convite à viagem rumo ao além....” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2009, p. 734-735).
Além disso, com essa moradia desfeita, o papel da porta ganha outros significados. No
trecho “Desse castelo que eu construí/Pra te guardar de todo mal/Desse universo que eu
desenhei/ Pra nós, pra nós”, pôde-se encontrar uma referência à nova funcionalidade da
porta fechada pelo lado de dentro: há uma necessidade dessa mulher de se proteger daquilo
que está do lado de fora. Portais chineses, por exemplo, são guarnecidos de símbolos que
posicionam bem e mal sobre aquilo que está dentro e fora, respectivamente. Para a poética
do espaço, “é justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como
devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.” (BACHELARD, 2009, p.
201).

247
Anais

Essa moradia do passado é alegoricamente construída no edifício castelo, tanto no


sentido histórico que esse tipo de lar remonta – com suas grandes aldravas, fossos,
guarnecidos de medidas protetivas medievais -, quanto no seu sentido metafórico. Nesse
trecho da música de Marcelo Camelo, a construção do castelo para guardar alguém de todo
mal, somado ao que se trata de um universo desenhado, pela voz masculina, para “nós”,
remonta ao passado amoroso do casal em crise, que, atados e enodados, são protegidos por
essa moradia antiga.
No entanto, ao guardar dentro desse universo já desenhado o outro sujeito da relação,
tem-se, de um lado, a imagem cristalizada desse lar idealizado em contos de fadas e romances
de cavalaria, para não somente proteger a donzela dos perigos externos, mas cercar,
encarcerar, prender, aprisioná-la dentro dele. Porém, na canção, há, por outro lado, alguém
que viveu nesse universo engendrado para sua estada, ou melhor, em sua prisão, até que dela
tomou posse como sua: expulsando seu parceiro do universo antes arquitetado por ele
mesmo.
Assim, desenham-se dois opostos no poema, bem e mal, traída e traidor. Este último,
visto como persona non grata ao recinto em que se protege a mulher traída, pode ser
comparado simbolicamente ao mal que essa porta proíbe de entrar: quem está dentro se
difere do vilão e é mais digno de proteção do que quem está na área externa. Analogamente,
a simbologia retoma essa concepção quando postula sobre os portais em templos chineses,
os quais, ao serem construídos com altura menor que a média da população visitante, fazem
com que os fiéis ao templo se curvem para entrarem no recinto: “trata-se, ao mesmo tempo
de proibir a entrada no recinto sagrado de forças impuras, maléficas, e de proteger o acesso
são deles dignos.” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 735).
Dito isso, sendo este recinto um castelo, no qual uma mulher se protege atrás da porta
e obriga seu amante a se curvar a ela, implorando-lhe por favor que entre. Pôde-se inclusive
perceber que essa dominação feminina da situação diverge de alguns conceitos arcaicos
sobre a figura da mulher, muitas vezes relegada à figura de Maria, que na iconografia
medieval se desenhava como uma porta fechada. Tal assertiva torna-se ainda mais
provocativa quando, ao tratar da mãe de Jesus, vê-se a idealização de uma mulher distante
das provocações carnais, sob os princípios de virgindade, pureza, maternidade, abnegação e
devoção.
Mas nem tudo é oposto em relação à mãe de Jesus e à voz feminina da canção de
Marcelo Camelo: as percepções sensíveis promovidas, por exemplo, pelas relações sexuais,

248
Anais

tornam-se menos visíveis entre o casal que discute na canção, já que a porta não permite
contato físico entre os interlocutores do poema – o que é reforçado, por Chevalier e
Gheerbrant (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.735), no fechamento das portas,
movimento de “retenção do sopro e aniquilação das percepções sensíveis”.
Outro aspecto relacionado à Bíblia pode ir, além de Maria, a como a porta é também
demonstrada na passagem da vida para a morte. Nós vocábulos “Abre essa porta/ Não se faz
de morta”, na canção de Camelo, há uma relação com a porta da morte (Isaías, 38, 10),
também conhecida como porta dos in dermos ou da morada dos mortos (Mateus, 16, 18).
Em ambas as histórias, o detentor desse poder de quem pode ou não acessar e sair da morte,
é Jesus, soberano filho de Maria. Em Apocalipses (3,7), quem detém a porta dos mortos
também é Cristo. No poema musicado, porém, o eu-lírico não tem mais esse poder, pois clama
por sua parceira, calada como morta, pela oportunidade de entrar junto a ela no recinto.
Agora, de posse do poder sobre a aldrava da porta de seu castelo, há o rompimento
da dependência dessa interlocutora, quando em seu discurso abre mão de tudo o que não
quer “guardar” – em oposição à finalidade de ser guardada nesse edifício, imposta pelo seu
parceiro –, bem como quando reconhece a prisão em que esteve dentro do castelo, do qual
quer se esquecer de “uma só vez”. Nesse momento, há intertextualidade de sua atitude com
o significado escatológico da porta, que não apenas significa passagem, mas “iminência do
acesso e da possibilidade do acesso a uma realidade superior”, ou seja, uma mulher que
encontra vias de recomeçar sua vida sem necessariamente recorrer ao aprisionamento na
relação em que esteve.
Em contrapartida, na canção de Buarque de Holanda e Hime, a dependência
emocional e sexual ainda se exprime, como em “Pra mostrar que ainda sou tua/Até provar
que ainda sou tua”, assim como a devoção e a inaceitabilidade do fim do relacionamento, em
“Eu te estranhei, me debrucei/ Sobre teu corpo e duvidei/ E me arrastei e te arranhei”, tal
qual um ser humano essencialmente instintivo e afoito, mas indefeso; faminto, sem o que
comer; saudoso de seu dono, mas magoado por ter ficado sozinho.
Enquanto há um “crescendo” quanto ao papel feminino na primeira música, de uma
mulher livre dos nós e dona do castelo que antes a prendia, em “Atrás da porta” há uma
sombra de alguém que só se faz carne completa com a presença de seu amante no quarto. O
desespero por essa pessoa que se vai é nítido em “E me agarrei nos teus cabelos/No teu peito,
teu pijama/ Nos teus pés, ao pé da cama”, pois há um lugar de submissão assumido por essa
mulher, em desespero, por ver a possibilidade de perder o lar que ambos construíram. Nota-

249
Anais

se, enfim, o que Bachlelard postulou sobre a casa ser muitas vezes não um refúgio – no poema
de Camelo –, mas um local que pode aprisionar e esmagar a personagem – na canção de Chico
Buarque e Hime. Nesta, a figura feminina, de tão absorta na tentativa de não estar só,
encontra-se sozinha e indefesa nesse exteriormente mais forte, que passa a ser seu “reduto”
(BACHELARD, 2009, p. 227).

E Freud explica?!

Tomamos como referência para análise psicanalítica das duas composições musicais,
o conhecido trabalho de Freud Dostoiévski e o parricídio (2014), a partir da articulação sobre
a ideia de culpa, partindo das orientações do consciente e inconsciente do ser.
É possível perceber no texto freudiano, que a culpa aparentemente inconsciente, pelo
desejo de morte dirigido ao elemento paterno, é considerada como a mola mestra que
provavelmente impulsiona os acessos histeroepiléticos de Dostoiévski, sendo esses
interpretados como uma espécie de auto castigo alimentado a si mesmo através de sua
identificação ao pai morto. No entanto, sucede-se, ainda, é que essa mesma identificação,
demonstrava a oportunidade de atuação de seu desejo ilegítimo e consanguíneo, ou seja, o
incesto.
Desse modo é prudente que haja, conforme a citada obra que analisa o escritor russo,
a afirmação e o reconhecimento de uma dupla função: de autocastigo e de realização do
próprio desejo. Sabe-se que em seu trabalho, Sigmund Freud busca depreender, a partir da
personalidade de Dostoiévski, em destaque, aos considerados ataques de morte, que tais
manifestações são, na verdade, ataques epilépticos graves, que talvez pudessem ser
classificados, segundo o psicanalista, um tom mais afetivo do que de fato orgânico para as
crises: “Dostoiévski se definiu e era tido como epiléptico, com base em sérios ataques que
envolviam perda da consciência, convulsões musculares e subsequente mau humor. É
bastante provável que o que chamamos de epilepsia fosse apenas um sintoma de sua
neurose” (FREUD, 2014, p. 341).
A necessidade de castigo implícito, dentro do olhar punitivo de Dostoiévski formula
as percepções de Freud, a partir de uma corrente psicológica moderna, a abordagem
psicanalítica, a qual “inclina-se a ver nesse acontecimento o mais sério trauma, e na reação
Dostoiévski o ponto central de sua neurose” (FREUD, 2014, p. 345), como resultante da
incerteza voltada à afetividade desse indivíduo que alimenta traços sádicos contra si mesmo.

250
Anais

Consequentemente, ratificando com isso, a proposição do “Eu e do Supereu”, proposta pelo


psiquiatra, em que a primeira corresponde à modificação da parte do Id - aspecto instintivo
do indivíduo - pela influência direta do mundo externo, em outras palavras, é a consciência,
o “eu de cada um”, característica da personalidade. Enquanto que a segunda, diz respeito à
conversão da parte do Id pelo aspecto moral da personalidade do indivíduo, quer dizer, é
responsável por “conter” o Id, ou seja, reprimir os instintos primitivos com base nos valores
morais e culturais.

O adentrar no estado tensivo feminino pela porta: uma análise psicanalítica

Se Freud sempre singrou mares em busca de um estatuto científico para a psicanálise,


há de se convir que nunca tenha deixado de embebedar-se no porto seguro de suas fontes
primárias, a arte. (MORAIS, 2006, p. 4). Partindo desse preceito, voltemos nossos olhares ao
caráter psicanalítico das músicas: “Do lado de dentro” e “Atrás da porta”, possibilitando o
encontro entre a psiquê humana, algo relativamente amplo, e a concretude da função poética
da linguagem pelo ato da produção, na busca de aproximarmos o fazer psicanalítico e o
poético, numa capacidade criadora de instaurar novas realidades, como o consequente
adentrar pela “porta” no estado tensivo do eu-lírico feminino nas duas canções, através das
seleções vocabulares dos autores que nos levam à observação das camadas sensíveis da
estruturação.
Percebe-se nas duas obras aqui analisadas, a presença de um eu-lírico explicitado
como um sujeito que está em disjunção com o objeto – o amor. Ou seja, a não
correspondência desse sentimento, através do negar a retribuição do afeto ao outro,
delimitado pela existência do ego, do egoísmo, o que causa estranhamento na figura
feminina, em função dessa mudança, além de propiciar o aspecto tensivo do eu-poético.
De modo geral, esse ser apresenta um tom de desespero pelo descrédito à paisagem
metafórica da separação, contradizendo a imagem principiada, o surgir do sentimento, o qual
permitiu o adentrar no castelo ou no lar, conforme apresentado nas duas músicas,
respectivamente. Porém, em decorrência do momento da partida, pelo transpor do elemento
simbólico porta, traz o adeus como a ruptura sentimental.
A representação do clima de tensão pode ser observada na estruturação dos versos
condicionados à porta. A canção de Camelo, mostra-se como uma espécie de réplica de uma
voz masculina que a princípio, apoiada por verbos conjugados no modo imperativo “Abre

251
Anais

essa porta/ Diz o que é que foi”, tenta impor uma certa ordem à figura feminina, reafirmada
na elocução a partir da posição sádica do Eu masculino junto à proposta de dominação
“Desse castelo que eu construí/Desse universo que eu desenhei”.
Em contrapartida, num segundo momento, o uso desse imperativo está subjugado a
uma espécie de pedido a essa mulher, apresentado como o indício de reflexão desse homem
ao reconhecer a provável culpa – Supereu. A atitude pode ser entendida como a sequela e a
resistência da então companheira, limitada e protegida, conscientemente, pela presença e
decisão de manter a porta fechada.
No entanto, essa mesma sequência de conjugação verbal é observada a partir da
figura feminina, durante o surgimento do diálogo formado pelo casal, porém há uma espécie
de determinação desse modo imperativo que se sobrepõe ao anterior, proferido pelo sexo
oposto: “Cala essa boca”, aqui é enaltecida a ordem pelo lado de dentro da porta, ou seja, pela
companheira, todavia isso acontece como consequência do rompimento da ideia de
dominação defendida pelo ex-companheiro.
O exposto acima concede salientar a independência afetiva dessa mulher, conquistada
e ratificada, simbolicamente, pela não abertura do elemento porta, pois se feita a ação,
apenas contemplaria o caráter permanente de submissão, além de permitir a posição sádica
do eu na relação desgastada.
Ao mesmo tempo, percebe-se que ela, num processo de autocastigo, rememora, como
numa posição masoquista, ações consideradas, naquele momento, destrutivas, em função de
um sentimento: “Eu que lavei/ Os teus lençóis/Sujos de tantas/outras paixões/Que
ignorei/As outras muitas, muitas”. A ideia da culpa é visivelmente apontada não por quem
feriu, mas por quem foi ferido, pois aponta a cumplicidade daquela mulher aos atos ilícitos
do companheiro que condicionada pelo sentimento amoroso, concorda em ocultar algo, as
traições, o que justifica o momento de angústia da vítima.
Em seguida, na demonstração desse empoderamento emocional, essa mulher
minimiza essa tensão, apoiando-se numa verbalização imperativa num tom de pedido: “Vai,
depois liga/Diz pra sua irmã passar”, mas que reafirma sua dominação frente àquele homem,
assim como alimenta a liberdade conquistada: “Mas o universo hoje se expandiu”, apesar da
não abertura da porta física, paradoxalmente, houve o querer abrir da porta psicológica “E
aqui de dentro a porta se abriu”.
Na canção de Chico Buarque e Hime, a tensão feminina é provocada pela ação oposta
àquilo que era considerado habitual entre o casal, no atrás da porta. A cumplicidade erótica

252
Anais

fortemente estabelecida, vinculada ao ato sexual, mas implicitamente exposta devido ao


aspecto eufemístico da linguagem com a relação do que é permitido ocorrer após o transitar
da porta como pode ser confirmado nos seguintes versos “Quando olhaste bem nos olhos
meus/E o teu olhar era de adeus/Juro que não acreditei”.
Nesse momento, os compositores apresentam a cena aflita do eu-feminino que se
encontra em um intenso episódio de dilaceramento diante da interrupção da continuidade
da relação amorosa. O que traz como resultado a brusca ruptura entre os amantes e a
barreira que se instala pela porta que agora se fecha para não mais ser aberta para eles.
À vista disso, decorre a relação psicanalítica demasiadamente forte, dentro de um viés
sádico-masoquista “E me arrastei/E me agarrei”, em que ela se objetifica como algo que deve
ser usado e gastado, assim como uma moeda de troca.
Dessa maneira, a perda do amor próprio e do equilíbrio, num rebaixamento do ser ao
nível da humilhação avalia o subjugar-se da emissora do texto. Algumas atitudes impulsivas,
provenientes do desespero causado pelo contexto da separação: “Nos teus pêlos/Teu
pijama/Nos teus pés/Ao pé da cama”, configuram-se como um ato de castigo provocado e
aplicado a si própria.
Notoriamente, é concedida na canção “Atrás da porta” a possibilidade de identificar
uma teia intertextual com o repertório artístico e cultural do período Medieval, a partir do
diálogo com a Cantiga Lírica Trovadoresca, especificamente a de Amigo, devido à condição
de sofrimento amoroso feminino vivenciado, contudo dentro de uma nova roupagem.
O alimentar do clima tensivo da figura feminina também pode ser favorecido pela
estratégia de construção do poema musicado. O recurso estilístico cavalgamento, como em
“Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei” que decorre da suspensão de um
verso que se completará no verso seguinte, realça a desconsolação da amante, trazendo uma
ideia de soluçar durante o processo narrativo. Para mais, a posição do sujeito (Eu), logo após
um pronome de 2ª pessoa (te) e em seguida o verbo, traz a percepção que apesar da ação ser
forte e acentuada, mais forte, ainda, será o objeto (sobre o teu corpo).
Além disso, Chico Buarque e Hime, ressaltaram o tom de reflexão sádica para essa
mulher por meio da conjugação verbal, pretérita, apresentada. Verifica-se que o tempo
passado é usado para rememorar algo que não acontece no presente e que possivelmente
não ocorrerá no futuro.
Consequentemente, os autores facilitam a chegada de uma atitude de reação por parte
do eu-lírico, o qual caracteriza-se pelo teor inusitado dos versos "Dei pra maldizer o nosso

253
Anais

lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço", caracterizando a


proposta de mudança sentimental do “Eu” sádico para fora.
No entanto, o eu-feminino, transfigurado nos dois últimos versos, "Pra mostrar que
ainda sou tua/ Até provar que ainda sou tua...", reassume a posição sádica para dentro, num
modelo de punição a si mesma, ratificando a postura de uma mulher frágil, subjugada e
dependente, emocionalmente, de um homem ingrato e egocêntrico.

Considerações finais

Neste trabalho foi exibida uma análise sobre a simbologia da porta e sua relação
expressiva a uma relação amorosa, presente em duas canções: Do lado de Dentro e Atrás da
Porta, composições nacionais dos autores Marcelo Camelo de Souza, da primeira obra; e
Buarque de Hollanda e Hime, da segunda obra. Para tanto, utilizou-se Os estudos simbólicos
desse objeto, por Chevalier e Gheerbrant (2007), e A poética do espaço, por Bachelard (2009).
Em análise, o ritmo da relação amorosa presente nas duas composições foi
vislumbrado, nas quais a tensão vivida dentro de uma relação sensualizada eroticamente e a
conduta feminina marcada pelo sofrimento decorrente da partida de seu amor são opostas:
de um lado, a liberdade de um eu-poético que transita para um momento sem as amarras
medievais impostas pelo seu amante; do outro, a dependência de um eu-poético feminino
que não consegue e não quer atravessar a porta, mas se esconde atrás desse objeto com as
lembranças e mágoas de uma relação outrora existente.
Tais constatações trouxeram à tona o caráter psicanalítico do estudo, com as
contribuições de Sigmund Freud, por meio de suas Obras completas (2014); em verificação,
notam-se as tensões provocadas pelas escolhas lexicais de ambas as composições, as quais
se relacionam à simbologia da porta pela presença de verbos no pretérito, indicando a
ruptura do relacionamento; do imperativo, reforçando o empoderamento feminino, bem
como outras impressões e analogias de libertação e prisão antitéticas, quando defrontadas
as duas canções.
Por fim, os subtópicos em que se relacionam os versos de ambas as composições
demonstram que a perspectiva de análise do elemento simbólico “porta” dialoga com a
interpretação psicanalítica do estado tensivo do eu-lírico. Isso ocorre, enfim, pela observação
dos universos criados nas canções, em que se apresentam momentos nos quais se
reconhecem uma figura feminina, um sentimentalismo e certa ambiguidade.

254
Anais

Tal ambiguidade revela uma ideia de oposição entre a liberdade, em “Do Lado de
Dentro”, e o aprisionamento, em “Atrás da porta”. Sendo assim, mesmo que essa ideia de
cerceamento próprio, revelada na segunda canção, pareça minimamente consensual na visão
do eu lírico feminino, a primeira música já rompe com esse ideário de dependência afetiva
da figura da mulher e aponta para um novo comportamento, o de empoderamento.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1958.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonho, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

FREUD, Sigmund. Obras completas: inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e
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MORAES, Marília Brandão Lemos. Poesia, psicanálise e ato criativo: uma travessia poética.
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255
ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO
E A VISIBILIDADE NOS CONTOS
DE LYGIA FAGUNDES TELLES E
EDGAR ALLAN POE
Mariluz Marçolla Ferreira AVRECHACK (PUC-SP)1

RESUMO

Ao se tratar da literatura insólita, a paulistana Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e o norte-


americano Edgar Allan Poe (1809-1849) são dois nomes de destaque no cenário nacional e
internacional, respectivamente. No que concerne à produção de contos desconcertantes, as
obras “Venha ver o pôr do sol” (1988) e “O barril de amontillado” (1846) representam
composições em que a criação do espaço narrativo atua enquanto estratégia fundamental
para alimentar o imaginário do leitor. Dessarte, o trabalho busca investigar de que maneira
se assemelham as construções estéticas do espaço insólito em ambas as narrativas
mencionadas, além de buscar compreender como a linguagem textual construída pelos
escritores opera enquanto mecanismo desencadeador da visibilidade dos espaços narrados
nas obras. Os referenciais teóricos da investigação se constituirão por Mikhail Bakhtin, em
Teorias do romance II: As formas do tempo e do cronotopo (2018 [1975]), Italo Calvino, no
ensaio “Visibilidade”, presente na obra Seis propostas para o próximo milênio (1990 [1985])
e Remo Ceserani em seu livro O fantástico (2006 [1996]). O desenvolvimento do trabalho
pode contribuir para o alargamento de estudos voltados à categoria do espaço narrativo – a
qual possui sua poética ainda tão pouco explorada. A pesquisa é qualitativa, de caráter
descritivo, seguindo o método analítico, hipotético-dedutivo.

1 Especialista (PUC-PR) com mestrado em Literatura e Crítica literária (PUC-SP) em andamento;


Órgão financiador da pesquisa: CAPES; CPF: 171.585.857-35; E-mail: mariluzmarcolla@gmail.com

256
Anais

Palavras-Chave: Literatura comparada; Fantástico; Espaço narrativo; Lygia Fagundes


Telles; Edgar Allan Poe.ABSTRACT

In fantastic literature the Brazilian Lygia Fagundes Telles (1918-2022) and North American
Edgar Allan Poe (1809-1849) are important names on the national and international scene.
Concerning the production of disconcerting short stories, the works "Come and see the
sunset" (1988) and "The cask of amontillado" (1846) are compositions in which the creation
of narrative space acts as a fundamental strategy to feed the reader’s imaginary. Thus, the
work seeks to investigate how the aesthetic constructions of the space are similar in both
narratives mentioned, and also seeks to understand how the textual language constructed
by the writers operates as a mechanism for the visibility of the spaces narrated in these short
stories. The theoretical references of the investigation will be constituted by Mikhail Bakhtin,
in Theories of the novel II: The forms of time and the chronotope (2018 [1975]), Italo Calvino,
in the essay "Visibility", presented in the work Six memos for the next millennium (1990
[1985]) and Remo Ceserani in his book The Fantastic (2006 [1996]). The development of this
research can contribute to the expansion of studies focused on the category of narrative
space - which its poetic still almost unexplored. The research is qualitative, descriptive,
following the analytical, hypothetical-deductive method.

Keywords: Comparative literature; Fantastic; Narrative space; Lygia Fagundes Telles; Edgar
Allan Poe

O conto e o espaço visível: uma introdução

“O homem possui a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de


pensar por imagens.” (Italo Calvino)

O gênero narrativo conto possui a qualidade de arrebatar o leitor em poucas páginas.


É um gênero literário que se difere de outros por uma particularidade em sua elaboração: o
alcance de efeitos expressivos com o mínimo de meios. Vários foram os escritores que se
dedicaram à produção desse gênero narrativo, mas um deles possui grande destaque: o
norte-americano já avalizado pela crítica universal, Edgar Allan Poe, nascido em Boston, em
1809.
O escritor e crítico literário argentino Julio Cortázar (2008, p. 121) revela, em sua obra
Valise de Cronópio, que “Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor no
plano imaginativo e espiritual”. Não só a extensão define uma obra como pertencente ao
gênero conto, mas a capacidade de cativar a atenção, como percebe-se no conceito de conto,
elaborado por Cortázar (2008, p. 122): “Um conto é uma verdadeira máquina literária de
criar interesse”. Toda máquina é um dispositivo que se utiliza de energia e trabalho para
atingir a um objetivo predeterminado, sendo assim, uma máquina literária seria um modelo

257
Anais

de escrita ficcional idealizado e escrito de modo a gerar um efeito já planejado: o interesse


do leitor.
Essa máquina literária de criar interesse era tão clara para Edgar Allan Poe que o
crítico chegou a elaborar, em 1846, o ensaio A filosofia da composição. Nesse trabalho, afirma
ser imprescindível que a leitura ocorra “de uma só assentada”, de modo a se atingir certa
“unidade de efeito” que é causada por um estado de excitação ou de exaltação da alma. Esse
estado que a obra pode provocar no leitor só é conseguido por meio de uma leitura atenta, a
qual não se pode alcançar em um gênero extenso (POE, 2011).
Ao se abordar o conto como gênero literário, Poe é sempre evidenciado por ter sido
responsável por importantes inovações relacionadas a esse gênero:

Os comentários críticos de Poe em meados do século XIX são responsáveis


pelo nascimento do conto como um gênero único. Como o primeiro teórico
do conto, ele trouxe à discussão questões de forma, estilo, duração, design,
objetivos autorais e efeito no leitor, desenvolvendo a estrutura dentro da
qual o conto é discutido até hoje. Avaliando o status do conto como gênero,
ele o classificou como muito alto no panteão das artes, perdendo apenas para
a forma lírica. Sua maior contribuição foi o conto com tensão e, assim, o
impregnou com os atributos definidores da poesia.2 (PATEA, 2012, p. 3,
tradução nossa).

Poe inovou e tornou-se um pilar na produção de contos. Depois dele, vários autores
também enriqueceram a literatura desse gênero, dentre eles, uma especificamente chama
atenção pelos pontos que se assemelham entre as suas produções e as produções do norte-
americano: a brasileira Lygia Fagundes Telles. Nascida em São Paulo, em 1918, Telles foi
considerada uma das maiores contistas do país, além de ter sido premiada
internacionalmente. Mesmo com a diferença temporal existente entre esses escritores,
observa-se que ambos empregam uma linguagem textual específica, da qual se revela o
ambiente insólito das narrativas.
De modo a avançar as teorias já amplamente conhecidas desenvolvidas pelo teórico
búlgaro Tzvetan Todorov, o italiano Remo Ceserani (2006) é trazido à discussão. Para este
crítico ainda pouco explorado, o fantástico seria um “modo” literário utilizado em obras

2Poe’s critical comments towards the middle of the nineteenth century are responsible for the birth of the short
story as a unique genre. As the first short story theorist, he brought into discussion issues of form, style, length,
design, authorial goals, and reader affect, developing the framework within which the short story is discussed even
today. Evaluating the status of the short story as a genre, he ranked it very high in the pantheon of arts, second
only to the lyric form. His major contribution was to invest the short story with tension and thus to impregnate it
with the defining attributes of poetry.

258
Anais

pertencentes a gêneros diversos. Vários teóricos conceituaram o fantástico como um gênero


em si, mas aqui será compreendido enquanto modo, ou seja, enquanto uma estratégia
narrativa para causar determinados efeitos no leitor, seguindo as postulações que se
evidenciam no trecho:

O fantástico envolve fortemente o leitor, leva-o para dentro de um mundo


familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer disparar os mecanismos de
surpresa, de desorientação, do medo: possivelmente um medo percebido
fisicamente, como ocorre em textos pertencentes a outros gêneros e
modalidades, que são exclusivamente programados para suscitar no leitor,
longos arrepios na espinha, contrações, suores. (CESERANI, 2006, p. 71).

Ceserani (2006) afirma ainda que a partir da primeira metade do século XIX, surgiu
uma clara prática textual que perdurou até o século seguinte, na qual o modo fantástico foi
empregado como elemento fundamental em diversas obras literárias nas quais o autor tinha
como principal intenção causar experiências intensas e inquietantes.
Edgar Allan Poe escreveu por volta da metade do século XIX e Lygia Fagundes Telles,
no século seguinte. Ao aliar essa premissa temporal juntamente com a unidade de efeito que
suas obras geram à mente do leitor, observa-se que, segundo as postulações de Ceserani, Poe
e Telles utilizaram em várias de suas produções o modo fantástico enquanto recurso
narrativo, produzindo então, contos fantásticos.
Dentro do conjunto de contos fantásticos elaborados por Lygia Fagundes Telles e
Edgar Allan Poe, há duas obras que chamam atenção devido a suas construções narrativas,
sendo “Venha ver o pôr do sol”, publicado por Telles em 1988 e “O barril de amontillado”,
publicado por Poe em 1846. De modo a expor mais claramente o elemento que mais nos
chama atenção nessas obras, apresentaremos brevemente o enredo de cada uma delas.
Em “Venha ver o pôr do sol”, o personagem Ricardo convida sua ex-namorada, Raquel,
para um último encontro. Raquel vai até o endereço indicado e percebe que esse encontro se
dá em um cemitério abandonado, com o portão consumido pela ferrugem, o mato cobrindo
até as sepulturas e as folhas secas espalhadas sobre os pedregulhos enegrecidos. A
personagem continua a ser guiada por Ricardo até que caminham suficientemente longe de
qualquer testemunha e, assim, Ricardo realiza sua vingança. Nessa narrativa, o espaço
também é responsável pela construção do horror presente no conto.
Em “O barril de amontillado”, o personagem-narrador Montresor manifesta o quanto
já havia suportado as diversas ofensas do vaidoso Fortunato. Em um dia de carnaval, no qual

259
Anais

Fortunato encontra-se alcoolizado, Montresor o atrai ao afirmar que possui, em seu castelo,
um barril de amontillado e que precisaria de alguém que comprovasse a veracidade daquele
raro vinho. Fortunato é guiado até a adega de Montresor, nas profundezas escuras de seu
castelo. Ao chegarem fundo suficiente naquele ambiente, Montresor executa sua maligna
vingança. Por meio desta breve explanação do enredo é possível perceber que a construção
do espaço desse conto contribui para a criação do horror na diegese.
Percebe-se um ponto especificamente inquietante: a construção do espaço narrativo.
E, mais precisamente, a maneira como as construções tornam-se visíveis na imaginação do
leitor durante o desenvolvimento da narrativa. A partir da leitura de obras literárias, a
imaginação produz imagens, e, diante dessa produção imagética urge questionar: de que
forma é possível aproximar a construção dos espaços narrativos nos contos “Venha ver o pôr
do sol” e “O barril de amontillado”?
Parte-se das hipóteses de que o espaço atua como mecanismo responsável pela
construção da visibilidade (CALVINO, 1990) nos contos, pois este operador se projeta na
mente do leitor e torna-se visível e o espaço narrativo é visível a partir da enunciação dos
narradores, por meio da linguagem investida em ambas as narrativas breves.
Para embasar a análise, o ensaio “Visibilidade”, de Italo Calvino, presente na obra Seis
propostas para o próximo milênio (1985) se faz essencial pois nele Calvino aborda a questão
da imagem visiva criada até o alcance da expressão verbal, com exercícios imaginativos. E,
sobre o espaço narrativo, serão abordados os estudos de Mikhail Bakhtin presentes na
compilação de ensaios intitulada Teorias do romance II: As formas do tempo e do cronotopo
concebida ao longo da década de 30 e publicada apenas em 1975. Nessa produção, Bakhtin
faz conceituações que embasam as relações entre tempo e espaço em narrativas em prosa,
sendo um estudo basilar contemporaneamente. Por meio de uma análise crítica a respeito
da visibilidade do espaço narrativo presente na construção dos contos fantásticos de Telles
e Poe pretende-se discutir o conceito de Calvino a partir da construção de um elemento da
macroestrutura narrativa – o espaço –, e assim, contribuir para a compreensão do lugar da
imagem na literatura, a qual, segundo Octávio Paz (2015) possui o poder de dizer o indizível.

A visibilidade

O ensaio de Italo Calvino, intitulado “Visibilidade” é iniciado por uma citação da obra
de Dante, O Purgatório, que revela: “Chove dentro da alta fantasia”. Calvino (1990, p. 97)

260
Anais

complementa a citação, afirmando que “a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro


do qual chove.” É sabido que a chuva traz prosperidade aos terrenos de plantio, então, se a
literatura é um terreno no qual se planta muitas obras potentes, chove nos contos “Venha
ver o pôr do sol” e “O barril de amontillado”, tendo em vista seu caráter narrativo produtor
de imagens pela imaginação.
Para Calvino (1990, p. 99), a imaginação é crucial para a narrativa. O crítico conceitua
que há dois tipos de processos imaginativos, “o que parte da palavra para chegar à imagem
visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal”. Interessa-nos aqui o
primeiro processo, o qual ocorre comumente na literatura, pois, ao ler qualquer texto, diante
dos olhos do leitor se desdobra a cena lida, tal como uma projeção cinematográfica, como um
“cinema mental” exibido em nossa tela interior. A imaginação visiva é, portanto, uma fantasia
individual que compõe os lugares físicos, as personagens e as cenas que se passam aos olhos
do leitor.
A imagem visual surge primeiramente na cabeça do escritor, e esse deve deixar que a
imagem guie sua imaginação, e, a partir do momento que é iniciada a escrita, a palavra passa
a guiar a narrativa. Assim, a imaginação visual que havia se iniciado na mente do escritor,
passa a perseguir a palavra escrita. A palavra pode ser passada a mais pessoas, e dessa forma
uma narrativa é disseminada, e cada leitor imaginará visualmente o que está narrado por
palavras, e que foi incialmente imaginado pelo escritor. Tal como um ciclo visual de
imaginação-imagem literária.
Enxergar a visibilidade de uma narrativa é viável mesmo que de olhos fechados. A
imaginação projeta as imagens a partir do que está narrado em palavras escritas em uma
folha de papel. Entende-se então que a partir da visibilidade é possível pensar por imagens.
A formação da parte visual da imaginação pode ocorrer de algumas formas, como se observa
no trecho:

Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da


imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração
fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus
vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da
experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto
na verbalização do pensamento. (CALVINO, 1990, p. 110).

Para o crítico, épocas especialmente ricas para a imaginação visual foram o


Renascimento, o Barroco e o Romantismo, e alguns autores são considerados modelos para

261
Anais

suscitar a imaginação visual em suas obras, em especial contistas do século XIX como
Hoffmann, Nerval e Poe – um dos autores alvo de nossa análise.
Em seu ensaio, Calvino já se demonstrava preocupado com a formação do imaginário
em um período no qual as pessoas não precisam mais pensar por imagens. E realmente, na
contemporaneidade, grande parte das imagens chegam ao leitor sem que o mesmo faça
esforço algum para imaginá-la. As mídias digitais entregam um número incessante de
imagens em períodos de tempo curtos demais, logo, o leitor de posts instantâneos em redes
sociais de internet não desenvolve a parte visual de sua imaginação no mesmo grau que um
leitor de narrativas o faz. Como ficariam as narrativas fantásticas em meio a isso?
Nos contos fantásticos o leitor é mergulhado em inquietação do imaginário e aos
arrepios na espinha. Mesmo o leitor despreparado, acostumado com imagens prontas aos
seus olhos, rende-se a esse lançamento que a modalização fantástica e insólita construída de
forma habilidosa lhe impõe. Acredita-se que o efeito da visibilidade da imagem nas
narrativas fantásticas não se perde mesmo com as mudanças frenéticas no olhar do novo
milênio.
Tal posicionamento justifica-se pois, como define Gottfried Boehm (2015, p. 26), a
partir da imaginação pictórica, “as imagens nos colocam em um estado de infância, e nos
lembram como nós, crianças, aprendemos simultaneamente a ver e a fabricar imagens.” Ou
seja, por mais que o homem contemporâneo receba, na maioria das vezes, a visualidade já
pronta diante de seus olhos, na sua infância esse indivíduo exerceu sua imaginação por meio
de leituras imaginativas de livros quando ainda nem era alfabetizado – assim como Calvino
relata que era sua prática costumeira.
Com isso, objetiva-se demonstrar que o exercício da imaginação visual ocorre desde
a infância do indivíduo, e, quanto mais exercitada por meio de leituras literárias, mais
aguçada e clara torna-se a visualidade dos acontecimentos narrados. A visibilidade da
imagem, portanto, sempre poderá ocorrer, porém, a nitidez dessa visibilidade dependerá de
treinamento, do exercício de leitura narrativa.
A partir desta breve explanação sobre o conceito e expressão da visibilidade na
narrativa, em especial da visibilidade insólita-ficcional, espera-se ser possível compreender
como a imaginação torna uma imagem visível aos olhos do leitor, o qual passa a ler uma
narrativa como se desenrolasse uma projeção cinematográfica diante de seus olhos. Assim
sendo, um dos operadores narrativos em que melhor se pode ver projetada a imagem é o
espaço da narrativa. À vista disso, cabe compreender um pouco sobre o espaço e o quanto

262
Anais

sua construção estética pode atuar como elemento imagético de narrativas, em especial, de
narrativas breves.

O espaço narrativo imagético

O espaço é um importante elemento da macroestrutura narrativa que, de uma


maneira geral, pesquisadores não se debruçam com tanta expressividade, muito
provavelmente pela relação que este operador possui com o tempo narrativo, sendo esse
último a espinha dorsal do mecanismo tempo-espaço, e, portanto, o tempo acaba por ser o
objeto de maior análise no âmbito dos estudos literários.
Considera-se que o estudo do espaço narrativo requer maiores contribuições, assim
será feita uma concisa elucidação a respeito deste recurso que pode ser compreendido como

conjunto de referências de caráter geográfico e/ou arquitetônico que


identificam o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. Ele se caracteriza,
portanto, como uma referência material marcada pela tridimensionalidade
que situa o lugar onde personagens, situações e ações são realizados.
(FRANCO JUNIOR, 2019, p. 48).

Dessa forma, observa-se que o espaço exerce a função de situar o leitor de uma
narrativa em relação às situações que se desenrolam na diegese.
É importante ressaltar que não se pretende fazer aqui um estudo meramente
geográfico-linguístico do espaço narrativo construído nos contos fantásticos “Venha ver o
pôr do sol” e “O barril de amontillado”. Nossa intenção é perceber como o espaço construído
pelos narradores elaborados por Telles e Poe revela a imagem fantástica nesses contos.
Para evidenciar a questão imagética que se manifesta a partir do espaço evidencia-se
o teórico Bakhtin (2018) e seu conceito de cronotopo – entendido como as relações de tempo
e de espaço que são assimiladas na literatura –, sendo então o “tempo-espaço” literário.
Bakhtin (2018, p. 227) afirma que no cronotopo os acontecimentos do enredo se
concretizam, ganhando forma e corpo e “o próprio cronotopo fornece um terreno importante
para a exibição-representação dos acontecimentos” narrados.
Bakhtin (2018) revela que há um significado figurativo do cronotopo que se manifesta
por uma condensação espacial que concretiza o tempo em narrativas em prosa – podendo
esse tempo ser histórico, o tempo da vida humana etc. – e, a partir disso, é criada a

263
Anais

possibilidade de construir no cronotopo as imagens dos acontecimentos. Dessa forma,


entende-se que toda imagem literário-ficcional é essencialmente cronotópica.
Com tal característica, o espaço narrativo pode ser compreendido como um dos meios
responsáveis pela exibição da visualidade da imagem narrada, tendo em vista o caráter
determinante que esse elemento possui, a partir das conceituações de Bakhtin. E, sendo a
construção do espaço um elemento tão marcante nas obras alvo de nossa análise, é evidente
que a visibilidade desse espaço se projeta nos olhos conforme a leitura é feita. É razoável
abrir ainda mais a reflexão a respeito da visualidade dos espaços nos contos de Telles e Poe
e indagar se esse recurso seria o responsável pela aplicação do modo fantástico nas obras.
O crítico de arte Alberto Tassinari, em seu livro O espaço moderno, postula sobre a
obra de arte moderna e contemporânea, direcionando seus apontamentos mais
especificamente às gravuras e pinturas. Tassinari (2001) aborda a questão da espacialidade
de uma obra, definindo que há diferentes esquemas espaciais que correspondem a diferentes
estruturas do espectador. Se transpusermos o olhar do filósofo para o escopo da literatura,
percebe-se que camadas de sensibilidade podem ser despertadas no leitor a partir de uma
obra literária, podendo essa obra avançar as diferentes estruturas subjetivas do ledor de
uma narrativa.
O espaço literário pode ser lido da mesma maneira por todos os leitores, no que se
refere à linguagem textual apresentada, porém, a imagem visual construída por cada leitor
através de sua visualidade do espaço narrativo se dá a partir da sua sensibilidade subjetiva,
das diferentes estruturas do leitor que passa a ser um espectador da obra literária, de
maneira particular e única.
Entende-se as estruturas do espectador a que Tassinari se refere em relação às
pinturas como as estruturas do leitor do espaço narrativo, as quais – por meio da leitura do
texto escrito, passam a ser o espectador dos espaços apresentados na obra literária. Ao
pensar no espaço de uma narrativa, essas estruturas são visualizadas de maneira subjetiva,
a depender da sensibilidade e exercício imaginativo de cada leitor. A partir dessa reflexão,
correlaciona-se a assimilação visual do espaço narrativo às reflexões de Calvino a respeito
da visibilidade literária, e percebemos que a imaginação visual do espaço ocorre à medida
que a enunciação do narrador representa o espaço e o leitor pode passar a perceber a
espacialidade projetada em seus olhos.
O sujeito da enunciação, por meio da linguagem empregada nos contos contribui para
a descrição minuciosa do espaço, de modo que esse operador seja exibido visualmente a

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Anais

partir da escrita, transformando-se então no principal elemento construtor da imagem nas


narrativas. A partir do que se apresentou até o momento, percebe-se que a reflexão sobre a
visualidade percebida através da construção do espaço narrativo é relevante,
principalmente para a contemporaneidade tão orientada pela imagem. Cabe agora analisar
mais cuidadosamente como os espaços construídos por Lygia Fagundes Telles em “Venha
ver o pôr do sol” e Edgar Allan Poe no conto “O barril de amontillado” revelam imagens na
mente leitor, a partir da visibilidade.

A visibilidade do espaço narrativo em Poe e Telles

Neste tópico do estudo será demonstrado brevemente, a partir de trechos retirados


das narrativas, como os autores alvo da análise elaboraram os espaços a partir da enunciação
dos narradores de tal modo que se pode suscitar a visibilidade da imagem desses espaços na
mente do leitor. A sequência de investigação se dará com base nas datas de publicação dos
contos, sendo a obra de autoria do norte-americano o primeiro a ser destrinchado.
O conto “O barril de amontillado”, Poe apresenta as personagens da narrativa e o
plano de vingança de Montresor, que conduz Fortunato para sua adega que se localiza no
palácio do personagem rancoroso. Montresor anuncia no diálogo que a adega está
extremamente úmida, com as paredes cobertas de salitre. O leitor visualiza, através da
leitura, o espaço profundo e insólito no qual Montresor leva seu amigo:

Peguei dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o


através de várias salas até a passagem da abóboda que levava a adega. Descia
à frente dele uma longa e tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado.
Chegamos por fim ao sopé e ficamos juntos no chão úmido das catacumbas
dos Montresors. (POE, 2017, p. 218-9).

O diálogo revela que a adega é também uma catacumba e que há fileiras de garrafas
de variados vinhos empilhadas no chão. Se observa mais detalhes no trecho: “Havíamos
passado diante de paredes de ossos empilhados, entre barris e pipotes, até os recessos
extremos das catacumbas.” (POE, 2017, p. 220). O clima de horror passa a dominar a
narrativa a partir da descrição do espaço do conto, o leitor pode ver esse espaço ser exibido
em seus olhos: “Passamos por uma série de baixas arcadas, demos voltas, seguimos para
frente, descemos de novo e chegamos a uma profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia
a chama de nossos archotes a brasas avermelhadas.” (POE, 2017, p. 220-1).

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Anais

O leitor se vê guiado na cena pelo detalhamento com que o espaço sombrio lhe é
apresentado. O personagem vingativo leva sua vítima até o recanto mais remoto da cripta e
lá, há paredes já preparadas para a execução de sua desforra:

Nas suas paredes alinhavam-se restos humanos empilhados até o alto da


abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta
interior estavam assim ornamentados. Do quarto, haviam sido afastados os
ossos que jaziam misturados no chão, formando em certo ponto um
montículo de avultado tamanho. Na parede assim desguarnecida dos ossos,
percebemos um outro nicho, com cerca de um metro e vinte de
profundidade, noventa centímetros de largura e um metro e oitenta ou dois
metros e dez de altura. Não parecia ter sido escavado para um uso especial,
mas formado simplesmente pelo intervalo entre dois dos colossais pilares
do teto das catacumbas e tinha como fundo uma das paredes de sólido
granito. (POE, 2017, p. 221).

Através de sua imaginação visual, o leitor pode ver o personagem Montresor prender
Fortunado por correntes na catacumba, e em seguida, emparedá-lo aos poucos com
argamassa. Tudo já estava previamente preparado para o fim trágico de Fortunado. A estória
arrepia, pois o leitor é capaz de visualizar toda a cena sombria se desenrolar pela visibilidade
do local descrito na narrativa: “Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a.
Contra a nova parede reergui a vermelha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal
algum os remexeu. In pace requiescat.” (POE, 2017, p. 223).
A cena final do conto fantástico revela claramente que Montresor emparedou vivo o
personagem Fortunado, e que ninguém jamais tocou nos ossos que ele depositou acima da
parede na qual deixou Fortunato. A linguagem textual construiu espaço e, a partir daí, a
visibilidade da imagem foi produzida nos olhos do leitor, causando-lhe efeitos.
O conto “Venha ver o pôr do sol” possui a descrição dos espaços muito detalhada, o
que facilita ainda mais a imaginação visual dessa narrativa. Telles abre o conto com o
narrador, que está fora da estória, descrevendo que as personagens estão em um local quase
deserto: “Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam
rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios.” (TELLES,
1999, p. 123). Não demora para que a personagem Raquel perceba que o encontro é em um
cemitério abandonado, pois já à primeira vista há muros arruinados e o portão de ferro
carcomido pela ferrugem.
No conto de Poe, o leitor consegue visualizar a catacumba profunda, sombria e úmida
do palácio, a partir da descrição narrativa do espaço narrativo, transformando esse espaço

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Anais

em imagem à sua mente. Telles alcança o mesmo efeito, pois é possível ao leitor imaginar
visual e claramente a partir da linguagem que representa o espaço, como no trecho:

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso


pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos
mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se
quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos
vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os
passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do
som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. [...] às vezes mostrava
certa curiosidade por uma outra sepultura com os pálidos medalhões de
retratos esmaltados. (TELLES, 1999, p. 125-6).

A construção do espaço em “Venha ver o pôr do sol” é muito cuidadosa, cada elemento
inserido agrega tensão e inquietação à narrativa, como se observa no momento em que são
descritas as sepulturas, com ervas daninhas brotando insólitas de dentro de fendas, os
musgos cobrindo os nomes das lápides, as folhas secas no chão, nas quais os personagens
vão pisando enquanto dialogam, revelando o silêncio daquele local inóspito.
A imaginação visual do leitor acompanha a apresentação de cada detalhe, o clima
insólito percorre a narrativa:

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia não furioso abraço de cipós e folhas. A estreita
porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de
paredes enegrecidos, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do
cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira
acordou tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco
crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois
triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que
alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da
porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra,
descendo em caracol para a catacumba. (TELLES, 1999, p. 128).

A partir das breves passagens dos enredos transpostas, é evidente o quanto o espaço
se manifesta como recurso instaurador do modo fantástico nos narradores elaborados por
ambos os escritores. O espaço pode ser enxergado claramente a partir da imaginação visual
do leitor, que passa a ser conduzido pela adega e pelo cemitério como se estivesse ao lado
das personagens na estória, no desenrolar da cena.
É importante ressaltar que o leitor precisa estar aberto à essa visibilidade espacial, e
assim, a narrativa penetra em várias de suas estruturas enquanto espectador, ou seja, o conto

267
Anais

penetra em suas camadas subjetivas de visibilidade. Para atuar como espectador de uma
narrativa, é necessário atenção aos detalhes apresentados pelos narradores – os quais são
criações de Telles e Poe, caso contrário, pode haver lacunas visuais na projeção da cena
imaginada por meio da leitura. Sobretudo, é importante lembrar que o processo de
visibilidade gerado por meio da literatura não pode ser predefinido ou controlado, ele se
desenvolve natural e organicamente à medida que o contato com diversas narrativas ocorre
e se intensifica.

Considerações finais

Os espaços construídos nos contos analisados são insólitos, sombrios e assustadores.


Portanto, a descrição minuciosa desses espaços, feita através da enunciação e linguagem
textual, é responsável pela delimitação desses contos como fantásticos, tendo em vista que
este operador narrativo cooperou para a aplicação da modalização fantástica nas obras.
A partir da análise sobre o que é visibilidade literária e de como o espaço narrativo
pode projetar a visibilidade nos olhos do leitor, é possível responder ao nosso
questionamento inicial confirmando as hipóteses de que o espaço se constitui enquanto
importante mecanismo gerador da visibilidade narrada, projetando-se na mente de quem lê
os caracteres pretos em uma folha branca, a partir da enunciação dos narradores, ou seja,
por meio da linguagem investida em ambas as narrativas breves.
A visibilidade é construída através do trabalho de elaboração e escrita detalhada do
espaço, através da linguagem textual dos contos, aliada à entrega do leitor ao texto. Essa
entrega se dá no ato de se deixar levar pela imaginação visual que é exibida à mente desse
leitor no decorrer da leitura literária. Dessa forma, quanto mais o leitor estiver em contato
com obras ficcionais, mais facilmente o processo imaginativo visual ocorre. Do contrário, o
contato em excesso com imagens prontas pode não fortificar tanto a imaginação visual do
indivíduo.
Diante do que foi exposto neste estudo, observa-se que há autores que estimulam de
maneira mais clara a abertura à visibilidade em suas produções, por meio da manipulação
da linguagem. Lygia Fagundes Telles e como Edgar Allan Poe buscaram nestas produções
concretizar este trabalho. Após o que foi aqui apresentado, espera-se que nosso leitor busque
realizar a leitura destes contos e libere a imaginação visual que os espaços fantásticos e
insólitos podem suscitar, e dessa forma, experimente a visibilidade literária.

268
Anais

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. São Paulo:
Editora 34, 2018.

BOEHM, Gottfried. Aquilo que se mostra: sobre a diferença icônica. In: ALLOA, Emmanuel
(org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 23-39.

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São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 95-114.

CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba, PR: UFPR, 2006.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 2008.

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. “Operadores de leitura da narrativa”. In: BONNICI, Thomas;


ZOLIN, Lucia Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências
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PAZ, Octavio. Signos em rotação. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.

PATEA, Victoria. The Short Story: an overview of the history and evolution of the genre in
Short Stories: a twenty-first century perspective. New York: Rodopi, 2012.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

POE, Edgar Allan. O barril de amontillado. In: POE, Edgar Allan. Contos de terror, mistério
e morte. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 218-223.

TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr do sol. In: TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile
verde: contos. 16. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 123-131.

269
UM ENTRE-LUGAR DE
ENUNCIAÇÃO NA NARRATIVA
CONTEMPORÂNEA: SORRIA,
VOCÊ ESTÁ NA ROCINHA
Josivânia da Cruz VILELA (UEPB)1
Wanderlan ALVES (Orientador – UEPB)2

RESUMO

A virada dos anos 1990 para os anos 2000 marca o início de certa efervescência nos debates
acerca da literatura, motivados em grande medida pelas supostas transformações no seu
estatuto, na sua forma, e nos procedimentos estéticos e linguísticos colocados em prática no
texto literário. O que ocorre é que a literatura, enquanto materialidade, e a própria
concepção do que seja literatura, se transformam ou se atualizam, de modo a problematizar
(novamente) os limites que haviam definido o literário com relativa comodidade até meados
do ano de 1960, em prol da mescla, do jogo, da hibridação com os signos literários
(linguísticos, culturais, sociais). Tendo isso em mente, no presente trabalho objetivamos
analisar o romance Sorria, você está na Rocinha (2004), de autoria do escritor brasileiro Julio
Ludemir. Composto por três partes que se fragmentam entre si, o romance se estrutura por
meio de um processo escritural que articula a escrita jornalística, traços autobiográficos,
diário pessoal e relato antropológico, compondo uma espécie de “objeto verbal não
identificado”, no sentido em que o termo é utilizado por Flora Süssekind (2013) para
discorrer acerca de práticas artísticas e literárias que não podem ser classificados
tranquilamente, porque fogem às configurações tradicionais de enquadramento em gênero,
por exemplo.

1 Licenciada em Letras – com habilitação em Língua Espanhola – pela Universidade Estadual da


Paraíba. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB.
Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba. E-mail:
josivaniacruzvilela@gmail.com
2 Doutor em Letras e professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

270
Anais

Palavras-chave: Narrativa Contemporânea; Realidade-Ficção; Julio Ludemir.

ABSTRACT

The turn from the 1990s to the 2000s marks the beginning of a certain effervescence in the
debates about literature, motivated largely by the supposed changes in its status, in its form,
and in the aesthetic and linguistic procedures put into practice in the literary text. . What
happens is that literature, as materiality, and the very conception of what literature is, are
transformed or updated, in order to problematize (again) the limits that had defined the
literary with relative comfort until the mid-1960s, in favor of the mixture, the game, the
hybridization with the literary signs (linguistic, cultural, social). With this in mind, in the
present work we aim to analyze the novel Sorria, você está na Rocinha (2004), by the
Brazilian writer Julio Ludemir. Composed of three parts that are fragmented among
themselves, the novel is structured through a scriptural process that articulates journalistic
writing, autobiographical traces, personal diary and anthropological report, composing a
kind of “unidentified verbal object”, in the sense that the term is used by Flora Süssekind
(2013) to discuss artistic and literary practices that cannot be classified calmly, because they
escape the traditional settings of framing in genre, for example.

Keywords: Contemporary Narrative; Reality-Fiction; Julio Ludemir.

Dentro-fora da favela: uma posição (possível) para narrar a periferia

Fica parecendo um sonho, um delírio, uma visão, uma loucura: vista de longe,
com seus milhares de luzes faiscantes, a Favela da Rocinha se assemelha a
um gigantesco disco voador recém-pousado numa encosta de morro na
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Geneton Moraes Neto, orelha do
livro Sorria, você está na Rocinha, 2004)

O trecho supracitado, de autoria de Geneton Neto, que se encontra logo na orelha do


livro Sorria, você está na Rocinha remete à favela da Rocinha, no entanto, bem poderia ser
direcionado ao romance (enquanto materialidade escritural) de Julio Ludemir, já que a
narrativa do escritor brasileiro também comparte dessas indefinições próprias dos OVNIs.
Composto por três partes que se fragmentam entre si, o romance se estrutura por meio de
um processo escritural que articula a escrita jornalística, traços autobiográficos, diário
pessoal e relato antropológico, compondo uma espécie de “objeto verbal não identificado”,
no sentido em que o termo é utilizado por Flora Süssekind (2013) para discorrer acerca de
práticas artísticas e literárias que não podem ser classificados tranquilamente, porque fogem
às configurações tradicionais de enquadramento em gênero, por exemplo.
Em Sorria, você está na Rocinha, Julio Ludemir narra a história de Luciano Madureira,
jornalista que passa seis meses inserido na favela da Rocinha, com o objetivo de pesquisar

271
Anais

sobre o lugar e seus habitantes para posteriormente escrever um livro. Esse personagem
poderia ser pensado como uma espécie de alterego de Ludemir, em razão da convergência
de elementos biográficos do escritor com aspectos da história narrada. Assim como o
personagem do seu livro, Julio Ludemir passou seis meses na Rocinha para realizar
pesquisas com o objetivo de escrever um livro, mas nesse período foi acusado de ser um X-9
(termo utilizado na gíria da favela para se referir a delator), o que o levou a ser julgado pelo
tribunal do tráfico, e posteriormente absolvido. Só para citar mais um exemplo, outro fator
que aproxima escritor e personagem é o fato de que em diversos trechos do livro Sorria, você
está na Rocinha há menções acerca do romance No coração do Comando, que aparece como
tendo sido escrito por Luciano Madureira. O livro realmente existe, foi o primeiro romance
escrito por Ludemir, e publicado em 2002.
É a partir desse entre-lugar de enunciação, dentro-fora da favela por ele pesquisada,
que Ludemir escreve Sorria, você está na Rocinha, dando visibilidade a espaços e sujeitos
marginalizados. E é também a partir desse lugar, “no meio” (para utilizar uma concepção de
Reinaldo Laddaga, 2010), que Ludemir pinta o mosaico coral de uma sociedade perpassada
por conflitos e diferenças sociais re/criando a “realidade” de indivíduos periféricos e
experimentais, que figuram à margem de nossos sistemas de representação social e
normalmente reaparecem na literatura também como representação ou figuração das
margens ou à margem. Nessa edificação de mundos na linguagem, o pobre, o periférico e o
marginal emergem sob aspectos e configurações fugidios. Ao construir sua narrativa
mesclando certo efeito que é realista no estilo, mas livre quanto aos modos de criação e,
mesmo, de fantasia do real, o escritor consegue distanciar-se das tradicionais dicotomias
representacionais que relacionam a favela à delinquência, à barbárie. O que resta de
inacessível à favela, no romance escrito por Ludmeir, é uma espécie de fantasma (LACAN,
2005) cuja lógica, instável ao olhar exterior, não se deixa circunscrever nem reduzir às
representações midiáticas estereotipadas difundidas acerca da periferia, da favela, de sua
população, de suas práticas cotidianas, sociais, culturais, etc.
A primeira parte do romance, intitulada “Livro I – um dia com 36 horas e 120 mil
habitantes”, é narrada por Paulete, produtor de moda que mora na favela e que desde a
chegada do jornalista passa a ajudá-lo em sua empreitada. Mais do que isso, Paulete acaba
apegando-se sentimentalmente ao pesquisador, o que o leva a tentar salvá-lo do tribunal do
tráfico após este ter publicado um texto-bomba comentando aspectos da violência da vida
na favela, assim como da economia do lugar.

272
Anais

Nessa primeira parte da narrativa, dá-se ênfase à importância do estabelecimento de


alianças e redes de solidariedade entre os sujeitos em um território como a Rocinha. São
esses laços, estabelecidos seja com amigos, seja com inimigos, que garantem a sobrevivência
dos moradores nessa ilha urbana, como vemos no relato: “em uma favela a gente só
sobrevive se for capaz de fazer alianças estratégicas até mesmo com os nossos inimigos, não
importando que eles sejam bem intencionados líderes comunitários, policiais corrompidos
ou mesmo traficantes” (LUDEMIR, 2004, p. 18). Esses vínculos entre os sujeitos afetam
diretamente a (e são afetados pela) constituição da favela, uma vez que boa parte das
construções e reformas feitas na periferia só são possíveis graças à ajuda comunitária. Em
via de mão dupla, se por um lado os sujeitos se unem em prol da favela, por outro lado, a
favela se constitui e permanece existindo devido à união desses sujeitos. Inclusive, foi devido
a essa união dos moradores que a favela conseguiu resistir às políticas de aniquilamento
durante o período da ditadura, quando as ações de remoção foram intensificadas, como
podemos perceber no seguinte trecho:

[...] a bicha preta não esquecera as lições de solidariedade que aprendera na


infância, quando acompanhei fascinado os trabalhos de mutirão para limpar
as valas ou para transformar os vulneráveis barracos de madeira da favela
nas sólidas casas de alvenaria de hoje. Foi graças a essa união que primeiro
a Rocinha resistiu à política de remoção da ditadura militar, e depois
conquistou o status de bairro que atraiu os investimentos públicos e
privados que mudaram a sua paisagem urbana e social na última década
(LUDEMIR, 2004, p. 33).

Quisera chamar a atenção para o fato de que a solidariedade não é somente ensinada
desde a mais tenra idade na Rocinha, mas vivida na prática, no relato. Há disputas e conflitos
na Rocinha ficcionalizada por Ludemir, mas quando se trata de proteger a favela de ameaças
que vêm de fora, sua população se une em prol do bem comum. Essa união também é
colocada em prática quando a comunidade apresenta alguma necessidade (de certo modo,
tudo, ou quase, parte de/ou é motivada por uma necessidade, no romance escrito por
Ludemir). Foi por necessidade que emergiu a primeira escola da favela, assim como o bar
gay. No primeiro caso, a motivação para a construção da escola se deveu a necessidade de
“proporcionar [para as crianças] a matéria de que precisam para sonhar com dias melhores
tanto para si como para a comunidade em que vivemos” (LUDEMIR, 2004, p. 20). Já no
segundo caso, com a abertura de um bar gay na Rocinha, “a vida de todos os homossexuais
do morro se tornou muito mais fácil” (LUDEMIR, 2004, p. 19); não necessariamente porque

273
Anais

os preconceitos tenham acabado a partir desse dia, mas porque a abertura desse ponto de
encontro potencializou a afirmação de tais sujeitos, o que os tornou mais fortes para
continuarem resistindo.
Ainda na primeira parte da narrativa, cabe ressaltar um trecho que corrobora a
premissa de que a favela é sedimentada e constituída de relações de afecção negociáveis não
somente no que concerne aos sujeitos, mas também no que diz respeito à própria realidade:
“a vida na favela é uma eterna negociação com a realidade e os seus estreitos limites”
(LUDEMIR, 2004, p. 56). De certo modo, negociar com a realidade também se configura como
uma alternativa (talvez a única possível) para continuar sobrevivendo em um contexto de
opressão; ou seja, negociar equivale a resistir (mas, por vias laterais) para continuar
existindo.
A segunda parte da narrativa é denominada “Livro II – os salvados”, possivelmente
em referência aos dezesseis cadernos (salvos por Paulete) que a compõem, nos quais
Luciano teria feito as anotações durante o tempo em que permanecera na Rocinha. Tendo
resguardado essa pesquisa, Paulete começa a ler os registros, o que serve de informação ao
leitor não somente sobre o local e a população pesquisada, mas também sobre a visão do
jornalista acerca do espaço da periferia e dos sujeitos que lá residem. No entanto, é paradoxal
a relação que se estabelece entre pesquisador e pesquisados, posto que ainda que as
anotações sejam de Luciano, tais linhas não saem propriamente de sua boca ou, ao menos,
não chegam aos leitores a partir do jornalista, mas, sim, através de Paulete, que é quem lê os
cadernos contendo os mínimos detalhes sobre o funcionamento da favela. Dessa forma, o
“livro opera um deslocamento do individual para o coletivo no qual nem experiência nem eu
pertencem a um indivíduo em particular, conseguindo desta maneira singularizar a
experiência” (GARRAMUÑO, 2014, p. 73) dos sujeitos, os quais aparecem numa rede de
relações com os outros. Além disso, no romance a intenção etnográfica fica eclipsada, já que
o leitor se torna presa daquilo que Paulete lhe revela das anotações de Luciano.
Nesses cadernos salvos por Paulete, nota-se que, à medida que Luciano conhece a
Rocinha, assim como os sujeitos que ali moram, vai anotando suas impressões, ou mesmo
frases supostamente pronunciadas pelos moradores, mas não sabemos o que é deixado de
lado ou mesmo acrescentado pelo produtor de moda durante o ato da sua leitura. É assim,
por exemplo, que temos acesso ao que o jornalista chama (de acordo com Paulete) de uma
pérola semântica, e que dita em referência à Rocinha potencializa uma gama de
interpretações, qual seja: “como-unidade”. Soletrada rapidamente, poderíamos ler essa

274
Anais

palavra como “comunidade”3, o que pode nos levar a pensar em um grupo de sujeitos que
compartilham algo com outros, como uma história comum, um objetivo comum, uma
determinada área geográfica, ou práticas comuns, algo que não destoa do que é a Rocinha na
narrativa.
Por outro lado, se optarmos por ler a palavra pausadamente, de modo a separar o
termo “como” de “unidade”, pode-se pensar em algo que é uno, que não se divide. A
problemática que se coloca para essa segunda interpretação é que a favela em questão
apresenta diversas divisões, de ordem econômica, de classe social, assim como várias
(des)articulações no próprio terreno da periferia. No romance, por exemplo, se afirma que
há pelo menos “duas Rocinhas – uma que tem e a outra que não tem. A que tem é a da Estrada
da Gávea e suas imediações” (LUDEMIR, 2004, p. 174). O território que compõe a Rocinha é
diretamente associado aos moradores e seu poder aquisitivo, por isso, o tipo de “divisão” do
espaço parece ser indissociável dos sujeitos que ali residem, o que torna os moradores parte
e extensão da Rocinha ficcionalizada por Ludemir.
No romance, mesmo em uma favela considera a mais globalizada do Brasil como é a
Rocinha, há áreas nas quais não chega luz elétrica, sendo resolvido tal problema por meio de

3No livro Communitas: origen y destino de la comunidad (2003), Roberto Esposito tece importantes
considerações acerca do sentido da palavra comunidade, assim como de sua possível vitalidade nas
últimas décadas. O filosofo italiano parte do pressuposto de que não há nada mais imprescindível do
que pensar a comunidade em uma época em que se anunciam as perdas do comunismo e a assunção
do individualismo, e chega a afirmar que a concepção de comunidade não pode ser traduzida ao léxico
político, social e cultural atual sem que se leve em conta as torções próprias da nossa época. Diante
dos seus argumentos, a palavra “comunidade” aparece como um termo deslocado no tempo e no
espaço, como se participasse de um processo diacrônico, mas, em todo caso, potente para a
compreensão de certos grupos sociais. Nas palavras de Esposito (2003, p. 30-31), nos últimos anos o
termo comunidade, que deriva do latim “communitas, [puede ser pensado como] el conjunto de
personas a las que une, no una ‘propiedad’, sino justamente undeber o una deuda. Conjunto de
personas unidas no por un ‘más’, sino por un ‘menos’, una falta, un límite que se configura como un
gravamen, o incluso una modalidad carencial, para quien está ‘afectado’. Como indica la etimología
compleja, pero a la vez unívoca, a la que hemos apelado, el munus que la communitas comparte no es
una propiedad o pertenencia. No es una posesión, sino, por el contrario, una deuda, una prenda, un
don-a-dar. Y es por ende lo que va a determinar, lo que está por convertirse, lo que virtualmente ya
es no es lo propio, sino lo impropio —o, más drásticamente, lo otro— lo que caracteriza a lo común.
Un vaciamiento, parcial o integral, de la propiedad en su contrario. Una desapropiación que inviste y
descentra al sujeto propietario, y lo fuerza a salir de sí mismo. A alterarse”. Por essa perspectiva, e
vale ressaltar que essa é a concepção de comunidade que nos interessa para pensar o romance de
Ludemir, o que une os sujeitos da favela, formando uma comunidade, é uma urgência ou emergência,
não necessariamente algo que lhe seja próprio, mas sim impróprio. É na (ou da) falta que emerge o
comum; e é, também, devido a essa falta que tais sujeitos experimentam a vida em grupo.

275
Anais

ligações elétricas clandestinas (também chamada de “gatos”, na gíria popular) feitas pelos
próprios moradores. Tal situação, se, por um lado, aponta para a potência de (re)inventar
condições (possíveis, ainda que clandestinas) de vida, por outro lado, também sugere a
negligência do governo que parece se omitir de sua responsabilidade. A parte da Rocinha em
que a luz não chega a não ser por vias clandestinas, também é a parte mais pobre da favela,
e onde as ONGs também não aparecem, nem a mídia televisiva, a não ser quando o objetivo
é fazer matérias sobre a pobreza, mostrar a vulnerabilidade alheia. Quando o objetivo é falar
sobre os supostos investimentos que os órgãos públicos fazem no âmbito da favela, os
holofotes são direcionados para a parte da Rocinha que compreende a Estrada da Gávea e o
seu entorno, a “parte que tem”.Enquanto isso, os moradores da “parte que não tem” driblam
por vias indiretas o poder público, suprindo suas próprias necessidades. Situam-se dentro
fora da instância legalista. Não é à toa que, no romance, um dos conceitos tido como
fundamental dentro da favela é o de beira (LUDEMIR, 2004), que aponta para uma posição
dentro fora (da lei, da cidade, etc.) ocupada pelos moradores da Rocinha.
Outra característica da favela criada por Ludemir, e que remete aos postulados de
Ludmer acerca das ilhas urbanas (2010), é que “a Rocinha inverte o público com o privado”
(LUDEMIR, 2004, p. 205). Tida como uma das chaves para entender o funcionamento da
favela, assim como as relações entre os sujeitos, essa assertiva sugere certo limiar
contaminante no qual se situam os moradores da periferia. É a partir desse entrelugar que
tais sujeitos agem borrando qualquer noção de limite; ou melhor, talvez seja devido a essa
ausência de limites (ou da noção de limite), interligada à necessidade dos sujeitos que
residem na favela, que se coloca em prática “o modo invasivo como [tais sujeitos] usam o
espaço, ocupando todas as áreas possíveis, inclusive as que já pertencem a outras pessoas,
os vizinhos e amigos” (LUDEMIR, 2004, p. 234). Aqui, mais uma vez o que seria privado se
fusiona ao que seria público, em um processo de contaminação das fronteiras.
É desse modo, pela contaminação de fronteiras e ocupação de territórios controlados,
que o da Rocinha parece ir se expandindo pelo restante da cidade, como vemos neste trecho:
“vendo a Rocinha de onde a conheci, observando-a da Lagoa enquanto corria em torno dela,
tinha a impressão de que ela continuava se espalhando pela encosta” (LUDEMIR, 2004, p.
133). Não é somente impressão, esse processo de expansão ocorre dia-a-dia, seja por meio
de uma casa que é construída nas margens da Rocinha (no espaço que era fora, mas se torna
dentro, ou dentrofora), seja por intermédio da aquisição de novos terrenos pelo tráfico. “Com
base nessa informação, temos pelo menos duas observações a fazer: uma, a onipresente na

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Anais

favela, da apropriação do espaço público tanto por meio do gato puxado do poste como do
uso da calçada sem o pagamento de impostos; dois, desse incessante diálogo com o asfalto”
(LUDEMIR, 2004, p.261).
É por meio desses diálogos com o restante da cidade, assim como também devido às
apropriações do espaço público, que começam a aparecer na Rocinha símbolos considerados
do “asfalto”, como as inúmeras propagandas. Aqui, há que chamar a atenção para uma
inscrição em um painel em particular, que fica sugerido na narrativa, posto que ela (a
inscrição) é importante por mais de um aspecto; tanto porque ajuda a compreender a favela
e os moradores, como também porque acaba potencializando interpretações sobre o
romance enquanto materialidade escritural, qual seja: “Sorria, você está na Rocinha”. Como
vemos no romance, essa frase sofre um triplo processo de apropriação até se tornar um
painel: 1) Possivelmente tenha sido vista em algum lugar e escrita em um painel na Rocinha
pelo Serginho da Pizzaria Lit, morador; 2) foi assinado posteriormente pelo Bob’s; 3) logo
após, tomada como título do livro de Ludemir, como podemos perceber no trecho abaixo:

Gosto em particular do painel, assinado pelo Bob’s, bem no fim da estrada da


Gávea, a dois passos de São Conrado, quase em frente à casa de shows
Rocinha’s Show: “Sorria, você está na Rocinha”. Esse painel na verdade foi
concebido pelo Serginho da Pizzaria Lit, mas o único registro que tenho disso
é a sua fala, na qual acredito. Hoje, o anúncio é assinado pelo Bob’s. Ele
chegou a ser elogiado pela iniciativa, mas não acredita que as pessoas que o
procuraram tenham entendido o subtexto daquela mensagem. Com o seu
“sorria, você está na Rocinha”, não estava apenas reforçando a auto-estima
da comunidade, em uma esperta mensagem de marketing [...] Com o seu
painel, estava querendo dizer que ali começava uma outra cidade [...] Eu na
verdade acho que seja mais do que uma cidade – acho que estejamos falando
de uma civilização, de uma concepção de mundo altamente particular, onde
o certo e o errado, o bem e o mal, o pecado e a virtude, onde as diferenças
fundamentais que dão forma e conteúdo a um povo apresentam diferenças
igualmente fundamentais em relação à civilização do asfalto [...] E o cria da
Rocinha tem muitas razões para sorrir ao entrar em seu mundo, na sua
civilização, nesse universo que, apesar da proximidade, apesar das inúmeras
interfaces que criamos, apesar dos diversos pontos nos quais nos
encontramos, é uma cidade à parte. Lá, os que imaginamos bandidos muitas
vezes são seus heróis. Lá, os que imaginamos heróis muitas vezes são seus
bandidos. (LUDEMIR, 2004, p. 283-284).

Este painel que indica onde começa a Rocinha está (ele mesmo) dentro e fora do
território da favela; dentro, mas interligado ao exterior. Note-se, também, que a Rocinha
figura como uma civilização à parte, mas ao mesmo tempo não está desvinculada do restante
da cidade. Poderíamos, pois, afirmar que a favela em questão faz rizoma com o território que

277
Anais

a rodeia a partir de um processo de desdiferenciação, o que permite que a favela possa ser
considerada como parte e extensão da cidade, mesmo possuindo regras e leis próprias. Como
na própria palavra “desdiferenciação”, que traz em si o prefixo polissêmico que conjuga certo
significado de negação e de reversão do elemento lexical ao qual acompanha, a Rocinha, no
romance, (con)funde-se na diferença com a cidade. Tomada como título do livro de Ludemir,
a frase “Sorria, você está na Rocinha” pode ser pensada, ainda, como um operador de leitura
que permite pensar a favela e até mesmo o romance em suas múltiplas metamorfoses.
Parafraseando Deleuze e Guattari (se lessem o romance Sorria, você está na Rocinha vendo
dentro dele o título como produto ficcionalizado): “ali figura a vespa, mesmo sendo
orquídea”. Não se trata de um processo de mimetização da favela, mas de complementação,
e assim cria-se uma realidade que supostamente o romance referência.
Já a terceira e última parte da narrativa está intitulada “Livro III – o legado de Bin
Laden”, possivelmente fazendo referência ao legado deixado por Luciano, assim como aos
seus cadernos que são entregues a ele por Paulete. Nessa parte também vemos a decepção
de Paulete por se sentir usado e enganado quanto aos objetivos de Luciano ao pesquisar a
Rocinha:

Voltei a ter a sensação de uso. De abuso da bicha favelada de que a cidade só


se lembra quando algum pesquisador precisa tirar uma casquinha de nossa
pobreza, nossos bandidos bárbaros, nossas domésticas cearenses, nossos
birosqueiros inescrupulosos, nossos evangélicos engabelados por astutos
pastores. (LUDEMIR, 2004, p. 128).

Como se pode notar pela fala de Paulete, por vezes as escrituras que se propõem
representar a periferia apresentam/representam uma visão negativizada da favela (é esse
maniqueísmo que a personagem questiona no fragmento acima), o que termina por
marginalizar de forma mais contundente os indivíduos que a constituem. Tratando do
desafio relacionado à distância daquilo que o artista observa enquanto etnógrafo, Hal Foster
argumenta que, assim como a superindentificação pode conduzir a uma visão
excessivamente reduzida por parte do artista, no âmbito da representação, a
desidentificação assassina o outro, colaborando para “construir uma solidariedade política
por meio do medo e da aversão imaginários” (FOSTER, 2017, p. 186), que geralmente é
explorada politicamente.
Por outro lado, não se pode deixar de enfatizar que se é Paulete que faz tal afirmação,
este personagem e sua fala são construídos por Ludemir. Ou seja, paradigmaticamente o

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Anais

escritor mostra saber que certas imagens que são vendidas em artefatos artísticos
caricaturizam os moradores de espaços marginalizados socialmente. Tal jogo já está inscrito
desde o título de seu romance. Nesse sentido, a ambiguidade do “papel quasi-antropológico
atribuído ao artista pode promover uma presunção tanto quanto um questionamento da
autoridade etnográfica, uma evasão tanto quanto uma extensão da crítica institucional”
(FOSTER, 2017, p. 180). Diante disso, não seria absurdo conjeturar que ao “revelar os
mecanismos da sua potência ficcional, ao exibir seu próprio processo e idealizando sua
própria materialidade, [a narrativa] coloca em evidência a brecha entre o real e sua
representação, canalizando e expressando sua realidade” (SCHØLLHAMMER, 2012, p.130).
Ao construir a partir da linguagem literária uma favela e sujeitos que destoam de
representações caricaturescas, Ludemir acaba por denunciar certa vertente literária que
estigmatiza e comercializa a pobreza.
Como se pode notar no romance, não é por acaso que “os gringos fizeram da Rocinha
o terceiro ponto turístico mais visitado no Rio de Janeiro, superado apenas pelo Corcovado
e pelo Pão de Açúcar” (LUDEMIR, 2004, p. 182), pessoas “que chegam na favela querendo
conhecer os encantos da miséria brasileira” (LUDEMIR, 2004, p. 90). Esse fluxo alimenta o
que o escritor chama de “indústria da miséria”, que é fomentada pela mídia, que costuma
reforçar concepções e imagens dicotômicas acerca das periferias brasileiras, assim como
pelos tours que ocorrem no território da favela. No primeiro caso, é emblemático um trecho
do romance em que Paulete fala sobre o tipo de reportagem corrente quando se trata de
entrevistar moradores da Rocinha:

Conheço bem este tipo de reportagem, uma chatice. As perguntas são sempre
as mesmas e igualmente óbvias. E a violência? E os bandidos? E as drogas?
Como se fosse um milagre social uma jovem da Rocinha ser bonita, cuidar da
pele, malhar. Como se o fato de termos nascido no morro nos colocasse a
revolta como única alternativa de vida, ou formamos na boca ou então
saímos atirando nas madames de São Conrado, descarregando nelas todo
nosso ódio, toda nossa inveja, toda nossa incapacidade de lutar por uma vida
melhor, digna, sadia (LUDEMIR, 2004, p. 105).

Emerge no fragmento uma crítica ao olhar sobre o indivíduo da periferia tomado


como o outro (aquele de quem se fala), que também é refratária de uma crítica da perspectiva
etnográfica que se constituiu num dos grandes filões da narrativa latino-americana das
últimas décadas, como demonstrou Klinger (2006), assim como dos discursos sobre a
periferia. A recusa das impressões do etnógrafo pelo etnografado problematiza a base

279
Anais

binária da relação estabelecida por este olhar, sugerindo que suas premissas articuladas em
torno das noções de centro e periferia, de cidade e favela e de riqueza e pobreza não são
neutras nem simétricas e colaboram para uma identificação ideológica entre favela, periferia
e pobreza a partir de uma base moral. Enquanto as oposições estão constituídas por polos
que se oporiam na perspectiva do etnógrafo, a conclusão a que levam constitui um sintagma
complexo em que favela, pobreza e periferia aparecem coordenadas numa relação de
reciprocidade e suplementaridade que, no entanto, a personagem trata com ironia no
fragmento citado.
Já no segundo caso (quando se trata dos tours), território, pobreza e cultura vinculam-
se ao espetáculo, e “enquanto espetáculo a Rocinha dos Favela Tours não pressupõe a
simulação de uma realidade escondida, mas uma superposição de camadas de realidade que
são experimentadas na moldura espaço-temporal do passeio pela favela” (JAGUARIBE, 2007,
p. 149). No pacote que garante acesso ao “parque temático da pobreza” (para utilizarmos
uma expressão de Beatriz Jaguaribe, 2007), são selecionadas as imagens da favela que
podem ser vendidas para os visitantes. Centros culturais, as sedes de ONGs, as casas dos
moradores mais antigos da favela, estão na rota do passeio, mas os locais onde se
comercializam drogas, por exemplo, devem permanecer invisibilizados. Nesse sentido, no
romance de Ludemir, o glamour da favela que se comercializa nesses passeios tem a ver
também com um tipo de performance dos guias turísticos (que são sempre moradores do
local), e o que garante o espetáculo estético é o próprio espaço heterogêneo da favela, a parte
que se pode ver. O paradoxo que se instaura nesse tipo de “turismo [diz respeito] a busca
pelo autêntico quando os próprios turistas já desconfiam das encenações dos ‘nativos’
antenados com a vendagem de sua cor local”, conforme Jaguaribe (2007, p. 147-148). Como
vimos sugerindo nas linhas anteriores, ao escrever Sorria, você está na Rocinha, Julio
Ludemir aposta na construção de uma cartografia do espaço periférico e nos modos de
afecção território/sujeito, de modo a levar os leitores a “entrarem” na periferia ao passo que
estão lendo. Essa estratégia de aproximação dos leitores ao universo da favela a partir da
explicitação da geografia do lugar, se bem pode pintar a narrativa com certa tonalidade
realista, acaba por torcer o próprio paradigma da realidade representada, por meio de um
processo escritural que atravessa fronteiras e (con)funde realidade e ficção.

Considerações finais

280
Anais

Diante de tudo isso, poderíamos pressupor que Ludemir trabalha com referências
(espaciais) verificáveis, o que reforça o efeito de realidade criado no romance, mas joga,
também, para a concretização desse efeito, com o desconhecimento da periferia pelo leitor
médio (e de classe média), que tem de se pautar pelos discursos e imagens sobre a favela que
lhe chegam pelos meios de comunicação. Desse modo, para além da referência topográfica
codificada, não há clareza sobre o que mais na representação é expressivo da realidade que
o texto supostamente toma como referente. Nesse sentido, o efeito realista porta nessa
narrativa, também, o inevitável sentido de efeito da escritura, do real da (ou enquanto)
escritura e, portanto, do não representativo.
Por meio desse processo que beira o arquitetônico, tem-se, então, uma construção
narrativa que desponta quase como uma performance da escritura. Nesse caso, os efeitos
dessa performance problematizam a representação, criando uma realidade que o próprio
texto fabrica. Em outras palavras, encontramos nesse romance efeito de realidade que se dão
por meio de performances da escrita. Por sua vez, ao problematizar a relação imediata entre
representação e realidade, tal produção acaba reinvestindo a linguagem de certo potencial
crítico, o que produz como efeito o estranhamento do signo e aponta, com certo ceticismo,
para suas limitações, no que se refere à relação entre palavra e verdade. Por um lado, ele
procura abandonar abertamente toda noção de centro, sujeito ou referência privilegiados,
mas, por outro, não escapa ao dilema da interpretação como busca de verdade e
representatividade.

REFERÊNCIAS:

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Aurélio Guerra Neto et al). Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1996.

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Molinari Marotto). Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

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GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética


contemporânea. (Trad. Carlos Nogué). Rio de Janeiro, Rocco, 2014.

JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.

281
Anais

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Buenos Aires: Adriana Hidalgo. 2010.

LUDEMIR, Julio. Sorria, você está na Rocinha. Rio de Janeiro: Editora Record,.2004.

LUDMER, Josefina. Aquí América Latina: una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia,
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SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação.


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Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/21/objetos-
verbaisnaoidentificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.asp >. Acessoem: 29 jun.
2018.

282
A MEMÓRIA COMO
MEDIADORA PARA A
RESISTÊNCIA CONTRA O
RACISMO ESTRUTURAL: UMA
EVOCAÇÃO SUBJETIVA EM
“PONCIÁ VICÊNCIO’’, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Adrielly da Silva GOMES (UNICAP)1
André Luís de ARAÚJO (UNICAP)2

RESUMO

Ponciá Vicêncio vive sua vida relembrando a vida, talvez como uma forma de se sentir viva
diante de uma sociedade que aniquila sua existência todos os dias através das desigualdades
social e racial. A personagem do romance evaristiano vive uma realidade que pode
transpassar a ficção e nos fazer repensar sobre o corpo social escravagista em que estamos
inseridos, visto que em Ponciá Vicêncio há uma negação da vida para continuar existindo em
memória. Por esse motivo, o objetivo central deste trabalho é analisar, na obra Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo, como a memória pode ter sido importante para uma
possível mediação para a resistência da personagem principal contra o racismo estrutural,
visando compreender como pode ter contribuído para um possível fortalecimento subjetivo.
Nesse sentido, as marcas da memória nessa obra podem contribuir para a observação de um

1 Mestranda em Ciências da Linguagem, bolsista CAPES. E-mail: adriellygomes2951@gmail.com


2 Prof. Doutor da Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e da graduação, na Universidade Católica de
Pernambuco. E-mail: andre.araujo@unicap.br

283
Anais

possível fortalecimento da personagem para continuar existindo, ainda que em uma


sociedade estruturada pelo racismo, por meio da rememoração. Dessa maneira, a
ficcionalidade da narrativa fala sobre a realidade das pessoas pretas, que insurge, então,
contra uma sociedade que aniquila essas subjetividades diariamente, por meio da falta de
equidade, da negação de direitos básicos e da marginalização da existência e da história
desse povo preto.

Palavras-chave: Racismo estrutural; Memória e literatura; Ponciá Vicêncio.

ABSTRACT

Ponciá Vicêncio lives her life remembering the life, maybe as a way to feel alive facing a
society that annihilates her existence everyday through social and racial inequalities. The
character of the evaristiano novel lives in a reality that can run through the fiction and make
us rethink about a slaver social body that we are inserted into, whereas in Ponciá Vicêncio
there is a denial of life to continue to exist in memory. For this reason, the central objective
of this work is to analyze in the book Ponciá Vicêncio, by Conceição Evaristo, how the
memory may have been a possible mediation for the resistance of the central character
against the structural racism. In that regard, the marks of memory in this novel can
contribute to the observation about a possible fortification of the memory to continue
existing, even in a society structured by racism, through her remembrance. Besides that, the
fictionality of the narrative talks about the reality of black people that rises, then, against a
society that annihilates these subjectivities daily, through lack of equity, denial of basic rights
and the forced marginalization from existence and from the history of these black people.

Keywords: Structural racismo; Memory and literature; Ponciá Vicêncio.

Introdução

Falar sobre racismo estrutural e memória é, também, falar sobre Conceição Evaristo,
visto que a autora, ao ser entrevistada pelo Itaú Cultural, em 2019, se colocou como canônica
das margens, ao ser questionada sobre a sua obra ser, possivelmente, um cânone. Ao se
colocar como uma pessoa que estaria, possivelmente, às margens, Evaristo evoca não apenas
o fato de ela ser uma mulher negra, mas o fato de ela escrever sobre quem está sendo,
historicamente, jogado para as margens da sociedade.
O romance evaristiano, que aqui será estudado, evocará a vivência do povo negro no
pós-abolição e a desigualdade racial vigente, essa que fez com que muitos indivíduos pretos
permanecessem nas fazendas dos senhores. Segundo Abdias Nascimento (2019), na obra O
quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, o negro se tornou indesejado
após o processo da Lei Áurea. Para o autor, não foi a escravização que foi abolida, mas a culpa
daqueles que cometeram o crime hediondo de sequestrar, de escravizar e de desumanizar
indivíduos.

284
Anais

Desumanizar pessoas pretas, também, se refere a tirá-los de um possível lugar de


cidadãos para coloca-los forçadamente nas margens da sociedade, tirando toda e qualquer
possibilidade de vivência digna. Além disso, o papel desumanizador atribuído a pessoas
pretas para jogá-las às margens da sociedade infere no processo de estereotipificação que
essa parte da população recebe historicamente. Assim, Clóvis Moura (2019), na obra
Sociologia do negro brasileiro, ressaltará que esses indivíduos receberão características
como “segmentos atípicos, exóticos, filhos de uma raça inferior, atavicamente criminosos,
preguiçosos, ociosos e trapaceiros” (MOURA, 2019, p. 31)
Nascimento (2019) enfatizará que separar, solapar a força física e espiritual do povo
preto tem sido uma estratégia continuada para evitar uma unidade de resistência entre os
afro-brasileiros. Dessa maneira, quando Evaristo decide evidenciar as problemáticas
sofridas por essa parte da população, diante de uma sociedade que aniquila pessoas pretas
de maneira estratégica diariamente, vê-se uma possível forma de evidenciar o problema para
discuti-lo e entender formas de resistir.
A concepção estrutural do racismo, pensada por Silvio de Almeida (2019), na obra
Racismo estrutural, pontuará que, em uma sociedade estruturada pelo racismo, esse
problema não se dá apenas de um indivíduo sobre o outro, mas de um grupo sobre outro.
Diante disso, a escolhida obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, é uma importante
fonte para debater e levantar possibilidades de enxergar a problemática, visando que o
racismo atua em diversas facetas. Para além disso, as formas que o povo preto encontra para
resistir ao meio nefasto também se dá de diversas formas. No caso de Ponciá, a memória foi
a maneira que ela encontrou para se resguardar e (sobre)viver.
Ainda, levando em consideração a obra de Almeida (2019), é possível averiguar na
obra evaristiana que Ponciá e sua família vivem em uma sociedade estruturada pelo racismo,
visto que as desigualdades racial e social vivenciadas pela protagonista se dá a partir do
processo de colonização. Esse que força pessoas pretas a viverem em condições subumanas
e, quase sempre, em papel de subserviência às pessoas brancas. A exemplo, Ponciá Vicêncio,
ao chegar na cidade, precisou trabalhar na cozinha de uma mulher branca para conseguir
sobreviver. Outro exemplo, foi o pai da protagonista que, mesmo após a “abolição’’,
continuou trabalhando na fazenda dos senhores de engenho, pois não havia outra
possibilidade de (sobre)vivência.
Ademais, a memória é um fator importante para a protagonista do romance, pois ela
passa a negar a sua realidade dolorida para viver em memória. Joël Candau (2021), na obra

285
Anais

Memória e Identidade, explica que a memória é um objetivo alcançável, portanto, um


conjunto de estratégias, sendo mais um enquadramento do que um conteúdo. No caso de
Ponciá, a memória foi um caminho estratégico para que ela pudesse continuar viva em uma
sociedade que aniquilava a sua sanidade e a sua existência, vítima de um corpo social racista,
ela não conseguia viver, nem produzir vida; tudo a sua volta parecia morto.
Outrossim, é importante salientar que este estudo é interdisciplinar, visto que,
segundo Félix Guattari (1992), na obra Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade,
a literatura, quando estudada desta forma, sai do âmbito cognitivo para os âmbitos social,
político, dentre outros. Este artigo, então, busca estudar a literatura de maneira
interdisciplinar por meio dos estudos da memória e os estudos sociológicos, como citados.
Além disso, Guattari (1992), alerta que a população minorizada precisa de pesquisas que a
leve em consideração, por esse motivo, faz-se necessário estudar o racismo estrutural e
enfatizar as problemáticas vividas pelas pessoas pretas numa sociedade como a brasileira.
É importante pontuar, por fim, que o objetivo central desta pesquisa é identificar, na
obra Ponciá Vicêncio, como a memória mediou uma possível resistência da personagem
principal contra o racismo estrutural. Para isso, serão levantados aspectos da cultura
vigente, mas também serão identificados elementos da memória da personagem e como isso
também contribuiu para uma formação subjetiva. Este artigo, portanto, será dividido em
duas sessões para levantar discussões sobre os aspectos citados.

As memórias de Ponciá: uma alternativa de (sobre)vivência

Na obra evaristiana, percebe-se que a protagonista, diante do processo de massacre


vivenciado por Ponciá Vicêncio, a personagem passou a tentar revisitar o seu passado numa
tentativa de continuar viva, ainda que parecesse morta internamente. No texto, é pontuado
que “ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar’’ (EVARISTO, 2008, p. 18),
possivelmente, mais do que perdendo seu tempo, Ponciá estava vivendo de uma maneira
alternativa. Assim, enquanto a sociedade transformava a vida fora das memórias da
protagonista em um mar de incertezas e misérias, ela tentava encontrar, no fundo de si, uma
pessoa que, talvez, estivesse perdida.
Joël Candau (2021) assinala a presença do que ele chama de mnemotropismo, nas
sociedades modernas, o autor explica que esse fenômeno é a crise do presentismo, sendo
assim, o “desaparecimento de referências e a diluição das identidades” (CANDAU, 2021, p.

286
Anais

10). Quando Ponciá Vicêncio passeia pelas suas memórias, ela observa pessoas que ela não
mais encontrou e uma criança que se tornara mulher, mas agora numa situação que a
aprisionava enquanto indivíduo cujos direitos de dignidade lhes eram negados. Candau
(2021) ressalta, também, que a busca pela memória é considerada uma resposta às
comunidades que sofrem e vivem diante da fragilidade, por isso, há um apoio de um futuro
incerto em um passado que confere um certo reconhecimento. Dessa maneira, é possível
averiguar que a percepção de Ponciá sobre a sociedade que nada lhe prometia, a fez, também,
voltar a um lugar que lhe era reconhecível, onde a sua humanidade não era retirada
constantemente.
Ademais, na obra de Conceição Evaristo, vê-se durante a narração que a protagonista
não sabia mais quem era, o que havia se tornado, por isso, segundo o texto, “uma noite ela
passou toda no espelho chamando o próprio nome” (EVARISTO, 2008, p. 18). A personagem
chamava a si mesma no espelho, numa tentativa de tentativa de reanimar alguém que a
sociedade racista aniquilou aos poucos, ela tentava reanimar as sobras daquilo que, um dia,
existiu. Ponciá tentava encontrar algo além do que a estrutura social fez dela, tal questão é
enfatizada por Fanon (2008), na obra Pele Negra, Máscaras Brancas, quando o autor
exemplifica que pessoas negras acabam “adquirindo’’, na sociedade escravocrata,
características que não pertencem a elas, isso tem forte influência sobre a subjetividade
desses indivíduos.
Joël Candau (2021) explica que somos condenados ao tempo e nenhuma existência
pode escapar de tal condição, o tempo que Ponciá havia passado na cidade, desde que tomou
a decisão de deixar sua aldeia, estava fazendo-a se perder de si mesma a cada momento.
Candau (2021) diz que a memória pode causar a ilusão de que se está parando o tempo
presente, pois o que foi vivido no passado não é inacessível, por isso, “pela retrospecção o
homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi uma nova imagem que
poderá, talvez, ajuda-lo a encarar a vida presente” (CANDAU, 2021, p. 15).
Dessa forma, a rememoração de Ponciá, em busca de seu reconhecimento e da volta
à sua comunidade, foi uma estratégia para suportar o seu tempo presente, juntar os pedaços
da sua existência foi a alternativa que o racismo estrutural, implementado por uma
sociedade escravagista, a deixou. Ela buscava se reconhecer, visto que a sua identidade não
havia sido perdida, embora frágil diante dos sofrimentos os quais ela era submetida, pois ela
possuía memória e, segundo Candau (2021), se há memória, ainda há identidade, pois é

287
Anais

admitido que ambas estão imbricadas, sendo “a memória, a faculdade primeira, que modela
identidade” (CANDAU, 2021, p.16).
Assim sendo, apesar da dor inerente à existência de Ponciá, ela vivia em uma
“dialética da memória e da identidade” (CANDAU, 2021, p.16), as suas lembranças a
modelavam, mas ela também modelava as suas memórias a cada vez que sentava em sua
janela para viver por meio delas. Portanto, conforme Candau (2021), a memória e a
identidade nutrindo-se mutuamente caminham para que a trajetória de vida seja produzida,
uma está sempre apoiada na outra, para produzir seu mito, sua história. No caso de Ponciá,
ela é a persona formada pelas vivências anteriores, enquanto ela também vive, ainda, no
presente, por conta delas, são as memórias que alimentam a sua narrativa, enquanto ela
chama por si própria lutando pela identidade, que acredita ter perdido.

Entre o racismo e a desigualdade: a dor da vida fora da memória

O racismo e a desigualdade são causadores de desesperança da desesperança de


Ponciá Vicêncio, e essa trajetória é muito bem narrada durante o romance. Quando Ponciá
decidiu sair da aldeia onde vivia com a sua mãe e seu irmão, logo após a morte de seu pai,
nenhum bem material ela havia carregado, “a crença era a única esperança que ela havia
trazido” (EVARISTO, 2008, p. 21). Foi, então, que, com sua crença, ela segurou o seu terço nas
mãos, sentou na igreja, mas logo percebeu que pessoas como ela eram jogadas de maneira
forçada às margens da sociedade.
Se enquanto estava na aldeia, Ponciá via o seu pai e seu irmão trabalharem nas terras
do patrão para levar o mínimo de sustento para casa, na cidade ela enxergou uma extensão
do sofrimento, entretanto, as pessoas pretas não estavam nas senzalas, mas nas vielas e
calçadas. Dessa forma, “a primeira noite de Ponciá na cidade, acabou sendo na porta da
igreja’’ (EVARISTO, 2008, p. 33), fazendo valer a evidenciação que Abdias Nascimento (2019)
faz ao dizer que abolição é, na verdade, um simulacro de libertação.
O autor assinala que “de vítima acorrentada pelo regime racista de trabalho forçado,
o escravizado passou para o estado de verdadeiro pária social, submetido pelas correntes
invisíveis forjadas por aquela mesma sociedade racista e escravocrata” (NASCIMENTO,
2019, p. 89). Dessa forma, Ponciá Vicêncio se depara com pessoas pretas que, assim como
seu pai e seu irmão, não obtiveram escolha de vivência e esbarra com a fraude da libertação,
que nada de liberdade concedia, mas negava o mínimo de emancipação.

288
Anais

Os homens da família da protagonista estiveram na senzala, agora, ela reproduziria


um trabalho equivalente ao que muitas mulheres pretas foram obrigadas a realizar; Ponciá
começou a trabalhar na cozinha de uma mulher branca (EVARISTO, 2008, p. 39). A condição
de trabalho que a personagem passou a ter na cidade é, na verdade, parte do projeto de
fortalecimento da estruturação do racismo estrutural. Clóvis Moura (2019) ressalta que o
negro urbano brasileiro possui uma trajetória de vida que tornam evidentes os mecanismos
de desigualdade racial estabelecida historicamente pela sociedade branca. O sociólogo
estabelece que há mecanismos que negam ao negro a possibilidade de ascensão social por
meio de um trabalho de qualidade, um salário, e isso ocorre, segundo o autor, para que não
haja mudança no status quo e a população branca permaneça ocupando esses espaços.
Os argumentos fundamentos por Moura (2019) exemplificam as vivências de Ponciá
Vicêncio, que trabalhou como empregada doméstica para juntar dinheiro e comprar um
barraco na periferia. Conseguir um pequeno lugar para morar se tornou o sonho de Ponciá,
porque mais não lhe era permitido, por isso Clóvis Moura (2019) também vai enfatizar que
diante desses das vivências sociais do pós-abolição, mas que se estende desde antes e chega
até o nosso hoje, “a comunidade negra e não branca de um modo geral tem dificuldades em
afirmar-se no seu cotidiano como sendo composta de cidadãos e não como é apresentada
através de estereótipos” (MOURA, 2019, p. 31).
Ponciá não desistiu da sua vida para viver em memória de repente, o acontecimento
foi se estruturando como um muro é levantado aos poucos. Cansada das desgraças que
observava os seus semelhantes viverem todos os dias, percebia que, até mesmo o
companheiro que arranjara na cidade, mesmo diante de seu tratamento rude para com ela
“percebia nele um vislumbre de tristeza” (EVARISTO, 2008, p. 38). O esposo de Ponciá, junto
a ela, fazia parte do grande grupo de pessoas negras empurradas para as margens para
sobreviver e trabalhar de forma precária, sendo, diante da sociedade que fortaleceu seu
capital por meio da escravização, rejeitadas e estigmatizadas. Diante disso, essa população é
“barrada socialmente de forma sistemática, através de inúmeros mecanismos e subterfúgios
estratégicos, colocada como o rescaldo de uma sociedade que já tem grandes franjas
marginalizadas em consequência do capitalismo dependente” (MOURA, 2019, p. 31).
Aos poucos, Ponciá passou a sentar-se em sua janela, rememorar o passado, porque o
presente apenas lhe conferia dor, se antes “ela trazia a esperança como bilhete de passagem”
(EVARISTO, 2008, p. 31), o que lhe restara era apenas memórias do que já não mais existia.
A sociedade racista confere ao negro características que não são deles, gerando, muitas

289
Anais

vezes, desesperança e sentimento de inferioridade diante da vida e das pessoas brancas, a


quem historicamente são obrigados a servir. Acerca disso, Fanon (2008) evidencia que “o
problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade (...), no
negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno (...)” (FANON, 2008,
p. 59). Ponciá se sentia pequena diante da vida de miséria, fome e infelicidade que era
obrigada a levar.
Viver fora da memória para Ponciá se tornou impossível, porque fora de seus
pensamentos, ela não vivia, mas sobrevivia, até mesmo com a lembrança “dos sete filhos que
tivera, todos mortos” (EVARISTO, 2008, p. 44). A personagem, mulher preta em subjugação
social e racial, não conseguia produzir vida, a existência inexistente de Ponciá não a conferia
direito de viver, portanto, uma pessoa que já está morta, não pode gerar vida. A sociedade
escravocrata e desigual matou Ponciá, assim como mata, constantemente, psicológica e
fisicamente pessoas pretas historicamente.
Ponciá Vicêncio percebia que as dores do passado e as do presente tinham algo em
comum, a dor do homem e da mulher preta, esses sendo enganados pelos donos de terras
que ofertavam lugar para moradia em troca de trabalho. Ponciá entendeu que “quando os
negros ganharam aquelas terras, pensaram que estavam ganhando a verdadeira alforria.
Engano. Em muita pouca coisa a condição de antes diferia do momento” (EVARISTO, 2008,
p. 40). A situação percebida por Ponciá Vicêncio é comum a descrição histórico-sociológica
levantada por Abdias Nascimento (2019), no seguinte trecho:
Antes de 1888, os chamados africanos “livres”, isto é, doentes, aleijados idosos, os
esgotados do trabalho intensivo, eram compulsoriamente “libertados”. Na prática,
significava que os senhores se autolibertavam de qualquer responsabilidade de fornecer-
lhes alimentos, roupas, moradia e se exoneravam de qualquer tipo de ajuda aos “livres”,
abandonando-os de qualquer impiedosamente à morte lenta pela fome e pelas
enfermidades, tanto nos campos quanto nas cidades. Seguindo a idêntica lógica, “abolição”
significou o mesmo tratamento, só que agora aplicado em massa (...). Muitos africanos
“emancipados” e cidadãos foram obrigados pelas circunstâncias a permanecer com seus
antigos senhores trabalhando sob condições idênticas às anteriores, sem nenhuma
alternativa ou opção (NASCIMENTO, 2019, p. 89).
Ponciá estava cansada, massacrada, esgotada diante das agruras sofridas em uma
sociedade que aniquilava a sua existência e a dos seus, um corpo social historicamente
escravagista. Dessa maneira, Ponciá desistiu de viver em vida para existir em memória, como

290
Anais

uma forma de resistir a dor do seu presente; psicologicamente a personagem estava


debilitada, sendo esse um reflexo do que o racismo estrutural pode causar a pessoas pretas.
A protagonista resistiu por meio da memória e apenas se entregou a ausência de força
psíquica da qual ela estava diante, quando conseguiu reencontrar a sua família. O encontro
de Ponciá, no seu presente dolorido, com os que ela rememorava todos os dias, foi a sua
deixa, o seu momento de não mais ter de ser forte o tempo todo para não se entregar às
desumanidades que foi obrigada a viver por ser uma pessoa preta em uma sociedade
historicamente racista.

Considerações finais

Diante da vivência de Ponciá Vicêncio, a memória foi importante em seu contexto para
que ela continuasse vivendo e não esquecesse de sua identidade, na dialética que a
personagem estava imersa, as lembranças eram a sua única forma de resistir. O romance
evaristiano reativa, também, a maneira dos leitores de ver o mudo de maneira crítica e,
sobretudo, a sociedade brasileira. Abdias Nascimento (2019) pontua nos seus estudos que,
graças a alguns estudiosos “as diversas estratégias e expedientes que se utilizam contra a
memória do negro afro-brasileiro têm sofrido, ultimamente, profunda erosão e irreparável
descrédito” (NASCIMENTO, 2019, p. 274). Isso significa que o trabalho de pessoas pretas
como Conceição Evaristo são importantes para reativar a memória do povo preto brasileira
acerca da sua identidade, história e cultura.
Dessa maneira, quando Ponciá relembra a sua história em busca da resistência da sua
identidade, pode significar também, que o povo afro-brasileiro, mesmo diante da estrutura
escravista e capitalista que solapa a sua existência, precisa reativar a sua memória para
continuar resistindo e existindo. A literatura de Evaristo é um levante contra a hegemonia,
pois levanta a discussão acerca das problemáticas vigentes no país. Tal posicionamento se
faz importante diante da colocação de Antonie Compagnon (2010), na obra O demônio da
teoria, “a literatura confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a
ruptura” (COMPAGNON, 2010, p. 36). A literatura evaristiana, portanto, é uma ruptura à
ideologia dominante, se há literaturas que servem como aparelhos ideológicos do Estado, o
texto de Conceição Evaristo tem seu caráter subversivo diante de uma sociedade
estruturalmente racista. Por isso, o texto Ponciá Vicêncio é um convite à criticidade e à
resistência.

291
Anais

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CANDAU, Joël. Literatura e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. 1ª ed., 7ª


reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2021.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2. ed. – Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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GUATTARI, Félix. Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade. Revista Tempo


Brasileiro, Rio de Janeiro, v.1, 108, p. 19-26, jan-mar, 1992.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma Militância Pan-Africanista. 3.


ed. rev. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

292
PELOS CAMINHOS DA
MEMÓRIA E DA HISTÓRIA NO
POEMA CANTO À CIDADE DE
SÃO LUÍS DE ARLETE
NOGUEIRA DA CRUZ
Luis Claudio dos Santos FERREIRA FILHO (UEMA)1
Luzilene Nunes de SOUSA (UEMA)2
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA)3

RESUMO

Este trabalho analisa os caminhos percorridos pelo eu-lírico na memória urbana da cidade
de São Luís no poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz (2017). Nele a
autora faz a interpretação da cidade a partir do espaço urbano maranhense, que serve como
gatilho para o despertar de lembranças antes adormecidas na memória. O espaço físico
exerce papel essencial na preservação da memória individual e coletiva, pois ele registra a
marca do indivíduo e do outro, sendo esse espaço marcado pelo grupo que o ocupa e vice-
versa. Ressalta-se que a preservação da história é feita de forma eficiente, instigando
conhecer a cidade, para exaltar a contribuição econômica, bem como o turismo e a cultura
da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as necessidades

1 Mestrando em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista CAPES do


Programa de desenvolvimento da pós-graduação (PDPG). CPF: 609504993-82. E-mail:
luiscontato.uema@gmail.com
2 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista CAPES do
Programa de desenvolvimento da pós-graduação (PDPG). CPF: 573131992-87 e-mail:
luzilene1312@hotmail.com
3 Professora Pós-doutoranda em Literatura e Memória pela Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia – UESB. Atualmente professora do Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Maranhão.
E-mail: silvanapantoja3@gmail.com

293
Anais

subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao mundo a partir
das possibilidades polissêmicas e metafóricas da linguagem, a partir das indagações que ela
oferece. Dessa forma, objetiva-se analisar as repercussões que o retorno ao local onde viveu
sua infância causa no eu-lírico, não somente no estrato psicológico, mas também físico. Como
fundamento teórico, utilizou-se as reflexões de Bourdieu (2004) sobre a literatura, sobre a
memória formulados por Ricceur (2007) e sobre a perspectiva da sua coletividade cunhada
por Halbwachs (2006), dentre outros que contribuíram para identificamos as formas
marcadas pela metamorfose do desgaste do tempo e do espaço, em que historicamente, a
memória está representada na diversidade cultural da cidade de São Luís/MA.

Palavras-chave: Literatura Maranhense. Memória. Cidade de São Luís.

ABSTRACT

This work analyzes the paths crossed by the lyrical voice in the urban memory of São Luís
city in the poem Canto à cidade de São Luís, by Arlete Nogueira da Cruz (2017). In it the
author makes the interpretation of the city from the Maranhense urban space, which serves
as a trigger for the awakening of memories previously asleep in memory. The physical space
plays an essencial role in the preservation of individual and collective memory, because it
records the mark of each person, and this space is marked by the group that occupies it and
vice versa. It emphasizes that the preservation of history is done efficiently, instigating to
know the city, to exalt the economic contribution, the tourism and regional cultural as well.
Therefore, it is through literature that the human being satisfies subjective needs, being
allowed to assume a critical attitude towards the world from the polysemic and metaphorical
possibilities of language, from the questions it offers. Thus, the objective is to analyze the
repercussions that the return to the place where the lyrical voice lived her childhood causes,
not only in the psychological stratum, but also physical. As theoretical foundation, Bourdieu’s
(2004) reflections on literature, on the memory formulated by Ricceur (2007) and on the
collective perspective of it coined by Halbwachs (2006), among others that contributed to
identify the forms marked by the metamorphosis of the wear of the time and space, in wich
historically, memory is represented in the cultural diversity of São Luís city.

Keywords: Maranhense literature. Memory. São Luís City.

INTRODUÇÃO

A poesia consegue fazer a descrição de um objeto ou momento, o poeta é unicamente


individualizado nas suas escolhas e constrói seus versos com composições imagéticas
profundas, na qual registra os movimentos da alma e dos sentimentos, fazendo a
representação de momentos reais, individualizando suas escolhas, o que difere apenas é a
disposição em realizar composições imagéticas, que focalizam instantes inundados pela
subjetividade.
Nesse sentido, a literatura é uma arte que consegue descrever épocas, locais e
tradições. A escrita maranhense possui essa grande importância, por saber da existência de

294
Anais

grandes nomes da literatura e de grande valia para que a história seja preservada, e dessa
maneira, não seja estagnada em apenas uma geração.
Para tanto, este trabalho analisa os caminhos percorridos na memória urbana da
cidade de São Luís a partir da leitura do poema Canto à cidade de São Luís, na obra Colheita
(2017) de Arlete Nogueira da Cruz. Neste poema a autora faz uma interpretação da cidade a
partir das lógicas cruzadas de atuação no espaço intelectual maranhense.
Utilizam-se conceitos formulados por Ricceur (2007), Bourdieu (2004), dentre outros
teóricos que contribuíram para identificamos as formas marcadas pela metamorfose do
desgaste do tempo e do espaço, em que a história e a memória estão representadas na cultura
e na diversidade da cidade de São Luís/MA.
Para o linguista russo Roman Jakobson, “a literatura é explicada com uma função da
linguagem, a função poética: que dá ênfase à própria mensagem” (SAMUEL, 2002, p.79). Já
bem dizia Mallarmé: “a poesia remunera as falhas da língua” (ibidem). Nessa perspectiva, o
texto poético traz consigo a possibilidade única de encontro particular com o autor, pois
através da relação leitor-texto-autor a literatura alcança possibilidades que somente a
linguagem pode oferecer. Assim, a arte literária está para além dos aspectos pragmáticos e
reais da vida
Dessa maneira, a preservação da história é feita de forma eficiente, por consequência,
instiga a curiosidade em conhecer o estado, contribuindo com a economia, o turismo e a
cultura da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as
necessidades subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao
mundo a partir das possibilidades metafóricas e polissêmicas da linguagem, como também
a partir das indagações que ela oferece.
Este artigo está divido em três partes que possibilitam a ruptura com a tradição, os
traços da modernidade, relacionando a imagem e o ritmo na poesia maranhense
contemporânea. No primeiro momento trata-se da leitura crítico-literária da cidade e
memória na produção poética maranhense, do ponto de vista histórico e cronológico, do
poema Canto à cidade de São Luís.

295
Anais

No segundo momento, verifica-se as lógicas cruzadas de atuação no espaço intelectual


maranhense, ou seja, a análise do eu-lírico4 na referida obra de Arlete Nogueira da Cruz. Já
na terceira e última parte, o desfecho desse panorama cultural e literário, em que a poesia
em sua trajetória evolutiva traz caracteres temáticos, estilísticos e com a identidade cultural
maranhense, que do ponto de vista analítico empregado neste estudo, a análise da produção
literária da referida autora, pressupõe a investigação do qual ela se situa no espaço da obra
contemporânea.

Do ponto de vista histórico e cronológico

A leitura crítico-literária analisada do poema Canto à cidade de São Luís, um texto com
sua primeira publicação em 1973, na obra Canção das horas úmidas, que evoca a sublime e
nostálgica cidade de São Luís, está inserida na antologia poética Colheita (2017), é a última
obra organizada pela autora Arlete Nogueira da Cruz, na qual ela ressalta sua fortuna crítica,
situando no tempo e no espaço cada detalhe com apreensão estrutural do respectivo poema
que se apreende a partir das relações objetivas que definem e determinam sua posição no
espaço da produção.
Como forma privilegiada da modernidade literária, a poesia produz um objeto de
linguagem (o poema), objeto este que passa a existir de forma privilegiada no mundo da
cultura humana – como, aliás, outros objetos artísticos. A arte, se imita a natureza, imita-a no
sentido de ser capaz de produzir novas formas orgânicas e autônomas em si mesmas, mas
diferentes das encontradas no mundo natural.
Outrossim, essa nova forma orgânica, autônoma, fechada em si mesma, terá sempre
seu significado profundo, aberto, presentificado no ato da leitura. Nesse enredo, vale
salientar que, a poesia, segundo o Houaiss (2001, p. 2246), é uma “composição em versos
(livres e/ou providos de rimas) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou
conceitual na abordagem de ideias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc.,
quase sempre expressos por associações imagéticas” e por si só evidencia as multifaces da
experimentação pessoal.

4 Nomenclatura utilizada para indicar a voz que enuncia o poema. O gênero lírico é aquele destinado
a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu em seu encontro
com o mundo. (HOUAISS, 2001, p. 2245)

296
Anais

Maurice-Jean Lefebve, em Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa, argumenta


que a poesia, cuja linguagem se desgarra e se separa da utilidade prática da língua, é
carregada de intencionalidade, que consiste em “[...] desligar o discurso do seu uso prático,
em considerá-lo como um novo estado de linguagem em que o processo de significação
contaria mais que o sentido ou a coisa significada” (LEFEBVE, 1980, p.48).
Assim, o discurso poético caracteriza-se pela utilização de uma linguagem, ou seja,
metalinguagem, que se exacerba a conotação, a polissemia, a ambiguidade, e a intenção de
se construir um objeto, neste caso, a obra de arte literária, no poema Canto à cidade de São
Luís, de Arlete Nogueira da Cruz, que tem a existência material independente e que
ultrapassa a comunicação propiciada pela linguagem corrente.

Memória e espaço a partir da cidade de São Luís

Em se tratando de memória, Maurice Halbwachs, sociólogo francês, foi um dos


grandes teóricos que postularam sobre o tema. Sua decisão de pensamento ao atribuir à
memória um caráter social, e não individual5, inaugura uma nova perspectiva às discussões
sobre memória. Apesar de ter cunhado o conceito de “quadros sociais da memória”
anteriormente, foi na obra A Memória Coletiva (publicada postumamente em 1950), que
Halbwachs afirma que para se lembrar, precisa-se do outro.
Halbwachs (2006), também considera a existência da memória individual, estando
ela enraizada em diferentes contextos e grupos sociais com os quais um indivíduo cruza ao
longo da vida. Por isso, o indivíduo que lembra, é sempre um indivíduo inserido e habitado
por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas também é um
trabalho do sujeito.
A reminiscência é uma experiência pessoal que permite situar a singularidade de uma
vida no contexto da experiência histórica mais ampla. A memória auxilia na história de um
determinado indivíduo para que se associe com diversas outras histórias dos grupos sociais
que ele frequenta. Cada história pessoal é uma pequena parte que integra e compõe a
memória coletiva de uma época.

5 O que ia de encontra às teses fenomenológicas de Agostinho, Locke, Husserl, por exemplo, que
acreditam que a memória era fenômeno individual, pessoal e interna.

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Anais

Sendo assim, pode-se afirmar que cada memória individual é um ponto de vista sobre
a memória coletiva e que, além disso, cada enfoque muda de acordo com o lugar que é
ocupado no campo social e, também, segundo a relação mantida em outros ambientes
Halbwachs (2006). Ao tratar da memória coletiva e do espaço, no capítulo IV da mesma obra,
o autor declara que o ambiente material no qual vivemos traz simultaneamente nossa marca
e a marca do outro.
Dessa forma, tudo o que compõe uma casa, por exemplo, seus móveis,
eletrodomésticos, cor das paredes e até o cheiro dos ambientes remetem à família e amigos
que podem ser vistos nesse contexto. Tal consideração vale tanto para pessoas que vivem
em família, independente da sua composição, quanto para pessoas que moram sozinhas.
Mesmo que seus adereços domésticos não remetam alguém com quem conviva
diariamente sob o mesmo teto, eles “circulam dentro do grupo e nele são apreciados,
comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do
gosto, e nos recordam os costumas e as antigas distinções sociais” (HALBWACHS, 2006, p.
158). Portanto, entende-se que o ambiente interno reflete a influência do social.
No entanto, não é somente o espaço domiciliar, interno, que sofre tais ações sociais, o
espaço público, externo, também recebe graus de interferência. Quando postula sobre o
espaço ocupado por um determinado grupo6, Halbwachs não o entende como um quadro-
negro onde se escreve e apaga sem deixar rastros. Isso se dá porque “o local recebeu a marca
do grupo, e vice-versa” (HALBWACHS, 2006, p. 159), tendo suas ações traduzidas em
“termos espaciais”, tornando esse lugar, a reunião de todos esses termos. Sobre a
significância desses termos, ele afirma:

Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível
para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou
correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de
sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável. (HALBWACHS,
2006, p. 160).

Dessa forma, o conjunto arquitetônico de uma cidade, bem como suas cores,
tamanhos e outras características pode remeter ao passado e carregar significados
específicos a um grupo. No entanto, a relação entre um grupo e esse lugar com o qual eles se
relacionam podem sofrer mudanças, caso algum acontecimento “grave” ocorra, seja porque

6 Podendo ser uma rua, um bairro, cidade etc. (HOUAISS, 2001, p. 2246)

298
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modifica o grupo como um todo, a exemplo do falecimento de um dos participantes, ou um


casamento, seja pela mudança do lugar, a exemplo da mudança, para uma remuneração
maior ou menor de um dos membros do grupo, gerada por uma promoção, ou troca de
emprego, ou até mesmo demissão.
Halbwachs entende que isso modifica o grupo, a memória coletiva e o ambiente
material. Exposto isso, agora cabe analisar o poema de Arlete Nogueira da Cruz, intitulado
Canto à cidade de São Luís, publicado na antologia Colheita (2017). Esse poema faz parte de
um conjunto de composições poéticas reunidas pela própria autora que foram escritas no
decorrer da sua carreira literária. O poema analisado é composto por 30 estrofes com quatro
versos cada, sendo cada verso uma redondilha maior (sete sílabas poéticas), e esquema de
rima ABAB. A temática principal do poema é o saudosismo. O eu-lírico7, após muitos anos
distante da cidade de São Luís, retorna ao local onde cresceu e é assaltado pelas lembranças
do seu passado.
A presente análise contempla os três momentos do poema: o primeiro, aborda as
reminiscências da voz lírica do poema e as suas emoções pessoais, no segundo, descreve um
dos grupos sociais ao qual ela fazia parte, a saber: sua família, e no terceiro, é uma reflexão
pesarosa causada pelo revisitar dessas memórias.

Atuação no espaço intelectual maranhense

O amálgama profundo do poema Canto à cidade de São Luís, concomitantemente, traz


à tona uma perspectiva construtiva que ressalta com a metafísica, o mítico, o místico e a
transcendência, no intuito de captar os padrões essenciais e subjacentes às contraditórias
aparências da cidade, do espaço, do tempo, da cultura e da história na literatura maranhense.
Segundo Bourdieu:

A noção de espaço não diz respeito a um cálculo sistemático, mas à relação –


também não plenamente inconsciente – entre as disposições incorporadas
ao longo das trajetórias dos agentes e o que está em jogo no espaço social em
que se inserem, ou seja, pelo acionamento de recursos tangíveis ou

7 No poema Canto à cidade de São Luís, o eu-lírico é feminino. Constata-se isso pelo uso de artigos e
substantivos femininos para se referir a si mesmo no decorrer dos versos. (HOUAISS, 2001, p. 2248)

299
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intangíveis condicionados a meio caminho entre as determinações objetivas


e as disposições incorporadas. (BOURDIEU, 2004, p. 47).

Percebemos que, a definição crítica de espaço é bastante funcional, em relação a


imagem da metáfora no referido poema e na descrição, mas também na forma de analogia,
comparação, justaposição na apreensão e representação de objetos, conforme Arlete
Nogueira da Cruz expõe em sua antologia poética. O espaço urbano da cidade de São Luís
pode ser entendido como o gatilho para o destravar das memórias descritas pelo eu-lírico do
poema, como descrito na primeira estrofe: “Ó cidade de São Luís/ estanco nestes degraus/
subindo escadas que fiz/ suando os mais altos graus” (CRUZ, 2017, p. 18).
A interjeição “ó” denota o chamamento inerente ao seu uso, que nesse caso, pode
indicar alegria, nostalgia, saudades ou até mesmo dor pela invasão dos sentimentos que o
retorno à cidade de São Luís lhe causa. Em seguida é descrita a lembrança evocada pelo ato
de subir as escadas as quais o eu-lírico subiu por muitos anos, mas por algum motivo8 foi
impedido de fazê-lo. O verbo “estanco” demonstra a incapacitação que a nostalgia pode
causar no corpo de um indivíduo. O fenômeno mnemónico pode até mesmo trazer à tona
sensações físicas, tais como suores, causado pelo clima tropical úmido que mantém as
temperaturas altas na ilha de São Luís, fenômenos que podem ser explicados pela psicologia.
A partir do ato de subir essas escadas, desencadeia uma série de lembranças no eu-
lírico. O luto pela mãe perdida descrito nos versos: “À vista de tuas casas/ reclamo mãe que
perdi” (CRUZ, 2017, p. 18) encontra a poeticidade da comparação: “igual aves sem asas/ não
sei a forma de ir” (CRUZ, 2017, p. 18) e mais uma vez tem o espaço urbano de São Luís como
cenário que suporta sua nostalgia: “chorar de perto do Anil”, “rever o sítio, o barril/ de
pólvora sobre meu sono” (CRUZ, 2017, p. 18).
Existe, ainda um paralelo entre duas estrofes do poema que demonstram a passagem
do tempo cronológico e o estado físico e emocional do eu-lírico em cada um desses momentos
de sua vida: “Contente, uma menina/ àquela praia trazida/ tornou-se ali purpurina/ e logo

8 Provavelmente a mudança geográfica, que pode ser motivada por diversos fatores. Halbwachs
(2006) afirma que tais movimentações podem gerar uma modificação no grupo (nesse caso, o eu-
lírico, que representa um dos membros desse coletivo) e o local com o qual eles se relacionavam
(nesse caso, a casa onde eles moravam. No poema, os versos “Lembrança antiga da terra/ deixada
um dia apara trás” ilustra o pensamento de Halbwachs, embora não seja possível identificar o motivo
exato desse abandono.

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Anais

comprometida” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Vinte anos transcorridos/ à praia volta a criança/
assustada dos havidos/ chorar materna lembrança” (CRUZ, 2017, p. 22).
O paralelo entre essas duas estrofes e o seu cenário, a praia9, é palco de episódios
emocionalmente marcantes: no primeiro momento, tornar-se purpurina, pode fazer
referência à menarca10 do eu-lírico, o que justificaria a razão pela qual ela, logo depois,
comprometeu-se com alguém, já no segundo momento, o retorno a praia relembra a perda
de sua mãe.
São Luís é palco de boas venturas não somente para o eu-lírico, mas para sua família:
“Ó cidade aventurada/ de nossa Márcia, das mãos/ dessa mãe Enoi, da amada/ mãe destes
seis irmãos” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Ó terra que ao pai foi/ prometida: de mel e azeite” (CRUZ,
2017, p. 20). A lembrança materna11 e paterna está carregada do sentimento de labor, o que
denota o esforço empregado pelos pais do eu-lírico na criação de seis filhos. Na estrofe que
fala sobre o pai, encontra-se uma referência ao texto bíblico12, denotando o conhecimento
bíblico e a fé (católica ou cristã) do eu-lírico.
Outras referências bíblicas são feitas durante a narrativa poética, a exemplo de:
“Através de ti nosso pai/ nos deu o pão de cada dia/ (a nossa for, nosso aí, a nossa mãe
resolvia” (CRUZ, 2017, p. 21) e “Dever que temos agora/ que tu mãe, e que tu pai, nos deram
naquela hora/ conduziu-nos ao monte Sinai” (CRUZ, 2017, p. 21).
Interessante notar que, todas as referências bíblicas estão baseadas no texto bíblico
de Êxodo, que narra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito e sua peregrinação
rumo “à terra prometida”13. Pode-se confirmar a hipótese de que, o eu-lírico e sua família não

9 Embora na primeira estrofe destacada o substantivo “praia” possa fazer referência à ilha de São
Luís (essa perspectiva será considerada posteriormente).
10 A menarca, a primeira menstruação de uma menina, em algumas culturas, marca a passagem da
infância para a vida adulta, o que a tornaria apta para casar, uma vez que, biologicamente, seu corpo
pode gerar uma nova vida.
11 Curiosamente o eu-lírico, no decorrer da narrativa poética, ao se referir aos seus pais, faz
referência à figura materna em primeiro lugar. Isso acontece, possivelmente, pelo fato da voz poética
ser feminina, o que pode gerar uma empatia e identificação quanto às lutas de sua progenitora.
12 Uma referência indireta, uma vez que o texto bíblico faz chama a terra prometida ao povo de Israel
de “terra que mana leite e mel”, e no poema de Arlete Nogueira ela chama a cidade de são de terra de
“mel e azeite”.
13 Foi no deserto que o povo recebeu o “pão de cada dia” em forma de maná; foi lá também Moisés
conduziu o povo “ao monte Sinai” e lá recebeu as tábuas da lei, que continham as diretrizes éticas que
o povo hebreu deveria seguir, como relatado no livro de Êxodo.

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Anais

sejam ludovicense, mas retirantes que vieram para o litoral em busca de melhores condições
de vida. Ainda falando sobre o monte Sinai, pode-se relacionar essa ideia bíblica aos versos
que seguem sua referência: “alertado ao que seríamos, enquanto esperamos vez” (CRUZ,
2017, p. 21).
Assim, é possível constatar que, a cidade de São Luís seria esse local onde os pais do
eu-lírico tentaram traçar um destino para ela e seus irmãos, uma vez que o monte Sinai é um
local no qual, os destinos são traçados, no contexto bíblico. É possível notar a fé sendo esteira
para as decisões tomadas pela família do eu-lírico: “Com século de cidade-ilha/ São Luís, ficou
esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia chegando” (CRUZ, 2017, p. 19). Essa
estrofe carrega um enigma, pois pode ser considerada como um momento de transição
temática no poema.
As estrofes anteriores tratam de lembranças e sentimentos individuais do sujeito
lírico que narra seu retorno à cidade de São Luís. Considerando apenas essas primeiras
estrofes, pode-se pensar que o eu-lírico seja ludovicense, no entanto, ao ponderar os versos
destacados a cima, em “São Luís ficou esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia
chegando”, a imagem pintada é de um grupo de pessoas se mudando para a ilha14.
A personificação atribuída à cidade conota o sentimento de acolhimento que a ilha
proporcionou a esses retirantes, que vieram em busca de novas oportunidades, o que pode
ser verificado em: “/ Ó tu que nos deste o boi/ às nossas manhãs de leite/ nos deste em torno
da mesa/ ciência de um solitário/ esforço para proeza/ do nosso comer diário” (CRUZ, 2017,
p. 20). A cidade recebe novas características humanas nos versos: São Luís então se oferece/
maternalmente na noite (CRUZ, 2017, p. 22). Aqui São Luís assume o papel da mãe que o eu-
lírico perdeu, agindo com condescendência e, mais uma vez, acolhimento: “Acolhe esta
andarilha (CRUZ, 2017, p. 22), “Ó terra que sempre soube/ dar dia e dar noite” (CRUZ, 2017,
p. 22), “nos deste em ganho à lavoura” (CRUZ, 2017, p. 21), “mostraste a esperança” (CRUZ,
2017, p.21).
Os versos “à órfã que desconhece/ a origem de tanto açoite” (CRUZ, 2017, p. 22)
aludem a um sentimento recorrente nessa narrativa poética: dor. Embora a ilha tenha
recebido bem essa família, a voz poética constantemente descreve sentimentos de angústia:

14 Aqui o substantivo “praia” é considerado conotativamente, representando a mudança de uma


família de um local continental para o litoral. Embora essa não seja a proposta desta análise, é
possível notar um paralelo entre a vida da autora e o poema em questão, uma vez que a mesma veio
ainda criança do interior do estado do Maranhão com seus pais para a cidade de São Luís.

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“(a nossa dor, nosso ai)” (CRUZ, 2017, p. 21), “suor, sangue e salmoura” (CRUZ, 2017, p. 21),
“asila-me neste desvio/ repleta destes meus idos” (CRUZ, 2017, p. 22), “subindo no desamor/
das águas que me querem ilha, / de outras que me trazem dor” (CRUZ, 2017, p. 22).
Assim, nota-se a curva descendente que o desbloqueio dessas memórias causou no
eu-lírico. Não existe clareza quanto aos infortúnios sofridos por essa família de possíveis
migrantes, mas os sentimentos narrados são suficientes para constatar que o despertar
dessas lembranças fazem-na reviver na pele essas emoções aviltantes, motivadas pelo
abandono de sua terra natal, pelas dificuldades vivenciadas em família na sua nova casa,
pelas perda de entes queridos (como é descrito no início do poema e reiterado em alguns
versos seguintes sobre a perda da mãe), pela saudade dos parentes vivos – e mortos –, ou até
mesmo um pouco de cada uma dessas hipóteses levantadas.
No entanto, constata-se o protagonismo da cidade de São Luís no despertar dessa
memória, e sua plena participação como palco de momentos marcantes na história (e
ficaram na memória) da voz poética que narra com saudosismo e pesar, mas com gratidão,
os caminhos trilhados por seu eu de tempos atrás.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O retorno para suas origens se revelou uma experiência dolorosa para o eu-lírico que
narra a Canção para a cidade de São Luís. Ao mesmo tempo que as boas lembranças de sua
infância junto de sua família trazem acalento ao seu interior, os anos de labor e perdas
sofridas maculam de angústia e luto essas memórias. Ao investigar parte da fortuna crítica
de Arlete Nogueira (Colheita, 2017), percebemos a relação entre a cidade de São Luís e a
pessoa de Arlete, embora não seja suficiente para afirmar que o eu-lírico do poema seja a
própria. Identificamos, também, as formas marcadas pela metamorfose do desgaste do
tempo e do espaço, representados metaforicamente pelo salitre.
Sendo assim, a obra Canção das horas úmidas (1973), livro esse que tem sua estrutura
demarcada dentro da antologia poética Colheita (2017), ressalta como marco importante de
contribuição contemporânea na mensagem dos poemas: Canto à cidade de São Luís, no qual,
o brilho através do tempo, torna-se uma grande riqueza para a literatura maranhense.
Portanto, neste trabalho, intitulado: Pelos caminhos da memória e da história no
poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz, percebeu-se a relevante

303
Anais

importância para com a Literatura Maranhense Contemporânea, na perspectiva do tempo e


do espaço ludovicense.

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https://www.youtube.com/watch?v=qouEXuI8DHk – Acesso em 13 de jan de 2022 às 22h.

304
AUTOBIOGRAFIA E CONSTRUÇÃO
DO NARRADOR EM CAZUZA
Erika Maria Albuquerque SOUSA (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2

RESUMO

A complexidade da construção da identidade em Cazuza (1938), de Viriato Corrêa, revela-se


em uma intricada rede de representações, em que o personagem se submete a tantos outros
(família, amigos, colegas de escola etc.), constitutivos de sua própria persona. Se a
autobiografia é essa representação de acontecimentos baseada na memória, acreditamos
que Corrêa pauta-se no ato de recordar ao transmitir por meio da escrita o vivido (sua
meninice) e o ato de descrevê-lo, ao transformar suas reminiscências em romance; nesse
sentido a autobiografia como construção do narrador/autor de uma redefinição da forma da
memória histórica é considerada como um dado que o romance situa-se “numa espécie de
zona de indefinição de fronteiras entre ficção e realidade” (SENA, 1997, p.9). A partir da
posição do narrador, o presente trabalho discute e reconhece o romance autobiográfico de
Viriato Corrêa, Cazuza, como “uma espécie de tensão entre o presente e o passado do eu”
(SENA, 1997, p.9). Como resultado desses encontros, o presente texto surge, atento a seus
sujeitos: personagens, narrador, autor, instâncias subjetivas que se autorrevelam pela
linguagem. Sujeitos nacionais, transnacionais que, no livro Cazuza, são unidos como textos
críticos sobre o tema da autobiografia como construção do narrador. A pesquisa é analítica
e tem como base primária a obra e como base teórica os estudos de pesquisadores que, de
alguma forma, têm em comum, trabalhos que apresentem ideias sobre a obra Cazuza (1938),
como é o caso de Moisés (1994), Lejeune (1975), Benveniste (1982) dentre outros.

Palavras-chave: Autobiografia; Cazuza; Viriato Corrêa; narrador.

1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa (Universidade Estadual do


Maranhão – UEMA, campus Caxias). E-mail: erikaalbuquerquecescuema@gmail.com
2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA, campus Caxias). Docente na Universidade Estadual
do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Editora da Revista de Letras Juçara -PPG/Letars/CESC-UEMA.
Docente no programa de mestrado em Letras/UEMA. E-mail: sogemorais@gmail.com

305
Anais

ABSTRACT

The complexity of identity construction in Cazuza (1938), by Viriato Corrêa, reveals itself in
an intricate network of representations, in which the character submits to so many others
(family, friends, schoolmates, etc.), constitutive of your own persona. If autobiography is this
representation of events based on memory, we believe that Corrêa is guided by the act of
remembering by transmitting through writing the experience (his childhood) and the act of
describing it, by transforming his reminiscences into a novel; In this sense, autobiography as
a construction of the narrator/author of a redefinition of the form of historical memory is
considered as a fact that the novel is located “in a kind of zone of undefined boundaries
between fiction and reality” (SENA, 1997, p. 9). From the narrator's point of view, the present
work discusses and recognizes Viriato Corrêa's autobiographical novel, Cazuza, as “a kind of
tension between the present and the past of the self” (SENA, 1997, p.9). As a result of these
encounters, the present text appears, attentive to its subjects: characters, narrator, author,
subjective instances that are self-revealed through language. National and transnational
subjects that, in the book Cazuza, are united as critical texts on the theme of autobiography
as a construction of the narrator. The research is analytical and has as its primary basis the
work and as a theoretical basis the studies of researchers who, in some way, have in common,
works that present ideas about the work Cazuza (1938), as is the case of Moisés (1994),
Lejeune (1975), Benveniste (1982) among others.

Keywords: Autobiography; Cazuza; Viriato Corrêa; storyteller.

Introdução

O presente artigo trata de uma pesquisa bibliográfica e documental sendo, portanto,


de natureza descritiva e exploratória, além de se apresentar resultado de um projeto de
pesquisa fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Tecnológico – FAPEMA/MA. Desta maneira, consistirá na análise qualitativa da obra Cazuza
(1938) sob o viés da teoria do Pacto Autobiográfico, de Phillipe Lejeune (1973-1975),
buscando identificar os possíveis efeitos da autobiografia como instrumento de preservação
da memória individual e coletiva, bem como destacar a importância da autobiografia no
âmbito dos estudos literários; compreender os principais conceitos da Teoria do Pacto
Autobiográfico, de Philippe Lejeune e verificar como a autobiografia influencia na construção
do narrador, que são nuances que a teoria do Pacto suscita.
A obra Cazuza (1938) foi publicada em um contexto específico, tanto no âmbito
nacional como particular da vida do autor, pois em 1930, Corrêa acabou afastando-se da

306
Anais

política ao ser preso pela Revolução de 30.3 Da política seguiu para a Literatura, onde
escreveu romances, peças teatrais, livros para crianças e crônicas históricas. Em 14 de julho
de 1938 acaba sendo o terceiro ocupante da Cadeira 32, na sucessão de Ramiz Galvão e
recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 29 de outubro de 1938. Datas concomitantes ao
lançamento de seu livro infantojuvenil, Cazuza, publicado em 1938, período de ascensão do
Estado Novo.
Em vista disso, o romance em questão trata de um relato autobiográfico dos tempos
de meninice do escritor, apresentando críticas, em tom singelo, sobre o período em que o
Brasil se encontrava, tanto na educação como na política, nos apresenta, também, os
costumes, as crenças e a religião do povo maranhense. Com uma linguagem simples e bem
humorada os personagens do livro levantam discussões sobre os métodos de ensino
vigentes, a ideia de pátria, a guerra e a diferença de tratamento entre ricos e pobres, fazendo-
nos conhecer o Maranhão e a História do Brasil.
Nessa perspectiva, a pesquisa é feita a partir de um suporte teórico direcionado aos
estudos de teoria da literatura voltados tanto para o Narrador como para o Pacto
Autobiográfico, especificamente para o papel do narrador enquanto protagonista da diegese.
Para tanto, entre os pesquisadores estudados, serão utilizados aqueles que abordam a
literatura sob o enfoque da Memória, da Autobiografia e do Narrador, tais como Lejeune
(2008), Josef (1998), Benjamin (2012), dentre outros.

Quem foi Viriato Corrêa?

Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, ou simplesmente Viriato Corrêa, foi uma
figura de destaque no cenário intelectual maranhense, na primeira metade do século XX.
Nasce em 1884, na cidade de Pirapemas, Maranhão, filho de Manuel Viriato Corrêa Baima e
de Raimunda Silva Baima. Cursou as primeiras letras numa escola pública, no povoado de
Pirapemas, e, ainda criança, aos nove anos, deixou a sua cidade natal para dar continuidade
aos estudos primários no colégio São Luís, na capital do Estado. Uma vez concluídos os
estudos preparatórios no Liceu Maranhense, mudou-se para Recife-PE, onde frequentou por

3 A chamada Revolução de 30 pode ser entendida como a disputa pelo poder federal entre as
oligarquias de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba. Neste sentido há a obra
de Boris Fausto (1997).

307
Anais

três anos a Faculdade de Direito, encantando-se com a vida intelectual que esta lhe
proporcionava.
Sob o pretexto de terminar o curso jurídico na metrópole, Viriato Corrêa também
deixou o Maranhão, no início do século XX, transferindo-se para a Faculdade Nacional, na
capital federal, onde se bacharelou. Cumpria-se, assim, o destino de Viriato, vaticinado desde
sua infância por uma vizinha que, ao presenciar a avidez com que o menino aprendia as
primeiras letras do alfabeto, rabiscadas na areia pelo pai, dizia “em seu pitoresco linguajar
de mulher do povo”: “- Qual! Esse menino não é daqui, é de lá...” E abrindo os braços: é do
mundo!”.4
Ainda perambulando pelas redações, fundou os jornais Fafazinho, nome de sua seção
da Gazeta que tanto êxito obtivera e A Rua, que organizou com Peixoto de Castro e que logo
se tornou um jornal muito popular. Foi também diretor do jornal A Noite, onde assinou por
vários anos uma coluna com o pseudônimo de Pequeno Polegar, e colaborador de várias
revistas, entre as quais Careta, Kosmos, Ilustração Brasileira, A Noite Ilustrada, Para Todos, O
Malho e Tico-tico. Em 1941, quando é fundado, sob a direção de Cassiano Ricardo, o jornal A
Manhã, Viriato redige a coluna diária sobre teatro, que mantém durante anos na seção “O Rio
e suas diversões”, dividindo a página com escritores como Manuel Bandeira (1886-1968) e
Vinícius de Moraes (1913-1980).
Apesar de sua vasta produção e trajetória, destacando-se como jornalista, cronista,
advogado, dramaturgo, teatrólogo e político brasileiro, o que consagrou Viriato até os dias
atuais foram seus escritos na literatura infantil como: Histórias de nossas histórias (1991),
Brasil dos meus avós (1927), O país do pau de tinta (1939), Cazuza (1938), A macacada
(1949), e, História do Brasil para crianças (1934). Viriato Corrêa faleceu no Rio de Janeiro,
em 10 de abril de 1967.

O que é Autobiografia?

É a presença do autor como principal personagem – ainda que oculta – que


distingue o verdadeiro, o mais puro romance; a mais bela arte é sempre
autobiográfica.
Adolfo Casais Monteiro
“Sobre Eça de Queirós”, Presença 17, dez.1928.

4 “Gente grande fala ao Calunga”. Diário de notícias. Rio de Janeiro, 05/05/1960.

308
Anais

Phillipe Lejeune (1975, p.14) ao definir autobiografia, descreve o termo como uma
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
põe o acento em sua vida individual, particularmente na história de sua personalidade”.
Nessa definição entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias
diferentes:
A primeira se trata da forma da linguagem: a) narrativa; b) em prosa. A segunda, o
assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. Na terceira, situação do
autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. Por quarta,
a posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem principal; b) perspectiva
retrospectiva da narrativa.
Desta forma, para Phillipe Lejeune (1975) é uma autobiografia toda obra que
preenche ao mesmo tempo as condições indicadas em cada uma dessas categorias. Para Sena
(1997) A autobiografia é uma representação de acontecimentos baseada na memória, no
próprio ato de recordar que adquire forma e sentido por meio da escrita, ocorre uma
aproximação entre vivido (o passado) e o ato de descrevê-lo (o presente).
Gusdorf (1991) defende que a narrativa autobiográfica não se limita à narração exata
dos fatos, ao contrário: preocupa-se em revelar o sentido de uma vida, na plenitude de sua
permanente atualidade. A Autobiografia, enquanto gênero ou subgênero da escrita literária,
é uma forma híbrida de expressão, porque essencialmente destinada ao registro de fatos
tidos como verídicos; ela pode ser um discurso documental, testemunhal ou ficcional (JOSEF,
1998, p.295). De qualquer forma, o que marca o eu do texto autobiográfico é seu caráter
“real”, segundo o desejo do escritor de “oferecer um retrato do seu ego (civil, autêntico) e
não de um ‘eu’ imaginário, em que se transformasse ou que constituísse o eixo de suas
projeções (MOISÉS, 1994, p.163).
Para Klinger (2006) na definição de autobiografia de Philippe Lejeune, o que
diferencia a ficção da autobiografia não é a relação que existe entre os acontecimentos da
vida e sua transcrição no texto, mas o pacto implícito ou explícito que o autor estabelece com
o leitor, através de vários indicadores presentes na publicação do texto, que determina seu
modo de leitura. Assim, a consideração de um texto como autobiografia ou ficção é
independente do seu grau de elaboração estilística: ela depende de que o pacto estabelecido
seja “ficcional” ou “referencial”.

309
Anais

A Autobiografia, pois, também é apresentada - como rememoração do passado com a


finalidade de organizá-lo - representa recurso perfeito à verossimilhança da obra. Em uma
autobiografia ou diário, o narrador deve, necessariamente, ser o protagonista. (RAMOS,
2010, p.73). Mediante o estudo das teorias supracitadas pode-se compreender a obra
Cazuza como pertencente aos romances do gênero, cujo propósito é a formação do leitor
mediada pela formação do protagonista, o que Delory-Momberger (2019) denominará de
heterobiografização, conceito criado para dar conta dos efeitos de compreensão e de
formação de si mesmo pela leitura ou escuta da experiência alheia da qual a pessoa que lê se
apropria como se fosse sua.
Assim, para Lira e Passeggi (2021) autobiografização e heterobiografização
convergem, portanto, para um ponto comum: a formação de quem narra a experiência vivida
e de quem lê a experiência narrada por outrem, respectivamente. No primeiro caso, a
reflexão se faz sobre a própria experiência no ato de narrar, no segundo, pela mediação da
narrativa contada por alguém. Nos dois casos, a obra autobiográfica de Corrêa e o romance
de formação por ele criado, Cazuza, são protótipos para a compreensão da formação humana
mediante as narrativas.

Autobiografia e construção do narrador em Cazuza

Para Klinger (2006, p.9) segundo o conceito de Lejeune, o “espaço autobiográfico”


compreende o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da ideia do autor: suas
memórias e biografias, seus (auto) retratos e suas declarações sobre sua própria obra
ficcional. Em um sentido geral, todo texto de ficção participa do espaço autobiográfico, a
ficção em primeira pessoa analisada neste artigo e com traços autobiográficos ocupa aí um
lugar de destaque: estabelece o que Lejeune chama de “pactos indiretos”, pois o autor, por
meio de alguma indicação, os dá a ler indiretamente como “fantasmas reveladores do
indivíduo”. (KLINGER, 2006).
Em Cazuza, o narrador possui vários traços da biografia do autor, fato que o crítico
literário Múcio Leão salientou sobre a importância de Cazuza na obra e vida de Viriato
Corrêa, afirmando que a obra era “uma suave autobiografia encerrando a pureza, a poesia

310
Anais

idílica da primeira infância do autor não sendo possível lê-la sem sentir nos olhos o calor das
lágrimas da emoção e da ternura”. 5
Viriato afirma que nutria por Cazuza um carinho especial, pois o protagonista era um
retrato de sua meninice, no Maranhão, fato que pode ser comprovado porque a obra vem à
luz somente em 1938, tendo consumido dez anos de trabalho de seu autor, que nunca se dava
por satisfeito com o resultado: “Tudo porque eu queria fazer de Cazuza, o personagem
principal, um garoto igual a muitos outros. Um dia, finalmente acertei e depois de parar um
pouco para pensar, cheguei à conclusão de que Cazuza sou eu, nos meus tempos de criança”.6
Italo Calvino (1993), ao discorrer sobre os livros considerados clássicos e a
importância de sua leitura, explica que o que torna uma obra clássica é seu efeito de
ressonância numa cultura - e isso se aplicaria tanto para obras modernas quanto para as
antigas. Os livros clássicos seriam, então, aqueles que “exercem uma influência particular
quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da
memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 1993, p.11).
E as constantes reedições de Cazuza podem comprovar essa ressonância. (PENTEADO,
2001).
Segundo o historiador Robert Darnton (1988, p. 34):

O narrador procede como se caminhasse por uma estrada bem conhecida.


Pode desviar-se aqui, para fazer uma pausa, ou ali, para uma vista, mas
sempre permanece em terreno familiar (...). Cria seu texto ao narrá-lo,
escolhendo novos caminhos através dos velhos temas.

Diante disso, o enredo da obra Cazuza, inicia-se com o relato explicativo, que irá
justificar o título do romance e sobre como tudo aconteceu:

Um dia, o homem bateu à minha porta, pedindo-me cinco minutos de


atenção. Entrou, abriu a pasta, tirou de dentro um grosso maço de
manuscrito e disse-me: São minhas histórias dos tempos de menino. O
senhor, que escreve, veja se isto presta para alguma coisa. (CORRÊA, 2011,
p. 8).

5 A tarde. Rio de Janeiro, 18/01/1960.

6 “Viriato vai ver sua ‘História da Liberdade’ no samba do Salgueiro”. Diário de Notícias. Rio de
Janeiro, 19/08/1966.

311
Anais

Observa-se no trecho supracitado um narrador, em primeira pessoa, humilde, que


entrega um caderno de memórias dos seus tempos de menino ao seu vizinho, questionando-
o se isso prestava para alguma coisa, uma vez que o outro escrevia. Uma interpretação para
Corrêa iniciar seu livro assim, poder-se-ia justifica-se pelo fato de em 1903 ter saído no
Maranhão o seu primeiro livro de contos, Minaretes, marcando o aparecimento de Viriato
Corrêa como escritor. O livro, no entanto, não agradou a João Ribeiro, que descarregou
contra ele toda a sua crítica. Considerou afetado o título, proveniente do árabe, porque uma
mesquita não tem nada em comum com contos sertanejos, que foram o tema da obra.7 Por
conta da má recepção de sua primeira obra, acredita-se que Corrêa utiliza-se do prólogo, na
obra Cazuza, para se apresentar mais humilde diante da sociedade literata.
Assim, a partir do primeiro capítulo deparamo-nos com um narrador-personagem
que utiliza-se de suas reminiscências para narrar os seus tempos de escolas, juntamente com
tais experiências temos contato com a cultura maranhense, pessoas que foram marcantes
em seu processo de amadurecimento, a religiosidade, dentre outros.
Walter Benjamin ao se apegar à reminiscência, de forma contundente, se preocupava
com a problemática das narrativas, uma vez que se relaciona com a transmissibilidade de
uma experiência e com o reconhecimento de um encontro marcado entre gerações. A partir
daí a arte de narrar encontrar-se em um terreno infértil, pois:

São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada
vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é
manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo
privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável:
a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p. 213).

Conforme o trecho acima pode-se afirmar que Corrêa através de seu narrador-
personagem cumpre a faculdade de intercambiar experiências ao descrever com
fidedignidade a hospitalidade como um dever religioso, no interior do Nordeste, conforme
descreve:

Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe. Apertavam a mão de meu


pai, dizendo-lhes “obrigado” e nada mais. É que nada mais lhes era
permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem
ofende aquele que a deu. A hospitalidade por lá é uma religião, e ninguém se
furta a um dever religioso. (CORRÊA, 2011, p.19).

7 https://www.academia.org.br/academicos/viriato-correia/biografia, acesso em 04/07/2022.

312
Anais

Pinto (1966, p.21) descreve como esse dever religioso de hospedagem é típico do
Maranhão, verificado em Cazuza (1938), tem caráter processual, como defendido por Hall
(1999), ao afirmar que, para outrem, seria perfeitamente natural, já para os sertanejos
maranhenses seria qualquer coisa profundamente ofensiva, pois tanto no romance como na
vida real, hospedar alguém é um dever pago com simpatia:

Talvez por isso tudo, toda gente que vinha tomar a gaiola, hospedava-se na
Casa Grande. Como a passagem dos barcos não obedecia a horário rígido,
muita vez, famílias inteiras ficavam ali alojadas uma semana, 15 dias,
comendo, bebendo, na mais santa das tranquilidades. O barco chegava,
agradeciam com efusão e partiam sem perguntar aos hospedeiros quanto
deviam porque, tal pergunta que, para outrem, seria perfeitamente natural,
para estes era qualquer coisa profundamente ofensiva (PINTO, 1966, p. 21).

Hércules Pinto em seu livro Viriato Corrêa (a moda de biografia), publicado em 1966,
decide fazer uma homenagem ao seu amigo Viriato, pois como era amigo da família sentiu a
necessidade de contar a história de seu admirável amigo, Corrêa. Deste modo, ao se traçar
um estudo comparativo entre o livro de Pinto e a obra Cazuza, podemos encontrar muitos
traços autobiográficos de Viriato Corrêa, como o trecho acima, que destaca o dever religioso
de recepcionar os visitantes; bem como a casa grande, que era a casa dos pais do autor e que
na obra ele preserva a lembrança ao descrevê-la como a casa de Cazuza: “a melhor casa de
telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás.
Chamavam-lhe a casa-grande, por ser realmente a maior do povoado” (CORRÊA, 2011, p.17).
Outro ponto interessante a se ressaltar é o lugar onde a história se desenrola, pois
Viriato Corrêa nasceu em Pirapemas/Maranhão e o primeiro capítulo de Cazuza, desenrola-
se justamente no mesmo local, reforçando o pacto autobiográfico presente. Assim, o
narrador irá apresentar seu local de nascimento como:

Um dos lugarejos mais pequenos, mais pobres e mais humildes do mundo.


Ficava à margem do Itapicuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio.
Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças
espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem
vigário. De civilização, a escola, apenas. A rua e os caminhos tinham mais
bichos do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras,
os carneiros e os bois. (CORRÊA, 2011, p.17).

313
Anais

Viriato Corrêa também preserva em sua obra memorialística a migração campo-


cidade sofrida por ele, quando ainda era uma criança precisou deixar a cidade natal para
fazer cursos primário e secundário em São Luís do Maranhão. Utilizando essa experiência
como mote ele consegue desenrolar todo o enredo de Cazuza. Pois a primeira parte da
narrativa inicia-se no Povoado de Pirapemas e por conta de ordens financeiras, os pais do
protagonista precisam deixar o povoado para migrarem a Vila do Coroatá, o que iremos
descobrir com a biografia de Viriato que, na verdade, a família se muda para São Luís por
conta do falecimento do pai de autor.
Destarte, ao recorrer a suas memórias Corrêa toma o cuidado de alterar o nome dos
locais, ao trocar São Luís por Coroatá, no segundo capítulo do livro, mas que não escapou ao
terceiro e último capítulo, pois é quando Cazuza muda-se para a capital do Maranhão, assim
como seu criador, para concluir os textos primários na capital. Portanto, se a memória fosse
a conservação completa do passado em uma “cópia interior” daquele, tudo estaria resolvido.
Mas não existe essa duplicata, porquanto os afetos, a linguagem, a atuação e principalmente
a imaginação (que é feita do mesmo substrato) são fatores responsáveis pela seleção,
definição e significação do passado.

Considerações finais

À guisa de conclusão, compreende-se que as memórias individuais se esvaem com a


morte de seus portadores, restando para a história, recursos que devem sobreviver por
gerações, só concebíveis em uma “memória coletiva”, onde o termo memória adquire um
sentido necessariamente distinto. Para Ricœur (2007), a fenomenologia da memória deve
dar conta de nada menos do que o “enigma da memória”.
Desta maneira, ainda que exista o pacto autobiográfico no romance Cazuza, não
podemos afirmar que Viriato Corrêa, seu criador, seja o mesmo personagem narrador,
porque o autor-narrador adquire personalidade na obra, quando é apresentado na diegese
como um “ser” em processo de formação, ainda que essa apropriação da memória seja do
seu autor, estaríamos diante então, do que ratifica Ricoeur, como enigma da memória, pois
não sabemos quão verdadeiramente são as reminiscências vivenciadas pelo autor ao
escrever o romance e se criar os personagens.
Segundo as pesquisas de Sousa e Morais (2022) a obra Cazuza apresenta diversas
temáticas que vão desde a Literatura infantil à cultura maranhense, agregando-lhe valor

314
Anais

cultural, histórico e social, pois além de retratar os costumes e tradição de um povo, insere-
o em um contexto de aparente inovação de uma determinada época, utilizando-se do
contexto educacional para tecer suas críticas. Estabelecendo, ainda, por meio do desvio
autobiográfico situações que deixam margem para interpretações, como se compararmos o
fato de Viriato Corrêa quando infante também vivenciado o processo migratório campo-
cidade, e concluir seus estudos na capital do Maranhão, São Luís, com a coincidência do
menino Cazuza, também concluir seus estudos na capital. Com uma linguagem simples, o
autor utiliza-se da autobiografia e suas memórias para passear por um período e nos
apresentar aspectos relevantes para uma época, um povo e uma cultura.
A obra analisada, para além das áreas de pesquisa utilizadas por esse artigo, ainda
deixa margem para outras linhas de pesquisa em vieses distintos, reconhecendo e agregando
ainda mais notoriedade à Corrêa e suas obras. Estas conclusões são, portanto, parciais,
deixando margem para muito do que ainda pode ser dito sobre o autor e toda a sua obra.

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316
A MENINA SEM PALAVRA:
O SILENCIAMENTO E A
CRÍTICA PÓS-COLONIAL
EM MIA COUTO
João Batista TEIXEIRA (FMB)1
Renata Martins de LEMOS (FMB)2

RESUMO

A literatura moçambicana em seus vários expoentes com suas histórias a tratarem da


tradição, do cotidiano e das vivências desse povo que tem em sua literatura contemporânea
a ficção de Mia Couto. Suas narrativas funcionam como uma representações que
ficcionalizam as várias faces de Moçambique, do urbano ao rural, o autor percorre a partir
de sua construção literária caminhos e descaminhos, errâncias e incertezas pelos mais
variados aspectos da experiência humana, expõe as feridas da colonização assim como
também acena para a descolonização, processo esse a ser refeito todos os dias na busca das
identidades moçambicanas, silenciadas pelo colonizador que usurpou da terra e violou
direitos fundamentais ao impor a sua presença por anos num processo violento e sobre o
qual a ficção de Mia Couto fala, para que esse passado vergonhoso não se repita na história
dos moçambicanos. A menina sem palavra, conto e título da coletânea, pela Editorial Caminho
(1997) de Portugal e no Brasil pela Companhia da Letras (2020), A menina sem palavra ao

1 Professor Doutor em Literatura e Interculturalidade pelo PPGLI – Programa de Pós-Graduação em


Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba, atua na docência da Educação
Básica e Ensino superior assim como na pesquisa em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Docente colaborador da FMB – Faculdade do Maciço de Baturité e Coordenador do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Literatura Brasileira – GEPLT.
2 Professora de Língua Portuguesa, licenciada pela Universidade Estadual da Paraíba – Especialista
em Literatura Brasileira pela FMB – Faculdade do Maciço de Baturité e membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Literatura Brasileira – GEPLT.

317
Anais

falar, se inspirar na expressão mar, única palavra a fazer parte de seu vocabulário e termo
que responde por vários significados, sendo um deles a vivência do povo moçambicano com
o mar, seja pelo Índico ou pelo Atlântico, quantas histórias são veiculadas via mar?, histórias
de invasões, violência colonial, trânsitos culturais assim como sentimentos de travessia,
itinerância, passagem e também libertação, elementos socioculturais já pontuais na
literatura de Mia Couto.

Palavras-chave: Literatura Africana de Língua Portuguesa, silenciamento e Pós-


colonialidade.

ABSTRACT

Mozambican literature in its various exponents with their stories dealing with tradition,
daily life and the experiences of this people who have in their contemporary literature the
fiction of Mia Couto. His narratives work as representations that fictionalize the various faces
of Mozambique, from urban to rural, the author travels from his literary construction paths
and misdirections, wanderings and uncertainties through the most varied aspects of human
experience, exposes the wounds of colonization as well as also beckons to decolonization, a
process that is being redone every day in the search for Mozambican identities, silenced by
the colonizer who usurped the land and violated fundamental rights by imposing his
presence for years in a violent process on which Mia Couto's fiction speaks so that this
shameful past is not repeated in the history of Mozambicans. The wordless girl, tale and title
of the collection, by Editorial Caminho (1997) in Portugal and in Brazil by Companhia da
Letras (2020), The wordless girl when speaking, inspired by the expression sea, the only
word to be part of her vocabulary and term that accounts for several meanings, one of which
is the experience of the Mozambican people with the sea, whether by the Indian Ocean or the
Atlantic, how many stories are transmitted via sea?, stories of invasions, colonial violence,
cultural transits as well as feelings of crossing , itinerancy and passage and also liberation,
sociocultural elements already specific in Mia Couto's literature.

Keywords: Portuguese-speaking African Literature, silencing and Post-coloniality.

Introdução

Pensando a partir de uma sociedade que marcada pela colonização portuguesa,


forçada a incorporar em seu cotidiano os costumes e tradições do colonizador, Moçambique
descolonizada e independente se vê também nas representações que Mia Couto insere e
recria em sua literatura através dos quadros de exclusão de moçambicanos, retrata os
resquícios de uma violência colonial, processo que atravessou tribos, campos e cidades e
ainda reverbera quando os cidadãos moçambicanos e em especial as mulheres, privadas do
acesso devido à escolarização, à saúde, assistência social e mercado de trabalho.
A presença da pessoa mulher na ficção de Mia Couto é uma referência nos contos e
romances, já que a figura feminina representa nessas sociedades, a criação, a maternidade, o

318
Anais

trabalho nas machambas, o cuidar da família quando os homens eram levados a servirem
nas guerras e no trabalho fora do país, temas que o escritor esboça nos espaços ficcionais
para que nesse mover e descontruir discursos a mulher possa ser visibilizada e metaforizada
como a nova nação tão propalada na libertação de Moçambique:

Sua obra se volta a indivíduos que nos caminhos e descaminhos de uma


nação que se ergue em meio aos escombros, com personagens deslocados,
absortos no tempo, num silêncio de quem se isolou da realidade, como
estratégia de não sofrer, ou amenizar as marcas do sofrimento, das mazelas
da guerra civil, das secas que assolaram por anos o território moçambicano.
(TEIXEIRA; BEZERRA, 2013, p. 2).

Seja em O outro pé da Sereia (2006), Mwadia Malunga a buscar a sua identidade


perdida no traslado de uma imagem e ícone católico e também refazendo a sua travessia em
busca de suas identidades, Mariamar em A confissão da leoa (2010), ao narrar a história em
contraponto ao narrador homem e caçador, entre outras representações que personificam a
voz feminina muitas vezes silenciada e a reclamar por essa voz duplamente negada,seja na
cultura local pelos costumes e códigos culturais da terra, pela presença também de duas
religiões patriarcais como o Islã e o catolicismo romano.
Nesta reflexão alocamos o conto do autor A menina sem palavra, da coletânea Contos
do nascer da terra (1997), optamos pela edição portuguesa da Editorial Caminho.
O conto sendo uma narrativa que Mia Couto acolhe e por ela desfia as histórias mais
diversas da cultura moçambicana, informa o cotidiano recriado, performatizado a trazer as
histórias perdidas, convocando o passado a presentificar-se para a compreensão das
existências.
Sobre o conto em Moçambique, observemos:

As narrativas curtas pululam na produção moçambicana como uma


totalidade dinâmica, representando o avanço do percurso da literatura deste
país, que se tornou cada vez mais independente em relação a um ponto de
partida em que a aculturação e a assimilação não permitiram a consciência
e a formação de uma entidade literária autônoma. (AFONSO, 2004, p. 37).

Mia Couto, contista por excelência, recolhe as narrativas da tradição, as histórias e


cotidianos que também conhece e consegue extrair da cultura do seu povo, narrativas que
nos permite conhecer através da ficção os caminhos e descaminhos desta nação que tenta se
erguer em meio a um passado de colonização ferrenha.

319
Anais

O autor se coloca também acerca do valor do conto como narrativa muito


frequentada:
O conto é feito com pinceladas. É um quadro sem moldura, o início inacabado
de uma história que nunca termina. O conto não segue vidas inteiras. É uma
iluminação súbita sobre essas vidas. Um instante, um relâmpago. O mais
importante não é o que revela, mas o que sugere, fazendo nascer a
curiosidade cúmplice de quem lê. No conto o que vale não é tanto o enredo,
mas o surpreender em flagrante a alma humana. No conto (como qualquer
género literário) o mais importante não é o seu conteúdo literário, mas a
forma como ele nos comove e nos ensina a entender não através do
raciocínio, mas do sentimento (será que existem estas categorias, assim
separadas?). (COUTO, 2005, p. 46).

Nessa perspectiva, o conto oferta a possibilidade de tomarmos a leitura e de forma


breve termos acesso a uma infinidade de informações e representações as quais insere-nos
na vida dos personagens e nos modos como eles atuam na trama, esse movimento de
comoção e ensinamento, pois ao tratar também da experiência humana como o faz os outros
gêneros literários, o conto por ser breve e apresentar a problemática aproximando o leitor
numa relação de cumplicidade, interesse e entendimento de histórias que também são muito
parecidas com as que vive também o leitor.

Silenciamento, mulher e literatura em Mia Couto

Em se tratando das sociedades com passado colonial, a presença da mulher neste


espaço em muitas situações não lhes dá o direito de lugar, de pertencimento e fala. Com as
representações das literaturas de países descolonizados ainda é uma frequência a presença
de personagens marcadas pelo silêncio e silenciamento, assim ocorre nas narrativas de Mia
Couto como no conto A menina sem palavra:

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam
só em sons que não somavam nem dois nem quatro. Era uma língua só dela,
um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais
não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela
esquecia o pensamento. Quando construía um raciocínio perdia o idioma.
Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há na actual humanidade.
Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de
encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na
entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse. (COUTO,
1997, p. 4).

320
Anais

Há uma outra língua que a menina sem palavra conhece, seria a língua da tão sonhada
liberdade que viria na libertação de Moçambique? De quantas liberdades se constrói um
mundo melhor?
Seria essa língua uma canção ainda ensaiada em vistas à uma existência melhor para
o indivíduo mulher, em uma sociedade atravessada por diferenciados códigos culturais e
neles há sempre a ordem de não falar, de não dizer de si.
Em se tratando do termo silêncio e silenciamento:

Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no


sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há
silêncio nas palavras; o estudo do silenciamento nos mostra que há um
processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma
dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a
rubrica do implícito. (ORLANDI, 2007, p. 11-12).

Estar em silêncio se relaciona a uma ordem estabelecida e que se impõe a negar a fala
a outrem. Não há total ausência da linguagem, o que se verifica é que a menina do conto
articula uma língua e linguagem desconhecida e até sugere uma espécie de música: havia
quem pensasse que ela cantasse, com esse modo de querer emitir algum som, de mostrar-se
como pessoa, a menina do conto intensifica o processo de subalternização naquele espaço
familiar que não se materializa o lugar de fala, de afetos e possibilidades de expressão e
comunização.
Quais categorias de silêncio a personagem de Mia Couto podem ser perspectivadas?
Esse silencio é também medo, censura, apagamento da fala. Para que falar? Para quem falar?
São questionamentos que perseguem essa análise, a qual se baseia na reflexão de que
enquanto sujeito mulher em uma sociedade patriarcal e herdeira de uma colonização
violenta, para a mulher é reservado os espaços de silêncio.
A menina sem palavra, expõe o quanto ainda é necessário reconhecer os direitos civis
das mulheres nessas sociedades e que haja mais espaço para que a mulher fale, reclame,
persista, exija seu espaço e lugar para falar e se construir em perspectiva de respeito a
enfrentar a vida a partir de um lugar na agenda política dos tempos atuais a desconstruir
esse mundo que ainda traz a marca do poder colonial.
Sobre o termo lugar de fala, convocamos o pensamento de Djamila Ribeiro:

321
Anais

Spivak é uma das autoras importantes para se pensar lugar de fala. Sua obra
Pode o subalterno falar, publicada pela primeira vez em 1985, originalmente
como um artigo, com o subtítulo especulações sobre os sacrifícios das viúvas,
traz reflexões importantes sobre como o silêncio imposto para sujeitos que
foram colonizados. A professora indiana é um importante nome do
pensamento pós-colonial, que, resumidamente, pretende questionar e
interrogar os fundamentos da epistemologia dominante e evidenciar os
saberes produzidos por grupos que foram subalternizados em territórios
coloniais. (RIBEIRO, 2017, p. 8).

Os territórios coloniais e os saberes produzidos por grupos que foram


subalternizados como afirma (RIBEIRO,2017), reflete o que é representação no conto de Mia
Couto.
Ao trazer Spivak para a discussão, pensamos no título do seu livro Pode o subalterno
falar? e vemos em A menina sem palavra, uma reflexão também precisa e acertada quando
estamos discutindo a partir de uma outra cultura que é a moçambicana e os reveses que essa
sociedade viveu e ainda vive.
Lembramos do romance A Confissão da leoa, de Mia Couto e perspectivamos essa
mulher que ainda não adentrou a universidade e o mercado de trabalho, a mulher que não
tem condições de vender seus produtos agrícolas em sua comunidade assim como não pode
expressar a sua crença ancestral, são as mulheres do cotidiano que essa fala de Djamila
Ribeiro e Spivak deve alcançar também.

O Insílio ou exílio interno na personagem de Mia Couto

A linguagem e a língua que a personagem do conto de Mia Couto não negocia e se


recusa a esboçar, traduz o silêncio imposto pela colonização a comunidade de Moçambique
respondendo por um cotidiano de emudecimento da cultura local e assimilação da cultura
portuguesa.
Esse tema é priorizado nas narrativas pós-coloniais, ou seja, a literatura que expressa
a criatividade e inventividade do escritor quando produz uma ficção que não tem como
matriz única a cultura do colonizador, mas se utiliza da língua do colonizado e ao
intercambiar via idioma imposto na colônia novas formas de dizer de si.
Convocamos Bonnici para aclarar questões fulcrais sobre a literatura pós-colonial:

A ruptura operada pela literatura pós-colonial e a apropriação do idioma


europeu para desenvolver a expressão imaginativa na ficção aconteceram

322
Anais

após investigações e reflexões sobre o mecanismo do universo imperial, o


maniqueísmo por ele adotado, a manipulação constante do poder e a
aplicação do fator desacreditador na cultura do outro. (BONNCI, 2000, p. 8).

Os temas da literatura pós-colonial imprimem à criação literária as representações


locais e ancestrais, perfomatizadas e reescritas numa perspectiva de valorização do povo
antes colonizado e sem voz e pela ficção que ora se apresenta nas nações descolonizadas,
dizem e recriam as histórias, apresentam muitas narrativas suplantadas e vindas à público
por autores comprometidos com a cultura do seu povo, sendo essa a escrita de Mia Couto.
Assim, importa pontuar:

Com vínculos tão fortes com a História, a literatura funciona como um


espelho dinâmico das convulsões vividas por esses povos. Nela refletem-se
de maneira impressionante os grandes dilemas que mobilizam a atenção de
quem tem a África como objeto de preocupação: relação entre a unidade e
diversidade, entre o nacional e o estrangeiro, entre o passado e o presente,
entre a tradição e a modernidade. (CHAVES, 2005, p. 221).

Convocando o narrador do conto A menina sem palavra, reconhecemos na narrativa a


preocupação do pai para com a sua filha emudecida, era afeiçoado a ela e assim agiu
querendo uma solução para a falta de língua e comunicação oral daquela que não tem palavra
e como numa revelação começa a falar e isso é uma quebra de expectativa já que não se
esperava que viesse ela a se manifestar de forma a dizer o que todos queremos; ser
portadores de uma palavra, ter a palavra e dominá-la no seu círculo social:

Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as
mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:
- Fala comigo, filha!
Os olhos dele deslizaram. À menina beijou a lágrima. Gostos e ou aquela água
salgada e disse:
- Mar...
O pai espantou-se de boca a orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os
ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que ouvisse. Disse
mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e
se debruçaram sobre ela. Mas nenhum som entendível se anunciou. (COUTO,
1997, p. 4).

Qual a relação que há entre o mar e a ficção de Mia Couto? Podemos elencar algumas,
o Índico que banha Moçambique e traz a relação de elos que ligam o continente à ilha.

323
Anais

Há também outras significações entre o Índico e a história que faz referência ao


sagrado e as viagens como contraponto à história do tráfico humano, conhecido como a
escravidão negra nas Américas e Europa, a venda de pessoas num comércio horrendo,
promotor de muito sofrimento e barbárie seja no Continente africano e para além mar na
rota das grandes navegações e colonização:

Mia Couto nasceu em Beira, nas margens do Índico, numa cidade onde todo
homem tem a impressão de não se encontrar em lugar nenhum, na visão do
próprio autor. Lugar de passagem e pouso durante as longas travessias, toda
a costa moçambicana sempre foi um entrecruzar de civilizações. Ilhas,
muitas ilhas, e portos que, primeiro, foram ocupados pelos naturais do lugar,
que nunca foram poucos e sempre carregaram entre si históricas dissenções.
(BEZERRA, 2007, p. 31).

Vale lembrar também do insílio, ou seja do exílio interior, tema trabalhado por Nazir
Can e que neste conto se relaciona a segunda categoria, a textual, representação da
personagem construída pelo silêncio e exílio interno no seu território a mirar o mar:

Em Exil, “retour et écriture” (2011), Bernard Mouralis discute a problemática


do exílio nas literaturas africanas a partir de dois ângulos: o relato
autobiográfico sobre a experiência de um indivíduo que vive em outro país;
a representação literária de um herói que é levado a abandonar seu lugar de
pertença e rumar ao exterior (Mouralis,2011,348-349). Focalizando o
sistema literário moçambicano e situando a reflexão no romance,
poderíamos sugerir a inclusão de duas novas categorias. A primeira liga-se
mais diretamente ao campo institucional: a experiência do exílio interno dos
próprios autores. A segunda, de natureza marcadamente textual: a criação
de heróis romanescos que, por distintos motivos, também conhecem a
realidade do exílio interno. O exílio dentro de Casa, ou o insílio, termo que
designa o estranhamento vivido no próprio país, convida-nos a repensar as
relações que se estabelecem entre produtores e representações. (CAN, 2015,
p. 31, grifos do autor).

O mar surge para a menina sem palavra como o lugar das memórias, das dores,
saudades, distância, ligações com outros mundos e metaforicamente é o mar lugar de
passagens, de lavar as narrativas e tornar a dizê-las pelos mitos e representações próprias
deste lugar:

A incorporação do Índico, como eixo temático, extravasa a ilha em si,


anunciando um cosmopolitismo e uma modernidade dos quais esses poetas
foram os portadores primeiros. No entanto, insistimos, trata-se de um
extravasar para dentro do próprio território e não tanto para o outro lado

324
Anais

do oceano. [...] Daí que a realidade de outros espaços banhados pelo Oceano
Índico acabe por ser incorporada apenas parcialmente, através da
representação de personagens que, sendo nacionais e simultaneamente
diaspóricas, fazem ecoar o tal outro lado. Importa, neste sentido, salientar o
viés “fantasmático” de algumas designações ao outro índico, visíveis em
expressões que são já lugares comuns nas respectivas sociedades. (CAN,
2013, p.97).

Para a personagem que balbucia a palavra mar e depois emudece fechando-se em seu
mundo, mesmo sendo ainda uma criança, há uma saudade doída por um tempo que ainda
não aconteceu, há um olhar perdido para além do mar a perder-se nas memórias coletivas
da colonização, ferida que evocada via imaginação retrai a fala de uma menina ou de uma
nação ainda vivendo a infância da liberdade?

A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia,


joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O
mundo que ela pretendia infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando
pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso
regressarem, o mar subia em ameaça.
- Venha, minha filha!
Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que
nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no
olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se
admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?
(COUTO,1997, p. 4).

Há um cuidado do pai sobre o silenciamento da filha, ele deseja que a menina fale, que
diga algo e se manifeste, sabe que o mar tem uma ligação cultural e até espiritual com aquela
criança e espera que ao mirar o oceano possa através desse instante ser uma pessoa que se
comunica:

À medida que o olhar caminha pela geografia e pela história, atravessando


fronteiras e épocas, são muitas as travessias que demarcam as viagens, por
terra, mar e ar. Em praticamente todos os campos do conhecimento, há
sempre aqueles que realizam sua reflexão passeando o olhar por outros
lugares e outras épocas, ou mergulhando-o no mesmo lugar, rebuscando
épocas. A inquietação e a interrogação caminham juntas, sempre correndo o
risco de encontrar o óbvio ou o insólito, o novo, o fascinante, o outro ou o eu.
(IANNI, 2000, p. 25).

A relação entre o pai e os filhos na ficção de Mia Couto e se repete a cada produção de
maneira mais criativa e sensível, uma troca entre a tradição e a modernidade, relação sempre

325
Anais

necessária para que possa as humanidades se revestirem de identidades novas sem perder
a riqueza da ancestralidade.
Essa relação é verificada também em Antes de nascer o mundo(2010),quando
Mwanito, um menino que encontra em seu pai Silvestre Vitalício a sua razão de suportar as
dores da guerra civil e o território queimado, destruído a ponto do seu pai criar via
imaginário a Jesusalém, lugar onde Jesus Cristo iria se descrucificar, lugar onde não haveria
mais dor nem sofrimento, nessa relação entre pai e filho, pai e filha como no caso da menina
sem palavra, Mia Couto em sua ficção, mostra os danos da colonização, mas também aponta
para uma esperança mesmo que tênue, que que frágil a pensar caminhos, travessias ainda a
serem feitas por essa humanidade:

O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou,


cantou, pulou. Tudo para distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu as
mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda
ganhara raiz afloração de rocha?
Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe
fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar
no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser
salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela.
O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do
horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o
astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um baloa.
(COUTO, 1997, p. 5).

A criança ainda se volta e estende a mão ao pai, ao avô – figuras da tradição para que
não se percam na pós-modernidade que emerge nos tempos atuais muito mais que uma
marco temporal, mas como um discurso geopolítico, como mais uma invenção das
sociedades sejam elas descolonizadas ou aquelas que ainda colonizam as mentes, respondem
esses discursos por novas ordens que muitas vezes portam também maneiras de calar
mulheres, pobres, refugiados, aqueles que à margem da vida e sociedade pela violência
perdem a capacidade de falar.

Considerações finais

Pela ficção de Mia Couto vamos adentrando um campo de representações que


funcionam como um grande inventário de Moçambique e que reverbera uma riqueza
incalculável a partir da reinvenção linguística e literária, materializa pelos narradores e

326
Anais

personagens a história de seu país à título de passado e presente, a dizer das várias maneiras
de ser moçambicano e moçambicana.
O conto A menina sem palavra, evoca as relações entre a colonização, o mar e os
silêncios como falas perdidas nas fronteiras do pensamento e da história de Moçambique.
Os temas que gravitam por essa análise se relacionam ao silêncio, silenciamento da
mulher e subalternidade como resquícios da colonialidade que ainda se mostra nas
instituições civis, nas maneiras que os países de eixo africano e para além do continente, se
relacionam em ordens políticas as mais diversas a provocar a diáspora, os exílio interno e
insílio assim como a desorganização familiar e cultural produzindo pessoas sem fala, sem
lugar de pertencimento, refugiados das guerras e apagamento das culturas.
Nesse direcionamento a escrita de Mia Couto acena e permuta saberes e reflexões
sobre as representações de Moçambique como um mapa a ser reconstruído pelas histórias
orais e narradores a apresentarem as vozes por anos silenciadas, que exigem audibilidade e
encontram na construção literária do autor, espaço de reclamação e existência fora da
literatura e maquinaria colonial.

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Departamento de Letras e Artes – Campina Grande – PB,2013. Disponível em:
https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/4362

328
DESENVOLVIMENTO DA
ORALIDADE E DA CRITICIDADE
NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: O GÊNERO
PODCAST NA SALA DE AULA
Giovanna Silva da SILVA (UEPA)1
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)2

RESUMO

O presente estudo tem o intuito propor, a partir do gênero digital podcast, uma metodologia
para que o professor possa tornar a sala de aula um ambiente propício ao desenvolvimento
da oralidade e da criticidade do aluno. Para a construção desta pesquisa, foram lidos os
autores Zilberman e Lajolo (1993), Rojo e Barbosa (2015), Costa Val (2006) e Schneuwly e
Dolz (2010). O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum
– BNCC (2018) e pela obra de literatura infantojuvenil Histórias de quem conta histórias
(2018), uma coletânea de contos – organizada por Lenice Gomes e Fabiano Moraes –
registrados por diferentes contadores, os quais são originados do Brasil, de Portugal e do
México. Assim, mediante uma pesquisa bibliográfica com fins a uma pesquisa-ação, busca-se

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e Suas Respectivas


Literaturas (PPGELL) da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Especialista em Ensino de Língua
e Literatura pela Escola Superior da Amazônia. Graduada em Letras - Língua Portuguesa - pela UEPA.
E-mail: giovanna.silva@grupoideal.com.br
2 Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de
São Paulo. Docente do do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e Suas
Respectivas Literaturas (PPGELL). Professor da área de Literatura do Departamento de Língua e
Literatura da Universidade do Estado do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagens Artísticas
e Estilos Poéticos (LAESP). E-mail: ru-98@hotmail.com

329
Anais

a construção de um projeto interventivo. Isso porque, durante as aulas presenciais após o


período de ensino remoto, a dificuldade dos discentes em explicar seus respectivos trabalhos
acadêmicos e tecer análises sobre seus livros paradidáticos foi notável. Diante disso,
defende-se que o gênero digital podcast tem potencial pedagógico para auxiliar o estudante
a partilhar informações, experiências e impressões, visto que, para a construção de tal,
considera-se planejamento, produção e adaptação à situação comunicativa. O projeto será
aplicado em uma turma de 7º ano do Ensino Fundamental de uma escola privada no
município de Ananindeua, no Pará. Com isso, espera-se que os alunos aprendam as
características do gênero podcast, reflitam sobre diferentes contextos em que se produzem
textos orais e compreendam as diferenças formais, estilísticas e linguísticas que esses
determinam.

Palavras-chave: Podcast. Oralidade. Histórias de quem conta histórias. Criticidade. Ensino.

ABSTRACT

The present study aims to propose, from the digital podcast genre, a methodology so that the
teacher can make the classroom an environment conducive to the development of orality
and criticality of the student. For the construction of this research, authors Zilberman and
Lajolo (1993), Rojo and Barbosa (2015), Costa Val (2006) and Schneuwly and Dolz (2010)
were read. The theoretical framework is also composed of the National Curricular Common
Base - BNCC (2018) and the work of children's literature Histórias de quem conta Histórias
(2018), a collection of short stories - organized by Lenice Gomes and Fabiano Moraes -
recorded by different accountants, the which originate from Brazil, Portugal and Mexico.
Thus, through a bibliographical research with the purpose of an action research, the
construction of an interventional project is sought. This is because, during the face-to-face
classes after the remote teaching period, the students' difficulty in explaining their
respective academic works and analyzing their paradidactic books was remarkable. In view
of this, it is argued that the digital podcast genre has pedagogical potential to help the student
share information, experiences and impressions, since, for the construction of such,
planning, production and adaptation to the communicative situation are considered. The
project will be applied in a class of 7th grade of Elementary School of a private school in the
city of Ananindeua, in Pará. With this, it is expected that students learn the characteristics of
the podcast genre, reflect on different contexts in which oral texts are produced and
understand the formal, stylistic and linguistic differences that they determine.

Keywords: Podcast. Orality. Histórias de quem conta histórias. Criticality. Teaching.

Introdução

A presente pesquisa propõe uma metodologia para o desenvolvimento da oralidade


– enquanto prática da linguagem – dos alunos, a partir da obra de literatura infantojuvenil
Histórias de quem conta histórias (2018), uma coletânea de contos – organizada por Lenice
Gomes e Fabiano Moraes – registrados por diferentes contadores, os quais são originados do
Brasil, de Portugal e do México. Assim, os alunos poderão conhecer diferentes maneiras de

330
Anais

ser, pensar, agir e sentir, o que será fulcral para que esses valorizem e respeitem a
diversidade em suas vivências cotidianas.
De início, destaca-se que a escolha pela temática foi feita em consonância com a Base
Nacional Curricular Comum – BNCC (2018), a qual defende que cabe ao professor selecionar
procedimentos e estratégias de leitura para promover um processo de ensino e
aprendizagem que instigue o educando a ler, de forma autônoma, lendas e contos, e
compreendê-los para, posteriormente, expressar suas respectivas avaliações. Esse será o
ponto de partida da pesquisa.
É indispensável destacar que durante as aulas presenciais posteriores ao período de
ensino remoto motivado pela pandemia da covid-19, notou-se que os discentes
apresentaram dificuldades para explicar seus respectivos trabalhos acadêmicos e tecer
análises sobre seus livros paradidáticos. Diante disso, percebeu-se a necessidade de
construir uma estratégia pedagógica a fim de auxiliar o desenvolvimento da oralidade dos
educandos.
Ademais, é importante, também, que a sala de aula seja um ambiente no qual gêneros
que circulam socialmente possam ser analisados. Tal demanda é ratificada pelo fato de que
os gêneros digitais3, como o podcast, estão cada vez mais presentes nos livros didáticos,
sobretudo naqueles que são adotados pela rede privada de ensino.
Considerando essa crescente, o gênero midiático podcast será explorado nesta
pesquisa, os alunos frequentarão aulas tuteladas por um docente que utilizará um método
de ensino apoiado na tecnologia podcast, com o fito de instigá-los a perceberem a
importância da disciplina Língua Portuguesa para a comunicação em suas diferentes
situações. Desse modo, propõe-se a exploração do potencial pedagógico dos podcasts no
ambiente escolar.
Vale ressaltar, a partir de tal discussão, que a sala de aula é, muitas vezes, vista como
local de aprendizagem de via única, como se o aluno fosse apenas receptor do conhecimento,
das informações e dos direcionamentos, já que, recorrentemente, o educando recebe tudo
isso de forma não crítica, ou seja, sem ser um sujeito questionador, participante, de fato, da

3 A área da educação passou por intensa transformação desde 2020. Considera-se aqui que o uso da
realidade virtual serve como suplemento para a sala de aula, visto que a hiper conectividade leva a
novas formas de aprendizado, explorando o potencial humano.

331
Anais

aula. Diante desse contexto, a promoção de atividades a partir de um gênero digital pode ser
a ponte entre docente e discente, para promover a criticidade neste.
Nesse sentido, levanta-se a questão norteadora: Como o gênero digital podcast pode
contribuir para o desenvolvimento da oralidade e tornar os alunos do Ensino Fundamental
(Anos Finais) mais críticos diante daquilo que leem?
Para a construção desta pesquisa, foram lidos os autores: Zilberman e Lajolo (1993),
para versar sobre a literatura infantojuvenil; Rojo e Barbosa (2015), com o intuito de discutir
letramentos múltiplos; Costa Val (2006), para fundamentar a abordagem acerca da escrita;
e Schneuwly e Dolz (2010), como auxílio no desenvolvimento uma sequência didática.
O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum –
BNCC (2018), a qual configura um documento de caráter normativo criado e desenvolvido
com o intuito de constituir um conjunto progressivo de aprendizagens essenciais para os
alunos da Educação Básica.

A Oralidade segundo a Base Nacional Curricular Comum

De acordo com a BNCC, cabe ao componente Língua Portuguesa proporcionar aos


alunos experiências capazes de contribuir para a ampliação dos letramentos, de modo que o
estudante possa, com criticidade, participar significativamente nas diversas práticas sociais
permeadas pela oralidade. Em outras palavras, o supracitado documento destaca que as
aulas da disciplina Língua Portuguesa não devem ser limitadas à escrita e à leitura, mas
precisam, também, apresentar aos discentes gêneros da modalidade oral da língua.
É perceptível a ênfase que a BNCC dá à oralidade, desde a conceituação à descrição da
habilidade a ser desenvolvida. No que se refere ao conceito de oralidade, a BNCC define que
essa é a prática de linguagem que ocorre em situação oral com ou sem contato face a face.
Nesse contexto, o professor deve explorar nas aulas gêneros como webconferência,
mensagem gravada, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista, declamação de
poemas, peça teatral, apresentação de cantigas e canções, vlog de game, contação de histórias
e podcast.
Para a Base, o trabalho com as práticas da oralidade deve considerar as condições de
produção, a compreensão e a produção de textos orais, além de explorar os seus efeitos de
sentidos e a relação entre fala e escrita. Esta pesquisa discutirá, sobretudo, a produção de
textos orais, pois conforme a BNCC, o aluno precisa:

332
Anais

Produzir textos pertencentes a gêneros orais diversos, considerando-se


aspectos relativos ao planejamento, à produção, ao redesign, à avaliação das
práticas realizadas em situações de interação social específicas. [...] Oralizar
o texto escrito, considerando-se as situações sociais em que tal tipo de
atividade acontece, seus elementos paralinguísticos e cinésicos, dentre
outros. (BRASIL, 2018, p. 59).

Nesse contexto, o documento normativo elucida que nos Anos Finais do Ensino
Fundamental, o adolescente participa com maior criticidade de situações comunicativas
diversificadas. Diante disso, é necessário fortalecer a formação para a autonomia nessa
etapa, visto que é quando os jovens assumem maior protagonismo em práticas de linguagem
realizadas dentro e fora da escola.
Dentre as competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino
Fundamental, vale ressaltar aqui a terceira, que consiste em:

Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam


em diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia,
fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações,
experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo. (BRASIL, 2018,
p. 87)

É nessa competência que se baseia a estratégia pedagógica apresentada neste artigo.


Busca-se, pois, propor ao aluno uma produção de texto oral, por intermédio do gênero
midiático podcast, na qual ele possa compartilhar, com riqueza de detalhes, sua experiência
ao ter contato com o livro paradidático Histórias de quem conta histórias (2018) e expressar
suas impressões e opiniões acerca do texto lido.

O que é, afinal, um podcast?

Podcast é uma programação de áudio, com diferentes tipos de registro (monólogo,


diálogo, entrevista, palestra, exposição, aula), sobre variados assuntos, disponibilizada na
Internet. Logo, trata-se essencialmente da reprodução de oralidade por um meio tecnológico.

Podcast: a história

A partir da criação do sistema RSS, tornou-se possível aos internautas a recepção


automática de conteúdos informativos atualizados. Admirado com a possibilidade da

333
Anais

distribuição on-line de áudios, Adam Curry discutiu com Dave Winer a inclusão de arquivos
MP3 no RSS. Sendo assim, Adam se dispôs a aprender sobre programação Apple Script para
desenvolver um aplicativo com o fito de distribuir, por demanda, áudios digitais. Entretanto,
essa ferramenta era consideravelmente precária.
No ano de 2004, Adam Curry produziu o primeiro podcast, o qual se chamava Daily
Source Code. Tal produção foi feita para que os softwares de podcasts pudessem ser
aprimorados. A partir disso, determinados profissionais da tecnologia passaram a
demonstrar interesse pelo projeto de Curry e, dessa forma, a colaboração conjunta
proporcionou o desenvolvimento técnico daquilo que outrora era a ideia de Adam. Com esse
aprimoramento, foi possível alcançar maiores graus de compatibilidade, o que foi fulcral
para o mecanismo ser utilizado, até mesmo, pelo iTunes, da multinacional norte-americana
Apple, o qual passou a agregar, em 2005, podcasts na sua plataforma.
A notável popularidade da Apple influenciou o nome da nova tecnologia, pois o termo
podcast advém da junção de iPod – o tocador MP3 da supracitada marca – e broadcast. Outras
grandes empresas, posteriormente, perceberam o forte potencial de distribuição de
conteúdo sob demanda dos podcasts. E diante de tal popularidade, em 2006, o dicionário
New Oxford American atribuiu ao termo podcast o título de “palavra do ano”.
Hodiernamente, os conteúdos em áudio disponibilizados pelas plataformas de
streaming auxiliam as pessoas a aproveitarem o tempo com informações acerca de distintos
assuntos. Isso porque a facilidade para ouvir um episódio torna o conteúdo extremamente
acessível, podendo ser escutado, por exemplo, no carro, no ônibus ou na academia. Constata-
se, pois, que a referida tecnologia conquistou, pelas características de sua funcionalidade,
espaço no cotidiano social.

Literatura infantojuvenil no contexto do letramento digital

A cada momento histórico, o perfil do aluno-leitor transforma-se. Sabendo disso, vale


ressaltar a importância da adequação do professor ao contexto tecnológico contemporâneo.
Isso, porém, não significa, em hipótese alguma, que o livro físico deva ser removido do
processo de ensino-aprendizagem. Há, na contemporaneidade, tecnologias que podem se
conjugadas ao ensino de literatura nas escolas.

334
Anais

Este estudo propõe uma metodologia que conjuga a tradicional leitura silenciosa e
solitária – defendida por Zilberman e Lajolo (1993, p.67) – com a nova tecnologia,
configurando, desse modo, um letramento digital associado à literatura infantojuvenil.
Considerando que a finalidade desta pesquisa é a criação de uma sequência didática
pela qual o professor poderá promover o desenvolvimento da oralidade do aluno e de sua
criticidade diante daquilo que lê, será construída uma pesquisa bibliográfica com
características de pesquisa-ação que, segundo Thiollent (2008, p. 11), trata-se “[...] da
pesquisa voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou a ação
orientada em função da resolução de problemas efetivamente detectados nas coletividades
consideradas [...] com observação e ação em meios sociais delimitados”.
O projeto será aplicado em uma turma de 39 discentes do 7º ano do Ensino
Fundamental (Anos Finais) de uma escola privada Ananindeua, município da região
metropolitana de Belém, os quais produzirão, de forma individual, resenhas sobre as obras
lidas e, posteriormente, podcasts em 13 grupos formados por três pessoas.
A execução pedagógica desta pesquisa será composta pelas seguintes etapas:

a. Apresentação do livro paradidático aos alunos;


b. Início da leitura individual da obra Histórias de quem conta histórias (2018) pelos
discentes;
c. Leituras coletivas e discussões em sala sobre os contos e lendas lidos;
d. Produção de resenhas;
e. Apresentação teórica sobre o gênero podcast aos educandos;
f. Escuta de episódios de podcasts em sala, os quais serão cuidadosamente selecionados
pela professora, para exemplificar;
g. Organização para as produções dos alunos, com divisões de temáticas e de grupos;
h. Produções de podcasts sobre os contos e lendas;
i. Socialização das produções em sala de aula por intermédio da escuta.

Todas essas etapas explorarão a obra Histórias de quem conta histórias (2018), a qual
é oriunda da oralidade de contadores brasileiros, portugueses e americanos. Nessa
coletânea, são apresentados textos escritos por autores que se empenham em, com
qualidade, transmitir a palavra falada, construindo rememorações de narrativas ancestrais.
Assim, o livro apresenta em suas páginas registros de alto valor cultural.

335
Anais

Nesse contexto, é válido ressaltar que o contato com lendas, contos de assombro,
histórias de fadas e causos de esperteza propicia a familiaridade com livros e com diferentes
gêneros literários. Sob esse viés, as experiências com a literatura infantojuvenil, propostas
por um professor aos alunos, têm potencial para desenvolver o gosto pela leitura, estimular
a imaginação e ampliar o conhecimento de mundo.
Portanto, para construir um produto pedagógico com o fito de desenvolver a
oralidade dos educandos, foi selecionado um livro com a transcrição de narrativas orais, pois
acredita-se que a obra despertará nos alunos o encanto pelas palavras – as quais são
organizadas para criar histórias e, posteriormente, compartilhá-las –, estimulando-os a
compreender as narrativas, interpretá-las e dividir com outras pessoas, por intermédio de
episódios de podcast, suas respectivas considerações acerca dos textos lidos.

Considerações finais

A partir da aplicação deste projeto, espera-se que os alunos aprendam as


características do gênero podcast e, mediante a prática, suas condições de produção. Isso
porque os referidos vivem a era digital e precisam conhecer os gêneros midiáticos que
marcam tal período, sabendo sobre a linguagem utilizada, os estilos de produção, os efeitos
sonoros e as plataformas de veiculação. É, nesse sentido, fundamental que os discentes
entendam que vivem em um contexto marcado por tecnologia, acessibilidade e praticidade.
Além disso, são consequências esperadas a valorização e o respeito às diferenças.
Acredita-se que mediante o contato com histórias oriundas do Brasil, de Portugal e do
México, os educandos compreenderão que cada cultura tem suas peculiaridades e não serão
perpetuadores de discursos etnocêntricos.
Com a produção dos podcasts, deseja-se que – pela prática de uma linguagem
contemporânea – os alunos desenvolvam oralidade proficiente e fluida. Nesse sentido, a
oralização de opiniões sobre os textos lidos contribuirá para que os sujeitos sejam mais
críticos diante das leituras posteriores, o que favorecerá que esses façam ponderações e
avaliações acerca das obras literárias com as quais tiverem contato.
Também é esperado que os alunos produzam podcasts, considerando os enunciadores
envolvidos, os objetivos, o gênero, o suporte, a circulação e a variedade linguística
apropriada ao contexto em questão, à construção da textualidade relacionada às
propriedades textuais e do gênero). Para isso, será fulcral que esses utilizem estratégias de

336
Anais

planejamento, elaboração, revisão e edição; desse modo, será possível corrigir e aprimorar
as produções realizadas, fazendo cortes, acréscimos, reformulações, ajustes e alterações de
efeitos.
Por fim, é importante que os discentes desenvolvam, também, a competência de
serem ouvintes ativos. Isso será possível a partir do trabalho do professor com a leitura
coletiva seguida de comentários pertinentes, da escuta de podcasts exemplificativos e da
escuta dos episódios produzidos pelos colegas da turma. Essa interação ativa contribuirá,
inclusive, para que esses possam ouvir mais atentamente os professores das outras
disciplinas – melhorando, consequentemente, o desempenho em outras áreas do
conhecimento.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria


de Educação Básica, 2018.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gênero de texto como um (mega)instrumento para


o ensino e a aprendizagem da linguagem humana. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7,
n. 2, p. 2-9, maio/ago. 2010.

GOMES, Lenice; Moraes, Fabiano. Histórias de quem conta histórias. 1.ed. São Paulo.
Cortez, 2018.

ROJO, Roxane; BARBOSA, Jacqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros


discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo. Cortez, 2008.

ZILBERMAN, Regina & LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças. Para conhecer a literatura
infantil brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1993.

337
REFLEXÕES SOBRE O CORPO
FEMININO NA LITERATURA
PORTUGUESA NO ROMANCE
OS TRÊS CASAMENTOS DE
CAMILLA S. DE ROSA
LOBATO DE FARIA
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)1
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)2

RESUMO

O presente estudo traz uma análise do romance Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), da
escritora portuguesa Rosa Lobato de Faria, com o objetivo de estudar a personagem
principal do respectivo romance, observando, especificamente, sua condição feminina, que
foi absolutamente sufocada pela sociedade patriarcal da época e cuja as vivências revelam-
se na construção do seu corpo. Por se tratar de uma literatura de autoria feminina, não
apenas enfatiza a questão da corporalidade da personagem em destaque, mas as suas lutas
em romper com tradicionalismo. Assim, destaca-se a escrita de Rosa Lobato de Faria que,

1 Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GIELLus/UEPB. Mestre em


Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB). CPF: 105.614.294-48. E-mail: michelly-
54@hotmail.com.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB-
CAPES).
CPF: 110.973.364-09. E-mail: dayanamonteirocavalcante@bol.com.br.

338
Anais

através da literatura, traz reflexões sobre a construção da identidade feminina e a luta da


mulher em conquistar sua autonomia. Para essas indagações utilizou-se os aportes teóricos
de: Cecil Jeanine Albert Zinani (2003), Constância Lima Duarte (2019), Elizabeth Grosz
(2000), Elódia Xavier (2007), Rita Terezinha Schmidt (2019), entre outros críticos e teóricos
que ajudaram a complementar e enriquecer esse trabalho com seus posicionamentos sobre
o tema abordado.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa; Representação Feminina; Corporalidade; Questões


de Gênero.
ABSTRACT

The present study presents an analysis of the novel Os Três Casamentos de Camilla S. (1997),
by the Portuguese writer Rosa Lobato de Faria, with the objective of studying the main
character of the respective novel, observing, specifically, her feminine condition, which was
absolutely suffocated by the patriarchal society of the time and whose experiences are
revealed in the construction of her body. As it is a literature by women, it not only
emphasizes the issue of the highlighted character's corporeality, but also her struggles to
break with traditionalism. Thus, the writing of Rosa Lobato de Faria stands out, which,
through literature, brings reflections on the construction of female identity and the struggle
of women to conquer their autonomy. For these inquiries, the theoretical contributions of:
Cecil Jeanine Albert Zinani (2003), Constância Lima Duarte (2019), Elizabeth Grosz (2000),
Elódia Xavier (2007), Rita Terezinha Schmidt (2019), among other critics and theorists were
used. who helped to complement and enrich this work with their positions on the topic
addressed.

Keywords: Portuguese Literature; Female Representation; Corporeality; Gender Issues.

Apresentação

O romance Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), da escritora portuguesa Rosa


Lobato de Faria, relata as vivências de Camilla S., protagonista que apresenta seu diário por
meio de quarenta e seis episódios, marcados com data, mês e ano, relatando os
acontecimentos de sua vida dos doze até os seus noventa e cinco anos. Esses acontecimentos,
narrados em seu diário pessoal, constituem a narrativa do romance em análise.
Sobre a escritora, Rosa Lobato de Faria nasceu no ano de 1932, em Lisboa, vindo a
falecer em 2010, aos setenta e sete anos. Se destacou em várias áreas, atuando como
romancista, poetiza, compositora e atriz, deixando sua marca na cultura portuguesa e
tornando-se uma dama de referência na história de Portugal. Seu legado segue vivo, com
suas obras literárias que servem como influência para várias escritoras e estudiosos da
atualidade, sobretudo como exemplo da voz feminina na literatura. Sobre o texto de autoria
feminina, Rita Terezinha Schmidt pontua que:

339
Anais

Os textos de autoria de mulheres levantam interrogações acerca de


premissas críticas e formações canônicas, bem como tensionam as
representações dominantes calcadas no discurso assimilacionista de um
sujeito nacional não marcado pela diferença. A hegemonia desse sujeito
sempre esteve calcada em formas de exclusão de outras vozes, outras
representações. (SCHMIDT, 2019, p. 66).

A sociedade foi demarcada ao longo de sua história pela perpetuação de padrões


patriarcais, os quais silenciava e excluía as mulheres das práticas intelectuais e sociais. Sobre
o assunto, Duarte (2019, p. 25) argumenta que “o feminismo foi um movimento legítimo que
atravessou várias décadas, e que transformou as relações entre homens e mulheres”. Diante
dos avanços dos movimentos feministas, as mulheres conquistaram seu espaço em várias
áreas, sendo uma delas a posição de escritora, tecendo, através da sua escrita, inúmeras
críticas ao sistema dominante. É possível afirmar, portanto, que “o feminismo aparece como
um movimento libertário” (PINTO, 2010, p. 16).
Essa visão de liberdade feminina é possível de ser notada por meio da autonomia
presente escrita de Rosa Lobato de Faria, ao apresentar em seus escritos, relatos de forma
clara e simples que trazem bastantes reflexões sobre a condição feminina. Conforme traz
Zinani (2013, p. 13) “na medida em que a mulher se apropria do discurso, constituindo-se
como autora promove a desconstrução do discurso patriarcal, por meio do questionamento
dos valores tradicionais”. Dentro dessa perspectiva, o presente artigo realiza uma breve
análise da escrita romanesca de Rosa Lobato de Faria, que apresenta em sua obra Os Três
Casamentos de Camilla S. (1997), questionamentos referentes à construção da identidade da
mulher que refletem na relação de dominação do seu corpo.
Neste ponto, busca-se, por meio do estudo, realizar uma análise da obra,
considerando que se trata de uma escrita de autoria feminina, relacionando-a com os estudos
acerca do corpo e suas representações. A obra, por ter sido escrita por uma
mulher/escritora, traz vários questionamentos sobre a condição da mulher na época em que
o romance foi escrito. Corroborando com essa visão, Xavier (2007) pontua ser relevante
relacionar as obras de autoria feminina com os estudos acerca das representações do corpo,
já que:

Dada à importância que o corpo tem hoje na teoria feminista, parece-nos


relevante um estudo da narrativa de autoria feminina pelo viés da questão

340
Anais

corporal, uma vez que o corpo aí representado é local de inscrições “sociais,


políticas, culturais e geográficas. (XAVIER, 2007, p. 23).

Em narrativas de autoria feminina, são recorrentes a discussão de questões acerca da


tipologia do corpo, utilizando-se de personagens femininas e suas vivências para aborda-las.
Desta forma, partindo dos estudos de Xavier (2007) que tratam das questões de gênero
ligadas ao corpo feminino e apresentam discussões em torno da tipologia do corpo,
apresenta-se neste estudo uma breve análise acerca da construção do corpo de Camilla S.
com base nas vivências da protagonista, sob o viés das interferências que as condições
sociais, culturais e psicológicas geram sobre o mesmo.
Partindo desses pressupostos, é possível conceituar a protagonista em duas
categorias que envolvem a tipologia do corpo: no início da sua vida, aos doze anos, e na
primeira fase adulta, a protagonista estava condicionada as características de um corpo
disciplinado, entretanto, ela rompe com estereótipos e começa a ter uma vida sem regras e
padrões a serem seguidos. Já aos noventa e cinco anos, pode-se perceber uma evolução e
mudança em sua identidade, em que a protagonista adquire características de um corpo
liberado.
Neste interim, o próximo tópico traz uma breve análise da representação da
personagem feminina, a partir de uma perspectiva crítica literária feminista e dos estudos
sobre a tipologia do corpo, ressaltando aspectos significativos para a trajetória de luta e
conquista da mulher dentro do romance, por meio das experiências vividas da protagonista,
sobretudo no dilema entre seguir os padrões conservadores ou lutar pela sua liberdade. As
insatisfações da protagonista com a condição social a qual submetida acaba por refletir sobre
as características do seu corpo e na construção da sua identidade.

Breves apontamentos: relação do corpo feminino x construção da identidade feminina

De acordo com Grosz (2000, p. 47) “o feminismo adotou acriticamente muitas das
suposições filosóficas em relação ao papel do corpo na vida social, política, cultural, psíquica
e sexual.”. A partir desse viés, é possível analisar a construção da protagonista no romance
por meio das representações que marcaram sua vida e a transição entre um corpo
disciplinado, nos anos iniciais da sua vida, passando para um corpo liberado ao longo de sua
vivência.

341
Anais

A construção da identidade da personagem protagonista inicia-se aos três meses de


idade, já que a orfandade de Camilla trouxe grandes implicações no decorrer de sua vida.
Após a morte de seus pais, por tuberculose, ela foi adotada por seus tios que, diante da
necessidade de amamenta-la, encontraram uma “ama de leite” para cuidar da criança, visto
que: “... davam-me leite de vaca e eu vomitava...” (FARIA, 1997, p. 34). Este papel é executado
por Paca, uma mulher jovem (aparentava ter 18 anos), morena, mãe solteira e que a pouco
perderá seu filho, que é contratada pela família para cuidar (e amamentar) Camila, com
quem conviveu até envelhecer e morrer.
Nos anos iniciais da vida de Camilla, Paca profetizava que todos os esposos da jovem
teriam o sobrenome iniciados por “S” e assim acontece ao longo da história. Por esse motivo
o romance possui o título “Os três casamentos de Camilla S”. Já na juventude de Camilla, seus
tipos já se encontram idosos e, por receio de eventuais acontecimentos devido à idade,
temem deixá-la desamparada: “A nossa maior preocupação é morrer e deixá-la sem amparo”
(FARIA, 1997, p. 42). Diante dessa situação, resolvem casa-la com o médico conhecido da
família: “É verdadeiramente uma felicidade para nós que um homem tão ilustre, professor
da Escola Médica e médico do rei, queira contrair matrimônio com a nossa sobrinha Camilla.
Espero que a menina esteja à altura da situação” (FARIA, 1997, p. 57).
É possível observar a partir dos primeiros relatos da vida da protagonista que ela
apresenta, já na sua infância, marcas de um corpo disciplinado. Aos doze anos, Camila
encontra-se em uma situação marginalizada: era órfã e estava vivendo com os tios, estando
sobre o total controle deles, bem como sob influência dos conselhos de sua ama de leite: “–
A Paca disse que eu devo obedecer aos meus tios, fazer o que me mandam, casar de boa
vontade, mas eu só quero brincar, tocar piano e aprender o meu catecismo” (FARIA, 1997, p.
63).
Ao apresentar esses relatos em seu diário, pode-se perceber a construção identitária
da personagem, ao ser despojada da sua liberdade, percorrendo caminhos preestabelecidos
por uma cultura patriarcal. De acordo com Xavier (2007, p. 56), é possível identificar “no seu
corpo as marcas de um sistema injusto e repressor”, isto é, a protagonista estava sendo
condicionada as características de um corpo disciplinado.
Aos doze anos, Camilla casa-se com o seu primeiro marido, o médico Emídio Seabra,
antes mesmo que se tornasse mulher de acordo com a biologia do seu corpo, isto é, sem que
tivesse recebido os sinais da primeira menstruação e sem entender muito ou quase nada do
que viria ser o casamento. A personagem também se mostrava apegada aos costumes

342
Anais

relativos à infância, conforme percebe-se com a reação dela ao saber do matrimônio: “Junto
as poucas forças que me restam e pergunto, numa voz quase inaudível: - Posso levar minhas
bonecas?” (FARIA, 1997, p. 67).
Diante da citação anterior, revelasse a face de uma menina muito jovem que está
prestes a abandonar a fase infantil para adentrar em um casamento com um homem bem
mais velho, com as bonecas sendo um símbolo do momento em que ela deixa a vida e
costumes regulares de sua idade, para assumir o papel de mulher casada e suas respectivas
responsabilidade impostas pela sociedade da época, sendo obrigada por seus familiares,
conforme revela-se no seguinte trecho: “Continuo a não querer casar com aquele velho de
barbas [...]” (FARIA, 1997, p.68). Novamente, Camilla apresenta características de um corpo
disciplinado, que, segundo o pensamento de Xavier (2007, p. 59) é possível identificar uma
“relação entre carência e a subordinação”, conforme será visto mais detalhadamente adiante.
Após algum tempo do casamento, a jovem torna-se uma “mulher formada” como eram
consideradas as mulheres ao iniciar o período menstrual: “A água do meu banho está cor-
de-rosa, alguém esmagou o meu bago de romã, a Paca tira-me da água, vai buscar um pano
de algodão, ensina-me a usá-lo. Finalmente sou púbere, [...]” (FARIA, 1997, p. 80). Assim,
poderia iniciar sua vida sexual com o médico Emídio Sobral. Diante do acontecimento e com
a possibilidade de consumar seu casamento, Emídio convida Camilla para um baile, afim de
apresentar a sua esposa: “Quero que se apresente deslumbrante, porque se trata da sua
entrada oficial na sociedade”. (FARIA, 1997, p. 84).
No baile, Camilla apresenta-se deslumbrante para a sociedade e conhece André
Sobral, por quem se apaixona rapidamente, mesmo estando casada e sem ter ainda chegado
às núpcias do casamento. Na mesma noite, Emídio Seabra percebe que Camila já não é mais
apenas uma menina e, ao chegar do baile, faz inferências sobre a relação de pertencimento
que a jovem lhe tem e resolve ter a primeira relação sexual com a mesma, após os
agradecimentos da jovem:

Agradeço-lhe ter-me levado ao baile, desejo-lhe boa noite, mas ele segura
com força as minhas mãos, faz-me sentar no cadeirão de veludo e olhando-
me profundamente nos olhos pergunta com doçura, Camilla, sabe o que
significa ser casada? Bem, tio Emídio, eu... A partir de hoje não volta a
chamar-me tio Emídio, apenas Emídio, está bem? Sim, se o tio quer assim...
Diga a Paca que a dispa, que a lave, que a perfume, que lhe vista o seu mais
bonito négligé e vá ter ao meu quarto daqui a uma hora porque quero
ensinar-lhe algumas coisas muitíssimo importantes. Mas... hoje? Sim, hoje,
daqui a uma hora. (FARIA, 1997, p. 92).

343
Anais

Embora esteja a pensar em André Sobral, aquele por quem se apaixonou após os
momentos vividos no baile, a partir daquele momento ela passa a ser percebida como mulher
que deve desempenhar suas atividades de esposa. Este impasse simboliza o momento que
se inicia a ruptura de Camilla para com os costumes estereotipados de sua época. Depois da
noite de núpcias com Emídio, ela lembra do convite para o encontro que André Sobral lhe
fizera:

Paca, o André está à minha espera, às onze, no parque. Que parque? Que
André? Estás louca Nena? Agora és uma senhora casada, acabou o devaneio.
Agora teu marido espera de ti compostura, prudência, dignidade, beleza e
muito amor. E eu, Paca? E eu? Pobrezinha. Não existe mais isso, EU. (FARIA,
1997, p. 94).

Mesmo casada, ela se desprende de todos os ensinamentos e procura viver a sua


felicidade pessoal, a liberdade, mesmo diante dos riscos e consequências que os seus atos
podiam trazê-la, deixando os ditames impelidos para “uma mulher casada e bem composta”,
de quem se espera fidelidade e exclusividade, levando apenas em consideração os desejos
imperativos do corpo masculino diante do feminino.
Assim, Camilla passa a romper com os dogmas socais, libertando-se de um corpo
disciplinado, por meio de encontros às escondidas com André, os quais eram seguidos por
dias de tristeza, já que não podia expressar publicamente o sentimento que lhe pertencia.
Camilla continua casada e tem o seu primeiro filho do seu esposo Emídio Seabra, que,
durante alguns dias desconfiou de Camilla, vindo logo a fazer as pazes: “[...] o Emídio beija-
me, finalmente fazemos as pazes. Não me refiro à paz aparente, mas à paz verdadeira, que
vem do coração. (FARIA, 1997, p. 98).
Dias após a reconciliação, viajaram à Inglaterra em virtude do trabalho de Emídio, e
lá, Camilla dá os primeiros sinais da gravidez. Dada à confirmação da gravidez, o casal
escolhe o nome do menino e, após pouco tempo do nascimento da criança, Emídio morre em
detrimento de uma epidemia “pneumônica”. Após a morte de Emídio, Carlos Eduardo (filho
de Emídio e Camilla) vai morar com sua madrinha e Camilla volta com a Paca para Portugal,
a fim de resolver situações administrativas, mesmo sem nenhuma experiência no assunto, já
que seu esposo nunca lhe permitirá entender sobre: “Agora não sei o que fazer. Nunca cuidei
dos nossos assuntos econômicos.” (FARIA, 1997, p. 101).

344
Anais

Em meio a essa situação, com objetivo de reverter a possível perda da casa, que, ao
voltar para Lisboa, Camilla resolve procurar trabalho. A partir desses acontecimentos da
vida da protagonista, acontece a transição do seu corpo disciplinado para um corpo liberado.
Sobre o assunto, Xavier (2007, p. 169) ressalta a importância das protagonistas mulheres
“que passam a serem sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores
redescobertos através de um processo de autoconhecimento”.
Esse processo de redescobrimento de valores e de autoconhecimento é o que
acontece com a protagonista do romance, uma vez que, após a morte dos seus tios e, em
seguida, a do seu primeiro marido, se encontra sozinha e responsável pelo seu próprio
destino, sendo a partir desse momento que começa a transição de um corpo disciplinado
para um corpo liberado. Conforme cita Xavier (2007, p. 173): “ao exorcizar o passado
doloroso, ela se liberta das amarras familiares e das dependências afetivas, ousando viver,
sem repressões e sem medo, a existência com seus mistérios”.
Diante das inúmeras crises econômicas que permeavam sua vida, Camilla consegue
alugar a casa, entretanto, não é o suficiente para custear as suas dívidas e gastos mínimos.
Entretanto, surge uma vaga de pianista numa casa de alta costura que se enquadra no perfil
dela, dominando algumas poucas notas no piano e tem beleza exuberante: “Está à procura
de uma senhora de muito bom aspeto que acompanhe as passagens com uma música leve e
agradável. Se não esqueceste o teu Chopin, és a pessoa ideal”. (FARIA, 1997, p. 104). Camilla
resolve aceitar a proposta de trabalho.
Assim, a nova fase da vida da protagonista se inicia quando ela decide trabalhar,
tornando-se uma mulher independente, não estando mais presa e submissa como foi
durante toda a sua vida até este momento, primeiro pelos seus tios e depois pelo seu marido,
“construindo assim uma nova postura diante da vida, em que o corpo e como o “mar” com
seus mistérios, mas é também uma “viagem” aberta ao desconhecido” (XAVIER, 2007, p.
173).
Sua primeira impressão do ambiente de trabalho é de que não há nada fora do
habitual: “É um salão muito luxuoso, onde a nova alta sociedade lisboeta se exibe com
segurança” (FARIA, 1997, p. 108). Com o passar dos dias, Camilla começa a perceber que
atividades obscuras ocorrem naquele lugar, servindo também para a realização de encontros
escusos:

345
Anais

Além do salão onde está o piano e se recebem as clientes, há, por trás de
reposteiro chumbo-dourado, várias salas de provas e o atelier propriamente
dito. Um dia Madame Armandine pede-me que suba ao camarim. Abre com
uma chave que tira do decote a misteriosa porta do corredor e manda-me
entrar para uma sala absolutamente encantadora em tons de malva, onde os
jarrões cheios de hortênsias nos dão as boas-vindas. [...]. Sem perder de vista,
contudo, que há algo de insólito nesta situação. (FARIA, 1997, p. 109).

Com o passar do tempo, Mandame Armandine, dona desse estabelecimento, sugere


que Camilla passe a se encontrar com homens que frequentam o salão, para que viesse a
aumentar sua renda e encontrar o equilíbrio financeiro que tanto desejava. Incialmente, a
jovem se recusa: “Não me ofenda, Madame”. (FARIA, 1997, p. 112), visto que aquele
comportamento não fazia parte de seus costumes “[...] tenho vontade de fugir dali para nunca
mais voltar” (FARIA, 1997, p. 112). Entretanto, se vendo quase que obrigada devido sua
situação financeira, a protagonista cede e começa a ter encontros com homens (na maioria
das vezes casados) da alta sociedade lisboeta: “Ninguém diria que ali se passam coisas
condenáveis” (FARIA, 1997, p. 113).
Durante esse período de encontros escusos, Camilla, aos 30 anos, relaciona-se com
dois homens: Casimiro Saldanha e o Barão. Camilla via aquela situação com um tom de recusa
e, em outros momentos, custava a acreditar que aquele tipo de comportamento se
desenrolava: “O que é terrível é descobrir que me agrada esta duplicidade” (FARIA, 1997, p.
116). O desfecho dessa fase da vida de Camilla ocorre em uma tentativa de ser tocada por
Gualter Costa, resolvendo jogar-se da janela do quarto para não se submeter a ele, já que,
desde o tempo em que era casada, ele lhe causava desconforto devido o comportamento
ameaçador expresso no período que trabalhava para o médico Emídio Seabra.
Após ter se atirado da janela do quarto onde se davam os encontros com seus
amantes, Camilla passa alguns dias no hospital e depois é liberada para se recuperar em casa.
Ainda no período de recuperação, ela é apresentada ao alemão Salomão Schwartzenbach,
com quem brevemente casa-se e, durante o mesmo período, reencontra-se com André
Sobral: “Nossas são as noites. Quando toda a casa dorme encontramo-nos no quarto dele ou
no meu, de preferência no dele porque é mais isolado e há ordens para nunca o
incomodarem.” (FARIA, 1997, p. 121), de quem engravida do segundo filho, em decorrência
da traição na ausência de seu esposo.
O segundo filho de Camilla se chamava Francisco, herdando os traços de André: “Já
reparei que todo o filho ilegítimo traz a marca do verdadeiro pai, talvez seja a natureza a

346
Anais

querer pôr um pouco de ordem nas hipocrisias” (FARIA, 1997, p. 129). Francisco era fruto
da libertação daquele corpo de Camilla que, desde muito cedo, fora privado de conhecer a
concretização de seus verdadeiros desejos, de viver conforme lhe era conveniente.
Por fim, Camilla se casa com Alexandre Silveira, que faz com que Camilla perceba a
felicidade de uma forma mais leve e serena. Alexandre mostrava-se menos ligado a questões
corpóreas, preocupando-se mais como a dimensão de sentimentos de bem-estar, o que que
a faz refletir sobre os seus casamentos anteriores e quais marcas foram lhe impostas
mediante o desenrolar de cada um. Considerando o período que a mesma se envolveu com
outros homens com os quais não veio a se casar:

Pensa-se que uma mulher se deita com um homem sempre pelo mesmo
motivo, mas não é assim. Há mil razões para uma mulher receber um homem
no seu corpo. Ao longo da minha aventurosa vida deitei-me por obrigação,
por paixão, por medo, por necessidade, por amor ou por prazer, mas nunca,
como com o Alexandre, por ternura infinita, por repouso secreto, por
procura da paz. (FARIA, 1997, p. 132).

Perante esse pensamento e sentimento expresso pela protagonista sobre as suas


vivências no trecho anterior, é possível perceber a transição de um corpo disciplinado para
um corpo liberado. Conforme salienta Xavier (2007, p. 181), “ao associar liberdade e solidão,
assinala um preço que o corpo liberado deve pagar”. Essa transição do corpo da protagonista
a leva a situações difíceis que só uma mulher com coragem de transgredir consegue superar
para alcançar sua liberdade. Essa liberdade tem um preço que marcou as características do
corpo da protagonista, ao romper com o tradicionalismo para tornar-se uma nova mulher
dona do seu próprio caminho.

Considerações finais

Considerando o objetivo desse trabalho, pode-se observar a importância da exposição


de obras da autoria feminina, há muito silenciadas por uma classe dominante, no intuito de
tê-las descobertas em sua temática e relacionando-as ao estudo de gênero. O tema abordado
nesse trabalho, além de apresentar questões em voga na contemporaneidade, ainda deixa
margem para questões da crítica literária, por se tratar de um romance de autoria feminina
que não está dentro das obras da conjuntura canônica, de modo que faz parte de uma escrita
que imprime uma representação de minorias, enfatizando questões relativas à mulher.

347
Anais

As mulheres, ao longo da história, sempre sofreram consequências em decorrência


das imposições do patriarcado. Diante da luta por direitos e deveres em uma sociedade que
ainda reverbera uma cultura patriarcal que cria ditaduras corporais, psicológicas ou sociais,
o estudo de obras escritas por mulheres e que trazem questões da condição da mulher pode
ser considerado uma forma de romper com o tradicional, que, na atualidade, ainda traz
consequências para com o sexo feminino, colocando-o em condição subalterna.
Nessa perspectiva, por meio do texto literário, é possível relacionar as multifaces da
vida da protagonista com as características de seu corpo, que passa por uma transição.
Inicialmente, foi observado elementos de um corpo disciplinado e, após um processo de
construção da identidade, percebe-se traços de um corpo liberado, emancipado, o qual é
resultado de muitos processos e rompimentos com a tradição.

REFERÊNCIAS

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Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2019.

FARIA, Rosa Lobato de. Os três Casamentos de Camilla S. Dom Quixote – Ed. Grupo Leya,
Portugal, 1997.

GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu (14). Campinas-SP, Núcleo de


Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2000, p. 45-86.

SCHMIDT, Rita Terezinha. Na literatura, mulheres que reescrevem a nação. In: HOLLANDA,
Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

PINTO, C. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n.


36, p. 15-23, jun. 2010.

XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 2007. 208 p.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e Gênero: a construção da identidade feminina. 2.


Ed. Caixas do Sul, RS: Educs, 2003.

348
A VISÃO DO FEMININO
NAS POESIAS
CONTEMPORÂNEAS DE
ANGÉLICA FREITAS
Bianca Socorro Salomão SANTIAGO (UEPA/PPGELL)1
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA/PPGELL)2

RESUMO

O presente estudo tem o intuito de centrar-se na manifestação poética contemporânea de


autoria feminina, tendo como foco principal as poesias de Angélica Freitas. Buscou-se
analisar alguns dos poemas presentes no livro Um útero é do tamanho de um punho,
publicado no ano de 2012, o qual apresenta características da estética modernista que serão
analisados com base no aporte teórico do livro Introdução à estilística, de Martins (2000). A
relevância deste estudo evidencia-se em buscar a imagem da visão feminina nos textos
poéticos contemporâneos de Angélica Freitas, os quais tem um estilo modernista que utiliza
como pontos de partida elementos cotidianos e clichês, provocando no leitor reflexões

1 Mestranda do programa de pós-graduação em Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas


(UEPA/PPGELL). Especialista em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo
Centro Universitário Leonardo da Vinci (2021). Graduada em Letras, Habilitação em Língua
Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (2020). E-mail: bianca.salomao96@gmail.com
2 Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de
São Paulo. Mestre em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2010).
Graduado em Letras, Habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade da Amazônia (2008).
Professor Adjunto I (TIDE) da área de Literatura do Departamento de Língua e Literatura da
Universidade do Estado do Pará, atuando na Graduação em Letras - Língua Portuguesa - e no
Programa de Pós-graduação em Letras - Mestrado Profissional em Ensino de Língua Portuguesa e
suas respectivas Literaturas (PPGELL). E-mail: ru-98@hotmail.com

349
Anais

acerca dos paradigmas impostos ao universo feminino. Desse modo, o interesse desse estudo
parte do pressuposto da visão feminista e do estudo estilístico, para entender como a poesia
de Angélica Freitas pretende desmistificar certos “padrões sociais” que circundam o
universo feminino e a construção do que é ser mulher nos dias de hoje, tendo as referências
que sinalizam o sujeito feminino, permitindo assim, direcionar um novo olhar para
possibilidades de ressignificação do modo de existir e entender de que forma Angélica
Freitas impacta o interlocutor e o faz refletir acerca da questão do feminino na sociedade
atual.

Palavras-chave: Angélica Freitas. Um útero é do tamanho de um punho. Autoria feminina.


Visão feminina. Contexto social.

ABSTRACT

The present study aims to focus on the contemporary poetic manifestation of female
authorship, having as main focus the poetry of Angélica Freitas. We sought to analyze some
of the poems present in the book A uterus is the size of a fist, published in 2012, which
presents characteristics of modernist aesthetics that will be analyzed based on the
theoretical contribution of the book Introduction to Stylistics, by Martins (2000). ). The
relevance of this study is evidenced in seeking the image of the feminine vision in the
contemporary poetic texts of Angélica Freitas, which has a modernist style that uses
everyday elements and clichés as starting points, provoking reflections in the reader about
the paradigms imposed on the feminine universe. . In this way, the interest of this study
starts from the assumption of the feminist vision and the stylistic study, to understand how
the poetry of Angélica Freitas intends to demystify certain "social patterns" that surround
the feminine universe and the construction of what it is to be a woman nowadays. , having
references that signal the female subject, thus allowing to direct a new look at possibilities
of re-signification of the way of existing and understand how Angélica Freitas impacts the
interlocutor and makes him reflect on the issue of the feminine in today's society.

Keywords: Angelica Freitas. A uterus is the size of a fist. Female authorship. Feminine vision.
Social context.

Considerações iniciais

Este trabalho fora desenvolvido a partir do desafio que é ser e tornar-se mulher no
século XXI, pois é preciso pensar o ser mulher a partir do contexto social, uma vez que os
pensamentos falocêntricos, machistas e patriarcais agem na criação de representações,
expectativas, determinações, imposições e silenciamentos sobre o que é ser mulher na
sociedade. Com o intuito de pensar como agem as mulheres que problematizam tais
representações, a literatura apresenta-se como um dos grandes espaços de contestação dos
discursos historicamente combatidos na luta das mulheres.

350
Anais

A figura histórica do feminino presente na literatura dos séculos passados, por


exemplo, expõe um cenário literário sem representatividade feminina em suas obras. A
composição da narrativa sobre a mulher estava a cargo de escritores homens, que
insuficientemente versavam acerca das mulheres, mas que revelavam a exclusão e repressão
feminina nos meios acadêmicos e sociais. Envolta em uma sociedade excludente, há fomento
a uma construção social que desprivilegia a mulher como agente das escritas literárias,
inviabilizando a sua emancipação intelectual ao longo da história.
Assim sendo, foi elencada como representante dessa nova cena de contribuições
literárias femininas a poeta gaúcha Angélica Freitas, com a obra Um útero é do tamanho de
um punho, esperando, desse modo, que o diálogo entre literatura e performance contribua
para as possibilidades de não só apresentar produções feitas por mulheres, mas como tais
objetos podem confluir em um diálogo entre si. Mais do que uma apresentação,
depreendermos de que modo essas mulheres representam imposições que foram
historicamente construídas.
Logo, este trabalho se propõe a analisar alguns poemas do livro Um útero é do
tamanho de um punho, além de considerações estéticas e estilísticas com base em Martins
(2000). Outrossim, este trabalho centrar-se-á na investigação de fundo discursivo
empreendida pela autora, quanto a aspectos de gênero e do feminino na sociedade
contemporânea.

Angélica e o ser mulher em seus livros

Angélica Freitas é um grande nome na escrita literária, e seu primeiro conjunto de


poemas é intitulado Rilke Shake (2007), a autora analisava com tom irônico e divertido a
tradição poética e a cultura dita popular (daí advém o título do livro, uma alusão ao poema
alemão Rainer Maria Rilke e o “shake” que se cria a partir dessa mistura). Seu segundo livro
é o estudo deste artigo, intitulado “Um útero é do tamanho de um punho”, lançado primeiro
pela Cosac Naify em 2012, e depois reeditado em 2017 pela Companhia das Letras.
Angélica escreve os versos do segundo livro a partir de uma inquietação: o modo
como as mulheres são tratadas na sociedade, os estereótipos associados ao sexo feminino e
às violências submetidas ao corpo feminino. Do início ao fim é uma obra sobre o que é ser
mulher, escrita por uma mulher, mas que não é “coisa de mulher” em seu sentido menor. O
livro é dividido em 7 subtítulos ou partes que agrupam poemas afins ou nomeiam poemas

351
Anais

longos: Uma mulher limpa, Mulher de, A mulher é uma construção, Um útero é do tamanho
de um punho, 3 poemas com o auxílio do Google, Argentina e O livro rosa do coração dos
trouxas.
Destas, a maioria traz o vocábulo “mulher” em destaque, seja no título das mesmas –
como se percebe nas três primeiras – ou nos títulos dos poemas que as compõem, como
ocorre em “3 poemas com o auxílio do Google”, que se divide em “A mulher vai”, “A mulher
pensa” e “A mulher quer”. Em “Um útero é do tamanho de um punho”, se o vocábulo não
surge expressamente, em compensação, a mulher se faz metonimicamente representada
pelo seu órgão genital.
Nas duas seções finais, “Argentina” pode comparecer como adjetivo feminino
substantivado – [a mulher] argentina –, além da referência ao país sul-americano, e a cor
rosa em “O livro rosa do coração dos trouxas”, que pode fazer referência irônica aos
estereótipos impostos à figura feminina na sociedade contemporânea. Desse modo, tal
padrão cromático se associa quase automaticamente ao feminino em sua versão mais
“comportada” – “trouxa”, portanto, segundo uma visão transgressora e revolucionária da
realidade.
Conforme Freitas (2012), as mulheres, quase sempre, recebem rótulos categóricos
como “uma mulher gorda”, “uma mulher limpa”, “mulher de vermelho”, “uma mulher sóbria”,
e, por vezes, subvertem-nos, como a Amélia que “fugiu com a mulher barbada”. Sendo assim,
Angélica busca representar um novo cenário de poesia contemporânea, trazendo em seus
versos discussões do dia a dia que passam despercebidos pela naturalização de falas
machistas.
Um útero é do tamanho de um punho demonstra então o cenário de concentração de
acidez em Angélica Freitas, não podendo definir que a poeta se torna monotemática ou
limitada, pois consegue abordar as questões do feminino, como expusemos de início, sob
diversos aspectos e de modos sempre inovadores e contundentes – às vezes um pouco sem
“modos”, em desacordo com a educação formal da família/burguesia tradicional.

A estilística presente nos poemas

Em suas obras, Angélica tem uma poética caracterizada pela retomada da estética
modernista, que pode ser observada nos versos livres, no experimentalismo linguístico, na
linguagem coloquial, na paródia de referências eruditas e populares, na irreverência, no

352
Anais

poema-piada e iconoclastia. Outra qualidade é a temática feminista e de gênero, levando aos


poemas ironia e uma comicidade agridoce. Esta última é muito presente no livro analisado,
pois os poemas abordam as representações do feminino a partir do exame dos discursos e
de seus mecanismos de valoração e distinção entre gêneros.
Sendo a Estilística a parte dos estudos da linguagem que se preocupa com o estilo,
podemos utilizá-la para fins estéticos, conferindo à palavra dados emotivos. A linguagem
afetiva, por exemplo, é representada por esse recurso, no qual pode-se observar os processos
de manipulação da linguagem utilizados para extrapolar a mera função de informar.
Na Estilística, há um significativo contraste entre o emocional e o intelectivo,
constituindo uma relação de complementaridade entre o seu estudo e o estudo da Gramática,
que se refere à linguagem de uma maneira mais normativa e sistematizada. Muito associa-se
o estilo a uma ideia de deformação da norma linguística, o que não é necessariamente uma
verdade, visto que existe uma grande diferença entre traço estilístico e erro gramatical. O
traço estilístico dá-se quando há uma intenção estético-expressiva que justifique o desvio da
norma gramatical. O erro gramatical, por sua vez, não apresenta uma intenção estética, pois
configura-se apenas como um desconhecimento das regras.
Assim sendo, Martins acredita que

[...] explicar os usos da linguagem que ultrapassam a função puramente


denotativa, com maior exatidão e sem o propósito normativo que
caracterizou a retorica. Contudo, não se logrou ainda um método rigoroso
que assegure sua condição de ciência e o seu objeto não está
satisfatoriamente delimitado. (MARTINS, 2000, p.22).

Sendo assim, os poemas aqui analisados irão além do escrito, do gramatical e dos
efeitos sonoros, eles irão ser analisados com base em suas conotações, no dito pelo não dito
e em seu processo, pois

O estilo é compreendido como uma ênfase (expressiva, afetiva ou estética)


acrescentada à informação vinculada pela estrutura linguística sem
alterações de sentido. O que quer dizer que a língua exprime e o estilo realça.
(RIFFATERRE apud MARTINS, 2000, p. 2).

Dessa forma, as análises serão iniciadas com o poema “mulher de vermelho”, e nele
será possível perceber os traços estilísticos nas escolhas lexicais:
mulher de vermelho
O que será que ela quer

353
Anais

essa mulher de vermelho


alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho
sou euzinho o que ela quer
só pode ser euzinho
o que mais podia ser.
(FREITAS, 2017, p. 31).

No âmbito formal, o poema inicia com o título “mulher”, grafado com “m” minúsculo,
sendo ele tomado como substantivo comum, designando uma atribuição a que toda mulher,
enquanto coletivo e sem distinção, irá ser submetida caso porte um traje vermelho, por isso
o “mulher de vermelho”. Há no poema um tom de indagação, construído por versos livres,
chegando a uma “conclusão” para as escolhas do sexo feminino ao portar determinada roupa,
assim como a repetição do pronome pessoal “ela”, fazendo referência ao fato de que é “dela”
que se fala e não “ela” quem fala.
Assim sendo, em: “o que será que ela quer/ alguma coisa ela quer/mas ela escolheu
vermelho/ela sabe o que ela quer/o que ela quer sou euzinho”, há um trajeto investigativo
em relação a essa mulher a partir do momento da escolha de sua vestimenta. Como resposta,
tem-se os versos “essa mulher de vermelho/mas ela escolheu vermelho/ela escolheu
vestido/ela é uma mulher”, em que inferências são realizadas como percurso a uma
determinada conclusão do eu poético, criando uma cadeia de intencionalidade e sentido, no
ato dessa mulher, que justifique o porquê de se escolher um vestido e que esse seja da cor
vermelha.
A fim de chegar em uma conclusão, o tom investigativo citado anteriormente é
retomado nos versos finais, em que há inclusive um jogo intertextual, por meio da referência
ao personagem Dr. Watson, parceiro de investigação do detetive Sherlock Holmes. A situação
criada pelo eu lírico masculino é o da certeza de ser um objeto de sedução pela mulher de
vermelho, afinal a cor vermelha, comumente associada ao desejo, foi a escolha para o vestido

354
Anais

“podia ser um amarelo/ verde ou talvez azul”, fazendo com que se crie uma determinada
ideia de entrega ao outro, sem cogitar a ideia do prazer próprio, da mulher vestida para ela
mesmo, para ser feliz ou qualquer outra situação. É desse modo, perceptível a objetificação
e idealização do corpo feminino, julgando intencionalidades não existentes.
Outro poema analisado será o de mesmo título do livro, este sendo “um útero é do
tamanho de um punho”, porém este sendo um poema extenso, tem-se um excerto:
Um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem cadeiras
todos os médicos couberam num útero
o que não é pouco
uma pessoa já coube num útero
não cabe num punho
quero dizer, cabe
se a mão estiver aberta
o que não implica gênero
degeneração ou curiosidade
ter alguém na palma da mão
conhecer como a palma da mão
conhecer os dois, um sobre a outra
quem pode dizer que conhece alguém
quem pode dizer que conhece a degeneração
quem pode dizer que conhece a generosidade
só alguém que sentiu tudo isso
no osso, o que é uma maneira de dizer
a não ser que seja reumático
ou o osso esteja exposto
im itiri i di timinhi di im pinhi
im itiri i di timinhi di im pinhi
quem pode dizer tenho um útero
(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)
i midici
o medo de que não funcione
para que serve um útero quando não se fazem filhos.
(FREITAS, 2012, p. 59).

O título do livro veio a partir de um verso do longo poema de 42 estrofes e 173 versos
que trata do útero feminino e dos discursos privados e públicos que o cerceiam. O tema
central do poema são as repressões exercidas sobre o órgão reprodutor e, por extensão,
sobre a mulher, que tem sua autonomia interditada no que diz respeito ao exercício da
sexualidade e à interrupção de uma gravidez indesejada, por exemplo.
Note-se que a palavra “mulher” não é mencionada uma única vez em toda a extensão
do excerto, e por consequência do texto integral, o que reforça a condição de passividade do
sujeito feminino, submetido à voz e ao poder dos “outros”. De acordo com o Dicionário
Houaiss (2012), a palavra útero, além de “órgão muscular oco do aparelho genital feminino

355
Anais

que acolhe o ovo fecundado durante seu desenvolvimento e o expulsa, finda a gestação”,
também tem o sentido de “madre, mãe do corpo, matriz”. Já a palavra punho refere-se à “mão
fechada”, à “força da mão bem fechada” ou mesmo “parte de arma branca em que se segura;
cabo, empunhadura”. Na relação semântica entre as duas palavras, o útero é semelhante ao
punho não só em tamanho, mas na sua função de acolher ou segurar um feto como uma “mão
fechada”.
Essa associação é feita por meio das inferências externas sobre o útero e sua
capacidade reprodutora, principalmente na obrigatoriedade da gravidez e na proibição da
prática de aborto, quando diversas instituições e agentes externos à mulher e a sua esfera
íntima – o legislativo, a igreja, a escola, a mídia, os religiosos, os cientistas, os médicos –
determinam sobre seu corpo e sua decisão de gerar ou não uma criança.
Essas circunstâncias se estendem à mulher, esse ser possuidor do útero que é
representada por meio do seu útero e, portanto, a sua capacidade reprodutora e ao papel
social de mãe. O poema então personaliza a capacidade geradora do útero ao afirmar que
nele couberam indivíduos formados, dotados de razão e discernimento.
Por fim do excerto, há uma experimentação da “língua do i”, prestando-se a esse tipo
de humor, já que a substituição das vogais das palavras dá ensejo a uma fala ridícula e
infantilizada. Afinal, a convenção social diz que se torna mulher, ou popularmente “mocinha”
a partir da primeira menstruação, o que biologicamente entende-se como a possibilidade de
gerar um feto em seu útero, e fica a reflexão de BEAUVOUIR (1970):

A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma


matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defi ni-la. [...] O
termo “fêmea” é pejorativo, não porque enraíze a mulher na Natureza, mas
porque a confina no seu sexo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 25)

Considerações finais

Neste artigo, vislumbrou-se demonstrar por meio da literatura que os espaços


ocupados por mulheres revelam não só um local a ser preenchido, haja vista a exclusão
histórica desses lugares como situados somente para o homem, mas um território de tomada
de decisões e questionamentos. Com a palavra em mãos, o que querem essas mulheres? Que
narrativas desejam contar? No caso de Angélica Freitas os poemas tornam o próprio ato da
escrita, o corpo a ser representado. Afirmando que a categoria “mulher” é de difícil definição,

356
Anais

do mesmo modo pensamos como problemática a tentativa de resposta para uma possível
indagação do que vem a ser uma produção feminina.
Por fim, o intuito da pesquisa é a reflexões acerca das produções voltadas para os
inúmeros questionamentos a serem levantados pela sociedade, tornando assim o processo
do ser e tornar-se mulher algo que pode sim ser escolhido e realizado pela figura feminina.
Não mais necessitando do parâmetro e olhar masculino sobre seus comportamentos e
escolhas do dia a dia.

REFERÊNCIAS

BAKHTIH, M. M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução Sheila Grillo e


Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2013.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e mitos. 4. ed. Trad. Sérgio Milliet. São
Paulo: Difusão Europeia do livro, 1970.

CORTÊZ, Natacha. “Um útero é do tamanho de um punho” [entrevista]. Revista TRIP, 2012.
Disponível em: < https://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um-
punho>. Acesso em: 04 jul. 2022.

DICIONÁRIO HOUAISS. Disponível em: http.:// houaiss.uol.com.br. Acesso em: 03 jul. 2022.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

MARTINS, Nilce Santana. Introdução a estilística. SP: TA-QUEIROS, 2000.

357
CONSCIÊNCIA E CORPO
DESALINHADO: O
FANTÁSTICO E O
INSÓLITO NO CONTO
SONO, DE HARUKI
MURAKAMI
Vitor Yukio Ivasse ALVES (PUC Goiás)1
Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás)2

RESUMO

A escuridão da noite revela a enseada oculta de possibilidades que nos espera durante o
sono. Para alguns, o sono fornece a distração e o reabastecimento necessários para realizar
nossas rotinas diárias. Enquanto nos aconchegamos sob a segurança de nosso cobertor
favorito e, lentamente, começamos a fechar os olhos, sucumbimos à beleza que é o sono. Sem
hesitação, aceitamos e acolhemos nosso sono noturno. Não questionamos nosso estado
vulnerável e nem os rituais que nos preparam para um estado de coma de oito horas. Em
Sono (2015), Haruki Murakami escreve a partir da perspectiva de uma dona de casa de 30
anos com insônia. A história começa em seu 17º dia sem dormir e volta ao início de como
começou. A total ausência de sono neste conto encantador pode ser tomada pelo seu valor

1 Graduando do curso de Letras-Português na Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

E-mail: yukiovitor@gmail.com
2 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
elizetealbinaferreira@gmail.com

358
Anais

nominal (como uma história fantástica), ou pode ser interpretada como símbolo do incomum
(insólito). Para o teórico literário Tzvetan Todorov, nós, leitores, somos transportados para
o centro da fantasia para pisar em solo desconhecido e vivenciar eventos que não podem ser
explicados pelas leis deste mundo. Em sua obra Introdução à literatura fantástica (2010),
Todorov relata que tais acontecimentos são frutos da nossa imaginação e que o fantástico
está ligado, intrinsecamente, à função da incerteza, designando o conceito de hesitação. Para
apontar as peculiaridades desse gênero, será realizada uma análise dos elementos do
fantástico e do insólito na obra de Haruki Murakami, traçando as características da narrativa
com as observações e concepções de Tzvetan Todorov.

Palavras-chave: Literatura Fantástica; Insólito; Haruki Murakami; Sono.

ABSTRACT

The darkness of the night unveils the cove of possibilities that awaits us during sleep. To
some, sleep provides the distraction and the replenishment needed to fulfill our daily
routines. While we are cozy under the security of our favorite blanket and, slowly, start to
close eyes, we succumb to the beauty that sleep is. Without hesitation, we accept and
welcome our nocturnal sleep. We don't question our vulnerable state nor the rituals that
prepare us to a coma state of eight hours. In Sleep (2015) Haruki Murakami writes by the
perspective of a thirty-year-old housewife with insomnia. The story begins on her 17th day
without sleep, then it goes it’s way back to how it started. The complete lackness of sleep on
this charming tale may be interpreted by it's nominal value as a fantastic story or as a token
of the unusual. To the literary theorist Tzvetan Todorov we, as readers, are transported to
the center of this fantasy, to step on unknown ground and to live events that can't be
explained by the laws of this world. On his work Introduction to Fantastic Literature (2010),
Todorov reports that such events are a figment of your imagination and that the fantastic are
connected intrinsically to the function of uncertainty, designating the concept of hesitation.
To point to the peculiarities of this genre, an analysis will be made of all the elements of the
fantastic and of the unusual on the work of Haruki Murakami, tracing the characteristics of
the narrative with the observations and conceptions of Tzvetan Todorov.

Keywords: Fantastic Literature; Unusual; Haruki Murakami; Sleep.

Considerações Iniciais

O sono sempre foi um processo curioso para os humanos e a interpretação mítica de


sua ocorrência sempre foi utilizada, principalmente pela existência de sonhos. Embora
existam muitas fórmulas científicas para a inconsciência de longo prazo dos animais, o sono
humano é um processo muito complexo que ainda é pouco compreendido. E da mesma
forma, a falta de sono constrói um fenômeno atípico com compreensão biológica do
funcionamento do consciente humano.
A insônia é um distúrbio que prejudica a capacidade de uma pessoa conseguir
adormecer. Como resultado, ocorre uma alteração drástica na qualidade de vida. As pessoas

359
Anais

com esse distúrbio começam o dia sentindo-se cansadas e sem energia, tendo um
desempenho ruim nas atividades diárias. Muitos adultos experimentam insônia em algum
momento de suas vidas, mas algumas pessoas sofrem de insônia crônica, que pode durar
muito mais do que o normal. A insônia também pode ser secundária a outras causas, como
doenças ou abuso de substâncias.
Entretanto, no conto Sono, do autor japonês Haruki Murakami, a narrativa introduz
uma personagem feminina, com nome desconhecido, vivenciando seu drama particular que
parece uma espécie de insônia, mas não se encaixa com os sintomas desse distúrbio do sono.
No começo do conto, a protagonista relata sua situação atual: “É o décimo sétimo dia em que
não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco” (MURAKAMI,
2015, p. 5).
Fazendo alusão ao seu passado, a protagonista informa que passou por algo parecido
durante o período de faculdade: “Na época da faculdade tive uma coisa parecida. Digo
“parecida” pois não posso afirmar categoricamente que aqueles sintomas estavam
relacionados ao que as pessoas costumam chamar de insônia” (MURAKAMI, 2015, p. 5). Ela
situa sua condição colocando em dúvida a origem do seu problema, uma vez que não se trata
de uma insônia autodiagnosticada.
Sendo assim, busca-se investigar de qual maneira o distúrbio vivenciado pela
protagonista pode ser identificado e caracterizado como uma manifestação do
insólito/fantástico.

A contextualização do conto e a manifestação do insólito e do fantástico

O conto Sono é um relato em primeira pessoa de uma protagonista sem nome


identificado sem nenhum único fato diferente da sua vida comum. Sua rotina envolve coisas
simples de uma dona de casa: servir o café da manhã para seu marido e filho, ir ao mercado,
cozinhar, fazer natação, degustar brevemente de momentos de leitura e dormir. O seu
pequeno núcleo familiar envolve seu marido dentista com quem é casada há mais de uma
década e seu filho pequeno, que começou a ir à escola.
Esse cotidiano comum pode ser notado pela fala da própria protagonista: “Meu dia a
dia continua o mesmo de sempre: muito tranquilo e bem organizado. De manhã, após meu
marido e meu filho saírem de casa, eu pego o carro para fazer compras” (MURAKAMI, 2015,
p. 13). Posteriormente, ela salienta como essa rotina metódica afeta sua vida:

360
Anais

Eu costumo ir com o City fazer compras no supermercado. Ao voltar, limpo


a casa e lavo as roupas. Preparo o almoço. Procuro, na medida do possível
movimentar o corpo durante o período da manhã. Inclusive, quando dá
tempo, deixo o jantar pronto. Isso me permite ter a tarde toda para mim.
(MURAKAMI, 2015, p. 21).

Essa rotina sistematizada é pertencente a uma sociedade japonesa moderna que


ainda mantém o costume de colocar a matriarca exclusivamente no papel de mãe e esposa:

Até hoje é a mulher quem simbolicamente "mantém vivo o fogo doméstico".


Mesmo com os avanços tecnológicos ligados às tarefas domésticas -
refrigeradores (no final da década de 1950), máquinas de lavar roupas,
aquecedores elétricos, aspiradores de pó, panelas elétricas, tornos de micro-
ondas etc. -, diversas atividades atribuídas às mulheres no lar se assemelham
às de outras épocas: alimentar a família, limpar a casa, cuidar do marido,
fazer compras cotidianas, cuidar das roupas, bater e arejar os acolchoados,
ser a cuidadora preferencial das crianças pequenas e dos idosos da família.
Apesar das mudanças ocorridas na acomodação entre o novo e o tradicional,
o ideal da mulher japonesa como "boa esposa e mãe sábia pouco mudou e,
em certos aspectos, foi acentuado. (SAKURAI, 2021, p. 311-312).

Essa era sua vida com pequenos e singelos momentos de prazer, uma repetição. A
escrita em um diário esboçado no final do capítulo 1 expõe um sentimento de vazio da
mulher de trinta anos que se sente assustada por não conseguir segregar dias e horários. E
essa era sua vida antes de não conseguir dormir.
A protagonista relata, no capítulo 2, que em uma fatídica noite, teve um sonho
extremamente repulsivo, um pesadelo sombrio ao qual deu origem a sua falta de sono. Nesse
sonho, ela estava acordada e uma sombra negra materializa-se perto dos seus pés. A sombra
aparenta uma espécie medonha de homem que começa a jogar água nos seus pés e, após
ambos se olharem fixamente durante algum tempo, o processo é interrompido com o susto
e toda a névoa onírica se esvai. A protagonista, ao acordar, percebe-se com uma sensação
estranha, algo dentro dela se entregou totalmente ao vazio.

Forcei os olhos para tentar enxergar aquela sombra. Ao fitá-la atentamente,


ela começou a tomar forma, como se aguardasse aquele meu olhar. Os
contornos se tornaram nítidos, na forma de um corpo, e revelaram seus
detalhes: era um velho magro de agasalho preto. Seus cabelos eram
grisalhos, curtos, e as bochechas, fundas. O velho estava em pé, parado, na
beira da cama. Fitava-me em silêncio com um olhar penetrante. Seus olhos
eram grandes e com os vasos sanguíneos vermelhos e dilatados. Seu rosto,

361
Anais

porém, era desprovido de expressão. Ele não se dignava a falar comigo. Era
vazio como um buraco. (MURAKAMI, 2015, p. 33-34).

A água presente no sonho pode ser vinculada às tristezas cotidianas que acometem a
mulher insone. A água suspende e materializa o corpo adormecido, libera a mente para
flutuar e torna a materialidade da matéria remota e indescritível.

[...] o sono não deixa de ser um momento em que o peso da existência se


encontra em suspensão. Na obra O mundo como vontade e representação
Schopenhauer desenvolve a tese de que a existência é extremamente
dolorosa e nós estamos condenados a essa dor e ao fardo de sermos nós
mesmos até o fim das nossas vidas. (KANEFUKU, 2015, p. 20).

Esse vazio reflete o momento em que a protagonista é incluída em um ambiente


fantástico, experimentando a duplicidade entre o realístico e o onírico. Como é dito por
Todorov “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 30-
31). Ela indaga:

“O que era aquele velho vestido de preto?”, pensei. Nunca o tinha visto antes.
Sua roupa preta também era muito estranha. [...] Quem era aquele homem?
Por que que ele jogava água nos meus pés? [...] Não encontrava nada que
fizesse sentido. (MURAKAMI, 2015, p. 42).

Nesse mesmo episódio, o leitor começa a embarcar no fabulário geral de um delírio


cotidiano. Na mesma noite, inebriada pelo medo, a narradora decidi que precisa tomar um
banho devido ao suor excessivo e que precisa de uma bebida alcoólica para poder se
recompor. Ainda atônita, decide ler um livro para pegar no sono e escolhe o romance russo
Anna Karenina de Liev Tolstói.
A primeira manifestação do insólito/fantástico ocorre quando o leitor é colocado em
uma situação duvidosa perante os elementos narrativos da obra. Ao se aprofundar junto com
a protagonista no despertar de sua insônia ainda injustificada, cria-se um evento isolado de
dúvida sobre a autenticidade do fato. Dessa forma, como constata Tzvetan Todorov em sua
obra Introdução à Literatura Fantástica, a ambiguidade se mantém entre a realidade ou
ilusão, pois
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é
exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem
vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas

362
Anais

leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma
das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um
produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que
são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da
realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para
nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente,
exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o
encontramos. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra
resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho
ou o maravilhoso. (TODOROV, 2010, pg. 30-31).

A rotina da protagonista é totalmente alterada após o episódio sobrenatural. No


capítulo 3, enquanto os outros moradores da casa saem para cumprir suas tarefas, ela
constata que sua rotina não precisa ser repetida igual aos dias anteriores (efetuar tarefas
domésticas e compromissos fora de casa), entregando-se totalmente à leitura de Anna
Karenina. Ao perceber um pedaço ressecado de chocolate em uma das páginas, sua mente
aflora em uma súbita e devastadora vontade de ingerir a guloseima.
Nossa protagonista questiona novamente sobre sua falta de sono: “Por que será que
eu não tinha sono? [...] deveria estar com tanto sono, mas tanto sono, que mal conseguiria
ficar em pé. O fato é que agora eu não estava com sono, e minha consciência estava lúcida”
(MURAKAMI, 2015, p. 65). Nessa natureza dos fatos esboçados, Todorov cita que na
manifestação do fantástico, sempre fica em aberto a possibilidade de uma explicação
racional e simples para os fenômenos, porém essa possibilidade torna-se frustrada, pois sua
natureza é de origem sobrenatural (TODOROV, 2010).
A insônia ou coisa parecida com a insônia coloca nossa protagonista em uma situação
de consciência e corpo desalinhado. O corpo desalinhado está integrado em fatores que não
podem ser explicados de uma forma racional e biológica. Quando a narradora descreve que,
apesar da rotina intensa, ela não se sente cansada ou com sono, ela entra em uma natureza
humana não-natural. Sua consciência não consegue mais se unificar ao seu corpo, como é
descrito no seguinte trecho:

O hábito torna as tarefas simples de serem realizadas. Pode-se dizer que elas
se tornam fáceis. Basta desconectar a mente do corpo. Enquanto meu corpo
se movimentava à vontade, minha mente pairava em seu próprio espaço
exclusivo. [...] Depois que deixei de dormir passei a considerar fácil
administrar a realidade. De fato, cuidar da realidade é uma atividade muito
simples. Era tão somente a realidade. Consistia apenas em tarefas
domésticas. (MURAKAMI, 2015, p. 71-72).

363
Anais

A insone relata que, apesar de não dormir por dias, não foi notada nenhuma alteração
da sua fisionomia pelos seus familiares. Sua inquietação é notada na sua segunda semana
sem dormir, pois, ela começa a notar que esse tempo sem dormir pode levar uma pessoa à
loucura.

[...] da dimensão da realidade para a [da falta] do sono [...] ou da loucura. O


personagem protagonista se encontra repentinamente como se estivesse
dentro de duas dimensões diversas, com códigos diversos à sua disposição
para orientar-se e compreender. (CESERANI, 2006, p. 73).

Aos poucos, a protagonista vai percebendo as oportunidades oriundas desses


episódios de insônia, por exemplo, como esse fator auxilia sua fuga da realidade e um
mergulho no seu mundo particular em busca da sua liberdade. É nítida essa mudança quando
vê seu reflexo no espelho: “Não havia me enganado. Eu realmente estava bonita”
(MURAKAMI, 2015, p. 77). A personagem não sofre alterações físicas, mesmo sendo privada
do sono. A insônia permite uma caminhada de redescobertas e horas gastas com prazeres:
leitura, bebidas alcoólicas e chocolates.
A narrativa do décimo sétimo dia sem dormir traz uma situação peculiar da mulher
insone. Percebemos o estilo kafkaniano em Murakami nesse momento, pois, no decorrer da
leitura, há um tom de angústia e melancolia, uma desesperança que aproxima a narradora
da morte. Ela fecha seus olhos buscando vivenciar a sensação do sono e evidencia:

Até então, eu achava que o sono era um tipo de morte. Ou seja, a morte seria
uma extensão do sono. Em outras palavras, a morte era como dormir.
Comprada ao sono, a morte era um sono bem mais profundo, sem
consciência. Um descanso eterno, um blecaute. (MURAKAMI, 2015, p. 100).

O último capítulo do conto se inicia com a protagonista vestindo uma roupa simples
e adotando um visual masculino. Dirige-se até um parque, estaciona e ajeita o boné de uma
forma que não possa ser identificada, uma medida que se entende como uma forma de não
ser vulnerável a agressões e violência por ser uma mulher vagando sozinha pela noite.
Reflete sobre seus dias e mudanças, concluindo que mudou. Fecha os olhos e observa a
escuridão e analisa se o seu desejo seria a morte. Contudo, sua divagação é interrompida
quando nota a presença de duas sombras negras, que são os elementos primordiais para o
desfecho ao conto.

364
Anais

Há duas sombras negras, uma de cada lado do carro. Um do lado direito e


outra do esquerdo. Eu não consigo ver seus rostos. Nem as roupas que
vestem. São sombras negras em pé. [...] Eles balançam o carro, alguém bate
insistentemente no vidro direito com a mão em punho. [...] Alguma coisa está
errada. Mas não sei o que é. Minha mente está repleta de uma densa
escuridão. Uma escuridão que não vai me levar a lugar nenhum.
(MURAKAMI, 2015, p. 108-110).

Desisto de pegar a chave, encosto no banco e cubro o rosto com as mãos. E


choro. A única coisa que resta a fazer é chorar. As lágrimas não param de
cair. Estou presa nesta caixinha e não tenho para onde ir. É a hora mais
escura da noite e os homens continuam a sacudir o carro. O que eles querem
é virar o meu carro. (MURAKAMI, 2015, p.110).
Não se sabe se as sombras relatadas eram homens ou seres sobrenaturais. A
ambiguidade de interpretação está ligada ao consciente da protagonista que, auxiliado pela
falta de sono por tanto tempo, pode estar dando uma intepretação diferente que se
assemelha ao delírio. Apesar de evidenciar elementos sobrenaturais durante toda a
narrativa, o final do conto poderia trazer uma explicação lógica de uma mulher vulnerável
sendo atacada por homens em um ambiente noturno. Esse efeito fantástico-estranho é
relatado por Todorov:

Acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no


fim recebem uma explicação racional. Se esses acontecimentos por muito
tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do
sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito. (TODOROV, 2010, p. 51).

Se admitirmos que as sombras relatadas são seres sobrenaturais, entramos em outra


categoria de Todorov:

No fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas


que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do
sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois
este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado,
sugere-nos realmente a existência do sobrenatural. O limite entre os dois
será então incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos detalhes
permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2010, p. 58).

Essa variação de interpretações é definida por Umberto Eco em sua coletânea de


ensaios Obra aberta (1991). O conceito de obra aberta remete à noção de abertura e
infinitude de um texto literário, o que permite uma indagação mais ampla sobre a própria
obra. Uma obra é a criação de um autor que pretende evocar um conjunto de efeitos em seu
receptor (ou espectador), fazendo-o compreender a intenção original de quem a fez.

365
Anais

No entanto, Eco (1986) argumenta que os processos de leitura e interpretação não


podem pressupor uma análise predefinida e estruturada do texto. Em vez disso, eles
implicam uma liberdade notável para o leitor, que também é o receptor e, portanto,
encarregado de extrair do texto uma análise pessoal. De acordo com esse conceito, a origem
do termo trabalho aberto vem da necessidade cada vez mais aparente de compreender e
valorizar a criatividade e as habilidades interpretativas que, quando necessário, levam à
reorganização das ideias.
Apesar do desfecho apresentado pelo autor, caberá ao leitor elaborar a sua
interpretação baseado nas suas crenças e experiências, pois é necessária alguma forma de
orientação para a imersão no labirinto de interpretações. O olhar mais cético na leitura
levará a uma interpretação pela perspectiva do fantástico-estranho, em que as sombras são
homens que desejam roubar e/ou praticar um crime contra nossa protagonista. Por outro
lado, a possibilidade de interpretar as sombras como seres sobrenaturais atormentando a
narradora, ensejará na aceitação do insólito na narrativa.
Portanto, na teoria de Eco (1986), o receptor ocupa uma posição privilegiada, pois
para cada resultado, o leitor produzirá uma interpretação, porque em cada resultado o
trabalho é revivido dentro de uma perspectiva original. A utilização de estratégias de
construção narrativa que promovam o estabelecimento do insólito significará que a
composição do espaço, do tempo ou da personagem é inconsistente com sua estabilidade no
mundo objetivo. Como resultado, as imagens formadas durante a leitura do conto
apresentam graus variados de elementos reais e fantásticos, buscando referências na
realidade extratextual.

Considerações Finais

Haruki Murakami utiliza o sono (ou a falta dele) como um artificio simbólico para
alavancar reflexões da protagonista sobre o desconhecido, a rotina, o cotidiano e o sentido –
sendo esse o processo fisiológico de reconhecer estímulos da audição, visão e tato. O final do
conto, apesar de deixar brechas para diversas interpretações, revela à protagonista que estar
sempre acordada era o mesmo que estar morta., e que sua insônia não era libertação da vida
cotidiana. Cada afirmação no final é uma metáfora para algo.
A narrativa é toda permeada com pequenas e singelas características que fazem
alusão ao insólito e o fantástico, mas acabam mesclando a vida da protagonista com padrões

366
Anais

de uma vida cotidiana qualquer. A genialidade de Murakami intensifica os principais


aspectos do gênero, pois esse conto pode ter uma interpretação lógica e racional, mas acaba
tendo acontecimentos que se assemelham às inquietudes do fantástico.
Dentro da construção da narrativa são utilizados elementos que contribuem para uma
história fantástica: narração em primeira pessoa, envolvimento do leitor, o estranho e
irreconhecível, a loucura e, principalmente, a hesitação. As múltiplas faces que a narradora
descreve durante todo seu cotidiano contribuem para a criação de uma personagem frágil
que, como o leitor, desconhece seu problema e, por desconhecer, acaba traçando percepções
absurdas sobre suas fragilidades e medos.
A estranheza do relato da protagonista ganha vida fora das páginas e leva o leitor para
um mundo invertido, onde sua percepção de realidade é distorcida. A criação de um
ambiente sobrenatural revela o mais frágil da alma e esta serve como alimento para aquilo
que habita na escuridão. A leitura do conto, para os amantes do sobrenatural, traz
característica dos filmes do vilão Freddy Krueger, um assassino que ataca as pessoas durante
os sonhos. Em um paralelo ao conto de Murakami, temos uma personagem que, diferente
dos filmes, enfrenta seus pesadelos por não conseguir dormir.
Diante dos fatos expostos, surge a pergunta: Dormir ou não dormir? Por mais que se
trate de ficção, a incerteza e hesitação ao escolher um ou outro insere a nossa alma no âmago
do fantástico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CESERANI, R. Procedimentos formais e sistemas temáticos do fantástico. Curitiba:


Editora 2006

ECO, Umberto. Obra Aberta. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986

KANEFUKU, Louise Shizue. A água, o sonho e a insônia: possibilidades poéticas no


desenho. 2015. 47 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Artes Visuais) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015.

MURAKAMI, Haruki. Sono. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

SAKURAI, Célia. Os japoneses. 2. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2021.

TODOROV, Todorov. Introdução à literatura fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

367
ESCRITA DE SI, ESCRITA
DO OUTRO: A TENSÃO
ENTRE AUTOFICÇÃO E
ESCREVIVÊNCIA NO
CENÁRIO
CONTEMPORÂNEO
Caroline da Conceição Barbosa da PURIFICAÇÃO (UFBA)1
Luciene Almeida de AZEVEDO (UFBA)2

RESUMO

Este artigo busca pensar a relação da autoficção e da escrevivência com o autobiográfico. A


autoficção (termo que surge na França, em 1977, a partir do romance Fils de Serge
Doubrovsky) prevê o pacto ambíguo (ALBERCA, 2008) entre a ficção e a autobiografia. A
mesma tensão está presente no termo escrevivência (criado em 1995 pela escritora
brasileira Conceição Evaristo). De acordo com Diana Klinger (2007), a autoficção é um tipo
de escrita de si sujeita ao narcisismo e à espetacularização. Em relação à escrevivência, fica
claro o caráter político das narrativas em primeira pessoa (que aproximam narradores e
autores), pois o termo é utilizado como uma maneira de resgatar, através dos artifícios
literários, a história da população afro-brasileira. Sua principal característica é o pacto
identitário com o leitor, uma vez que a experiência individual também diz sobre o coletivo.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail: barbosacarol41@gmail.com
2
Doutora em Literatura Comparada e professora do Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail:
aaluciene@gmail.com

368
Anais

A partir dessas considerações, o trabalho quer investigar a tensão entre os dois termos,
avaliando se o entrelaçamento entre o ficcional e o autobiográfico e a convivência no
presente dos dois termos, autoficção e escrevivência, promovem um jogo desestabilizador
que envolve não apenas o autor e a instância narrativa, mas as esferas do pessoal e do político
e se como isso se reflete no valor teórico de cada um dos termos, a partir do comentário de
O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, e A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy.

Palavras-chave: Literatura contemporânea, Autoficção, Escrevivência.

ABSTRACT

This article seeks to think about the problematic relationship between autofiction and
escrevivência with the autobiographical. Autofiction (a term that appears in France in 1977,
from the novel Fils by Serge Doubrovsky) predicts the ambiguous pact(ALBERCA, 2008)
between fiction and autobiography. The same tension is present in the term escrevivência
(created in 1995 by the Brazilian writer Conceição Evaristo). According to Diana Klinger
(2007), autofiction is a type of self-writing, subject to narcissism and spectacle. In relation to
escrevivência, the political character of first-person narratives is clear (which brings
narrators and authors together), as the term is used as a way of rescuing, through literary
devices, the history of the Afro-Brazilian population. Your main characteristic is the identity
pact with the reader, since the individual experience also says about the collective. From
these considerations, the work wants to investigate the tension between the two terms,
evaluating whether the intertwining between the fictional and the autobiographical and the
coexistence in the present of the two terms, autofiction and escrevivência, promote a game
destabilizing that involves not only the author and the narrative instance, but the spheres of
personal and political and if this is reflected in the theoretical value of each of the terms, from
the commentary of O Averso da Pele (2020), by Jeferson Tenório, and A chave de casa (2007),
by Tatiana Salem Levy.

Keywords: Contemporary Literature, Autofiction, Escrevivência.

No presente trabalho3, serão tecidas algumas considerações sobre dois termos que
possuem incidência biográfica, mas que parecem ocupar lugares distintos dentro da cena
literária contemporânea: a autoficção e a escrevivência. A tensão entre eles, através de obras
que realizam seus empreendimentos, pode elucidar como o campo literário está lidando com
produções que possuem subjetividades, objetivos, temas e origens diferentes, mas que fazem
parte do mesmo cenário literário contemporâneo. Para refletir sobre seus desdobramentos
e os locais que eles ocupam dentro da literatura contemporânea será realizada uma análise
das obras A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy, e O avesso da pele (2020,) de
Jeferson Tenório

3 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

369
Anais

Mas antes vamos a uma breve apresentação teórica sobre a autoficção. O termo surge
em 1977, na França, com o romance Fils, de Serge Doubrovsky. O escritor se sente impelido
a escrever a obra após ter acesso a um quadro elaborado por Philippe Lejeune em 1973 que
explicitava a noção de pacto autobiográfico ao prever um contrato de leitura entre autor e
leitor. Nesse quadro, Lejeune apontou que não havia exemplos conhecidos de romances que
mantinham a relação onomástica entre autor, narrador e personagem. O próprio Serge
Doubrovsky afirma, então, que o termo autoficção quer contrariar a conclusão de Lejeune e
por isso ele escreve uma ficção na qual o autor tem o mesmo nome do personagem.
Doubrovsky estabeleceu as seguintes características para o termo: a ausência de
linearidade, a relação onomástica entre autor, narrador e personagem, o uso da
metalinguagem, do tempo presente e da fragmentação e a exploração do caráter psicanalítico
do que é narrado. Em um primeiro momento, o autor assumiu ser o criador da prática
autoficcional que ele definiu como “ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais”
(NORONHA, 2014, p. 120). Entretanto, com o crescimento da especulação sobre a autoficção
reconheceu que a prática já existia em autores como Louis-Ferdinand Céline e Sidonie
Gabrielle Colette, por exemplo. No século XXI, o termo parece ter se expandido e
incrementado pelo interesse na vida privada do autor, pela valorização do biográfico e pela
intensa visibilidade que o autor assume hoje publicamente.
Esse cenário propiciou que o termo se tornasse popular dentro da academia. Dessa
forma, diversas obras autoficcionais começaram a surgir, assim como pesquisas que
buscavam refletir sobre a prática. Essa popularização incidiu na perda de alguns pontos de
definição fazendo com que ele ficasse em uma zona de nebulosidade. Nesse cenário, outros
termos que buscavam definir certo grau de relação entre autor, narrador e personagem
ganharam força como a alterbiografia de Ana Maria Bulhões-Carvalho (2011), a
autonarração de Dorrit Cohn (1978) e a alterficção de Evando Nascimento (2008). Muitas
vezes, esses termos parecem ser vistos como variantes da autoficção, pois estariam ligados
por fazerem parte de uma ‘’constelação biográfica’’(KLINGER, 2007, p. 39) em que a linha
entre factual e ficcional é tênue.
A partir dessa perspectiva, autoficção e escrevivência estariam inseridos no mesmo
rol, pois ambos tensionam verdade e ficção. Contudo, Conceição Evaristo (2020) pontua que
as obras de escrevivência fazem parte de uma “escrita de nós”, pois as obras não estão
centradas em uma vivência individual e sua preocupação maior é estabelecer com o leitor
um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) em que ele reconheça suas experiências enquanto

370
Anais

sujeito afrodescendente a partir da narrativa literária e possa desarticular estereótipos


estabelecidos sobre sua subjetividade:

Como pensar a Escrevivência em sua autonomia e em sua relação com os


modelos de escrita do eu, autoficção, escrita memorialística... ouso crer e
propor que, apesar de semelhanças com os tipos de escritas citadas, a
Escrevivência extrapola os campos de uma escrita que gira em torno de um
sujeito individualizado. Creio mesmo que o lugar nascedouro da
Escrevivência já demande outra leitura. Escrevivência surge de uma prática
literária cuja autoria é negra, feminina e pobre. Em que o agente, o sujeito da
ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente
como um exercício isolado, mas atravessado por grupos, por uma
coletividade. (EVARISTO, 2020, p. 38).

A escrevivência é um termo criado pela própria Conceição Evaristo e foi mencionado


pela primeira vez em 1995 no Seminário de Mulher e Literatura, no Brasil. Ele é baseado na
imagem da Mãe Preta, mulher que vivia como escrava dentro da casa-grande cuidando dos
filhos dos poderosos. Nesse sentido, o projeto literário de Conceição Evaristo busca
transgredir os mecanismos de subalternização e exclusão da população afrodescendente,
com foco especial nas vivências das mulheres negras.
Lívia Natália (2020) aponta que a escrevivência nasce do corpo, através da vida
vivida. Ela não relaciona essa imbricação de vida e ficção do sujeito negro como algo
narcísico, mas como uma forma de forjar sua voz própria voz e atravessar as experiências do
coletivo. Para ela, as obras escreviventes não surgem de um lugar autocentrado porque para
este sujeito a construção da sua própria imagem é mediada pela opressão e o racismo, ou
seja, a escrita elaborada por ele é uma forma de se reconstruir e no processo apresentar um
outro imaginário da população negra.
De acordo com Assunção de Maria Sousa e Silva (2020), as características da
escrevivência são a ausência de heróis aos modos da tradição literária europeia, o
protagonismo feminino, a cultura afro-brasileira eminente, a relação entre experiência
individual e coletiva, a construção semiótica da palavra, a circularidade temporal, a polifonia
de vozes, o narrador que não apenas conta, como também escuta os personagens, e o
movimento de distanciamento e aproximação da perspectiva autobiográfica.
A partir dessas considerações, podemos perceber que autoficção e escrevivência são
termos fundamentais para compreender algumas obras que estão sendo construídas nas
últimas décadas. Entretanto, apesar de ambos transitarem pelo campo das escritas
autobiográficas, parecem partir de lugares distintos e estarem posicionados de forma

371
Anais

diferente dentro do campo literário. Esses tensionamentos nos deixam algumas questões,
pois como podemos relacionar a autoficção que nasce do ambíguo, do não-saber, do jogo com
o leitor com a escrevivência que busca construir uma narrativa literária que une o sujeito de
enunciação individual com o coletivo, que busca construir uma estética que dialoga com sua
temática centrada em revelar memórias que foram negadas pela sociedade? Será que
podemos dizer que a autoficção, classificada como escrita de si, também abriga a
escrevivência, que é uma “escrita de nós”? Como essas estratégias são realizadas dentro das
obras literárias que buscam nublar a linha entre ficcional e real?
Vamos à análise de romances que realizam estes empreendimentos e observar como
as estratégias podem se assemelhar e/ou distanciar.
A chave de casa (2007) Tatiana Salem Levy conta a história de uma mulher que recebe
a chave de uma casa na cidade de Esmirna, na Turquia. O avô que saiu do país jovem para
tentar construir a vida no Brasil, deseja que a neta conheça suas raízes e também é uma
maneira de atribuir-lhe uma tarefa, retirando-a da paralisia depois da perda da mãe e em
virtude dos traumas vividos em um relacionamento abusivo.
A obra pode ser analisada a partir da autoficção, pois a autora estabelece um pacto
ambíguo com o leitor ao tornar tênue a linha entre ficção e o factual. Apesar de não utilizar a
relação onomástica, ela constrói uma narradora em primeira pessoa que não é nomeada e
passeia por muitas características biográficas da autora como a mesma origem, a idade e
profissão. Além disso, temos a escrita fragmentada, a escrita do presente que busca
reconstruir o passado, a reflexão metalinguística e o caráter "psicanalítico", pois a
personagem aborda suas dores e traumas:

Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido
expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil
por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a
Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal. (LEVY,
2007, p. 25).

Se podemos encontrar uma semelhança entre a personagem e a autora, também é


possível perceber que a autora constrói um pacto ambíguo (ALBERCA, 2007) com o leitor,
que não pode confirmar se os fatos ali narrados aconteceram ou não. Para nublar as certezas
de quem narra, a autora utiliza colchetes em que a mãe rebate as memórias da filha,
desmembrando a noção de que a memória é construída de forma fiel:

372
Anais

Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de
contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não
estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem
pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando
acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical.
[Lá vem você narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente
sofrido. No nosso caso, não foi. (…) Quando você nasceu, não estava frio nem
cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz,
você nasceu de parto normal.] (LEVY, 2007, p. 24-25).

Conhecemos as dores, os medos, as esperanças dessa jovem sem nome em busca de


uma história de família e de sua própria identidade e, ao lamentar a morte da mãe, a
narrativa se aproxima de um ritual de despedida, uma forma de viver um luto doloroso.
Nesse contexto, a narrativa busca emular um diálogo com essa mãe que não está mais
presente através do pronome pessoal ''você'':

Você escondeu o quanto pôde, evitou a palavra até onde foi possível. Você
assegurou-me de que não morreria doente. De que não morreria. Você
assegurou-se disso, agarrou-se a essa certeza que criara para si, mas também
para mim. Eu acreditei, você não morreria. [...] Não importa aonde for,
faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro
e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo
quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão
sempre coladas às suas. (LEVY, 2010, p.- 14-15).

Tatiana Salem Levy, que apresentou o romance como parte de sua tese de doutorado,
não nega que quis escrever uma autoficção. Mas será que o termo pode ser empregado
também para nomear outra obra atual, que possui incidência biográfica, escrita por Jeferson
Tenório? O avesso da pele (2020) pode ser considerado uma autoficção?
No Brasil, em narrativas de autoria negra, que exploram a proximidade das
experiências do autor ou autora com suas ficções, é mais comum utilizarmos o termo
escrevivência. Na obra O avesso da pele(2020), de Jeferson Tenório, o autor também transita
entre o factual e o ficcional. No romance, acompanhamos a história de Pedro, um jovem negro
que perdeu o pai para a violência policial e tenta passar pelo luto reconstruindo a história do
progenitor.
Apesar de um dos elementos tradicionais da definição de escrevivência ser o
protagonismo feminino, Evaristo (2020) aponta alguns autores que também escreveram
obras que realizam essa prática, como Lima Barreto e Cruz e Sousa. Em O avesso da pele
(2020) podemos observar algumas dessas características, pois a narrativa possui um tempo
circular, já que Pedro precisa refazer os passos do pai, da mãe e de outros familiares para

373
Anais

compreender a sua perda e há o esforço de reconstrução da subjetividade negra a partir do


processo de consciência do que o pai de Pedro, Henrique, passou como um sujeito negro:

Você tinha dezenove anos, mas ainda não sabia muita coisa sobre
autoestima, nem sobre se valorizar e essas coisas necessárias para manter a
sanidade, por isso você não conseguiu olhar por muito tempo nos olhos dele.
Bruno percebeu isso. Você era tudo que ele precisava. Você era uma presa
fácil. Assim, com total domínio da situação, Bruno disse, com muita
naturalidade, que não gostava de negros. Talvez ele esperasse alguma reação
sua. Mas nada aconteceu. Você permaneceu imóvel. (TENÓRIO, 2020, p. 20).

Além disso, a linguagem é utilizada de forma a tensionar os aspectos individuais e


coletivos, pois nos capítulos direcionados para as memórias do pai, o narrador alterna o foco
narrativo e utiliza o pronome “Você” que tanto pode ser o pai que sofreu com o racismo,
quanto o próprio leitor afro-descendente que passou pelas mesmas experiências:

Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca
tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela
vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que
o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as
orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos
brancos [...] (TENÓRIO, 2020, p. 88).

Diferente do que ocorre com Levy, aqui não temos nenhum dado explícito que remeta
a Tenório a não ser o fato dele e Henrique serem professores. Contudo, de acordo com Luis
Henrique Oliveira, a escrevivência constrói um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) com
o leitor através da utilização de aspectos da vivência dos autores enquanto sujeitos negros
que passaram por situações de racismo, assim como os personagens, sendo que algumas
obras, como as da própria Evaristo, realizam essa aproximação de forma mais marcada
desde a capa do livro, como no romance Becos da memória (2017) em que a fotografia na
capa do livro parece apontar para o universo narrativo dos personagens que vamos
conhecer.
Escrevivência ou autoficção? Ainda que cada um dos termos tenha um lugar de
enunciação distinto e seja visível uma disputa teórica, que também é política, os termos
apontam para um mesmo diagnóstico: uma tensão cada vez maior entre os limites que
chamamos de realidade e ficção, dentro e fora do que chamamos literatura.

374
Anais

REFERÊNCIAS

ALBERCA, Manuel. De la autoficción a la antificción. Una reflexión sobre la


autobiografia española actual. In: El yo fabulado : nuevas aproximaciones críticas a la
autoficción. CASAS, Ana (org.). ,Madrid; Iberoamericana Editorial Vervuert; 2014; p.149-
166.

BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria. Jogos, máscaras e olhares. A constituição do narrador


em Silviano Santiago. O caso de Em liberdade. In: CHAVES, Vania Pinheiro (Org.).
Literatura Brasileira sem fronteiras. Publicação comemorativa da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Lisboa: CLEPUL, 2011.

COHN, Dorrit. Transparent Minds. Narrative modes for presenting consciousness in


fiction. Princeton: Princeton University Press, 1978.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Scripta,


v. 13, n. 25, 2009, p. 17-31.

KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada

etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. Rio de Janeiro: Record, 2007.

NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2014.

NASCIMENTO, Evando. Retrato desnatural: (diários – 2004 a 2007). Rio de Janeiro:


Record, 2008.

NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org). LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico:

De Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. O romance afro-brasileiro de corte autoficcional:


“Escrevivências”em Becos da memória. In: DUARTE, Constância Lima; CÔRTES,
Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário (Org.). Escrevivências: identidade, gênero e violência
na obra de Conceição Evaristo. 2. ed. Belo Horizonte: Idea, 2018. p. 71-80.

SOUZA, Lívia Maria Natália de. Intelectuais escreviventes : enegrecendo os estudos


literários . In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (orgs.). Escrevivência: a
escrita de nós: Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina
Comunicação e Arte, 2020. p. 206-224.

TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

375
PELOS BECOS DA
MEMÓRIA:
CONTRAPONTOS ENTRE A
MORTE DO AUTOR E A
ESCREVIVÊNCIA
Caroline SERGEL (Unioeste)1
Mariana Elizabeth Ceris Burtett GUDINO (Unioeste)2
Valdeci Batista de Melo OLIVEIRA (Unioeste)3

RESUMO

Em ensaio intitulado “A morte do autor” (1988) Roland Barthes discorre sobre o prestígio
dado ao autor a partir do momento em que a visão positivista se impôs culturalmente.
Segundo Barthes, o relevo dado à figura do autor impõe um travão ao texto literário, pois
levou a crítica à pretensão de decifrar o texto, buscando no autor a explicação e sentido nele
contidos, isto é, limitar o texto a um significado último, visto que personificar o autor
conduziria a buscar em sua biografia a maior relevância da obra. Entretanto há diversas (os)
críticas (os) e escritoras (es) que possuem uma visão contrária dessa desvalorização da
figura do autor, para elas (es) a análise da autoria pode ser vista como espaço de resistência
e representatividade, de escrita e reescrita de si, de seus semelhantes e de sua história, das
vozes oriundas das maiorias sociais minimizadas. O enfoque aqui será a autoria feminina e o
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
carolsergel@hotmail.com.
2
Mestranda no programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
mecbgudino@gmail.com.
3
Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (2007). Docente do Curso de Letras da
Unioeste/Cascavel. Docente do Mestrado Profissional em Letras (Profletras/Unioeste/Cascavel) e do Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGL/Unioeste/Cascavel), nível Mestrado e Doutorado. E-mail:
valzinha.mello@hotmail.com.

376
Anais

processo de escrevivência. Para fundamentar a análise utilizaremos autoras que pesquisam


e discutem sobre as temáticas da autoria feminina (ZOLIN, 2012), a escrita de si (KLINGER,
2012), a escrevivência (EVARISTO, 2007, 2008, 2017), a mulher no campo literário brasileiro
(DALCASTAGNÈ, 2012). Entre outras vozes que possam contribuir para a análise sobre a
questão da autoria e o reconhecimento destas mulheres que escrevem para além da mirada
crítica e de esgotamento de significado das obras, numa tentativa de romper com a
neutralidade e ressignificar o tratamento dado à mulher e a figura do autor, no caso
específico, autora.

Palavras-Chave: Escrevivência; Autoria feminina; Escrita de si; Morte do autor.

ABSTRACT

In the essay entitled "The Death of the Author" (1988), Roland Barthes discusses the prestige
given to the author from the moment the positivist view was culturally imposed. According
to Barthes, the relief designated to the author's figure imposes a barrier on the literary text,
for it led the critic to the pretension of deciphering the text, seeking in the author's figure the
explanation and meaning, that is, limiting the text to an ultimate meaning, since personifying
the author would lead to seeking in his biography the greatest relevance of the work.
However, there are several critics and writers who have a contrary view to this devaluation
of the author's figure, for them the analysis of authorship can be seen as a space of resistance
and representativeness, of writing and rewriting of themselves, of their fellows and their
history, of the voices coming from the social minorities . The focus here will be on female
authorship and the writing process. To ground the analysis we will use authors who research
and discuss the themes of female authorship (ZOLIN, 2012), the writing of the self (KLINGER,
2012), the escrevivência (EVARISTO, 2007, 2008, 2017), the woman in the Brazilian literary
field (DALCASTAGNÈ, 2012). Among other voices that may contribute to the analysis on the
issue of authorship and the recognition of these women's writers, whose work seek to
transcend the critical view, in an attempt to break with neutrality and resignify the treatment
given to women and the author's figure, in this specific case, the female author.

Keywords: Escrevivência; Female authorship; Writing of self; Death of the author.

Introdução

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa
grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo

Em seu ensaio intitulado “A morte do autor”, Roland Barthes tece considerações sobre
a supervalorização dada ao autor pela episteme positivista que permeia o ideário
modernista, ao ponto de levar parte da crítica a centralizar sua análise e considerações sobre
as obras na pessoa do autor e em sua biografia buscar atribuir sentidos ao que está escrito
em seus textos, ou seja, a explicação de sua obra resultaria da história de vida do autor. Dito

377
Anais

isso, Barthes aponta a necessidade da morte do autor no sentido de desatrelar a


interpretação da obra de quem a compôs, acreditando ser limitante esse viés interpretativo.
Para Barthes, o autor deve ser expulso de sua condição de sujeito condutor da
linguagem, sendo irrelevante a existência de sua pessoa para a análise e interpretação de sua
obra literária. Nesse sentido ele está a contestar a noção de autor como está associada aos
valores da Modernidade em seu ideário individualista que via na figura do autor o exemplar
maior do sujeito soberano do discurso. Ele ressalta que é a partir da morte do autor que a
escritura se inicia

[...] desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir
diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não
seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua
origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES,
1988, p. 66).

Ao partir da premissa de que a identidade e a pessoa ‘Autor’ são fatores irrelevantes


para análise e crítica da obra, Barthes (1988) trata a escritura como um campo neutro, que
ao ser efetivado resultaria na destruição de toda voz e origem independente e desprendida
do corpo de quem escreve. Considerações relevantes para um dado momento da crítica
literária e análise importante sobre a supervalorização do sujeito que se torna indivíduo na
sociedade moderna, centralizando, como exposto anteriormente, na pessoa do autor a busca
pelo sentido final da obra, num movimento cuja consequência seria limitar as possibilidades
interpretativas, evidenciando sobremaneira o autor em detrimento de sua obra.
Tendo exposto as considerações e críticas de Barthes sobre a morte do autor,
voltamos o olhar analítico para nosso outro conceito teórico de análise: a escrevivência,
termo cunhado pela professora e escritora brasileira Conceição Evaristo e resultado de uma
junção que ela faz entre as palavras “escrever” e “viver”. Por meio dessa palavra, ela busca
significar uma escritura, e, no seu caso a escrita literária, tendo por base a vivência daquela
que escreve, e, nas formas como esse sujeito foi sendo constituído ao longo da trajetória da
sua vida social, incluindo nela seus valores, seus amores, suas dores e as marcas decorrentes
dessa vida vivida em seu corpo, forma física e concreta e nos refolhos de sua psique e afetos.
Seu ser e estar materializados na transição entre a esfera subjetiva e o mundo externo.
No prefácio de seu romance intitulado Becos da memória, Conceição Evaristo faz
algumas reflexões sobre seu processo de escrita e a escrevivência que o permeia

378
Anais

Tenho dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como
ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da
invenção. Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As
histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o
acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que
explode a invenção. Nesse sentido venho afirmando: nada que está narrado
em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da
memória é mentira. Ali busquei escrever ficção como se estivesse
escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no fundamento da
narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e dos meus. Escrever
Becos foi perseguir uma escrevivência. (2017, n. p.).

A autora aqui se apresenta como sujeito que constrói e é construído pela narrativa,
aproximando as vivências das personagens das suas próprias e reais vivências e dos seus
semelhantes, permeando os becos e os vazios da memória com a imaginação, movimento
que suscita, em quem a lê, a curiosidade interpretativa de quanto daquilo é a personagem e
de quanto é a autora projetando na primeira as suas vivências.
A morte de autor e escrevivência são os dois conceitos teóricos selecionados neste
ensaio para analisar de maneira mais específica a obra Becos da memória de Conceição
Evaristo, assim como analisar seus contrapontos e a impossibilidade da morte do autor
quando nos referimos a movimentos de conquista do espaço autoral pelas minorias sociais
e aqui, mais especificamente, a autoria feminina.

Autoria feminina, escrevivência e a morte do autor

Barthes, em seu ensaio “A morte do autor”, realiza uma crítica e análise sobre a
supervalorização da pessoa do autor observada na crítica literária após a Idade Média, num
período em que a sociedade passa a dar maior prestígio ao indivíduo, a “pessoa humana”
(BARTHES, 1988). Isto posto, a autoria passou a ser um objeto integrante da análise feita
pela crítica da época, na busca pelo sentido último e “verdadeiro” do texto e da obra. Uma
perspectiva limitadora da amplitude de significações possíveis do processo de interpretação.
O ensaísta também discorre sobre como as obras modernas buscam superar esse movimento
de associação entre o texto, a vida e história da pessoa do autor, citando autores e suas obras
como exemplos.
Isso nos leva à conclusão de que Barthes considerava a valorização do autor em
detrimento da obra um equívoco que resultava na desqualificação do texto como obra de

379
Anais

arte, pois encerrava na pessoa do autor sua explicação tornando-a utilitária, meramente
informativa.

Uma vez afastado o Autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna


totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo
de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito
à crítica, que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor
(ou as suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a
obra: encontrado o Autor, o texto está “explicado”, o crítico venceu.
(BARTHES, 1988, p. 70).

Expostas as considerações de Barthes sobre a morte do autor e o porquê ele considera


esta morte necessária para o nascimento da escritura e da obra, indagamos quais são os
efeitos e consequências do conceito de morte do autor quando o analisamos sob a
perspectiva social, no sentido de: quem são as pessoas que têm acesso ao meio autoral? As
reverberações da total desconsideração dos sujeitos que escrevem seriam as mesmas para
todos? Teriam as minorias sociais a possibilidade de acesso ao meio editorial e autoral não
fossem suas lutas por se firmarem e ocuparem espaços que historicamente lhes foram
negados? Não seria importante localizar e situar a pessoa do autor para a análise da obra?
Importantes reflexões sobre essas e outras questões são trabalhadas no conceito
escrita de si, ramificação consequente do movimento “o retorno do autor”. Para apresentar a
escrita de si, Diana Klinger questiona: "Será que a destruição ‘da identidade do corpo que
escreve’ não é menos um produto da ‘escritura’ do que de uma concepção modernista da
escritura?”. Segundo a autora “na atualidade já não é possível reduzir a categoria de autor a
uma função” uma vez que cada vez mais o autor é percebido “como produto da lógica da
cultura de massas e atua como sujeito midiático” (KLINGER, 2007, p. 33) principalmente
nesse momento de evidência da imagem na cultura cibernética voltada para as mídias, e,
tendo em vista que os autores se valem dessa exposição para autopromoção.
Diana Klinger (2007) relembra que mesmo autores que no auge do estruturalismo
criticaram a noção do autor, como Barthes e Foucault, nos seus trabalhos seguintes
buscaram aproximar autor e obra, sem cair em reducionismos, mas buscando formas de lidar
com o pessoal na escrita. De acordo com ela, "desde os anos setenta, os debates pós-
estruturalistas, feministas e pós-coloniais, devedores do pensamento de Foucault, não
cessaram de retornar à pergunta pelo lugar da fala” (p. 34).

380
Anais

Ana Cláudia Viegas (2010) em seu artigo intitulado “COM A PALAVRA, O AUTOR –
exercícios de crítica biográfica na contemporaneidade” também defende o retorno do autor
como personagem midiática ao invés do modelo reducionista onde o estudo do e sobre o
autor era usado para explicar a obra. Segundo Viegas “O próprio Barthes, ao mesmo tempo
que assinala a “morte do autor”, reconhece sua permanência “nos manuais de história
literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria
consciência dos literatos ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra.”
(VIEGAS, 2010, p. 9).
Klinger percebe que “tanto na antropologia, na filosofia, como na teoria literária, há
um movimento de retorno à problemática do sujeito, uma busca de um meio termo entre
desconstrução e hipóstase do sujeito que caracteriza muitas investigações filosóficas
contemporâneas” (2007, p. 35). Nos romances trabalhados no corpus de sua tese de
doutorado, Diana Klinger aponta que eles fazem parte de um terceiro momento da escrita de
si no contexto latino-americano que “não se apresenta sob a marca da memória da classe, do
grupo ou do clã, mas aparece como indagação de um eu que, a princípio, parece ligado ao
narcisismo midiático contemporâneo.” (p. 21). Todavia, na sequência a autora salienta que
toda contemplação de si possui elos com as relações sociais e que um relato de experiência
sempre possui, em certa medida, os traços de uma época, de uma geração e um classe. (p. 21-
22). Em sua tese, a autora sustenta a hipótese de enquadrar a escrita de si na categoria auto-
ficção que se insere no núcleo do paradoxo filosófico do século XX “entre o desejo narcisista
de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita”.
(p. 22). Para Klinger "auto-ficção é um conceito capaz de dar conta do retorno do autor
depois da crítica filosófica da noção de sujeito.” (p. 23).
Como expoentes do “retorno do autor” temos a autobiografia, a auto-ficção e a escrita
de si. Nosso foco neste trabalho é a escrita de autoria feminina, a qual, conforme aponta Lúcia
Osana Zolin (2019), contou com o feminismo crítico que se dedicou ao trabalho de resgate e
reavaliação de obras de autoria feminina, trabalho este fundamentado no

pensamento pós-estruturalista que busca desconstruir a neutralidade que


supostamente marcaria a construção do saber, revisita as categorias
instituídas da crítica literária a fim de ampliar as perspectivas de análise,
submetê-las a um outro olhar, um olhar capaz de detectar e de desnudar
particularidades a que a convenção masculina nunca esteve atenta. (ZOLIN,
2019, p. 320).

381
Anais

Pensando nisso, evidenciamos aqui a escrevivência de Conceição Evaristo, que, se


aproxima dos expoentes do “retorno do autor” ao salientar a autoria em sua constituição, ao
mesmo tempo que se distancia ao se utilizar de temáticas do cotidiano vivenciado por
sujeitos específicos na sociedade, vivência similar à da escritora, suscitando a necessidade
de localizar e questionar o porquê de tais vivências serem usadas para a constituição de tais
narrativas e os atravessamentos de gênero, classe e raça que experienciam em sua
constituição como sujeitos e autoras. Oliveira em seu artigo sobre a escrevivência em Becos
da memória identifica três elementos que são formadores da escrevivência, sendo eles:
corpo, condição e experiência.

O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro,


arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de
estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de
resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento,
a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo
com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez,
funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de
atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. (OLIVEIRA, 2009, p.
622).

Com os elementos identificados por Oliveira a escrevivência em Becos da memória,


bem como em outras obras de Conceição Evaristo, se torna mais compreensível para análise,
pois nos conduz a outras camadas de percepções quando entendemos o valor e importância
de cada elemento em sua composição.
Para além do retorno do autor, as teorias pós-estruturalistas e os estudos culturais
subverteram as análises ao evidenciarem os atravessamentos pelos quais a produção
literária é acometida. Um exemplo é a desigualdade de acesso ao meio editorial no caso
brasileiro que pode ser verificada a partir dos dados de pesquisa apresentados por Regina
Dalcastagnè que resultou no livro Literatura brasileira contemporânea: Um território
contestado:

[...] de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras,


em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram
homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a homogeneidade racial:
93,9% dos autores são brancos. Mais de 60% deles vivem no Rio de Janeiro
e em São Paulo. Quase todos estão em profissões que abarcam espaços já
privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico.
(2012, p. 7).

382
Anais

Ao localizar geográfica e socialmente a autoria de romances publicados no Brasil no


supracitado período de 15 anos, a pesquisadora deixa evidente a desigualdade de acesso ao
meio editorial por parte das mulheres e de grande parcela da sociedade que não se encaixa
no fenótipo homem branco morador dos grandes centros brasileiros. Se considerarmos as
intersecções pelas quais alguns sujeitos são atravessados como, por exemplo, a mulher
negra/advinda da periferia, enfrenta duas, três vezes mais dificuldade de conseguir acesso
ao meio editorial e até mesmo de ter sua escritura aceita e reconhecida como tal.
No ano de 1988, O rumor da língua, obra que contém o ensaio A morte do autor, recebe
uma edição traduzida lançada no Brasil. No mesmo ano, Conceição Evaristo finaliza a escrita
do romance Becos da memória que havia iniciado no ano anterior. Enquanto Barthes recebia
destaque no meio editorial brasileiro com sua crítica à demasiada valorização dada ao autor
e defendia a neutralidade da escritura e a perda da identidade a começar pela do corpo que
escreve, mulheres como Conceição Evaristo escreviam e não tinham acesso a tal meio sequer
para ter seus textos lidos quanto mais publicados, ou quando chegavam a ter acesso à
publicação, seus textos levavam anos para serem reconhecidos e acolhidos pelo campo
literário, quando não, taxados como literatura inferior. Corroborando o exposto, no prefácio
de Becos da memória, Conceição Evaristo cita o fato de seu romance ter ficado engavetado
durante vinte anos até ser aceito para publicação.
De acordo com Lívia Maria Natália de Souza (2018) muitas autoras negras exigem dos
críticos literários a utilização de novos conceitos para analisar suas obras e escrituras e que
em um movimento de legitimação de suas escrita, de suas vozes e das dos seus, bem como
de rejeição dos conceitos (im)postos criados sob uma ótica colonialista e eurocentrada, essas
autoras subvertem as estruturas da crítica ao inserirem na própria estrutura e narrativa de
seus textos tais conceitos para analisá-los, como é o caso da escrevivência de Conceição
Evaristo. Segundo Souza (2018) “a escrevivência não se contém nos limites etnocêntricos da
autobiografia, da biografia, da escrita de si nem da autoficção” (p. 39-40). Evaristo adentra o
“agenciamento do coletivo ao colocar-se no lugar de enunciação, ela articula a sua voz com
as vozes de um sem número de mulheres que são sistematicamente caladas, minoradas ou
estereotipadas” (p. 37).
Em Becos da memória, a escrevivência de Conceição Evaristo é transmitida à
personagem de Maria-Nova, menina moradora da favela que adorava colecionar duas coisas:
selos e as histórias que ouvia.

383
Anais

As tardes na favela costumavam ser amenas. Da janela de seu quarto caiado


de branco, Maria-Nova contemplava o pôr do sol. Era muito bonito. Tudo
tomava um tom avermelhado. A montanha lá longe, o mundo, a favela, os
barracos. Um sentimento estranho agitava o peito de Maria-Nova. Um dia,
não se sabia como, ela haveria de contar tudo aquilo ali. Contar histórias dela
e dos outros. Por isso ela ouvia tudo tão atentamente. Não perdia nada.
(EVARISTO, 2017, p. 31).

Menina negra que vive em uma favela, assim como a autora viveu quando menina,
Maria-Nova quer um dia contar as histórias que ali viveu e ouviu, assim como faz Conceição
ao criá-la, bem como suas outras personagens. A ânsia por um dia poder contar as histórias
é diversas vezes lembrada durante a história do romance.

Maria-Nova queria sempre histórias e mais histórias para sua coleção. Um


sentimento, às vezes, lhe vinha. Ela haveria de recontá-las um dia, ainda não
sabia como. Era muita coisa para se guardar dentro de um só peito. – Maria-
Nova quer história alegre ou triste? Ela quase sempre estava mais para a
amargura. Achava os barracos, as pessoas, a vida de todos, tudo sem motivo
algum para muita alegria. Ela pediu a história triste, a mais verdadeira.
(EVARISTO, 2017, p. 37).

Os moradores da favela, amigos, vizinhos e parentes de Maria-Nova estavam sempre


lhe contando histórias, quando ela mesma não lhes pedia que o fizessem. Eram histórias de
suas lutas por um lugar onde viver, por ter o que comer, por serem vistos pela sociedade que
os marginaliza. Histórias tristes, de perdas de sonhos, esperança e daqueles que lhes eram
importantes. São histórias que aos poucos Maria-Nova vai relacionando com a História e em
como ela foi sendo repetida, como as lutas parecem as mesmas apesar do período decorrido
dentre elas: ‘senzala-favela’.
Por meio das histórias que lhes foram contadas oralmente, histórias da memória
ancestral de seu povo e acrescidas às suas, Maria-Nova aprende muito mais sobre a História
do que aquela legitimada e reproduzida nos livros didáticos da escola. Consegue reconhecer
que a História apresentada não foi narrada pela perspectiva dos seus, que não representam
as histórias que ela ouve das pessoas que descendem dos escravos.
A personagem, ao sonhar um dia contar as histórias que vai colecionando e Conceição
criando a personagem e narrando as histórias que lhes foram contadas e outras as quais
vivenciou, ocupam um lugar que lhes foi por muito tempo negado e inacessível devido à falta
de condições materiais, sociais e econômica.

384
Anais

Quase sempre, expropriado na vida econômica e social, ao integrante do


grupo marginalizado lhe é roubada, ainda, a possibilidade de falar de si e do
mundo ao seu redor. E a literatura, amparada em seus códigos, sua tradição
e seus guardiões, querendo ou não, pode servir para referendar essa prática,
excluindo e marginalizando. Perdendo, com isso, uma pluralidade de
perspectivas que a enriqueceria. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 27).

Ao escrever com base em sua vivência como mulher negra de periferia, Conceição
Evaristo (re)escreve e ressignifica não somente suas vivências, mas também a de seus pares.
Com essa dicção coletiva (SOUZA, 2018) materializada no processo de escrevivência, insere
no campo literário a fala do sujeito subalternizado, dando-lhe nome, cor e gênero.

Conclusão

Barthes, ao analisar a questão do autor, o fez com um foco centrado na questão da


interpretação do texto e de como a supervalorização do autor resultava, por vezes, num
entrave nas possibilidades de sentidos da obra.
Contudo, ao desconsiderar o sujeito do autor e sua identidade, acaba por
desconsiderar também as desigualdades de acesso e legitimidade ao meio autoral. Ademais,
menosprezar a figura do autor na obra, seria subestimar a influência de sua identidade e
corpo (raça, gênero) na criação da escritura. Conforme observa Dalcastagnè: “O silêncio dos
marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em
nome deles” (2012, p. 26). Essas vozes se tornam representações que “não são
representativas do conjunto das perspectivas sociais” (DALCASTAGNÈ, 2012, n. p.).
Neste sentido, a escrevivência se apresenta como um ato de representatividade que se
baseia na vivência daquele que escreve, nas histórias de seu povo, de seus ancestrais.
Histórias que deixaram marcas que atravessam gerações.

Maria-Nova ouvia a história que Bondade contava e, por mais que quisesse
conter a emoção, não conseguia. Hora houve em que ele percebeu e se calou
um pouco. Calou-se também com um nó na garganta, pois sabido é que
Bondade vivia intensamente cada história que narrava, e Maria-Nova, cada
história que escutava. Ambos estão com o peito sangrando. Ele sente
remorsos de já ter contado tantas tristezas para Maria-Nova. Mas a menina
é do tipo que gosta de pôr o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela
que ela traz no peito. Na ferida que ela herdou da Mãe Joana, de Maria-Velha,
de Tio Totó, do louco Luisão da Serra, da avó mansa, que tinha todo o lado
direito do corpo esquecido, do bisavô que tinha visto os sinhôs venderem
Ayaba, a rainha. Maria-Nova, talvez, tivesse o banzo no peito. Saudades de

385
Anais

um tempo, de um lugar, de uma vida que ela nunca vivera. Entretanto o que
doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente,
mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os
miseráveis; em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim,
quase sempre, os vencidos. A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e
sangrava muito. (EVARISTO, 2017, p. 62-63).

Ao escrever suas histórias a autora fala por si mesma, pela sua própria experiência e
perspectiva como mulher negra da periferia. Das histórias, experiências e perspectivas e
existências da (o) negra (o) na vida social em um país que carrega mais de 350 anos de
escravização dos negros em sua história, regime que deixou cicatrizes profundas e feridas
ainda abertas na memória e na percepção de si de grande parcela da sociedade descendente
dos escravizados. Assim,

suas narrativas são concebidas a partir do corpo, um corpo presente que traz
a tona as memórias do passado e as lançam para o futuro em forma de
reescrita, a promessa/o por vir aqui é a reescrita da história do negro que
outrora fora escrita numa perspectiva ocidentalista e excludente que
ironicamente rechaçara o corpo negro de sua própria história. (LEITE;
NOLASCO, 2019, p. 3).

Desse modo, a escrevivência se apresenta além de um exemplo em que se pode afirmar


o “retorno do autor”, como um movimento que ressignifica e reconta as histórias de um povo
e a História de um país ao dar voz aos sujeitos subalternizados e descaracterizar estereótipos
e representações advindas da perspectiva colonizadora, permitindo a formação de novas
narrativas, subvertendo as concepções até então estabelecidas. Nesse sentido, a literatura é
um espaço de resistência para as minorias sociais conquistado há pouco, este espaço para o
qual Conceição Evaristo (2007) foge para sonhar e se insere para modificar.

REFERÊNCIAS

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Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 66-70.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado.


1 ed. Vinhedo: Editora Horizonte / Rio de Janeiro: Editora da Uerj, 2012.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 200 p.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de


minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas

386
Anais

brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-
21.

KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na


narrativa latino-americana contemporânea. 2006. 205 f. Tese (Doutorado em Literaturas
de Língua Inglesa; Literatura Brasileira; Literatura Portuguesa; Língua Portuguesa; Ling.) -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/6168. Acesso em: 27 out. 2021.

LEITE, Viviani Cavalcante de Oliveira; NOLASCO, Edgar Cézar. Conceição Evaristo:


escrevivências do corpo. RELACult: Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e
Sociedade, Foz do Iguaçu, v. 05, n. Especial, mai. 2019 e-ISSN: 2525-7870. Disponível em:
https://periodicos.claec.org/index.php/relacult/issue/view/19. Acesso em: 30 jan. 2022.

LIMA, Bruno Oliveira. II Simpósio Internacional de Letras e Linguística / XII Simpósio


Nacional de Letras e Linguística. O retorno do autor na literatura contemporânea. 2009.
(Simpósio).

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva. "Escrevivência" em Becos da memória, de Conceição


Evaristo. Revista Estudos Feministas. v. 17, n. 2. p. 621-62, mai./ago. 2009, 3. Disponível
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SOUZA, L. N. Uma reflexão sobre os discursos menores ou a escrevivência como narrativa


subalterna. Revista Crioula, [S. l.], n. 21, p. 25-43, 2018. DOI: 10.11606/issn.1981-
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VIEGAS, Ana Cláudia. COM A PALAVRA, O AUTOR: exercícios de crítica biográfica na


contemporaneidade. Cadernos de Estudos Culturais, Campo Grande, MS, v. 2, n. 4, p. 9-24,
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https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/4484. Acesso em: 25 maio
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ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia
Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 4. ed.
ampl. e rev. Maringá: Eduem, 2019. p. 319-330.

387
ORALIDADE EM CAZUZA:
MEMÓRIA CULTURAL
MARANHENSE
Valéria de Carvalho SANTOS (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2

RESUMO

A oralidade é uma das formas mais legítimas de transmissão de conhecimento e, por muito
tempo, foi a única forma existente para muitas civilizações. Em sociedades em que a escrita
não tem a primazia, é comum que a comunicação oral seja vista por seu caráter de
preservação de saberes ancestrais (VANSINA, 2010). Tendo isso em mente, mesmo obras
originalmente escritas, se falam sobre um determinado povo, podem carregar traços da
oralidade, em especial no que tange a suas tradições. É o que acontece com Cazuza (1938),
romance de Literatura Infantil do escritor Viriato Corrêa, natural de Pirapemas/MA, obra
que preserva tesouros da tradição oral existente no Maranhão rural do início do século XX,
ajudando a manter viva a memória de uma coletividade. Nessa perspectiva, esta pesquisa
investiga as marcas orais presentes na obra, em especial aspectos relevantes para a cultura
regional e, consequentemente, brasileira. Dado o exposto, este estudo considera como aporte
teórico pesquisas de autores voltados para o campo da oralidade, como Finnegan (2016),
Zumthor (1985), Hampaté Bâ (2010) e outros; além de estudiosos dedicados à questão da
memória, seja ela individual ou coletiva, como Le Goff (1990) e Halbwachs (1990). Além
disso, trata-se de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pelo Conselho Nacional de

1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas


respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Bolsista
PIBIC/CNPq. E-mail: vc190199@gmail.com
2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA); docente na Graduação da Universidade Estadual
do Maranhão –UEMA, campus Caxias e no Mestrado em Letras-PPGL-UEMA. Líder do Núcleo de
Pesquisa em Literatura Maranhense – NuPLiM/CNPq. Editora da Revista de Letras Juçara-UEMA,
campus Caxias. E-mail: sogemorais@gmail.com

388
Anais

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC/CNPq) e parte do projeto Cenas de


meninices: a produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa.

PALAVRAS-CHAVE: Cazuza. Memória. Oralidade. Cultura.

ABSTRACT

Oral communication is one of the most legitimate forms of knowledge transmission and, for
a long time, it was the only existing form for many civilizations. In societies where writing
does not have primacy, it is common that oral communication is seen for its character of
preservation of ancestral knowledge (VANSINA, 2010). Bearing this in mind, even originally
written works, if they talk about a certain people, can carry traces of orality, especially
regarding their traditions. This is what happens with Cazuza (1938), a Children's Literature
novel by the writer Viriato Corrêa, born in Pirapemas/MA, a work that preserves treasures
of the oral tradition existing in rural Maranhão at the beginning of the 20th century, helping
to keep alive the memory of a collectivity. From this perspective, this research investigates
the oral marks present in the work, especially aspects relevant to regional and, consequently,
Brazilian culture. Given the above, this study considers as theoretical contribution
researches of authors focused on the field of orality, such as Finnegan (2016), Zumthor
(1985), Hampaté Bâ (2010) and others; besides scholars dedicated to the issue of memory,
whether individual or collective, such as Le Goff (1990) and Halbwachs (1990). Moreover,
this is a scientific initiation research supported by the The National Council for Scientific and
Technological Development (PIBIC/CNPq) and part of the project Cenas de meninices: a
produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the
children's literary production of the maranhense writer Viriato Corrêa).

KEYWORDS: Cazuza. Memory. Orality. Culture.

Introdução

A obra infantil mais conhecida do escritor maranhense Viriato Corrêa, Cazuza (1938),
marcou época pelo caráter educativo e formador, e por alcançar com sucesso as crianças,
público até então pouco valorizado no Brasil no que diz respeito à produção de obras
literárias a ele destinadas. Acontece que o escritor, já um intelectual muito prolífico em sua
época, era conhecedor do grupo a quem se dirigia, uma vez que tinha contato frequente com
ele por meio da coluna que dirigia chamada Gazeta das Crianças, no jornal Gazeta de Notícias,
a qual fazia bastante sucesso entre os receptores mirins (PIAIA, 2014).
Por retratar a vida no interior do Maranhão sob a perspectiva do infante, o autor foi
capaz de discutir, no cerne de sua obra, temas cotidianos, mas de muita importância para
que as crianças fossem capazes de se perceber no mundo como agentes transformadores da
própria realidade. Cazuza (1938) apresenta ao leitor os problemas de um modelo
Tradicional de ensino e a lenta evolução desse sistema; critica a pobreza, a má distribuição

389
Anais

de renda e outros problemas socioeconômicos do Brasil; mas também resgata e preserva


parte da riqueza cultural do estado e do país através de seus relatos memorialísticos. A obra,
portanto, dispõe de variados recursos para pesquisas que não se limitam a apenas uma área
do conhecimento, podendo tematizar aspectos históricos, políticos, sociais, culturais e
outros.
Dessa forma, uma dessas áreas possíveis, que está intrinsecamente ligada à história
cultural da região de onde provém a obra, bem como do seu país e da maioria das sociedades
antigas e modernas: a oralidade. Esta, por sua vez, é considerada por alguns intelectuais
como elemento que dá origem ao conhecimento, ou “o ovo gerador dos saberes” (CALDAS,
1999, p. 8). Isso implica dizer que mesmo a escrita tem sua gênese na comunicação oral e
que, portanto, não deve ser rejeitada em função do privilégio dado à cultura grafocêntrica.
Ciente disso, esta pesquisa tem a intenção de discutir a oralidade no que diz respeito
à tradição, observando as concepções de alguns autores da área. Além disso, objetiva
verificar como esse elemento é apresentado em Cazuza, de modo que seja possível identificar
a importância de sua presença para a composição do enredo, que é tão abrangente. Sendo
uma narrativa criada a partir das vivências de um menino cuja primeira infância ocorreu em
regiões rurais do Maranhão, e em uma época em que grande parte dos brasileiros ainda não
era alfabetizada, tem-se uma valorização maior daquilo que provém da tradição oral, o que
será melhor elucidado ao longo deste texto.

2 Algumas considerações acerca da Oralidade

A oralidade é uma das faculdades mais básicas do ser humano e, portanto, anterior à
escrita. Mesmo existindo outras formas de expressão humana, é na oralidade que reside o
cerne da comunicação. Segundo afirma Walter Ong (1998, p. 15),

Ver a linguagem como um fenômeno oral parece ser inevitável e óbvio. Num
sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem importância capital.
Não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento está relacionado de
forma absolutamente especial ao som. Todos nós ouvimos dizer que uma
imagem vale mil palavras. No entanto, se essa afirmação é verdadeira, por
que ela é feita com palavras? Porque uma imagem vale mil palavras apenas
em certas condições especiais que comumente incluem um contexto de
palavras em que está situada a imagem. Onde quer que existam seres
humanos, eles têm uma linguagem, e sempre uma linguagem que existe
basicamente por ser falada e ouvida, no mundo sonoro.

390
Anais

Nessa perspectiva, a palavra falada tem importância primordial na história das


civilizações, apesar do advento da escrita, uma vez que esta é considerada um “sistema
modelar secundário” (ONG, 1998, p. 16), isto é, depende de um sistema primário, a
linguagem oral. De forma sumária, “A expressão oral pode existir – e na maioria das vezes
existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade” (ONG, 1998, p. 16).
Contudo, mesmo sendo a responsável por preservar saberes ancestrais antes que
estes pudessem ser registrados de forma escrita, não é tão valorizada quanto deveria, uma
vez que costuma ser enxergada apenas como a ausência da habilidade de ler e escrever, mas
como observa Jan Vansina (1982, p. 157), “A oralidade é uma atitude diante da realidade,
não a ausência de uma habilidade”.
Para civilizações orais como algumas da África, por exemplo, a oralidade continua
sendo de suma importância para a cultura local e até para a escrita. Nas palavras de Schipper
(2016, p. 12), “A cultura oral da África Ocidental [...] é o solo fértil no qual os trabalhos de
muitos escritores africanos contemporâneos estão firmemente enraizados”, o que também
implica dizer que a composição da produção literária desses escritores, ao ter como base as
narrativas orais de seus ancestrais, ajuda a valorizar a memória do seu povo, em vez de negá-
la.
Apesar disso, nem todas as civilizações continuaram a dar importância aos saberes
ou qualquer outro produto proveniente da tradição oral, pelo contrário, “Devido a um
preconceito há vários séculos arraigado nas mentalidades e no gosto do Ocidente, só
admitimos os produtos da arte e da língua sob forma escrita [...]” (ZUMTHOR, 1985, p.4).
Nesse sentido, ao pesquisar a influência da oralidade na literatura medieval, Paul Zumthor
(1993) afirma não ter a intenção de provar a “existência de uma oralidade medieval, mas
valorizar o fato de que a voz foi então um fator constitutivo de toda obra que, por força de
nosso uso corrente, foi denominada ‘literária’ (ZUMTHOR, 1993, p. 9). Levando isso em
consideração, é possível que diversas obras ditas “literárias” ao longo do tempo – como no
caso de textos medievais – possuam marcas de uma cultura oral em sua composição.
A oralidade, enquanto objeto de estudo, é um campo muito abrangente por não se
tratar de uma prática recente das civilizações. Em A letra e a voz: a “literatura medieval”,
Zumthor (1993) distingue três tipos de oralidade que se destacam por estarem relacionados
a situações culturais específicas. A primeira definição apontada pelo autor é a de oralidade
primária que, segundo suas palavras, “não comporta nenhum contato com a escritura. De

391
Anais

fato, ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização
gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos” (ZUMTHOR, 1993, p. 18).
Esse tipo de oralidade, na perspectiva do autor, é característica de grupos sociais que
não fazem qualquer uso da escrita. Com o avanço da escrita, contudo, se tornou cada vez mais
rara a existência de tais agrupamentos de pessoas, uma vez que atualmente, mesmo em
locais em que predomina o analfabetismo, a escrita se faz cada vez mais presente em seu
entorno.
Os outros dois tipos de oralidade mencionados por Zumthor (1993) seguem esse
raciocínio, pois têm como ponto em comum o fato de não serem isentas de escritura, mas
“coexistirem [com ela] no seio de um grupo social” (ZUMTHOR, 1993, p. 18). Segundo afirma
o autor:

Denominei-os respectivamente oralidade mista, quando a influência do


escrito permanece externa, parcial e atrasada; e a oralidade segunda, quando
se recompõe com base na escritura num meio onde esta tende a esgotar os
valores da voz, no uso e no imaginário. Invertendo o ponto de vista dir-se-ia
que a oralidade mista procede da existência de uma cultura “escrita” (no
sentido de “possuidora de uma escritura”); e a oralidade segunda, de uma
cultura “letrada” (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela
presença da escrita. (ZUMTHOR, 1993, p. 18).

Assim, no que diz respeito à existência das oralidades mista e segunda, percebe-se
que apesar de ambas estarem em contato com a escritura, distinguem-se uma da outra na
medida em que a primeira apenas pode fazer uso da escrita para determinado fim, enquanto
a segunda é influenciada pela supremacia da chamada “cultura letrada”. Nesse sentido, a
oralidade segunda seria a mais presente nas sociedades contemporâneas, que tendo como
base um sistema criado para registro da língua oral (BRANDÃO, 1997), tende a impor sua
presença em diferentes contextos de comunicação oral, “chegando a simbolizar educação,
desenvolvimento e poder” (MARCUSCHI, 2001, p. 17).
É fato que essa visão vem sofrendo alterações ao longo do tempo, mas segundo
observa A. Hampaté Bâ (2010, p. 181), “Entre as nações modernas, onde a escrita tem
precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural,
durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura”. Nessa
mesma perspectiva, Ruth Finnegan (2016) problematiza discursos que, enquanto enaltecem
a palavra escrita, tendem a associar a existência de sociedades orais a um certo primitivismo
ou falta de qualquer sabedoria ou conhecimento. Nas palavras da autora:

392
Anais

[...] todos incorremos facilmente em um hábito mental que postula que


aqueles aparentemente muito diferentes de nós necessariamente têm
menos sabedoria, menos sensibilidade para as belezas ou tragédias da vida
– e por isso devem, forçosamente, ser considerados, no mínimo, como se
pensassem de forma diferente. Esse tipo de percepção também nos torna
aptos a abraçar uma visão que coloca as sociedades não letradas e seus
habitantes no outro extremo de um grande abismo, separando-as de culturas
mais familiares que se baseiam na palavra escrita. (FINNEGAN, 2016, p. 62).

Dado o exposto, percebe-se que a falta de compreensão acerca dos grupos orais, gera
nas sociedades a tendência de menosprezar ou mesmo rejeitar suas manifestações culturais,
consideradas por Hampaté Bâ (2010) como os “tesouros do conhecimento transmitidos pela
tradição oral, tesouros que pertencem ao patrimônio cultural de toda a humanidade”
(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 181). Reconhecer a legitimidade desses tesouros trata-se de um
avanço considerável para os estudos no campo da oralidade.

3 Oralidade em Cazuza

A obra considerada como a mais importante da carreira do escritor maranhense


Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, como já foi elucidado, trata-se do romance
infantojuvenil Cazuza (1938). O livro contém um relato das memórias de infância do
personagem principal que, já adulto, as registra por escrito. Apesar de ser uma obra ficcional,
muitas das experiências que são apresentadas ao leitor podem ser associadas a vivências
reais da biografia do autor.
A narrativa tem como principais cenários três localidades pertencentes ao estado do
Maranhão. São elas o povoado de Pirapemas, a vila de Coroatá e a cidade de São Luís, locais
em que o menino Cazuza reside durante sua formação escolar. Assim, além de narrar suas
vivências no ambiente das escolas que frequentou quando criança, Cazuza também fala da
vida em comunidade, que inclui a descrição de costumes e tradições da região, os quais
podem ser consideradas bens culturais do povo maranhense e brasileiro.
Nessa perspectiva, não só a escrita foi responsável por preservar aspectos
importantes da cultura regional, mas também a oralidade. Apesar de a obra retratar a vida
de Cazuza e sua relação com o ambiente escolar, não são só essas experiências que
contribuíram para sua formação, mas também aquelas que o menino colecionou estando em

393
Anais

contato com toda a sua comunidade, a qual possuía diferentes saberes e costumes
provenientes da tradição oral.
Não é porque se trata de uma narração escrita, que todas as marcas orais tenham
desaparecido, uma vez que, segundo defende Brandão (1997),

Antes de tudo porque o texto literário, qualquer que seja, se presta a usos
diversos, na qualidade de um bem cultural que circula livremente entre os
usuários como qualquer outro. Assim, é natural que o texto literário – escrito
ou oral – fale daquilo que é importante para a cultura em que se inscreve e à
qual se destina. (BRANDÃO, 1997, p. 228).

Nessa perspectiva, mesmo optando por narrar de forma escrita, não é surpresa que
um escritor adote características da cultura em que está inserido, podendo até mesmo
colocá-la em destaque em suas obras; nesse processo, se torna natural que seus escritos
preservem marcas da linguagem e da tradição oral valorizada por um povo.
Uma das personagens identificadas na obra, que preserva o costume da “contação de
histórias” é chamada pelo protagonista de Vovó Candinha, não por ser avó legítima, mas por
representar o estereótipo de uma avó da roça. Segundo a descrição presente no romance,
“Devia ter seus setenta anos: rija, gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão
em pasta” (CORRÊA, 2002, p. 24). A chegada dessa figura no povoado de Pirapemas sempre
gerava alvoroço entre as crianças que, ansiosas, não viam a hora de sentarem-se ao seu redor
para ouvi-la narrar as belas histórias:

Não havia, realmente, mulher que tivesse maior prestígio para as crianças da
minha idade. Para nós, era um ser à parte, quase sobrenatural, que se não
confundia com as outras criaturas. É que ninguém no mundo contava melhor
histórias de fadas do que ela [...]
– Quantas histórias vovó traz? Perguntávamos.
– Um bandão delas, respondia a velha.
De dia não conseguíamos que ela nos contasse história nenhuma.
– Quem conta histórias de dia, dizia, negando-se, cria rabo como macaco.
Mal a noite começava a cair, a meninada caminhava para a casa de Luzia,
como se se dirigisse para um teatro. Após o jantar, vovó Candinha vinha
então sentar-se ao batente da porta que dava para o terreiro. [...] Sentávamo-
nos em derredor, caladinhos, de ouvido atento, como não fora tão atento o
nosso ouvido na escola. (CORRÊA, 2002, p. 24-25).

O trecho deixa evidente que a habilidade da vovó Candinha em contar histórias,


provavelmente transmitidas e ela por seus ancestrais, causava admiração nas crianças, que
a procuravam para ouvi-la sempre que possível. O momento acontecia como um ritual:

394
Anais

precisava ser à noite, todos sentados em círculo em torno da mulher, que se posicionava no
“batente da porta que dava para o terreiro”. Mesmo Cazuza e seus amigos frequentando a
escola, nenhuma história que fossem capazes de ler substituiria as sensações causadas pelas
narrações da velha senhora. Cazuza expressa tal experiência da seguinte maneira:

Ela começava:
– Era uma vez [...]
Acendiam-se os nossos olhos, batiam emocionados os nossos corações... Não
sei se é impressão de meninice, mas a verdade é que até hoje, não encontrei
ninguém que tivesse mais jeito para contar histórias infantis. Na sua boca, as
coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um tom de grandeza que
nos arrebatava; tudo era surpresa e maravilha que nos entrava de um jato
na compreensão e no entusiasmo.

O que sucede às crianças, no que diz respeito à forma como as narrativas são contadas
e como a “contadeira de histórias” (CORRÊA, 2002, p. 24) é enxergada por elas, se assemelha
muito ao fenômeno descrito por Zumthor (1993), que consiste no fato de que

[...] quando o poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto


improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe confere autoridade. O
prestígio da tradição, certamente, contribui para valorizá-lo; mas o que o
integra nessa tradição é a ação da voz. (ZUMTHOR, 1993, p. 19).

A ação da voz é, portanto, de suma importância para que a tradição oral receba o
reconhecimento devido. O efeito exercido por ela sobre as crianças que amavam ouvir as
histórias de vovó Candinha foi tão importante que foi uma das principais memórias a
fazerem parte do relato de Cazuza, criadas na infância e guardadas até a vida adulta.
Essa, contudo, não é a única memória do menino que aponta para a tradição oral.
Muito se aproximando da fala de Zumthor (1993) acerca da autoridade dada àqueles que
cantam ou recitam textos memorizados ou improvisados, Cazuza apresenta ao leitor um
costume muito característico do Nordeste brasileiro. Trata-se do “desafio”, um duelo de
versos improvisados de que participavam os cantadores de viola.
Segundo a narração de Cazuza, por ocasião da colheita de algodão de um lavrador da
região chamado João Raimundo, ocorria uma festa anual caracterizada por muita música e
dança, mas principalmente pela participação dos “cantadores” convidados para realizarem
o desafio. Para o menino Cazuza e as pessoas daquela localidade, o duelo de versos era o
momento mais almejado da festa:

395
Anais

Devia ser meia noite e eu já cochilava no regaço de minha mãe, quando o


Manduca me veio prevenir que o “desafio” não tardaria a começar. [...] Para
a gente matuta, não há nada mais importante numa festa do que o “desafio”
entre dois famosos cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que
todo mundo os ouça em silêncio. (CORRÊA, 2002, p. 57).

Fica claro, com o trecho, que além de ser uma prática admirada, era também muito
respeitada pelas pessoas da região, que faziam questão de interromper todas as outras
atividades para assistir a que se iniciaria. Nessa perspectiva, Cazuza descreve o ritual do
duelo da seguinte maneira:

Os dois cantadores sentaram-se frente a frente. Versos de cá, versos de lá, a


cruzarem-se. Um improvisaria uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e
o outro imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma
sextilha. No começo, cada um deles disse em versos, quem era, como nascera,
de onde tinha vindo. Cinco minutos depois, começaram a gabar-se dos feitos
maravilhosos.

Apesar de se tratar de um costume que agradava aos “matutos” e realizado de forma


exclusivamente oral – os versos eram improvisados na hora –, é evidente a organização com
que os versos eram compostos, uma vez que as estrofes até podiam ser classificadas como
“quadra”, “sextilha” ou “oitava”.

O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente as cordas da viola, soltou a


primeira gabolice3:
– José Firmino acredite,
Não gosto de me gabar,
Mas quando pego a viola,
Quando começo a cantar,
Saem da cova os defuntos,
Os peixes saem do mar,
Os anjos descem do céu,
E tudo vem me escutar.
O José Firmino quase não deixou que o companheiro acabasse o último verso
e cantou de viola estendida no peito:
– Eu não tenho inveja disso,
Sou valente, valentão,
Canguçu4 é meu cavalo,
Cascavel meu cinturão,
Eu engulo brasa viva,

3 Gabolice: ato de elogiar-se.

4 Canguçu: espécie de onça brasileira.

396
Anais

Pego corisco5 com a mão,


Um empurrão do meu dedo,
Bota dez morros no chão.
O povo aplaudia com palmas e gritos (CORRÊA, 2002, p. 58).

Ainda que existam textos orais que são transmitidos ao longo das gerações da forma
mais fiel possível, caracterizando uma “tradição”, também há aqueles cujo aspecto mais
marcante é a mutabilidade. Os versos lançados pelos cantadores presentes eram
improvisados, mas continham várias características também presentes em poemas escritos.
De acordo com as palavras da pesquisadora Ruth Finnegan (2016), cujo estudo está voltado
para a existência do que ela chama de “literatura oral”:

Aqui e em vários lugares, ainda que percebamos que a tradição estabelecida


e respeitada é a da escrita, a literatura oral continua sendo uma arte viva e
há constante interação entre formas orais e escritas. [...] Até agora, poucos
que consideraram este caso e outros similares negariam que tais culturas
possuem, no mínimo, algo paralelo àquilo que denominamos literatura. É
verdade que suas formas não são escritas, mas em vários outros aspectos
elas parecem comparáveis àquilo que conhecemos como literatura.
Comunidades não letradas têm, por exemplo, o que tem sido descrito como
lírica, panegírico poético, canções de amor, narrativas em prosa ou drama.
(FINNEGAN, 2016, p. 64-65).

Segundo o raciocínio da autora, é natural as culturas da oralidade e da escrita serem


consideradas dois polos opostos, mas não se pode negar que determinadas manifestações
orais possuem formas hoje consideradas “literárias”. Nessa perspectiva, mesmo
comunidades “não letradas” tinham contato como alguma forma de cultura, que não eram
resumidas a produções escritas.
Levando em consideração a obra aqui analisada, sabe-se que nem todos do povoado
de Pirapemas retratado no livro eram analfabetos, mas fica evidente ao longo da obra que a
maioria dos adultos não chegou a aprender a ler pela necessidade de sobreviver. Contudo,
não se pode considerá-los pessoas sem cultura. Um exemplo a ser citado é o próprio pai de
Cazuza, cuja importância não era julgada pelo nível de escolaridade, mas por sua sabedoria:

Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo:
autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico. A sua figura inspirava
respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal
ele chegava e a desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa,

5 Corisco: raio

397
Anais

para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão.
Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver
juntos. Ninguém tomava um remédio, sem lhe perguntar que remédio devia
tomar. Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se
acreditava ter ele cursado escolas. (CORRÊA, 2002, p. 16).

Assim, mesmo não tendo “cursado escolas” e o menino tendo definido o pai como
“inculto”, o trecho deixa claro que o homem possuía conhecimentos que não deixou de
adquirir por não ter estudado. Essa afirmação não se trata, contudo, de uma negação da
validade da cultura escrita, mas de uma ressalva acerca da importância de não menosprezar
saberes adquiridos através da tradição oral, como provavelmente sucedeu ao pai do
protagonista. De forma sumária, segundo destaca Hampaté Bâ (2010, p. 183),

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos


os aspectos. [...] Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material
não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição
oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o
entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela
é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte,
história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos
permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 183).

Levando em consideração a afirmação do pesquisador, a oralidade não é apenas um


campo de estudo a ser valorizado, mas também é amplo e permite diversas abordagens de
pesquisa. Acima de tudo, está diretamente ligada à história da humanidade, não podendo ser
estudada sem se considerar o fator humano.

4 Considerações Finais

Cazuza (1938), de Viriato Corrêa, é uma história aparentemente simplória e pouco


valorizada na atualidade por se tratar de um romance de literatura infantojuvenil. O que
muitas vezes não é levado em consideração quando se trata da narrativa, é que a forma como
foi composta oferece ao leitor um retrato muito próximo de costumes e tradições do
Maranhão do século XX, em especial das zonas rurais, localidades pouco lembradas em
outras obras maranhenses.
É possível perceber, com a leitura da obra, a presença de costumes característicos de
sociedades que primam pelo uso da oralidade, não especificamente pela ausência da palavra
escrita, mas pela legitimidade da cultura oral. Práticas como a contação de histórias e dos

398
Anais

“cantadores” de versos improvisados foram preservados pela tradição oral e perderam força
ao longo do tempo, mas continuam a existir nas sociedades atuais por sua validade como
manifestações culturais.
Dado o exposto, acredita-se que o estudo da oralidade a partir dos exemplos
apresentados pelo romance do escritor maranhense, constitui-se como algo deveras
importante, tanto para a preservação de elementos culturais do Maranhão, como para maior
valorização de manifestações e costumes que continuam a dar primazia aos tesouros
provenientes da comunicação oral. Assim, esta pesquisa ainda possui outras possibilidades
analíticas nesse campo, sendo este artigo, portanto, apenas um dos olhares possíveis sobre
o assunto.

REFERÊNCIAS

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Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 181-218.

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Sociedade, v. 2, n. 2, p. 222-231, 1997.

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1999.

CORRÊA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.

FINNEGAN, Ruth. O significado da cultura em literaturas orais. In: QUEIROZ, Sônia (Org.). A
tradição oral. Belo Horizonto: FALE/UFMG, 2016. p. 61-98.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo:
Cortez, 2001.

ONG, Walter J. Oralidade e Cultura Escrita. Tradução Enid Abreu Dobránsky. São Paulo:
Papirus,1998.

PIAIA, Victor Rabello. “E brincando se faz república...”: Viriato Corrêa, público infantil e
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SCHIPPER, Mineke. Literatura oral e oralidade escrita. In: QUEIROZ, Sônia (Org.). A tradição
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VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da
África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 157-179.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura medieval”. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

399
Anais

ZUMTHOR, Paul. A Permanência da Voz. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1985.

400
CAZUZA: PASSADO,
MEMÓRIA E
RECONSTRUÇÃO
Êmile Raquel Soares de SOUSA (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2

RESUMO

Cazuza, de Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, publicado em 1938, é considerado
um romance autobiográfico clássico da literatura infantil, que retrata a trajetória de um
menino do interior do Maranhão, cujos eventos que vivenciou muito se aproximam de
situações da vida do autor. Ao realizar uma espécie de resgate de imagens do passado do
protagonista, a obra leva o leitor a mergulhar em memórias relacionadas ao povo
maranhense que viveu entre o final do século XIX e início do século XX, seus costumes,
tradições e até sua história. Nessa perspectiva, esta pesquisa tem a intenção de estudar a
obra Cazuza considerando os aspectos concernentes à reconstrução imagética do passado,
que ocorre por meio do relato do personagem principal sobre suas memórias de infância.
Parte-se da premissa que o passado é fenômeno histórico (LE GOFF, 2003) não repetível e
que sobre ele não há que falar em construção, mas em reconstrução, com todas as
implicações que a ideia de reconstrução carrega (HALBWACHS, 1990). A narrativa focaliza-
se nos episódios da vida do autor em seus estudos primários que ocorre em Pirapemas,
Coroatá e São Luís, no Maranhão. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujo aporte teórico
conta com autores como Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), e outros. Este trabalho,

1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas


respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Bolsista
PIBIC/UEMA. E-mail: emileuema44@gmail.com
2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA); docente na Universidade Estadual do Maranhão
na Graduação–UEMA, Campus Caxias e Mestrado de Letras- PPG/Letras-UEMA. Líder do Núcleo de
Pesquisa em Literatura Maranhense – NuPLiM/CNPq. Editora da Revista de Letras Juçara-UEMA,
campus Caxias. E-mail: sogemorais@gmail.com

401
Anais

além disso, faz parte de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pela Universidade
Estadual do Maranhão (PIBIC/UEMA) e parte do projeto Cenas de meninices: a produção
literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa.

PALAVRAS-CHAVE: Cazuza. Memória. Reconstrução Imagética.

ABSTRACT

Cazuza, by Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, published in 1938, is considered a
classic autobiographical novel of children's literature, which shows the trajectory of a boy
from the interior of Maranhão, who lived events that are very close to situations in the
author's life. By performing a kind of rescue of images from the protagonist's past, the work
leads the reader to dive into memories related to the Maranhense people who lived between
the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth century, their customs,
traditions, and even their history. In this perspective, this research intends to study the work
Cazuza considering the aspects concerning the imagetic reconstruction of the past, which
occurs through the main character's account of his childhood memories. We start from the
premise that the past is a non-repeatable historical phenomenon (LE GOFF, 2003) and that
we should not talk about it in construction, but in reconstruction, with all the implications
that the idea of reconstruction carries (HALBWACHS, 1990). The narrative focuses on
episodes from the author's life in his primary studies that take place in Pirapemas, Coroatá
and São Luís, in Maranhão. This is bibliographical research, whose theoretical basis relies on
authors such as Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), and others. Moreover, this is a
scientific initiation research supported by Universidade Estadual do Maranhão
(PIBIC/UEMA) and part of the project Cenas de meninices: a produção literária infantil do
escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the children's literary production of
the maranhense writer Viriato Corrêa).

KEYWORDS: Cazuza. Memory. Imagetic Reconstruction.

INTRODUÇÃO

Viriato Corrêa, nascido na cidade de Pirapemas, no Maranhão, viveu entre os anos de


1884 e 1967. E aos dezesseis anos começou a escrever seus primeiros contos; foi, ainda
dramaturgo, jornalista, político e escritor de crônicas, tais como, Brasil dos Meus Avós
(1927), O País do Pau de Tinta (1939), e autor de livros infantojuvenis como Cazuza, obra
mais expoente de sua carreira; a narrativa se destaca por seu caráter eclético e dinâmico
oferecendo muitas possibilidades de análise. Trata-se, também, de temas vivenciados na
sociedade brasileira, a relação da infância e as vivências no ambiente escolar, a história e a
memória do povo maranhense.
Talvez por isso a obra tenha feito tanto sucesso, pois ao apresentar eventos da vida
de uma criança, também versa a respeito do que estava em pauta naquele momento da

402
Anais

história do Brasil, tais como o sentimento patriótico, a educação como forma de ascensão
social, e a formação de professores, mas também o problema da pobreza, analfabetismo e
outras questões que assolavam o país.
Contudo, a obra entrega aos leitores muito mais que críticas às condições vivenciadas
pelos personagens; traz à tona, além disso, muitos aspectos que conferem riqueza cultural à
região a qual a obra pertence, como por exemplo a valorização de tradições e costumes muito
característicos desse povo. E tudo isso, por sinal, é realizado na obra recorrendo-se a um
artifício muito utilizado na literatura: a memória.
O romance de Corrêa, portanto, é visto como de caráter memorialístico por não se
limitar a falar da história de um menino em idade escolar, mas fazê-lo a partir da voz de um
narrador que tenta não só contar, como reconstruir muitos eventos da sua época de criança,
a partir de sua atual compreensão do mundo que o cerca (BOSI, 1994; HALBWACHS, 1990).
Os registros das memórias do protagonista permitem ao leitor a identificação de imagens do
passado que foram reconstruídas por ele, uma vez que quando o assunto é passado, não se
deve falar em construção, mas em reconstrução, com todas as implicações geradas por essa
concepção (HALBWACHS, 1990).
Nessa perspectiva, este artigo tem como objetivo demonstrar como ocorre o processo
de reconstrução imagética dos acontecimentos e vivências do passado, na obra Cazuza, tendo
em vista que não há repetição no presente das relações sociais do passado. Portanto,
pretende-se apresentar alguns conceitos relativos à memória e reconstrução, para em
seguida verificar como ocorrem esses processos ao longo da narrativa do escritor
maranhense.

Memória, imagem e Reconstrução

O campo da Memória constitui-se como uma das áreas das ciências humanas mais
abrangentes no que diz respeito à pesquisa. Contudo, se é possível estabelecer um ponto de
partida para este estudo, pode-se dizer que a obra do filósofo e diplomata francês Henri
Bergson (1859-1941), Matière et Mémoire (Matéria e Memória), publicada pela primeira vez
no ano de 1896, é considerada uma das maiores referências na área. Bergson (1999)
preocupava-se especialmente em explicar a relação existente entre corpo e espírito, e nesse
processo, apresentava conceitos como de “tempo”, “memória”, “imagem”, “matéria” e outros.

403
Anais

No que diz respeito à “imagem”, o autor apresenta a noção de que o ser humano é
cercado por imagens já existentes, a saber, o mundo material, e ele próprio constitui-se como
uma delas, de modo que pode alterar os elementos que o cercam e ser afetado por eles.
Explicando isso de uma maneira mais simples, seria afirmar que a forma como esse indivíduo
percebe o mundo material a sua volta serve como um estímulo para que ele responda com
uma ação que foi antes imaginada, e só então concretizada ou não. Como conclui o filósofo,
“O que isso significa, senão que minha percepção traça precisamente no conjunto das
imagens, à maneira de uma sombra ou de um reflexo, as ações virtuais ou possíveis de meu
corpo?” (BERGSON, 1999, p. 16).
Nessa perspectiva, no que diz respeito aos processos sensoriais da memória, essa
virtualidade se faz presente no que o francês nomeia como “lembranças-imagens”, as quais,
segundo a sua concepção, não estão prontas e acabadas, mas se atualizam continuamente a
partir da percepção de estímulos exteriores ou interiores, realizada pelo sujeito. Assim, nota-
se uma relação de interdependência entre lembranças-imagens e a percepção, visto que

a percepção completa só se define e se distingue por sua coalescência com


uma imagem-lembrança que lançamos ao encontro dela. [...] [E] a própria
imagem-lembrança, reduzida ao estado de lembrança pura, permaneceria
ineficaz. Virtual, esta lembrança só pode tornar-se atual através da
percepção que a atrai. Impotente, ela retira sua vida e sua força da sensação
presente na qual se materializa. (BERGSON, 1999, p. 148).

No que concerne à primeira afirmação, entende-se toda percepção da realidade


circundante realizada por um indivíduo é permeada por uma imagem-lembrança que a torna
possível; de forma recíproca, as afirmações seguintes determinam que a força vital das
lembranças é justamente esse movimento de atração realizado pela percepção, que lhes
permite materializarem-se nas sensações presentes. Ainda segundo o autor,

[...] não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados
imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes
de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças
deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que
algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória
antigas imagens. (BERGSON, 1999, p. 30).

Com essa afirmação, segundo observa Bosi (1994), começa-se a atribuir à memória
um papel de extrema importância nos processos psicológicos descritos por Bergson (1999),
uma vez que “a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo

404
Anais

tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações” (BOSI, 1994, p. 9). Levando em
consideração tal concepção, ainda nas palavras da autora:

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes,


misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
"desloca" estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória
aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e
penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 1994, p. 9).

Nessa perspectiva, é nada menos que a memória a grande responsável por mediar
esse relacionamento entre as lembranças provenientes do passado, e as percepções do
presente, além de incumbir-se de preservá-las.
Maurice Halbwachs (1990), sendo um dentre os nomes mais proeminentes nas
pesquisas de caráter memorialístico, não se furtou ao dever de tematizar esse processo tão
complexo e, talvez por isso, muito estudado, que é a rememoração. Sem deixar de lado sua
concepção mais discutida – memória coletiva –, o sociólogo francês parte da premissa de que
desde criança qualquer indivíduo está inserido em grupos sociais diversos e que, quando
cresce e se torna adulto, tende a participar deles “de maneira mais distinta e refletida da vida
e do pensamento desses grupos dos quais fazia parte, inicialmente, sem disso aperceber-se”
(HALBWACHS, 1990, p. 71). Partindo disso, o intelectual questiona-se se há como esse
sujeito não modificar a ideia que faz do seu passado, nem permitir que as informações
reunidas reajam sobre suas lembranças. Assim, conclui:

[...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a


ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada. Certamente, que se através da memória
éramos colocados em contato diretamente com alguma de nossas antigas
impressões, a lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou
menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e
as confidências dos outros, permite-nos fazer uma idéia do que foi o nosso
passado. Mas, mesmo se é possível evocar de modo tão direto algumas
lembranças, não o é em distinguir os casos em que procedemos assim, e
aqueles onde imaginamos o que tenha acontecido. (HALBWACHS, 1990, p.
71).

Para o autor, portanto, no que diz respeito a lembranças evocadas de um passado, não
se fala em construção, mas em reconstrução, visto que ao longo da vida e principalmente
quando amadurece, o sujeito passa a enxergar aquilo que lembra, com os olhos do presente,

405
Anais

não mais com aquela sensação inicial das experiências vividas. Por outro lado, trazendo a
noção de memória coletiva, afirma que essa reconstrução não ocorre com um sujeito isolado,
mas no momento em que ele mantém contato direto com os grupos de que participa.
Nessa perspectiva, levando em consideração as imagens-lembranças descritas por
Bergson (1999) e a própria noção de reconstrução apresentada por Halbwachs (1990),
assim como a importância dada aos processos que envolvem o resgate de memórias
individuais ou coletivas, descrito por vários autores, este estudo desenvolve uma leitura
analítica da obra Cazuza (1938), de Viriato Corrêa.

Cazuza: reconstrução imagética do passado

Cazuza (1938) não foi só uma das mais importantes obras de literatura infantojuvenil
maranhense, como foi o maior sucesso editorial da carreira do autor, considerada sua obra
de maior proeminência. Por se tratar de um romance de formação, a narrativa acompanha
uma parcela da vida de Cazuza, um menino em idade escolar que vive no interior do
Maranhão entre os séculos XIX e XX, e que representa uma grande parcela da população
maranhense de sua época.
Logo de cara, a obra deixa claro que se trata da narração das memórias de alguém. Em
uma espécie de prefácio, descobrimos que “um sujeito alto, quarentão, um tanto calvo”
(CORRÊA, 2011, p. 8), foi quem escreveu suas memórias e as deixou com seu vizinho,
dizendo: “São minhas memórias dos tempos de menino. O senhor, que escreve, veja se isto
presta para alguma coisa” (CORRÊA, 2011, p. 8). Assim, ao refletirmos sobre os eventos que
o texto nos apresenta a seguir, nos deparamos com um passado coletivo por meio das
lembranças individuais de alguém que viveu e decidiu narrá-las (HALBWACHS, 1990).
Segundo Le Goff (1994, p. 477) “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”
Reconstrói-se o passado não para repeti-lo no presente, mas para ter-se a
representação de uma época; uma vez que, não há repetição no presente das relações sociais
do passado. Através dos registros é possível ter acesso a um dado momento da história. De
acordo com Bosi (1979), esse movimento de rememoração não se trata apenas de trazer o
passado de volta ao presente, mas de percebê-lo relacionado a experiências e percepções
imediatas. Desse modo, não é mais uma “lembrança-pura”, como nomearia Bergson (1999),

406
Anais

mas uma “imagem-lembrança”, que só passa a existir quando evocada por um evento
presente (BOSI, 1994).
Na obra, encontramos vários exemplos de lembranças que Cazuza resgata e
reconstrói, e que demonstram a forma como o passado se encontra com o presente, causando
ainda, sensações. Uma delas é descrita quando o narrador conta como transcorreu sua
chegada a São Luís. Tudo ali, para uma criança que viveu em um povoado e uma vila, era
novidade; um relógio de brinquedo ou até mesmo uma farmácia fazia com que ele ficasse
encantado pela cidade. Essa memória da simplicidade de sua meninice, e de como as coisas
simples fascinavam as crianças, tal como as brincadeiras que marcaram sua época, fazem
com que ele conclua, associando o seu passado e o presente, o quanto as coisas mudaram
radicalmente:

Foi num dia de sol, pela manhã, que chegamos a São Luís. [...]Até hoje não
pude fixar, com exatidão, a lembrança daquele dia. Parece que ainda estou
atordoado. O mundo, acreditem, mudou inteiramente. O progresso tornou a
vida tão veloz, que as crianças da atualidade não têm mais meninice. Aos seis
anos já viram e já gozaram tudo, aos dez estão enfastiadas e velhas. No meu
tempo, qualquer coisa era novidade. [...] Eu, que vinha da roça, e que quase
nada tinha visto, estava com a alma preparada para todas as emoções.
(CORRÊA, 2011, p. 158).

Percebe-se, a partir do trecho, em especial quando o narrador compara seu passado


com o presente, que há um certo tom saudosista, uma vez que ele analisa e critica o que o
mundo se tornou, tendo como referência a realidade que fora sua um dia. Nesse sentido, “O
passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente”, como afirma Bosi (1994, p.
11).
Ainda nessa perspectiva, ao falar do sítio de sua tia Mariquinhas, Cazuza relata que
sempre que seus familiares estavam distraídos ele corria até o sítio e que naquele lugar a
vida parecia ser mais bela do que em outra parte qualquer (CORRÊA, 2011). Levando em
consideração esse e o relato anterior a ele, é muito comum se pensar que o passado é sempre
melhor que o presente. Sendo ele bom ou ruim, o que parece, na realidade, é que todos
idealizam o passado. De acordo com Virginia Woolf (1925, apud MESQUITA, 2018, p. 238),
“O passado é belo porque ninguém se dá conta de uma emoção no momento. Ela cresce
depois, e assim não sentimos emoções completas a respeito do presente, apenas do passado.”
Dentre tantas outras imagens que o protagonista evoca em sua narração, as memórias
relacionadas à escola são assuntos recorrentes na obra. A partir delas, percebe-se que o

407
Anais

sentimento que aquelas experiências provocaram no Cazuza criança continuaram a afetá-lo,


mesmo adulto. Agora, contudo, conhecedor do caráter absurdo de muitos eventos de sua
infância relativos ao ambiente escolar, o narrador analisa tais acontecimentos com olhar
atualizado, de quem possui informações adicionais coletadas ao longo dos anos, e os narra
com um tom mais crítico do que saudosista. É o que pode ser notado no trecho a seguir, em
que os relatos demonstram como funcionavam algumas práticas pedagógicas da época no
interior do Maranhão e as denuncia:

A sala feia, o ar de tristeza, o ar de prisão, a cara feroz do professor, os


castigos pelas menores faltas e pelos menores descuidos tinham-me deixado
um grande desgosto na alma. [...] O ‘estudo’ era gritado, berrado. Cantava-se
a lição o mais alto que se podia, numa toada enfadonha. [...] Nada, nada que
despertasse o gosto pelo estudo. Ao contrário. Tudo era motivo para castigo:
uma lição mal sabida, uma escrita mal feita, uma palavra errada, um
cochicho, um ar distraído, até um sorriso. (CORRÊA, 2011, p. 38-39).

É evidente, segundo o relato, que havia muito descaso com a educação primária da
época, a qual comportava um ensino ineficiente para aquelas crianças que precisavam
submeter-se a ele. A esse sentimento det desgosto pelas práticas pedagógicas, nota-se uma
associação às lembranças sobre o próprio ambiente em que elas eram desenvolvidas.
Segundo Cazuza,
A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha,
caiada por fora. Dentro, unicamente um grande salão, com casas de
marimbondos no teto, o chão batido, sem tijolo. [...] as paredes nuas, cor de
barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista. [...] As paredes furadas,
pareciam respiradouros de formigueiro [...] (CORRÊA, 2011, p. 30, 39).

Quando analisamos esse fragmento do texto, assim como o anterior a ele, notamos
que é muito possível essas imagens-lembrança terem sido evocadas, não por um evento
particular do presente, mas pelas próprias mudanças que se operaram no mundo ao longo
do tempo, tanto no que tange às condições de vida do personagem, como na completa
distinção existente entre os ambientes em que viveu, e os que provavelmente tem como
presente. Segundo aponta Bergson (1999, p. 84), às vezes

a operação prática e consequentemente ordinária da memória, a utilização


da experiência passada para a ação presente, o reconhecimento, enfim, [...]
implicará um trabalho do espírito, que irá buscar no passado, para dirigi-las
ao presente, as representações mais capazes de se inserirem na situação
atual. (BERGSON, 1999, p. 84).

408
Anais

O narrador de Cazuza (1938), portanto, parece evocar essas lembranças tendo como
estímulo exterior unicamente a sua percepção do quanto o mundo, em seu presente, se
distingue do que era na sua infância, exercício de reconstrução imagética do passado
realizado por todo ser humano ao menos uma vez na vida. “O momento de recordação, é
então o de reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus de
rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta para a narração”
(RICOEUR, 2007, p. 57).
Se considerarmos esse reconhecimento segundo a concepção de Ricoeur (2007),
entendemos que um dos principais elementos percebidos pelo protagonista para evocar sua
infância foi o ambiente que o cercava, os quais avaliava sempre a partir dos lugares da
memória.

Assim, as “coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não


é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar.
É de fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos “lugares de
memória”, antes que eles se tornem uma referência para o conhecimento
histórico. Esses lugares de memória funcionam principalmente à maneira
dos reminders, dos indícios de recordação, ao oferecerem alternadamente
um apoio à memória que falha, uma luta na luta contra o esquecimento, até
mesmo uma suplementação tácita da memória morta. (RICOEUR, 2007, p.
58).

De acordo com essa compreensão, os “lugares de memória” muitas vezes são os


responsáveis por manter vivas algumas recordações do passado, de certa forma lutando
contra o esquecimento, a perda dessas memórias. Portanto, assim como a escola, há na obra
outros ambientes que são portadores de momentos e, portanto, de lembranças. O próprio
povoado onde o menino passa uma parte de sua infância, é um desses exemplos: “Uma
ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e
nada mais. [...] Vila pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas
formavam uma só família.” (CORRÊA, 2011, p. 17).
O narrador descreve, ainda, o sítio de sua tia, sobre o qual afirma:

Era uma casa pequenininha, caiadinha, muito limpa, num terreiro alvo, bem
varrido, com laranjeiras plantadas em derredor. Mas a doidice da meninada
era o riacho que ficava atrás da casa. Não vi, no mundo, cantinho mais suave
e mais doce e que tanto bem me fizesse a alma. Eu ali ficava horas inteiras,
saboreando, sem saber, a poesia simples daquele pedaço amável da
natureza. (CORRÊA, 2011, p. 23).

409
Anais

Nota-se que esses e outros locais são para Cazuza lugares de pertencimento, por ter
partilhado coletivamente episódios vividos e contados por ele com outras pessoas e associá-
los a diferentes sensações. É pensando por esse ângulo que, para Halbwachs, a memória
geralmente é uma reconstrução a partir de uma interação social:

Para nós, ao contrário, não subsistem, em galeria subterrânea de nosso


pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade, onde estão
todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso
passado, as quais nós representamos de modo incompleto ou indistinto, ou
que, até mesmo, cremos que provêm completamente de nossa memória.
(HALBWACHS, 1990, p. 77).

As lembranças do personagem principal são marcadas por esse traço, mesmo sendo
lembranças que pertencem ao Cazuza, ele melhor recorda do seu passado ao recorrer
memórias que foram marcadas pelo que foi vivido em comum com os outros, pois de acordo
com Halbwachs (1990), a memória individual está estritamente conectada aos contextos
sociais em que se está inserido, isto é, “Sem dúvida, reconstruímos, mas essa reconstrução
se opera segundo linhas já demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas
lembranças dos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 77).
Ao visitar o sítio, o que acontecia com Cazuza dava-se também com os outros meninos,
seduzidos pelos balanços, frutas e bichinhos daquele local, os quais provavelmente também
guardaram com carinho as lembranças associadas ao ambiente. Em dado momento, o
narrador praticamente nos pinta uma imagem-lembrança, permeada por uma aura poética,
que até estimula a imaginação do leitor e chega a aguçar os sentidos:

Gravou-se-me na vista, para toda a vida, o quadro maravilhoso. O riacho, que


vinha de longe, torcendo-se pelas profundezas da mata, ali se alargava
preguiçosamente, como que para repousar as águas cansadas de rolar entre
as pedras. (CORRÊA, 2011, p. 23).

Esse trecho demonstra que as lembranças do personagem ocupam um lugar de afeto


em sua memória, e indica que alguns eventos vividos por Cazuza na infância, assim como a
visão de mundo possuía quando criança, estão sendo resgatados na ocasião em que o autor
recorda, fazendo com que o passado seja reconstruído ao passo que a história é narrada. Os
atos de rememoração presentes na obra sobre as experiências vividas pelo personagem, são
também realizados pelo autor que, segundo depoimentos, narrou eventos de sua própria
infância e descreveu ambientes e experiências existentes em sua própria memória que,

410
Anais

talvez por isso, geraram reconhecimento em muitos maranhenses do século XX e até dos dias
atuais. De acordo com suas palavras,

Pensei, então, em fazer um livro que inspirasse amor ao Brasil e fosse lido
com agrado pelas crianças. Levei mais de dez anos pensando nisto. Fazia e
desafiz planos. Afinal, depois de várias tentativas, resolvi fazer um livro que
saísse de dentro de mim, fosse eu mesmo...E assim, surgiu o ‘Cazuza’, que é a
minha vida de criança, com meus companheiros, as nossas brigas, as nossas
festas...Todas as figuras do livro viveram comigo – arremata o escritor
maranhense: o livro fez sucesso porque escrevi com sinceridade.” [...]
(CORRÊA, 1960, apud FERNANDES, 2009, p. 85).

Viriato decide escrever o livro Cazuza retratando as situações que ele vivenciou na
infância e as lembranças que tomam formas de imagens, guardadas em sua memória, vem à
tona. Muitas recordações existentes na obra, como quando declara que “No interior do Brasil
a hospitalidade é um dever sagrado, que se cumpre religiosamente” (CORRÊA, 2011, p.18),
contribuem para a valorização dos hábitos e costumes de uma sociedade, preservando a
identidade de um povo, através do sentimento de pertencimento. É parte do que defende Le
Goff (2013, p. 435), quando diz que “A memória é um elemento essencial do que se costuma
chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 2013, p.435).
Em síntese, verifica-se que os textos teóricos que abarcam o tema em questão dão um
embasamento essencial a essa pesquisa. No entanto, muito ainda deve ser observado na
obra, principalmente no que diz respeito aos relatos memorialísticos que nos pintam um
quadro histórico a respeito do Maranhão e do Brasil daquela época. Por outro lado, a partir
dos estudos realizados, já foi possível observar a forma como acontecem alguns dos
processos de rememoração e reconstrução imagética do passado descritos por Bergson
(1999), Halbwachs (1990), Bosi (1994), Ricoeur (2007) e outros, e como eles são
importantes para a compreensão do valor social e literário da obra que temos como objeto
de estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização de algumas leituras relacionadas ao romance de Viriato Corrêa aponta


para o desenrolar do processo de reconstrução, sendo possível observar, por exemplo, que
Cazuza reconstrói algumas imagens de sua meninice com um pensamento ideal, como se

411
Anais

felicidade só existisse no passado; mas também reconhece algumas delas como inaceitáveis,
visto que seu presente fez com que adotasse essa visão com maior convicção, como
percebemos na crítica que faz ao sistema educacional de sua época.
Cazuza, como todo ser humano, estava sempre envolvido em algum grupo social, a
escola, a família, os amigos com quem conviveu na sua infância. As imagens foram sendo
construídas pelas experiências de um menino no seu convívio com outros indivíduos; ele
conta sobre pessoas que tiveram alguma importância e que ficaram registrados em sua
memória apesar do tempo decorrido. As descrições memorialísticas do protagonista são
carregadas de afeições com o passado, as pessoas, os lugares, a cultura, além dos
ensinamentos recebidos que foram conservados e são transmitidos aos leitores.
Ademais, Viriato Corrêa consegue tratar de temas necessários como a educação,
compondo a narrativa pela rememoração de muitos fragmentos da sua infância, ainda que
não sejam lembranças exatas dos acontecimentos. Trata-se, portanto, de uma história
composta por alguém que se dedicou ao ato de recordar, de um narrador que através da
memória realizou a façanha de dar aos leitores, acesso ao seu mundo de outrora.

REFÊRENCIAS

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Tradução Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos – 3. Ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.

CORRÊA, V. Cazuza. 43. ed. São Paulo: IBEP, 2011.

FERNANDES, J. R. O. O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar


para o ensino de história (1934-1961). Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em
Educação. Área de concentração: História da Educação e Historiografia) – Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo. 2009.

HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Editora Revista dos Tribunais LTDA: São
Paulo, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 7. ed. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2013.

LE GOFF, Jaques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

MESQUITA, A. C. C. O diário de Tavistock: Virginia Woolf e a busca pela literatura. Tese de


Doutorado. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. (DTLLC). Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), 2018.

412
Anais

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François, et al.


Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

413
ESCRITOS URBANOS E
LITERATURA: A
MEMÓRIA FEMININA
RETRATADA EM
QUARTO DE DESPEJO
Tainá Dias de CASTRO (UFV)1
Hugo Martins GOMES (UFV)2

RESUMO

Este trabalho tem como intuito estudar as subjetividades e o contexto sociopolítico urbano
na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, para expor as fragilidades da escrita
feminina em espaços marginais, bem como a realidade sociopolítica urbana da década de
1960. Como objetivos este estudo visa identificar as condições necessárias à autora para que
esta pudesse produzir sua obra, além de analisar as violências de gênero e raciais relatadas
pela autora em seu diário. Ademais, objetivamos também apontar como a dinâmica da cidade
desemboca no contexto retratado pela autora, bem como a forma como as cidades produzem
desigualdades e moldam a política e a sociedade de quem a vivencia. Como metodologia para
este estudo foi utilizado um arcabouço teórico pautado no estudo da crítica literária
feminista, estudos de gênero e relações étnico raciais, além das teorias sobre cidades que
conversem diretamente com o contexto retratado por Carolina Maria de Jesus, identificando
fenômenos urbanos que se adequem à narrativa da autora. Assim, pretendemos realizar,
para além de uma análise sobre o perfil da mulher que narra o livro, uma análise sobre a

1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista CAPES, CPF: 344.405.328-29
(taina.castro@ufv.br)
2 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa, CPF: 161.972.317-43
(hugo.martins@ufv.br)

414
Anais

escrita feminina na literatura marginal e o papel dos espaços urbanos no desenvolvimento


das subjetividades encontradas na obra.

Palavras-chave: Espaços urbanos; escrita feminina; Carolina Maria de Jesus; Quarto de


Despejo

ABSTRACT

This work aimed to study the subjectivities and the urban social political context in the book
Quarto de Despejo from Carolina Maria de Jesus, to expose the weaknesses of the women’s
writing in marginal spaces, as well as the urban social political reality of the 60’s. As
objectives this study aims to identify the necessary conditions for the author so that she
could produce her work, in addition to analyzing the gender and racial violences reported by
the author in her diary. In addition we aim to show how the dynamics of the leads to the
context portrayed by the author, as well as the way the cities produce inequalities and shape
the politics and the society of those who experiences it. As a methodology for this study, a
theorical framework was used based on the feminist critical, gender studies and ethnic racial
relations, beyond the theories of the cities that talk directly with the Carolina’s context,
identifying urban phenomenal that fit the author’s narrative. Thus, we intend to carry out, in
addition to an analysis of the profile of the woman who narrates the book, an analysis of
women's writing in marginal literature and the role of urban spaces in the development of
subjectivities found in the work.

Keywords: Urban spaces; women’s writing; Carolina Maria de Jesus; Quarto de Despejo.

Introdução

A literatura por muitos anos tem sido fonte de prazer e crítica a determinados
assuntos, contextos e sociedades, refletindo realidades de diversas épocas e grupos sociais.
A escrita de Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo (2014) nos exemplifica
como a realidade da mulher negra, em um espaço urbano tido como despejo da cidade, pode
servir como exposição de um regime político que apenas privilegia uma camada social.
Por meio de descrições sobre seu dia a dia, a autora demonstra como a sua vontade
de se tornar escritora acaba por se tornar cada dia mais difícil em virtude do local onde se
encontra e por falta de recursos e meios para escrever, reafirmando o argumento de Virgínia
Woolf em Um Quarto Todo Seu (2014), a qual afirma que “uma mulher precisa ter dinheiro e
um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” (p. 12). Teóricas como Sandra
Gilbert e Susan Gubar trilharam caminhos para se repensar classificações que marginalizam
obras de escritoras (2000, p. 8). No entanto, na tentativa de construir uma tradição literária
feminina, obras foram classificadas sob um mesmo prisma e diversas obras de autoria

415
Anais

feminina foram excluídas. O que nos leva a questionar os lugares dos cânones literários
dominantes e quais ficam como subalternos (Spivak, 2014), além da própria instabilidade
presente nas categorias anlíticas do feminismo (Harding, )
Conforme percebemos pelos relatos de Jesus, além da falta de espaço físico e
condições financeiras para escrever, havia também o preconceito racial e de gênero, algo
histórico no Brasil, como bem demonstra Lélia Gonzalez (2020) ao nos apresentar dados
históricos sobre a trajetória da mulher negra em nosso país, além de sua função no mercado
de trabalho. Nos relatos descritos em seu diário, percebemos como o espaço urbano interfere
diretamente na escrita e na atuação profissional de Carolina Maria de Jesus, pois a favela,
vista como o quarto de despejo da cidade, se encontrava em um contexto de precariedade
espacial e social. O espaço urbano aqui aparece como um personagem subjetivo em suas
obras, nos demonstrando como a polarização entre centro e periferia demarcam um ponto
de importância na carreira de Carolina.
Ademais, o presente trabalho tem como objetivo destacar o contexto urbano ao qual
Carolina Maria de Jesus está inserida na obra em questão, evidenciando como os seus relatos
revelam processos de espoliação urbana (KOWARICK, 1979) e a existência da ideia de Não-
Cidade (MARICATO, 2013). Destacaremos também a cidade escassa (REZENDE DE
CARVALHO, 1995) nos relatos de Quarto de Despejo quando Carolina Maria de Jesus escreve
sobre o cotidiano da favela e a relação com a política (ou falta dela), à luz daquilo que a favela
é em seu contexto de formação e a forma como a autora a relata. Assim, objetiva-se, dessa
forma, mostrar como a cidade produz a realidade vivenciada por Carolina Maria de Jesus,
tanto socialmente quanto politicamente.
Com isso, o artigo se divide em 1) crítica literária sob ótica das violências de gênero e
raciais e suas relações com a escrita de Carolina Maria de Jesus; 2) a sua escrita vinculada
aos processos e dinâmicas da cidade e a produção do contexto urbano vinculada aos relatos
da autora e 3) as considerações sobre as análises realizadas por esse trabalho.

Carolina e sua escrita de denúncia

Quarto de Despejo (2014) é uma obra, escrita em forma de diário, portanto, em


primeira pessoa, na qual Carolina Maria de Jesus narra suas vivências durante os anos em
que residia na favela do Canindé em São Paulo. Carolina demonstra como ao longo de sua

416
Anais

vida o sonho de ser escritora e de, por meio de sua escrita, explanar urgências da realidade
das pessoas que vivem em condições marginais.

O meu sonho era andar limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa
casa confortável, mas não é possível. eu não estou descontente com a
profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato
papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (JESUS, 2014, p. 19).

Mediante o exposto pela autora percebemos que as condições sociais e espaciais não
são propícias para que ela tenha o mínimo de assistência para cuidar de seus filhos, ou
mesmo para manter a higiene básica do dia a dia. Virginia Woolf sempre se posicionou em
relação ao lugar das mulheres na literatura, como bem demonstra em seu livro Um Teto Todo
Seu (2014). No capítulo introdutório desta obra somos apresentados ao tema principal de
uma palestra, ministrada em uma universidade britânica, bem como a alguns dados e
devaneios da autora, desta forma, o tema mulheres na ficção acaba por perpassar a diferença
nas escritas entre homens e mulheres e o tema torna-se mais amplo do que o título inicial da
palestra. Assim, a autora expressa sua opinião, sobre mulheres na ficção, nas seguintes
linhas: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser
escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema da
verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.” (WOOLF, p. 12, 2014),
no caso de Jesus, as faltas de condições econômicas, o racismo estrutural presente na
sociedade, o seu lugar de residência e o fato de ser uma mulher, impossibilitavam que ela
seguisse apenas com a carreira literária e proporcionam críticas, por parte dos próprios
moradores do Canindé, por Carolina sempre estar lendo e escrevendo.
Mediante esta nova abordagem da mulher na literatura, a representação feminina
passa a ser analisada por outra ótica, tentando, assim, descrever qual o papel da mulher na
sociedade, qual posição e acima de tudo qual seu status e identidade. Assim, começam
trabalhos que abordam uma releitura que não simplifique o conceito de identificação e que
não apague a construção da mulher enquanto ser humano pertencente a uma sociedade real
e não apenas a um universo feminino, assim “uma crítica feminista, deve rejeitar ‘a hipótese
de uma leitora mulher’ e promover em seu lugar a ‘leitora feminina real’” (de Lauretis, p. 234,
2019). “Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que
quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. eu
até gosto porque não preciso parar para conversar”. (JESUS, 2014, p. ). Carolina era criticada

417
Anais

por escrever livros na favela e sobre a favela, principalmente por parte das mulheres, as
quais eram submetidas a violências, na maioria das vezes, e não gostaria de ser expostas.
Todavia, uma das maiores críticas que recebia era por querer ser uma escritora sendo
mulher, negra e favelada.

... O barraco da Aparecida é o ponto para reunir os pinguços. Beberam e


depois brigaram. O Lalau disse que eu ponho várias pessoas no jornal, mas
ele eu não ponho.
-Se você me pôr no jornal eu te quebro toda, vagabunda! Esta negra precisa
sair daqui da favela. (JESUS, 2014, p. 153).

Pela passagem acima descrita, percebemos como as denúncias feitas por Carolina,
sejam pelas condições sociais ou por violências ocorridas na favela, ela era criticada pelos
próprios moradores por expor suas vidas. Além disso, estes sempre mencionavam que Jesus
era uma “negra soberba”, pois eles consideravam que a autora se sentia superior por saber
ler e escrever.
Além dos moradores da favela, o julgamento que recaia em cima de Carolina muitas
vezes se dava por sua cor. “Agora o lixo vai falar” (GONZÁLEZ, 2020, P. 70), esta frase exibe
bem o que Carolina passava dentro das cidades e por se propor a expor as circunstâncias nas
quais se encontrava, além de expor, também, as condições que as mulheres negras possuiam
dentro da ordem espacial das favelas.

Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-


me:
- É uma pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu
até acho o cabelo de negro mais bonito que o cabelo de branco. Porque o
cabelo de preto onde põe, fica. E o cabelo de branco, é só dar um movimento
na cabeça que ele já sai do lugar. E indisciplinado. Se é que existe
reincarnarções, eu quero voltar sempre preta. (JESUS, 2014, p. 58).

A relação que ocorre dentro da cidade de São Paulo, mais precisamente na favela do
Canindé, demonstra como se dá a ordem social, ou seja, há uma forma de dominação na qual
a cidade, as casas de alvenaria exercem forte influência nas pessoas das comunidades. Como
Spivak (2014) menciona: fica exposto que existe na sociedade os dominantes e os
subalternos. “...Os visinhos da alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus
olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem
nojo da pobresa. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres”. (JESUS, 2014, p. 49),

418
Anais

percebe-se pelo exposto da autora que a relação entre dominação da cidade se dava em
diversas instâncias, inclusive nas políticas públicas e desigualdade social, apresentando
problemas como a exclusão e a espoliação.

Carolina Maria de Jesus e a cidade: exclusão e espoliações

A obra de Carolina Maria de Jesus, para além do que foi exposto acima, são relatos “de
dentro” de quem vive um modelo de cidade que escancara desigualdades das mais diversas
formas, desde a retratação das pessoas da favela até a rotina extenuante em busca de
sobrevivência na modalidade da subsistência. A fome, miséria, frustrações, vontade de sair
da favela e o cansaço (tanto de sua parte quanto dos moradores da favela) são recorrentes
em quase todos os dias em que a autora escreve seu diário. Conforme coloca Jesus (2014)
“Hoje vários homens não foram trabalhar. Coisa de segundas-feiras. Parece que eles já estão
cançados de trabalhar.” (p. 69)
O que é escrito é reflexo de diversos processos, sendo um deles o de espoliação urbana
(KOWARICK, 1979) na medida em que a classe trabalhadora é privada do uso dos direitos
que a cidade pode oferecer. Esse tipo de expulsão acontece na forma da pouca oferta de
transportes coletivos, por especulação imobiliária que faz com que as classes
subalternizadas procurem espaços afastados desses pontos e, portanto, são capitaneadas
pelo Estado e sua (não) oferta de políticas públicas.
A metáfora de Carolina Maria de Jesus sobre como ela observa a favela, sendo o
Quarto de Despejo da cidade, é a verbalização dos processos descritos acima. Essa metáfora,
ademais, evidencia a existência de uma Não-Cidade (MARICATO, 2013), uma vez que a favela
do Canindé é uma antítese do projeto de cidade liberal e democrática que as classes
dirigentes tanto reforçaram na época (Governo Juscelino Kubitschek, por exemplo, adotava
o lema “50 anos em 5” e ao falar de desenvolvimento da nação). Sendo um terreno esquecido
pelo poder público e formado em consequência das desigualdades oriundas do capital
especulativo imobiliário, Carolina Maria de Jesus tem essa percepção em suas idas para a
cidade:

O que deixou-me preocupada foi o predio ter 82 andar. Ainda não li que São
Paulo tem predio tão elevado assim. Depois pensei: eu não saio do quarto de
despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita?” (JESUS, 2014, p.
71).

419
Anais

Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho


sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da
favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens
há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a
cidade mais afamada da America do Sul está enferma. Com as suas ulceras.
As favelas. (JESUS, 2014, p. 76).

A percepção da escritora coloca em xeque a cidade como um conceito político que


deveria ser receptiva às diferenças e, do ponto de vista liberal, um lugar onde a igualdade
merece um lugar privilegiado ao pensar o caráter público desse espaço. Colocando a favela
como as úlceras da cidade, de forma patológica, a dimensão de cidadania se converte em algo
residual, e a democracia descrita acima se converte em uma forma de autoritarismo a partir
da noção de “cidade escassa” (REZENDE DE CARVALHO, 1995). A escassez dos recursos da
cidade é intensificada em espaços já negligenciados. Carolina Maria de Jesus faz menções à
escassez dos recursos da cidade em cidadania e acesso à direitos básicos.
Segundo Jesus (2014), “A Vera ainda está doente. Ela disse-me que foi a lavagem de
alho que eu dei-lhe que lhe fez mal. Mas aqui na favela varias crianças está atacadas com
vermes.” (p.59); “O José Carlos não quer ir na escola porque está fazendo frio e ele não tem
sapato. Mas hoje é dia de exame e ele foi. Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando.
Mas o que hei de fazer?” (p. 59); “E eu quando ouvi o vai não vai, já fiquei pensando numa
briga, porque aqui na favela tudo inicia bem e termina com brigas.” (p. 68) Esses relatos
revelam como os diversos serviços que deveriam ser oferecidos para a cidade de forma
democrática e, ao menos na teoria, igualitária, faltam na favela de forma sistemática e
incessante. Se existem narrativas de senso comum de que a saúde pública é um descaso geral,
que a educação não é um direito acessível para todos/as e que as ruas são sujas, para as
pessoas da favela isso se maximiza a níveis desumanos. É, portanto, a partir disso que vemos
a escassez da cidade na escrita de Carolina, tanto no seu conceito político que se esvazia
perante a realidade da favela quanto a escassez do acesso de políticas públicas que atendam
essa camada da sociedade.
Além disso, é espaço de violência tanto entre os moradores da favela como por parte
do Estado, não só na esfera simbólica no que se refere à exclusão, mas também ao falar da
tutela da instituição e do tratamento do mesmo com as pessoas da favela. Segundo a autora,
“O que observei na favela e não está certo é isso: Taubaté. É o predileto de algumas mulheres

420
Anais

aqui da favela. Ele passa as noites aqui. O soldado é turbulento. Que bom se o tenente
retirasse este soldado da favela. Qualquer coisa pra ele, é tiro. Já feriu dois na favela.” (p.68)
A escrita de Carolina Maria de Jesus possui um tom de melancolia para com essa
cidade que é tão dura e autoritária com trabalhadores/as, mulheres, negros/as e suas
intersecções. A escritora em Quarto de Despejo deixa um legado e um registro dos processos
urbanos aqui analisados: mostra a espoliação urbana dos/as subalternizados/as para a Não-
Cidade, o que desencadeia na escassez da cidade enquanto espaço democrático e direitos.

Conclusão

A partir do que foi exposto neste trabalho, é notável que as condições retratadas em
Quarto de Despejo, tanto a questão identitária quanto a condição material de Carolina Maria
de Jesus, contribuíram para a produção da obra da forma como ela se apresenta.
Conforme observamos, a escrita de denúncia da autora se dá por diversos
atravessamentos. A condição de mulher negra, favelada, mãe solo e catadora de papel lhe
expõe a uma realidade extremamente difícil, uma vez que a subalternização de Carolina
dificulta o seu acesso a diversos serviços e também a possibilidade da mesma de poder
escrever. A violência dos mais diversos tipos e naturezas, sendo aqui relatadas as violências
do contexto urbano e as identitárias, evidenciam o quanto a escrita de Carolina Maria de
Jesus é importante para refletir sobre a favela do Canindé e as condições políticas da cidade
à época, mas também nos convidam a pensar sobre a permanência das desigualdades sociais
e espaciais gritantes relatadas em seu livro até os dias atuais.
Além disso, a questão da escrita de Carolina Maria de Jesus também demonstrou como
as violências de gênero e racial são retomadas em vários momentos por meio de seus relatos.
A todo momento a escritora se coloca como mulher negra, mãe solo e catadora de papel e
sem dissociar tais condições: ela é tudo isso o tempo todo e não sente vergonha de falar isso.
Exatamente por tais condições as violências se manifestam a todo momento, tanto pelo
descaso estrutural construído por uma sociedade como a brasileira da década de 50 (e, claro,
anterior a tal época) quanto pelas pessoas de dentro da favela. Os diários de Carolina
escancaram as condições (des)humanas, às quais sua identidade se vê situada
A dinâmica da cidade é também um fator perceptível para a construção do que foi a
obra de Carolina. Desde o processo de formação das favelas a partir de um contexto histórico
de expulsão das classes subalternizadas para espaços considerados “degradados”, até a

421
Anais

perpetuação do mesmo e as suas consequências para a produção (ou a não produção) de


uma cidadania extremamente escassa e de uma Não-Cidade que se mostra violenta. Essa
dimensão residual, com isso, reforça o que foi analisado na chave analítica da escrita de
denúncia, bem como nos convida a pensar a cidade como um conceito político e que tem
influência direta na formação da sociedade e dos espaços urbanos. A metáfora com o “Quarto
de Despejo”, conforme foi demonstrado acima, mostra ser uma importante chave para se
pensar a hierarquização dos territórios e espaços urbanos e das pessoas que lá se encontram.

REFERÊNCIAS

BARONE, Ana Cláudia Castilho. ST 10 Carolina Maria de Jesus, uma trajetória urbana. Anais
ENANPUR, v. 16, n. 1, 2015.

DE ABREU PEREIRA, Jaqueline. Caroligrafias – Cidade e moradia nas obras de Carolina


Maria de Jesus. 2020

DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa B. de. Pensamento


feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e


diálogos. Organização: Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática,
2014.

KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.

REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. Cidade escassa e violência urbana. Série estudos,
n. 91, p. 2, 1995.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução: Bia Nunes de Sousa, Glauco Mattoso. 1. ed.
São Paulo: Tordesilhas, 2014.

422
A LITERATURA E OS
“NOVOS” MEIOS DE
COTEJAR ESTILO: UM
ESTUDO ESTILOMÉTRICO
COM FANFARRAS (1882),
DE TEÓFILO DIAS
Ana Paula Nunes de SOUSA (UFSC)1

RESUMO

O surgimento do computador eletrônico trouxe para os estudos literários novas


possibilidades de pesquisa. Existe, atualmente, um número expressivo de ferramentas
computacionais focadas na estatística textual de textos literários, as quais auxiliam os
pesquisadores na busca por padrões de repetição, padrões estes que caracterizam a
identidade estilística de um escritor, época e/ou escola literária. À vista disso, o estudo em
questão, visa apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa quantiqualitativa realizada
com a obra Fanfarras (1882), do poeta maranhense Teófilo Dias, a qual é viabilizada por
meio de uma ferramenta computacional, o Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), que realiza
escansão automática de poemas escritos em língua portuguesa. Ademais, a fim de maiores
esclarecimentos, objetiva-se, com tal estudo, verificar se os elementos de construção de
verso do poeta Teófilo Dias se assemelham às características estilísticas apontadas e
levantadas pela crítica literária a respeito da produção literária vigente àquela época, cuja

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina


(PPGLIT-UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NuPILL)
e do Núcleo de Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias (LAMID). Bolsista de Mestrado Fapema. E-mail:
anapaulacxs1234@gmail.com

423
Anais

corrente predominante no período era o Parnasianismo. Quanto ao mais, no que toca à


fundamentação teórica deste estudo, o trabalho terá como escopo teórico as ideias de
pesquisadores e estudiosos que tratam dos estudos estatísticos textuais (GUIRAUD, 1970;
MONTEIRO, 2009) e do movimento Parnasianismo (BANDEIRA, 1951; RAMOS, 1959; BOSI,
2017). Para tanto, interessa dizer que, como possíveis resultados do estudo, observa-se que
há uma preferência por parte de Teófilo Dias para com o soneto e os versos do tipo
decassílabo heroico e alexandrino, métrica muito usada pelos poetas parnasianos, o caso de
Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Raimundo Correia, a chamada tríade do Parnasianismo..

Palavras-chave: Literatura; ferramentas computacionais; Teófilo Dias; Fanfarras.

ABSTRACT

The emergence of electronical computer brought to literature studies new possibilities of


research. There is, currently, one expressive number of computational tools focused in texts’
statistic of literary texts, in which helps the researcher in the search for repetitive patterns,
these standards characterize the stylistic identity of an author, time and/or literary school.
Having this in sight, the study in question, aims to present the initial results of a quantitative-
qualitative research made in the work Fanfarras (1882), of one of Maranhão’s poet Teófilo
Dias, which is possible through a computational tool, the Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/),
that can made automatic scansion of poems written in Portuguese language. In addition, to
get more clarification, it’s aimed with such study, to verify if the construction elements of
verse of poet Teófilo Dias resembles to the stylistic characters pointed and lift up by the
literature critic about the literary production in force by that time, which the predominate
literature chain was Parnassian. In addition, about the theorical support of this study, the
work will have as theorical scope the ideas of researchers and scholars that treat about
textual static studies (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009) and of Parnassian movement
(BANDEIRA, 1951; RAMOS, 1959; BOSI, 2017). For that, it’s interested to say that as possible
results of the study, it’s observed that there is a preference of Teófilo Dias’ part to the sonnet
and verses of heroic and alexandrian decasyllable type, metric very used by Parnassian poets
such as Alberto de Oliveira, Olavo Bilac and Raimundo Correia, called the trio of Parnassian.

Keywords: Literature; computational tools; Teófilo Dias; Fanfarras.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.


Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço
poesia.
(Manoel de Barros)

Considerações iniciais

Com a invenção dos computadores e, consequentemente com o aparecimento da


internet, os estudos literários de cunho quantiqualitativo (que já eram desenvolvidos lá no
século XIX com o cotejo de textos de autoria duvidosa) foram intensificados. Os
pesquisadores das Ciências Humanas, precisamente das Letras e/ou Literatura, contam,

424
Anais

hoje, graças aos esforços dos pesquisadores da computação, com novas formas de cotejar o
objeto literário.
Para maiores esclarecimentos, os estudos quantiqualitativos, também chamados de
estilometria literária ou estilística estatística (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009), trata-se
do estudo do objeto literário viabilizado por meio de ferramentas computacionais que
permitem ao pesquisador realizar, de maneira rápida e precisa, levantamento estatístico de
elementos estilísticos de escritores, épocas e/ou escolas literárias. Interessa dizer que esse
método de pesquisa não tem por fim inviabilizar o método tradicional de análise
(leitor/obra/crítica literária), pelo contrário, há uma união entre essas duas estratégias de
leitura crítica.
Se se fizer uma pesquisa na internet em busca de estudos acadêmicos feitos a partir
do método quantiqualitativo de análise, ver-se-á que os pesquisadores brasileiros, mesmo
que seja a passos lentos, têm aderido a essa estratégia de leitura crítica, como é o caso dos
trabalhos desenvolvidos pela equipe de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em
Informática, Literatura e Linguística (NuPILL) (https://nupill.ufsc.br/), e do Núcleo de
Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias (LAMID). Além disso, ver-se-á, também, a quantidade
de ferramentas e/ou programas computacionais gratuitos dispostos na rede, dentre os
quais, citam-se os softwares: Hyperbase, desenvolvido pelo professor Etienne Brunet; e
Lexico 3, uma ferramenta de estatística textual feita pela equipe YLED-CLA2T, da
Universidade de Sorbonne nouvelle-Paris3.
Feitas essas considerações, o objetivo do presente artigo é apresentar os resultados
iniciais de uma pesquisa quantiqualitativa que está sendo realizada com a obra Fanfarras
(1882), do poeta maranhense Teófilo Odorico Dias de Mesquita. Neste estudo, recorremos a
uma ferramenta computacional, o Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), que é capaz de realizar
escansão automática de poemas escritos em língua portuguesa, além de fornecer elementos
formais de construção de versos, como a quantificação dos metros, dos esquemas rítmicos
(acentos principais e secundários) e dos processos de acentuação e pontuação.
A ideia geral da pesquisa consiste em verificar se os elementos formais de construção
de verso do poeta Teófilo Dias assemelham-se às características estilísticas apontadas e
levantadas pela crítica convencional (ASSIS, 1882; MAGALHÃES, 1889; ROMERO, 1905;
CARVALHO, 1937; CARPEAUX, 1951; BANDEIRA, 1951; CANDIDO, 1960; BOSI, 2017, etc) a
respeito da produção literária vigente na época em que ele viveu, cujas correntes literárias
predominantes no período eram o Realismo poético e o Parnasianismo.

425
Anais

Para isso, além de realizarmos buscas nos manuais de história literária brasileira (os
quais, diga-se de passagem, trazem poucas informações acerca da produção literária do
maranhense), verificaremos, em periódicos dos decênios de 70 e 80 do século XIX, como se
deu a recepção crítica da obra de Teófilo Dias, precisamente de Fanfarras (1882).

Teófilo Dias e sua fortuna crítica

Teófilo Odorico Dias de Mesquita, filho do advogado Odorico Antônio de Mesquita e


da dona de casa Joana Angélica Dias de Mesquita, atuou como poeta, professor e político
brasileiro, foi eleito Deputado Estadual da Província de São Paulo pelo Partido Liberal. Sua
produção bibliográfica não é extensa, mas isso deve-se ao fato de ele ter falecido muito
jovem, quando tinha apenas 34 anos, vítima de problemas no coração (CANDIDO, 1960).
Embora tenha vivido relativamente pouco, Teófilo Dias contribuiu notadamente para
a consolidação da literatura brasileira. Ao lado de poetas como Carvalho Júnior, Fontoura
Xavier, Valentim Magalhães, Artur Azevedo, Artur de Oliveira, Alberto de Oliveira, Raimundo
Correia e Olavo Bilac, esse literato buscou criar e/ou inovar o modo de produção literária
brasileira.
Em maio de 1878, no jornal Diário do Rio de Janeiro, surge o que ficou conhecido por
a Batalha do Parnaso. Os poetas da geração nova lançam, no formato de versos, duras
críticas aos literatos que compunham o Romantismo, precisamente às formas de concepção
poética romântica. Alberto de Oliveira (1942), em entrevista concedida a Prudente de Morais
Neto, quando perguntado sobre o que pretendia e o que combatia a Guerra do Parnaso,
responde:

— Foi uma reação inevitável. Os nossos românticos eram modelos de


inesgotáveis lacrimeiras. Mal cuidaram da forma e do verso. A reação foi
também contra o relaxamento de linguagem que enfeiara a poesia da época
cheia de cacofonias, redundâncias, galicismos e solecismos, contra as
imperfeições do verso, de que há exemplos mesmo em Gonçalves Dias, o
mais correto de todos. (Apud MORAIS NETO, 1942, p. 122).

Além de se aterem ao plano formal, o que chamaram desleixo e relaxamento da


linguagem, Alberto de Oliveira (1942) informa que eles também eram contrários ao tom
lacrimoso e ao pieguismo sentimental comumente visto na poética romântica.
Outra mudança percebida, diz respeito à forma como a figura feminina é apresenta na
poesia desses poetas – a vigem bela e pálida dos românticos é substituída pela mulher

426
Anais

exuberante e sedutora dos realistas, exposta em sua materialidade carnal, igual coloca eu
lírico de “A matilha”, de Teófilo Dias:

[...]
As fibrilas sutis dos lindos braços brancos,
Feitos para apertar em nervosos arrancos;
A exata correção das azuladas veias,
Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias,
— Tudo a matilha audaz perlustra, corre, aspira,
Sonda, esquadrinha, explora, e anelante respira,
Até que, finalmente, embriagada, louca,
Vai encontrar a presa, — o gozo — em tua boca. (DIAS, 1882, p. 03).

A fortuna crítica de Teófilo Dias (ASSIS, 1882; ROMERO, 1905; CANDIDO, 1960)
considera o poema “A matilha” como uma das melhores poesias do maranhense. Segundo
informam, nota-se, nesse poema, duas faces do poeta nascido em Caxias: o lirismo e o
erotismo.
O crítico Antonio Candido (1960), em Teófilo Dias: poesias escolhidas, ressalta que o
literato caxiense pode ser descrito da seguinte forma: “Romântico pelos começos, aspirando
logo a uma renovação, que pensa encontrar, primeiro, na poesia social, depois, também no
‘realismo’ e na correção da forma, situa-se entre os últimos românticos pelos livros iniciais,
entre os parnasianos pelo último” (CANDIDO, 1960. p. 14).
Com Fanfarras, que fora publicada em 1882, Teófilo Dias teria inaugurado o
Parnasianismo no Brasil, conforme apontam Manuel Bandeira (1951), Alfredo Bosi (2017) e
o próprio Antonio Candido (1960). No dizer de Candido:

Fanfarras serviram efetivamente de modelo, programa, estímulo aos


renovadores, que, seja como for, nele encontraram o que andavam
procurando; se houvermos de classificá-lo esteticamente, há de ser com base
na obra de maturidade, não na inicial. Seria, pois, um tipo primitivo de
parnasiano; e o fato de ter vibrações líricas do Romantismo não é, como se
sabe, traço que o possa separar da maioria dos outros “cultores da forma”.
(CANDIDO, 1960, p. 15, grifo do autor).

Outros críticos e historiadores que, semelhante a Antonio Candido (1960), teceram


bons comentários a respeito da obra de Teófilo Dias, foram Sílvio Romero (1905), com
Evolução do lirismo brasileiro; Ronald de Carvalho (1937), com o livro Pequena história da
literatura brasileira; e Otto Maria Carpeaux (1951), em sua Pequena bibliografia crítica da
literatura brasileira. As premissas levantadas por esses homens de letras fazem ver a

427
Anais

similaridade de estilo entre Teófilo e os poetas Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo
Bilac.
Para Romero (1905), o literato maranhense seria o quarto integrante desse terceto, o
que ele denomina áurea quadriga parnasiana. Vale dizer que mesmo que Teófilo Dias não
conste na grande maioria dos manuais de história literária brasileira, ele teve uma boa
recepção na imprensa periódica do seu tempo, basta ver o que escreveram os poetas e
críticos Machado de Assis (1882) e Aluísio Azevedo (1882) (que assinava sob o pseudônimo
Eloy, O Herói), em periódicos como O Mequetrefe (RJ), Gazetinha (RJ) e a Tribuna Liberal (RJ).
Igual aos seus companheiros, Valentim Magalhães, em 08 de abril de 1889, publicou,
na revista Tribuna Liberal, uma crítica muito pertinente acerca da vida e obra do
maranhense, de quem guardava grande e sincera admiração. Conforme escreveu Magalhães
(1889), Teófilo Dias foi o responsável pela publicação da primeira obra com traços e
características da escola literária parnasiana, em suas palavras:

Teófilo Dias foi, incontestavelmente, o precursor, entre nós, dos formistas


extremos e extremosos. Foi, de certo, o primeiro que praticou o culto divino
da Forma, que Bilac biblificou com entusiasmo devoto e incontestável
talento e de são magnos sacerdotes aquele poeta Raimundo Correia e
Alberto de Oliveira, os quais, com o malogrado Banville das Fanfarras, eram
os “quatros evangelistas” da nova (Quid sub sole novum) religião da Poesia.
(MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01).

Magalhães (1889) fala de suas impressões para com as duas partes que compõem
Fanfarras (1882) – “Flores funestas” e “Revoltas”. A primeira delas é considerada pelo poeta
como sendo de uma perfeição extrema, no seu dizer: “em todas as composições da primeira
parte intitulada Flores funestas, reconhece-se a influência poderosa dos poetas franceses
então mais modernos – a começar por Baudelaire, de quem até o título imitou”
(MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01). Para além do título, essa influência é percebida
mais ainda pela quantidade de traduções de poemas de Charles Baudelaire e Lecomte de
Lisle.
Diferente de “Flores funestas”, “Revoltas”, ao ver de Valentim Magalhães (1889), não
possui a mesma qualidade, não tanto do ponto de vista formal, mas pelo conteúdo. Para o
poeta e crítico, “na Revolta, embora seja o mesmo apuro artístico, a espontaneidade é menor
e muito mais limitada a originalidade” (MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01).

428
Anais

Esse juízo crítico acerca de “Revoltas” não se restringe somente a Valentim Magalhães
(1889), Machado de Assis (1882) também possui a mesma impressão. Ele informa que
“Teófilo Dias nos versos dessa segunda parte, é menos espontâneo, é menos ele mesmo. Sabe
compor o verso, e dispõe de um vocabulário viril, apropriado ao tema, mas o tema, que é o
de suas convicções políticas, não parece ser o de sua índole poética” (ASSIS, Gazetinha, 1882,
p. 03).

Resultados iniciais da pesquisa

Conforme exposto na introdução, neste estudo serão apresentados os primeiros


resultados da pesquisa quantiqualitativa que está sendo realizada com a Fanfarras (1882),
do poeta maranhense Teófilo Dias. Nesse estudo, utilizamos também a obra Sonetos e poemas
(1885), de Alberto de Oliveira, o qual é considerado como o mais ortodoxo dentre todos os
poetas parnasianos – até mais que Raimundo Correia e Olavo Bilac (AZEVEDO, 2006).
Interessa dizer que o corpus de estudo já foi criado, igual pode ser verificado na
imagem abaixo:

Figura 1 - Corpus Fanfarras (1882)

Fonte: Aoidos.

429
Anais

A partir da imagem acima, conclui-se que Fanfarras (1882) apresenta um número


expressivo de poemas cuja forma fixa é o soneto. Para maiores esclarecimentos, o soneto,
assim como o triolé, o rondó e a balada, é uma forma fixa de poema que serve, de certo modo,
para caracterizar o verso parnasiano (RAMOS, 1959). Com o aparecimento da escola
parnasiana, estas formas fixas, antes negligenciadas pelos poetas românticos, voltam com
força.
Outro elemento formal de construção de verso frequentemente associado aos
parnasianos, é o verso alexandrino. O Aoidos não fornece, de maneira exata, a marcação de
versos do tipo alexandrino, no entanto, por meio da quantificação dos metros dos poema
(função executada pela ferramenta), é possível que tenhamos acesso a essa informação,
basta verificarmos os versos de doze sílabas poéticas dispostos no corpus.
A imagem que seguinte evidencia essa função desempenhada pela ferramenta digital
Aoidos:

Figura 2 - Análise automática do poema “O sino”, de Fanfarras

Fonte: Aoidos

Tanto o poema “O sono” quanto a maioria dos outros que compõem Fanfarras (1882)
são poemas formados por versos alexandrinos. O segundo metro mais usado por Teófilo Dias
é o verso formado por dez sílabas poéticas, isto é, o decassílabo. Vez por outra ele faz uso da
sextilha e redondilha maior (versos formados por sete sílabas poéticas), mas não se compara
aos demais metros utilizados no corpus de Fanfarras (1882). Vide a figura 03:

430
Anais

Figura 3 - Análise automática do comprimento dos versos de Fanfarras (1882)

Fonte: Aoidos

Ainda no que toca aos processos de construções de verso dos parnasianos, Manuel
Bandeira (1951), em Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana, diz que esses poetas
jamais eram infiéis à sinalefa e à sinérese. Segundo ressaltou o poeta e crítico, “foi esse
processo que deu à poesia parnasiana aquele caráter escultural, censurado por Lucio de
Mendonça nos versos dos Sonetos e Poemas, de Alberto de Oliveira” (BANDEIRA, 1951, p.
19). Logo, tendo isso em vista, observe-se o recorte feito no corpus acerca dos processos de
acentuação e pontuação:

Figura 4 - Análise dos processos de acentuação e pontuação em Fanfarras (1882)

Fonte: Aoidos

431
Anais

Conforme é verificado na imagem em destaque, na parte inferior, especificamente em


Metaplasmas, a sinalefa é o processo de acomodação silábica de maior proeminência em
Fanfarras (1882), basta ver os resultados dos demais: eclipse, aférese, acento, diérese e
sístole. Outros processos que também se destacam são a elisão, a crase e sinérese.
Esses resultados demonstram, de certo modo, a similaridades de estilo existente
entre Teófilo Dias e a chamada tríade parnasiana, sobretudo se considerarmos o que
propõe Manuel Bandeira (1951) sobre a sinalefa e a sinérese no verso parnasiano.

Considerações finais

Tendo em vista as informações e discussões apresentadas neste estudo, conclui-se


que, mesmo que o poeta maranhense Teófilo Dias não apareça na grande maioria dos
manuais de história literária brasileira, ele conseguiu se destacar entre seus pares, sua
produção literária foi muito bem recebida pelos leitores e críticos do período histórico em
que viveu, como visto em Assis (1882) e Magalhães (1889). No que toca aos resultados
iniciais da pesquisa, embora ainda em andamento, observou-se que há uma preferência por
parte do poeta à forma fixa soneto, bem como pelo verso alexandrino e pela sinalefa,
elementos formais estes muito característicos do verso parnasiano, como vemos em Alberto
de Oliveira, Olavo Bilac e Raimundo Correia.

Referências

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III, 1994.

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Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2017.

432
Anais

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1960.

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GUIRAUD, Pierre. A Estilística. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.

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MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário. 2 ed.
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RAMOS, Péricles Eugênio da. Introdução ao Parnasianismo brasileiro. São Paulo: Revista da
Universidade de São Paulo, 1959.

ROMERO, Sílvio. Evolução do lirismo brasileiro. Recife: Tipografia de J. B. Edelbrock, 1905.

433
MEMÓRIA E CIDADE:
UMA LEITURA DA
OBRA O CHAMADO
DA NOITE, DE
CARLOS RIBEIRO
Vanessa Mayara Cavalcante OLIVEIRA (UEMA) 1
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2

RESUMO

O trabalho objetiva analisar o processo de rememoração na obra O chamado da noite (1997)


do poeta baiano contemporâneo Carlos Ribeiro. A obra faz referência a espaços antigos da
cidade de Salvador – BA, ressignificados pelo olhar do narrador. O trabalho fundamentou-
se na visão de Halhwachs (2006), Bosi (2003) e Asmann (2011), Pesavento (2003), Ascher
(1998), Zukin (2018) e Soja (1993). É relevante pensar a obra a partir da figura do flâneur,
com suas impressões voltadas aos espaços marcadores de referências (ruas, bairros, praças,
dentre outros), de modo que, por meio da sua ótica, é perceptível também os problemas
sociais da cidade, além de memórias individuais e coletivas. Diante da realidade fragmentada
dos tempos modernos, o enraizamento é problemático e as referências do ser na cidade
acabam se dispersando, no entanto, a literatura tem a capacidade de resguardar espaços

1Graduanda em Letras Português pela Universidade Estadual do Maranhão, Campus de Timon.


Bolsista de Iniciação Científica PIBIC FAPEMA. CPF:064.218.623-57. E-mail:
vanessamayara097@gmail.com
2Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura (PROCAD - AM/CAPES). Doutorado
em Letras, área de concentração em Teoria Literária. Profa. de Literaturas de Língua Portuguesa da
Universidade Estatual do Maranhão e da Universidade Estadual do Piauí. Profa. dos Programas de Pós
Graduação em Letras de ambas universidades. Bolsista de Produtividade do CNPq. CPF: 249.772.923-91. E-
mail: silvanapantoja3@gmail.com

434
Anais

considerados de valor pela preservação da memória do lugar. O narrador de O chamado da


noite (1997) possui uma relação de apego às ruas da cidade e a outros elementos citadinos,
o que o faz vê-los com os olhos de ontem e ressignificá-los a partir do seu momento presente,
buscando valorizar, por meio de suas impressões e sensações, o patrimônio urbano.

Palavras-chave: Memória. Homem. Cidade. O chamado da noite.

ABSTRACT

The work aims to analyze the process of remembrance in the work O chamado da noite
(1997) by contemporary Bahian poet Carlos Ribeiro. The work refers to old spaces in the
city of Salvador - BA, resignified by the narrator's gaze. The work was based on the vision of
Halhwachs (2006), Bosi (2003) and Asmann (2011), Ferrara (1998), Pesavento (2003),
Ascher (1998), Zukin (2018) and Soja (1993). It is relevant to think about the work from the
figure of the flâneur, with his impressions focused on the spaces that are markers of
references (streets, neighborhoods, squares, among others) so that, through his optics, it is
also perceptible the social problems of the city, as well as individual and collective memories.
Faced with the fragmented reality of modern times, the entangling is problematic and the
references to being in the town end up dispersing, however, literature can protect spaces
considered valuable by preserving the memory of the place. The narrator of O chamado da
noite (1997) has a relationship of attachment to the city streets and other city elements,
which makes him see it with the eyes of yesterday and resignify it from his present moment,
seeking to value the urban heritage through his impressions and sensations.
Keywords: Memory. Man. City. O chamado da noite.

Introdução

A memória tem a capacidade de reter informações, algumas coisas são reavivadas


pela consciência, outras esquecidas ou não reveladas voluntária ou involuntariamente.
Assim, a memória implica uma condição modelador, que subsidia a ligação entre o passado
e o presente, evidenciando marcas e transformações do eu, corroborando para a construção
da imagem que o indivíduo tem de si, dos outros e das coisas ao seu redor.
Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo analisar o processo de rememoração na
obra O chamado da noite (1997), do escritor baiano contemporâneo Carlos Ribeiro, a partir
da relação que o narrador estabelece com a cidade. Para tanto questionamos: de que modo
o narrador-personagem dialoga com os espaços marcadores referências? Até que ponto a
memória da cidade vai ao encontro da memória do protagonista? Portanto esse estudo tem
o interesse de ressignificar o passado do narrador por meio de memórias e sua relação com
a cidade.

435
Anais

O estudo envolve os resultados parciais da pesquisa desenvolvidas no Programa de


Iniciação Científica - PIBIC/FAPEMA (2021-2022), vinculado à Universidade Estadual do
Maranhão – UEMA.
Nas considerações aqui apresentadas, amparamo-nos na visão de Halhwachs (2006),
Bosi (2003) e Asmann (2011), Pesavento (2003), Zukin (2018) e Soja (1993), dentre outros.
Carlos Jesus Ribeiro, mais conhecido por Carlos Ribeiro é natural da Bahia, nasceu no
dia 19 de agosto de 1958. É escritor, jornalista, mestre e doutorado em literatura pela
Universidade Federal da Bahia – UFBA. Também é membro da Academia de Letras da Bahia
e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal de Recôncavo da Bahia - UFRB.
O escritor tem dezesseis livros publicados nos gêneros conto, romance, novela,
ensaio, memória e reportagem. Seu primeiro livro foi Já vai longe o tempo das baleias, contos,
em 1982, seguido de O homem e o labirinto, em 1995. Seu primeiro romance foi O chamado
da noite (1997); o segundo, Abismo (2004), além de outras obras: O visitante noturno (2000),
O caçador de ventos de melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga (2001).
Tem participação em várias coletâneas e antologias.

A relação entre homem e cidade na obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro

A obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro é dividido em cinco capítulos em que o


narrador-personagem conta suas experiências vividas na cidade de Salvador – Bahia e
ressignifica lugares de memórias. Logo no início ele dá visibilidade ao Teatro Castro Alves,
um espaço que comporta vivências coletivas. Um patrimônio da cidade, conhecido como
maior e mais importante centro artístico de Salvador, inaugurado em 1967, recebendo o
nome de Castro Alves em homenagem ao poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves,
com isso, o teatro foi reconhecido como patrimônio nacional quando completou 50 anos em
2017. O narrando registra a sensação que tem ao avistar uma mulher em frente ao Teatro
Castro Alves. “[...] Eu a vi a primeira vez no Teatro Castro Alves na entrada para o Garcia [...].
Talvez porque tivesse os cabelos curtos e parecesse uma francesinha revolucionária dos
anos 60 dos filmes [...]” (RIBEIRO, 1997, p.01).
Em meio à referência a lugares de memória, o protagonista diz que algumas de suas
lembranças estão se desfazendo, transformando-se num pátio frio e deserto: “e eu lá, mas
são essas e outras coisas que desaparecem pouco a pouco da minha vida” (p.13). Com isso,

436
Anais

fica claro que muitas lembranças tendem a ceder espaço a novas, em um processo de
revezamento entre lembrança e esquecimento. Como afirma Bosi (2004, p. 24): “As coisas
aparecem com menos nitidez dada a rapidez e descontinuidade das relações vividas. Desse
tempo vazio a atenção foge como ave assustada”. No entanto, as lembranças da infância
tendem a resistir na memória e, no caso do narrador, elas surgem revestidas de detalhes
vividos na cidade.
O protagonista é um homem de meia-idade que se descreve como alguém que vive
uma fase em que a sua memória começa a falhar. Esse é o momento em que ele passa próximo
ao Teatro Castro Alves e lembra-se dos momentos da infância em que assistia ali os
espetáculos. Halbwachs (2003, p. 53) diz que “a condição necessária para voltarmos a pensar
em algo aparentemente é uma sequência de percepções pelas quais só podemos passar de
novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas [...]”.
É exatamente isso que o narrador faz: como um flanêur, deambula pelas ruas, bairros,
esquinas de sua cidade rememorando acontecimentos vividos, por conseguinte, dando
visibilidade à memória do lugar. Para Benjamin (1994, p. 35), a rua se torna a moradia para
o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre
suas quatro paredes BENJAMIN, 1994, p.35).
Para o flâneur, a multidão é o seu refúgio, mas para o narrador da obra O chamado da
noite as ruas da cidade são moradas apenas se for para apreciar a paisagem com os olhos de
ontem, especialmente à noite, que para ele é poesia
Na contemporaneidade é quase impossível viver sem mudanças, sem as rupturas que
a vida oferece. Sobre isso, no trabalho sobre a poesia de Ferreira Gullar e H. Dobal, Santos
(2015, p. 89) assevera: “O sujeito [...] vê-se impotente diante do novo mundo ampliado,
tornando-se inviável evitar que algo transborde. (GULLAR, 2015. p.89). O homem moderno
vê-se, muitas vezes, impotente diante das transformações e, desacomodado, busca as
referências nas imagens de outrora. Assim, no detalhamento do narrador de O chamado da
noite percebe-se que o seu vínculo com os espaços da cidade é latente gerando o seu
enraizamento nos espaços da urbe.
A vila de Itapuã é personificada como uma senhora de muita beleza. Ao rememora-la,
imprime sentimentos e lembranças prazerosas que comporta sensações sinestésicas e de
liberdade: “Itapuã é um sentimento e uma lembrança; Itapuã é dona Francisquinha, uma
senhora muito bonita e bela [...]” (RIBEIRO, 1997, p.82). Que é o bairro mais famosa da
capital, ele é uma vila antiga de pescadores, com estilo boêmio desde os anos 60. E muito

437
Anais

conhecido por sua beleza por ser próximo ao mar, pelo contato com a natureza e pela sua
cultura, sendo um local de patrimônio da cidade.
As lembranças prazerosas se misturam com tristeza, ante as transformações pelas
quais passam os lugares de memória.
Com as rápidas transformações urbanas, o homem passa adotar costumes
compatíveis com a realidade do seu tempo, sendo a pressa uma das atitudes incorporadas,
mas o narrador da obra, não. Ele não aplaude, não acompanha as mudanças. Vive num estado
de crise existencial da modernidade e sofre com os resultados das transformações.
Com as mudanças, surge no final do século XIX uma nova figura de homem na cidade:
o flâneur, passeador que observa a cidade com entusiasmo e sente-se vivo no meio da
multidão. Como descreve Benjamin, sobre o flâneur:

Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de


parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros
são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais
são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o
trabalho, observa o ambiente. (BENJAMIN, 1994, p.35).

O flâneur de O chamado da noite adota postura diferente, não se encanta com as


mudanças, mas observa e anda pela cidade. Sente-se triste pelo esfacelamento de elementos
urbanos – monumentos, becos, ruelas e outros - que carregam a memória do lugar. Segundo
Milena Tanure (2018), para o narrador é como se a Bahia estivesse desfazendo-se, a medida
que ela vai se transformando. E assim o narrador diz que está condenado a viver a
modernidade que vai devorando, de forma avassaladora, os espaços que guardam a memória
do lugar, a ponto de fazer desaparecer o encanto da alma da cidade. Ele percorre, então, os
caminhos antigos para reconstruir a memória da sua cidade.
A memória citadina é responsável por manter viva a história do lugar. O narrador de
O chamado da noite, um homem urbano que vai escavando os espaços de memória, sabe da
importância da preservação da mesma. Sobre a expressão memória da cidade, Abreu
esclarece:

Independentemente do que estaria por trás desse movimento de


preservação da herança (histórica ou construída) do passado, uma coisa se
nos afigura como essencial: a “memória urbana” é hoje um elemento
fundamental da constituição da identidade de um lugar. (ABREU, 1998, p.
10).

438
Anais

Ou seja, a memória urbana é a memória da cidade, sendo assim é o passado da cidade,


e reflete o que já foi vivido naquele local. E por meio dessa memória urbana é possível
identificar a identidade do indivíduo que mora na cidade, e o narrador da obra O chamado
da noite, da importância para a preservação dessa memória urbana, pois a medida que a
memória se transforma, rompe o eu dele, como de outros moradores.
Sobre a identidade de um lugar, Gomes (1994) diz que a cidade, por meio da sua
arquitetura, torna-se registro do povo que nela vive, mas que passa a direcionar a
importância para o lucro do turismo da cidade.
Quanto à memória, Halbwachs (2006, p. 29) diz que a primeira é individual: “o
primeiro testemunho que podemos recorrer será sempre o nosso” e que a memória coletiva
é aquela compartilhada com os membros da coletividade. Os espaços públicos são
considerados patrimônios sociais porque agregam vivências sociais. Em O chamado da
noite o narrador se reporta a um desses lugares de memória coletiva da seguinte forma:
“Itapuã, pra quem não sabe, é um bairro à beira-mar, inundado de sol e ondas, onde algumas
pessoas aproveitam o domingo para beber cerveja e fazer um sambo gosto” (RIBEIRO, 1997,
p.38). Itapuã é um espaço de memória coletiva porque acolhe vivências sociais, mas é
também um espaço de memória urbana, haja vista que é um lugar que resiste ao tempo e
acompanha a dinâmica da cidade.
Sobre o espaço urbano, Pensavento (2002, p.16) esclarece: “o espaço sonhado,
desejado, batalhado e/ou imposto é, por sua vez, também reformulado, vivido e
descaracterizado pelos habitantes da urbe que, ao seu turno, o requalificam e lhe conferem
novos sentidos.” O espaço sonhado ao qual Pesavento se refere vai ao encontro do
comportamento do narrador de O chamado da noite que os requalifica por meio da
rememoração, uma forma de preservar a memória da cidade.
Para Ascher (1998, p.16), o espaço não é apenas uma ocupação geográfica modificada
pelo homem, mas reflete as vivências do ser como também seus pensamentos. Somos
influenciados pela sociedade, e essa influência é refletida nas mudanças. É diante delas que
o narrador reage e vai se voltar aos espaços marcadores de referência (ruas, monumentos,
becos, ruelas e outros). Na obra ele se reporta a esses espaços com grandes detalhes: “Em
nome do meu poder de escritor reconstruo a rua da Itapuã da minha infância que é assim:
uma estrada de asfalto, uma linha sinuosa, avenida deserta, cercada por caminhos de barro
que se cruzam pontilhados por amendoeiras, coqueiros e cajueiros” (RIBEIRO, 1997, p.56).

439
Anais

O flâneur do protagonista é ativado desde a infância, quando pegava sua bicicleta e andava
pelas ruas da cidade contemplando os detalhes. O narrador-protagonista conta que desde
criança sempre procurou algo para fazer na cidade, especialmente à noite, o que justifica o
título da obra: “eu amo também a cidade e a noite. Existe uma poesia estranha nessas
avenidas [...] ”. (p.56). É esse sentimento de enraizamento pelo passado da cidade, a
qualidade de sua vida.
Acerca dos espaços pós-modernos, Soja (1993, p. 81) esclarece que os mesmos
acabam direcionando as ações do indivíduo: “[...] É uma estratégia expressamente
geopolítica, na qual as questões espaciais são a preocupação organizadora fundamental, pois
o poder disciplinador atua primordialmente através da organização, do encerramento e do
controle dos indivíduos no espaço [...]”. Com isso, fica claro que a rapidez dos tempos
modernos, somado à hiper valorização do novo, acabam invisibilizando os espaços de
memória. O narrador de O chamado da noite, atento a essas questões, deposita suas
impressões e sentimentos sobre o corpo da cidade, suscitando o olhar a espaços de
enraizamento que comportam a memória do lugar.

Considerações finais

A obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro é marcada pela figura do flâneur e por
um processo de rememoração dos espaços marcadores de referências, especialmente os
relacionados com as vivências de infância do narrador. A narrativa vai desfiando paisagens
e imagens pretéritas da cidade e do eu que se pronuncia, a partir de um presente de rápidas
mutabilidades. Dessa maneira, vemos a importância da rememoração para a preservação da
memória da cidade, bem como para a memória particular do protagonista na sua relação
com a cidade.
Sobre a relação do homem com a cidade, percebemos que a obra é marcada pelo
comportamento flâneur do narrador, desencadeado pelo processo de modernização urbana.
O mesmo deambula pelas ruas e tem a alma apaixonada pelos detalhes da urbe, e procura
dar visibilidade à memória citadina.
A fisionomia da cidade, sob a ótica do narrador, faz vir à tona não somente as rasuras
do passado, mas também os problemas sociais e as lembranças particulares e coletivas do
sujeito que se pronuncia. A condição desagregadora do homem contemporâneo, desperta no
narrador o desejo de enraizamento nos espaços de pertencimento: Ruas, bairros,

440
Anais

construções seculares que concentram andanças no cumprimento de um itinerário,


semelhante ao flâneur baudelairiano, mas ao mesmo tempo apresenta um sujeito deslocado
a ressentir a cidade, devido à problemática da paisagem que se lhe oferece. A fugacidade do
tempo contrapõe-se à retenção da vida possível na memória, assim, a produção poética de
Carlos Ribeiro vai desfiando paisagens e imagens pretéritas da cidade e do eu, a partir de um
presente de rápidas mutabilidades.
Por meio do processo de rememoração o narrador-personagem se entristece pelo
soterramento da paisagem da cidade de outrora, no entanto ele diz: “Engraçado, mas esta
tristeza que me faz feliz” (RIBEIRO, 1997, p.63). Dando a entender que embora fique triste
por a cidade não ser mais a mesma, ele sente alegria por rememorar os caminhos tão
traçados por ele e pelos habitantes do lugar.
As intervenções do moderno nos espaços da cidade, para o narrador de O chamado
da noite, faz perder a poesia e o encanto da cidade. Assim ele vive em uma crise de homem
desencantado com a modernidade. “[...] e ela vem se perdendo até hoje, quando nivelamos
nossa cidade, cortando seus morros, aplainando suas ruas, mutilando suas árvores,
empurrando sua população para periferia, transformando nossas praias em esgoto a céu
aberto” (RIBEIRO, 1997, p.83). Ressignificar o vivido conjuga fatores sociais, de tal modo
que possibilita pensar sobre anseios e perspectivas de vida, conferindo uma materialidade
observável na forma de potencialidades da linguagem, bem como uma visão particular de
mundo. Dessa maneira, a cidade faz parte das vivências e acaba influenciando no
comportamento e nas relações sociais. O dinamismo da cidade é resultante do processo
histórico e do modo como os sujeitos sociais interagem com um conjunto de fatores que a
vida impõe. A partir da interação com o passado da cidade e com o presente, o narrador
Carlos Ribeiro intui sobre a memória do lugar e seus costumes.
No entanto constatamos que o narrador não é avesso ao progresso, mas sente que a
hiper valorização do novo, as rápidas transformações urbanísticas e a incessante busca pelo
diferente compromete o interesse pelos espaços que comportam a memória do lugar. É como
se o narrador temesse ser rompido junto com o que se transforma, e diluído nessa
“modernosidade” como ele próprio afirma.

REFERÊNCIAS

441
Anais

ABREU, Mauricio A. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III nº 4, (p.01-
22), jan./jun.1998.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:


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Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. Centauro, 2006.

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de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002.

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representações na poética de Ferreira Gullar Dobal. São Luís: Editora UEMA, 2015.

TANURE, Milena Guimarães Andrade. Patrimônio cultural e memória literária:


memórias urbanas na literatura baiana contemporânea. Palimpseto nº 27 ( p.305-321),
setembro, 2018.

442
AUTOFICÇÃO: A
ESCRITA DE SI EM
DIVÓRCIO, DE
RICARDO LÍSIAS
Thauana Mara de Carvalho SILVA (UFT)1
Rejane de Souza FERREIRA (UFT)2

RESUMO

Neste estudo propõe-se uma discussão acerca da ficção e da não-ficção presentes em


“Divórcio” (2013), do escritor brasileiro Ricardo Lísias. O romance, construído como texto
ficcional, reúne várias coincidências biográficas entre escritor e personagem. A obra tem
como mote o divórcio de um escritor chamado Ricardo Lísias que, ao encontrar o diário de
sua esposa, uma famosa jornalista, descobre que foi traído durante a cobertura do festival de
Cannes em 2011 com um dos jurados do evento. Divórcio é um romance que sublima algumas
das principais tendências da literatura contemporânea que se baseiam na convergência de
identidades entre autor e personagem e na reconstrução ficcional de memórias. Assim, a
partir de temas polêmicos como o adultério e o questionamento da ética jornalística que a
trama traz, investiga-se aqui o caráter autoficcional da obra e a complexidade que há em
delimitar as fronteiras entre a ficção e a não-ficção na narrativa. Para a realização deste
intento, foram examinados os estudos teóricos de Serge Doubrovsky (1988), criador do
termo autoficção; as reflexões sobre autoficção de Ana Faedrich Martins (2014); as
considerações sobre o texto de Lísias, de Luciene Azevedo (2013); as postulações sobre
autoficção e as escritas de si, de Diana Klinger (2006) dentre outros.

1 Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: prof.thauana@hotmail.com.

2 Doutora de Letras e Linguística pela UFG. Docente do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Letras UFT – Porto Nacional. E-mail: rejaneferreira@mail.uft.edu.br.

443
Anais

Palavras-chave: Ricardo Lísias; autoficção; narrativa contemporânea.


ABSTRACT

This work aims to discuss fiction and non-fiction in “Divórcio” (2013), by the Brazilian writer
Ricardo Lísias. The novel is reported as a fiction genre and it gathers many biographical
coincidences between the writer and the character. The book deals with the divorce of a
writer called Ricardo Lísias who, upon finding the diary of his wife, a famous journalist, has
found out that she cheated on him with one of the judges of Cannes festival during the
coverage of the event in 2011. Divórcio is a novel that shows some of the main tendencies of
contemporary literature which are based on convergence of identities among the author and
character and the fictional reconstruction of memories. Thus, considering controversial
issues such as adultery and questions of Journalism ethics, it is investigated here the
autofictional genre of the book and the complexity in delimitating fiction and non-fiction into
the text. This work analysed studies of Serge Doubrovsky (1988), who coined the term
autofiction; the thoughts on autofiction, by Ana Fraedrich Martins (2014); the considerations
by Luciene Azevedo (2013) on Lísias´ book; the postulates on autofiction and writing the self,
by Diana Klinger (2006), among others.

Keywords: Ricardo Lísias, autofiction; contemporary narrative.

Introdução

Um dos traços marcantes da natureza humana é o interesse pela intimidade alheia. O


avanço tecnológico e as novas mídias do mundo contemporâneo têm aguçado a
autopublicização do sujeito nos mais diversos contextos sociais, gerando um processo de
espetáculo de si que desperta o interesse do público. Esse desejo pela autoexposição e pela
vida do outro tem reflexos no âmbito literário, aumentando o número de publicações
autobiográficas, memórias, testemunhos e cartas editadas. A presença do escritor em seu
texto é um fenômeno literário crescente, e é nesse contexto que surge a autoficção.
O termo autoficcion foi usado pela primeira vez na França pelo professor e escritor
Serge Doubrovsk, no ano de 1977. O autor publicou o conceito no prefácio de seu livro Fils
para tentar esclarecer aspectos de seu romance. Incorporado ao aumento dos “romances do
eu”, a autoficção é um modo de expressão híbrida, que mescla autobiografia e ficção. Há que
se registrar, no entanto, que surgiram novos estudos e atualizações do gênero desde as
definições iniciais propostas por Doubrovsky. Assim, os formatos de textos autoficcionais
encontrados hoje são variados e alguns divergem de seu modelo inicial, de modo que há uma
pluralidade de estilos e temáticas na produção atual.
No Brasil, Ricardo Lísias é um dos escritores contemporâneos que mais se destacam
por escrever obras com tom autoficcional. Com uma vasta produção artística, Lísias é autor

444
Anais

de textos ficcionais e não-ficcionais, e já recebeu diversos prêmios significativos no cenário


literário. No universo acadêmico, o escritor também tem despertado o interesse de
estudiosos e pesquisadores a partir de suas obras, dentre elas a que mais tem suscitado
discussões é o livro “Divórcio”.
Publicado em 2013, o romance tem como mote o processo de divórcio que ocorre
entre o protagonista e sua esposa. Para construir esse personagem, o escritor valeu-se de
uma identidade onomástica entre autor-personagem e utilizou biografemas, que auxiliam na
construção do jogo entre realidade e ficção. Nessa perspectiva, essa pesquisa centra-se no
estudo da transfiguração da matéria vivida em matéria ficcional, além de apresentar
reflexões teóricas acerca do gênero autoficional e questionamentos sobre os limites da
autotoficção.

Autoficção e o romance Divórcio

No panorama literário atual, apontado por críticos como pós-moderno, os romances


adquiriram novos formatos e sofreram significativas transformações. A subjetivação e a
autorreferência passaram a ocupar papel de destaque na literatura, de modo que, como
nunca antes, os comportamentos sociais são refletidos nas artes. A inserção de dados
autobiográficos nas obras produzidas tem sido uma tendência entre escritores nas últimas
décadas.
Apesar das atualizações, o romance contemporâneo, parece não fugir de todo modo
às origens ao incorporar as experiências do narrador ao texto. Walter Benjamin, em ensaio
publicado no ano de 1933, discorre sobre a figura do narrador nos romances e afirma que “o
narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros”. (BENJAMIN, 1985, p. 201). Para o autor, o romancista segrega-se, uma vez que se
mantém isolado e só considera suas próprias experiências. Mesmo com diversas discussões
e mudanças ao longo dos anos, as características essenciais do romance mencionadas por
Benjamim permanecem latentes na atualidade, dentre elas a valorização das experiências
pessoais e do texto escrito.
Nesse sentido, na ficção brasileira contemporânea, a escrita em primeira pessoa tem
sido um formato textual recorrente entre os escritores, enfatizando a figura extratextual do
escritor. Em Divórcio, autor, narrador e personagem possuem o mesmo nome: Ricardo Lísias.
As assinaturas iguais reforçam as características do romance pós-moderno que tem sido

445
Anais

bastante discutida. Trata-se de um jogo entre realidade e ficção em que a ambiguidade se


instaura na escrita e na leitura do texto. Na obra, o narrador do romance discorre sobre o
término traumático do seu casamento de quatro meses com uma famosa jornalista.
Construído como texto de ficção, o livro reúne várias coincidências biográficas entre autor e
personagem, o que provoca uma série de questionamentos acerca de seu gênero literário.
No romance de Lísias, há diversos pontos que dão margem a uma possível ligação
entre a realidade vivida pelo escritor e o que ele diz ser invenção. Além de possuírem a
mesma identidade, autor e narrador parecem querer atestar ao leitor ao longo da narrativa
a veracidade de seu relato. Com uma estrutura híbrida, o livro traz trechos de diários,
fotografias e cartas, conduzindo a pessoa que lê a acreditar nos fatos expostos. Essa mistura
de gêneros faz com que os limites existentes entre realidade e ficção sejam propositalmente
diluídos e, com isso, provoque confusão no leitor. Tais características existentes na obra
fazem com que ela se enquadre nas chamadas escritas autoficcionais, sendo este o resultado
da junção entre a autobiografia e o romance de ficção.
Para Doubrovsky (1988), a autoficção é “uma variante pós-moderna da autobiografia
na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável,
num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de fragmentos
esparsos de memória”. (apud MARTINS, 2011, p.191). Assim, na percepção do autor, no
processo de escrita do eu, o sujeito é incapaz de ser fiel à verdade, por mais que tente, acaba
dizendo outra coisa que não a verdade. Baseada nas reflexões de Doubrovsky, Martins
aponta:

A proposta doubrovskiana reconhece a ambivalência do sujeito e a


mobilidade do vivido, insere o discurso do eu no espaço lúdico e transitório,
que entrelaça os gêneros referencial e ficcional; verdade e invenção;
realidade e imaginação. A autoficção é também uma escrita do presente, que
não acredita mais na recapitulação histórica e fiel dos acontecimentos, mas
sim numa atualização do que aconteceu. (MARTINS, 2011, p. 185)

Nessa perspectiva, considerando a teoria de Doubrovsky, há que se registrar no


romance de Lísias a presença de um discurso do “eu” que entrelaça ora realidade ora ficção.
O enredo é construído a partir da reconstrução da memória de um personagem atormentado
e confuso. O fim traumático de seu casamento o deixa com o “corpo sem pele”, metáfora da
dor e da decepção que ele narra ter sofrido após ter lido o diário de sua ex-esposa em que
ela conta tê-lo traído, além dar outros detalhes íntimos.

446
Anais

Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da
minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas
pernas perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei
contra mim mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi
por fim ler o diário da primeira à última linha de uma só vez. (LÍSIAS, 2013,
p. 25).

Após descobrir a traição por meio dos textos contidos no diário, o narrador-
personagem inicia seu relato sobre as suas angústias. Decepcionado, faz uma cópia do diário,
sai de casa e muda-se para o cafofo, local usado como depósito de móveis e livros após seu
casamento. Ricardo conta sobre suas noites sem dormir, sua constante sensação de
sufocamento e sobre se sentir em “carne viva”. “[...] Minha cabeça só pensava no diário da
minha ex-mulher e mesmo as necessidades básicas, como comer e ir ao banheiro, não me
interessavam.” (LÍSIAS, 2013, p. 52).
A partir daí a narrativa é construída por meio de flashbacks, anotações, fragmentos
do diário da ex-esposa, fotos da infância do autor e de suas próprias falas. Na tentativa de
recobrar a consciência e voltar à rotina, Ricardo recorre a caminhadas noturnas, o que,
posteriormente, acaba tornando-se um hábito e evolui para a prática de corrida. “Depois,
comecei a correr. [...] A corrida nos deixa empolgados”. (LÍSIAS, 2013, p.126). Em razão desse
fato, os capítulos do livro são intitulados por quilômetros, em um total de quinze, distância
equivalente à percorrida pelo narrador-personagem ao final do livro, quando decide
participar da Corrida de São Silvestre.
Divórcio é uma narrativa não linear. Os fatos se sobrepõem ao longo da obra e a sua
estrutura é desordenada. Em meio a fotografias e relatos sobre seus ressentimentos, o
narrador faz revelações de detalhes sórdidos da relação, fala das suas lembranças da infância
e expõe suas memórias de viagens. Essa ausência de linearidade é uma das características
do gênero autoficcional. Segundo Martins (2014, p.24) “A escrita autoficcional parte do
fragmento, não exige início-meio-fim nem linearidade do discurso; o autor tem a liberdade
para escrever, criar e recriar sobre um episódio ou uma experiência de sua vida, fazendo,
assim, um pequeno recorte no tempo vivido.” Além disso, o romance imprime um ritmo
acelerado das revelações feitas pelo protagonista, refletindo, dessa forma, seu estado de
angústia e nervosismo durante as cenas relatadas.

447
Anais

Tenho trinta e seis anos e uma renda, há algum tempo, que me permite
figurar entre os privilegiados. Mesmo assim, nunca fiz nenhuma aplicação
financeira. Não guardo dinheiro. Compro livros com tudo o que me sobra.
Jamais quis ter um carro ou me preocupei em comprar uma casa. Já gostei de
algumas mulheres e ainda vou encontrar um grande amor para ter filhos e
passar o resto da vida. [...] Quanto aos objetos, como com tudo, sempre fui
muito constante: gosto apenas de livros. Tenho doze mil e pretendo aos
sessenta anos ter multiplicado meu acervo por dez. (LÍSIAS, 2013, p. 122).

É interessante notar o fluxo intenso de pensamentos que o narrador-personagem


expõe. Com rapidez, ele perpassa por vários pontos e aspectos de sua vida que julga ser
relevante para esclarecer sua história. O discurso da narrativa é instável, o narrador, por
vezes, apresenta-se como autodiegético, afirmando relatar experiências pessoais. “Aliás, não
há uma palavra de ficção nesse romance.” (LÍSIAS, 2013, p.172). No entanto, em outras
passagens, opta pelo narrador heterodiegético, sublimando a ficcionalidade do romance,
tentando mostrar-se, por assim dizer, indiferente aos fatos. “Divórcio é um livro de ficção em
todos os seus trechos.” (LÍSIAS, 2013, p.190). De acordo com a proposta doubrovskiana, essa
experimentação de linguagens e ausência de formas é uma das premissas do gênero
autoficcional. Na visão do teórico, a autoficção é a “aventura da linguagem, fora da sabedoria
e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações,
assonâncias, dissonâncias.” (apud MARTINS, 2014, p. 25).
À beira de um colapso emocional, o protagonista tece o seu relato intercalando
trechos do diário íntimo de sua ex-mulher, que apresentam datas e letras em formato itálico.
Ricardo conduz o enredo expondo suas reflexões auto-analíticas, bem como suas percepções
acerca do romance. Em determinadas passagens, ele faz referência ao fato de também estar
escrevendo outro livro “O céu dos suicidas”, coincidentemente, o mesmo título do livro
publicado pelo escritor Ricardo Lísias no ano de 2012.
Nessa perspectiva, é válido ressaltar a noção de verossimilhança no romance. Com
uma identidade onomástica entre autor, narrador e personagem, o escritor Ricardo Lísias
atribui sua assinatura a tudo que escreve e, sobretudo, adiciona biografemas. A narrativa é
permeada por registros fotográficos de sua infância ao lado da família; referências diretas às
suas obras, profissão, cidade onde mora e até aos seus gostos pessoais. O narrador-
personagem justifica o emprego das fotografias como uma de tentativa de reconstrução da
consciência. Em razão do “colapso emocional” sofrido, ele afirma estar “perdendo a
memória”, assim, o resgate das fotos o faria recobrar os sentidos e recordar os momentos
que em viveu. O trauma o fez sofrer um bloqueio de memória recente: “Não encontrei muita

448
Anais

dificuldade com as lembranças antigas. A questão é recordar o que vivi nos últimos anos”
(Lísias, 2013, p.133-134). Entretanto, Ricardo não consegue encontrar nenhum registro do
período em que ele manteve o relacionamento com sua ex-esposa, todos os acontecimentos
que se sucederam nesse período surgem de forma desordenada e obscura em sua mente.
Desse modo, a partir do capítulo/quilômetro oito, o narrador-personagem passa a
inserir fotografias suas de quando era criança e também de seus familiares. Em uma das
imagens, aparece o escritor Ricardo Lísias quando era bebê. Na foto, o menino está sem
roupa ao lado de um homem adulto. A narrativa tem continuidade sem qualquer relação com
essa imagem, no entanto, em uma passagem próxima, Ricardo faz uma nova referência ao
fato de seu corpo ainda estar sem pele. Isso pode ser entendido como uma tentativa de o
autor relatar uma experiência simbólica de morte e renascimento, relacionando a troca de
sua pele de quando nasceu à sua nova pele adquirida após o trauma.
Sem sucesso em sua busca por registros de sua história recente, o narrador-
personagem progride com a narrativa e com a apresentação de mais algumas imagens suas
quando criança. A maioria delas, contudo, sem uma possibilidade clara de associação com o
que está sendo narrado. Ricardo instiga a curiosidade do leitor com os registros biográficos
apresentados, porém, em virtude de sua instabilidade emocional, torna complexa a tarefa de
analisar a veracidade e transparência do relato. Como em um jogo de quebra-cabeças, o autor
apresenta as peças por meio de textos e imagens, tornando impossível atribuir a um único
sujeito (real ou ficcional) os fatos descritos.
Há, no livro de Lísias, uma série de outros elementos que atravessam o leitor quanto
à verdade dos acontecimentos, como no trecho em que o narrador-personagem afirma: “Não
aconteceu nada: ela não escreveu esse diário e não cobriu o Festival de Cannes de 2011 para
um jornal. É só um conto.” (LÍSIAS, 2013, p.15) e outro trecho afirma o extremo oposto:
“Acabo de achar a folha com as frases autobiográficas que redigi naquele dia. [...]
ACONTECEU NÃO É FICÇÃO” (LÍSIAS, 2013, p.16).
Nesse sentido, a ambivalência proposta pelo autor cria uma contradição entre
verdade e imaginação, sendo impossível definir a veracidade dos fatos apresentados pelo
sujeito. O eu fragmentado e híbrido provoca essa ambiguidade característica do jogo
autoficcional. Acerca dos limites existentes entre a ficção e a autobiografia que marcam o
romance, Martins (2014) afirma que “[...] em Divórcio, temos um caso extremo dos efeitos
práticos e reais desse jogo com a realidade.” (MARTINS, 2014, p.135). A noção entre o que é

449
Anais

ou não real se dilui pela forma contraditória com a qual o narrador-personagem expõe os
fatos.
Klinger (2006), em sua tese, discorre sobre a linha que separa a autoficção dos demais
gêneros. Segundo a autora, um traço característico dessa categoria de texto é o grau de
ficcionalidade apresentado. A autoficção, de acordo com ela, “[...] mistura verossimilhança
com inverossimilhança e assim suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto
da sua verossimilhança” (KLINGER, 2006, p. 47-48). Nessa perspectiva, ela formula um
conceito para o gênero.

[...] consideramos a autoficcão como uma narrativa híbrida, ambivalente, na


qual a ficção de si tem como referente o autor, mas não enquanto pessoa
biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente.
Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de construção do
discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-
se de forma crítica perante os seus modos de representação. (KLINGER,
2006, p. 65).

É nesse interstício que Klinger situa autoficção e enfatiza o autor como personagem
que se constrói por meio do seu discurso. Em Divórcio, Lísias faz uso de si para criar seu
personagem, assim, lança mão da indecibilidade entre identidade e alteridade. Através desse
recurso, tece críticas e reflexões sobre o mote e os demais personagens. “Se minha ex-mulher
não queria inspirar uma personagem, não deveria ter brincado com a minha vida. No estágio
atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista.” (LÍSIAS,
2012, p. 189-190). O escritor joga a todo instante com a noção de verdade e falsidade dos
fatos.
Na trama, o protagonista revela que foi ameaçado de processo judicial pela ex-esposa,
em razão disso, teve de se explicar: “Não estou tratando de uma pessoa em particular. Minha
ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013, p. 128). Apesar de suas
colocações, foi necessária uma justificativa à notificação extrajudicial em que ele afirma ser
ridículo o fato do romance ser levado a julgamento.

O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar,
Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama ficcional
elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente criado e
diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para justamente causar
uma separação. [...] Enfim, Excelência, o senhor sabe que a literatura recria
outra realidade para que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era
justamente reparar um trauma: como achei que estava dentro de um

450
Anais

romance ou de um conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter
certeza de que estou aqui do lado de fora, Excelência. (LÍSIAS, 2013, p. 217-
218).

O escritor Ricardo Lísias tem apresentado respostas semelhantes às de seu narrador-


personagem ao ser questionado sobre seu romance polêmico, como se pode ver na
entrevista concedida à Martins:

Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”. [...] A
literatura não reproduz a realidade, mas cria outra realidade a partir da
utilização da linguagem. Sabemos todos que a linguagem é limitada e muito
diferente da realidade, as palavras não são as coisas. Portanto, não pode
haver realidade de nenhuma ordem na ficção. O que parece ocorrer é que,
com as novas mídias, a figura do autor passou a aparecer mais e, então, a
leitura dos textos dos autores começa a ser calcada nessa representação de
sua vida pelas diferentes mídias. Ainda que o resultado sociológico possa ser
interessante, uma leitura do tipo “há experiência pessoal aqui” é redutora do
ponto de vista artístico. Estou tentando escrever, na minha ficção, textos que
induzam as pessoas a verem como elas podem se enganar quando vão atrás
da “realidade”. (MARTINS, 2014, p. 239).

Entretanto, sabe-se que o livro tem como ponto de partida uma experiência real e
traumática do próprio escritor. Bastante midiático e ativo em redes sociais, o autor anunciou
seu processo de divórcio pelo Facebook. Logo em seguida, ele publica um conto intitulado
“Meus três Marcelos”. De acordo com Azevedo (2013), exatos três meses antes do anúncio do
divórcio é possível ler em um jornal semestral idealizado pelo próprio Lísias, uma nota
editorial em que ele comemora seus três meses de casamento. Para a pesquisadora, a
publicação do conto logo na sequência do anúncio evidencia a clara possibilidade de
associação entre o Ricardo do texto e próprio autor. Em sua acepção,

O texto trata da dor do personagem, identificado como Ricardo, depois do


diário escrito por sua mulher. A plaquete distribuída a alunos do curso ‘Os
contos clássicos do século XX’, ministrado por Lísia, incorpora à própria
narrativa o episódio factual: ‘Comecei a dar um curso de contos 34 dias
depois de quase ter me matado. (AZEVEDO, 2013, p. 103).

As polêmicas em torno do romance não param de surgir. Na contracapa do livro, em


sua primeira edição, a sinopse também trata do caráter autoficcional do enredo: “Num fluxo
emocionante, numa reconstrução ficcional da memória, o amor ultrapassa os limites da
autoficção e alcança um novo terreno, em que a literatura – a literatura combativa e

451
Anais

desafiadora – tem a última palavra.” Por sua vez, esse elemento paratextual introduz ao leitor
um aspecto realístico da trama.
Os esforços em narrar à vida parece ser um recurso recorrente nas produções de
Lísias. Antes da publicação do romance, o autor publica outros contos, são eles: Divórcio e A
corrida, respectivamente, em novembro de 2011 e fevereiro de 2012 pela revista Piauí. Junto
a eles, Meus três Marcelos, publicado em 2011 pelo selo Dobra Editorial. Azevedo (2013)
considera os três contos uma “espécie de trilogia” em que o escritor confunde,
inquestionavelmente, os limites entre realidade e ficção.
Ademais, outro ponto bastante discutido na obra é o questionamento da ética
jornalística. O narrador-personagem evidencia em Divórcio a sua “insatisfação” com os
jornalistas. Enfatizando a profissão da sua ex-esposa, jornalista de um veículo importante da
cidade de São Paulo, o protagonista tece críticas e faz reflexões sobre a prática dos
profissionais. “O sistema em que as pessoas fazem denúncias sem precisar assumi-las é
dominante na imprensa brasileira”. (LÍSIAS, 2013, p.196).
De acordo com o conteúdo do diário apresentado por Ricardo, sua ex-esposa relata a
relação extraconjugal que manteve com um cineasta, que resultou em informações
privilegiadas na cobertura do Festival de Cinema de Cannes. Ao que parece, para o autor,
esse motivo é o principal objetivo do romance: uma crítica à falta de ética no
jornalismo.Nessa perspectiva, é possível inferir que o artifício da autoficção contribui para
sustentar o projeto de literatura política do autor, já que por meio dela ele consegue “criar”
o seu enredo e fazer suas considerações sobre o jornalismo embasadas pelo seu ponto de
vista pessoal. Segundo o escritor Lísias em entrevista à Bruno Soares dos Santos, “Divórcio
não é um romance sobre adultério, é um romance sobre adultério cometido durante o
festival de Cannes, com um dos jurados do festival, para que uma jornalista soubesse quem
iria ganhar o festival antes dos outros jornalistas.” (2017, p. 55). Todavia, não é válido
desconsiderar a realidade em partes reproduzidas na obra em prol de uma situação
unicamente ficcional. Em um artigo não ficcional, intitulado “Eu sou normal” o escritor diz
que

Concordo com a crítica literária: Divórcio borra a fronteira entre ficção e


realidade. Um dos objetivos do meu projeto estético é mostrar a
impossibilidade de recriar, através da linguagem, qualquer tipo de
referência segura a uma realidade mais comezinha e direta. Ao perceber a
operação, como fizeram leitores especializados e o público em geral, a
literatura assume o protagonismo e se torna o ator principal na constituição

452
Anais

dos sentidos. O primeiro passo foi observado: é tudo literatura e tudo é


literatura. (LÍSIAS, 2015, p. 90).

Lísias utiliza, desse modo, os mecanismos da autoficção para criar uma estratégia
narrativa que confunde o leitor, ao unir biografemas e ficção. O autor parte de uma
experiência pessoal, mas a verdade ali representada é distorcida. Sendo assim, observa-se
que não é possível separar a realidade da invenção na obra, atendendo assim de forma
incontestável ao gênero autoficcional.

Considerações finais

A leitura de Divórcio torna clara a associação entre autor e narrador-personagem. A


ambiguidade construída ao longo do enredo por meio de vários elementos aponta para uma
voz que parece querer elaborar uma narrativa no espaço entre vida e ficção. Lísias joga
abertamente com a verdade e a mentira, oscilando ora para aspectos biográficos de sua vida
ora para um romance fictício. Esses procedimentos de elaboração textual constituem-se
como uma marca de autoria do escritor.
Assim, com as diferentes possibilidades de recepção da obra, o autor provoca no leitor
o desejo de desvendar o que é verdade e o que é ficção. Os limites existentes entre o
referencial e o ficcional são tênues, motivo gerador das discussões acerca do gênero. Essas
indefinições que circundam a escrita autoficcional é o que tem fomentado as pesquisas entre
críticos e teóricos. Embasando-se no raciocínio de Martins (2014) autoficção é a melhor
maneira de chamar essa prática híbrida de ficcionalização de si.
A literatura contemporânea caminha para a uma nova configuração do romance em
que a autoexposição e a hibridez fazem parte. A ficção de si na obra de Lísias propõe um novo
modo de leitura em que o autor-personagem expõe e é exposto. Essa operação
autoficcionalizante revela-se um recurso literário recorrente na literatura atual.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Luciene. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY,
Giovanna; VIDAL, Paloma (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura
brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

453
Anais

BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: _______. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 1. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

DOUBROVSKY, Serge. O último eu. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios
sobre autoficção. Tradução: Jovita Maria Gerheim, Maria Inês Guedes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.

KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica.


2006. 204 f. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Letras. 2006. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/6168. Acesso em: 13 mai.
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LÍSIAS, Ricardo. Divórcio. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013.

LÍSIAS, Ricardo. Eu sou normal. Scriptorium, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 84-100, jul./dez.


2015b. Disponível
em:https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/scriptorium/article/view/21617.
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Martins, Anna F. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira


contemporânea. 2014. 251 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, PUC-RS. Porto
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MARTINS, Anna F. Uma discussão teórica acerca da autoficção: a ficcionalização de si em O


filho eterno, de Cristovão Tezza. Sintaxe & Literatura Comparada, Porto Alegre, v. 4, n. 11,
p. 181-195, 2011. Disponível
em:https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/7984.
Acesso em: 15mai. 2022.

SANTOS, Bruno. Autoficção e contemporaneidade: lendo Divórcio, de Ricardo Lísias.


2017. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação - Habilitação em
Jornalismo) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/11422/6585. Acesso em: 17 mai. 2022.

454
A CIDADE DE SÃO LUÍS E OS
PERCURSOS MEMORIALÍSTICOS
EM QUATROCENTONA CÓDIGO
DE POSTURAS & IMPOSTURAS
LÍRICAS DA CIDADE DE SÃO LUÍS
DO MARANHÃO (2021), DE LUÍS
AUGUSTO CASSAS
Ana Caroline Nascimento OLIVEIRA (UEMA)1
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2

RESUMO

Este trabalho objetiva analisar a relação entre homem e cidade na obra Quatrocentona:
código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) de Luís
Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA. A cidade de São Luís, fundada em

1 Graduanda do Curso de Letras Portuguesa da Universidade Estadual do Maranhão, Campus de


Timon. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq (2021-2022). CPF: 081.358.893-64. E-mail:
annyevanescense@gmail.com.
2 Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura (PROCAD - AM/CAPES).
Doutorado em Letras, área de concentração em Teoria Literária. Profa. de Literaturas de Língua
Portuguesa da Universidade Estadual do Maranhão e da Universidade Estadual do Piauí. Profa. dos
Programas de Pós Graduação em Letras de ambas universidades. Bolsista de Produtividade do CNPq.
CPF: 249.772.923-91. E-mail: silvanapantoja3@gmail.com.

455
Anais

1612, é conhecida como cidade dos azulejos, os quais fazem parte da antiga decoração das
fachadas dos casarões, e por seu calçamento colonial, igrejas seculares, monumentos, fontes,
ruas, becos, dentre outros, concentrados no centro histórico da capital, cuja paisagem é
ressignificada pelo eu lírico da obra Quatrocentona. A paisagem arquitetônica da cidade está
cada vez mais se alterando em decorrência da vida moderna, o que tem influenciado a
relação que o homem estabelece com ela, fato que nos motivou a investigar a obra em
questão na perspectiva memorialística. Nesse sentido, vale os seguintes questionamentos:
como os fatos urbanos do acervo patrimonial de São Luís são ressignificados pelas
impressões do eu lírico? de que modo o eu lírico dá relevância à memória da cidade e também
aos costumes e tradições do lugar? Como se dá a relação do eu lírico com a cidade? A pesquisa
está fundamentada no pensamento de Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes
(2008) e Santos (2015).

PALAVRAS-CHAVE: Cidade. Memória. Poesia. Cassas

ABSTRACT

This work aims to analyze the relationship between man and city in the work Quatrocentona:
código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) by Luís
Augusto Cassas, a poet born in the city of São Luís - MA. The city of São Luís, founded in 1612,
is known as the city of azulejos, which are part of the old decoration of the facades of the
mansions and for its colonial paving, secular churches, monuments, fountains, streets, alleys,
among others, concentrated in the historic center of the capital, whose landscape is re-
signified by the lyrical self of the work Quatrocentona. The city's architectural landscape is
increasingly changing due to modern life, which has influenced the relationship that man
establishes with it, a fact that motivated us to investigate the work in question from a
memorialist perspective. In this sense, the following questions are worth asking: how are the
urban facts of the São Luís heritage collection re-signified by the impressions of the lyrical
self? How does the lyrical self-give relevance to the memory of the city and the customs and
traditions of the place? How does the lyrical self relate to the city? The research is based on
the thinking of Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes (2008), and Santos
(2015).

KEYWORDS: City. Memory. Poetry. Cassas.

Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre homem e cidade, a partir da
memória na obra Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São
Luís do Maranhão (2021), de Luís Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA.
O estudo integra a pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq (2021-2022) vinculado à
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
Cassas estreou na literatura com a publicação de República dos becos em 1981, sendo,
de imediato, aclamado pela crítica local. O poeta já fazia parte do cenário cultural

456
Anais

maranhense integrado do Movimento Antroponáutico (1971), formado por jovens poetas


com suas produções alternativas. Radicado em São Paulo, Cassas tem uma vasta obra, com
mais de 20 publicações, com destaque para: A paixão segundo Alcântara e novos poemas
(1985 – 1ª; 2006 – 2ª), Ópera barroca (1998), O vampiro da Praia Grande (2002), Evangelho
dos peixes para a ceia de aquário (2008). Em 2012, reuniu toda a sua produção anterior à
Quatrocentona em dois volumes intitulados A poesia sou eu: poesia reunida.
A obra, objeto de estudo, gira em torno da paisagem da cidade de São Luís, uma
homenagem aos seus mais de quatrocentos anos de fundação. O livro é dividido em 9 partes,
"A cidade aberta", "A cidade relembrada", "A cidade no varejo & atacado", "A cidade & a alma
ensolarada", " A cidade transfigurada véu e máscara", " A ilha dançada", " O dono do mar", " A
cidade fantasma romântico", "O renascimento da cidade" totalizando 90 poemas. Alguns
poemas já foram publicados em outras obras, porém a maioria são inéditos. Foram objetos
de análise nesta primeira parte da pesquisa, os seguintes poemas: “introdução aos sanctus”,
“Bechiana n°10”, “ecos da cidade-fantasma", "paralelepípedo”, localizados nas partes iniciais
da obra.
A cidade moderna mostra-se sedutora com sua arquitetura futurista, mas também
desafiadora com seus contrastes e problemas sociais. O seu dinamismo é resultante do
processo histórico e do modo como os sujeitos sociais interagem com um conjunto de fatores
que a vida moderna impõe. A partir da interação com o espaço do presente e do passado, o
eu poético de Quatrocentona3 intui sobre a memória da cidade: seus homens ilustres, sua
cultura, seus costumes e seu patrimônio urbano. Para tanto, questiona-se: como os fatos
urbanos do acervo patrimonial de São Luís são ressignificados pelas impressões do eu lírico?
De que modo o eu lírico dá relevância à memória da cidade? Como se dá a relação do eu lírico
com a cidade? Com base nessa problematização, a pesquisa está sendo norteada pela visão
dos seguintes teóricos: no que se refere à memória, adotamos o pensamento de Halbwachs
(2006), Bosi (2003) e Asmann (2011); quanto ao estudo sobre o espaço urbano, as visões de
Ferrara (1998) e Pesavento (2002); acerca das paisagens urbanas pós-modernas, o
pensamento de Zukin (2018).

Relação cidade e memória em Quatrocentona

3 Ao longo do artigo, adotaremos apenas a palavra Quatrocentona para nos referir ao título do livro, objeto
de estudo.

457
Anais

Na literatura, especialmente na poesia, a relação entre homem e cidade tem sido


motivo de interesse de diferentes escritores ao longo dos tempos. Em Portugal, Cesário
Verde surge dando evidência a Lisboa, seguido do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro
de Campos; no Brasil, Mário de Andrade aclama a cidade de São Paulo, Ferreira Gullar, Nauro
Machado e, mais recentemente, Joãozinho Ribeiro, Luís Augusto Cassas, Natan Campos
voltam o olhar para a sua São Luís, isso só para citar alguns. A condição do poeta é de um
construtor que tem o privilégio de criar lugares e ambientes em sua produção literária. Esse
fenômeno é comum na poesia, como explica Benjamin:

O poeta goza o inigualável privilégio de poder ser, conforme queira ele


mesmo ou qualquer outro. Como almas errantes que buscam um corpo,
penetra, quando lhe apraz, a personagem de qualquer um. Para o poeta tudo
está aberto e disponível; se alguns espaços lhe parecem fechados, é porque
aos seus olhos não valem a pena serem inspecionados. (BENJAMIM, 1994, p.
52).

A poesia de Cassas explora a relação homem/cidade, a partir das impressões e


sensações do sujeito poético. Ao longo dos poemas de Quatrocentona, o eu lírico observa as
transformações pelas quais a cidade passa. Ao adotar a postura de um flâneur, deambula
pelos espaços da urbe trazendo à tona a paisagem ludovicense, com seus monumentos,
elementos urbanizados, costumes e tradições. Sobre o flâneur, Benjamin assevera:

“Se, no começo, as ruas se transformavam para ele em interiores, agora são


esses interiores que se transformam em ruas, e, através do labirinto das
mercadorias ele vagueia como outrora através do labirinto urbano”.
(BENJAMIM, 1994, p. 81).

O centro histórico, da cidade de São Luís foi tombada pela UNESCO em 1997, sendo
considerada Patrimônio Cultural Mundial, por sua importância cultural e arquitetônica para
a humanidade. Em Quatrocentona o eu lírico estabelece uma relação de familiaridade com os
lugares que guardam a memória da cidade de São Luís: ruas, igrejas seculares, casarões,
becos, bondes, dentre outros. São espaços públicos, comuns aos habitantes do lugar, que
cedem lugar à memória coletiva, de modo que a memória individual do eu-poético ajuda na
consolidação dessa memória do grupo.
Abreu (1998) diz que a memória da cidade envolve o estoque de lembranças
eternizado na paisagem e nos registros de um determinado lugar, lembranças essas que são

458
Anais

objeto de reapropriação por parte da sociedade. O eu poético faz uso do processo de


rememoração quando executa o seu ato de flanar a cidade, depositando nesse gesto suas
emoções, sensações, inquietações e preocupação com o patrimônio urbano.
O nosso flâneur, no seu passeio pela urbe, faz referência a comidas típicas da região,
seguida de fina ironia, como se estivesse em oração, ao pedir proteção aos habitantes do
lugar, como se percebe no fragmento a seguir:

pelo sinal
do cuscuz com coco
e do peixe-serra
livrai do mal
o povo
da minha terra

minha cidade
minha ruína
minha catarina mina
meu licor de tangerina
minha mina
meu buquê de hiroxima
[...] (CASSAS,2021, p. 21).

O cuscuz com coco, o peixe-serra, os licores de tangerina são consumidos na Ilha e


corroboram para a representação da identidade do lugar. Com isso, o eu-lírico valoriza a
cultura local, o que também faz parte da memória citadina. Ao usar a expressão “minha
ruína" denúncia o processo de deterioração de antigas construções arquitetônicas que
constituem a memória do lugar. O uso do pronome possessivo “minha” demonstra uma
relação de posse do eu-poético sobre a cidade, que sugere um dever de cuidado. Assim a
cidade, como um espaço geográfico de vivências, acaba por despertar sentimento de
pertencimento. Sobre a relação homem e ambiente construído, explica Gomes:

A cidade como ambiente construído, como necessidade histórica, é resultado


da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza. Além
de continente das experiências humanas, com as quais está em permanente
tensão, “a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua
própria história”. (GOMES,1994, p. 23.).

Servindo-se das lembranças do eu-lírico, a cidade acaba por se tornar o alicerce para
a memória poética, relacionada a práticas sócios-culturais da região. Em Quatrocentona
percebe-se uma sensibilidade do sujeito lírico para com a cidade, expressando forte ligação
com as particularidades que a envolve, é o que podemos observar no poema bechianas n°10:

459
Anais

minha casa
tem muitas meias-moradas
entrai: abri as tramelas

quem penetrar
as escadas & sacadas
salvará as portas e janelas

(CASSAS, 2021, p. 30. Negrito nosso)

As casas de porta-e-janela da parte antiga da cidade de São Luís se comprimem umas


nas outras, sem muro para separá-las e muito próximas às calçadas. Observamos que o eu-
lírico se reporta à cidade de São Luís como “minha casa”, tratando-a, mais uma vez, com um
sentimento de posse. Ao mesmo tempo, o eu lírico faz um convite para que a conheçam:
“entrai: abri as tramelas”.
Já na segunda estrofe, o eu-lírico faz um apelo: “salvará as portas e janelas”. Com isso,
a cidade adota uma nova funcionalidade, não mais de moradia, mas sim de visitação, sendo
essa uma forma de sobrevivência do passado. Muitas das construções arquitetônicas do
centro histórico de São Luís estão abertas ao turismo, de modo que a súplica dele é um ato
de proteção que leva a refletir sobre a importância da preservação do patrimônio urbano.
Na sociedade moderna, o surgimento de novos prédios, de construções futuristas e de outras
inovações vem deixando cada vez mais os espaços antigos sitiados, o que talvez justifique a
revalorização do passado das cidades nos últimos tempos, como defende Abreu:

Depois de um longo período em que só se cultuava o que era novo, um


período que resultou num ataque constante e sistemático às heranças vindas
de tempos antigos, eis que atualmente o cotidiano urbano brasileiro vê-se
invadido por discursos e projetos que prega restauração, a preservação ou a
revalorização dos mais diversos vestígios do passado. (ABREU, 1998, p. 5).

A justificativa desse projeto de revalorização do passado é uma tentativa de preservar


a memória urbana que se entrelaça à memória coletiva e individual dos habitantes do lugar.
Diante disso, o patrimônio cultural apresenta-se como uma prática da memória de valor
simbólico por meio de seus bens, como o acervo arquitetônico, logradouros, restaurações de
antigos casarões como uma forma de garantindo o lugar de preservação.
A seguir tem-se o poema “ecos da cidade-fantasma”, pertencente à parte intitulada “a
cidade relembrada”. É um exemplo de poema que rememora alguns marcos históricos da

460
Anais

cidade. Faz referência aos primeiros transportes que circularam na ilha: os bondinhos
elétricos.
Noturno na rua Grande
em vão espero o bonde
Bonde bonde bonde bonde

Sei que um dia vai chegar


feérico sob o luar
luar luar luar luar

Ei-lo: brilho no trilho ao sol


Reflexo do vidro pra cerol
Cerol cerol cerol cerol

[...]

Estou em ti e tu estás em mim


Como moram juntos o início e o fim
O início e o fim o início e o fim
O fim o fim o fim o fim o fim o fim
(CASSAS, 2021, p. 60)

Até 1966 os bondes circulavam pela Ilha, foram os primeiros transportes moderno a
chegar na província e até hoje são lembrados por poetas maranhenses. Em Poema sujo (2004,
p. 261), o eu poético de Ferreira Gullar rememora a cartografia da cidade fazendo referência
aos bondes: “[...] enquanto o bonde Gonçalves Dias/ descia a rua Rio Branco/rumo à Praça
dos Remédios e outros/ bondes desciam a Rua da Paz [...]”. O bonde é um dos elementos
urbanos marcado no imaginário coletivo, especialmente por sua funcionalidade trafegando
pelas ruas antigas da capital. Algumas das costumeiras ruas por onde os bondes circulavam
encontram-se interditadas para tráficos aumobilísticos, livres apenas à circulação de
pedestres.
O eco que se visualiza ao final de cada estrofe de “Ecos da cidade-fantasma” remete a
um passado distante, som que se duplica no vazio da rua, o que justifica o título do poema.
No verso: “Estou em ti e tu estás em mim” expressa, mais uma vez, sensação de
pertencimento, de modo que homem e cidade se completam. O eu-lírico precisa da cidade
para vivenciar suas memórias e a cidade precisa do seu flâneur para dar visibilidade à
memória, existindo numa relação simbiótica, como é explicado por Santos e Moreira (2020,
p,527):

Em geral, nada questiona porque está atrelado ao meio por vínculos afetivos,
modelados por pegadas deixadas em calçadas e ruas, por lastros que se

461
Anais

fixam em degraus, paredes de casas e fachadas de prédios, por isso muitas


vezes a visão é envolta por uma cortina de neutralidade. (SANTOS; MOREIRA
2020, p. 527).
Recentemente as ruas antigas de São Luís passaram por um processo de revitalização
com a substituição de postes por fiação subterrânea, novo calçamento e outras alterações.
Assim a cidade vai recebendo camadas sobrepostas como uma escrita em palimpsesto.
A modernização das grandes cidades é inevitável e as alterações espaciais influenciam
na maneira como a cidade é percebida. Por conseguinte, a experiência de recordar o passado
citadino acaba sendo sentida, em meio ao processo de modificações dos lugares de memória.
Com esse processo, o desenraizamento da memória é inevitável. Como diz Bosi (2003, p. 28):
“O desenraizamento é a condição desagregadora da memória”. Assim, a experiência de
rememorar é relevante nessa obra de Cassas. De modo semelhante, naturalmente os sujeitos
sociais vão se afastando do passado individual: sua primeira casa, a rua da infância, dos
conhecidos. No poema “Paralelepípedo” o eu lírico dá visibilidade a um traço do calçamento
da parte antiga de São Luís, que remonta ao período colonial.

Os paralelepípedos
das ruas de São Luís
Parecem e são
bordados de croché
feitos à mão

navalhas do belo
pedras da criação
os paralelepípedos
das ruas de São Luís
poetram do chão

ovos barrocos
testemunhos dos destroços
ó paralelepípedos
das ruas de São Luís
granito dos meus ossos

joalheria a céu aberto


diamantes de multidão
os paralelepípedos
das ruas de São Luís
fragmentos de coração

nas ruas de São Luís


os paralelepípedos
têm cara de munição
pesados pombos sem asa
arrebentam a solidão

462
Anais

(CASSAS,2021, p.61)

O eu-poético continua pondo em cena as ruas antigas de São Luís, elementos


primários da cidade. Ele compara antigo calçamento da cidade como “bordados de croché”,
que se assemelham por serem construídos manualmente e terem suas formas delicadas e
cuidadosas na sua feitura.
O eu-lírico faz um detalhamento do calçamento, este por sua vez carregado de
histórias, em que notamos uma sensibilidade ao descrever a sua arquitetura. No verso
“poetram do chão”, o eu lírico apropria-se da figura de linguagem para personificar o
paralelepípedo, que agora faz poesia do chão, sendo testemunho das mudanças ocorridas na
cidade. O calçamento de paralelepípedo, mesmo desgastado, ainda resiste às transformações
urbanas e o desgaste do tempo, sendo testemunho da gênese da cidade.
Sobre a relação patrimônio e memória, Santos e Moreira (2020, p.531) esclarecem:
“O detalhamento dos logradouros provavelmente comporta singularidades que acabam
fundindo-se com trajetos pessoais dos habitantes do lugar”. Observa-se que eventos do
passado podem ser rememorados a partir de circunstâncias rotineiras que apresentam
elementos de referências para a memória do eu poético. O calçamento se recorta em camadas
de vivências e se fragmenta pelo corpo da cidade, assim, percebemos que a poesia de Cassas
retrata mais uma fragmentação do espaço urbano, como no verso “fragmento de coração”,
demonstrando que está acarretado de ressentimento ao perceber os espaços se esfacelando.
Em Quatrocentona vê-se vários fragmentos de lugares completamente diferentes,
mas que convergem para o propósito poético, qual seja dar visibilidade à memória citadina.
O eu-lírico está ora na praça, ora no cinema roxy ou na avenida beira-mar e em outros
lugares. Essa é a artimanha do eu poético para mostrar o seu desejo de enraizamento nos
espaços de pertencimento.

Considerações finais

O cenário urbano tem papel importante para a memória do lugar, visto que os espaços
são palcos de vivências e de memórias. Observamos que o sujeito poético de Quatrocentona,
ao longo da obra, rememora os espaços citadinos por meio de recortes da cidade e mostra
seu vínculo afetivo com a urbe. Assim, faz refletir sobre a importância da preservação do

463
Anais

patrimônio cultural em colaboração com o ato de rememorar. Por outro lado, a história da
cidade também depende dessas mesmas ações de rememorações.
Vejamos na poesia de Cassas uma pluralidade de lembranças no mesmo cenário: o
centro histórico de São Luís, cujos elementos pertencentes à paisagem são ressignificados a
partir das percepções e impressões do eu lírico.
A cidade, com seus costumes e tradições, exerce um papel relevante na vivência e
experiência dos sujeitos que a habitam. Ela carrega em suas curvas a história do próprio
lugar, isso acaba repercutindo na literatura, especialmente na poesia. Sendo o poeta um
construtor, aproveita-se dos recursos linguísticos à sua disposição para construir seu
cenário poético por meio do patrimônio urbano.
A relação homem e cidade mostra-se forte, pois o sujeito poético sente-se ligado à
cidade ao ponto de chamá-la de “minha casa”, como é destacado no primeiro verso do poema
“bechianas n°10”. Dessa maneira, demostra sensação de pertencimento à cidade por
intermédio de elementos que os interligam. Por outro lado, nota-se em outras passagens que
o eu poético sofre com o processo de desenraizamento, em decorrência de modificações e
fragmentações da paisagem urbana.
Desse modo, a voz poética consegue apresentar a relação homem/cidade, a partir de
experiências e vivências; ressignifica a memória do lugar e dá um novo sentido ao
patrimônio, demarcando o lugar de pertencimento. Portanto, pode-se afirmar que o processo
de restauração, tombamento, valorização dos elementos que compõem os centros urbanos
antigos são de suma importância para a memória citadina. Diante disso, considera-se
importante a conservação dos lugares de memórias frente ao ato de rememorar, pois eles
fazem parte da construção pessoal e social de uma comunidade.

REFERÊNCIAS

ABREU, Mauricio de Almeida. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III
n°4, (p,01-22), jan./jun.1998

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:


Editora brasiliense,1994.

CASSAS, Luís Augusto. Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade
de São Luís do Maranhão. Cajazeiras: Arribaçã Editora, 2021

464
Anais

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio
de Janeiro: Rocco, 2008.

SANTOS, Silvana Maria Pantoja dos; MOREIRA, Marcello. Quando a cidade não passa:
memória e patrimônio na poesia baiana. Patrimônio e Memória, Assis, SP, v. 16, n. 2, p. 522-
539, jul./dez. 2020. Disponível em: pem.assis.unesp.br.

465
MEMÓRIA E ESPAÇO
CABO-VERDIANO:
IMPACTOS NA FORMAÇÃO
DA IDENTIDADE DOS
SUJEITOS
MARGINALIZADOS
Igor Luid de Souza OLIVEIRA (UFMA/PGLB/CCEL)1

RESUMO

Esta pesquisa buscou os conceitos de memória e identidade, com objetivo de compreender


como o espaço descrito no romance, Marginais, do escritor Evel Rocha, contribui na
construção da identidade dos sujeitos marginalizados que vivenciam o lugar contextualizado
na obra. A memória é um fenômeno que se constitui em grupos, mas também, sempre é um
trabalho do sujeito, e a identidade retrata, na construção da memória, todo o investimento
que um grupo faz na medida que passa por inúmeras experiências. No romance Marginais é
notória a abordagem desses conceitos, uma vez que reflete na vida dos personagens, tanto
no plano individual como no coletivo. É importante destacar que o espaço no qual estão os
personagens vivem e transitam, os momentos caóticos lá vivenciados, interfere direto na
formação das suas identidades, na construção das suas memórias. Apresenta-se aqui este
trabalho, o qual é produto de pesquisa bibliográfica e centrado numa abordagem qualitativa,
baseado nas reflexões e discussões desenvolvidas por teóricos como Halbwachs (2003)
acerca da memória coletiva; Joel Candau (2012) com suas contribuições sobre a dialética da

1 Memória e espaço cabo-verdiano: impactos na formação da identidade dos sujeitos; e-mail:


igorl97@outlook.com

466
Anais

memória e identidade; Alvarenga (2017) e Relph (2012) e dentre outros, apresentando suas
noções de lugar, e vivências/experiências que transfiguram o espaço em lugar atuando na
identidade dos sujeitos.

Palavras-chave: Memória do espaço; Identidade; Sujeitos sociais; Crítica literária; Evel


Rocha.

ABSTRACT

This research searches the concepts of memory and identity, in order to understand how the
space described in the novel, Marginais, by the writer Evel Rocha, contributes to the
construction of the identity of marginalized subjects who experience the contextualized
place in the work. Memory is a phenomenon that is constituted in groups, but it is also always
a work of the subject, and the identity portrays, in the construction of memory, all the
investment that a group makes as far as it goes through countless experiences. In the novel
Marginais, the approach of these concepts is notorious, since it reflects the lives of the
characters, both in individuall and collective plans. It is important to highlight that the space
in which the characters live and transit, the chaotic moments experienced there, interferes,
in the formation of their identity directly, in the construction of their memories. This work
is presented here, which is the product of bibliographic research and focused on a qualitative
approach, based on reflections and discussions developed by theorists such as Halbwachs
(2003) about collective memory; Joel Candau (2012) with his contributions about the
dialectic of memory and identity; Alvarenga (2017) and Relph (2012) and others, presenting
their notions of place, and living/experiences that transfigure space into place, operating in
the identity of the subjects.

Keywords: Space memory. Identity. Social subjects. Literary criticism. Evel Rocha.

INTRODUÇÃO

A memória e o espaço são dois conceitos cruciais para formação identitária do sujeito
marginalizado, uma vez que o contato diário com os objetos materiais, mudados ou não,
resultam para o sujeito uma imagem de permanência e estabilidade. Este trabalho vem tratar
sobre os conceitos de memória, espaço e identidade, apresentando reflexões sobre como a
memória e o espaço da Ilha de Sal, em Cabo Verde, constituída no Romance Marginais
(2010), escrito por Evel Rocha, contribui nessa construção da identidade do ser
marginalizado na obra.
Ilha de Sal, pertencente ao arquipélago de Cabo Verde, é o ambiente descrito em
Marginais (2010), onde o autor apresenta uma narrativa social com situações
desalentadora, representando um cenário forte de desigualdade social, violência de gênero
e uma opressão das classes bastardas em relação ao restante da população, condenada à
margem da sociedade, à miséria. Como afirma Lugarinho (2012, p. 220), sobre o lugar

467
Anais

narrado em Marginais, entre 1977 e 1999: “A terra é esvaziada de sentido porque a nação é
representada por um Estado indolente, incapaz de ser a entidade capaz de promover justiça
e a estabilidade social, com políticas efetivas de inclusão e socialização”.
O romance Marginais é percebido como uma construção que representa uma
narrativa dentro ou além da própria narrativa, uma vez que Sergio Pitboy, personagem
principal, pega as suas memórias e entrega para um “Engenheiro”, na expectativa de serem
divulgadas, perpassando ou antecipando a narração principal. Na obra, Evel subintitula as
memórias de Sergio Pitboy como “Apontamentos de um vagabundo”, e ademais, como
segundo autor, confessa as mudanças apontadas no texto original.
A princípio, a memória pode ser entendida como um conceito individual, algo
literalmente íntimo da pessoa, porém, Halbwachs (2003), já apontava que a memória pode
ser vista também como um fenômeno coletivo e social, a saber, como algo que é construído
coletivamente e sujeito a transformações, como aponta Halbwachs (2003): “Nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros...” (HALBWACHS, 2003,
p. 30).
A identidade pode ser compreendida em até duas dimensões, a saber, a primeira na
dimensão social, que pode ser também política e cultural, e a segunda está conectada no
plano pessoa, ou seja, individual. Desse modo, a identidade pode ser tanto auto atribuída
como também apropriada, isto significa que ela é socialmente marcada por outros e pode se
modificar para se acomoda-se em diferentes cenários. Hall (2006) faz nota-se a identidade
como um processo em andamento, em construção: “A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas, através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros...” (HALL, 2006, p. 39).
Em relação ao o espaço, como cenário, entende-se como um conceito que fundamenta
a presença do sujeito no mundo, uma vez estando unidamente ligado com as memórias dos
sujeitos e das coletividades humanas. Alvarenga (2017) aponta: “A abordagem
fenomenológica do lugar, como espacialidade da experiência, ultrapassa a dimensão da
experiência direta, estritamente individual” (ALVARENGA, 2017, p. 102).
Relph (2012) aponta: “cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se
relaciona conosco” (RELPH, 2012, p.31). Desse modo, o espaço/cenário, considerado nesta
pesquisa, é o que traduz melhor essa atuação da memória na conduta social sujeito aos
lugares, tendo em vista que é uma relação que une a idealização de espaço e experiência.

468
Anais

Esse trabalho está dividido em duas partes: na primeira, Memória e Identidade:


revisão teórica, introduzo a discussão tecendo sobre a memória e apresentando um
revisionismo sobre o conceito de identidade e suas relações dialéticas, Halbwachs (2003),
Joel Candau (2012), Hall (2006) e dentre outros. Em seguida, em o Espaço como cenário de
impacto na formação identitária do sujeito marginalizado, discuto sobre como o lugar, a
vivência, as experiências que transfiguram esse espaço em lugar, influenciam na identidade
do sujeito marginalizado, Alvarenga (2017), Relph (2012) e dentre outros.

MEMÓRIA E IDENTIDADE: revisão teórica

Maurice Halbwachs (2003), em seu livro Memória Coletiva, discute no primeiro


capítulo sobre as duas principais categorias de memória: memória individual - “O primeiro
testemunho que podemos usar será sempre nosso” (p. 29) e memória coletiva - “É como se
estivéssemos diante de muitos testemunhos” (p. 30). Diante da perspectiva de que o
indivíduo nunca está sozinho, até os eventos solitários são percebidos como lembranças que
permanecem coletivas, ou seja, para o autor, a memória individual é construída a partir da
memória coletiva.
Halbwachs (2003) enfatiza ainda que, para lembrar ou confirmar uma memória,
nenhum testemunho é necessário “no significado literal da palavra, isto é, indivíduos
presentes em forma material” (HALBWACHS, 2013, p. 31). Todavia, se a narrativa acontece
em primeira pessoa, assume-se a ideia de que há maior confiabilidade dos fatos lembrados
pelo sujeito. Ainda é possível perceber um caráter social na teoria de Halbwachs (2003), uma
memória coletiva configurada em instituições sociais como família, igreja, escola, entre
outras, que formam o sujeito com certas visões de mundo. Para esse autor, o indivíduo confia
no coletivo, uma vez que o indivíduo se encaixa nessa coletividade a partir de uma estrutura
de sentido que o grupo compartilha.
Halbwachs, no início do século XX, evidenciou não apenas o caráter coletivo da
memória, mas também problematizou uma ideia de identidade social. A partir de uma
espécie de comunhão do olhar, desde que se estabeleceu, com base no que ele chamou de
memória coletiva, os indivíduos compartilham uma leitura da temporalidade e uma
experiência cotidiana que dá sentido a um determinado grupo.
Complementando essa ideia, entende-se então que é a partir disso e de que
Halbwachs (2003) chama a comunhão do olho que surgem representações culturais, ou

469
Anais

melhor, “representações coletivas”, nas quais a experiência comum do indivíduo está ligada
a uma esfera de valores de grupo. Por extensão, revela que as identidades culturais são
formadas, tendo uma base concreta precisamente nessas representações, compartilhadas
por um determinado grupo social, ao qual, mais amplamente, se relacionam com a
centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa
como ator social. Desse modo, Halbwachs (2003), diz:

Por isto, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado por
ninguém, sem dúvida durante algum tempo ‘ele andou só’, na linguagem
corrente – mas ele esteve sozinho apenas em aparência, pois, mesmo nesse
intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam por sua natureza de ser
social e porque ele não deixou sequer por um instante de estar encerrado
em alguma sociedade. (HALBWACHS, 2003, p. 42).

Nesse sentido, pode-se aplicar uns dos elementos que faz parte desse processo de
construção da memória, tanto no plano individual quanto coletivo, a saber, os
acontecimentos conhecidos como “vividos por tabela”. Como aponta Oliveira (2021) sobre
esse esquema das tabelas:

Segundo, são os eventos que eu chamaria de "tabela vivida", ou seja, eventos


experimentados pelo grupo ou comunidade à qual a pessoa se sente
pertencente. São eventos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas
que, no imaginário, ganhou tanto destaque que no final das contas, fica quase
impossível para ela saber se participou ou não. (OLIVEIRA, 2021, p. 13).

Ainda se utilizando do pensamento de Halbwachs (2003), que, ao dar um status social


à memória, acabará refletindo na lembrança, entendendo que o passado é uma construção
do pensamento, e o presente, mostrando a relação do homem com o tempo e sua própria
identidade. Como salienta Oliveira (2021):

Pode-se dizer, então, que para esse autor não existe passado em si, mas um
passado construído/reconstruído pelo grupo, a partir de uma consciência
dotada de significados, subjetividades, intencionalidades, relações de poder
na construção de uma homogeneização do ver e pense em um elemento
particular da vida cotidiana. (OLIVEIRA, 2021, p. 17).

Desse modo, para Halbwachs (2003): “Geralmente o indivíduo vincula suas memórias
a um espaço e a uma temporalidade em que compartilha com outros sentimento em relação
ao compartilhamento dessa temporalidade”. (HALBWACHS, 2003, p. 54).

470
Anais

Outro teórico bastante necessário para esta discussão chama-se, Paolo Rossi (2010),
que traz em seu livro O passado, a memória e o esquecimento, onde no capitulo primeiro,
apresenta que quão importante tratar da memória é também entender a relação que tem
com o esquecimento. Diante disto, o escritor trata os significados da memória e
esquecimento, observando como esse quadro memória/esquecimento vem sendo abordado
na tradição filosófica. Rossi (2010) evidencia que:

Na tradição filosófica, e também no modo de pensar comum, a memória


parece referir-se a uma persistência, a uma realidade de alguma forma
intacta e contínua; a reminiscência (ou anamnese ou reevocação), pelo
contrário, remete a capacidade de recuperar algo que se possuía antes e que
foi esquecido. Segundo Aristóteles, a memória precede cronologicamente a
reminiscência e pertence a mesma parte da alma que a imaginação: é uma
coleção ou seleção de imagens com o acréscimo de uma referência temporal.
[...]. Voltar a lembrar implica um esforço deliberado da mente; é uma espécie
de escavação ou de busca voluntária entre os conteúdos da alma; quem
rememora ‘fixa por ilação o que antes viu, ouviu ou experimentou e isso em
substância, é uma espécie de pesquisa. (ROSSI, 2010, p. 15-16).

Para o filósofo, “[...] a história é jogo de revelação e encobrimento, de manifestação e


ocultação” (ROSSI, 2010, p. 19). É por isso que quando se pensa em memória, passado e
esquecimento, a saber, na relação entre elas, vale ressaltar sempre o que está por trás do que
aparece e do que fica oculto. Desta vez, o que nos permite pensar sobre o futuro é também
essa relação que a memória tem com a identidade e não somente com o passado.
Por sua vez, Rossi (2010) mostra como também a memória se apresenta dentro de
dois quadros, a saber, as lembranças e o esquecimento. Dentro desse quadro, o autor
apresenta que as memórias são manipulas através do esquecimento mostrando que há uma
relação da memória com a verdade.

O “apagar” não tem a ver só com a possiblidade de rever, a transitoriedade,


o crescimento, a inserção de verdades parciais em teorias mais articuladas e
mais amplas. Apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar,
confundir os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade. (ROSSI, 2010,
p. 32).

Pensando sobre o conceito de identidade, Candau (2011) ressalta “que o ato de ver a
identidade como um estado construído socialmente de certa maneira sempre acontece no
quadro de uma relação dialógica com o Outro” (CANDAU, 2011, p. 09).
Desse modo, ver-se que assimilar a identidade social de si, para si e com os outros, há
um elemento nessas definições que inevitavelmente escapa do indivíduo e se estende ao

471
Anais

grupo, e esse elemento é obviamente o outro. Ninguém pode constituir uma autoimagem
sem mudança, sem negociação e sem mudança nas funções dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se refere ao outro, referenciando padrões de aceitabilidade
e credibilidade, e se concretiza por meio da negociação direta com o outro.
Acerca do processo de construção das identidades, reforça-se que o exercício de
poder seja simbólico ou autoritário, será uma ação constante, uma vez que as identidades
são forjadas para garantir a manutenção de um grupo no poder. Desse modo, Silva (2014)
ressalta:

Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato


– seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, coerente,
unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a
identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma
relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas
discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.
(SILVA, 2014, p. 96-97).

Para Hall (2006) há três tipos de concepção sobre a identidade. Nessas concepções, o
autor mostra que a identidade se torna uma celebração móvel, uma vez que ela é formada e
constantemente transformada em relação aos meios que são representados ou interpelados
nos sistemas culturais que estão ao redor.

a) Sujeito do Iluminismo - baseado numa concepção de pessoa humana como


um indivíduo totalmente centrado, unificado, e de ação cujo centro consistia
num núcleo interior, que emergia deste o nascimento e ao longo de toda sua
vida, permanecendo totalmente o mesmo.
b) Sujeito Sociológico - reflete a complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo moderno não era autônomo e
autossuficiente, mas isto era formado na relação com outras pessoas
importantes para ele.
c) Sujeito pós-moderno - a identidade torna-se uma celebração móvel,
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam. (HALL, 2006, p. 11-12).

Segundo Hall (2006), até o século XX acreditava-se na existência da denominada


sociedade sólida, devido aos cenários culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, provocando assim solidas localizações como indivíduo social. Desde então, no

472
Anais

final desta época, as cenas culturais foram se modificando, atingindo também a ideia da
identidade pessoal, inclusive o sujeito assumindo um novo olhar sobre si.
Desse modo, a construção e a constituição da sociedade, sempre estiverem espaço às
relações de poder, aprestando que para que o indivíduo tenha a necessidade de ser inserido
vai depender da sua representatividade. Nesse sentido, a identidade do indivíduo é
desenvolvida pela necessidade de sobreviver, também seguindo o curso das variáveis
relações sociais, e de sua limitação no espaço e tempo em que o sujeito está inserido. A
identidade também se apresenta como uma forma do indivíduo fazer parte de algo referente
a uma formação de grupos, etnias, gênero, raça ou profissão no quais o igual e o diferente
vivem simultaneamente. Nesse sentido, a construção da identidade está unificada com o
contexto, sendo que todas as mediações sociais e as peculiaridades de cada tipo de
identidade está conectada ao ser social.
Como isso, Bauman (2005), reporta a consideração de que pensar sobre a identidade
leva-se a uma conceituação e a tendências que dão ênfase sobre as mudanças
comunicacionais que acorre na sociedade, as relações sociais, também quando se refere a
limitação quando se diz respeito a cunho humanístico até morais. Para Bauman (2005), no
que diz respeito às comunidades, ressalta que elas são definidoras de identidades, dividindo-
as em tipos: “comunidades de vidas e destino, cujo membros vivem juntos numa ligação
absoluta; e outras que são fundidas unicamente por ideias ou por uma variedade de
princípios” (BAUMAN, 2005, p 17).
Nesse sentido, Bauman (2005) ressalta a não solidez e o não pertencimento da
identidade por toda a vida, uma vez que as relações são negociáveis e o livre arbítrio também
faz parte desse processo. Ademais, mostra que com as presunções apresentadas, os sujeitos
também procuram, produzem e mantêm as referências dos movimentos de identidade que
se acham em mudanças, porém se combinam entre os vínculos grupais em um limitado
espaço temporal. A identidade pode ser compreendida e reinterpretada de várias formas,
uma vez que guiada pelas pressuposições conceituais e causando reflexões enfatizadas por
cada sujeito e em sua complexa subjetividade.

[...] a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não


descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que
ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e
então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais mesmo que, para que essa
luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente

473
Anais

inconclusa da deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.


(BAUMAN, 2005, p. 21-22).

Mediante o fragmento acima, percebe-se que a identidade é uma construção social, o


homem não nasce pronto, vai sendo moldado, construído a partir das suas experiências e
relações sociais, afinal, o sujeito é um ser inconcluso. Neste sentido, as identidades dos
sujeitos marginalizados do romance de Evel Rocha, são invenções do meio social onde eles
estão, no caso de Sérgio Pitboy, moldados pela ausência do pai e da mãe, o abandono do
irmão, as intrigas da cunhada. Portanto, Bauman (2005) parece dialogar com Hall (2006)
acerca da construção do sujeito na contemporaneidade.

O ESPAÇO COMO CENÁRIO DE IMPACTO NA FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO


MARGINALIZADO

Podemos dizer que os lugares e o espaço que localizam a existência e as experiências


dos sujeitos, por exemplo, a própria cidade, influenciam e moldam suas vivências e suas
identidades levando em conta de como estão vivendo.
Para Oliveira (2021), há lugares de memória, como aponta:

Lugares particularmente anexados a uma memória, um lembrete pessoal,


mas também pode não ter suporte cronológico. Pode ser por exemplo, um
local de férias de infância que permaneceu muito forte na memória, muito
notável, independentemente da data real em que a experiência ocorreu.
(OLIVEIRA, 2021, p. 14).

Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver locais de
suporte à memória, são os locais de celebração. Lugares muito distantes, fora do espaço-
tempo da vida de alguém, podem ser um lugar importante para a memória do grupo e,
portanto, para a própria pessoa, seja por tabela ou por pertencer a esse grupo.
O apego ao lugar decorre da perspectiva da experiência cotidiana, entendida e
percebida muitas vezes como sua raiz como pessoa, sugerindo um profundo sentimento de
conexão e pertencimento, mas também, paradoxalmente, um sentimento de quietude.
Quando se pensa a atuação dos Pitboys, percebe-se que o grupo já se tornara um
espaço para a construção de identidade ou identificações contínuas, possibilitado a
experiência e o vigor proveniente da união dos pares, garantindo o reconhecimento da
individualidade, como afirma o narrador do romance cabo-verdiano:

474
Anais

Pertencer aos Pitboys era o mesmo que receber um certificado de


emancipação à repressão dos pais e dos adultos que nos rodeavam; era uma
forma de defender a nossa integridade, onde expúnhamos a nossa cólera
sem medo dos outros, onde enunciávamos toda a nossa crueldade de modo
a nos vingarmos da rejeição social. Toda a nossa revolta tinha apenas um
alvo: a intolerância. No seio do grupo o medo ficava de fora. Ninguém,
enquanto estivesse no grupo, deveria demonstrar qualquer sinal de
fraqueza. O choro, a submissão e o medo eram sinais de fraqueza e nenhum
de nós estava na disposição de passar por afronta. Era necessário encarar o
perigo com desprezo e cuspir na cara do medo, era necessário demonstrar
revolta por tudo o que fosse regra e bom comportamento, pois, as pessoas
olhavam-nos com desprezo e devíamos retribuir-lhes desprezo também.
(ROCHA, 2010, p. 29).

Como aponta o trecho a cima, esse sentimento de pertencer aos Pitboys, que o
narrador, a saber, Sergio apresenta, não trata somente de um lugar no qual tem uma ligação
mais forte, como aquele lugar que traz à memória as experiências despreocupadas e,
também, feliz da infância, mas um lugar de refúgio onde os personagens marginalizados
podem refletir sobre a vida.
Sérgio, funda desde pequeno, junto com seu amigo Fusca, esta gangue chamada de
Pitboys. Grupada por crianças carentes, a gangue transformou-se numa organização onde o
futebol, a diversão e as experimentações sexuais eram trocadas por furtos e outras práticas
ilícitas. Desde a infância, Sérgio aprendeu trabalhando nas casas dos ricos, a furtar comida
para ajudar na sustentabilidade da família que vivia na miséria:

Fui o menino da Ribeira Funda que mais deu trabalho aos adultos. Conhecia
todos os cantos onde as galinhas poedeiras escondiam seus ninhos, sabia
todas as manhãs de como tirar o sorvete das outras crianças, sabia cor o
nome dos actores famosos e era capaz de falsificar ingressos para entrar no
cinema. Claro que não me orgulho dessas façanhas, mas ajudaram-me a
aliviar a dor de ser pobre, compensavam as privações que o destino me
impunha. (ROCHA, 2010, p. 35).

O lar é uma referência à vida que ainda está guardada na memória e molda nossa
identidade. Mesmo quando saímos deste lugar, estamos constantemente à procura de outro
espaço para ocupar o seu lugar, trazendo de volta o que vivenciamos em primeiro lugar; que
é o sentimento e certeza de pertencimento e identidade. É por meio dessa transformação do
viver e/ou dos espaços de convivência que os construímos e lhes damos sentido.
Opondo-se aos ideais dos Pitboys nas páginas dos Marginais, eles lutam por melhores
condições de vida, enquanto a sociedade da ilha de Sal está imersa nos arquétipos do
preconceito e da discriminação, e reprime os chamados marginalizados. As trágicas

475
Anais

consequências de certos personagens do romance podem ser vistas como a cristalização das
condições sociais, que são causadas por uma série de fracassos vivenciados cotidianamente
pelos marginalizados de Evel Rocha:

[...] naquele ano, quase fui violado por um polícia, perdi a zizi, perdi o direito
à escola, via a mãe viajando para a terra longe, meu irmão expulsou-me de
casa, a professora Izilda humilhou-me à frente de todos e, para cúmulo das
desgraças, recebi a notícia que não tinha futuro como jogador de futebol.
Meu corpo era pequeno demais para conter tanta angústia e sofrimento. [...]
Atirei-me cegamente para baixo do camião para pôr fim à minha desgraça,
porém, o condutor travou a tempo de evitar minha morte. [...] Ensopei a
minha tristeza com grogue33 e passei a acreditar na força da droga como o
caminho da redenção. (ROCHA, 2010, p. 83).

Nesse sentido, o trecho acima ilustra como há alguns lugares que podem ganhar
novos significados, se remetem a uma memória não prazerosa, como a perda de alguém. Uma
vez que há essa perda do outro, o lugar pode trazer novos sentidos transfigurando-se em
“cenário de tragédias”.
Outro fator a ser considerado aqui são as evidências: a importância da narrativa no
processo de memória. Por meio do processo de narrativa, o sujeito sequência e dá coerência
aos acontecimentos e experiências de sua vida nos espaços e tempos que considera
importantes. Dessa forma, o ato de narrar leva à preservação da memória para si e para os
outros, pois nossas memórias são compartilhadas, como aponta Rocha (2010):

As memórias do sol descarado a caminho de Terra Boa e Poço Verde com o


barril, único brinquedo a sério a que tive direito, as investidas do vento
endiabrado, em redemoinho, que fazia dançar a poeira, maquilhando o meu
rosto prensado de dificuldades, o sal da maresia que dava gosto à minha pele,
o mar que enchia meus olhos e o céu da ilha, por onde os meus sonhos alados
invadiam o infinito, foram meus companheiros por toda a vida. Com eles
construí o meu destino porque não sabia de outros caminhos. (ROCHA, 2010,
p. 34).

O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro-negro no qual se escreve e


depois se apaga números e figuras. Como mostra a citação acima, o ambiente material traz
ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. As casas, os móveis e a maneira como são
arrumados, todo o arranjo das peças em que se vive, lembra a família e os amigos que são
visto com frequência nesse contexto.
Candau (2012) então sugere que a perda da memória provoca a perda da identidade.

476
Anais

Sem memória o sujeito se esvazia, vive unicamente o momento presente,


perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua identidade desaparece.
Não produz mais do que um sucedâneo de pensamento, um pensamento sem
duração, sem a lembrança de sua gênese que é a condição necessária para a
consciência e o conhecimento de si. (CANDAU, 2012, p. 59-60).

Desse modo, percebe-se que a Ilha de Sal, cenário que se passa a narrativa do romance
Marginais é contraposta com a noção de lugar como uma imagem que a partir do qual “cada
um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco” (RELPH, 2012,
p.31). Estabelecendo um diálogo entre a teoria e o romance menciona-se:

Há melhor terapia do que quebrar os vidros de uma montra num país onde
os filhos dos pobres são excluídos e a discriminação é estimulada? É
necessário vandalizar os interesses da burga, que enriquece facilmente, para
que o estado possa olhar para nós, os marginalizados; é necessário
vandalizar o património dos coronéis da ilha, conquistado à custa dos fracos,
para que chorem de raiva como nós chorámos por um pedaço de pão e pelos
nossos direitos. (ROCHA, 2010, p. 40).

Desse modo, pode-se sentir que o processo de construção da identidade está gravado
no processo memorial, que envolve reconstruir o passado, renovar e esquecer algumas
imagens do passado. É preciso trazer a identidade para o discurso, e é a memória que
possibilita que a identidade se realize para que o sujeito possa narrar a si mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse artigo, foi visto que a memória e o espaço são fatores fundamentais na
construção identitária do sujeito marginalizado. Essa relação que a memória e o espaço
apresentam, resultou de uma força para que o grupo dos Pitboys consagrassem a pertença
como marginais.
A partir das reflexões propostas neste trabalho, refletiu-se, ao longo do texto, com
base nos autores que tratam sobre a temática de identidade, memória e espaço. A memória
é essencial para uma cultura que quer manter sua identidade e está intimamente ligada a ela,
pois fornece subsídios para o estabelecimento e fortalecimento da identidade por meio de
vínculos comuns. O vínculo comum é a vida miserável e a desigualdade social em que estão
imersos os jovens e os mais pobres da Ilha do Sal, espaço da narrativa Marginais (2010), de
Evel Rocha, adolescentes que vendem seus corpos como Mirna na esperança de uma vida
melhor. Deles apenas o Jorginho escapa à má sorte da marginalidade, foi escolhido para ser

477
Anais

jogador de futebol de um time português, Beto Vesgo casa e passa a viver longe da
marginalidade, o Fusco, embarcou em um iate e não se soube mais dele, o Pianista, depois de
preso foi diagnosticado com AIDS, Lela Magreza morreu de paixão pela filha do Dr.
Apolinário e Sérgio também morre aos 23 anos.
Observa-se que a temática da identidade é importante para refletir, atuar e permite
um conhecimento de si, como sujeito histórico, social, político e aponta as perspectivas de
sua identificação como único e múltiplo, pelas diferenças que o tempo faculta no processo
contínuo de transformação pessoal e múltiplo porque ele é um e outro ao mesmo tempo.
Nesse processo de compreensão acerca de identidades o estudo possibilitou-nos
compreender que as identidades vão sendo modeladas em diferentes contextos, sejam eles
familiares, escolares, experienciais e vão sendo processados ao longo da vida sem
desconsiderar as questões que envolvem a sociedade atual.
Considerando a teorização sobre a memória presente em Halbwachs (2003), Rossi
(2010), os estudos da identidade presente em Hall (2006), Candau (2012) e Bauman (2005)
entendeu-se que a memória é fundamental para tecer uma cartografia identitária. No
tocante, à obra de Evel Rocha, Marginais (2010), a identidade de Sérgio Pitboy é toda tecida
pela memória, as experiências da infância, os sofrimentos na escola e na esfera social da Ilha
do Sal, a viagem da mãe para a Itália, a expulsão da casa dos pais pelo irmão. Todas as
vivências de Sérgio, a doença que o tira a possibilidade de ser jogador de futebol, a evasão
escolar que o impede de ser um advogado como ou melhor que o seu desafeto, Dr. Apolinário
e a sua entrada no mundo da marginalidade e os últimos dias na prisão. Tudo entrelaça
memória e identidade, o leitor só conhece a Sérgio e os outros marginais porque a substância
guardada na memória, traz viva a lembrança individual que é também sabida pela
coletividade como presente em Halbwachs.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, André. Lugar e memória: cenários. GEOgraphia Niterói, Universidade Federal


Fluminense. GEOgraphia, vol. 19, n. 41, set./dez. 2017.

BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

478
Anais

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Laís Teles Benoir, São Paulo:
Centauro, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LUGARINHO, Mário César. Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e
gênero. Via Atlântica, n. 22, p. 219-233, São Paulo, dezembro, 2012.

OLIVEIRA, S, L, Igor. MARGINAIS: memória e identidade social dos marginalizados.


Monografia (Graduação em Letras). Universidade Federal do Maranhão. Bacabal-Maranhão,
p. 57. 2021.

RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essências de lugar. In.


MARANDOLA JR., Eduardo; HOLZER, Welter; OLIVEIRA, Lívia de (Orgs.). Qual o espaço do
lugar? geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012.

ROCHA, Evel. Marginais. Praia: ASA/Gráfica da Praia, 2010.

ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. São Paulo: UNESP, 2010.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In. SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.

479
FILOSOFIA E
LITERATURA: TEMPO
E MEMÓRIA EM
INGLÊS DE SOUSA
Messias Lisboa GONÇALVES (UFPA)1
Antônio Máximo FERRAZ (UFPA)2

RESUMO

A Filosofia busca pensar o tempo com um toque qualitativo, que leva em conta sua relação
com a dimensão existencial e a literatura não fica alheia à discussão acerca do tempo, sobre
ele refletindo, não discursivamente, mas concretizando-o em imagens que se apresentam em
toda narrativa. Pensando a respeito disso, este estudo destaca os romances O Cacaulista
(1876) e O Coronel Sangrado (1877), de Inglês de Sousa (1853-1918). O objetivo fulcral deste
trabalho é pesquisar as questões do tempo e da memória postas em obra pelos romances O
Cacaulista e O Coronel Sangrado. O estudo limita-se à reflexão do personagem Miguel, que se
destaca por sua relação com o tempo, tendendo ao futuro, mas sempre tecendo conexões
com o passado e o presente, por meio do manifestar da memória. E, no eterno desvelamento
e velamento das questões, ir além dos caminhos conceituais e classificatórios, para oferecer
outras chaves de leitura acerca da produção de Inglês de Sousa. Para realizar este intento,
buscamos especialmente em Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson (1859-1941),

1 Doutorando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade


Federal do Pará (UFPA). Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar Kairós – Estudos de Poética e
Filosofia (NIK/UFPA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). E-mail: meslisboa@gmail.com
2 Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto do
Instituto de Letras e Comunicação, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Programa de Pós-Graduação
em Letras na mesma Universidade. Coordenador do Núcleo Interdisciplinar Kairós – Estudos de Poética e
Filosofia (NIK/UFPA). E-mail: maximoferraz@gmail.com

480
Anais

Benedito Nunes (1929-2011) e Manuel Antônio de Castro (1941-) um diálogo que permitiu
pensar como se manifestam as questões do tempo e da memória naquelas obras de Inglês de
Sousa.

Palavras-chave: Tempo, Memória, Inglês de Sousa, O Cacaulista, O Coronel Sangrado.

ABSTRACT

Philosophy seeks to think about time with a qualitative touch, which takes into account its
relationship with the existential dimension and literature is not alien to the discussion about
time, reflecting on it, not discursively, but concretizing it in images that are presented in all
narrative. Thinking about it, this study highlights the novels O Cacaulista (1876) and O
Coronel Sangrado (1877), by Inglês de Sousa (1853-1918). The main objective of this work
is to research the questions of time and memory put into work by the novels O Cacaulista
and O Coronel Sangrado. The study is limited to the reflection of the character Miguel, who
stands out for his relationship with time, tending to the future, but always weaving
connections with the past and the present, through the manifestation of memory. And, in the
eternal unveiling and veiling of the issues, to go beyond the conceptual and classificatory
paths, to offer other keys to reading about the production of Inglês de Sousa. In order to
achieve this aim, we sought especially in Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson
(1859-1941), Benedito Nunes (1929-2011) and Manuel Antônio de Castro (1941-) a
dialogue that allowed us to think about how the questions are manifested. of time and
memory in those works by Inglês de Sousa.

Keywords: Time, Memory, Inglês de Sousa, O Cacaulista, O Coronel Sangrado.

PARA INÍCIO DE CONVERSA...

As três primeiras obras do romancista Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-


1918), História de um Pescador (1876), O Cacaulista (1876) e O Coronel Sangrado (1877)3,
publicadas sob o pseudônimo Luiz Dolzani, receberam do autor o título geral de Cenas da
vida do Amazonas.
Adentramos nas questões do tempo e da memória em diálogo com os romances de
Inglês de Sousa, que constituem o corpus deste estudo. Foi necessário questionar e
aprofundar o pensamento por um caminho outro que possibilitou mais uma janela de
sentido e interpretação das obras, com destaque para uma escuta ontológica e desvelar de
questões.

3 O Coronel Sangrado foi publicado em 1877 na Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras e a primeira edição do
romance em livro ocorre somente em 1882. No entanto, a data de publicação do romance ficou fixada pela história
literária oficial como sendo em 1877 (Cf. FERREIRA, 2017).

481
Anais

No mais, pela dinâmica deste artigo e para uma maior compreensão e


aprofundamento do campo temático, este trabalho limitou-se à reflexão do personagem
protagonista Miguel Faria que percorre os romances O Cacaulista e O Coronel Sangrado.
Como resultado, a pesquisa mostrou que o personagem-questão rompe com a clássica
divisão do tempo e, no seu tempo, experiencia o tempo humano e o tempo poético.
Por conseguinte, Benedito Nunes (1988) destaca que “a ideia de tempo é
conceitualmente multíplice; o tempo é plural em vez de singular” (NUNES, 1988, p. 23). A
partir desse ponto de vista, cabe neste estudo uma noção de tempo que se opõe ao tempo
controlado pelo relógio, o que possibilita perceber o tempo enquanto uma questão. Ainda,
Martin Heidegger (2005) reflete que

Dizemos “agora” e pensamos no tempo. Mas em parte alguma do relógio que


nos indica o tempo encontramos o tempo, nem no mostrador nem no
mecanismo. Tampouco encontramos o tempo nos cronômetros da técnica
moderna. Impõe-se a afirmação: quanto maior a perfeição técnica, isto é,
quanto mais exatos no efeito de medição, tanto menor será a oportunidade
para meditar sobre o que é próprio do tempo. (HEIDEGGER, 2005, p. 258).

Dessa maneira, a contagem do tempo pelo relógio não demonstra o que seja o tempo
nem tão pouco expressa o que seja o fluir contínuo do tempo, porque o tempo é uma questão.
Desse modo, já que o tempo é uma questão, não é possível ao homem viver fora do tempo
nem sem o tempo. Então, o tempo não pode ser encontrado na cronometragem da máquina
criada pelo homem com o intuito de dominá-lo, mais afinal “onde, porém, está o tempo? É,
aliás, o tempo e possui ele algum lugar? O tempo, sem dúvida, não é nada” (HEIDEGGER,
2005, p. 258).
Diante de tal fato, Manuel Antônio de Castro no Dicionário de Poética e Pensamento4
reflete que “o nada, possibilidade das possibilidades, é sempre doação de novas realizações,

4 Este dicionário digital distingue-se por ser feito de verbetes-questões e não por definições conceituais ou por
levantamento de significados semânticos. O leitor terá para cada verbete diferentes acessos através de reflexões e
passagens essenciais de diversos pensadores e poetas. Tais acessos querem provocar o leitor e levá-lo a questionar, a
pensar, mostrando como cada verbete se constitui numa questão que não pode ser resolvida através de conceitos
lógicos. Pelo contrário, deve prevalecer o diálogo poético, interpretativo, onde interpretar é interpretar-se na e com a
escuta do que é. Consultando o dicionário, o leitor tem acesso a diferentes indicações bibliográficas. Em muitos casos,
o dicionário limita-se a transcrever uma passagem julgada essencial. Cabe a cada leitor procurar a fonte integral
indicada para aprofundar o pensamento. O Dicionário está disponível em <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>.

482
Anais

tempo sendo, que voltam sempre ao nada que é tudo” (CASTRO: Nada, 2)5. Logo, o nada é a
esperança do acontecimento.
Cabe evidenciarmos que o tempo, o qual o homem intentou controlar por meio de um
relógio contador, não pode ser comensurado, uma vez que existe uma concepção de tempo
que se estende e se faz presente nas ações do próprio homem, fugindo assim de qualquer
medição ou cálculo. Martin Heidegger (2005) nos explica que o tempo é presença, o tempo é
poético, o tempo é acontecer e o tempo é destinado a cada ser vivente.6 Nesse sentido, o
tempo é vida sendo, destinando-se ao ser humano. Em consonância com esse pensamento,
Manuel Antônio de Castro menciona que

O vivente só vive e sabe que vive e pensa a vida porque sua vida como vivente
já vigora na vida como tempo e este como unidade ou sentido. A
sucessividade de nossa vida nunca nos aparece nem como um amontoado
desconexo de momentos nem como uma sequência linear e causal de
vivências. Vivemos de surpresas inesperadas. Isso é o sentido não a
explicação racional e muito menos o significado. (CASTRO: Tempo, 7).

O tempo instaura sentido na vida do ser vivente e, por isso, a vida ininterrupta
daquele que vive não se apresenta como um aglomerado de momentos. A vida não pode ser
pausada, uma vez que é contínua. Nem mesmo quando dormimos, deixamos de viver ou de
termos vida, mas, como somos um ser temporal, findamos. No entanto, o tempo e a própria
vida continuam existindo, e a nossa existência só tem sentido por causa do tempo, e o tempo
é vida.
A vivência temporal é o tema de onde deveremos sempre partir e para o qual sempre
retornaremos ao estudarmos o pensamento bergsoniano. Importa mencionar que, quando
um pensamento repousa inteiramente sobre um fato originário, a saber, o da passagem do
tempo, não é de se espantar que as respostas científicas universalmente aceitas apareçam
como insuficientes, uma vez que tais explicações não esgotam o sentido primitivo dessa
passagem e não expressam o que seria por natureza inexprimível.
Além disso, Henri Bergson (2010) reflete que a memória tem tanto a função de
“recobrir” de lembranças a percepção imediata quanto a de contrair os múltiplos momentos

5 Todas as referências que vierem nesse formato estão de acordo com as normas de citação sugeridas pelo dicionário
digital Dicionário de Poética e Pensamento, de Manuel Antônio de Castro. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>. Acessado em: 2 jul. 2022.
6 Cf. Heidegger (2005).

483
Anais

e condensá-los, conferindo a essa multiplicidade de momentos um aspecto de unidade (ou


continuidade):

Em suma, a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma
camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também
enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal
contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de
nosso conhecimento das coisas. (BERGSON, 2010, p. 31).

Desse modo, a memória agrupa as vivências pessoais, representa o passado e também


o presentifica, além de adquirir uma função criadora, pois cria um passado ao estabelecer
relações com os vários conteúdos percebidos em momentos diversos do tempo vivido.
Sendo assim, centralizamos o pensamento no personagem Miguel Faria, que nos foi
demasiado importante para pensarmos o tempo e a memória desprendidos das tradições
metafísicas e dos modelos encerrados em conceitos cristalizados pelo homem.
No tocante, a uma passagem de O Cacaulista em que o narrador desvela que apesar
de todo o cuidado e o esforço do tio – padre José Fernandes –, Miguel sentia-se deslocado em
Óbidos e cultivava o sentimento de voltar a morar com a mãe na fazenda São Miguel em
Paraná-miri. Atrelado a isso, o narrador atreve-se apontar que “não há prazeres duradouros
nesta vida, e mesmo a opa mais bonita e os sinos mais sonoros aborrecem por fim” (SOUSA,
2004, p. 33). Foi essa sensação de desgaste que Miguel experimentou. Com isso, “o pequeno
recaiu na tristeza” (SOUSA, 2004, p. 33) e nada conseguia distraí-lo dela. De acordo com
Martin Heidegger (2003),

quanto mais alegre a alegria, mais pura é a tristeza nela adormecida. Quanto
mais profunda a tristeza, mais a alegria que nela repousa nos convoca.
Tristeza e alegria tocam e jogam uma com a outra. O jogo que afina tristeza
e alegria entre si, aproximando a distância e distanciando a proximidade, é a
dor. Por isso, tanto a alegria mais intensa como a tristeza mais profunda são,
cada uma a seu modo, dolorosas. (HEIDEGGER, 2003, p. 186).

De fato, a tristeza de certa forma encurtou a distância entre o menino e a mãe,


conectando-o cada vez mais com a atmosfera da São Miguel. O narrador diz que “dominado
pelas saudades do sítio; uma grossa lágrima rolou-lhe pela face morena” (SOUSA, 2004, p.
33-34). A saudade que o pupilo do padre sente é o próprio vigorar do tempo em sua vida, o
passado vivido na São Miguel permanece no presente, já que o tempo pretérito continua
sendo no tempo e no agora do filho de D. Ana. Segundo Manuel Antônio de Castro (2011),

484
Anais

A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim


que tal voz desvelada não cessa de se tornar passado, a ausência de um
presente, não a sua negação. Saudade. Sem presente não há ausência e sem
as possibilidades do que se faz passado, sendo, não há presente. Só o
acontecer do silêncio possibilita como presente o passado sendo no futuro
que não é, mas passa a ser a vigência do próprio passado, no vigorar da
unidade realizadora da memória, unidade e possibilidade de patência e
ausência, isto é, de passado, presente e futuro. (CASTRO, 2011, p. 258).

A saudade de Miguel é o desvelo da voz do passado no presente, do não-mais-sendo e


que por isso continua a vigorar por já ter sido em Miguel. Como percebemos na seguinte
passagem do romance:

Figurava-se longe dali: parecia-lhe ouvir o mugido do gado no curral, o cantar


do japiim e o latido alegre do seu cão de caça. Como que sentia a montaria
deslizar rápida no rio, impelida pelo seu remo redondo; via perfeitamente
boiarem à pequena distância enormes tartarugas e monstruosos peixes-bois
(SOUSA, 2004, p. 34, grifo nosso).

Assim, o tempo vivido expande-se no menino, a São Miguel permanece com ele no
presente, “parecia-lhe ouvir o mugido do gado no curral” (SOUSA, 2004, p. 34) e que é muito
mais que um simples parecer, visto que logo em seguida acrescenta o narrador “via
perfeitamente boiarem à pequena distância enormes tartarugas e monstruosos peixes-bois”
(SOUSA, 2004, p. 34).
Então, o passado caminha com o menino, e o futuro que ainda não é; porém, torna-se
a vigência do passado7. Por essa razão, Miguel escapou do tio rumo à fazenda, saiu correndo
pela rua à frente da igreja, “em breve desapareceu nas matas que mediam entre o cemitério
e a cidade” (SOUSA, 2004, p. 34).
Sendo assim, a escuta da voz do narrador e do silêncio da narrativa nos permitiu
chegar até o protagonista Miguel Faria, uma criança órfã de pai, que de maneira furtiva
regressou para Paraná-miri de Cima para reencontrar e morar com a mãe.
Miguel transporta-se para a narrativa de O Coronel Sangrado colocando-nos em
contato com o prosseguimento de sua travessia enquanto ser humano. As linhas finais de O
Cacaulista reportam a partida de Miguel da cidade de Óbidos para Belém e as páginas
primeiras de O Coronel Sangrado aludem o seu retorno para Óbidos.

7 Cf. Castro (2011).

485
Anais

Um movimento circular de partida e retorno acompanhado pelo olhar sempre atento


do narrador inglesiano, que delineia temporalmente o início da narrativa e a volta do filho
de D. Ana logo nas primeiras páginas. Sendo assim, o narrador abre o romance revelando
que a narrativa inicia na “manhã de um dos últimos dias de maio de 1870” (SOUSA, 2003, p.
27).
Miguel está agora com 22 anos de idade. O rapaz fez a viagem de volta para a sua terra
no vapor Madeira e quando ancorou no porto de Óbidos, ele andava pelo navio “absorto em
melancólicos pensamentos” (SOUSA, 2003, p. 41) e uma impaciência lhe transparecia no
rosto. Emmanuel Carneiro Leão (2010) assinala que

O Pensamento é um passado tão vigente que sempre está por vir. Qualquer
esforço da Filosofia não deixa de ser um esforço do e pelo Pensamento. E por
quê? – Porque nenhum esforço filosófico, em qualquer hora, tanto outrora
como agora, pode dispensar a força de futuro do Pensamento no passado.
(LEÃO, 2010, p. 13).

É quase certo que o pensamento de Miguel Faria estava mesmo voltado para o
passado, essa é grande possibilidade do pensar humano, como nos alerta Emmanuel
Carneiro Leão (2010).
Logo, é inegável a comunicação entre passado, presente e futuro. Além, disso fatiar o
tempo nessas três dimensões é se afastar mais ainda da possibilidade de compreendê-lo.
Como nos adverte Henri Bergson (2010). O tempo pretérito pulsa na vida de Miguel, o tempo
para ele é uma questão que o interroga constantemente.
A História da Filosofia mostra que o tempo sempre foi uma questão para os homens
sendo motivo de muita investigação filosófica. Outrossim, o passado não estando confinado
a um eterno esquecimento desvela-se diante de Miguel, ao passo que em seu desvelar sempre
resguarda o horizonte de seu desvelo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os romances O Cacaulista e O Coronel Sangrado trazem como personagem central


Miguel Faria, que é demasiado instigador ao nosso pensamento, travessia e aprendizagem
poética.
Miguel possui uma estreita relação com as questões do tempo e da memória, que,
desde as primeiras páginas de O Cacaulista, nos lançam um apelo de escuta. Diante disso,

486
Anais

percebemos que os romances de Inglês de Sousa cernes do nosso diálogo, quando


pesquisados, foram submetidos a estudos rotineiros que consagraram uma persistente
maneira de alcançar tais romances. Com isso, enveredamos no sentido contrário dos anos e
descobrimos outras janelas de sentidos ainda não pensadas pela crítica.
Assim, costuramos especialmente com os pensadores Martin Heidegger, Henri
Bergson, Benedito Nunes e Manuel Antônio de Castro um diálogo que permitiu pensar como
se manifestam as questões do tempo e da memória em dois romances de Inglês de Sousa. Por
outro lado, dado a complexidade do tema, fizemos aqui uma reflexão introdutória da
temática.
Diante disso, esforçamo-nos para apresentar uma leitura outra dos romances
inglesianos. Dentre tantas possíveis, doamo-nos à escuta de duas questões que se entrelaçam
na travessia de Miguel: Tempo e Memória.
Ademais, a realização da escuta poética das questões que brotam das páginas
silenciosas dos romances inglesianos foi a ânsia de aprender a caminhar poeticamente pelos
caminhos não só no sentido das obras, mas também no sentido de nosso próprio existir. E
no eterno desvelamento e velamento das questões, desbravar caminhos conceituais e
classificatórios para oferecermos outras chaves de leitura acerca da produção de Inglês de
Sousa.

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad.
Paulo Neves. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

CASTRO, Manuel Antônio de. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2011.

CASTRO, Manuel Antônio de. “Nada, 5”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de
Poética e Pensamento. Internet. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Nada>. Acesso em: 2 jul. 2022.

CASTRO, Manuel Antônio de. “Tempo, 7”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de
Poética e Pensamento. Internet. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Tempo>. Acesso em: 2 jul. 2022.

FERREIRA, Marcela. Inglês de Sousa: imprensa, literatura e realismo. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2017.

487
Anais

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback.


Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos.
Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

SOUSA, Inglês de. O Coronel Sangrado (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA,
2003.

SOUSA, Inglês de. O Cacaulista (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA, 2004.

SOUSA, Inglês de. História de um pescador (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém:
EDUFPA, 2007.

488
A SUBALTERNIDADE
FEMININA NA OBRA
PONCIÁ VICÊNCIO,
DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)1
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)2

RESUMO

Este trabalho tem como corpus a obra Ponciá Vicêncio (2017) da escritora Conceição
Evaristo, romance, cuja temática reflete na realidade subalterna da protagonista em
destaque. A escritora apresenta fatos a serem desenvolvidos e misturados com a realidade,
utilizando-se da sua “escrivivência” tratando de temas relativos à vida e a representatividade
de sua classe, enquanto mulher, negra e escritora, fazendo alusão a escrita e a vivência de
suas lutas, que representa também a de outras mulheres, objetivando a sua legitimidade em
um ambiente que ainda se diz muito homogêneo em relação aos espaços de fala. Visto que
existe uma tradição literária que vai de encontro com a tentativa de mudança social
principiada pelas classes subalternas, as quais têm como objetivo permitir a fala
transgressora dos subalternos e expressarem a voz de outros indivíduos por meio de seus
escritos, implicando a responsabilidade de representação no cenário literário
contemporâneo. Sendo assim, para confirmar e reafirmar os pensamentos expressos neste

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB-


CAPES). E-mail: dayanamonteirocavalcante@bol.com.br.
2 Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GIELLus/UEPB. Mestre
Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB). CPF: 105.614.294-48. E-mail: michelly-
54@hotmail.com.

489
Anais

trabalho utilizaremos os seguintes referenciais teóricos: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak
(2010), Michelle Perrot (2007) e Regina Dalcastagnnè (2012), e entre outros aportes, a fim
de tratar dos impasses desta ciência, em especial dos marginalizados no campo literário.

Palavras-chave: Feminino. Subalternidade. Contemporaneidade.

ABSTRACT

This work has as its corpus the work Ponciá Vicêncio (2017) by the writer Conceição
Evaristo, a novel, whose theme reflects on the subaltern reality of the featured protagonist.
The writer presents facts to be developed and mixed with reality, using her "writing" dealing
with topics related to life and the representation of her class, as a woman, black and writer,
alluding to writing and the experience of her struggles, which also represents that of other
women, aiming at their legitimacy in an environment that still claims to be very
homogeneous in relation to speech spaces. Since there is a literary tradition that goes against
the attempt of social change initiated by the subaltern classes, which aim to allow the
transgressive speech of subalterns and express the voice of other individuals through their
writings, implying the responsibility of representation in the contemporary literary scene.
Therefore, to confirm and reaffirm the thoughts expressed in this work, we will use the
following theoretical references: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak (2010), Michelle Perrot
(2007) and Regina Dalcastagnnè (2012), and among other contributions, in order to to deal
with the impasses of this science, especially those marginalized in the literary field.

Keywords: Feminine. Subalternity. Contemporaneity.

Introdução

O presente artigo terá como principal objetivo o estudo da subalternidade feminina


através da observação do lugar de fala do sujeito feminino e suas possibilidades de ser
ouvida (sua representação), utilizando-se ainda do contexto histórico ligado as origens de
escravos e africanos, por meio das implicações relativas à descendência de Ponciá e sua
família, em Evaristo (2017).
A obra literária contemporânea Ponciá Vicêncio, da escritora mineira, Conceição
Evaristo, traz em seu contexto situações conflituosas por meio do contexto da desfiguração
identitária, uma vez que ela e sua família não utilizam o sobrenome real da família a qual
pertencem, levando-as a utilizarem o sobrenome do ex-dono das terras onde morava
juntamente com toda sua família, os quais antes da libertação dos escravos eram
trabalhadores deste tal senhor, dono de terras, cujo sobrenome os acompanhava como se
ainda fossem parte da propriedade. Situação que causava grande desconforto à Ponciá, pois
quando a chamavam pelo nome, ela não se reconhecia, era como se ao chamarem o seu nome
estivessem falando com outra pessoa.

490
Anais

Outro ponto a ser estudado neste trabalho é a relação da escrita feminina e o estado
de subalternidade, a legitimidade do dizível na literatura brasileira a partir de novas vozes,
em especial daqueles que buscam falar sobre si e visam também a autenticidade daquilo que
dizem/ escrevem, incluindo os que outrora não eram valorizados por não corresponderem
a um perfil estereotipado, por meio de um enquadramento social privilegiado,
hierarquizado, esteticamente definido de como se deve fazer ou dizer para se legitimar, de
modo confortável na literatura a que pertencem.
Sendo assim, no presente artigo traremos uma breve abordagem temática baseando-
nos na obra e na pessoa de Conceição Evaristo, tomando os textos pertencentes à crítica
literária anteriormente citados no resumo, levando o leitor a refletir sobre a
autorrepresentação subalterna atual e indiferença reproduzida por alguns grupos e classes
que põem em obscuridade a fala e a representatividade do sujeito subalterno, assim como a
voz, e a sua legitimidade na sociedade por meio dos textos literários. Por isso serão
observados alguns dados passíveis de reflexão sobre o julgo em relação a valoração de
determinadas obras literárias.

Ponciá: Histórias e Desafios

O romance Ponciá Vicêncio, traz em seu enredo a história de Ponciá Vicêncio e sua
família descendente de negros escravos que desde o tempo de seus avós viviam nas terras
do coronel Vicêncio que fora também dono de suas bisavós. A partir destes fatos iniciais a
trama se desenvolve acerca dos acontecimentos referentes a escravidão e a exploração do
trabalho na zona rural, de modo que Ponciá e sua família mesmo não estando mais na
condição de escravos, continuavam cultivando a terra, trabalhando para aqueles que um dia
fora o dono de seus parentes, fato que lhes causava desconforto: Se eram livres por que
continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se
arribavam à procura de outros trabalhos? (EVARISTO, 2017, p.17).
Havia em todo aquele ambiente uma relação de subserviência e semiescravidão que
os envolvia, e despertava na protagonista o desejo de sair do povoado para a cidade, pois:

Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às


terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta
de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam
a vida trabalhando nas terras dos senhores, e, depois, a maior parte das

491
Anais

colheitas serem entregues aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória,
a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto
alguns conseguiam enriquecer a todos os dias. (EVARISTO, 2017, p. 30).

Afetando assim, sua dignidade enquanto ser humano simplesmente pelo fato de
serem negros abolidos da escravidão propriamente dita, inseridos em outros sistemas de
escravidão que lhes era imposto devido a condição social e a falta de opção para seguir e
contemplar a liberdade que outrora só foi instituída no papel, mas que os leva a outras
situações desiguais e humilhantes, permeada por grupos distintos e resistentes. Para Ponciá,
era preciso desbravar novos mundos, no caso, a cidade grande, em busca de novas
oportunidades: “Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida
nova”. (EVARISTO, 2017, p. 30).
Ponciá e sua família, em especial seu pai e seu irmão trabalhavam na roça: “A mãe da
soleira da porta abençoava o filho e desejava em voz alta que eles seguissem a caminhada
com Deus.” (EVARISTO, 2017, p.25). Submissos e manipulados pela classe dominante,
sujeitos a condições limitadas de crescimento (se é que existiam), funcionando assim como
máquinas, exercendo atividades na pesada labuta, quase não ficavam em casa com a família,
de modo que:

Ponciá Vicêncio se lembrava pouco do pai. O homem não parava em casa.


Vivia constantemente no trabalho da roça, nas terras dos brancos. Nem
tempo para ficar com a mulher e os filhos o homem tinha. Quando não era
tempo de semear, era o tempo de colheita, e ele passava o tempo todo lá na
fazenda. (EVARISTO, 2017, p.16).
.
E desse modo se configurava a relação familiar relativa ao trabalho e a condição
subserviente que se instalava naquele contexto social baseado numa hegemonia
preponderante, por meio de direitos negados, desconfortos e repressão do sujeito em
virtude da sua condição subalterna, sendo que:

A reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução de


suas habilidades, mas também e ao mesmo tempo, uma reprodução de sua
submissão à ideologia dominante por parte dos trabalhadores, e uma
produtividade de manipular a ideologia dominante corretamente por parte
dos agentes de exploração e repressão, de modo que eles também venham
prover preponderância da classe dominante [...] (SPIVAK, 2010, p.33).

492
Anais

A obra mostra justamente este caráter de exibir a “reprodução da força do trabalho”


e principalmente daqueles de classes mais baixas (classes minoritárias), que não se resume
apenas ao trabalho no aspecto rural, mas também no aspecto urbano, consequência da
“desterritorialização do indivíduo”, a partir das funções e profissões desempenhadas no
setor urbano, como por exemplo, o serviço das empregadas domésticas, muitas vezes
caracterizado pela falta de letramento, decorrente do analfabetismo dos que vivem em
regiões periféricas, como se deu com Ponciá ao mudar-se para a cidade em busca da mudança
de vida, mas, infelizmente continuou em sua subalternidade por meio de sua classe enquanto
negra e iletrada, já que o território onde ela vivia era evocado por outros saberes
considerados necessários, excluindo ou diminuindo a necessidade do ato de ler, pois para os
que habitavam aquele povoado:

O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo do plantio e de


colheita, o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mal da pele, do
estomago, do intestino e para as excelências das mulheres. Saber a
benzedura para o cobreiro, para o osso quebrado ou rendido, para o vento
virado das crianças. O saber na roça difere em tudo do da cidade. (EVARISTO,
2017, p.25).

Criando uma falsa necessidade preexistente de outros saberes, como o da leitura.


Rareava a sua importância nos povoados e comunidade de negros escravos. Poucos
indivíduos tinham o conhecimento das letras, e quando tinham, apresentavam as suas
defasagens, ora conheciam apenas as letras, ora formavam poucas palavras e em
pouquíssimos casos liam estruturas maiores. Com Ponciá, a situação não difere, a mesma
aprendeu a desasnar por meio da presença de alguns missionários que andavam por aquela
localidade com o objetivo de montar pequenas escolas e ensinar o povo a ler. E assim se fez,
com o consentimento de sua mãe a menina buscou o conhecimento das letras:

Ponciá Vicêncio vencia as dificuldades. Aprendeu o abecedário, conhecia as


letras em qualquer lugar. Quando o pai chegava, ficavam juntos lendo as
letras na cartilha. Enquanto o saber do pai, em matéria de leitura, se
estacionara no reconhecer das letras, o da menina ia além. Começou a formar
as sílabas e, quando já estava formando as palavras, a missão acabou.
(EVARISTO, 2017, p. 26).

A moça acreditava que: “Haveria, sim, de traçar o seu destino.” (EVARISTO, 2017,
p.33), mesmo sabendo de outros exemplos negativos acerca dos que ousaram sair do

493
Anais

povoado para viver na cidade, de modo que: “A vida se tornava pior do que na roça.”
(EVARISTO, 2017, p. 33). Ponciá exerce um papel subalterno, no contexto da obra, além de
fazer parte de um grupo minoritário, a qual passava por incompreensíveis batalhas sociais,
desafios de quem “Chegou ali sem eira nem beira”. (EVARISTO, 2017, p. 59) em busca da tão
sonhada mudança de vida e da legitimação de suas lutas, por meio do trabalho.
Assim como Ponciá, Luandi, irmão da protagonista também se aventurou na cidade
grande, sem saber ler, apenas com a coragem de trabalhar e conhecer o novo, de mostrar ao
povoado quando voltasse que o negro também tem suas possibilidades de crescimento, de
encontrar ou de redescobrir seu lugar no mundo. Ao chegar à cidade ele conseguiu trabalho
na parte da limpeza na delegacia local e aos poucos ia aprendendo a escrever seu nome e a
ler algumas palavras. Mesmo assim, tanto para Ponciá quanto para seu irmão:

A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também.
Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da
falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar
novos quilombos, de inventar outra e nova vida. (EVARISTO, 2017, p.72).

Eles percebiam, que, mesmo não morando mais no vilarejo e não mais cultivando a
terra eles continuavam submissos ao poderio hegemônico dos brancos que eram
caracterizados como seus patrões. Viviam a subalternidade urbana e percebendo que para
viver na cidade é importante muito mais que saber escrever o nome:

Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da
própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E
que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de
tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio
punho, outras letras e marcas havia. (EVARISTO, 2017, p.110).

Percebe-se, então, a marginalização do indivíduo por meio da linha tênue entre


passado e futuro, marcados pelo sentimento de subalternidade advindo de outras gerações
e que se permeava na geração de Ponciá e de seu irmão, mesmo com a tentativa de uma nova
perspectiva de vida, saindo da localidade em que foram criados juntos aos seus familiares e
perseguidos pela ausência do ato de ouvir/ serem ouvidos e percebidos em contextos outros,
marcados pela subserviência, extrema injustiça e desamparo social.
Portanto, a partir da obra de Conceição Evaristo, podemos observar a condição
humana e subalterna do indivíduo e os territórios por onde ele habita ou perpassa, os locais
de fala e se é que este indivíduo caracterizado como subalterno consegue falar e ser ouvido,

494
Anais

pondo em questão a valorização ou a desvalorização do mesmo, onde ele pode ou não habitar
a partir de seus saberes e de sua cultura, por meio da diversidade cultural existente, que
integra a expressiva pluralidade discursiva de grupos subalternos.
De maneira análoga ao que acontece na obra de Evaristo (2017) a literatura brasileira
contemporânea no que diz respeito ao universo dos produtores de textos literários sejam
eles homens ou mulheres, existe um “território contestado” Dalcastagnè (2012) que precisa
ser democratizado para atender as necessidades sociais dos indivíduos serem ouvidos e
representados por sua própria fala, mesmo que para isso o indivíduo tenha de agir a partir
da diferença com vistas a legitimação discursiva.
Vale ressaltar, que Evaristo mesmo conseguindo publicar suas obras na
contemporaneidade, “Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da mesma
forma”. Dalcastagnè (2012).Evaristo, no decorrer da sua história de mulher, negra e
escritora percebe as dificuldades enfrentadas no ato da representação escrita, quando esta
foge à regra de estereótipos implantados na identidade nacional, “...quando diferentes
grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, ” [...], por meio da “busca de espaço
– e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala”.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p.7).
De modo, que temos em nossa literatura brasileira contemporânea uma grande parte
das publicações feita por homens, “o perfil do escritor brasileiro. Ele é homem branco,
aproximando-se ou já entrando na meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-
São Paulo.” Dalcastagnè (2012, p.162), enquanto que suas criações, suas personagens são
representadas da seguinte forma: “Os brancos somam quase quatro quintos das
personagens, com uma frequência mais de dez vezes maior que a categoria seguinte (negros)
”Dalcastagnè (2012, p.173), caracterizando o monopólio no ato de escrever sobre si e sobre
o outro, influenciando a caracterização de suas personagens, criando um ato constrangedor
na tentativa de representar o outro, resultando inclusive numa atitude repressora, de modo
que a literatura é um espaço que pode ser habitado por todos, para que haja interação entre
os saberes e culturas, universo plural ao qual todos devem de acordo com a suas lutas se
autorrepresentarem, pois veem o mundo cada qual a seu modo:

Assim, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, negros


e brancos, portadores ou não de deficiências, moradores do campo e da
cidade, homossexuais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de
diferentes maneiras. (DALCASTAGNÈ, 2012, p.20).

495
Anais

Reproduzindo, assim o deslocamento da classe proletária, e todo o seu movimento de


independência histórica no ato da fala e seus espaços de representação, criando novas
possibilidades por meio do campo literário, “Quebrando o silencio dos marginalizados”,
Dalcastagnè (2012, p.17). Promovendo a autenticidade discursiva daqueles que necessitam
ser ouvidos, excluindo a superioridade entre “o intelectual e a massa”.
Voltando à obra de Evaristo, tratando do “representar-se” o campo literário
contemporâneo tem uma de suas características voltadas para “autora/autor e obra”,
referenciadas pela mistura entre escritor (a) e personagem, contemplando sua existência a
de sua criação “confundindo ficção e realidade” Dalcastagnè (2012, p.106), como acontece
na relação entre Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio (criador x criatura), como afirma em
seu prefácio:

Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no


ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do
engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo
que o engasgo é nosso. A nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que,
apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado
pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom grado. Na con(fusão) já
me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo
e distraída quase assinei, como se eu fosse a moça, ou como se a moça fosse
eu. (EVARISTO, 2017, p. 7- 8).

Diferentemente do que ocorre na tradição literária, pois o indivíduo narrador “[...] não
nos daria espaço para questionamentos. Até porque, sua presença no texto não estava em
questão. ” Dalcastagnè (2012, p.93), confirmando assim, a diferenciação entre tradição x
modernidade, refletida na contemporaneidade por meio da atitude narrativa de representar
a realidade da sua classe. Onde os negros têm de falar sobre si, os brancos sobre eles mesmos
e assim por diante, cada qual com a sua peculiaridade, credibilizando o ato da fala,
demarcando a identidade de sua classe, “que penetram no texto para se justificar diante de
suas criaturas” Dalcastagnè (2012, p.109) como acontece na obra em estudo, quando a
personagem e a escritora se misturam, para compor a existência de uma classe.
Percebemos que os dados a respeito da postura feminina no campo das letras, no
caminho da escrita, travam uma luta constante por espaços para discutir a importância e a
valorização escrita de minorias. A literatura contemporânea deixa desejar a notabilidade de
narradoras e personagens em posições privilegiadas, tirando-as apenas do aspecto

496
Anais

doméstico e familiar como aparecem na maioria dos escritos contemporâneos, que de acordo
com Dalcastagnè que (2012, p. 172) : “apontou a ausência da mulher na representação do
espaço urbano na narrativa brasileira recente. A personagem que caminha pela cidade é, via
de regra, o homem. Às mulheres, cabe a esfera doméstica, o mundo que a ficção lhes destina.

Ponciá: Mulher - Negra

A protagonista feminina delineada por Conceição Evaristo nos faz refletir sobre a
presença da mulher em sociedade, em especial, da mulher negra, a qual no decorrer das Eras
surge como um sujeito subalterno, mesmo participando das constantes mudanças no âmbito
social caracterizado pelas “novas identidades”, (Hall, 2015, p.9). Evaristo em seu texto,
mostra-nos uma tentativa da mulher negra de sair da posição de oprimida por meio da
mudança de território, embora não obtenha êxito. A partir desse momento, nós, leitores, nos
deparamos com uma situação inquietante ao ver na personagem um indivíduo com poucas
possibilidades de ascensão devido sua falta de conhecimento científico ao chegar nos
grandes centros, cabendo a ela habitar em espaços domésticos e não em espaços abertos, nas
ruas em cargos que necessitam de outros saberes.
Vemos na personagem (conforme o pensamento de Hall (2015)), uma “identidade
fragmentada, em processo de mudança” que “está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (Hall, 2015, p.9). No que diz respeito a
este deslocamento e a este “abalo nos quadros de referência”, temos a própria escritora que
atua sob essa nova perspectiva feminina, de mulher negra letrada, ao contrário de sua
personagem, criação literária que representa um outro grupo de mulheres de sua mesma
classe.
Na contemporaneidade, as discussões sobre as classes minoritárias estão a cada dia
tendo mais visibilidade, pois devido ao rompimento dos estereótipos impostos as mulheres
e seu local de existência, muitas foram as mudanças e as situações em que elas se
(re)inseriram através das reivindicações do movimento feminista3 que incluía não apenas as

3 O movimento feminista (ou feminismo) “[...] ressurge num momento histórico em que outros movimentos de libertação
denunciam a existência de formas de opressão que não se limitam ao econômico. Saindo de seu isolamento, rompendo seu silêncio,
movimentos negros, de minorias étnicas, ecologistas, homossexuais, se organizam em torno de sua especificidade e completam na
busca da superação das desigualdades sociais.” (Alves;Pitanguy, 1991, p.7)

497
Anais

mulheres, mas todos aqueles que eram excluídos pela sociedade por algum aspecto que
estava em “desconformidade” com a tradição e, consequentemente, com os ideias machistas.
Pois, segundo o pensamento patriarcal machista, “Mais vale deixar as mulheres isoladas e
mantê-las ocupadas em casa do que as reunir aos montes, pois as pessoas dessa categoria
são como as plantas que fermentam quando se amontoam”, (Perrot, 2007, p.26).
A partir desse pensamento exposto por Perrot (2007), confirmamos que os fatos
expostos na produção literária de Evaristo (2017) são passíveis de serem discutidos e
problematizados, visto que as mulheres antes de se dedicarem as lutas por direitos
igualitários para uma boa convivência em sociedade, eram tratadas como sendo menores,
cabendo e estes últimos o zelo com o ambiente doméstico, conforme é exposto quando o pai
de Ponciá sai com seu irmão para o trabalho, enquanto que as mulheres cuidavam da casa.
Semelhante ao período da revolução industrial, Ponciá e as demais mulheres “[...] se sentiam
culpadas se não estivessem constantemente ocupadas, tendo interiorizado o emprego em
tempo integral de dona de casa.” (Perrot, 2007, p.132).
As mulheres enfrentaram muitas situações de julgo desigual, fato que está disposto
na literatura de Evaristo, a fim de problematizar as situações inquietantes que envolvem as
mulheres, em especial, as negras, que aparecem na literatura representada em posições
subalternas conforme constatou Regina Dalcastagnè (2012). Por meio da personagem
Ponciá Vicencio, pobre, negra e iletrada visualizamos uma figura feminina subalterna que
desejava inserir-se na esfera social urbana a fim de tornar-se um sujeito feminino exímio dos
demais que havia perpassado a sua história.
Evaristo (2017) embora nos apresente uma personagem subalterna em processo de
desterritorialização, submissa aos designíos do “homem branco” ora nas propriedades
rurais, ora nos limites urbanos, desencadeia em nós, leitores de sua obra, constante
percepção da condição limitante em que está inserida a mulher negra, que se sente
escravizada nas diversas conjunturas sociais. A escritora ao dá voz a sua personagem,
expondo de modo crítico a angústia de inúmeras mulheres negras que ao longo das Eras
revestem-se de coragem para enfrentar o novo e desafiar estruturas e desarticular “as
identidades estáveis do passado”. (Hall, 2015, p.14).
Ainda neste limiar que envolve as identidades que se modificam ao longo dos tempos,
podemos revestir-nos do seguinte pensamento: Evaristo, a partir da sua escrivivência leva

498
Anais

ao seu leitor dilemas enfrentados por mulheres negras que ao longo da vida tentaram sair
dos limites subalternos, mas que diante das situações inquisidoras envolvendo a classe
feminina e negra nem sempre tiveram uma oportunidade sair dos limites da subalternidade.
Evaristo deixa-nos outra breve reflexão: sair dos limites geográficos que as oprime nem
sempre significa sair da submissão.
É preciso trilhar novos caminhos para obter novas possibilidades de vida, visto que
as mulheres negras (em especial) são sujeitos cuja identidade está se modificando, não é uma
formação estável, pois vivenciamos o período da pós-modernidade, que nos insere em um
ambiente aberto a novos processos distantes do conforto permeados pela tradição. Portanto,
pensar na mulher-negra é refletir sobre a capacidade de atuação da mulher, das inúmeras
possibilidades de existência, na tentativa de extrair do imaginário masculino a posição
subalterna que a história as inscreveu e que a literatura se remete a fim de nos apontar as
mudanças, os deslocamentos feitos por elas no decorrer das Eras.
Por fim, na obra de Evaristo (2017) o pensamento de Hooks (2014, p.07), mediante
as imposições masculinas nesse âmbito da legitimação se desenvolve a fim de que
reconheçamos que as mulheres negras ao longo da história já foram submissas dentro de sua
própria classe, agindo sob circunscrições cujo objetivo era a subserviência, pois:

Os ativistas masculinos negros publicamente reconheceram que esperavam


que as mulheres negras envolvidas no movimento se ajustassem a um papel
de um modelo sexista. Eles exigiram que as mulheres negras assumissem
uma posição subserviente. Foi dito às mulheres negras que deviam cuidar
das necessidades da casa e criar os guerreiros para a revolução.
(Hooks,2014, p.07).

Portando, a mulher-negra como vimos acima atuava sob a condição submissa,


mediante as ordens do pai e de toda conjuntura masculina local, atribuindo as mulheres
deveres domésticos, o cuidado com sua prole e de pequenas roças, agindo pelo viés da
subserviência. Ademias, notamos que a mulher avança no percurso histórico atuando
mediante a sua resistência a partir do instante em que ela resolve habitar novos ambientes
e tentar uma vida diferente da que lhe foi oferecida por sua família circunscrito pela opressão
com uma falsa ideia de liberdade.

Conclusão

499
Anais

Em virtude dos fatos mencionados acerca da obra de Conceição Evaristo e dos textos
utilizados como aporte teórico, tivemos a oportunidade de perceber nesta pesquisa a
importância da representação do indivíduo, da reivindicação de tornar o sujeito
marginalizado e oprimido como um indivíduo que pode falar e ser ouvido na sua condição
sem precisar utilizar-se do “discurso hegemônico para fazê-lo”, como afirma Spivak (2010,
p.16), é preciso, verdadeiramente, criar espaços em que estes sujeitos subalternos de classes
minoritárias falem e sejam ouvidos.
Evaristo, na condição militante, enquanto mulher negra, traz representações das
dificuldades enfrentadas por ela e por sua classe, envolvendo os desafios de se legitimar em
um universo literário homogêneo, a qual milita por ter sua voz audível e ouvida por aqueles
que compõem este ambiente estereotipado, de julgo desigual para com as classes
minoritárias no trabalho intelectual da escrita, com vistas na valorização da história, do
contexto em que fora produzido, ou seja do lugar ocupado por quem deseja falar.
Este trabalho teve como principal foco a observação do sujeito subalterno feminino,
em especial os de origem negra, como é o caso da personagem Ponciá Vicêncio que a partir
de suas lutas representa o negro e sua condição subalterna na busca por uma mudança de
vida que requer desbravar novos horizontes, “desterritorializar-se”, sair do seu lugar e
buscar outras opções para sua condição de vida, mas que fora impedida por falta de
letramento e conhecimentos outros exigidos pela cidade. Fato que acontece nos dias atuais
com aqueles que saem de sua região de origem para tentar sobreviver nos grandes centros,
mas ao chegarem em determinados espaços lhes resta apenas papéis, condições, profissões
que ainda os escravizam, ou “semiescravizam” com longas jornadas de trabalho e salários
baixos como acontecia com os familiares de Ponciá.
No entanto, esta pesquisa levou em consideração a “escrivivência” da autora para
chegar aos resultados aqui expressos, como por exemplo, as indiferenças sociais que cercam
o universo literário desde o perfil de quem a produz e até mesmo aquilo que produz, como
vimos em algumas citações de Dalcastagnè (2012) em relação a posição minoritária que se
insere as personagens das obras produzidas por homens escritores privilegiados, expondo a
condição subalterna dada as mulheres e o espaço em que aparecem, relatando assim a
obscuridade do perfil feminino dessas produções.
Ao contrário do que acontece na maior parte das obras contemporâneas de escritores
homens e brancos, Evaristo, a partir de sua vivência cria espaços para que as mulheres
negras (em especial) sejam ouvidas por meio de seus próprios contextos e condições de

500
Anais

autorrepresentação, se utilizando de uma mulher negra, pobre, sem leitura, sem origens
explícitas por meio do seu sobrenome e desterritorializada, para tratar de maneira cúmplice
e concreta do “ser marginal” que enfrenta estruturas resistentes para com seu deslocamento
em meio as classes estereotipadas, socialmente constituídas, na tentativa incessante por
mudança desse perfil homogêneo dos produtores de textos literários, visando assim
fortificar a pluralidade e a interculturalidade da escrita contemporânea, possibilitando o
espaço de fala aos de classe subalterna, que outrora não conseguiram se autorrepresentar a
partir do seu local cultural de fala. Como é o caso dos trabalhadores da roça, das empregadas
domésticas, dos negros, entre outros que por meio de sua subalternidade na maioria das
vezes não conseguem ter sua voz legitimada na sociedade.

REFERÊNCIAs

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo? São Paulo: Abril Cultural.
Brasiliense, 1991.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado.

Regina Dalcastagnè. Vinhedo, Editora Horizonte/ Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2012.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismo. 1ª edição 1981.
Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro, 2014.

PERROT, Michelle. Parte II: Mulheres. In: Os excluídos da história: operários, mulheres e
prisioneiros. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Recurso digital, 2017.

SPIVAK, Gayatry. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.

501
ENTRE AS PATAS DO
LOBO: LIBERDADE E/OU
APRISIONAMENTO
FEMININO EM “A
COMPANHIA DOS LOBOS”
Mirian Lúcia FERREIRA (UFCAT)1

RESUMO

No conto “The Company of Wolves”, inicialmente publicado em 1979, Angela Carter


intertextualiza com o conto de fadas “Chapeuzinho vermelho”, de Charles Perrault. A
reescrita busca desconstruir o papel social da personagem principal, que de passiva e
submissa passa a ser retratada como empoderada, voraz e sensual. As duas versões nos
fazem pensar a respeito de questões que as mulheres são submetidas ao longo dos tempos,
como à ordem patriarcal, por exemplo. No caso dos contos de fadas tradicionais, retrata-se a
figura feminina ora domesticada ora perversa, ao passo que os contos reescritos, e aqui
citamos Carter, pautam-se pela transgressão na medida em que trazem mulheres
protagonistas e donas de seus destinos. No entanto, ainda cabe o questionamento: seriam,
de fato, as mulheres livres para escolher, ou ainda objetos de desejo, pertencentes a uma
nova ordem patriarcal de aprisionamento? Objetiva-se, portanto, demonstrar que apesar de
separadas por séculos, ambas as obras ainda trazem questões em comum, como mulheres
marginalizadas, detentoras do pecado e da culpa, condenadas e mantidas como formas de
alteridade. Para fomentarmos nossas leituras, nossa pesquisa se baseará em teorias sobre
representações femininas e misoginia. Utilizaremos as obras História do medo no

1 Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (nível Mestrado e


Doutorado) da Universidade Federal de Goiás/Universidade Federal de Catalão. E-mail:
mirianlferreira@yahoo.com.br

502
Anais

Ocidente, de Jean Delumeau (2009), Da fera à loira, de Marina Warner (1999), A mulher
que eles chamavam fatal, de Mirelle Dottin-Orsini (1996), dentre outros.

Palavras-chave: Patriarcalismo, texto literário, intertextualidade.

ABSTRACT

In the short story The Company of Wolves, initially published in 1979, Angela Carter
intertextualizes with the fairy tale Little Red Riding Hood, by Charles Perrault. The rewriting
seeks to deconstruct the social role of the main character, who goes from passive and
submissive to being portrayed as empowered, voracious, and sensual. Both versions make
us think about issues that women have been subjected to throughout time, such as the
patriarchal order, for example. In the case of traditional fairy tales, the female figure is
portrayed as either domesticated or perverse, while the rewritten tales, and here we quote
Carter, are guided by transgression insofar as they bring women as protagonists and owners
of their destinies. However, the question still remains: are women in fact free to choose, or
are they still objects of desire, belonging to a new patriarchal order of imprisonment? Our
goal, therefore, is to demonstrate that despite being separated by centuries, both works still
bring common issues, such as marginalized women, holders of sin and guilt, condemned and
maintained as forms of otherness. To further our readings, our research will draw on
theories about female representations and misogyny. We will use the works History of fear
in the West, by Jean Delumeau (2009), From the beast to the blonde, by Marina Warner
(1999), The woman they called fatal, by Mirelle Dottin-Orsini (1996), among others.

Keywords: Patriarchy, literary text, intertextuality.

Introdução

The Bloody Chamber and other stories é uma coleção de contos da autora britânica
Angela Carter, cujo trabalho foi e continua sendo amplamente divulgado por críticos
contemporâneos, apesar de sua morte prematura em 1992. A coleção de contos de Carter foi
publicada pela primeira vez em 1979 e ganhou o Prêmio Literário do Festival de Cheltenham.
Este trabalho é uma revisão de contos de fadas clássicos que possuem um viés feminista
contra as formas de patriarcado impostas à sociedade quando foram escritos. Carter deixou
claro que, neste trabalho, sua intenção não era fazer versões de contos de fadas tradicionais,
mas usá-los como material para extrair histórias clássicas para iniciar novas narrativas.
Carter conta a história de uma menina cujo nome é Chapeuzinho Vermelho, que está
na puberdade. Uma menina que não tem medo de nada, principalmente da floresta, seus pais
dizem que a floresta é perigosa porque há lobisomens por toda parte. No caminho para
visitar sua avó, ela conhece um belo rapaz que aposta que se ele chegar primeiro na casa de
sua avó, ela o beijará. No entanto, o menino bonito, que era lobisomem, comeu a pobre vovó,

503
Anais

e planejava comer Chapeuzinho Vermelho, foi seduzido por ela para sua surpresa: ela
conseguiu não ser devorada pelo lobisomem, e entende-se que Chapeuzinho Vermelho
conseguiu fazer sexo com ele porque a história termina com a seguinte frase: "Ele dormia na
cama da avó, entre as patas do lobo tenro". (Carter, 1979, p. 129).
A composição dos personagens, especialmente as personagens femininas, expressa
uma crítica ao patriarcado e uma ruptura com seus valores na história. Portanto, o objetivo
deste estudo é ler o artigo The Company of Wolves, tendo em vista a fratura do estado
feminino de representação feminina no patriarcado, ou seja, o ideal de comportamento
feminino mudou, causando surpresa ao leitor. Para leitores acostumados aos contos de fadas
tradicionais e seus finais moralizantes e óbvios.

O conto “A COMPANHIA DOS LOBOS”, DE ÂNGELA CARTER e o feminismo

Os contos de fadas começaram como uma tradição oral, contada pelos agricultores
para agradar aqueles que pertenciam à sua comunidade. Essas pessoas se reuniam para
ouvir as narrativas, para entreter e também para servir como fonte de aprendizado, a partir
dos exemplos de comportamento social contidos nas histórias. Uma vez considerada uma
fonte de entretenimento e ensino, é comum oferecer lições morais explícitas. Portanto, é
necessário registrar essas narrativas orais e dar-lhes o caráter da época, bem como as
questões sociais e ideológicas dominantes. O trabalho de transcrição de exercícios de ditado
foi iniciado pelo escritor francês Charles Perrault e continuado décadas depois pelos Irmãos
Grimm.
É importante ressaltar que as obras transcritas criam uma ilusão de fidelidade entre
seus leitores porque os autores fizeram escolhas específicas em seus textos. Dessa forma, o
resultado da transcrição é uma montagem de palavras colocadas pelo autor e integradas pelo
leitor, visto que não tem acesso ao texto original. Conforme cita Lejeune na seguinte
declaração:

A transcrição não é uma simples operação de cópia, mais ou menos sutil ou


tediosa. É um entretenimento completo. Procuramos encontrar uma forma
de comunicar ao leitor, paralelamente ao lançamento da narrativa, a sua
escuta. Essa forma vai impor ao leitor uma certa atitude, marca ideológica,
associada ao modelo. (LEJEUNE, 2008, p. 164)

O gênero conto de fadas foi institucionalizado, dessa forma, Martins afirma que

504
Anais

Na institucionalização dos contos de fadas como gênero literário, o


importante papel desempenhado pelas mulheres permanece pouco
divulgado. (...) Durante a época de ouro do gênero nos séculos XVII e XVIII,
mais da metade dos autores eram mulheres; embora considerada pioneira,
Perrault era, na verdade, "uma das muitas escritoras, e em muitos casos até
mesmo antes dele” (WARNER, 1999, p. 14), apesar da relevância dessa
informação, o fato inegável é que a consolidação dos contos de fadas como
gênero literário ocorreu dentro de um discurso patriarcal marcadamente
masculino. (Martins 2005, p. 10).

A ausência de vozes femininas ocorre não apenas nos preparadores da história, mas
também, muitas vezes, no processo de criação literária, no processo narrativo, onde os
discursos das personagens femininas são revistos e até mesmo excluídos. Como argumenta
a escritora indiana Spivak (2010), essa reticência imposta às personagens e escritoras
femininas reflete uma sociedade da época, que via as mulheres como subordinadas
superiores, as marcava como secundárias, que é um assunto apagado da história e da escrita.
A estudiosa Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar (2010), enfatiza que a subclasse é
"pessoas que pertencem às camadas mais baixas da sociedade, excluídas do mercado, da
representação política e jurídica e que podem se tornar membros de um estrato social
completamente dominante" (SPIVAK, 2010, p. 12). Nos contos de fadas, a mulher é quem
ocupa esse papel subalterno.
Diante disso, vemos uma reprodução do discurso silencioso das mulheres nos contos
de fadas nos escritos de Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863) e William
Grimm (1786-1859). Analisando os séculos em que Perrault e os Irmãos Grimm viveram, a
articulação entre o estado da produção literária e a esfera social atesta o discurso do
patriarcado, aspecto marcante da narrativa clássica. No entanto, ainda que esses autores
acrescentem que revelam seus princípios de ordem religiosa ou social, “isso não implica
necessariamente uma mudança significativa em relação à ideologia patriarcal por trás do
texto” (Martins, 2005, p. 10).
O revisionismo, comum hoje, constitui uma estratégia de manipulação das
convenções literárias, abrindo a possibilidade de que as histórias sejam revistas e
reestudadas a partir de outras perspectivas. Adrienne Rich o define como "o ato de olhar
para trás, olhar-lhe com novos olhos e inserir um texto antigo de uma nova direção crítica"
(1985, p. 2045). A crítica feminista mais tarde tentou atribuir papéis a personagens
femininas em contos de fadas ao longo dos anos. O revisionismo é uma técnica que erve como

505
Anais

ferramenta para abrir fronteiras na história cultural de todas as mulheres que ficaram em
silêncio no passado. Portanto:

O processo revisionista dos contos de fadas se move justamente no sentido


de expor o sentido cristalino dos contos de fadas ao questionamento, de
modo a minar o contexto discursivo dessas histórias e provocar rupturas
para que as mulheres possam, por exemplo, ganhar voz no contexto. Até
então, eles permaneceram em silêncio. Esta é uma oportunidade para surgir
outra história, uma que fale do que foi apagado anteriormente, nem sequer
ousou sugerir. A tarefa de revisão dessa forma, portanto, é um ato político
de quebrar, ultrapassar e subverter a ordem patriarcal estabelecida nos
textos tradicionais. Isso possibilita a emergência de outros significados que,
em parte, contribuem para mudanças efetivas nas práticas sociais atuais e
nos padrões de comportamento internalizados que são muitas vezes
responsáveis pela opressão e declínio intelectual das mulheres. (Martins,
2005, p. 41).

Assim, o processo revisionista é colocado em um mecanismo problematizado para


discutir os contos de fadas tradicionais, por exemplo, em que se cristalizam as mensagens e
os silêncios das personagens femininas. Para ilustrar a importância do revisionismo,
tomaremos como exemplo os trechos do encontro entre o lobo e a Chapeuzinho Vermelho
na transcrição de Charles Perrault, através do livro da autora Ana Maria Machado e traduzido
por Maria Luiza X. de A. Borges e o segundo encontro entre os personagens no texto
revisionista escrito por Carter. Perrault descreveu o encontro da seguinte forma:

Andando por uma floresta, ela encontrou uma amiga loba e quis comê-la,
mas não se atreveu porque havia lenhadores na floresta. Ele perguntou para
onde estava indo. A pobre menina, sem saber que era perigoso parar e ouvir
o lobo, respondeu: "Vou visitar minha avó e trazer-lhe um bolo e um
pequeno pote de manteiga da minha mãe." "Sua avó mora longe, perguntou
o lobo, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Ela mora longe do moinho, na
primeira casa da aldeia”. “Excelente!” disse o lobo. "Eu vou vê-la também. Eu
vou por aqui, você vai por ali. Vamos ver quem chega lá primeiro."
(MACHADO, 2010, p. 43).

Por outro lado, Carter relata desta forma:

As feras rugiam para a lua com seus focinhos afiados, como se ela tivesse
partido seu coração. Dez lobos, vinte lobos, mais do que ela podia contar,
uivando em uníssono, como se estivesse louco ou distraído. Seus olhos
captaram a luz da cozinha, brilhando como uma centena de velas. Está muito
frio, coitado, disse ela. Não é à toa que eles estavam soluçando. Ela fechou a
janela para bloquear o lamento do funeral do lobo e tirou o xale escarlate das
oferendas e da menstruação. Como o medo não a ajudava em nada, ela não
tinha mais medo. (Carter, 1979, p. 126).

506
Anais

A personagem feminina nos contos de Perrault é descrita como um ser vulnerável e


inocente, como no excerto "Pobre menina que não sabe que é perigoso parar e ouvir o lobo"
(MACHADO, 2010, p. 43). Além disso, ao final do diálogo, a menina se deixar influenciar pelo
lobo, aceita o caminho instruído pelo lobo e demonstra certa passividade e obediência à voz
masculina na história. Submissão e obediência derivam, assim, da base patriarcal da
necessidade de mulheres passivas e reprimidas, pois os textos de Perrault visam disseminar
normas regulatórias visando homogeneizar valores e comportamentos que ele vê como
socialmente apropriados, como demonstra o relato de Walker (1996):

Os contos de fadas tradicionais vêm de uma variedade de fontes, incluindo


mitos antigos, paganismo, fábulas políticas, jogos morais [...]. A maioria
dessas histórias revela séculos de cultura patriarcal que mostra pouco
respeito pelas mulheres além da jovem e bela "princesa". As personagens
femininas nessas histórias antigas são apenas domésticas. (Walker, 1996).

Ao contrário do arquétipo feminino de Perrault, Carter sugeriu que sua personagem


fosse retratada como uma mulher corajosa: "Como o medo não a ajudava, ela não tinha mais
medo" (Carter, 1979, p. 126), fechou a janela, deixou prantear o funeral da loba, e tirou seu
xale escarlate das oferendas e da menstruação” (Carter, 1979, p. 126). O conto contraria
quaisquer expectativas da protagonista de obediência, passividade e silêncio, de modo que
o processo de revisão de Carter aponta para um preconceito feminista contra a forma
patriarcal de representação da mulher, ou seja, rompendo com as representações ingênuas
e vulneráveis da personagem sobre as mulheres. Os leitores ficam impressionados com as
diferentes perspectivas sobre personagens femininas estabelecidas pelas histórias tão
diferentes dos autores. O crescente número de releituras contemporâneas, seja de forma
crítica ou reafirmando alguns valores, apontam para as limitações da narrativa tradicional
do conto de fadas que vem sendo lisonjeada pela tradição. O resultado é o desenvolvimento
desse campo de estudo na literatura contemporânea. Nesse sentido, pretendemos contribuir
para este crescente campo de pesquisa, para o qual optamos por revisar os contos de fadas
clássicos utilizando uma das várias abordagens feministas atuais.

Personagens e liberdade e/ou aprisionamento feminino

507
Anais

O conto The Company of Wolves é uma releitura muito interessante e inusitada de


Angela Carter, enquanto ela brinca com o tradicional conto de fadas Chapeuzinho Vermelho,
combinando fantasia com realidade, subvertendo as representações historicamente
patriarcais da sexualidade. A autora percebe a conotação ideológica dos contos de fadas
tradicionais, reformula e critica a concepção conservadora de gênero dessas histórias
infantis, os quais possuem uma influência tão forte na sociedade. Utiliza o revisionismo para
contrariar as imagens cristalizadas do discurso patriarcal, alterando as noções da existência
da mulher nas histórias infantis. Como aponta Crunelle-Vanrigh: "A interação entre
repetição, imitação e diferença" (2001, p. 129).
É importante ressaltar como os personagens são apresentados no conto The Company
of Wolves: a menina ora é a heroína, ora a vilã; e o homem, que se torna lobisomem, não mata,
mas sucumbe ao charme feminino. Há subentendido descrições de cenas de sexo implícitas
na narrativa. A escolha desses personagens e como a história é descrita está relacionada ao
período em que a obra foi publicada, final dos anos 1960 e 1970, período bastante
representativo dos movimentos sociais que ocorrem no mundo:

No final dos anos 1970, durante a marcha contra a pornografia, quando as


feministas londrinas se radicalizaram contra o uso do corpo feminino para
despertar os homens e provaram que a pornografia era uma das muitas
formas de dominação, Angela Carter levantou a ideia de que o problema da
pornografia não é. Nele, mas em sua natureza reacionária. (Wyler, 1999, p.
15).

Angela Carter foi muito além do pensamento feminista dos anos 1970. Ela revisita a
liberdade do corpo feminino, argumentando que a ideia de que o corpo serve apenas para
despertar os homens é vaga porque as mulheres podem fazer mais para alcançar seus
objetivos. Objetivos, usando tentações, por exemplo, jogos ou outros meios para atingir seus
desejos, como nessa passagem do conto:

Ela estava deslumbrada e nua, os dedos penteando seu cabelo; seu cabelo
parecia tão branco quanto a neve lá fora. Então ele caminhou direto para o
homem de olhos vermelhos, os piolhos se movendo em sua juba bagunçada.
Ele ficou na ponta dos pés e desabotoou o colarinho da camisa. (Carter, 1979,
p. 127).

A sagacidade da subversão de Carter das personagens femininas com os contos de


fadas é evidente, revelando personagens muito diferentes dos arquétipos construídos pelo
patriarcado. Assim, em sua obra, Angela Carter visa problematizar a construção de

508
Anais

personagens, especialmente de mulheres, para expor uma crítica ao patriarcado e uma


ruptura com seus valores, chamando a atenção para a análise de gênero por conta da
ideologia, afeta todas as práticas sócio-culturais.
A narrativa contemporânea tem um caráter arrojado: "No século XX, as histórias
tradicionais paradoxalmente forneciam a muitos ficcionistas esferas livres de resistência"
(WARNER, 1999, p. 226). A contemporaneidade é uma época que problematiza o que antes
era um conceito indiscutível. Diante disso, a Chapeuzinho Vermelho de Carter está longe de
ser submissa, passiva e silenciosa. Como a própria Carter disse: "Ser um objeto de desejo é
definido pela voz passiva. Existir na voz passiva é morrer na voz passiva - isto é, ser morto.
Isso é o que a mulher perfeita nos contos de fadas é tudo”. (WYLER apud CARTER, 1999, p.
xvi).
É importante ressaltar a subversão da personagem na narrativa, pois ela tem algo
diferente da história clássica: ela é corajosa, "não sabe o que é tremer. Ela tem sua faca e não
tem medo de nada". Carter, 1979, p. 118). Ou seja, ela estava alerta e ciente dos perigos da
floresta; não muito tempo atrás, ele havia desistido da infância; “neste sertão as crianças não
serão crianças por muito tempo” (CARTER, 1979, p. 117); sinais de maturidade e
sensualidade; "Seus seios estão começando a inchar, seu cabelo é como algodão e leve o
suficiente para quase lançar uma sombra em sua testa pálida; suas bochechas são um
escarlate e branco simbólico, ela está apenas começando e sua feminilidade, o relógio em seu
corpo, desde então, soou uma vez por mês.” (Carter, 1979, p. 117). Esta, chapeuzinho
vermelho não é ingênua, ela desfruta de toda a felicidade que um lobisomem pode lhe dar:

(...) Arrancou sua camisa e a jogou no fogo ao lado dos vestígios de fogo de
suas próprias roupas descartadas. As chamas dançavam como almas mortas
na noite de São Silvestre, e os velhos ossos debaixo da cama começaram a
colidir violentamente, mas ela os ignorou. Encarnado como um carnívoro,
apenas uma carne impecável pode apaziguá-lo. (Carter, 1979, p. 128).

Neste parágrafo, verificamos a descrição implícita da protagonista fazendo sexo com


um lobisomem, mas principalmente uma relação iniciada por Chapeuzinho Vermelho, ou
seja, uma das partes se interessa e consente com a situação em que está envolvida. O
comportamento das meninas não é tão predeterminado no discurso patriarcal de como as
mulheres deveriam se comportar ou ser.
A moralidade vem em forma de ensinamentos na história de Perrault para lembrar as
meninas da sociedade da época, pois se elas não estão se comportando de maneira decente,

509
Anais

respeitando sua integridade de castidade e modéstia, cabe à igreja e à sociedade, meninos


como os lobos na história, eles podem manchar a honra dessas mulheres inocentes e perder
todo o prestígio e status na sociedade em geral. Perrault submeteu sua história ao discurso
social de sua época, e sua obra se justifica pela moralidade definida pela Contra-Reforma,
como explica Ligia Cademartori:

O princípio educativo que rege a história de Perrault, por ele exposto no


prefácio da edição de 1695 do poema, é o padrão da arte moral definido pela
Contra-Reforma: humilde valorização, mas cristianização. (CADEMARTORI,
2006, p. 41).

Perrault veio com a moral porque no final de sua história, Chapeuzinho Vermelho foi
devorado pelo lobo, pois ela ingenuamente parou na floresta para falar com ele e dizer-lhe
para onde ir. Carter, por outro lado, propõe que o comportamento de sua personagem é
completamente diferente da moralidade que Charles Perrault defende. Ela mostra em sua
personagem um ato de saber o que quer e buscar sua própria vontade, uma atitude e um ato
de coragem.
O lobisomem foi quem seguiu as instruções de Chapeuzinho Vermelho, deixando-a
decidir o final da história para os dois. Ao contrário do final de Perrault, além de mostrar a
vulnerabilidade, infantilidade e inocência da protagonista, a falta de atitude de Chapeuzinho
Vermelho a leva a aceitar seu trágico destino:

Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi para a cama, e quando observou a


avó de pijama, se assustou. Eu disse-lhe: "Minha avó, que braços grandes
você tem!" "Para abraçá-la melhor, minha neta." "Minha avó, suas pernas são
tão grossas!" "Isso é para Correr melhor, minha filha." avó, suas orelhas são
tão grandes!" "É para ouvir melhor, minha filha." "Minha avó, seus olhos são
tão grandes!" "Para te ver melhor, minha filha." "Minha avó, seus dentes são
tão grandes! " "Para te comer". (Machado, 2010, p. 45).

Perrault termina sua história após esta passagem, dizendo: “Com estas palavras, o
lobo pulou em Chapeuzinho Vermelho e a devorou.” (Perrault, 2010, p. 45). Assim, o autor
pinta sua história de forma objetiva, não deixando espaço para a imaginação e sem espaço
para alterar a história, permitindo que o leitor desenhe exatamente o que diz. Isso fica mais
claro quando comparamos essa passagem com a obra de Angela Carter. Ela usa o diálogo de
mesmo nome da história Chapeuzinho Vermelho, mas sob o preconceito da personagem
feminina, pois o protagonista não se deixa devorar por um lobisomem, mas o seduz,
mostrando que sua personagem é uma mulher com voz e não permite que outros escrevam

510
Anais

sua própria História: “Quão grandes são seus braços. Para te abraçar melhor. Os lobos de
todo o mundo estavam cantando uma canção de casamento do lado de fora da janela, e ela
de bom grado deu-lhe o beijo que ela merecia.” (Carter, 1979, p. 127)

Seus dentes são tão bons! (...) para te comer melhor. A garota riu alto, eu
sabia que não era a carne de ninguém. Ela riu dele, na frente dele, rasgou sua
camisa, e deitou perto do fogo ao lado dos restos ardentes de suas próprias
roupas descartadas. (Carter, 1979, p. 127 e 128)

No final, Chapeuzinho Vermelho fez sexo com o lobisomem e adormeceu na cama de


sua avó, "(...) entre as garras do tenro lobo". (Carter, 1979, p. 129). Assim, a autora Angela
Carter faz exatamente isso, subvertendo as representações da sexualidade que foram
historicamente construídas pelo discurso patriarcal. Carter re-expressa a história tradicional
Chapeuzinho Vermelho, critica os conceitos conservadores de gênero nas histórias infantis,
usa o revisionismo para contrapor a imagem cristalizada do discurso patriarcal e muda o
conceito da existência da mulher nas histórias infantis.

Conclusão

Angela Carter revisa os contos de fadas clássicos com um viés feminista para
combater as formas de patriarcado impostas à sociedade quando os contos de fadas foram
escritos. Ao fazer isso, ele subverterá essas identidades em um nível consciente, pois fará
com que os leitores questionem e questionem desconfortavelmente a realidade que insere.
A autora usa sua habilidade de escrever por meio da literatura para ampliar maiores
possibilidades para esse leitor desconstruir ideias que antes generalizavam, surpreendiam
e descortinavam uma possível nova forma de olhar o papel da mulher na literatura. Assim,
nos contos de fadas, a moralidade de manter a ordem vigente e difundir o duplo conceito de
bem e mal, certo e errado é questionada por Carter, que abre novas possibilidades para as
personagens femininas dessas histórias.
Assim, neste trabalho, o conto The Company of Wolves é usado como exemplo para
mostrar a obra de Carter tentando derrubar mulheres sempre vulneráveis, ingênuas, caladas
diante das vozes masculinas, sempre seguindo esses estereótipos. Um comportamento
padrão imposto pelo patriarcado, atualizando a antiga tradição dos contos de fadas com uma
versão mais moderna.

511
Anais

Além disso, a pesquisa de gênero aqui apresentada corrobora a afirmação de Butler


sobre identidade de gênero, dizendo: "Não há identidade de gênero por trás da expressão de
gênero; essa identidade é construída através da atuação da expressão que é o seu resultado"
(BUTLER, 2010, p. 48). Dessa forma, a identidade é construída, em vez de o gênero
determinar qual comportamento ou atitude uma pessoa deve adotar.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 3.ed. Rio


de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010.

CADEMARTORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.

CARTER, A . The Bloody Chamber and Other Stories. First published in Great Britain by
Victor Gollancz Ltd, 1979.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: Paulinas,
2008.

CRUNELLE-VANRIGH, Anny. The Logic of the Same and Différance: "The Courtship of
Mr.Lyon". In: ROEMER, Danielle M.; BACCHILEGA, Cristina (Ed.). Angela Carter and the Fairy
Tale. Detroit: Wayne State University Press, 2001. p. 128- 144.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à internet. Trad. Jovita Gerheim


Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

MACHADO, A. M. Contos de Fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Tradução


Maria Luiza X. de A. Borges . Rio de Janeiro . Jorge Zahar Editor Ltda, 2010.

MARTINS, Maria Cristina. "E foram(?) felizes para sempre..." : (Sub)Versões do feminino
em Margaret Atwood, A. S. Byatt e Angela Carter. 2005. 295 f. Tese (Doutorado em Letras:
Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2005.

RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-vision. In: GILBERT, Sandra M.;
GUBAR, Susan (Ed). The Norton Anthology of Literature by Women: The Tradition in
English. New York: W.W. Norton, 1985. p. 2044-56.

SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? 1.ed . Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos
Pereira Feitosa; Andre Pereira. Belo Horizonte. Editora da UFMG, 2010.

WALKER, Barbara G. Feminist fairy tales. New York: Harper Collins. 1996.

WARNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. Trad. Thelma
Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

512
O RACISMO RETRATADO NA
NARRATIVA ÚRSULA DE
MARIA FIRMINA DOS REIS E
NO CONTO MARIA DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Welliton dos Anjos BARBOSA (UESPI)1
Antonio Vinícius da Silva NASCIMENTO (UESPI)2
Debora Keyte Rodrigues LIMA (UESPI)3
Jailma Santana SILVA (UESPI)4
Luana Clenilda de SOUSA (UESPI)5
Maria Aurilene de SOUSA (UESPI)6
Mariza de Moura Machado GUIMARÃES (UESPI)7
Mônica Maria Feitosa Braga GENTIL (UESPI)8

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar, uma análise comparatista entre as obras
Úrsula da escritora Maria Firmina dos Reis e o conto Maria que está no livro de contos Olhos
D'Água da escritora Conceição Evaristo, evidenciando que ambas possuem em suas
narrações a exposição de um problema que tem sido persistente na sociedade brasileira, o
racismo. A partir da escrevivência, as autoras relatam os atos de racismo que aconteceram
no Brasil em Úrsula, e ainda acontecem, em Maria. Lima e Vala (2004), ao apresentarem uma
definição de racismo afirmam que: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização,

1 Graduandos wellitonbarbosa@aluno.uespi.br, antoniovinicius@aluno.uespi.br2,


deborakeyte@aluno.uespi.br3, jailmasilva@aluno.uespi.br4, luanacsousa@aluno.uespi.br5,
mariaaurilene@aluno.uespi.br6, marizamachado@aluno.uespi.br7, Doutora monicagentil@pcs.uespi.br8

513
Anais

exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida
como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re-
significada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de
comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p. 402). Desse modo, mostraremos que Úrsula e Maria
apresentam em suas narrativas representações do racismo, mesmo que sob perspectivas
diferentes, através da atitude de personagens, que se colocam em situação de superioridade,
desumanizando aqueles que possuem uma cor de pele diferente, sentindo-se livres para
praticar violência contra seus corpos, e que se utilizam de estereótipos para agredir o outro.

PALAVRAS-CHAVE: Racismo. Escrevivência. Análise comparatista.

ABSTRACT

This paper aims to present a comparative analysis between the works Ursula by the writer
Maria Firmina dos Reis and the short story Maria, which is in the book of short stories Olhos
D'Água by the writer Conceição Evaristo, showing that both have in their narratives the
exposure of a problem that has been persistent in Brazilian society, racism. Based on their
experience of writing, the authors relate the acts of racism that happened in Brazil in Ursula,
and that still happen in Maria. Lima and Vala (2004), when presenting a definition of racism
state that: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação
contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base
em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re-significada em termos de
uma marca cultural interna que define padrões de comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p.
402). In this way, we will show that Ursula and Maria present in their narratives
representations of racism, even if from different perspectives, through the attitude of
characters, who put themselves in a situation of superiority, dehumanizing those who have
a different skin color, feeling free to practice violence against their bodies, and who use
stereotypes to attack the other.

KEYWORDS: Racism. Escrevivência. Comparative analysis.

O livro “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis e o conto “Maria” de Conceição Evaristo
compartilham uma mesma temática, o racismo, possuindo nas suas narrações a
representação dos sofrimentos enfrentados pelos negros no Brasil, no passado com a
escravidão, e no presente, com o preconceito racial. As obras foram escritas em períodos
diferentes e se passam em períodos diferentes, contudo ambas estão conectadas, são
comprometidas em expor e denunciar um problema da sociedade brasileira que se
perpetuou através do tempo, continuando a causar sofrimento e dor. Destacaremos a seguir
alguns elementos em comum entre as duas obras, bem como as discussões e reflexões que
podem surgir tendo-as como ponto de partida.
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, nos apresenta uma história de amor entre dois
jovens extremamente apaixonados, Úrsula e Tancredo, narrando como se dá e se desenvolve
esse romance. Contudo como apresenta Rosa ao parafrasear Teles: “[...] o que mais distingue

514
Anais

o livro não é o enredo romântico de amor, dor, incesto e morte, temas comuns ao romance
do século XIX, mas o tratamento dado à questão do escravo.” (TELES, 1997 Apud ROSA, 2018,
p. 3). O maior destaque do livro está em apresentar e representar a questão daqueles que
foram arrancados de sua terra e trazidos para o Brasil para serem escravizados, fazendo-o
com um olhar humano, dando evidência aos terríveis sofrimentos e privações que eles
passaram, sempre enfatizando a perda, ou melhor, o roubo da liberdade dos negros forçados
a serem escravos, como verificamos no seguinte fragmento que é uma conversa entre Túlio
e Suzana, ambos personagens negros:

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou: Sim,


para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um
tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi
caro! Liberdade! Liberdade... ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou
Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não
houve mulher alguma mais ditosa do que eu. (REIS, 2018, p. 69).

Podemos ver nas palavras de Suzana a dor que ela sente quando se lembra da época
em que era livre e chora com amargura, infelizmente como ela mesmo diz lágrimas inúteis,
prestando seu tributo de saudade, a personagem transmite ao leitor seu sentimento de
aflição, percebe-se que há aqui, uma intenção por parte da autora em mostrar como se
sentiam aqueles que eram desumanizados, evidenciando como era grande o sofrimento e
como havia a saudade da terra natal e do tempo em que se era livre. A autora em diversos
momentos da obra confronta o leitor com os pensamentos e sentimentos dos personagens,
mostrando uma preocupação de nessa representação apresentar uma visão interna e não
externa da escravidão.
Enquanto que, no conto Maria de Conceição Evaristo, vê-se a representação do
racismo nos dias atuais mostrando que as práticas de violência contra o corpo negro
persistem através do tempo. A narrativa mostra o fim de um dia de trabalho de uma
doméstica chamada Maria, quando ela está voltando para casa e pega um ônibus que é
assaltado. No desenrolar da história, Maria acaba sendo acusada de ser cúmplice do assalto
por ter envolvimento com um dos assaltantes. A narrativa evaristiana mostra de forma crua
a violência que é enfrentada pelos negros no Brasil, infelizmente, o conto pode confundir-se
com a realidade de uma notícia atual. Maria em uma narrativa breve, porém impactante,
deixa evidente o racismo que existe na sociedade brasileira, e a facilidade com que uma
pessoa negra pode ser brutalmente agredida no Brasil.

515
Anais

Herculano aponta o racismo como:

[...] a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não


semelhante, imputando-lhe uma raça. Colocando o outro como
inerentemente inferior, culpado biologicamente pela própria situação, nos
eximimos de culpas, de efetivar políticas de resgate, porque o
desumanizamos: “ô raça!” (HERCULANO, 2006, p. 2).

Pode-se ver nas obras, exatamente o que é definido por Herculano como racismo, a
anulação do outro como semelhante, como pessoa, como sendo não dotado das mesmas
características humanas, apenas por possuir uma cor de pele diferente, sendo por isso a ele
atribuída uma raça diferente. Há nos personagens das obras, a sensação de superioridade e
a imputação de inferioridade nos negros, isso fica evidente em Úrsula no comportamento do
personagem Túlio em relação a Tancredo logo na primeira vez em que se encontram:
“Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou, com o acanhamento que a
escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser-
vos útil. Perdoai-me!”. (REIS, 2018, p. 20).
Verifica-se que Túlio, havia sido ensinado a se ver como menor pela escravidão, pois
mesmo em uma situação em que estava prestando socorro, sente-se pressionado a pedir
perdão pela atitude que tomou diante de seu “superior” sem que este lhe tenha dado a devida
permissão para ajudar. O que reforça a representação real dos efeitos que a escravidão sobre
aqueles tornados escravos, que tentava fazer com que estes se vissem da forma que eram
vistos pelos escravizadores, sendo desumanizados. Túlio não conhecia Tancredo, mas
mesmo assim já havia sido ensinado a considerá-lo como superior a si, apenas pelo fato de
ele ser branco, fica clara a ideia de separação que a escravidão buscava implantar. Tancredo
tenta se aproximar e estabelecer uma relação no mesmo nível mostrando também gratidão,
chamando-o de amigos: “— Meu amigo, – continuou – podes acreditar no meu
reconhecimento e na minha amizade.” (REIS, 2018, p. 20), porém Túlio insiste: “A minha
condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Ah! O
escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que...” (REIS, 2018, p 21).
Em Maria também podemos perceber que o racismo definido por Herculano está
presente, quando a personagem é diminuída, desumanizada e tratada como inferior por
outros ocupantes do ônibus. Ela não é vista como igual, e por ser de outra “raça” não lhe é
dado o direito nem de explicar-se, aliás lhe é retirado o direito de sequer defender-se, ela foi
acusada, julgada e condenada quase que no mesmo instante, restando àqueles que eram

516
Anais

“superiores” puni-la, e puniram brutalmente com a morte. Em determinado momento um


personagem diz: “Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois”. (EVARISTO, 2016,
p. 25) O personagem faz questão de iniciar sua fala enfatizando a cor de Maria, justamente
para evidenciar que ela não pertencia ao mesmo espaço que eles, os brancos, que ela não era
um deles, era uma negra e por isso deveria fazer parte do grupo de criminosos, porque todos
os negros são assim, dessa forma, fica evidente que a ela bastava carregar sua cor e seus
traços para ser suspeita ou culpada. É possível identificar que há uma violência “justificada”
segundo os olhos do racismo, que se dá na forma como os passageiros do ônibus direcionam-
se à Maria. Fica evidente que os comentários e acusações que a mulher recebe já estavam
internalizados nos personagens. Aparentemente, estes os carregavam consigo esperando
externá-los quando houvesse a oportunidade, como se o racismo sempre fosse ter espaço na
sociedade.
Lima e Vala (2004) conceituando racismo também apresentam que:

O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e


discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é
definida como diferente com base em alguma marca física externa (real ou
imaginada), a qual é ressignificada em termos de uma marca cultural interna
que define padrões de comportamento. (LIMA; VALA, 2004, p. 402).

É interessante destacar que as duas definições reforçam que o racismo sempre


acontece vindo de pessoas que se colocam em situação de superioridade em detrimento do
outro. O diferente traz consigo uma ideia de estranhamento, contudo, as divisões ficam mais
expressas quando há acepção de pessoas. A ideia de hierarquização também está contida nas
duas obras, em Úrsula vemos ela estabelecida de forma oficial com a escravidão, já em Maria,
embora se esteja em uma época após a abolição da escravatura, ela se mantém, sendo neste
caso explícita, e não velada como as vezes ocorre. A cor da pele, nas duas situações, é um
fator definitivo, e como aponta Lima e Vala (2004), essa única característica traz consigo
estereótipos que a ela são atribuídos. Em Maria nota-se que os personagens insistem em
fazer referência a cor dela: “Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões!”
(EVARISTO, 2016 p. 16) e novamente em: “Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem,
lascando um tapa no rosto da mulher.” (EVARISTO, 2016 p. 25). Isto evidencia que eles estão
tentando trazer uma carga de significação apoiada no estereótipo que é atribuído à sua cor,
como já citado, do negro violento, buscando utilizar o temo de forma pejorativa, imputando-

517
Anais

lhe uma carga negativa, na tentativa de uma ofensa, imagens que foram sendo criadas através
do tempo, emergindo dos estereótipos que são frutos da escravidão.
Nota-se também que as duas obras dão uma atenção especial para a questão da
mulher negra. Em Úrsula somos apresentados a uma personagem chamada Suzana, ela foi
retirada da sua terra trazida para o Brasil de navio e tornada escrava, tendo sua história e
sua vida no seu país de origem completamente ignorados. Na narração feita pela própria
Suzana em uma conversa com Túlio, percebemos a sua dor, em um momento ela era livre, e
alguns segundos depois sua vida tinha mudado completamente. Ela saíra para colher milho,
deixando sua filhinha aos cuidados da mãe, porém ela não sabia que nunca mais a veria:
“Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah!
Nunca mais devia eu vê-la…” (REIS, 2018, p. 70). A vida de Suzana muda bruscamente e
rapidamente:

E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma


prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha
filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas
lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (REIS, 2018, p. 70).

Este momento da narrativa de Úrsula consegue construir bem a imagem da


escravidão, a sua crueldade e desumanidade, o menosprezo com o qual os negros eram
tratados e a forma como eram vistos. Ela fora pega sem aviso prévio, e é desta forma que o
preconceito roubava a liberdade e o direito dos negros, e ainda se mantém contra suas vidas,
seus sonhos e sua família, como é o caso de Maria. O trecho narrado por Reis (2018) explicita
sentimentos de inconformidade por ações de caráter injusto e sem fundamentação,
posteriormente reforçadas em Evaristo (2016), agora em uma época diferente, mas ainda
ocorrendo de forma semelhante, o que soa totalmente incoerente mediante a tantos meios
de informação e denúncia. As lágrimas de Suzana são e continuam sendo essas denúncias e
pedidos de ajuda, pois nunca se esperou e nunca será esperado que atos de discriminação
ocorram.
Evaristo (2016) traz a personagem Maria, uma mulher que carrega as suas dores
cotidianas, mas que encontra dentro de sua rotina exaustiva uma razão maior para seguir,
que seriam os seus filhos. No trecho a seguir, a autora descreve a alegria da personagem ao
poder levar para casa os “restos” da festividade de alguém, no caso, sua patroa. Para ela já
era o suficiente ter como alimentar a fome de seus filhos:

518
Anais

Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham
enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar
fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os
dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e
aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata
de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham
comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão? (EVARISTO,
2016, p. 24).

Nota-se que, ao questionar se os seus filhos iriam gostar de melão, ela demonstra e
retira de si a preocupação de qualquer outra coisa em relação a seu próprio bem-estar.
Assim, temos uma personagem que traz consigo não só o peso imposto pela sociedade de ser
uma mulher negra, mas que enfrenta a dificuldade de ser mãe solo. Logo, seu trabalho e sua
dedicação vão direcionar-se apenas a como eles estarão no fim do dia. Os restos e a gorjeta
são mais úteis se puderem suprir as necessidades de seus pequenos. Ao reencontrar o pai de
seu filho, Maria remonta lembranças de um passado. Ambos se desmontam e reconhecem
que a vida não continuou fácil.
Evaristo (2016) toca em um ponto de bastante relevância: “surgiram os dois filhos
menores. E veja só, homens também! Homens também? Eles haveriam de ter outra
vida.”(EVARISTO, 2016, p. 24). A autora usa estas palavras para deixar claro como a vida de
um homem pode tornar-se melhor e mais próspera ou, simplesmente, distante da dureza
que é ser uma mulher. O fato é que ela parece mais aliviada por ter filhos, e não filhas, já que
aparentemente, o homem não tem o mesmo peso ou responsabilidade de ser pai, e não é
cobrado por isso.
Pode-se ver que as obras apresentam diferentes manifestações de racismo, Úrsula
apresenta a crueldade da escravidão, mostrando como eram tratados os escravizados, vistos
apenas como mercadorias como se não possuíssem humanidade, como se não fossem
pessoas iguais aqueles a quem serviam:

Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais


necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias
brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em
pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais
ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da
Europa. (REIS, 2018, p. 71).

Como o próprio trecho deixa claro, Suzana é tratada de forma inferior a um ser
humano, o que importava era que o “produto” chegasse até o Brasil e fosse comercializado,

519
Anais

aquelas pessoas eram apenas mercadorias que estavam sendo transportadas, em nenhum
momento são minimamente reconhecidas como semelhantes. Em Maria vemos que a
situação não mudou muito, Maria, acaba sendo marcada por ser negra: “A primeira voz, a
que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava
com os ladrões!” (EVARISTO, 2016, p. 25). Certamente, ela não teria sido acusada e
brutalmente assassinada se fosse de outra cor.
As obras apresentadas mostram a liberdade que os brancos sentem em praticar
violência contra o corpo negro, em Úrsula, vemos o terrível tratamento que era dado aos
escravizados, por exemplo, quando destaca como era a vida dos escravos do Comendador:
“Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas de sono
fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor”. (REIS, 2018, p. 98). Em Maria vemos a
mesma situação se repetir agora sob outra forma, mas ainda assim demonstrando a
liberdade sentida por aqueles que se colocam em situação de superioridade: “Lincha! Lincha!
Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado
e as frutas rolavam pelo chão” (EVARISTO, 2016, p. 26). As pessoas tanto daquela época
quanto de hoje, aplicam essa violência com uma normalidade e naturalidade que não deveria
acontecer. As obras cada uma a sua forma são um grito de denúncia, e mostram a liberdade
que foi brutalmente roubada de Maria, com sua morte, de Túlio, Suzana e tantos outros com
a escravidão. O que se observa ainda é que a cor de sua pele parecia ser o suficiente para
justificar as agressões verbais e físicas, como também ter domínio sobre seu corpo, de modo
a tratá-lo como lhes parecia justo.
Úrsula apresenta em determinado momento uma visão otimista sobre o futuro,
conforme a fala de um personagem, uma esperança de dias melhores onde a situação que era
vivenciada seria extinta: “— Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o
jovem cavaleiro – dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos.”(REIS, 2018,
p. 21). É triste saber que embora a situação tenha mudado, e tenha melhorado em muitos
aspetos a esperança que é apresentada em Úrsula sobre o futuro melhor, não se concretiza
completamente, Maria nos mostra que infelizmente a mudança que ocorreu não foi o
suficiente, ainda se mantém muito preconceito e violência, percebe-se que nem todos os
homens se veem como irmãos. É fato que o período da escravidão deixou marcas profundas,
não somente para aquele século. Há aqueles que tomam esses registros históricos para
transformar os dias de hoje, para que não se repitam, e isso se dá pelos movimentos de luta
em prol de seus semelhantes, sendo que muitas vezes estes são menos favorecidos na

520
Anais

sociedade contemporânea. Quando lemos o que registra Evaristo (2018), nos entristecemos,
sabendo que alguns fecham os olhos como ato de negação para combater o racismo e não
admitem que ele ainda está presente, e são alguns desses que o reproduzem para abrir
feridas.
Conforme aponta Nilha (2021): “A palavra "escrevivência” foi criada por Conceição
para definir a sua arte: escrever a vivência do dia a dia e das lembranças dela mesma e de
seu povo. Palavras e vida, sempre unidas, como ela havia aprendido ao guardar no peito as
histórias que eu via no pindura saia.” (2021). Dessa forma destacamos que as obras citadas,
se enquadram nesse estilo de escrita, suas histórias contém a vivência do passado e do
presente, as lembranças do sofrimento enfrentado pelos negros no brasil, sinalizando que
até hoje discriminações semelhantes aconteçem. Em Úrsula a escravidão é apresentada sob
uma ótica interna, promovendo uma aproximação com as histórias narradas, em Maria o
racismo é mostrado com clareza, bem como suas consequências mais severas.
Orlando Nilha (2021) ao falar sobre a literatura de Evaristo também diz:

A literatura de Conceição resgata uma voz ancestral, voz das “mães pretas”
escravizadas que eram obrigadas a contar histórias para entreter os filhos
dos senhores. Conceição não ecoa essa voz para agradar aos ouvidos das
classes privilegiadas, mas para expressar o mundo interior da mulher negra:
“a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-
grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (NILHA, 2021, p.
29).

Há nas obras o compromisso de denunciar as ações da sociedade, que não pode


esquecer o que passou e não pode fechar os olhos para o que acontece hoje: o racismo ainda
é um discurso que rouba a liberdade, identidade e as vivências do outro, como também um
discurso que leva à morte. Conforme apontado por Nilha, a literatura de Evaristo não se
compromete em agradar as classes privilegiadas, mas com a exposição e denúncia do
racismo ainda praticado no brasil, de igual forma a obra de Reis, expondo as consequências
trágicas da escravidão, ligando-se através do tempo, para incomodar os sonos injustos dos
privilegiados. Evaristo e Reis encontram a literatura como instrumento de refúgio e desde
então vêm sendo exemplo para as gerações seguintes. Suas literaturas soam como vozes
mediante a jovens que estão descobrindo suas raízes e como a vida pode ser cruel,
principalmente para homens e mulheres negros, assim, os relatos e a vida das autoras são

521
Anais

como guia e espelho para que se reconheçam e sintam-se inspirados a erguer sua própria
voz.
As narrativas acima contam a história de personagens negras que, embora estejam
localizadas em períodos históricos diferentes sofrem com o problema do racismo, sendo
desumanizadas, humilhadas e tratadas com muita violência, contudo, fora da literatura
continuam existindo várias “Marias”, “Túlios” e “Suzanas” que convivem com essa realidade
atordoante. O racismo é um fator persistente nas diversas camadas sociais, mas as mulheres
negras e de baixa renda acabam sendo mais martirizadas, ficando evidente o problema
estrutural no Brasil. O corpo negro é sexualizado e objetificado, causando a desvalorização
da mulher negra, resumindo-a a algo que ainda sirva somente para suprir prazeres alheios.
As obras possuem uma distância entre os anos em que se passam, todavia ao serem
comparadas, mostram que tratam da mesma temática, mesmo que cada uma represente sob
sua perspectiva os problemas da época em que se passam, infelizmente tais problemas ainda
persistem na sociedade e violentam essas mulheres. O tema tratado é de grande importância
e tais obras são muito pertinentes para que essas questões possam ser discutidas através da
literatura, reconhecer e estudar esse acervo é enaltecer a escrita feminina negra diante de
uma sociedade que não reconhece o valor dessa literatura.

REFERÊNCIAS

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Pallas Editora, 2016.

ROSA, Soraia Ribeiro Cassimiro. Um olhar sobre o romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis. Revista Literafro, Belo Horizonte, 2018.

REIS, Maria Firmina. Úrsula e outras obras [recurso eletrônico]. ed. 11. Brasília: Câmara
dos Deputados, Edições Câmara, 2018.

HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Racismo ambiental, o que é isso. Rio de Janeiro:
Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006.

NILHA, Orlando. Conceição: Conceição Evaristo. Campinas: Mostarda, 2021.

522
“UMA FORMA QUE ENCONTROU
PRA POLÍTICA EXERCER FOI NA
ARTE LITERÁRIA”: Uma análise
do cordel Maria Firmina dos
reis, de Jarid Arraes
Mairylande Nascimento Cavalcante Ferreira (PPGLB-UFMA/FAPEMA)1
Mikeias Cardoso dos Santos (UFMA-PPGLB)2
Orient.: Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA-PPGLB/PGCult)3

RESUMO

Este estudo tem a intenção de analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que faz
parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes,
lançado em 2017. Na obra em destaque, a autora versifica 15 mulheres negras que
exerceram um importante papel na sociedade. A poesia de cordel surgiu em Portugal por
volta do século XV, e espalhou-se pela França e Espanha, e em meados do século XVII o sertão

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão/UFMA campus


Bacabal, vinculada à linha de pesquisa 2: Literatura, cultural e outros saberes, sob orientação da profa. Dra.
Cristiane Navarrete Tolomei. Membro do grupo de pesquisa Marginália Decolonial/CNPq. Bolsista da Fundação
de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA. E-mail:
mairylandenascimento1947@gmail.com
2 Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal – PPGLB, da Universidade

Federal do Maranhão – UFMA, no Centro de Ciências, Educação e Linguagens de Bacabal – CCEL na Área de
Concentração Linguagem, Cultura e Discurso com ênfase na Linha de Pesquisa 2 Literatura, Cultura e Fronteiras
do Saber. Integrante do Literatura e Visualidade - CNPq-UFS e do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense
- NUPLIM/ CNPq-UEMA. E-mail: mikeias.cardoso@discente.ufma.br
3 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Docente adjunto III do curso de Letras da Universidade

Estadual do Maranhão, Campus Bacabal; docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Letras


(PGLB/UFMA/Bacabal e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade
(PGCult/UFMA/São Luís).

523
Anais

do Brasil foi agraciado com esse gênero literário, isso aconteceu por causa da vinda dos
colonizadores da Península Ibérica que trouxeram seus livros para as terras brasileiras,
sendo ressignificados de acordo com a história e o contexto dos que a teciam no novo
território. Com uma linguagem acessível, o cordel não ficou somente no Nordeste do Brasil,
espalhando-se por todo o país. Na literatura brasileira estão presentes mulheres escritoras
que publicam suas obras e têm seu reconhecimento para tal oficio. Nesse sentido, buscamos
analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis, o qual narra a trajetória de vida e luta da
primeira romancista negra brasileira que nascera em São Luis-MA,11 de outubro 1825. Ela
escreveu contos, livros e poesias, entre suas obras de grande potência destacamos o romance
Úrsula, publicado em 1959, que é visto por uma parcela da crítica literária como o primeiro
romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil. A
metodologia aplicada é de caráter analítico e a pesquisa é bibliográfica. O aporte teórico é
composto por autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei (2019), Mendes (2006)
e Dalcastagnè (2015/2018).

PALAVRAS-CHAVE: Poesia de cordel. Maria Firmina dos Reis. Romancista Negra.

ABSTRACT

This study intends to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis that is part of an
anthology entitled Heroínas negras brasileira em 15 cordels, by Jarid Arraes, released in
2017. In the featured work, the author versifies 15 black women who exercised an important
role in society. Cordel poetry emerged in Portugal around the 15th century, and spread to
France and Spain, and in the mid-17th century the sertão of Brazil was graced with this
literary genre, this happened because of the coming of the colonizers from the Iberian
Peninsula. who brought their books to Brazilian lands, being re-signified according to the
history and context of those who wove it in the new territory. With an accessible language,
cordel was not only in the Northeast of Brazil, spreading throughout the country. In Brazilian
literature there are women writers who publish their works and have their recognition for
such an office. In this sense, we seek to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis,
which narrates the life and struggle of the first black Brazilian novelist who was born in São
Luis-MA, October 11, 1825. She wrote short stories, books and poetry, among In his works
of great power, we highlight the novel Úrsula, published in 1959, which is seen by some
literary critics as the first abolitionist novel and the first novel written by a black woman in
Brazil. The methodology applied is analytical and the research is bibliographic. The
theoretical contribution is composed by authors such as: Arraes (2017), Fanon (2008),
Tolomei (2019), Mendes (2006) and Dalcastagnè (2015/2018).

KEYWORDS: Cordel poetry. Maria Firmina dos Reis. Black Novelist.

1 Para início de conversa

A literatura de cordel é uma literatura interdisciplinar que abarca os mais variados


temas de forma popular que agrada tantos leitores e ouvintes que são convidados pelos
poetas de bancada e repentistas a se divertirem através de versos cômicos e até mesmo se
informarem por meio de versos que possuem a criticidade. Sem dúvidas, a poesia de cordel

524
Anais

é popular por apresentar uma linguagem acessível e que agrada os mais variados grupos de
leitores.
Sobre a literatura de cordel ser popular, Arantes (1998), nos fala que:

Quando se fala em cultura popular, acentua-se a necessidade de pôr a cultura


a serviço do povo, isto é, dos interesses efetivos do país. Trata-se, então, de
agir sobre a cultura presente, procurando transformá-la, estendê-la,
aprofundá-la. O que define a cultura popular. (...) é a consciência de que a
cultura tanto pode ser instrumento de conservação, como de transformação
social. Para a jovem intelectualidade brasileira”, continua ele, o homem de
cultura está também mergulhado nos problemas políticos e sociais, (...)
assume ou não a responsabilidade social que lhe cabe. Ninguém está fora da
briga. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada, consciência
revolucionária, um tipo de ação sobre a realidade social. (ARANTES, 1998, p.
54).

Para Arantes a cultura popular está preocupada em servir os interesses do povo, na


proporção que essa cultura é conservada e, consequentemente, é realizado o processo de
divulgação dessa cultura popular para a população, que faz uso desse gênero literário para
denunciar os problemas sociais, tais como: saúde, meio ambiente, violência, política,
questões raciais dentre outros temas que são inerentes e façam parte do cotidiano do povo
e contribui para uma consciência revolucionária de direitos e deveres humanos.
Os folhetos de cordel apresentam fatos de acontecidos e de criação do povo que por
muito tempo alimentam o imaginário das pessoas com histórias que encantam e em alguns
casos informam quem lê e ouve as histórias de mulheres negras, por igualdade de diretos
entre homens e mulheres, por condições de trabalho iguais dentre outros assuntos que são
importantes a população conhecer.
A Literatura Brasileira por muito tempo teve um protagonismo de maior parte
masculino que escreviam e publicavam seus escritos tanto na prosa como na poesia, suas
obras são estudadas e reconhecidas, porém existia um público de muitos escritores que
ficavam a margem desse processo de escrever e publicar, porque a literatura canônica que
é, de fato, reconhecida e valorizada quando se tratava em escrever e publicar, no caso as
mulheres que por muito tempo ficavam a parte dos grandes nomes de nossa literatura. A
classe feminina não deixava de lado o desejo de escrever e em vez de colocar a sua autoria
nas obras preferiam assinalar com um pseudônimo, como assim bem fez Maria Firmina dos
Reis “Uma Maranhense”.

525
Anais

O artigo tem o objetivo de apresentar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que
faz parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis, de Jarid
Arraes, lançado em 2017, a autora versifica 15 mulheres negras que tiveram um importante
papel na sociedade. Entre as 15 Poesias de Cordel foi escolhido o folheto de cordel Maria
Firmina dos Reis, o cordel narra à trajetória de vida e luta, de uma das mais importantes
romancistas do Brasil. Essa poetisa e romancista nasceu em São Luis-MA, dia 11 de outubro
1825, foi uma grande ativista em favor da raça negra.
A escolha de analisar o folheto de cordel em questão foi em decorrência de sua
importância para o Contexto histórico-social para nossa Literatura Brasileira, e de
apresentar a primeira romancista negra brasileira. Além de escrever prosa, Maria Firmina,
escreveu contos, poesia, uma de suas obras famosa é o romance Úrsula, publicado em 1959
como primeiro romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no
Brasil.
Acredita-se, que a Literatura Brasileira tem a presença de muitas mulheres escritoras
e poetisas que publicam anualmente suas obras e tem o seu reconhecimento merecido por
tal oficio, graças às tantas mulheres que se destacaram e, ainda, são destaques na tarefa
árdua que demanda tempo e dedicação, o ato de escrever.
Na construção do trabalho será considerada que a metodologia aplicada é de caráter
analítico, pesquisas bibliográficas e com a análise de fragmentos do folheto de cordel em
questão. A pesquisa está apoiada em autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei
(2019), Mendes (2006) e dentre outros estudiosos e teóricos que serão vistos no decorrer
do artigo.

2 Contexto histórico da literatura de cordel

A Poesia de Cordel surge no continente europeu em meados do século XI – XII, seus


textos faziam menção aos acontecimentos da Idade Média, mais precisamente no século XVII
aparece em Portugal, versos de cordel que eram inspirados sobre os reinos, príncipes,
princesas, donzelas e as famosas novelas de cavalarias. Em Portugal essa poesia era
apreciada e lida por uma camada elevada, como assim descreve Marinho e Pinheiro (2012):

Os cordéis portugueses, diferentemente dos folhetos brasileiros, eram


escritos e lidos por pessoas que pertenciam às camadas médias da

526
Anais

população: advogados, professores, militares, padres, médicos, funcionários


públicos, entre outros. (MARINHO; PINHEIRO 2012, p. 19).

Isso comprova como de fato os folhetos de cordel agradavam os mais variados


públicos de pessoas que se debruçavam com histórias dos mais variados gostos, como um
divertimento e às vezes ficavam informados dos assuntos do cotidiano da população.
Com a vinda dos colonizadores nas navegações marítimas ao Brasil no Período
Colonial de 1500, formada pelos padres da Companhia de Jesus, cronistas com seus livros.
Porém somente por volta do século XIX o cordel tem sua ascensão, primeiramente, isso
aconteceu na região Nordeste do país, isso se sucedeu pelos tais motivos: a linguagem do
povo acessível, a presença de violeiros, o cangaço, os costumes rurais, o clima, e dentre
outros aspectos que favoreceram sua adaptação.
O grupo leitor do Brasil, segundo Marinho; Pinheiro (2012, p.19) “em muitos casos,
os cordéis eram comprados por uma pessoa letrada e lidos para um público não letrado,
situação que se reprodução aqui no Brasil, onde os folhetos eram consumidos
coletivamente.” O cordel contribuiu e ainda, tem sua parcela de contribuição na formação
leitora dos menos favorecidos, em tempos que a educação no país era somente elitizada pela
burguesia e por conta disso as pessoas que ficavam a margem da sociedade consumiam os
folhetos de cordel para ficarem informadas sobre os acontecimentos do povo que envolviam
os seguintes assuntos: política, seca, cangaço, enchentes, crimes policiais entre outros.
Na Literatura de Cordel tem-se a presença do repentista que é aquele que cria os
versos na hora, é o puro improviso e do poeta de bancada que escreve os folhetos de cordel,
é preocupado com o que vai escrever, procura versificar com palavras do vocabulário que
faz parte do cotidiano das pessoas, e também temos o xilógrafo que idealiza a arte da
Xilogravura, que por meio dessa arte puramente artesanal e popular cria a capa dos folhetos
de cordel com imagens bem comum da realidade do povo.
O cordel é uma literatura popular e cultural, pois representa a fala do povo, segundo
Santos (2006):

cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada


um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos. Quando se considera
as culturas particulares que existem ou existiram, logo se constata a grande
variação delas. (SANTOS, 2006, p. 8).

527
Anais

Esse gênero textual comunica de maneira popular às culturas dos diversos povos e
nações, além disso, tem o interesse de divulgar conhecimentos para as futuras gerações que
alimentam o imaginário com as histórias que são registradas no folheto de cordel por meio
dos cordelistas e cantadas pelos repentistas por meio da viola.
Corroborando com o que foi dito anteriormente Certeau fala sobre a “cultura
popular”:

A ‘cultura popular’ supõe uma ação não-confessada. Foi preciso que ela fosse
censurada para ser estudada. Tornou-se, então, um objeto de interesse
porque seu perigo foi eliminado. [...] Uma repressão política está na origem
de uma curiosidade científica: a eliminação dos livros julgados subversivos
e imorais. [...] Os estudos desde então consagrados a essa literatura
tornaram-se possíveis pelo festo que a retira do povo e a reserva aos letrados
ou aos amadores. [...] Ao buscar uma literatura ou uma cultura popular, a
curiosidade científica não sabe mais que repete suas origens e que procura,
assim, não reencontrar o povo. (CERTEAU, 2001, p. 55-56).

Na fala de Certeau “‘a cultura popular’ precisou ser censurada para ser estudada pelos
estudiosos e defensores dessa cultura do povo.” A literatura popular até hoje é criticada pelos
defensores do cânone, por causa de sua linguagem acessível e também por ser escrita
pessoas que possui poucas instruções das letras, mas ao longo dos anos essa literatura
popular está ganhando formas e incentivando pessoas interessada sem estudar, conhecer e
divulgar por meio dos estudos da academia as produções da cultura popular.
Em relação ao interesse dos estudos da cultura popular, a literatura de cordel também
pode ser pensada por meio dos estudos culturais, corrente de pensamento que teve início
por volta dos anos 1950 e 1960 desenvolveu nos EUA, pois nos possibilita os estudos e
observar o além das culturas nos diversos grupos sociais, tais como: pós-colonialismo e
multiculturalismo, movimentos negros e dentre outros assuntos.
Em relação a necessidade de estudarmos os Estudos Culturais, Cardoso nos fala que:

Os estudos culturais surgem dessa necessidade de ligar a arte e a vida. Da


necessidade de aplicação da técnica de análise literária a outros objetos
artísticos e/ou culturais. Ampliou-se o corpus dos pesquisadores da área da
literatura ao abarcar também o estudo de histórias em quadrinhos, mangás,
telenovelas, videojogos, cordel, anúncios publicitários, movimentos étnicos,
feminismo, homoerotismo, tribos urbanas, música, cinema, reportagens,
tribos urbanas, etc. Os estudos culturais consistem em um estudo
multidisciplinar que conecta várias áreas do saber de forma coerente e
relevante. (CARDOSO, 2020, p. 46).

528
Anais

Segundo a citada os Estudos Culturais vieram a somar com os estudos literários, pois
ampliou o leque de corpus de investigação dos estudiosos, que passam a buscar novas
fronteiras do saber e levando ao estudo interdisciplinar dos assuntos que podem dialogar
com os mais variados estudiosos e teóricos de nossa literatura. A exemplo da literatura de
cordel que também traz sua parcela de contribuição, pois faz parte meio literário que está
em ascensão na academia.
A Literatura de Cordel recebeu recentemente um título através do IPHAN – Instituto
do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, considerado a partir do ano de 2017 como o
“Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro”. Uma conquista muito valorosa dos defensores da
cultura popular que incansavelmente buscam o reconhecimento de suas raízes e tradições
para que as novas gerações venham a conhecer e preservar.

3 Análise literária do folheto Maria Firmina dos Reis, de Jarid Arraes “Uma
Maranhense”

Antes da análise do folheto de cordel faz-se necessário mencionar um pouco da autora


do cordel, Jarid Arraes, nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de
fevereiro de 1991, é escritora, cordelista e autora dos livros Redemoinho em dia quente
(2019), Um buraco com meu nome (2018), Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (2017),
As Lendas de Dandara (2016). Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da
Escrita Para Mulheres. Têm mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel, incluindo
a coleção Heroínas Negras na História do Brasil. Fazendo o uso da Poesia de Cordel a autora
tenta de alguma forma divulgar as vozes femininas negras que foram silenciadas no
transcorrer de nossa história. Dentre uma dessas vozes tem-se o cordel “Maria Firmina dos
Reis” que está no livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, lançado em 2017.
Segue a análise de alguns fragmentos do cordel. De início é apresentado uma pequena
biografia de Maria Firmina:

Maria Firmina dos Reis


De mulata foi chamada
Mas renego esse termo
Pra gente miscigenada
Reconheço-a como negra
Sendo assim bem nomeada. (ARRAES, 2017, p. 107).

Inicialmente a poeta apresenta Maria Firmina dos Reis declarando: “Reconheço-a


como negra”, Arraes afirma que a personagem do cordel é negra. Em seguida é citado o seu

529
Anais

local e data de nascimento São Luís-MA no dia 11/10/1825.Nesse período o país sofria um
momento muito triste de sua história a escravidão que assolava africanos que vieram ao
Brasil em navios negreiros como cativos que durou a partir de meados de 1530, século XVI,
e termina no século XIX com A Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em maio de 1888.
A seguir são expostas as dificuldades de Maria Firmina para conseguir concretizar o
sonho de ser professora:

(...)
Para ter vida melhor
Com a tia foi morar
Sempre muito esforçada
Conseguiu se educar
Pois sabia da importância
Que existe em estudar. (ARRAES, 2017, p. 108).

A protagonista da narrativa teve uma vida muita sofrida, além de sofrer preconceito
era pobre e humilde, porém ela não se deixou abater diante das circunstâncias, era muito
dedicada para com os estudos, resolve mudar de vida e foi “Com a tia foi morar”, o resultado
de sua dedicação foi tamanha “Quando foi ela aprovada” para trabalhar em uma escola como
professora efetiva.
Em relação a vida dura de Maria Firmina dos Reis, Mendes (2006) nos diz que Firmina
era:

Autodidata, sua instrução fez-se através de muitas leituras – lia e escrevia


francês fluentemente. Exerceu a profissão de professora primária, tendo
sido aprovada em primeiro lugar para a vaga do concurso público estadual
em 1847 para mestra régia. (MENDES, 2006, p. 19).

Firmina era uma mulher além de seu tempo, pois diante das situações que eram
desfavoráveis por causa de sua posição social não a deixou se intimidar, e
consequentemente, concretiza seus sonhos, entre eles ser aprovada em primeiro lugar como
professora concursada do Estado do Maranhão. Uma conquista por méritos próprios. Isso
enaltece a figura feminina que através de Maria Firmina, busca sua independência diante de
uma sociedade que observa a mulher como um ser inferiorizado.
E sua luta não parou somente na educação:

Só que Maria Firmina


Tinha livre o coração

530
Anais

Defendendo com clareza


Que acabasse a escravidão
Para ela o ideal
Era a certa abolição. (ARRAES, 2017, p. 108).

Maria Firmina sempre lutou pela educação e tinha seu coração o desejo de acabar com
a escravidão de seu povo, pois acreditava que cedo ou mais tarde a abolição aconteceria. A
romancista encontrou no ato de escrever o desejo de exercer sua libertação e de seu povo
com a escrita de “Contos, livro e poesia” que ajudaram alimentar seus anseios como uma
mulher sonhadora. Firmina não perdeu tempo escrevia suas poesias de amor para jornais da
época, porém não assinava com sua autoria.
Sobre a destreza e garra de Firmina relatada nas estrofes anteriores, segundo
Cristiane Tolomei:

Mesmo nessa condição de subalternidade, as mulheres passaram a ganhar


e/ ou conquistar os espaços até então destinados aos homens, como o
jornalismo, e, devido a isso, a produção jornalística foi se intensificando no
século XIX no país. Elas escreviam em jornais destinados somente para
mulheres ou atuavam junto aos periódicos voltados ao público geral,
publicando editoriais, ensaios, informes, charadas, músicas, poemas,
crônicas, contos, novelas, romances e críticas em torno de diferentes
assuntos: desde a maternidade, a defesa da família e do lar, da moda
europeia e etiqueta, até ao que podemos chamar de um movimento
protofeminista na luta pela libertação dos sujeitos escravizados, pelo direito
à educação, à profissão e ao voto. (TOLOMEI, 2019, p. 155).

Segundo a citada as mulheres eram subalternizadas por causa do machismo que era
frequente, em tempos remotos que a mulher não tinha o direito de falar e muito menos de
escrever e publicar suas obras. Mas ao longo dos tempos a mulher vem conseguindo ocupar
direitos que outrora foram renegados pelo homem, como o direito a publicação de livros, ao
voto democrático e outros direitos que foram conquistados por meio do “movimento
protofeminista” que defendia as causas e interesses das mulheres, semelhantemente, como
hoje temos as feministas.
Em seguida Arraes apresenta a publicação do livro de Maria Firmina e sobre o
pseudônimo de Firmina:

(...)
Como “Úrsula” chamou
Seu romance publicado
E na História brasileira

531
Anais

O seu nome está gravado


Como sendo a pioneira (ARRAES, 2017, p. 109).

Além de escrever poesias de amor Maria Firmina se destacou na prosa ao escrever o


romance Úrsula, o livro que aborda a questão da escravidão e considerado o primeiro
romance abolicionista da época, daí pode-se perceber a magnitude desse trabalho. A autora
tinha dificuldades financeiras e por conta do preconceito e machismo da época.
Sobre o livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, segundo Duarte (2004):

Ao publicar Úrsula, Maria Firmina dos Reis desconstrói uma história literária
etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações
afrodescendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da
literatura brasileira, [...], mas é também o primeiro romance da literatura
afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente,
que tematiza o assunto do negro a partir de uma perspectiva interna e
comprometida politicamente em discutir a condição dos negros no Brasil
[...]. O romance Úrsula vem inaugurar, em nossas letras, o momento em que
remanescentes escravos tomam, com as suas mãos, o sonho de, através da
literatura, construir um país sem opressão. (DUARTE, 2004, p. 279).

Para o citado a obra Úrsula marca uma nova história no meio literário, pois é por meio
dessa obra que a produção feminina ganha destaque, na medida que apresenta o primeiro
romance abolicionista escrito por uma mulher negra, que discute por meio de sua prosa os
interesses da população negra, que buscava o respeito e o reconhecimento de seus direitos,
pois foram revogados ao longo dos séculos.
A seguir Jarid destaca o dom da arte de escrever que Firmina possuía:

(...)
Quando publicou seu livro
Chegou mesmo a falar
Que não tinha educação
E o prestígio elementar
De quem era branco e rico
Podendo a tudo comprar. (ARRAES, 2017, p. 110).

A protagonista afirma que quando lançou seu livro não possuía a educação de branco
e muito menos era uma pessoa rica, mas tinha a força de uma mulher, por que ela sabia
escrever “E sabia o seu valor”, detinha o talento de escrever, pois dava o brilho em sua escrita
que tanto faz refletir os leitores e ouvintes que estudam as obras literárias de Firmina.
Em relação à submissão do negro para com seu senhor, Maria Luiza Tucci Carneiro,
na obra O racismo na história do Brasil: mito e realidade (1996), diz:

532
Anais

Raras eram as profissões às quais os negros conseguiam ter acesso. Livres e


analfabetos, tentavam vender cestos, galinhas, doces, tabaco. Alguns, mais
espertos e conhecedores da natureza, serviam de guias aos viajantes
estrangeiros enviados para estudar no Brasil, geralmente a serviço das
grandes potências europeias. (CARNEIRO, 1996, p. 16).

O negro não tinha forças para libertar do homem branco, pois com a “libertação” pela
Lei Áurea, o negro voltou a ser escravizado outra vez por meio de trabalhos bem inferiores
que legitimava sua escravidão. O negro sofria a humilhação de não possuir um emprego
digno e tão pouco um salário que desse subsídio para a sobrevivência.
Firmina realiza o sonho de fundar uma escola mista:

Aos cinquenta e cinco anos


Uma escola ela fundou
Pra meninas e meninos
Sendo mista começou
Como escola gratuita
Que pouquíssimo durou. (ARRAES, 2017, p. 110).

Passados os dias como professora na escola em São Luís, Firmina se aposenta e vai
para a cidade de Guimarães-MA, onde por conta própria funda uma unidade de ensino mista
e gratuita no povoado da cidade mencionada, porém seu sonho durou pouco tempo somente
três anos “E o portão já foi fechado”. Isso não foi motivo para Firmina ser vencida em seu
período da história que predominava o machismo, preferindo mostrar sempre a
determinação para lutar por dias melhores por meio suas produções literárias.
A seguir a poeta Arraes apresenta a data que marca o falecimento e o legado que Maria
Firmina deixou:

(...)
Em mil novecentos e dezessete
A Firmina faleceu
Mas deixou para memória
A herança que escreveu
E que sempre a duras penas
Para o mundo ofereceu. (ARRAES, 2017, p. 111).

Diante de tantas lutas e vitórias morre Maria Firmina “Em mil novecentos e
dezessete” uma data que está registrada no pensamento das pessoas “Mas deixou para
memória” as lembranças duras que foram motivos para seguir em frente. Em seguida a
autora do cordel expõe um momento de subjetividade “E a mim muito emociona/ Quase ao

533
Anais

ponto de chorar” e isso de certa forma, contribui para afirmar mais uma vez reconhecimento
do valor literário que Firmina possui para quem lê suas obras.
Em seguida Arraes faz algumas ressalvas a respeito de Firmina, com o intuito de
reconhecimento de suas obras:

(...)
No entanto, me revolta
O nojento esquecimento
Pois nem mesmo na escola
Nem sequer por um momento
Eu ouvir falar seu nome
Para o reconhecimento (ARRAES, 2017, p. 111).

A autora do cordel se manifesta reclamando do esquecimento que as pessoas têm


sobre Maria Firmina, pois ele merece a valorização por parte da sociedade e em especial para
a escola literária que deveria repassar esse conhecimento, e assim dá o devido valor para
quem é de direito, ou seja, Maria Firmina dos Reis. Em seguida a poeta se utiliza da poesia de
cordel, como o objetivo que as pessoas conheçam o trabalho de Firmina, pois ela foi “Um
orgulho pra nação” e todos deveriam conhecer sua obra.
Segundo Franz Fanon na obra Pele negra, máscaras brancas nos alerta que:

O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de


inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao
comportamento fóbico. No negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva
em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o
confina em um isolamento intolerável. (FANON, 2008, p. 59).

O negro ainda busca sua libertação, essa luta ainda persiste nos dias atuais, quando o
mesmo se depara com as situações da sociedade que não dá o seu devido respeito e valor. O
mesmo se acha pequeno e incapaz de superar e reverter essa situação, porém
correlacionando com o cordel em discussão Firmina a personagem conseguiu superar essa
sensação de ser “inferior” através de sua produção literária, mas esse reconhecimento
chegou tardiamente. A seguir são mencionados alguns livros de Firmina:

Sendo “Úrsula” seu livro


“A Escrava” foi um conto
Mais “Cantos à beira-mar”
Que aqui aumenta um ponto
Obras de profundidade
E também de contraponto. (ARRAES, 2017, p. 112).

534
Anais

Nas duas últimas estrofes a poeta cita algumas obras literárias que marcaram a vida
literária de Reis livro Úrsula e os contos A Escrava e Cantos à beira-mar, isso é um convite
aos leitores para realizarem leituras e discussões acerca dos escritos. E por fim, a autora
enaltece “A Firmina escritora” / “Uma negra corajosa” um jeito de respeito pela romancista
e reafirmar sua importância para a Literatura Negra. Corroborando com as duas estrofes
analisadas anteriormente, Zin (2017) menciona a respeito de algumas obras de Maria
Firmina:

Se o tratamento que Maria Firmina dos Reis atribui às personagens negras e


à questão da escravidão em Úrsula e em A escrava é um tanto particular para
a literatura brasileira produzida até aquele momento, em outro tema
bastante em voga no período, o encontro da cultura europeia com a cultura
indígena autóctone, ela também vai apresentar ideias distintas. (ZIN, 2017,
p. 36).

Segundo o citado Maria Firmina apresentava por meio de suas obras literárias
personagens negras como forma de denuncia social sobre o negro que era a temática central
dos seus escritos, mas Firmina foi uma escritora além do seu tempo, pois já questionava e
refletia outras questões pertinentes a sociedade, como a cultura europeia e a cultura
indígena por meio da sua escrita multifacetada.
Firmina por ser negra e não possuir riquezas, conseguiu vencer tudo isso por meio de
sua escrita, na medida que foi uma autora à frente de seu tempo, deixando um legado e uma
lição para seus contemporâneos. Firmina sempre buscou mostrar a força do negro em querer
ser livre das mãos do homem branco, que tanto usurpou seus direitos e falseou uma
libertação. Firmina é um exemplo de mulher que sempre defendeu a libertação, todavia
muito já foi conquistado, como direito a saúde, educação, emprego, direito ao voto e dentre
outros, mas faltam outros que serão conquistados ao longo do tempo. Acreditamos que eles
desejam mais é o reconhecimento de igualdade entre o negro e o homem branco que até hoje
não foi concretizado por causa de um preconceito estrutural da sociedade em querer dividir
as raças como superiores e o negro como inferiorizado.

4 Para final de conversa

A Literatura de Cordel possibilitou a voz feminina uma oportunidade para expressar


seus sentimentos, lutas, decepções e o desejo de que dias melhores poderiam surgir, como a

535
Anais

busca pelo espaço na produção literária. Como Maria Firmina dos Reis, por ser uma mulher
negra não deixou se abater pelas críticas da sociedade, que de certo modo, não davam
vislumbre a escrita feminina que buscava o espaço no cenário da Literatura Brasileira.
A romancista Maria Firmina usou o pseudônimo “Uma Maranhense” em tempos que
a escrita feminina não tinha espaço, mas sua ideia criativa de usar o pseudônimo favoreceu
a divulgação no mundo literário, as pessoas ficaram interessadas em saber quem estava
escrevendo, isso foi se cumprindo na vida romancista que por meio de seus escritos deixou
registrada sua marca na produção da Literatura brasileira e maranhense.
Maria Firmina realizou seu desejo em lecionar e obteve sua aprovação em concurso
público, podemos nos atrever a imaginar que foi uma professora que tentou de todas as
maneiras mudar a realidade daquele grupo de alunos por meio do estudo. Firmina queria
mais, depois que cumpriu sua vida pública, fundou uma escola mista que dava acesso ao
ensino gratuito as pessoas carentes no Maranhão.
Quando se fala abolição não deixar de mencionar Maria Firmina que escreveu uma
obra primorosa sobre o assunto, a obra chamada Úrsula, publicado em 1959. A obra tem sua
importância para academia e também para a literatura afro-brasileira, pois é o primeiro
romance abolicionista e escrito por uma mulher negra no Brasil. Firmina escreveu um
material substancioso para a produção do país. Uma mulher que foi além de seu tempo e
contribui muito para o fortalecimento da raça negra por dias melhores e o respeito de seus
direitos.
O cordel é um gênero textual riquíssimo que não poderia deixar de lado a importância
de Maria Firmina dos Reis e de outras mulheres negras que foram importantes para o Brasil,
esse é o trabalho da autora do cordel analisado Jarid Arraes, que tenta mostrar a voz feminina
no cenário literário, às vozes de mulheres que outrora foi silenciadas e esquecidas por quem
escreve e divulga a história, porém Firmina está sendo divulgada por meio da poesia de
cordel, que tem o seu papel social que é facilitar a divulgação acessível aos seus leitores e
ouvintes.

Referências bibliográficas

ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1998.

ARRAES. Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. 1 ed. São Paulo: Pólen, 2017.

536
Anais

CARDOSO, Franciely Gonçalves. Cultura de massa e recepção: os movimentos


interpretativos de O mundo de gelo e fogo de George R. R. Martin. 248 f. Tese (Doutorado em
Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão,
Programa de Pós-graduação em Literatura, Florianópolis – SC, 2020.

CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O racismo na história do Brasil: mito e realidade. 4 ed. São
Paulo: Ática, 1996.

CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001.

DUARTE, Eduardo de Assis. Posfácio. In: REIS, Maria Firmina. Úrsula: A escrava.
Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. p. 265-281.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.

MARINHO, Ana Cristina. PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo:
Cortez, 2012.

MENDES, Algemira de Macêdo. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história
da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. 2006.
372 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras. Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.

TOLOMEI, Cristiane Navarrete. Maria Firmina dos Reis, decolonialidade e escrita


abolicionista na imprensa maranhense oitocentista. Exæquo, n. 39, p. 153-168, 2019.
https://doi.org/10.22355/exaequo.2019.39.10

ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis e seu conto Gupeva: uma breve digressão
indianista. Em Tese. Florianópolis. v. 14, n. 1, jan./jun., 2017. p. 31-45.

537
A PRESENÇA DO
INSÓLITO NA FICÇÃO
MARANHENSE/CAXIENSE:
DUAS MULHERES DE
TERRAMOR
Aerlys Pinheiro do SANTOS (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2

RESUMO

O trabalho trará uma análise teórica na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) do escritor
Maranhense e Caxiense Osmar Rodrigues Marques (1929), apontando elementos reais e
irreais que por vezes se misturam, ocasionando o fenômeno espantoso, admirável e
incomum, com a finalidade de evidenciá-los na ficção à luz das teorias insólita e seus gêneros
vizinhos: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Rodrigues Marques apresenta-nos uma
incrível ‘viagem’ na leitura, propicia aventura com direito a expectativas à romance, como
também, aguça o imaginário por linhas traçadas com eventos sobrenaturais, naturais e/ou
quiméricos na pequena cidade – interiorana – sinais de fantasia - hesitação; estranheza -
explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de acontecimentos
aparentemente inexplicáveis e imprecisos. Assim, temos como objetivo contribuir para
futuras pesquisas na área literária caxiense e maranhense, possibilitando aos estudantes e
pesquisadores conhecer a grandeza e a importância do acervo literário cultural, além de
resgatar a literatura local e valorizar nossos conterrâneos. Desse modo, são utilizados
referenciais teóricos que nos cercam de reflexão sobre a presença da teoria no decorrer da

1 Graduanda em Letras e Literaturas da Língua Portuguesa – CESC / UEMA, membra do NuPLiM/CNPq e LICLE
(Liga Interdisciplinar do Curso de Letras)
2 Professora Dra. Solange Santana Guimarães Morais dos cursos de Letras-CESC/UEMA, do Mestrado em Letras-

UEMA, Editora da Revista de Letras Juçara-PPG/CESC/UEMA. Líder do NuPLiM/CNPq

538
Anais

narrativa, no qual, instiga uma leitura atenta e emotiva, visto que para identificá-las está
intrinsecamente ligado ao deleite do leitor. Para tanto, acolheremos Tzvetan Todorov
(1939), Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) e outros estudiosos devidamente
referenciados.

Palavras-chave: O insólito. Fantástico. Estranho e Maravilhoso.

ABSTRACT

The work will bring a theoretical analysis in the work Duas Mulheres de Terramor (1976) of
the writer from Caxias, Maranhão Osmar Rodrigues Marques (1929), pointing out real and
unreal elements that sometimes mix, causing the amazing admirable and unusual
phenomenon, with the purpose of evidencing them in fiction in the light of the unusual
theories and their neighboring genres: the fantastic, the strange and the wonderful.
Rodrigues Marques presents us with an incredible 'trip' in the reading, provides adventure
with the right expectations to the novel, as well as, sharpens the imaginary by lines drawn
with supernatural, natural and/or chimerical events in the small town - interior - signs of
fantasy - hesitation; strangeness - rational explanation to the event, in other words, implies
the existence of seemingly inexplicable and imprecise events. Thus, we aim to contribute to
future research in the literary area of Caxias and Maranhão literature, enabling students and
researchers to learn about the greatness and importance of the literary cultural heritage, in
addition to rescuing local literature and valuing our fellow countrymen. In this way,
theoretical references are used to reflect on the presence of theory in the course of the
narrative, which instigates an attentive and emotional reading, since to identify them is
intrinsically linked to the reader's delight. For this, we will take in Tzvetan Todorov (1939),
Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) and other scholars duly referenced.

Keywords: The Unusual. Fantastic. Strange and Wonderful.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho, enseja um percurso teórico-metodológico na obra Duas Mulheres


de Terramor (1976) do autor caxiense e maranhense Osmar Rodrigues Marques (1929). A
temática é resultado de leituras, pesquisas e reflexões acerca do literato, assim como, de suas
produções. A problemática/estudo surgiu devido à ausência de pesquisas sobre o referido
autor e suas criações artísticas, tão importante em sua época de deslumbre na literatura
caxiense, mas que foi caindo na marginalidade literária, sendo aos poucos esquecidos. Assim,
temos como objetivo contribuir para futuras pesquisas na área literária caxiense e
maranhense, possibilitando aos estudantes e pesquisadores conhecer a grandeza do acervo
cultural e a importância do (s) autor (es) e da literatura maranhense, além de resgatar a
literatura local e valorizar nossos conterrâneos.

539
Anais

A análise propõe evidenciar o insólito na narrativa, apontando elementos reais e


irreais que por vezes se misturam, ocasionando o fenômeno fantástico, maravilhoso e
estranho. Rodrigues Marques apresenta-nos uma incrível ‘viagem’ na leitura, propicia
aventura com direito a expectativas ao romance, como também, aguça o imaginário por
linhas traçadas com eventos sobrenaturais e naturais.
Desse modo, cabe-nos informar sobre o método aplicado ao qual partimos durante a
análise. Para tal foi utilizada a pesquisa bibliográfica, esta predomina como fonte de todo
trabalho científico, fornecendo subsídios necessários, tal como, averigua e propicia
conhecimento para refutar ou comprovar tal problemática. A pesquisa bibliográfica é uma
vertente da pesquisa científica a qual apresenta várias modalidades. Investigação que
conduz, principalmente, o acadêmico em suas produções científicas, sendo elas feitas por
livros, internet, jornais, teses, monografias entre outros meios. Para Severino (2007), a
pesquisa bibliográfica ocorre por meios de:

[...] registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos


impressos, como livros, artigos, teses etc. Utilizam-se dados de categorias
teóricas já trabalhadas por outros pesquisadores e devidamente registrados.
Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador
trabalha a partir de contribuições dos autores dos estudos analíticos
constantes dos textos. (SEVERINO, 2007, p. 122).

Dessa forma, a base norteadora de uma escrita científica se dá pelas pesquisas e


leituras de produções da temática ou teoria já existente, fornecendo informações que guia e
induz o discente a comprovar seus argumentos defendidos.
Portanto, como afirma Amaral (2007) acerca da importância e do embasamento
teórico levantados ao longo da inquirição do trabalho sendo uma etapa fundamental, o
presente artigo se deu pela pesquisa bibliográfica fornecida por leituras e reflexões de
artigos: da professora Doutora Maria Cristina Batalha; do Doutor e Mestre Jean Carlos Caniel;
teses, livros: Introdução à Literatura Fantástica do teórico Tvezetan Todorov (1939); As
funções do Maravilhoso na Narrativa Brasileira da Regina Zilberman entre outros
estudiosos, além de pesquisas na internet como fontes de estudos. Fiquemos agora com a
breve explanação teórica norteadora da escrita científica.

540
Anais

Embasamento teórico

Antes de adentrarmos no objetivo desta análise, cabe-nos apresentar um cotejo das


principais teorias do insólito, a fim de elucidar alguns pontos do gênero fantástico e dos
gêneros que lhe fazem fronteira: o maravilhoso e o estranho3 na obra.
O insólito na narrativa é considerado uma modalidade literária relevante, que transita
entre o real, o imaginário e o sobrenatural, considerado fora do que se tem como comum –
anormal. Tem se tornado destaque na literatura contemporânea dos grandes centros de
pesquisa do mundo, emergindo da marginalidade para o resgate e revalorização de um matiz
literário, como descreve o professor Dr. Flavio García (UERJ/ UNISUAM/ UFRGS, 2017) em
seu artigo intitulado Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo e
gênero literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as tradições
teórica, crítica e ficcional.
O gênero insólito subsiste na literatura como a ruptura da ordem natural dos fatos na
ficção, o natural e o sobrenatural, o real e o imaginário, um entrelaçamento que por vezes
não sabe ao certo a definição dos acontecimentos, caracterizados “pouco costumeiros” como
aponta Flávio García (2007) acerca da caracterização e adjetivações:

Os eventos insólitos seriam aqueles que não são freqüentes de acontecer, são
raros, pouco costumeiros, inabituais, inusuais, incomuns, anormais,
contrariam o uso, os costumes, as regras e as tradições, enfim, surpreendem
ou decepcionam o senso comum, às expectativas quotidianas
correspondentes a dada cultura. (GARCÍA, 2007, 19).

Portanto, sua presença (insólita) se dá na narrativa por meio de um desses insights


de casualidade ou não causalidade, “quebrando” a expectativa ou até mesmo surpreendendo
o leitor. Todorov em seu livro Introdução à Literatura Fantástica (1970) redige que ocorre
através da “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1939, p. 31).
A literatura do insólito, implicitamente, está relacionada à perspectiva do leitor, do
seu nível emocional despertado na leitura – atrelado à recepção do estilo. Atraindo-nos nas
mais diversas modalidades, seja ela narrativa vampiresca, de bruxaria, terror ou fantasma.
Dessa forma, os fenômenos Fantástico, Estranho e Maravilhoso estão interligados ao insólito,

3
Palavras retirada do artigo intitulado A presença da fenomenologia insólita na narrativa literária da Gisela Lacourt
(UPF).

541
Anais

tendo como principal embrião o sobrenatural. Conforme Maria Cristina Batalha4 (2012)
explicita:

Do ponto de vista da narratologia, alguns teóricos propõem a categoria do


“insólito” para reunir todos os textos nos quais irrompe aquilo que não é
habitual, que é improvável, que foge à realidade, que não “soe” acontecer.
(Batalha, 2012, p. 496 grifo nosso)5.

Por conseguinte, é fundamentado neste e outros apontamentos que discutiremos a


respeito do estilo na análise aqui supracitada, logo após, uma breve exposição no que
concerne às teorias do Fantástico, Estranho e Maravilhoso. Pois, essa fenomenologia insólita,
de acordo com a professora doutora Cecil Jeanine Albert Zinani6 em um capítulo do livro: O
insólito na Literatura: olhares Multidisciplinares (2020) diz que:

A respeito da narrativa fantástica ou, mais especificamente, do insólito


ficcional, cabe lembrar que, com esse termo, são referidas diversas
modalidades literárias, tais como: o fantástico propriamente dito, o
estranho, o maravilhoso, o realismo mágico, o animismo. (ZINANI, 2020, p.
27).

Partindo dessa afirmação, incumbe-nos enunciar sobre o gênero Fantástico, no qual


alguns teóricos remetem seu ápice ao século XVIII, entre eles Todorov. Em consoante, Maria
Cristina Batalha7, elucida que “é apenas no final do século XVIII, que Charles Nodier (1780-
1844) o transforma em gênero literário, escrevendo o célebre artigo “Du fantastique en
littérature” (1830)” (BATALHA, 2012, p. 484). Gênero que emerge em oposição ao
Iluminismo, rompendo com a razão, estabelecendo uma relação intrínseca entre real e
fantasia. Ainda, no que diz respeito, à sua gênese Rodrigues (2003) assevera que:

O fantástico (stricto sensu), como gênero literário surge no século XVIII,


paradoxalmente, pois surge em pleno século das Luzes. Este é o momento da
afirmação do empirismo e da rejeição de toda metafísica, seja ela religiosa

4 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura
Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: cbatalh@gmail.com
5 Citação retirada do artigo Literatura fantástica: algumas considerações teóricas. R. Let. & Let. Uberlândia-

MG v.28 n.2 p.481-504 jul.|dez. 2012


6 Doutora em Letras - Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com

Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso
de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero -
(UCS)
7 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura

Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: cbatalh@gmail.com

542
Anais

ou não. Todos sabem que este grande movimento de racionalização que,


segundo alguns autores (Theodor Adorno), é inaugurador da Modernidade,
culmina com a explicação laica da História, fornecida pela
Enciclopedie(1751-1772). Entretanto, o iluminismo de Voltaire,
Montesquieu, Diderot, autores que pretendem oferecer uma explicação
racional e lógica do mundo e da história, criar sistemas e críticas sociais,
acaba por não dar conta da singularidade e da complexidade do processo de
individuação. (RODRIGUES, 2003, p. 98, grifo nosso).

Logo, o excerto acima deixa explícito que o Fantástico ‘acompanha’ o homem desde
tempos remotos, através das “epopeias, contos populares” (RODRIGUES, 2003, p. 95),
oralidade e outras formas. Considerações que remetem ao fantástico produto de
racionalidade e não oriundo de uma mente doentia, de acordo a professora doutora Cecil
Jeanine Albert Zinani8.
Nesse sentido, o estilo literário desponta na narrativa causando hesitação no leitor –
a dúvida entre o real e o sobrenatural para certos acontecimentos na ficção - diante do evento
insólito. Subverte os padrões da narrativa literária real-naturalista. Todorov (1939)
assevera que “o fantástico (...) dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao
leitor e à personagem” (TODOROV, 1939. p. 47), ou seja, dura apenas enquanto o leitor fica
na dúvida permanente, se aconteceu ou não, procurando explicações para o evento.
Destarte, se ocorre uma explicação plausível/racional deixa-se de ser fenômeno
fantástico e transita para seus gêneros vizinhos: o Estranho e o Maravilhoso, conforme
evidencia Todorov (1939): “O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra
resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o
maravilhoso” (TODOROV, 1939. p. 31).
Logo, o Estranho se manifesta quando há no final da narrativa uma justificativa
racional para o ocorrido, conforme declara Todorov “acontecimentos que parecem
sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional”
(TODOROV, 1939, p. 51) e o Maravilhoso quando não há uma explicação possível, o leitor
aceita como parte de uma realidade impossível, de acordo a professora Cecil Jeanine Albert
Zinani considera que “No fantástico maravilhoso, não há explicação, apenas uma sugestão
referente ao sobrenatural, não há reação de estranhamento, uma vez que ocorre uma

8
Doutora em Letras - Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso de Letras da
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero - (UCS)
Nota: excerto lido no artigo - O insólito na literatura: perspectivas da narrativa fantástica, 1° capítulo do livro: O
insólito na Literatura olhares multidisciplinares (2020).

543
Anais

negociação com o leitor de aceitação daquela realidade como natural (ZINANI, 2020, p. 21).
Logo, o Maravilhoso se porta como fenômeno aceitável pelos leitores, presente na
humanidade desde o pretérito, nos contos de fada, bosques encantados, magia,
acontecimentos inexplicáveis racionalmente. Conforme defende Nelly Novaes Coelho sobre
o evento aludido:

No início dos tempos, o maravilhoso foi a fonte misteriosa e privilegiada de


onde nasceu a literatura. Desse maravilhoso nasceram personagens que
possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se, contrariando as leis da
gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com as forças do
Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são
beneficiadas com milagres; assistem a fenômenos que desafiam as leis da
lógica, etc. (COELHO, 2000: 172).

Portanto, os três fenômenos - Fantástico, Estranho e Maravilhoso – permeia por uma


linha tênue: apreensão do elemento mágico, imaginário, sobrenatural, fornecendo uma
'viagem' atemporal, possibilitando ao amante da leitura fugir do “plano” real. Para tal,
diferenciá-los está no modo como cada leitor reage aos elementos irreal e real. Feitas as
apresentações teóricas, deleitem-se com análise da obra Duas Mulheres de Terramor (1976),
no qual exemplificaremos a presença do insólito.

A presença do insólito na ficção

“A geografia do cérebro comporta histórias de nível mais elevado do que os que


povoam o chão de nossa vizinhança.” (Rodrigues Marques, 1972).

É com este epíteto - que faz jus à problemática levantada - que se realizará as reflexões
da parte final do trabalho. O célebre escritor maranhense e caxiense Osmar Rodrigues
Marques (1929), publica sua obra Duas Mulheres de Terramor em 1976, pela Livraria São
José. Autor de uma escrita simples, como aponta o escritor piauiense Francisco de Assis
Almeida Brasil na descrição do autor na orelha do livro que diz: “a linguagem simples sem
maiores compromissos literários, é o forte de Rodrigues Marques”. Assis Brasil prossegue o
comentário e relata que “seu romance, Duas Mulheres de Terramor (1976), é sem dúvidas a
soma benéfica de toda a sua experiência anterior”. Afrânio Coutinho não poupou elogios ao

544
Anais

nosso escritor na obra intitulada “brasil brasileiros de hoje” que redigiu: “homem
contemporâneo, à custa de quem o país vai progredindo em seus diversos setores”9.
Em vida, foi um escritor ativo, participando e propiciando eventos culturais. Nascido
em Caxias – MA em 23 de janeiro de 1929; aos 12 anos iniciou sua carreira, publicando seu
primeiro conto. Herdeiro de uma família simples: pai apicultor e marceneiro Dionísio
Rodrigues Marques e mãe doceira, Maria Lourdes Marques, não foi empecilho para seu
envolvimento na literatura, assim como em outras áreas, dentre elas, jornalista, contista e
advogado; sua intensa dedicação ao mundo das palavras e das artes lhe rendeu diversas
premiações pelo país, entre eles: “Orlando Dantas - 4° centenário do Rio de Janeiro”; “Graça
Aranha” (São Luís); “Ficção”, do Banco Regional de Brasília; “Ficção”, do Governo do Distrito
Federal; “Prêmio Adelino Magalhães”; (Rio de Janeiro); e o Prêmio romance, do Governo de
Goiás, assim como, inúmeras obras publicadas, entre romances, contos e novelas.
Rodrigues Marques, reúne em seu romance ficcional – Duas Mulheres de Terramor
(1976) - um percurso imaginário e real, na mesma proporção que sucedem cenas reais que
remetem a cidades pequenas – interiorana – apresenta sinais de fantasia - hesitação;
estranheza - explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de
acontecimentos aparentemente inexplicáveis e imprecisos.
A ficção discorre sobre uma cidade fictícia - Terramor -, em que mãe e filha sonham
em encontrar o amor. As personagens vivem em um casarão de três andares, no qual, o
terceiro é reservado às vacas. Em meio a sonhos e delírios acontecem os mais inusitados
fenômenos na pequena e agitada cidade, fenômenos que por vezes assustam e surpreendem
o leitor. Um trecho estranhíssimo10 ocorre quando a mulher leva o defunto do seu marido
para ser chicoteado em troca de dívidas que deixou no plano terreno, a seguir a cena deste
episódio:

[...] Antuza disse que não e a mulher explicou: como não tinha dinheiro para
pagar todos os credores – ela e dois carregadores mais tarde sairiam com o
defunto, pelo comércio, perguntando se havia dívida a pagar. Se houvesse, o
credor poderia dar uma surra no defunto e o compromisso assim ficaria
quitado. (MARQUES, 1976, p. 69).

9 Informação retirada de um antigo jornal, publicado em uma página do Facebook: Farol Caxiense, em que
reúne diversas informações e documentos importantes que foram com o tempo se perdendo. Disponível em:
https://www.facebook.com/ronaldocxma. Acesso em 11/02/2022
10 Palavra utilizada com o sentido de: não afeito; não habituado. Definição dada pelo dicionário online

priberam de português. Site// estranhíssimo - Dicionário Online Priberam de Português, acessado em


06/02/2022.

545
Anais

Apesar de ser inusitada a atitude da mulher, os credores hesitam em açoitar o


falecido, levando-os a afirmar: “e eu acho ainda que isto que a senhora está dizendo é um
crime” (p. 69), fato que é explicado mais adiante, em que a esposa justifica que “É um costume
de nossa família. Todos os meus antepassados fizeram isto (MARQUES, 1976, p. 69).
Diante do exposto, pode-se inferir como algo fora do normal, rompendo assim, com
as narrativa-naturalista, pois, logo depois que a esposa explica a razão do seu
comportamento, os credores o açoitam com toda sua ira, ainda houve aqueles que não eram
credores, mas que o surrou: “embora não houvesse nenhuma conta a pagar, o verdureiro
ergueu o chicote e por várias vezes surrou o defunto” (p.71). Condizente ao que reflete o
estilo da narrativa insólita, a respeito Flávio Garcia afirma que:

Insólito abarca aquilo que não é habitual, o que é desusado, estranho, novo,
incrível, desacostumado, inusitado, pouco freqüente, raro, surpreendente,
decepcionante, frustrante, o que rompe com as expectativas da naturalidade
e da ordem, a partir senso comum, representante de um discurso oficial
hegemônico. (GARCIA, 2007, 1 apud citação do ebook).

Rodrigues Marques nos apresenta uma narrativa surpreendente, fugindo, por vezes,
do real; aludindo para uma literatura ficcional insólita/maravilhosa, ocorrências que
veremos a seguir em outros trechos. À exemplo, em um outro capítulo, no primeiro, ocorre
a mesma ação de provocar terror seguido de nojo e incompreensão, pois Artemiza, filha de
Antuza, avisa sua mãe que há um corpo (defunto) na praia carregado de guaiamuns - espécie
de caranguejo -, a mãe de imediato pede a filha que vá buscar, sem ao menos certificar quem
era o indivíduo. Conforme verifica-se na passagem:

Artemiza segurou o cachimbo por alguns minutos e pediu a filha que voltasse
à praia e se de fato os siris fossem bonitos e gordos como acabara de dizer,
os trouxesse todos [...] Antuza andou novamente légua e meia até alcançar a
praia. Quando se curvou para retirar os siris do seu interior, o róseo de sua
pele parecia mais belo [...] com as mãos ágeis foi retirando os gordos siris no
jacá e, ao notar que já não havia mais um só para levar para Artemiza,
permaneceu ainda algum tempo ajoelhada ao lado do afogado e concluiu que
se tivesse força para atirar novamente o cadáver ao mar, por certo quando
voltasse à praia viria mais recheado de siris e até trouxesse algum peixe ou
algum caranguejo no seu bojo. ( MARQUES, 1976, p. 12 grifo nosso).

Nestes breves trechos que narra o exemplar, nos apresenta ações que se dá “num
mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem sílfides, nem diabos, nem
vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo

546
Anais

familiar” (TODOROV,1939, p.30), remetendo-nos ao gênero insólito, sendo “inexplicável”,


“inadmissível”, quando os introduz na “vida real” ou no mundo real”.
Portanto, as reflexões acerca do insólito está no envolvimento do leitor para com a
obra, pois, advém da hesitação - leitor e narrador, personagem e leitor – em que se mantém
a dúvida, despertando a hesitação - “o quase cheguei a acreditar”11, opondo ao natural e
ordinário. Correlacionando com a ficção do caxiense Rodrigues Marques, é possível destacar
excertos que evidenciam o estilo aqui supracitado, de modo que, no decorrer da narrativa
nos deparamos com fenômeno sobrenatural, surgimento de um nevoeiro - escuridão total -
perdurou por mais de sete dias na cidade de Terramor, como explicita o trecho a seguir:

DESCEU UMA NÉVOA PESADA SOBRE A CIDADE e durante seis dias ninguém
saiu de casa – as luzes todas acesas sumidas dentro do cinza opaco. No
sétimo dia apareceu o sol queimando o nevoeiro, mas, quando todos
pensavam que o tempo ia normalizar, novamente o nevoeiro o venceu e as
pesadas nuvens que começavam a avermelhar escureceram de novo outra
vez e a cidade ficou perdida de si mesma [...] A maioria das mulheres
engravidou de tanto não ter o que fazer naqueles dias e houve quem dissesse
– mentindo - após tudo passado, que só não se perderia numa das ruas do
centro porque estava com um facão na mão quando desceram as trevas e foi
cortando o nevoeiro com a ferramenta para poder andar. ( MARQUES, 1976,
p. 31).

Perante a este acontecimento extraordinário que é parte integrante da realidade,


porém é regida por leis desconhecidas por nós, conforme explica Todorov que “hesitação do
leitor é, pois, a primeira condição do fantástico” (1939, p. 37), logo, se a narrativa
sobrenatural recebe uma explicação racional, adentra para o fantástico-estranho definido
como “incrível”, “extraordinário”, “chocante”, “inquietante”, “insólito” (TODOROV, 1939, p.
53. Grifo nosso). Fato que se conclui no trecho analisado, dado que, o prefeito percorre por
toda cidade, após o nevoeiro para apurar a “extensão da tragédia” (p. 35) e o sacristão
justifica uma provável causa para o evento ‘fantástico’, profere que: [...] que o nevoeiro só
podia ser consequência dessas experiências dos russos e americanos e sugeriu ao Prefeito
que pedisse uma indenização às duas nações” (MARQUES, 1976, p. 36).
A fim de elucidar o aparecimento do Estranho na narrativa Duas Mulheres de
Terramor, Todorov (1939) declara que “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao
longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional” (TODOROV, 1939, p. 51).

11Trecho retirado do artigo:O INSÓLITO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, do prof Flavio García UERJ /
UNISUAM. Publicações Dialogarts 2008 (http://www.dialogarts.uerj.br)

547
Anais

Revelando assim “mecanismos dos fatos até então sucedidos” (Ide, Ibidem, p. 51). Dessa
forma, o fenômeno Estranho na narrativa se dá pela explicação do nevoeiro que atingiu a
cidade.
Por conseguinte, assim como a presença do estranho, encontra-se fragmentos do
fantástico, causando hesitação e dúvida no leitor - é importante ressaltar que a hesitação
mencionada se dar pelo leitor implícito, visto que, “para se manter, o fantástico implica pois
não só a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no
herói, mas também um certo modo de ler.” (TODOROV, 2003, 151) - circunstância observável
na personagem Artemiza, que por vezes se perde nos próprios pensamentos, levando ao
leitor perguntar se o evento se efetuou ou não.
Diante disso, em uma entrevista a professora Maria Cristina Batalha acerca da
literatura insólita na língua portuguesa12, afirma ter uma concepção mais aberta do
fantástico, uma vez que, a concepção Todoroviana é mais restrita, por isso ela tem uma
convicção muito mais aberta, considerando-o “macro-gênero, ou um gênero que pode
comportar muitos subgêneros que têm o insólito como ponto em comum”, em conformidade,
a narrativa manifesta traços do gênero fantástico comportando o insólito, retomando o
episódio em que Antuza se ’perde’ em seus próprios pensamentos, impulsionando o leitor a
questionar-se sobre a eventualidade, como pode-se observar o trecho:

ARTEMIZA ANDOU PELO CASARÃO INTEIRO, a vista turva fazendo-a


tropeçar nos móveis e no passado – os chinelos chec-chec-chec espantando
coisas e sombras. Não sabia se mandaria fazer o caixão de Antuza, branco ou
azul, simbolizando a virgindade inutilmente preservada ou se encomendaria
um caixão de pinho, comum, lixado e envernizado, que qualquer mulher já
imprensada sob homem poderia usar. Colheu, no jardim agora favorecido
pelas doces chuvas de abril, todas as flores que suas mãos alcançaram,
espalhando-as sobre a enorme pedra-mármore da cozinha, enchendo a pia e
a banheira, as bacias e os jarros – mas todas separadas pela cor ou pelo
perfume, pelo tamanho ou pela duração, ou – quem sabe? - até pela seriedade
que poderiam dar à morte. (MARQUES, 1976, p. 17).

Diante desta cena infere-se durante a leitura a morte da personagem Antuza, visto
que, sua mãe ‘idealiza’ e pratica ações que nos dar a certeza do falecimento da filha, como
quando ela cogita: “Antuza ficaria muito mais bonita com o seu caixão cheio das frutas da
região do que todas aquelas flores. E seria diferente de qualquer enterro, satisfazendo seu

12 Entrevista publicada pela revista Desassossego, DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p188-192 por Bruno Anselmi Matangrano.

548
Anais

gosto de não fazer nada igual aos outros” (p., 18), porém, ao prosseguirmos deparamo-nos
com a seguinte situação:

Pensou em subir mais um lance de escada ir ver suas vacas, mas o cansaço
das pernas a desestimulou. Contentava-se em ouvir seus longos mugidos
vindo do outro lado do maciço portão. E com eles nos ouvidos desceu a
escada e de novo estava diante de suas flores. Antuza quando a viu, o
pensamento tão distante, quis saber onde a mãe estivera tanto tempo. -
Depois que colhi as flores, subi um pouco para chorar no segundo andar.
Quando cheguei lá em cima a vontade de chorar já havia passado. Nesse
instante, Artemiza, como se voltasse de não do segundo andar, mas de um
outro mundo, esbarrou em seu próprio susto: - Mas você não estava morta?
Eu vi com meus próprios olhos você esticada sobre a mesa. Eu mesma vesti
sua mortalha. - é possível. Eu às vezes acompanho meu próprio enterro.
(MARQUES, 1976, p. 18/19).

Como vimos, durante a leitura destes trechos destacados, o leitor é levado a se


questionar sobre o ocorrido. Antuza, realmente, faleceu? Artemiza estava a delirar devido à
velhice? Ou era lembrança de alguém que um dia viera a falecer na sua frente? Indagações
que despertam no leitor e na própria personagem que hesita – e o leitor com ela – se o que
aconteceu foi verdadeiro, se o que o cerca é de fato realidade - (neste caso, se Antuza faleceu
ou não) ou se trata de um sonho delírio que aqui tomou forma de realidade posta diante de
dúvidas?
Para tal, consoante Todorov (1939, p. 36), em sua definição do que viria a ser o
Fantástico na narrativa é o “Cheguei quase a acreditar”: eis a fórmula que resume o espírito
do fantástico. - Pode-se aludir ao momento que Artemiza prepara o funeral da filha -, sendo
a hesitação que lhe dá vida (ao fantástico) - instante em que personagem e leitor hesitam –
somos assim transportados ao âmago do fantástico (TODOROV, 1939), pois, é um gênero que
visa “perturbar o seu leitor” (VAX, 1972, p. 28)13.
Ademais, conforme Nordier desenvolve sua teoria iniciada no ensaio de 1930 e
aponta para a existência de três tipos de fantásticos: (1) a história fantástica falsa, (2) a
história fantástica vaga e (3) a história fantástica verdadeira, sendo esta última aquela que
“abala o coração profundamente sem custar sacrifícios à razão” e que, por isso, propicia ao
leitor compartilhar das angústias da personagem tal qual o “espectador de uma cena de

13Citação retirada do artigo: O FANTÁSTICO GENOLÓGICO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E OUTRAS


CONSIDERAÇÕES da autora Karla Menezes Lopes Niels (UFF)

549
Anais

ilusões” (NORDIER, 1832, s/p. Apud LOPES NIELS, p. 640)14. "Incerteza”,” imprecisão”,”
ambiguidade”, “real”, “irreal”, “ilusório”, “imaginação”, “fantasia”, “criação”, “natural e
sobrenatural” são alguns exemplos da força motriz da narrativa Fantástica.

Considerações finais

Em síntese, o insólito na narrativa na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) se dá


por meio do ‘estranho’, do novo, do não-habitual, entrelaçando cenas naturais e
sobrenaturais. Rodrigues Marques nos apresenta à uma ‘viagem atemporal’ cercada de
drama, mistérios, eventos sobrenaturais, romance e delírios por parte dos personagens.
Conforme Maria Cristina Batalha explicita “a crítica designava como fantástica toda narrativa
de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a realidade que nos cerca”
(BATALHA, 2011, p.13), ademais, regido por leis desconhecidas por nós - referindo ao
mundo real. É importante ressaltar que o viés aberto pela produção ficcional de Rodrigues
Marques possibilita ser lida e estudada por outros “olhares”, trouxemos neste trabalho
pontos que despertaram a curiosidade em pesquisar, delineando e destacando episódios da
ficção que representam/conversam com o gênero insólito, visto que, “o gênero, como código
literário, conjunto de normas, de regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual
ele deverá abordar o texto, assegurando dessa forma sua compreensão” (COMPAGNON,
2003, p. 158). Dessa forma, selecionamos e delimitamos ‘partes’ a serem estudadas. Por fim,
um percurso surreal (real) do que encontrou-se na obra, fazendo jus ao que Rodrigues
Marques (1976, S/P ) profere: “A geografia do cérebro comporta histórias de nível mais
elevado do que os que povoam o chão de nossa vizinhança” e assim encerramos nossas
reflexões aludindo às criações mais belas do cérebro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATALHA, Maria Cristina. LITERATURA FANTÁSTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


TEÓRICAS. R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.481-504 jul. Dez. 2012. Disponível em:
https://www.passeidireto.com/arquivo/86849662/literatura-fantastica-algumas-
consideracoes-teoricas. Acesso em: 23 de janeiro de 2022.

14
Citação retirada do artigo: O FANTÁSTICO GENOLÓGICO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E OUTRAS
CONSIDERAÇÕES, da autora Karla Menezes Lopes Niels (UFF)

550
Anais

CARNIEL, Jean Carlos. EM BUSCA DE DEFINIÇÕES: SOBRE A PLURALIDADE DO


FANTÁSTICO IN SEARCH OF DEFINITIONS: ON THE PLURALITY OF THE FANTASTIC.
Revista Água Viva, Recebido em: 31 mai. 2021. Aceito em: 08 ago. 2021. DOI:
10.26512/aguaviva.v6i2.38272. Volume 6, Número 2, Edição Especial 2021
[aguaviva.unb@gmail.com].

Entrevista com a professora Maria Cristina Batalha acerca da literatura insólita em


língua portuguesa. Revista Desassossego. DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p188-192 (p. 188 a 192).

Flavio García. Regina Michelli. Marcello de Oliveira Pinto (orgs.) 2008. Poéticas do Insólito
Conferências e Palestras do III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa
ficcional”: o insólito na literatura e no cinema. ISBN 978-85-86837-46-3. Disponível em:
http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/poeticas_do_insolito.pdf. Acesso em: 03 de
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Flavio García; Marcello de Oliveira Pinto; Regina Michelli (org.) O insólito em questão Anais
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GARCIA, Flávio. Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo


e gênero literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as
tradições teórica, crítica e ficcional. XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro,
Centros – Ética, Estética. 18 a 22 de julho de 2011 UFPR – Curitiba, Brasil. Disponível em:
https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0010-1.pdf Acesso em:
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LITERÁRIA.

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TODOROV, Tzvetan, 1939 - Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara


Correa Castello. 4°. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.

551
VITORIA E CHICA DA
SILVA: PERSONAGENS
HISTÓRICAS E
LITERÁRIAS NO
BRASIL COLÔNIA
Jade Mariam Carvalho SILVA (UFDPar)1
Sávio Roberto Fonsêca de FREITAS (UFPB)²

RESUMO

O presente trabalho visa abordar a representação da mulher trans negra na literatura de


Eliana Alves Cruz e a representação da mulher negra (cis) na obra de Joyce Ribeiro. A
explanação do tema terá como base a análise da personagem literária Nada digo de ti que em
ti não veja (2020) de Eliana Alves Cruz e analisar a personagem Chica da Silva do romance
biográfico Chica da Silva- um romance de uma vida de Joyce Ribeiro (2016), obra que
desmistifica a imagem construída sobre a história da mineira Chica da Silva, ex-escravizada
forra que se torna a esposa do governador das Gerais o contratador João Fernandes de
Oliveira, romance que aborda o aspecto afetivo da mulher que foi esposa, mãe, dama da
sociedade que obteve visibilidade tendo uma história diferente do que se esperava para uma
mulher negra. Para compreender as questões de gênero inerentes a obra se faz necessário o
aporte teórico de autores como Judith Butler (2013), Paulo Roberto Ceccarelli (2019), entre
outros teóricos. No que concerne à autoria negra feminina se faz necessário o aporte teórico

1 Mestranda em Estudos Africanos e Afro-brasileiros pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail:


jadevaccari.it@gmail.com
2 Professor efetivo de Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras do CCAE-UFPB (Campus

IV-Mamanguape) e do PPGL-UFPB (Campus I-João Pessoa). E-mail: savioroberto1978@yahoo.com.br

552
Anais

de Ebonolowa (2021) e Ferreira (2019) para evidenciar a necessidade da valorização de um


feminismo voltado para uma filosofia africana, como também um feminismo que pense o
lugar da travesti negra no Brasil.

Palavras-Chave: Trans; Literatura; Negra; Feminismo; Romance.

ABSTRACT

The present work aims to approach the representation of the black trans woman in the
literature of Eliana Alves Cruz and the representation of the black woman (cis) in the work
of Joyce Ribeiro. The explanation of the theme will be based on the analysis of the literary
character Nada digo de ti que em ti não vem (2020) by Eliana Alves Cruz and analyze the
character Chica da Silva from the biographical novel Chica da Silva- a novel of a lifetime by
Joyce Ribeiro (2016), a work that demystifies the image built on the history of Chica da Silva
from Minas Gerais, a former freed slave who becomes the wife of the governor of Gerais, the
contractor João Fernandes de Oliveira, a novel that addresses the affective aspect of the
woman who was a wife. , mother, society lady who gained visibility having a different story
than what was expected for a black woman. To understand the gender issues inherent to the
work, the theoretical contribution of authors such as Judith Butler (2013), Paulo Roberto
Ceccarelli (2019), among other theorists is necessary. With regard to black female
authorship, the theoretical contribution of Ebonolowa (2021) and Ferreira (2019) is
necessary to highlight the need to value a feminism focused on an African philosophy, as well
as a feminism that thinks about the place of the black transvestite in the world. Brazil.

Keywords: Trans; Literature; black; Feminism; Romance.

1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio busca evidenciar a vivência de uma travesti no Brasil Colônia


através da análise na obra Nada digo de ti que em ti não veja (2020), da autora afro-brasileira
Eliana Alves Cruz, como também a intersecção que há entre este romance e Chica da Silva -
romance de uma vida (2016), da jornalista e escritora Joyce Ribeiro. A pertinência destas
obras escritas por mulheres negras consiste em: olhar para trás, entender como as coisas
aconteceram e ousar pensar no amanhã (CRUZ, 2020), conforme as palavras de Eliana Alves
Cruz concedidas em entrevista.
Além de refletir que, atualmente, a literatura afro-brasileira está em evidência, pois
autores afro-brasileiros contam sua própria história, ou seja, a história do povo negro
através de sua literatura, o que podemos denominar escrevivência. Além disso, buscaremos
abordar a representação da mulher trans na literatura de Eliana Alves Cruz, tendo como foco
o âmbito afetivo-sexual e o fato dos corpos trans serem vistos como corpos abjetos em meio

553
Anais

a uma sociedade heteronormativa. Para compreender as questões de gênero inerentes a


obra se faz necessário o aporte teórico de autoras como Judith Butler, entre outros.
2 DESENVOLVIMENTO

A sociedade baseia-se em um Cis-tema fundamentado na diferença sexual no qual o


gênero, a sexualidade e o corpo seriam instâncias que se coadunam, não podendo ser
dissociadas, logo os corpos que se distanciam dos padrões de gênero podem ser chamados
corpos dissidentes, então é como se tais corpos representassem uma quebra na ordem
estabelecida socialmente, conforme Bento (2006, p. 13). A terminologia Cis-tema tem o
objetivo de explanar o sistema cisgênero dominante, ou seja, as normas da cisgeneridade
que ditam padrões de gênero, que subjugam corpos transgêneros que não enquadram de
modo simétrico nos seus ditames de sexo, identidade, orientação sexual e afetividade.
Vergueiro (2015) evidencia a importância da interseccionalidade como aspecto crítico da
cisnormatividade, a qual aponta o alinhamento de outros fatores normativos imbricados
nessa relação, destacando-se um cenário no qual atuam padrões como os que podemos
chamar de branquitude, cisgeneridade e cristianização. A heteronormatividade corresponde
ao Cis-tema que supervaloriza um tipo de vivência em detrimento de todas as demais.

A protagonista trans em Nada digo de ti que em ti não veja

Vitória, a protagonista da obra literária, pode-se dizer que se trata de uma mulher
trans negra que no início da história é escravizada, a narrativa se passa no século XVIII, e
devido a sua astúcia consegue tornar-se uma mulher livre. Vitória, a negra forra e prostituída
vive um amor proibido com o fidalgo Felipe Gama, que seria sua perdição. Porém, a trama
nos faz refletir se o amor que os unia seria capaz de ser mais forte que as imposições sociais.
Pensar nesta vivência é pensar numa vivência trans em um contexto em que a
sociedade não reconhecia tal vivência, porém a pessoa trans existia naquela sociedade do
Brasil Colônia setecentista, conforme os trechos “negro que se diz mulher” (CRUZ, 2020b,
p.34) e “o medonho africano metamorfoseado em mulher” (CRUZ, 2020b, p 148), tais trechos
revelam que Vitória pode ser lida conforme o que hoje denominamos travesti ou mulher
trans, pois assumia socialmente uma identidade feminina ainda que tal identidade não
tivesse reconhecimento por parte do Estado. Isto faz da personagem um ser errante, naquele
contexto dominado pela Coroa, pelos poderes do Clero, tais poderes que poderiam condenar

554
Anais

Vitória à morte tanto da sua identidade feminina, como também à sua morte física. Cruz
(2020) em sua poética traz à tona a reconstituição de uma época, o início do século XVIII.
Cruz investigou casos de pessoas nascidas com o sexo biológico masculino, que conforme
constam em documentos históricos, se apresentavam como mulheres, assumiam
socialmente uma identidade feminina, o que corrobora com Mott “quando o chamam de
homem, não gosta disso. Comumente o chamam de Vitória e só queria que lhe chamassem
de Vitória, e quem lhe chamava de negro, corria às pedradas” (MOTT, 2005, p. 12). Logo, este
relato histórico que fala de uma outra Vitória, mulher trans, vamos denominá-la desse modo,
que fora presa em 1556 em Lisboa, sob a acusação de sodomia. Vitória que era natural do
Reino do Benin se prostituía, fazendo concorrência às demais mulheres profissionais do
sexo, até que foi descoberto o seu sexo biológico sendo masculino, portanto, fora condenada
ao degredo, trabalhando de forma análoga a escravidão nas galés de Algarve.
A trama da obra literária analisada se passa em São Sebastião do Rio de Janeiro e
revela que a sociedade é um tanto hipócrita em suas práticas, pois as famílias de
escravocratas Gama e Muniz, antagonistas da trama, possuem segredos que são revelados
no decorrer da narrativa, por exemplo, uma origem judaica que poderia resultar em uma
acusação de lesa-majestade, punida com a morte por enforcamento ou fogueira. A trama
dialoga com temas atuais do contexto brasileiro, como o racismo estrutural, as fake news, os
dogmas da Igreja, como também uma possível redenção através da Delação Premiada diante
do tribunal da Inquisição, ou melhor, Santo Ofício como era conhecido no Brasil. No
desenrolar da história as personagens de origem judaica são acusadas de bruxaria
juntamente com a travesti Vitória que se mostra como uma curandeira, calunduzeira, e era
procurada pelas pessoas para a realização de práticas como reza para tirar “mau olhado”,
tratamentos médicos, previsão do futuro, entre outras. A narrativa revela a associação entre
ser mulher e a bruxaria, conforme o trecho “vossa mercê pensa que não sei de vosso
intercâmbio com estas bruxas de um lado tens as feiticeiras judaizantes” (CRUZ, 2020, p.
148). O ponto forte da narrativa é a construção evidente da identidade de gênero feminina
de Vitória conforme o trecho “Não sou negro. Sou negra! Ne- gra” (CRUZ, 2020, p. 184),
mostrando assim o sentimento de pertença da personagem a uma identidade feminina, o que
ocorre em diversos outros trechos da trama.
Um dos pontos principais da narrativa é a relação entre o jovem Felipe Gama estaria
fadada ao fracasso, pois seria impossível a relação entre um fidalgo e uma travesti negra
(usar tal termo pode gerar um anacronismo), porém seu uso se dá devido às evidências de

555
Anais

que a personagem de fato tinha uma identidade de gênero feminina assumida socialmente,
conforme o trecho “Ela sabia que o mundo em que viviam não nutria pessoas como ele para
que tivessem musculatura de espírito para viverem abertamente suas verdades” (CRUZ,
2020b, p. 183). A partir da narrativa vemos que seria inviável o personagem Felipe assumir
socialmente sua relação com uma pessoa lida socialmente como “um negro que se diz
mulher”, posto que tal relação trouxesse não somente consequências sociais, mas o risco
iminente da morte, para além do opróbrio em que cairia a família do fidalgo.
Porém, o desenrolar da história revela reviravoltas, como o desfecho em que diversos
personagens são acusados pelo tribunal do Santo Ofício por diversas acusações e, por isso,
um possível final feliz é vislumbrado para os amantes protagonistas da trama. Analisar esta
narrativa aponta que a realidade brasileira carrega consigo o jugo de resquícios do processo
histórico de escravização, fazendo-nos refletir acerca de uma nova perspectiva de
enfrentamento à realidade, olhar para a África como um norte nesse processo decolonial.
Conforme:

A África é, atualmente, confrontada com os fenômenos neocoloniais do


capitalismo e do racismo globalizados, um fato que, mais do que nunca,
sugere a necessidade de um fortalecimento inventivo dos movimentos ao
redor de políticas centradas em um engajamento consciente com diferentes
posições e histórias de sofrimento. (OSSOME, 2018, p. 57).

A partir desta narrativa podemos refletir sobre o lugar de uma travesti negra na
sociedade, tendo em vista que até hoje o Brasil representa o país que mais mata travestis e
transexuais, havendo grandes índices de transfeminicídio, ou seja, o extermínio sistemático
de corpos trans negros, o que revela uma verdadeira necropolítica, na qual os corpos não
importam em uma sociedade cis-heteronormativa. Com base nesta reflexão se faz necessário
propor uma nova perspectiva de ver o mundo e defender os direitos de pessoas trans negras,
o conceito que pode ser entendido como um norte para tal enfrentamento, pode estar dentro
da perspectiva mulherista, abraçando conceito do mulherismo, ou seja, uma variação
afroamericana do feminismo, que corresponde a abarcar pautas específicas das mulheres
negras, tendo como uma das estratégias de enfrentamento ao patriarcalismo convidar os
homens para a luta antimachista, com um olhar especial para o homem negro, conforme
Ebonoluwa (2009).
Em vista de que as mulheres negras trabalharam em condições sub-humanas devido
ao colonialismo, assim como os homens negros. E partindo do ponto de que o feminismo

556
Anais

surge de reivindicações de mulheres brancas europeias e estadunidenses por inclusão e


melhores condições de trabalho, não olhando para pautas como a cidadania da população
negra. Por esses pontos supracitados, o mulherismo defende um posicionamento não apenas
direcionado ao combate às opressões de gênero, mas direcionando o olhar ao combate as
opressões, tendo em vista as intersecções entre classe, raça e gênero (EBONOLUWA, 2009,
p. 04).

Chica da Silva, romance de uma vida

No ano de 2016, a influente jornalista negra Joyce Ribeiro, conhecida por atuar como
repórter da emissora de TV SBT, lança sua biografia romanceada de Chica da Silva, em sua
releitura da clássica história da ex-escravizada, que se tornou a esposa do contratador dos
diamantes, João Fernandes de Oliveira, a mulher negra que de escrava passou a ser rainha
do Arraial do Tijuco. Em sua narrativa, Chica é uma mulher forte, determinada, porém
resignada em determinados aspectos, como no que concerne ao cuidado da casa e dos filhos,
e acima de tudo, ela é mostrada como uma mulher apaixonada. Podemos vê-la como uma
mulher à frente do seu tempo, conforme o trecho “Chica era livre por natureza” (RIBEIRO,
2016, p. 08), não aceitando o destino de ser uma escrava ou mesmo uma simples amante,
como se vê em “Chica não acreditava que o afeto era privilégio das mulheres brancas”
(RIBEIRO, 2016, p. 08). Logo, Chica não se via inferior às mulheres brancas considerando-se
digna do mesmo afeto e também do lugar de esposa de um fidalgo de El Rey.
Com o contratador ela gerou filhos que teriam a chance de “branquear sua origem”
devido à influência do pai, logo ela teve filhas que se tornaram monjas, o que na época
representava uma posição de destaque na sociedade, tendo em vista a união entre Estado e
Igreja, como também teve filhos que puderam estudar no Reino, garantindo assim um lugar
de destaque na sociedade seja como religiosos ou bacharéis (RIBEIRO, 2016, p. 09). Devido
ao fato de João Fernandes ser governador do Tijuco, era como se Chica fosse sua consorte,
ainda que a houvesse comprado enquanto escrava a libertou e, inclusive, não fizera o uso
daquele corpo sem o consentimento de Chica. A narrativa ribeiriana revela que havia “outras
negras forras proprietárias de casa e escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 20), porém ela tinha um
diferencial, pois ainda que seu casamento não fosse oficialmente legalizado pela Igreja, não
vivia como concubina, participando de determinadas atividades sociais, assim ela se mostra
uma mulher religiosa dedicada ao lar e ao marido. Chica, que a princípio fora conhecida como

557
Anais

Chica, a parda, era filha da escravizada africana Maria da Silva e do capitão português
Antônio Caetano de Sá, posteriormente Chica recebera o nome de Francisca da Silva, tendo
em vista que Silva, aquele que hoje é o sobrenome mais comum do povo brasileiro era na
verdade um epíteto usado como sobrenome para quem não tinha família, logo ex-
escravizados, entre outras pessoas tidas como ralé. Os filhos de Chica carregavam o
sobrenome do pai, porém em seus registros constava “pai desconhecido”, o que não os
impedia de estudar no Reino, era um branqueamento, porém sem detalhar maiores
informações sobre o influente pai (RIBEIRO, 2016, p. 30).
Em determinados momentos da narrativa Chica é mostrada como uma mulher
luxuriosa, como, por exemplo, no trecho que afirma que ao se confessar, o homem que se
enamorara por Chica “a cada confissão se livra do pecado da luxúria a que se entrega com
entusiasmo com sua Chica” (RIBEIRO, 2016, p. 42). Ainda que esta faceta de luxúria não seja
o foco da narrativa ribeiriana aparece também em outros trechos como “Ir para a cama está
longe de ser um sacrifício ou obrigação como acontece com as brancas sem amor nem
paixão” (RIBEIRO, 2016, p. 54).
Podemos refletir também sobre o fato de Chica ser uma sinhá, portanto “por
paradoxo, uma senhora de escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 46) o que nos leva a problematizar
como pôde uma mulher negra escravizar outrem, porém é preciso levar em conta que Chica
apenas reproduz um padrão, ela demonstrara em determinados aspectos igualar-se ou
quase igualar-se às mulheres brancas, inclusive neste aspecto negativo, o que numa
perspectiva contemporânea, pode levar-nos a concluir que, o oprimido quando pode em
determinadas circunstâncias assume um papel de opressor, ou sequer tem a consciência
disto. É como se Chica houvesse herdado um lugar de rainha consorte e seus súditos fossem
escravizados, logo determinadas conjecturas geram um anacronismo.
Em determinado momento da narrativa, Chica e João Fernandes precisam separar-se,
pois o contratador vai ao Reino resolver questões relativas a uma briga judicial com a viúva
de seu pai, o que para Chica representa uma nostalgia sem fim, no entanto ela segue
resignada como uma fervorosa mulher católica (2016, p. 82). Contudo, no arraial do Tejuco
continua sendo tratada como a mulher do desembargador mesmo em sua ausência. E como
nem tudo são aspectos positivos, a narrativa mostra a erotização dos corpos negros, Chica
era vista como alguém “capaz de enfeitiçar” (2016, p. 114), ainda que respeitada socialmente
ou supostamente respeitada, no mínimo, tendo um lugar de destaque como se fosse uma
mulher branca, havia rumores de que em algum momento ela enfeitiçara o contratador, e

558
Anais

com tal feitiço conseguira se tornar uma dama da sociedade colonial. Para a visão colonialista
ela era “uma doidivanas capaz de manter cativo” um homem da estirpe de João Fernandes.
No entanto, em seu funeral a dama negra do arraial teve honrarias de fidalgo.

A Travesti negra enquanto autora literária

No que concerne à discussão sobre a erotização dos corpos, pode-se refletir acerca do
trecho do texto autoral de Jade Mariam Vaccari (2018), recitado no decorrer do II Seminário
Mulheres e Universidade: Juntas contra o racismo, o machismo e a LBTfobia. Conforme
Vaccari (2019), a mulher trans muitas vezes é vista como “Apenas um corpo destinado ao
sexo, ao exotismo e à erotização. Uma mulher trans não é gente, é só um ser destinado ao
prazer”. A poética de Vaccari evidencia o lugar de subalternidade, na qual a pessoa trans é
relegada, fato frequente, tendo em vista que a sociedade está pautada em valores
heteronormativos e, por isso determinadas relações sejam vividas apenas no “sigilo”, pois a
masculinidade dos homens cisgênero pode ser posta em xeque caso venham se relacionar
com uma travesti ou transexual.
Atualmente vemos o emergir de um protagonismo de pessoas trans na arte, trazendo
à tona questões como a realidade de ser mulher negra e trans, ser trans e periférica, entre
outros recortes sociais, conforme a poética de Ferreira "Todo livro escrito por uma travesti
deveria ser saudado e encarado como um rasgo no tecido histórico" (FERREIRA, 2019, p. 9).
Sendo assim, tais escritos representam um marco histórico ao desviar-se do cânone literário,
que inclusive, o âmbito acadêmico em geral aborda, mostrando que tais vozes são
importantes. Destarte, o lugar de fala da mulher trans negra pode ser exposto em uma obra
que seja de sua autoria, expondo seu ponto de vista da realidade. Somasse a isso o fato de
que a sociedade está condicionada a valorizar a escrita de homens ou de mulheres cis, em
sua maioria branca e heterossexual, como afirma Ferreira, "sim, para a pele preta de signos
coloridos essas coisas são privilégios" (FERREIRA, 2019, p. 19).
A poética de Ferreira desperta a atenção para realidades, como aquilo que podemos
chamar de o privilégio cis da afetividade, que seria o fato de que para uma mulher trans, o
vivenciar dos relacionamentos afetivo-sexuais está condicionado a diversos dilemas, como a
dificuldade de estar em uma relação heterossexual com um homem cis, pelo fato da mulher
trans ter sua identidade de gênero deslegitimada socialmente, não sendo vista enquanto
mulher. Além disso, a masculinidade do homem que se relaciona com uma mulher trans é

559
Anais

posta em xeque, como Ferreira reflete no trecho "voei pro sol demais e minhas asas
derreteram, eram apenas uma cis-ilusão" (FERREIRA, 2019, p. 32). Sendo assim, para a poeta
o fato de uma travesti negra se envolver afetivo-sexualmente com um homem é comparável
ao mito de Ícaro, em que suas “asas” podem derreter a qualquer momento, ou seja, a relação
se desvanecerá, logo a relação estaria fadada ao olhar preconceituoso da sociedade, como se
a afetividade fosse apenas um atributo destinado às pessoas cis. A poética de Ferreira
evidencia a abjeção dos corpos de pessoas trans, enquanto corpos dissidentes, pois o senso
comum lhes aponta como corpos que não importam "corpo que é almejado dentro de um
saco como se fosse a coisa mais nojenta" (FERREIRA, 2019, p. 57).
Contemporaneamente, autores trans têm tido visibilidade através de publicações,
como a obra Academia Transliterária (2019). Tal fator evidencia como pessoas trans estão
galgando seu reconhecimento através da literatura, música e área de digital. Um exemplo
disso é como os influencer ou como os youtubers muitas vezes usam de uma linguagem
própria da população LGBTQ+, o pajubá, "linguagem afro-centrada, como também a
população trans tem sua cultura própria" (JESUS, 2019, p. 16).

3 CONCLUSÃO

A obra literária afro-brasileira Nada digo de ti que em ti não veja evidencia a existência
de vivências de gênero dissidente e explana sobre a realidade de um corpo negro prostituído
em um Brasil Colônia. Enquanto obra Chica da Silva romance de uma vida revela as facetas
de uma mulher que marcou época na sociedade brasileira, e foi representada em diversos
romances históricos, no entanto há o diferencial do romance analisado se tratar de uma obra
de autoria negra. Logo, a literatura afro-brasileira nos convida a compreender a realidade de
uma mulher negra, trans, escravizada, prostituta. O estudo desta narrativa mostra a
importância de reconhecer as epistemologias que se formam a partir do estudo de obras com
personagens negros, de autoria negra tendo em mente o conceito de Escrevivência, pois
quem vive determinada realidade possui lugar de fala sobre aquela realidade, no que
concerne também à sua própria ancestralidade. Logo, pode-se entender que a literatura tem
um papel de trazer à tona a reflexão sobre determinadas vivências, quiçá possamos através
do estudo deste tipo de literatura fomentar o desenvolvimento de leitores críticos cientes do
seu papel de cidadão em prol de uma sociedade brasileira equânime.

560
Anais

REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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2020.

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Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1354-eliana-alves-
cruz-nada-digo-de-ti-que-em-ti-nao-veja>. Acesso em: 15 dez. 2021.

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Variant. The Journal of Pan African Studies, vol.3, n.1, 2009, p. 227-234, por Luana Cristina
Muñoz Roriz. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com Acesso em 27 de
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FERREIRA, Luna de Souto. Mem (orais) poéticas de uma byxa travesty preta de cortes.
Bragança Paulista: Urutau, 2019.

GREGORI, Juciane; ZAMBONI, Marcela. Relações afetivas e violência: sentidos da


transfobia no contexto familiar e amoroso. João Pessoa: Editora UFPB, 2019.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Coletânea TransLiterária. Belo Horizonte: Editora Marginália,
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OSSOME, Lyn. Discursos pós-coloniais do ativismo queer e de classe na


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VACCARI, Jade Mariam. A Construção da Identidade de Gênero – Transexual: Errante


Corpo Abjeto. Monografia (Graduação em Licenciatura em Filosofia) - Universidade Federal
da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2017.

VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de


gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade.
2015. Tese (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Trans* Sexualidade: Reflexões sobre a mercantilização do


sexo desde uma perspectiva transgênera. Revista Periódicus, 1.ed., mai./out., 2014.

561
Anais

Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/revistape


riodicus/article/viewFile/10154/7258>. Acesso em: 10 dez. 2021.

562
SIGNIFICADOS
JUSTAPOSTOS: UMA ANÁLISE
A RESPEITO DAS ESCOLHAS
TERMINOLÓGICAS
UTILIZADAS POR REINA
ROFFÉ NA OBRA AVES
EXÓTICAS
Marta Mickaele Almeida ARRUDA (UEPB)1
Maria Luana Caminha VALOIS (UFPE)2

RESUMO

Em função da tomada militar de poder na Argentina em 1976, a expatriação tornou-se uma


possibilidade para prosseguir vivendo. À vista disso, um grupo de intelectuais, afetados pelo
exílio, passaram a esboçar a vida, através de uma estatização da dor, convertendo-a em
narrativa literária. Assim, a partir da obra Aves exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras
(2004) da autora Reina Roffé, nos dedicamos a pensar, o exílio e suas reverberações, à luz de
autores como Paloma Vidal (2004), Ángel Rama (1985) y Losandro Tedeschi (2016) que
permitem construir diálogos entre a literatura de autoria feminina e o contexto em que elas
estão inseridas, em nosso caso, a ditadura argentina. Vale ressaltar que pretendemos
apresentar um recorte do nosso trabalho de conclusão de curso defendido no ano de 2021

1
Graduada em Letras com Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
martamickaele1997@gmail.com.
2
Doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Capes - CNPq,
luanavalois30@gmail.com.

563
Anais

dentro do departamento de Letras da Universidade Estadual da Paraíba. Para esta finalidade,


decidimos problematizar os títulos presentes na obra, bem como, os nomes das personagens
principais, na tentativa de desvelar os significados que se aderem aos termos escolhidos pela
autora estudada. Consideramos, portanto, que nossa pesquisa contribui em direção ao
entendimento da literatura como uma ferramenta para a construção de uma nova ética de
responsabilidade e cuidado, pois destacamos as vozes marginalizadas (da escritora e
personagens), para contestar a historiografia oficial.

Palavras Chaves: Literatura de Autoria Feminina; Exílio; Reina Roffé.

ABSTRACT

Due to the military takeover in Argentina in 1976, expatriation became a possibility to


continue living. In view of this, a group of intellectuals, affected by exile, began to outline life,
through a nationalization of pain, converting it into a literary narrative. Thus, based on Reina
Roffé's work Aves exoticas: Cinco cuentos con mujeres Raras (2004), we dedicate ourselves
to thinking about exile and its reverberations, in the light of authors such as Paloma Vidal
(2004), Ángel Rama (1985) and Losandro Tedeschi (2016) that allow the construction of
dialogues between literature by women and the context in which they are inserted, in our
case, the Argentine dictatorship. It is worth mentioning that we intend to present a clipping
of our course conclusion work defended in the year 2021 within the Department of Letters
of the State University of Paraíba. For this purpose, we decided to problematize the titles
present in the work, as well as the names of the main characters, in an attempt to unveil the
meanings that adhere to the terms chosen by the studied author. We consider, therefore, that
our research contributes towards the understanding of literature as a tool for the
construction of a new ethics of responsibility and care, as we highlight the marginalized
voices (of the writer and characters), to contest the official historiography.

Keywords: Literature by female authors; Exile; Reina Roffé.

INTRODUÇÃO

Com a finalidade de compreender e ampliar o debate a respeito da escrita de autoria


feminina, desenvolvida no período pós ditadura (1976 - 1983), bem como, a relação da
literatura latino-americana com as vozes marginalizadas da sociedade, nosso trabalho se
ocupa em pensar as formas de enunciação das dores e traumas psíquicos infligidos pela
tirania militar no Cone Sul.
Deste modo, apresentamos no primeiro item deste artigo um recorrido pela década
de 1960, mais precisamente pela literatura hispano-americana; incluímos, ainda, alguns dos
escritores que mais se destacaram neste período; e, por fim, um breve resumo da vida de
Reina Roffé e do conto Convertir el desierto, que se encontra na obra Aves exóticas. Cinco
cuentos con mujeres raras (2004). Já na segunda parte, iremos analisar, propriamente, a

564
Anais

narrativa supracitada, a partir da perspectiva da crítica literária de autoria feminina.


Com isso, buscaremos demonstrar os efeitos de sentido (sob) grafados no título
escolhido, por isso, tomamos como ponto de partida os pressupostos teóricos descritos na
obra A Metáfora Viva de Paul Ricoeur (1983). Consideramos, portanto, que nossa pesquisa
contribui em direção ao entendimento da literatura como uma ferramenta para a construção
de uma nova ética de responsabilidade e cuidado, pois destacamos as vozes marginalizadas
(da escritora e personagem), para contestar a historiografia oficial.

OS ENCADEAMENTOS LITERÁRIOS E POLÍTICOS NA DÉCADA DE 60: Descrevendo


uma conjuntura Argentina

Um grande marco na literatura latino-americana foi a década de 1960, que trouxe


grandes contribuições, e, segundo Paloma Vidal (2004), em seu livro A história em seus
restos: literatura e exílio no Cone Sul, a literatura da época começou a refletir os episódios
políticos e sociais pelos quais os países hispânicos estavam passando. Na citação seguinte
percebemos que:

Segundo Donoso, a libertação das tendências criollistas, regionalistas e


costumbristas assim do realismo social de épocas anteriores permitiu aos
escritores da década de 60 conceber a literatura como o produto cultural
de um continente. Definia-se um projeto identitário que reunia as novas
escritas sob a designação de “literatura latino-americana”, diferenciando-
as da literatura européia e, ao mesmo tempo, inscrevendo-as numa
tradição ocidental. (VIDAL, 2004, p. 23-24).

Assim, a América Latina buscava singularizar sua expressão escrita para inscrever-
se na tradição do ocidente, além disso, devido à revolução cubana, o mercado consumidor
nutria uma curiosidade a respeito deste território, dessa forma a literatura latino-
americana assume mundialmente status de cânone literário. Este reconhecimento foi
denominado boom latinoamericano3.
Ressaltamos ainda, que o boom está ligado por ideais da Revolução Cubana (1953-
1959), já que, este movimento político influenciou diversas modificações no campo da

3O termo boom é a denominação que a literatura latinoamericana recebe na década de 60. Este refere-se ao
movimento explosivo a que esta é submetida, tendo a internacionalização, a demanda do mercado e a qualidade
dos escritores. Vale ressaltar, ainda, que o vocábulo é problemático e segue em disputa pelos críticos literários,
por se tratar de um termo em inglês.

565
Anais

história e literatura Latinoamericana, transformando assim os escritos dos autores em


verdadeiras utopias revolucionárias. Uma vez que, esta grande explosão das literaturas
hispânicas se deu por meio da comercialização, nos mais diversos idiomas, das obras como
um produto popular.
Nesse contexto, um outro acontecimento aflige nosso território, são as violentas
ditaduras militares (1976-1983) e com elas o imperativo do exílio. Por conseguinte, a
escrita foi, para autores como Vargas Llosa, Carlos Fuentes, García Márquez, entre outros,
uma forma de registrar suas culturas e manter uma conexão com seus lugares de origem,
dos quais foram expulsos. Como bem aponta Vidal (2004): “Julio Cortázar, Angel Rama, Joé
Nitrik e Marta Traba tentaram extrair do exílio um espaço literário de criação sem cair no
saudosismo nacionalista nem no ressentimento dos derrotados” (VIDAL, p. 14).

Como registro das reelaborações do que vivenciaram durante a expatriação -


perseguições, ameaças, distanciamento de seus países entre outras violências - surgem
novas maneiras de narrar, além de outros lugares de enunciação, como por exemplo a
escrita de autoria feminina, tendo em vista as formas particulares de criação e as novas
perspectivas de escrita, que antes não haviam sido ponderadas.
Assim, podemos destacar algumas autoras importantes da literatura hispano-
americana, como as uruguaias Ida Vitale (1923). Cristina Peri Rossi (1941) e Inés
Bortagaray (1975), a peruana Isabel Allende (1942), a colombiana Albalucía Ángel (1939),
a chilena Marcela Serrano (1951), as argentinas Silvina Ocampo (1903-1993), Marta Traba
(1930-1983), Luisa Valenzuela (1938), Tununa Mercado (1939) e Reina Roffé (1951).
Dentre as autoras citadas anteriormente, escolhemos trabalhar com a Reina Roffé.
A referida escritora é uma romancista argentina que nasceu em 1951, seu processo de
escrita começou na adolescência com contos e relatos curtos, e seu primeiro romance foi
escrito aos 17 anos. Estudou jornalismo no Instituto Superior Mariano Moreno e literatura
na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires, mas enquanto ainda estudava, escrevia
para diários e revistas, contos e entrevistava escritores.
Quando a ditadura se instalou na Argentina em 1976, buscou lugares mais seguros
para viver e criar suas obras, como os Estados Unidos e Espanha, onde viveu por quase 30
anos. Em 1984, quando a democracia foi restaurada, Reina Roffé voltou para a Argentina,
continuando sua vida em seu país. Atualmente é colaboradora da revista Cuadernos
Hispanoamericanos, e participa da seção Rinconete do Centro Virtual Cervantes. Algumas

566
Anais

de suas obras são: Monte de Venus (1976), La rompiente (1987), Lorca en Buenos Aires
(2016), Juan Rulfo: autobiografía armada (1973), Espejo de Escritores (1984), Juan Rulfo:
las mañas del zorro (2003), dentre muitos outros contos, relatos, novelas e ensaios.
Consequentemente, optamos por investigar a obra Aves exóticas. Cinco cuentos con
mujeres raras (2004), que aborda as nuances do exílio - por um olhar feminino -, e o
silenciamento imposto pelo sistema hetero-dominante4. A obra apresenta cinco histórias
com protagonistas mulheres, que a partir de suas experiências materiais e subjetivas
constroem um diálogo com o trauma. E a partir disso, tecem uma ressignificação acerca de
suas perspectivas de vidas.
O primeiro conto da obra é intitulado Convertir el desierto, este será nosso objeto
de análise neste artigo. Nesta narrativa, conhecemos a história de uma mulher que teve
que mudar para a Espanha para fugir de uma realidade traumática. Ao longo do texto é
possível perceber que a protagonista carregava consigo um sentimento de vingança e ódio,
os quais transformaram sua vida. Por fim, Maria R., ao longo de sua jornada, é dissuadida
a não realizar sua retaliação.
Destarte, buscamos constatar, neste item, como a década de 1960 e a revolução
cubana influenciaram na literatura hispanoamericana, incluímos, ainda, alguns dos
escritores que mais se destacaram neste período, por fim, trouxemos um breve resumo da
vida de Reina Roffé e do conto Convertir el desierto, que se encontra na obra Aves exóticas.
Cinco cuentos con mujeres raras (2004), o qual iremos investigar na parte seguinte deste
estudo. Desta forma, buscaremos validar a importância da escrita de autoria feminina, bem
como seus reflexos no texto literário.

CONVERTIR EL DESIERTO: As sombras e seu ressignificado

O título é uma síntese precisa do texto, cuja função é estratégica, pois: ele nomeia o
texto após sua produção, sugere o sentido do mesmo, desperta o interesse do leitor para o
tema, estabelece vínculos com informações textuais e extratextuais, e contribui para a
orientação da conclusão. O título, então, tem a função de expressar o conteúdo temático de
um texto, como também de orientar, em certa medida, a leitura, pois é usado para exprimir

4
Sempre que este termo for evocado dentro do trabalho, estaremos nos referindo ao Sistema de poder político, no
qual as mulheres são reificadas e submetidas a dominação patriarcal branca.

567
Anais

ou inferir o tema da narrativa, devendo ser interpretado em primeiro lugar, porque sua
informação, formal ou semântica, inicia o complexo processo de compreensão.
Dessa forma, decidimos pensar neste segmento a respeito do título Convertir el
desierto presente na obra Aves Exóticas: Cinco cuentos com mujeres raras (2004) da autora
Reina Roffé, bem como, o nome da personagem principal, na tentativa de desvelar os
significados que se aderem aos termos escolhidos pela autora estudada. Com isso,
buscaremos demonstrar os efeitos de sentido no título escolhido, tomamos como ponto de
partida, os pressupostos teóricos descritos na obra A Metáfora Viva de Paul Ricoeur
(1983).
Partimos, dessa forma, da conjectura de que a metáfora é um veículo que produz
conhecimento, dado conferível desde os estudos aristotélicos, e reiterado pelo filósofo
francês supracitado. Assim, a plasticidade desta figura de linguagem tem o papel de criar
diferentes efeitos no discurso com funções variadas, pois a metáfora se baseia na
capacidade de ver os termos em lugar de outros.
À vista disso, o tropo mencionado se materializa no título que estamos estudando,
pois ao ler a narrativa Convertir el desierto, percebemos que Maria R., protagonista do
conto, busca seu agressor “para matarlo y aniquilar en él el odio de su exilio involuntario,
de su irremisible fracaso” (ROFFÉ, 2004, p. 7)5. Através do desejo de vingança, contra
aquele que lhe causou sofrimento e a deixou sem aqueles que ama, a jovem vive solitária
e alimentando as experiências traumáticas do passado. Este contexto, descrito pela autora,
em nossa análise, e conforme a teoria alicerçada, é o deserto que precisa ser transformado.

Mesmo com o passar do tempo, Maria R. ainda lembrava de aspectos marcantes:


“veinte años queriendo haber sido uno de los cuerpos y no un muerto que veía a otro muerto”
(ROFFÉ, 2004, p. 8)6, preferia ter sua vida retirada, pois, teria sido mais livre
psicologicamente, o que não é, já que com o tempo ela esqueceu-se de viver, e dos prazeres
que a vida poderia lhe proporcionar, como está posto na citação:

“Había puesto diez mil kilómetros de distancia, se había esforzado por


olvidar incluso creía haber olvidado el deseo de amar y ser amada, un título
con honores, el ejercicio de una profesión y los prodigios que alguna vez

5 "matá-lo e aniquilar nele o ódio de seu exílio involuntário, de seu fracasso irremissível" (ROFFÉ, 2004,
p. 7).
6 “vinte anos querendo ter sido um dos corpos e não um morto que viu outro morto” (ROFFÉ, 2004, p. 8).

568
Anais

avistó en su futuro”. (ROFFÉ, 2004, p. 8) 7.

Neste trecho frisamos que apesar da distância que ela coloca entre sua vida e o
trauma, não conseguiu desvincular-se de tais sentimentos, pois, apenas um detalhe
deflagrava uma gama de memórias do terror vivido, como podemos conferir no trecho:

Pero unos meses atrás, un maletín de cuero con dos iniciales entrecruzadas
la remitió a la casa y a los cuerpos, a las cosas que habían sido suyas y
saqueadas. El maletín en el banco de andén, pertenecía a un extraño, un
extraño con el que había convivido veinte años. (ROFFÉ, 2004, p. 8)8.

Assim como no exemplo apresentado anteriormente, onde uma especificidade


determina um significado, logo, destacamos que na metáfora o “mesmo”, opera, apesar do
“diferente” (Ricoeur, 1983, p. 301). Em outras palavras, o texto apresenta uma gama de
sentidos. Cada um deles se converte em outros caminhos, que se justapõem e se
contrapõem na incompletude textual, cujo objetivo é buscar uma possibilidade de leitura,
neste caso, relacionado com os eventos traumáticos que a protagonista vivenciou.
Maria R. não fazia planos, repetia e repetia uma rotina angustiante que a mantinha
solitária e em contato com seu trauma. Isto limitava a jovem a uma vida de isolamento e
em contínua agonia:

María tampoco había soñado con ir a la India. En realidad, prefería no


recordar los sueños. A veces, al despertar, tenía atisbos de algo soterrado,
tal vez la raíz de un deseo barrido por la consciencia de imitarse a sí misma,
el prototipo de mujer que repetía cada mañana, previsible como la taza de
té deliberadamente amargo que bebía antes de partir hacia el trabajo. Un
trabajo sencillo, muy por debajo de sus cualidades, con una remuneración
discreta, que le dejaba la tarde libre para encerrarse en su cuarto, en su
tenaz aislamiento. (ROFFÉ, 2004, p. 9)9.

7 Afastou dez mil quilômetros, esforçou-se para esquecer, até acreditou ter esquecido o desejo de amar e
ser amada, um título com honras, o exercício de uma profissão e as maravilhas que um dia viu em seu
futuro. (ROFFÉ, 2004, p. 8)
8 Mas há alguns meses, uma pasta de couro com duas iniciais cruzadas a enviou para a casa e os corpos,
para as coisas que haviam sido dela e saqueadas. A pasta no banco da plataforma pertencia a um estranho,
um estranho com quem ele vivia há vinte anos. (ROFFÉ, 2004, p. 8).
9 Maria também nunca sonhou em ir para a Índia. Na verdade, ele preferiu não se lembrar dos sonhos. Às
vezes, ao acordar, ela tinha vislumbres de algo enterrado, talvez a raiz de um desejo conscientemente
varrido de imitar a si mesma, o protótipo de uma mulher que ela repetia todas as manhãs, previsível como
a xícara de chá deliberadamente amarga que ela bebia antes de dormir. . Um trabalho simples, muito aquém

569
Anais

Portanto, Maria R. passou anos tendo uma vida na qual repetia doentiamente a
mesma rotina, com o anseio de encontrar o seu agressor. Isto a impedia de sonhar com
outros caminhos possíveis para sua vida. Até que, durante uma de suas viagens em trem,
se depara com el maestro, a princípio, apenas um senhor que lhe chamou atenção. Na
citação a seguir demonstramos a primeira vez que a protagonista fixa atenção em alguém:

Hacía un par de tardes que su trayecto coincidía con el de un anciano de


boina blanca. Solía bautizar a los desconocidos con un nombre o un
apelativo, y a éste lo llamó el maestro. Un mismo camino los había reunido,
pero el itinerario de cada uno tenía finalidades distintas. Él iba a salvar a un
hombre de la muerte, ella a matarlo. (ROFFÉ, 2004, p. 6)10.

Sendo assim, mal sabia Maria R. que o ancião em questão iria ajudá-la a transformar
suas inquietações com um passado de terror em um presente agradável:

El maestro, que esta vez se había sentado frente a ella, la observaba con
insistencia. Por un momento, le sostuvo la mirada; él aprovechó para decirle:
-Hay que convertir el desierto.
- Sí - respondió débilmente María, y pensó que había demasiados locos y
demente seniles. Pensó, además, que el apelativo maestro le quedaba
grande, más apropiado era denominarlo viejo a secas, no quería cometer el
exceso de llamarlo viejo loco. (ROFFÉ, 2004, p. 6)11.

A partir deste momento Maria R. começa a identificar o quanto sua vida estava
previsível, solitária e sem perspectiva, apenas preenchida pelo seu desejo de retaliação ao

das suas qualificações, com uma remuneração modesta, que lhe deixava a tarde livre para se fechar no
quarto, no seu isolamento tenaz. (ROFFÉ, 2004, p. 9)
10 Durante algumas tardes, sua viagem coincidiu com a de um velho de boina branca. Ele batizava estranhos
com um nome ou uma denominação, e este era chamado pelo professor. O mesmo caminho os havia
reunido, mas o itinerário de cada um tinha propósitos diferentes. Ele ia salvar um homem da morte, ela ia
matá-lo. (ROFFÉ, 2004, p. 6)
11 O Maestro, que desta vez estava sentada à sua frente, observava-a com insistência. Por um momento,
ele segurou o olhar dela; aproveitou para dizer:
-Você tem que converter o deserto.
- Sim - respondeu Maria fracamente, e ela pensou que havia muitos loucos e loucos senis. Ele também
achava que o mestre de denominação era grande demais para ele, era mais apropriado chamá-lo de velho,
não queria chegar a chamá-lo de velho maluco. (ROFFÉ, 2004, p. 6).

570
Anais

homem que a transformou em uma sombra de si mesma.


Logo, a partir do exposto, percebemos que o silenciamento ecoa na vida da
protagonista até o momento em que ela, contra sua vontade, estabelece uma relação
fraternal com um senhor - Brais -, que a ajuda a vislumbrar outras possibilidades para sua
vida:

A las puertas del hospital, María habló:


-¿Qué me quiso decir, cuando me dijo hay que convertir el desierto?
Brais se quitó la gorra y meditó su respuesta:
-Es un verso -dijo antes de despedirse-, Me sirve para entablar conversación.
(ROFFÉ, 2004, p. 7)12.

No trecho anterior salientamos que o impulso do maestro põe a protagonista em


contato com a possibilidade de convivência fora do trauma, distante da neurose causada
pela experiência da violência de Estado. Situando, então, Maria R. na realidade positiva do
presente. Dessa maneira, a protagonista finalmente chega ao fim de sua busca:

[...] María oyó la voz de un hombre, saludaba a alguien; luego vio al hombre
darse la vuelta y dirigirse en dirección contraria a la suya. A medida que se
acercaba a ella fue relacionando la voz, con la cara, la cara con los ojos, el
puño cerrado con los cuerpos, el maletín de cuero con su vida entera. Sintió
la omnipresencia de todos los momentos del tiempo y un odio infinitamente
instalado. Estaba a tiro y era tan repugnante como lo recordaba. Había
llegado el final de la búsqueda. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11)13.

Nesse processo de redescobrir as relações interpessoais, Maria R. ganha a


possibilidade, a partir da amizade com Brais, de não mais alimentar a dor que sentia pelo
trauma de ter visto toda sua família morrer devido a violência de Estado Argentina e,

12 Nos portões do hospital, Maria falou:

-O que você quis dizer quando me disse que tem que converter o deserto?
Brais tirou o boné e pensou na resposta:
-É um verso -disse antes de se despedir-, me ajuda a iniciar uma conversa. (ROFFÉ, 2004, p. 7).
13 [...] Maria ouviu a voz de um homem cumprimentando alguém; então ele viu o homem se virar e seguir
na direção oposta dele. Ao aproximar-se dela, relacionou a voz com o rosto, o rosto com os olhos, o punho
cerrado com os corpos, a pasta de couro com toda a sua vida. Ele sentiu a onipresença de todos os momentos
do tempo e um ódio infinitamente instalado. Estava dentro do alcance e era tão nojento quanto eu me
lembrava. O fim da busca havia chegado. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11).

571
Anais

então, sair do ciclo vicioso no qual se encontrava:

[...] No era cobardía sino destiempo. Acaso un error en la cadena del azar: lo
había matado ya tantas veces que repetir la escena se le hacía oneroso,
absurdo, un acto de violencia contra ella misma. Quería reservar su coraje
para repechar por donde más duele y alimentar el repentino y floreciente
deseo de empezar nuevamente. (ROFFÉ, 2004, p. 11)14.

Ao final, destacamos que todo o conto é construído de forma que o título se


confirma como metáfora do enredo escrito por Reina Roffé (2004). Isto gera um novo
sentido, pois entendemos que as palavras não possuem um sentido próprio, imutável e
irrefutável; antes, que seu sentido é construído pelo e no discurso, partindo de “sombras”
de significado convencionadas pela sociedade. [...] a linguagem é “vitalmente metafórica”
(Ricoeur, 1983, p. 128).
Em síntese, corroboramos com Ricoeur, quando afirma que a metáfora é
transporte, substituição, comparação, tensão, corpo singular, é tecido, unidade de
referência, tornando-a assim um instrumento epistemológico, que dentro da narrativa se
materializa no título que analisamos ao longo deste apartado. Assim, consideramos que a
força das relações interpessoais ressignifica a maneira de estar no mundo da protagonista,
dando a ela um outro sentido e significado para as experiências cruéis do passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, percebemos a interseção entre memória, escrita e exílio a


partir da narrativa de autoria feminina latinoamericana. Assim, identificamos no título
Convertir el Desierto e na personagem Maria R. sombras deixadas pelo exílio, na construção
identitária do sujeito.
O conto nos possibilitou pensar a potência das relações humanas, e como elas nos
oferecem a percepção de novos sentidos para a vida da protagonista. De forma mais ampla,
as aves raras de Reina Roffé são mulheres que experienciam, através do seu corpo e sua

14 [...] Não foi covardia, mas um mau momento. Talvez um erro na cadeia do acaso: ela já o havia matado
tantas vezes que repetir a cena parecia oneroso, absurdo, um ato de violência contra si mesma. Ela queria
reservar sua coragem para escolher onde dói mais e alimentar o repentino desejo de recomeçar. (ROFFÉ,
2004, p. 11).

572
Anais

mente, a violência da necessidade de exilar-se. São raras no sentido de serem estranhas ou


estrangeiras, por estarem fora da convenção social hetero-dominante.
Por fim, de acordo com Consentino no artigo “A mudez, viva voz” (2010) “uma
mulher rara é tão vasta para o imaginário social, que seria dificílimo, num só olhar, fazer
uma descrição dela mesmo” (CONSENTINO, 2010, p. 2-3), e por serem consideradas raras,
são excluídas, exiladas, silenciadas. Em contrapartida, reconhecemos que a potência das
relações ressignifica a forma da jovem se relacionar com os efeitos de um passado cruel.

REFERÊNCIAS

COSENTINO, Gatón. A mudez, viva voz. Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades,


Deslocamentos, Universidade Federal de Santa Catarina, agosto de 2010.

EAGLETON, T. Una introducción a la teoría literaria. Madrid: España, 1993. p. 153.

ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis:


Vozes, 1996.

RICOEUR, P. A metáfora viva. Coimbra: Rés, 1983.

ROFFÉ, Reina. Aves Exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras. Editorial Leviatán, Buenos
Aires - Argentina, 2004. p. 43.

TODOROV, T. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.

VIDAL, Paloma. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. São Paulo:
Annablume, 2004. 98 p.

573
INSUBMISSAS LÁGRIMAS
DE MULHERES:
IDENTIDADE REFLETIDA
NO ESPELHO DA LÁGRIMA
Gisele Silva OLIVEIRA (Universidade Federal de São Carlos)1

RESUMO

Este trabalho tem como foco a reflexão acerca do processo de formação identitária das
mulheres negras representado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição
Evaristo, em especial no conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos. Essa reflexão terá
como base os conceitos de identidade e de pós-colonial, sob a perspectiva de Stuart Hall
(1992; 2014; 2003) e ainda a categoria de amefricanidade proposta por Lelia Gonzalez
(1988). Além disso será abordado o diálogo entre essa obra e narrativas mítico-religiosas
relacionadas à Orixá Oxum.

Palavras-chave: MULHER NEGRA; INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES; IDENTIDADE.

ABSTRACT

This work focuses on the reflection on the process of identity formation of black women
represented in the book Unsubmissive women’s tears, by Conceição Evaristo, especially in the
short story Maria do Rosário Imaculada dos Santos. This reflection will be based on the
concepts of identity and post-colonial, from the perspective by Stuart Hall (1992; 2014;
2003) and also from the the category of Amefricanity proposed by Lelia Gonzalez (1988). In

1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura da Universidade Federal de São Carlos.


Professora no Núcleo Dércio Andrade/Passos – Educafro/MG. Servidora do Instituto Federal de Educação
Ciência e Tecnologia do Sul de Minas - Campus Passos, onde atua como auxiliar de biblioteca e membro dos:
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas e Núcleo de Estudos sobre Gênero e Sexualidade.

574
Anais

addition, the dialogue between this work and mythical-religious narratives related to Oxum
will be addressed.

Keywords: BLACK WOMAN; WOMEN’S UNSUBMITTED TEAR; IDENTITY.

Introdução

Insubmissas lágrimas de mulheres é uma coletânea de contos, protagonizados por


mulheres negras, cujos nomes intitulam as narrativas. O foco narrativo divide-se entre uma
narradora ouvinte, que reuniu as histórias, e as protagonistas. Quando as protagonistas
falam, os leitores são postos em paralelo com o lugar de escuta da narradora ouvinte. Assim,
é perceptível a valorização da tradição oral africana, que, segundo Duarte (2014), se destaca
na obra de muitos autores negros brasileiros, como Solano Trindade, Abdias Nascimento,
Cuti e outros, que retomam a tradição griot na busca por trazer à tona uma voz coletiva e
ancestral.
Como comenta Conceição Evaristo, sua escrita tem na memória individual e coletiva,
especialmente nas lembranças do que ouviu, um aspecto essencial de sua gênese. Não se
trata, porém, da reprodução de eventos tais quais aconteceram, mas de uma escrita gestada
no limiar entre o lembrar e o esquecer, típico das dinâmicas da memória. É o esquecimento
– seja individual ou no âmbito coletivo, pelo silenciamento da história e cultura do povo
negro no Brasil - que desperta a necessidade de inventar, pois, entre o esquecimento e a
memória residiria a invenção. Ao escolher a mulher negra como centro de suas narrativas,
Conceição Evaristo reafirma sua prática de escrevivência, descrita como um jogo entre
“escrever e viver, se ver” (EVARISTO, 2019). A lágrima insubmissa é espelho metafórico da
dor e insurreição das mulheres negras e de todo povo negro na obra analisada. Esse espelho
de água/lágrima nos remete à conexão da escrita de Conceição Evaristo com algumas das
narrativas mítico-religiosas sobre Oxum, que abordam a relação entre essa orixá de águas
doces e o objeto espelho. Gonçalves (2009) ao tratar dessas narrativas, nos leva a perceber
que nessas histórias o espelho é não só símbolo de culto ao belo, mas também de
conhecimento e poder.
Conceição Evaristo (2013) apresenta-nos ainda outro aspecto da figura de Oxum que
inspira sua escrita. A autora retoma uma narrativa, em que Oxum, apresentada como uma
mulher pobre, vendia produtos na feira e se revolta ao perceber que trabalhava muito e

575
Anais

continuava pobre, mas o palácio do rei era coberto de ouro. Após consultar Ifá2, que lhe
aconselhou a levar um cesto de guloseimas para o rei, Oxum decide seguir o conselho, mas
chegando lá, em ira começa a gritar contra a injustiça de, apesar do árduo trabalho, não ter
nada e o rei ter tanto ouro. O rei para acalmá-la manda darem-lhe ouro, porém Oxum não
para de gritar e quanto mais grita, mais ouro recebe. Logo muitas mulheres a ela se juntam,
em coro, no grito pelo direito ao ouro. Assim, ela fica conhecida como dona do ouro e porta-
voz das mulheres. É esse papel de porta-voz das mulheres que Conceição Evaristo afirma
desejar em sua escrita e que podemos perceber representado em Insubmissas lágrimas de
mulheres.
Conceição Evaristo (2005) reflete sobre a representação da mulher negra na
literatura escrita no Brasil, cuja perspectiva autoral é majoritariamente branca e masculina.
Destaca, nesse contexto, o caráter subversivo da escrita de autoria feminina negra e o
cuidado que tais escritoras devem ter a fim de produzirem uma literatura que se
contraponha a estereótipos de personagens, como Gabriela de Jorge Amado ou Rita Baiana
e Bertoleza de Aluísio Azevedo.

A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as


desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima
em querer inferiorizada, mulher e negra. Na escrita busca-se afirmar as duas
faces da moeda num um único movimento, pois o racismo como lucidamente
observa Sueli Carneiro “determina a própria hierarquia de gênero” em
sociedades como as latino-americanas, multirraciais, pluriculturais e
racistas. (EVARISTO, 2005, p. 6).

É a essa dupla face, em jogo na constituição identitária da mulher negra, que se


pretende analisar em Insubmissas lágrimas de mulheres, tendo como foco especial a
personagem Maria do Rosário Imaculada dos Santos, protagonista do conto homônimo, que
personifica a experiência diaspórica do povo negro, encarnando as implicações da violência
colonial escravocrata, que culminam na busca por uma identidade perdida, estilhaçada. Essa
questão da identidade será analisada com base em Stuart Hall (2014), para quem na
modernidade tardia, as identidades não devem ser tidas como unificadas, fixas ou singulares,
pois seriam marcadas pela fragmentação, pela fratura, uma vez “que construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas (HALL, 2014, p.108).”

2 Natradição Yorubá trata-se de um sistema divinatório. Esse sistema também é relacionado ao orixá Orunmilá
que também é conhecido como Ifá. (VERDUGO, 2016)

576
Anais

Interessa-nos, sobretudo, o destaque que Hall (2014) atribui à influência da


historicidade nas transformações às quais as identidades estão sujeitas. Nesse sentido,
importa considerar as implicações da experiência colonial e escravocrata e, posteriormente,
do pós-colonial e do pós-abolição, quando se aborda a formação identitária da mulher negra
no Brasil. Dessa forma, as reflexões do autor acerca do pós-colonial contribuirão com este
trabalho. Explorando a problematização teórica da ideia de pós-colonialismo, Hall (2003)
busca compreender o modo como se configuram as relações e, especialmente, a diferença
numa era, em que esta última já não se constitui de modo evidente, como na oposição binária
anterior entre colonizador e colonizado. Discordando de autoras(es), como Ella Shohat, Anne
McClintock, e Arif Dirlik, para Hall, a ambivalência do termo pós - que ao mesmo tempo
denota ruptura e continuidade com relação ao colonial – não é negativa, mas sim reforça seu
potencial analítico. O autor também rebate a crítica de Ella Shohat, de que não há clareza se
o pós-colonial é um conceito referente a mudanças de abordagem epistêmica, ou a
transformações restritas a cronologia da história em si. Segundo ele, trata-se de uma coisa e
outra, pois este período, em que as fronteiras que estabeleciam as diferenças encontram-se
desestabilizadas e sujeitas a constantes reconfigurações, não pode ser compreendido por
uma epistemologia que se restrinja a um estruturalismo binário, fixo, como no colonialismo.
Guiando-nos por esse entendimento, trataremos o pós-colonial a partir desse
entrelaçamento entre o cronológico e o epistêmico. Com relação ao aspecto cronológico, em
Insubmissas lágrimas de mulheres está representada a experiência de mulheres negras, num
período histórico, que, se já não é mais colonial e escravista, ainda se encontra marcado por
uma reatualização de práticas de dominação, mesmo que de modos menos evidentes ou
binários, o que nos põe em diálogo com a já citada ambiguidade do “pós”, enquanto ruptura
e continuidade. No que concerne ao aspecto epistêmico, as narrativas analisadas, também
nos chamam a atenção para as reconfigurações das estratégias de dominação no campo do
saber.
Refletindo sobre essas relações entre poder e saber, convém ainda considerar a obra
analisada, enquanto publicação efetivada em um contexto, em que a construção do saber por
meio da escrita reflete as relações de poder existentes em nosso país. Conforme se pode
observar no trabalho de Dalcastagné (2005), as opressões raciais e de gênero refletem-se
nas publicações literárias das grandes editoras, as quais em sua maioria são de homens
brancos, o mesmo perfil predominante na composição da Academia Brasileira de Letras. O
livro de Conceição Evaristo constitui assim uma contraposição ao cânone literário nacional,

577
Anais

no qual a persistência da ideia de superioridade cultural dos moldes


europeus/colonizadores ainda ecoa.
Ainda sobre o papel da historicidade nas dinâmicas identitárias importa entender
historicamente as relações raciais no Brasil. Assim, o diálogo com Lélia Gonzalez (1988), que
demonstra a contraposição entre o racismo aberto dos mecanismos de colonização anglo-
saxões, e o racismo disfarçado, das estratégias de dominação espanhola e portuguesa na
América Latina mostra-se potencialmente produtivo e viabiliza explorar os contos de
Insubmissas lágrimas de mulheres em relação com o que essa autora conceitua como
amefricanidade, categoria político-identitária pautada no reconhecimento do que há de
comum na experiência de subjugação vivida pelos negros nos países da América, e em suas
estratégias de resistência política, cultural e artística, não porque se busque o retorno a uma
África mítica, mas porque reconhecer a amefricanidade “[...]é reconhecer um gigantesco
trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do atlântico, mas que nos traz de
lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos (GONZALEZ, 1988, p 79).”

Insubmissas lágrimas de mulheres: espelho identitário de mulheres negras

A identificação em Insubmissas lágrimas de mulheres revela-se uma busca, a começar


pelo valor atribuído ao nome. Os nomes das protagonistas intitulam os contos. Além disso, o
ato de nomear e a procura por um nome que seja símbolo pessoal são aspectos valorizados.
Um exemplo está em Natalina Soledad. Devido ao desgosto por ter uma filha mulher, o pai a
batizou como Troçoleia Malvinda Silveira. Apesar de poder trocar seu nome, ela escolhe como
novo Natalina Soledad, cujo significado denota um “nascer solitário”. O estigma da solidão é
ressignificado de modo mais belo no novo nome, mas permanece presente.
Ao tratar da identidade, Hall (2014) parte dos diferentes sentidos atribuídos ao
conceito no decorrer da história e da crise que essa noção enfrenta na modernidade tardia.
O autor descreve três prismas sob os quais a identidade já foi compreendida. O primeiro,
iluminista, parte de uma compreensão do sujeito baseada numa ótica de indivíduo centrado,
unificado, racional e ativo. O centro desse indivíduo seria um núcleo inato que se
desenvolveria, mas em essência permaneceria o mesmo, constituindo a identidade. A essa
concepção sobrevém uma noção sociológica. Fruto da complexificação gradativa das
sociedades contemporâneas, propõe que a identidade se forma na interação entre o eu e a
sociedade. Nesse caso, a identidade suturaria o sujeito à estrutura, trazendo a ambos

578
Anais

estabilidade, unificação e predizibilidade. Chegando ao terceiro sentido, o autor expõe que


as transformações institucionais e estruturais da sociedade na modernidade tardia
conduziram a uma fragmentação do sujeito, que passa a compor-se não de uma, mas várias
identidades, por vezes antagônicas. É a essa terceira concepção que recorreremos,
especialmente.
Em Isaltina Campo Belo há um exemplo dessa convivência de identidades conflitivas.
A protagonista inicialmente vive um conflito com sua identidade de gênero. Acredita ser
menino e sofre por ser tratada como mulher. Na juventude tenta explicar ao namorado que
não sente atração sexual, mas ele argumenta que estaria enganada, pois sendo negra
certamente teria a sensualidade e o desejo aflorados. O fato de “ser negra”, na visão do
namorado, afasta Isaltina da condição de mulher, pois a desumaniza, e a remete a uma
condição animalesca em que os instintos prevaleceriam e na qual ela não teria consciência
sobre si.
Afasta-a, sobretudo, da concepção que se tem de mulheres brancas como puras e
destituídas de desejo. Nota-se aí o que diz Evaristo (2003), sobre a luta de mulheres negras
diferir-se da luta de mulheres brancas, uma vez que a identidade de gênero não se dissocia
dos processos de racialização. Mais à frente, ao se apaixonar por uma mulher, Isaltina
entende que seu conflito não era com o gênero, mas com a orientação sexual socialmente
esperada. Nessa representação não há uma identidade unificada e fixa que defina o “ser
mulher negra”, o que nos aproxima da abordagem discursiva que “vê a identificação como
uma construção, um processo nunca completado – como algo sempre em processo
(HALL,1992, p. 106).”
Com base em Hall (1992, p. 108), para quem as identidades estão sujeitas a uma
historicização radical, sempre em processo de transformação, e na presença de temas, como,
passado escravista, pós-abolição e reconfigurações de relações de poder entre negros e
brancos nos contos analisados, o conceito de pós-colonial parece profícuo às reflexões
propostas. Hall (2003) considera o pós-colonial em termos históricos e epistêmicos e
defende que o conceito não representa total superação do colonial, mas reconfigura e
reatualiza a relação: colonizador e colonizado, para além do aparente binarismo anterior.
Em Insubmissas lágrimas de mulheres há exemplos dessas reconfigurações das
relações coloniais-escravocratas. Um deles é o conto Regina Anastácia, cujo cenário é uma
cidade, onde descendentes de exploradores escravocratas dominam, no início da história, o
comércio e a política locais, tendo os descendentes dos escravizados como empregados.

579
Anais

Também em Rose DusReis, personagem, cujo sobrenome tem como marca a violência
sexual sofrida pela bisavó escravizada, tais reconfigurações são representadas. DusReis vive
uma infância marcada pela negação de direitos. Obrigada a trabalhar sem remuneração na
escola para ter o direito a frequentar, apesar de romper a barreira que impedia o acesso de
pessoas negras à educação, a situação de desvantagem, com relação às colegas brancas
continuou sendo expressa de diversas formas.
Conseguindo vencer as dificuldades e se formando bailarina (quase sempre a única
negra nas companhias que integrou), ao fim do conto, a personagem executa uma coreografia
criada com inspiração numa dança, por meio da qual os Kandianos (povo que conheceu em
viagem a África) celebra a vida. A coreografia, porém, não é idêntica à dança kandiana. A
referência é posta em confluência com o que aprendeu nas companhias de balé de tradição
branca/europeia. Esse episódio dialoga com a necessidade apontada por Hall (2003) de
pensar o mundo pós-colonial de modo diaspórico não originário, sob a ótica de hibridismo
cultural, transnacional e transcultural.
Nesse contexto do pós (colonial ou moderno) enquanto ruptura e continuidade: “A
identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente (Hall 2014, p. 13).” O
sobrenome DusReis também reflete esse hibridismo. No contexto escravocrata, o povo negro
perdeu o direito ao nome de origem, tendo os sobrenomes muitas vezes substituídos pelos
de seus opressores, como no caso da família dessa personagem. Mas, nesse caso, o
sobrenome imposto sofreu modificação. Não foi adotado exatamente Dos Reis, mas DusReis,
registro mais próximo ao modo como os antepassados de Rose pronunciavam.
Há, assim, um registro no próprio nome de família, das relações de poder
estabelecidas, que se por um lado impedem o resgate a um nome e identidade originais dessa
família negra, por outro produzem alterações no nome/identidade branca, evidenciando
uma dinâmica de hibridismo cultural e a impossibilidade de retorno a uma identidade pura.
A essa marca de africanização decorrente da oralidade dos povos de origem africana em
território brasileiro Gonzalez (1988) denomina pretoguês.
O exemplo da coreografia evidencia ainda a viabilidade de pensar as dinâmicas
identitárias representadas no livro também em diálogo com a categoria de amefricanidade
de Gonzalez (1988), pois essas representações conversam com a ideia da autora de pensar a
identidade negra em países do continente americano, sem visar ao retorno à pureza cultural

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Anais

de uma África mítica, mas considerando as experiências do povo amefricano, desde o


continente, do qual forçadamente saiu, até os processos de subalternização e resistência
política e cultural em nações americanas. Sobre a resistência amefricana, Lélia Gonzalez
afirma:

Já na época escravista ela se manifestava nas revoltas, nas elaborações de


estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas
alternativas de organização social livre, cuja expressão concentra-se nos
quilombos, cimarrones, cumbes, palenques, marronages e maroon societies,
espraiadas pelas mais diferentes pairagens de todo o continente.
(GONZALEZ,1988, p. 79).

A menção a estratégias de resistência do povo negro aparece algumas vezes em


Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Em Regina Anastácia, por exemplo, há a presença de um
clube cultural negro na cidade onde se passa a história. Esse clube funcionava à época da
escravidão, não apenas como um espaço de celebração e manutenção cultural, mas como um
ambiente onde se planejavam revoltas e fugas. Essa resistência, entretanto, não é
representada como uma estratégia que assegure uma total impermeabilidade cultural, mas
sim como uma forma de, mesmo no contato com novas práticas culturais, não abandonar de
todo as referências culturais de origem, ainda que estas sofram modificações nesse processo.
Essa dinâmica se revela também no sincretismo religioso, abordado no conto Adelha
Santana Limoeiro, em que a figura de Sant’Ana é acolhida pela narradora-ouvinte, porém em
correlação com a figura de Nanã, pois se a santa era branca, seu orixá correspondente era
negra e parecida com Adelha. Nesse contato entre o povo negro e o catolicismo imposto,
percebe-se que se por um lado havia a problemática de esse diálogo ter se dado de forma
impositiva, de modo a promover um embranquecimento da cultura negra, não se pode negar,
entretanto, que a cultura negra, de certo modo, também enegreceu o catolicismo praticado
no Brasil. Exemplo disso, seriam as congadas citadas no livro analisado, celebrações em que
não é possível separar o catolicismo dos elementos advindos de religiões de matriz africana.
Os conceitos de identidade e amefricanidade e os aportes da teoria pós-colonial se
mostraram produtivos para pensar a obra de Conceição Evaristo. Assim, na seção seguinte o
conto Maria Imaculada do Rosário dos Santos, será abordado a partir desse referencial.

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Anais

Maria do Rosário Imaculada dos Santos: a mulher negra portadora de uma voz coletiva

O conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos nos leva a duas vias interpretativas,
que se confundem e se complementam. A primeira seria pautada na história da protagonista
em si, e a segunda partiria da premissa de essa personagem e, consequentemente, a narrativa
constituírem uma alegoria do povo negro trazido para o Brasil em diáspora forçada.
Maria do Rosário Imaculada dos Santos viveu até os cinco anos numa pequena
comunidade familiar. Morando em uma casa com a mãe, dois irmãos, mais duas tias e um tio,
além de dois primos e os avós, tinha como vizinhos parentes de diferentes graus. Era uma
comunidade situada no Brasil, mas onde residiam apenas pessoas de descendência africana.
Sob uma perspectiva alegórica, essa moradia inicial da personagem, onde tudo lhe é familiar,
poderia corresponder à situação do povo negro no período anterior ao tráfico negreiro. Até
esse momento a formação identitária da personagem e do povo que ela representa está em
consonância com a concepção sociológica de identidade relembrada por Hall (2014), uma
noção de identidade que resultaria do diálogo entre o sujeito e os mundos culturais
exteriores. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o
sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 2014, p. 12).”
Entretanto, Hall (2014) entende que esse sujeito unificado, estável, bem como as
identidades possíveis na sociedade, entram em crise no contexto pós-moderno, em que a
identidade é destituída de estabilidade e permanência, adquirindo um caráter de mobilidade
e transformação. Há um momento em que essa crise se instaura na história de Maria, que é
o seu rapto. De um local, onde todos se identificavam nas feições e hábitos uns dos outros, é
roubada ainda criança por um casal que inicialmente pensa ser de estrangeiros, mas depois
descobre serem do sul do Brasil. Esse contato forçado com uma cultura diferente coloca em
xeque um processo de formação identitária que até o momento construía-se de modo
estável.
Como ocorreu com as pessoas negras trazidas à força da África durante o processo de
colonização e escravização no Brasil, a personagem adentra em um universo social, no qual
diferentes estratégias serão utilizadas a fim silenciar sua origem histórica, cultural, enfim
sua identidade construída até o momento. Perde o direito ao próprio nome, não ouve ou tem
possibilidades de compartilhar sua história com aqueles que a roubaram. Convém lembrar
que Hall (2003), ao defender o potencial analítico do conceito de pós-colonial, em sua

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Anais

ambiguidade semântica: cronológica e epistemológica, faz-nos também compreender o


colonial a partir desses dois âmbitos. Nesse sentido, é interessante destacar que Maria não é
escravizada de imediato pelo casal, mas é antes submetida a táticas epistemicidas. Esse
epistemicídio faz-se presente nas estratégias de silenciamento citadas e é usado na tentativa
de provocar no sujeito - leia-se aqui tanto a personagem quanto a coletividade negra
escravizada à qual representa - um esquecimento de si mesmo, de seu próprio saber, fazendo
com que se torne cada vez mais suscetível a imposição do saber e, consequentemente do
poder alheio.
Lélia Gonzalez (1988) ao refletir sobre as estratégias de estilhaçamento cultural nas
práticas de dominação luso-espanhola em países da América Latina, ressalta o caráter
disfarçado do racismo por denegação, forma de racismo, que, baseado numa ideologia de
embranquecimento, leva pessoas negras a internalizarem a crença na superioridade da
cultura ocidental branca e a renegar sua cultura e identidade de origem, pelo desejo de
embranquecer-se. A autora destaca, entretanto, a resistência que se fez obstáculo a uma
plena alienação. No caso de Maria, ela costuma recontar a si mesma sua história, ainda que
cada vez mais esqueça pormenores. À medida que esquece, reinventa sua própria narrativa,
que se não mais corresponde à original, é ainda, uma forma de manter sua voz ativa mesmo
que apenas para si, é um contraponto de resistência ao silêncio imposto. Essa criatividade,
que nasce da fronteira entre lembrar e esquecer, é representação da própria escrevivência
no interior do enredo.
Conceição Evaristo (2003), que acredita ser o inventado às vezes mais real que o real,
funde a memória individual à coletiva, na personagem Maria. Se ora a história parecia ter
início num trajeto forçado dentro de um carro, ora a lembrança tinha ponto de partida numa
dolorosa viagem nos porões de um navio negreiro. A personagem, como Oxum e como a
autora, adquire papel de porta-voz de um grito coletivo. Pelas lembranças narradas, busca-
se a reconstrução daquela identidade de entendimento sociológico descrita por Hall (2014),
isto é, diante de seu descentramento, fragmentação, o sujeito – neste caso, a personagem e o
povo a que representa - busca sua essência numa origem com a qual deseja uma ressutura.
No entanto, como aponta Hall (2003), ao refletir sobre as identificações diaspóricas no pós-
colonial, é impossível o retorno a uma identidade original e fechada.
Maria se depara com essa dificuldade de retorno. Quando tinha 12 anos, o casal se
separou e mandou-a para a casa de uma tia deles, onde foi explorada nas tarefas domésticas.
Mas, mesmo após deixar essa casa e ter certa autonomia que lhe permitiria regressar a Flor

583
Anais

de Mim, sua cidade de origem, o receio de não encontrar o que esperava a fazia adiar a volta.
Mudava-se constantemente, aproximando-se, mas sem coragem de chegar de fato até lá.
Talvez o medo não fosse só de encontrar um lugar diferente, mas de ela própria ter mudado
a ponto de não se identificar como antes, mesmo que lá ainda fosse parecido com o que se
lembrava. Como os antigos escravizados negros e seus descendentes, ainda que de volta à
sua terra de origem, jamais teria uma experiência de identificação equivalente à anterior.
Lélia Gonzalez (1988) reflete sobre essa perda e procura por uma identidade original,
criticando a busca que alguns negros vindos dos Estados Unidos, fazem, ao tentar encontrar
na Bahia a sobrevivência da cultura africana. Segundo ela, a noção de sobrevivência já seria
problemática ao denotar que algo escapou ao evolucionismo cultural eurocêntrico. Além
disso, essa busca teria como premissa a ignorância acerca de um potencial cultural, criativo
e artístico que já não se pode mais compreender como africano. A autora reforça, desse
modo, a necessidade de uma forma de autodesignação, cujo compromisso não deve ser com
a restituição de uma identidade original africana, mas com uma conceituação que abarque
as experiências comuns ao povo negro na América, sem com isso romper de todo os vínculos
a uma herança africana. Por isso, formula a categoria político identitária de amefricanidade.
O acolhimento da vivência de trânsito e a relevância dada ao ato de narrar as
experiências desse trajeto histórico, que reconhece a origem como ponto de partida, mas não
se prende a ela, são aspectos importantes da identificação amefricana, que se encontram bem
representados ao fim do conto analisado. Nesse desfecho Maria encontra sua irmã mais nova,
em um evento sobre crianças desaparecidas, ao qual compareceu e em que uma moça, muito
semelhante à sua mãe, narra a história de uma irmã perdida, o que lhe perturba.

Porém não era o relato de minha irmã nascida depois de minha partida
forçada que eu ouvia. Não era a fala dela que me prendia. E sim o Jipe. Lá
estava o Jipe ganhando distância, distância, distância… Lá estava o meu
irmão chorando no meio da história e eu indo, indo, indo… Quando acordei
do desmaio, a moça do relato segurava a minha mão; não foi preciso dizer
mais nada. A nossa voz irmanada no sofrimento e no real parentesco falou
por nós. Reconhecemo-nos. Eu não era mais a desaparecida. E Flor de Mim
estava em mim, apesar de tudo. Sobrevivemos, eu e os meus. Desde sempre.
(EVARISTO, 2011, p. 53).

Esse parágrafo final, em que o motivo de crise é, sobretudo, essa rota forçada, também
se relaciona com o que Hall (1992) estabelece, ao propor que, estando a identidade
radicalmente subordinada a uma historicização, o debate sobre ela deve considerar aspectos

584
Anais

históricos, em especial a globalização e dinâmicas de migração, claramente forçadas ou


aparentemente livres, que abalaram a aparente estabilidade das estruturas sociais e
culturais. A fala de Maria ao dizer: “Flor de Mim estava em mim, apesar de tudo ” vai ao
encontro da afirmativa de Hall (1992, p. 108) de que “as identidades parecem invocar uma
origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma
certa correspondência.” Todavia, o autor aborda a importância da história, da linguagem e
da cultura num movimento de identificação, em que reflexões sobre quem somos ou nosso
local de origem tornam-se secundárias à indagação de quem podemos nos tornar a partir do
modo como somos representados. Na fala da irmã, Maria encontra uma representação, em
que sua infância não foi relegada ao silêncio. Pela primeira vez, pode ouvir sua história
contada por uma voz que não é sua, mas uma voz irmã, familiar. A voz de alguém com quem
pode revezar o papel de porta-voz, de si mesmo, das mulheres e do povo negro, vítima da
diáspora forçada.
Há, assim, tanto nos atos narrativos internos ao enredo, quanto na escrita de
Conceição Evaristo em si, o que Stuart Hall (1992) chama de narrativização do eu, ação que
se não permite um retorno à origem ou um voltar a ser quem se foi, abre possibilidades sobre
quem podemos nos tornar. Convém destacar o autor diz, sobre o ficcional nessa
narrativização.

A natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma


alguma, sua eficácia discursiva mesmo que a sensação de pertencimento, ou
seja, a suturação à história, por meio da qual as identidades surgem, esteja
em parte no imaginário (assim como no simbólico e, portanto, sempre em
parte construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo
fantasmático. (HALL, 1992, p. 109).

Enfim, o conto em questão demonstra a riqueza da escrita de Conceição Evaristo,


como prática, em que o jogo entre real e ficcional permite pensar a identidade negra, em
especial da mulher negra, a partir de suas representações no interior do discurso literário.

Considerações finais

As análises sobre a obra objeto de estudo, evidenciara a busca por uma reconstrução
identitária negra na literatura de Conceição Evaristo. Nessa busca, o poder de narrar,
atribuído às mulheres negras, como herdeiras de Oxum, em seu potencial de fazer ecoar um

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Anais

grito e refletir especularmente a história de suas iguais e do povo negro teria papel
fundamental. Nesse sentido, os estudos de Lélia Gonzalez (1988) e sua categoria de
amefricanidade permitiram pensar a identificação racial representada nos contos,
considerando os processos de dominação e resistência em países do continente americano
e, especialmente, compreenderesse processo opressor luso-espanhol, baseado em
estratégias de racismo disfarçado (por denegação), como fator que complexificou a
identificação racial em países como o Brasil.
Atentar-se a essa complexidade e à intersecção entre raça e gênero foi importante
para que se considerasse a identidade em sua historicidade e multiplicidade, fatores, que
como aponta Stuart Hall (2014), caracterizam os mecanismos de identificação na
modernidade tardia. O diálogo com os conceitos de identidade e pós-colonial (HALL,1992,
2003, 2014) mostrou-se bastante produtivo para se compreender como os modos de
representação e a narrativização do eu – mesmo marcada pelo ficcional - contribuem para
os processos de formação identitária no contexto pós-colonial e pós-moderno. Nesse sentido,
as reflexões nos levaram, enfim, a reconhecer a escrevivência como possibilidade de
preencher lacunas e recontar a história das mulheres e do povo negro, construindo uma
perspectiva que permita enxergar um outro modo de suturação e assim de identificação a
partir da narrativa literária.

REFERÊNCIAS

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LITERATURA CONTEMPORÂNEA
MARANHENSE DE AUTORIA
FEMININA: DECOLONIZANDO A
MATRIZ COLONIAL DE PODER EM
QUEM É ESSA MULHER? (2018),
DE MILENA CARVALHO
Thais Nascimento da SILVA (UFMA/CNPq-IC)1
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)2

RESUMO

Este artigo é resultado do projeto de pesquisa intitulado “Literatura contemporânea


maranhense de autoria feminina: decolonizando a matriz colonial de poder em Quem é essa
Mulher? (2018)”, de Milena Carvalho e tem por objetivo analisar como a autora apresenta
em seu romance as imposições do sistema moderno/colonial de gênero e como esse sistema
contribui para a subalternização da mulher negra na sociedade. A partir de uma leitura
decolonial do romance foi possível observar como o processo de colonização contribuiu para
a construção de um sistema que oprime e violenta as mulheres de cor. Também foi
imprescindível para mostrar a relevância de se trabalhar com a literatura de autoria
feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no contexto literário. Esta
pesquisa possui uma abordagem qualitativa, bibliográfica e conta com as bases teóricas:

1 Graduanda em letras/Português- UFMA. Membro do grupo de pesquisa Marginália Estudos Decoloniais.


Bolsista CNPq modalidade Iniciação cientifica. E-mail: nascimento.thais@discente.ufma.br.
2 Doutora em Letras. Professora Adjunta III do Centro de Ciências Educação e Linguagem da Universidade

Federal do Maranhão. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal.


(PGLB/UFMA e do programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT/UFMA). E-
mail:cristiane.tolomei@ufma.br

588
Anais

Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa (2014), Schmidt (1995) e Giddens
(1992). O artigo encontra-se dividido em três principais momentos: no primeiro será
discutido acerca da colonialidade de poder de Aníbal Quijano e a crítica de Maria Lugones,
no segundo momento será debatido acerca da condição subalternizada da literatura de
autoria feminina e por fim será feita a análise do romance Quem é essa Mulher? buscando
mostrar como a autora apresenta uma personagem que sofre com a colonialidade de gênero.

Palavras-chave: Quem é essa mulher?; Colonialidade do poder; Colonialidade de gênero;


Patriarcado; Literatura feminina maranhense.

ABSTRACT

This article is the result of the research project entitled “Contemporary literature from
Maranhão by female authors: decolonizing the colonial matrix of power in Who is this
woman? (2018)”, by Milena Carvalho and aims to analyze how the author presents in her
novel the impositions of the modern/colonial gender system and how this system
contributes to the subordination of black women in society. From a decolonial reading of the
novel, it was possible to observe how the colonization process contributed to the
construction of a system that oppresses and violates women of color. It was also essential to
show the relevance of working with literature by women from Maranhão, since it is
marginalized in the literary context. This research has a qualitative, bibliographic approach
and has the theoretical bases: Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa
(2014), Schmidt (1995) and Giddens (1992). The article is divided into three main moments:
in the first, it will be discussed about the coloniality of power of Aníbal Quijano and the
criticism of Maria Lugones, in the second moment, it will be discussed about the subordinate
condition of literature by female authors and, finally, the analysis of the novel Who is this
Woman? seeking to show how the author presents a character who suffers from gender
coloniality.

Keywords: Who is this Woman?; Coloniality of power; Gender coloniality; patriarchy;


Maranhão women's literature.

Introdução

Este artigo intitulado “Literatura contemporânea maranhense de autoria feminina:


decolonizando a matriz colonial de poder em Quem é essa mulher? (2018), de Milena
carvalho, permite que haja um estudo acerca da condição da mulher racializada na sociedade
brasileira, sobretudo, maranhense. A partir de uma perspectiva decolonial, esta pesquisa
busca compreender como o processo de colonização contribuiu para a construção de um
sistema que oprime e violenta as mulheres de cor. O romance Quem é essa Mulher? apresenta
uma personagem feminina que teve sua vida interrompida por uma violência sexual, a partir
desse acontecimento, o silenciamento tomou conta de sua existência.

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A partir deste artigo será possível demonstrar a relevância de se trabalhar com a


literatura de autoria feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no
contexto literário. Milena carvalho é uma escritora desconhecida do cânone literário, visto
que por ser mulher sua escrita é inviabilizada e também porque os temas que a autora traz
em sua obra são considerados tabus entre as pessoas.
Para a realização desta pesquisa foi realizada uma entrevista com a autora visando
coletar informações e contribuir para a fortuna crítica da obra. Os objetivos específicos desse
trabalho referem-se a uma análise do romance Quem é essa mulher? (2018) de Milena
carvalho buscando verificar como ele revela as barreiras impostas pela colonialidade de
poder, que cria hierarquias de classe, gênero e raça, para isso, concentraremos-nos nas duas
últimas hierarquias. Será observado a interseccionalidade das categorias de gênero e de raça
e como isso contribui para a dominação da mulher de cor.

METODOLOGIA

Esta pesquisa é de classificação básica, pois não há aplicabilidade prática, para a sua
realização seguiu-se as seguintes etapas: (i) pesquisa bibliográfica acerca dos estudos
decoloniais, literatura maranhense contemporânea e fortuna crítica da obra da escritora por
meio de levantamento bibliográfico e revisão de literatura.; (ii) quanto à abordagem, a
pesquisa é qualitativa, pois não se preocupa com representatividade numérica e sim com o
aprofundamento da compreensão do objeto, ou seja, a análise do corpus

A Colonialidade do poder de Aníbal Quijano

A partir das relações intersubjetivas contemporâneas que são baseadas em


pressupostos do que é superior/ inferior, leva-nos a ideia de que a colonialidade permanece
marcada nos níveis sociais e coletivo da sociedade. O colonialismo permanece vivo a partir
da colonialidade, visto que mesmo após a independência da metrópole, as sociedades pós-
coloniais, ainda mantém em suas estruturas relações hierárquicas baseadas na questão
racial. O sociólogo peruano Aníbal Quijano discute a colonialidade do poder e de acordo com
seus estudos afirma que “a chegada dos europeus é construída a partir da diferenciação que
estes fizeram acerca da população que aqui se encontrava, eles se consideraram como

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Anais

civilizados em oposição aos considerados povos primitivos”. (2005, p. 117) Isso demonstra
os efeitos de uma sociedade ocidental baseada no pensamento dicotômico.
Quando a américa foi constituída, os povos colonizados foram classificados de acordo
com a raça, com base nas diferenças fenotípicas os grupos foram divididos em superiores e
inferiores. Dessa forma, os sujeitos inferiorizados foram destituídos de humanidade e
dominados. As relações sociais que estavam se configurando foram baseadas a partir da
dominação e exploração desses povos, cada grupo possuía lugares e papéis sociais baseados
em sua raça. “Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como
instrumentos de classificação social básica da população”. (QUIJANO, 2005, p.117).
A colonialidade de poder se reproduz a partir de três dimensões: colonialidade do
poder, do saber e do ser. Na colonialidade do poder, a raça dominante se mantem no
comando do controle de trabalho, na colonialidade do ser, os indivíduos colonizados são
vistos como irracionais, selvagens, aqueles que não possuem controle de sua sexualidade.
E por fim, têm-se a colonialidade do saber, que dita que apenas os conhecimentos
baseados na ciência e produzidos pela Europa são válidos. Quijano aponta que “toda
sociedade é uma estrutura de poder” (2005, p. 130), e que existe uma relação de imposição
de alguns sobre os demais. Ele divide o poder colonial em “controle do trabalho, de seus
recursos e de seus produtos, controle do sexo, de seus recursos e produtos e controle da
autoridade, seus recursos e produtos (QUIJANO, 2005, p. 123). É interessante apontar esse
aspecto, pois será comentado logo adiante.

Sistema moderno colonial/de gênero de Maria Lugones

Maria Lugones realizou um estudo crítico relacionado ao grupo


modernidade/colonialidade- M/C, pois notou que Anibal Quijano aceitou o entendimento
eurocêntrico de gênero. Ele não considera o gênero como algo construído, mas sim, como
algo estritamente biológico. Quijano definiu o gênero baseado na biologia, e não considerou
sexualidades outras, dessa forma, ele reduz o gênero a organização do sexo, seus recursos e
seus produtos. (QUIJANO, 2005, p. 123). Essa redução que Quijano faz, leva Lugones a pensar
que ele concorda com a compreensão de que os homens possuem o controle e as mulheres
são os recursos. A colonialidade do poder de Quijano, não separa as categorias de gênero e
raça, e invisibiliza a discussão acerca delas “Em vez de produzir um rompimento, ele se
acomoda no reducionismo da dominação de gênero.” (LUGONES, 2020, p. 74).

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Segundo Lugones: “Como o capitalismo eurocêntrico global se constituiu por meio da


colonização, diferenças de gênero foram introduzidas onde antes não havia nenhuma”
(2020, p. 70) antes da colonização não existia um poder patriarcal nas sociedades pré-
colombianas, ou seja, não havia hierarquias e papéis sociais baseados em gênero. As
mulheres das comunidades não viviam subordinadas aos seus parceiros, pelo contrário,
“muitas comunidades tribais de nativo-americanos eram matriarcais, reconheciam
positivamente tanto a homossexualidade como o “terceiro” gênero (LUGONES, 2020, p. 71).
Ou seja, a imposição de gênero, não significava apenas a divisão da sociedade baseado em
homem/mulher, significava também que as mulheres racializadas estavam em uma posição
inferior ao do homem, em um estado de subordinação e sem direitos.
A partir desse processo, as mulheres de cor passaram a ser dominadas pelos homens.
No que diz respeito da experiência da mulher negra na sociedade, observa-se que a
colonialidade ainda permanece viva em suas vidas, visto que elas são violentadas, sofrem
diversos tipos de pervenções e agressões sexuais. Em sua crítica a Anibal Quijano, Lugones
propõe o sistema moderno/colonial de gênero, onde busca compreender a intersecção das
categorias de gênero e de raça, pois segundo ela, o entrelaçamento dessas categorias
colabora para a consolidação de um sistema que violenta e mata as mulheres negras. A partir
da intersecção é possível enxergar a dupla opressão que as mulheres de cor sofrem, por
serem mulheres e por serem negras.
A proposta de Maria Lugones torna-se essencial para o estudo das opressões das
mulheres racializadas, pois quando juntas, as categorias de gênero e raça mostram-nos as
vitimas da dominação, que sofrem duplas opressões. Caso isolássemos a categoria mulher,
consequentemente seria selecionada a mulher branca, burguesa, heterossexual e cristã e
dessa forma, as mulheres não brancas seriam invisibilizadas. O racismo colonial que está
presente em suas vidas não seria considerado, por isso, é importante destacar que as
experiências de vida das mulheres são totalmente distintas.

A escrita de autoria feminina maranhense

A literatura brasileira por muito tempo foi composta pelo público masculino, em
especial, pelo homem branco, burguês de classe média. Mesmo existindo muitas mulheres
escritoras, existem poucos registros de romances publicados pelo público feminino. As
mulheres demoraram adentrar no cenário literário, porque somente os homens podiam

592
Anais

escrever e publicar suas obras. As mulheres estavam relegadas ao lar, por isso, acreditava-
se que não existia a necessidade de elas terem acesso ao letramento.
Acerca das mulheres negras na literatura, nota-se que elas enfrentaram mais
adversidades, visto que sofreram discriminação por serem mulheres e por serem negras. O
primeiro romance publicado por uma mulher foi em (1859) com a obra “Úrsula” da autora
Maria Firmino dos reis, depois dessa publicação, apenas foi publicado outro romance em
1966 com a obra “A parede” de Arlete Nogueira. Isso mostra o vazio de uma publicação para
outra, mostrando como as mulheres estavam subalternizadas no meio literário.
Schmidt (1995) em sua obra que trata sobre gênero e literatura na américa latina
afirma que:

A literatura feita por mulheres envolve dupla conquista: a conquista da


identidade e a conquista da escritura. Ultrapassados os preconceitos e tabus
com relação ao potencial criativo feminino, vencidos os condicionamentos
de uma ideologia que a manteve nas margens da cultura, superadas as
necessidades de apresentar-se sob o anonimato, de usar pseudônimo
masculino e de utilizar-se de estratégias para mascarar seu desejo, a
literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo de reconstrução
da categoria “mulher (...). (SCHMIDT, 1995, p.188).

O acesso das mulheres a escrita foi crucial não apenas para que houvesse uma escrita
voltada para temas do imaginário feminino, mas também para transformar a literatura como
uma ferramenta de resistência. Porque a mulher sempre carregou estereótipos que a
ligavam ao espaço privado, a dona de casa, a esposa, aquela relegada ao lar e nunca como
alguém que pudesse produzir conhecimento. Por isso, a escrita feminina é importante para
desmistificar esses estereótipos e modificar a representação da mulher na literatura, para
que dessa forma ela possa sair de seu papel de subalternidade. O romance de autoria
feminina maranhense também encontra dificuldades no contexto literário, ele é
representado no século XIX, por Arlete nogueira, Conceição Aboud e Virgínia Rayol. De
acordo com Correa (2014):

(...)a produção feminina do romance maranhense não se faz tão expressiva


em termos de quantidade, se não vejamos: no século XIX, apenas uma
representante (Maria Firmina dos Reis), com uma única obra (Úrsula-1859);
no século XX, três... cinco autoras, cada uma destas, fazendo-se representar
com uma, no máximo duas produções do gênero. (CORREA, 2014, p. 164).

593
Anais

Diante do exposto, nota-se que a escrita feminina maranhense por muito tempo foi
silenciada, e quando se trata de uma literatura de resistência como é o objeto de estudo desta
pesquisa que trata sobre violência sexual, patriarcado, sexismo, tende a ter mais impasses.

A autora

Milena Carvalho é cineasta formada pela Escuela Profesional de Cine y Artes


Audiovisuales de Eliseo Subiela, em Buenos Aires. É também arquiteta urbanista, graduada
pela Universidade Estadual do Maranhão. A autora dedica-se a estudos de escrita, produziu
projetos com o romance que serve de estudo para esta pesquisa e com isso conseguiu auxiliar
muitas mulheres em todo o Brasil. Milena Carvalho traz em seu romance, uma personagem
feminina marcada pelas categorias de gênero e raça, a personagem Liane é uma mulher
negra que sofreu violação sexual aos 17 anos. Ela também se difere do padrão de mulher
ideal, contribuindo ainda mais para a sua marginalização.
O romance é uma auto ficção, que relata a violência sofrida pela autora aos 14 anos,
ela trabalha com temas sensíveis, como o estupro, o patriarcado e as consequências da
violência de gênero na vida da mulher. O livro começou a ser escrito em 2012 como uma
espécie de autoajuda para a autora, o texto tinha o formato de uma carta onde ela direcionava
para as pessoas que passaram por sua vida. Após ter contato com um curso de escrita
criativa, ela decide escrever o livro.
Na entrevista cedida pela autora, ela vem falando sobre as dificuldades de se trabalhar
com uma literatura de resistência onde trata da condição da mulher em uma sociedade
patriarcal, ela afirma que o Maranhão é um estado onde os seus habitantes são muitos
conservadores. Até mesmo falar sobre o trauma torna-se uma dificuldade. Como pode ser
observado, a escritora feminina encontra obstáculos não somente na publicação de suas
obras, mas também em trabalhar com temas que são considerados tabus para a sociedade.

A obra

O romance Quem é essa mulher? da autora maranhense Milena carvalho narra a


experiência traumática de um abuso sexual que a jovem Liane Truga sofreu aos 17 anos de
idade. O fato ocorreu no ano de 1991, na chácara de seu avô, quando um homem invade a
residência atrás de joias e dinheiro. Porém, ele não encontra e decide descontar sua raiva

594
Anais

violando o corpo de Liane. A partir desse acontecimento, Liane Truga teve sua vida mudada
drasticamente, ela se distancia da família e de seus amigos, passa a se vestir como uma
mulher mais velha e alimenta a ideia de que não merecia ser feliz.
É interessante abordar a imagem de Marcinho dentro do romance, ele era o rapaz que
ela se relacionava antes da violação, quando ocorreu o fato ela cortou os laços com ele porque
acreditava que não merecia mais viver aquela paixão. Na entrevista cedida pela autora, ela
fala da importância da criação desse personagem para a construção da narrativa, Marcinho
nunca existiu, ele foi criado para representar todas as pessoas que passaram na vida dela e
para esse personagem ela fala as coisas que não teve coragem ou oportunidade de dizer na
época do ocorrido.
Após vinte e cinco anos do acontecido, Liane acorda como em um sonho e passa a se
questionar acerca do tempo que viveu sendo uma outra pessoa. Ela se permite passar por
um processo de autodescoberta, a partir de uma conversa que ela teve com uma amiga que
sofreu a mesma violência que ela, decide retomar a sua cidade natal, onde tudo aconteceu e
em uma conversa com seu pai biológico decidem falar sobre o trauma sofrido. A partir disso
ela reconheceu que não precisava de uma figura masculina para se sentir segura, ou seja, ela
mesma poderia fazer aquilo por ela. A seguir, serão analisados alguns trechos que foram
retirados do romance, quem é essa mulher? para que seja possível observar a situação da
mulher racializada na sociedade patriarcal e como ela reage a esse sistema.
No trecho abaixo a personagem Liane Truga relata o momento em que o violador
invade a sua casa e pratica a violação sexual contra o seu corpo:

Minha irmã sentou depressa, esbugalhou os olhos e não emitiu ruído


sequer. Eu só tive tempo de emergir abrindo os meus e vê-la, quando
ele me agarrou pelos cabelos, me arrastou até o poço, perguntou onde
estava a porra das joias, a merda do dinheiro e voltou a me arrastar
para o arroio, e empurrando a arma com mais força na minha cabeça,
disse que ia trepar com alguém, e que eu podia escolher. -É tu, tua mãe
ou tua irmã. (CARVALHO, 2018, p. 21).

Liane Truga sofreu violência de gênero sexual quando tinha dezessete anos, mas a
violação não foi cometida por uma pessoa do seu grupo familiar, e sim, por um indivíduo
desconhecido que invadiu a sua casa. O trecho apresentado narra o momento em que o
violador agride Liane e indaga-a acerca das joias da família. Percebendo que não teria êxito,
ele decide descontar sua raiva sobre as mulheres da casa. É interessante observar que a

595
Anais

partir do olhar europeu, as mulheres racializadas tiveram seus corpos objetificados, foram
vistas como inferiores e sexualmente imperativas e isso justificava toda a violência e
desumanização que elas tiveram que suportar. As mulheres racializadas atraem para si, a
dominação sexual por parte dos homens, eles acreditam que por serem homens possuem
poder sobre o corpo das mulheres. Como pode ser observado no trecho acima, o violador usa
de seu poder sobre o corpo feminino para disciplinar Liane.
Maria Lugones apresenta-nos o conceito de hierarquia dicotômica, onde afirma que
os povos colonizados foram considerados como machos e femêas, dessa forma as mulheres
de cor foram vítimas de estupros e violações. Essa perspectiva leva-nos a pensar acerca do
sistema moderno/ colonial de gênero, proposto por Lugones (2020, p. 78), Liane é uma
mulher marcada pelas categorias de raça e de gênero, e por isso enfrenta uma sociedade
machista e patriarcal que oprime e violenta os corpos das mulheres. Ela como tantas outras
estão vulneráveis a dominação masculina.
No trecho abaixo, a personagem escreve uma carta endereçada ao seu namorado
Marcinho, onde explica o porque de ter tratado-o mal quando este procurou-lhe depois do
ocorrido.

O menosprezo com que você pensa ter sido tratado foi tudo o que eu
senti pelo lixo de mulher que acabava de me tornar. Maldito. Ele
semeou, arou, colheu, debulhou e sovou um ódio quase tão medonho
quanto o amor que você havia plantado em mim. (CARVALHO, 2018,
p. 9).

Safiotti traz um conceito de violência, onde afirma que: “Trata-se da violência como
ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica,
integridade sexual, integridade moral.” (SAFIOTTI, 2015, p 18). A violência não é apenas
física, ela deixa traumas e feridas que são muito difíceis de cicatrizar, se é que cicatrizam.
Como pode ser observado no trecho acima, a violência sofrida por Liane teve impactos na
relação que ela tinha com as pessoas com quem convivia. Ela teve sua vida destruída, não
conseguia manter relacionamentos afetivos e vivia uma história onde ela se colocava como
coadjuvante.
Giddens (1992) afirma que:

Uma pessoa codependente é alguém que, para manter uma sensação


de segurança ontológica, requer outro indivíduo, ou um conjunto de

596
Anais

indivíduos, para definir as suas carências; ela ou ele não pode sentir
autoconfiança sem estar dedicado às necessidades dos outros. Um
relacionamento codependente é aquele em que um indivíduo está
ligado psicologicamente a um parceiro(...). (Giddens, 1992, p. 101-
102).

A questão da codependência pode ser observada no trecho a seguir:

O que eu queria? Quer saber? Eu queria que você tivesse intercedido


por mim, Márcio. Que tivesse arrombado aquela porta, me abraçado
mesmo assim. Me levado, me internado em um lugar, me obrigado a
ficar. Que desligasse a tevê, não deixasse ninguém falar sobre o
assunto, lhes mandasse calar a boca (...). (CARVALHO, 2018, p. 11).

De acordo com o trecho acima e com a afirmação de Giddens sobre codependência,


nota-se que depois que Liane foi violentada, ela passou a ser uma pessoa carente que
necessitava de uma figura masculina para se sentir realizada, ao longo da narrativa, ela criou
grandes expectativas em relação ao seu parceiro Marcinho. Ela estava a todo tempo
buscando alguém que aceitasse as suas falhas, seus erros, alguém que a aprovasse e que a
aceitasse do jeito que ela se encontrava. “Um homem. Um homem que pudesse me proteger
dos demais homens (...)”. (Carvalho, 2018, p. 129). A partir do momento que ela recebeu
apoio de outras mulheres que passaram pela mesma violência que a dela, que decidiu
despertar depois de anos vivendo como coadjuvante de sua própria história, que se permitiu
aceitar o ocorrido e pôr fim ao silenciamento, foi possível aceitar a sua condição e
compreender que nenhum homem poderia salvá-la, apenas ela mesma.

Considerações finais

Nesta pesquisa buscou-se analisar como o romance intitulado Quem é essa mulher? da
autora Milena carvalho, permitiu um estudo acerca da condição da mulher racializada na
sociedade brasileira, sobretudo, maranhense. A partir de uma perspectiva decolonial, este
artigo buscou compreender como o processo de colonização contribuiu para a construção
de um sistema que oprime e violenta as mulheres de cor.
A partir deste artigo foi possível evidenciar a relevância de se trabalhar com a
literatura de autoria feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no
contexto literário. Também foi possível observar a importância de uma literatura

597
Anais

contemporânea voltada as discussões acerca das decolonialidades. A partir da leitura


decolonial do romance Quem é essa mulher? de Milena carvalho compreendeu-se a situação
da mulher negra na sociedade e como ela se posiciona diante de um sistema que desumaniza
os indivíduos colonizados. As mulheres são violentadas, e até mortas por uma sociedade
machista e patriarcal que alimenta um ódio contra o corpo feminino. A partir desse contexto,
as mulheres de cor têm que encontrar forças para lutar e resistir dentro de um sistema
patriarcal que tem como objetivo silenciarem-nas.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Milena. Quem é essa mulher? São Luís: Editora Pulsar, 2018.

CORREA, Dinacy Mendonça. Literatura maranhense: romance e romancistas do século


XX. Programa de Pós-graduação em Ciência da literatura, UFRJ, 2014.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, p. 107-130, 2005.

SAFIOTTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência/ Heleieth Iara Bongiovani Safiotti.

—2. Ed. – São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

SCHMIDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria


feminina. In: NAVARRO, Márcia Hoppe (Org). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na
América Latina. Porto Alegre. Editora da UFRGS, 1995. p. 182-189.

GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade. São Paulo: UNESP, 1992.

LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).


Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar: 2020.

598
DECOLONIZANDO A MATRIZ
COLONIAL DE PODER EM A
CASA DO SENTIDO
VERMELHO (2013) DE
JORGEANA BRAGA
Jocileide Silva SOUSA (UFMA/CNPq-IC)1
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)2

RESUMO

Este artigo é fruto do projeto de pesquisa “Literatura contemporânea maranhense de autoria


feminina: decolonizando a matriz colonial de poder em A Casa do Sentido Vermelho (2013)
de Jorgeana Braga” e visa investigar como a autora maranhense desconstrói em seu romance
as imposições do sistema moderno/colonial de gênero no que se refere a sexualidade
feminina e a relação mulher e maternidade. O desenvolvimento dessa pesquisa mostrou-se
relevante, pois, a literatura sempre foi um local de dominação do homem, em especial o
homem branco, sendo assim as personagens femininas foram representadas a partir de um
olhar machista e patriarcal, por isso, trabalhar a escrita feminina contribui para pensar a
posição da mulher na literatura. Essa pesquisa está focalizada na autora contemporânea
Jorgeana Braga e como sua escrita de mulher negra configura uma resistência ao sistema
moderno/colonial de gênero. Esta pesquisa é qualitativa, bibliográfica e conta com as bases
teóricas de Saffioti (2004), Gonzalez (2020) e Lugones (2020). A partir da análise do
romance chega-se a conclusão que a autora Jorgeana Braga na sua obra A Casa do Sentido

1 Graduanda em Letras /Português – UFMA. Membro dos grupos de pesquisas Marginalia Estudos Decoloniais
e GEPELIND. Bolsista CNPq modalidade Iniciação Científica. E-mail: jocileidesilva2011@gmail.com
2 Doutora em Letras. Professora Adjunta III do Centro de Ciências Educação e Linguagem da Universidade

Federal do Maranhão. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal


(PGLB/UFMA) e do programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT/UFMA). E-mail:
cristianetolomei@gmail.com.

599
Anais

Vermelho desconstrói o ideal de mulher para o sistema machista e patriarcal ainda em voga
na sociedade, pois, as personagens do romance são apresentadas de maneira forte e
independente que não veem no casamento e maternidade o único caminho a ser seguido pela
mulher.

Palavras-chave: A Casa do Sentido Vermelho; Jorgeana Braga; sexualidade feminina;


maternidade.

ABSTRACT

This article is the result of the research project “Contemporary literature from Maranhão by
female authors: decolonizing the colonial matrix of power in A Casa do Sentido Vermelho
(2013) by Jorgeana Braga” and aims to investigate how the author from Maranhão
deconstructs the impositions of the system in her novel. modern/colonial gender in terms of
female sexuality and the relationship between women and motherhood. The development
of this research proved to be relevant, because literature has always been a place of male
domination, especially the white man, so the female characters were represented from a
sexist and patriarchal look, so working on writing contribution to thinking about the position
of women in literature. This research is focused on the contemporary author Jorgeana Braga
and how her writing as a black woman configures a resistance to the modern/colonial
gender system. This research is qualitative, bibliographical and has the theoretical bases of
Saffioti (2004), Gonzalez (2020) and Lugones (2020). From the analysis of the novel, it is
concluded that the author Jorgeana Braga, in her work A Casa do Sentido Vermelho,
deconstructs the ideal of woman for the sexist and patriarchal system still in vogue in society,
since the characters of the novel are presented in a different way. strong and independent
way that they do not see marriage and motherhood as the only way to be followed by women.

Keywords: A Casa do Sentido Vermelho; Jorgeana Braga; female sexuality; maternity.

INTRODUÇÃO

Em consequência da dominação masculina no meio literário a escrita feminina foi


relegada a uma condição de subalternidade, o que resultou com que essa escrita recebesse
menor visibilidade da crítica literária, fazendo com que muitas escritoras caíssem no
esquecimento, essa situação ocorreu em toda a literatura nacional, o que inclui o Maranhão.
A escolha de se trabalhar com uma escritora maranhense contemporânea permite pensar no
efeito do patriarcado no campo literário do estado ainda na atualidade. Além disso, pensar
em uma escritora negra, lésbica e zeladora de santo em terreiro de umbanda permite
repensar o padrão de sujeito ideal para o sistema moderno/colonial de gênero, padrão esse
que se iniciou durante o colonialismo, mas não se encerrou com ele. Isso é relevante, pois,
sendo a literatura um local de dominação do homem as personagens femininas tendem a ser
representadas a partir de uma visão estereotipada de mulher, isto é, a mulher frágil, dócil e

600
Anais

domesticada, vale destacar que as personagens do romance de Jorgeana Braga fogem desse
ideal de mulher.
O objetivo com esse artigo é analisar o romance A Casa do Sentido Vermelho
focalizando em como a autora Jorgeana Braga desconstrói em sua narrativa as imposições
do sistema moderno/colonial de gênero no que se refere a relação da mulher com a
maternidade e a sexualidade feminina e, como essas personagens femininas desconstroem o
padrão ideal de mulher para o sistema eurocentrado que tem o sexismo como uma de suas
marcas mais significativas.
As próximas seções deste artigo se concentrarão no que é a colonialidade de gênero
e seus efeitos no conceito de feminilidade e como isso se refletiu no meio literário, além de
contar com uma análise da obra focalizada nas personagens femininas do romance A Casa do
Sentido Vermelho e a relação dessas personagens com a maternidade e a sexualidade. No
entanto, primeiramente, será apresentado a perspectiva metodológica aplicada para o
desenvolvimento desta pesquisa.

METODOLOGIA

Quanto a metodologia, essa pesquisa é de classificação básica, pois não há


aplicabilidade prática. Para o seu desenvolvimento foram trabalhadas as seguintes etapas:
(i) pesquisa bibliográfica acerca dos estudos decoloniais, literatura maranhense
contemporânea e fortuna crítica da obra A Casa do Sentido Vermelho da escritora Jorgeana
Braga por meio de levantamento bibliográfico e revisão de literatura.; (ii) quanto à
abordagem, a pesquisa é qualitativa, pois não se preocupa com representatividade numérica
e sim com o aprofundamento e compreensão do objeto, ou seja, a análise do corpus.

A COLONIALIDADE DE GÊNERO E A SUBALTERNIZAÇÃO DA ESCRITA FEMININA NO


MARANHÃO

A literatura, tanto em âmbito estadual quanto nacional, foi um local de dominação


quase que exclusivamente masculina, principalmente do homem branco e das classes mais
altas. Isso se faz notável pela pouca presença feminina no meio literário maranhense, para
fins de exemplo, está a pouca participação das mulheres na academia Maranhense de Letras,
que em seus mais de cem anos de história contou com apenas nove mulheres como membros,

601
Anais

entre elas Laura Rosa, Mariana Luz e Lucy Teixeira. Essas poucas mulheres conseguiram
superar as dificuldades encontradas para terem seus textos publicados e reconhecidos, entre
essas dificuldades está a subalternização da escrita feminina. Correa comentando esse
contexto literário do Maranhão afirma em sua tese de doutorado que

[...] a produção feminina do romance maranhense não se faz tão expressiva


em termos de quantidade [...] no século XIX, apenas uma representante
(Maria Firmina dos Reis), com apenas uma única obra (Úrsula - 1859); no
século XX, três... cinco autoras, cada uma destas, fazendo-se representar com
uma no máximo duas produções do gênero. (CORREA, 2014, p. 164).

Como se pode observar, embora a literatura maranhense contenha grandes nomes da


literatura nacional, como Gonçalves Dias, Josué Montello, Aluísio Azevedo, entre tantos
outros, as mulheres tiveram suas vozes praticamente silenciadas, além disso, as poucas que
conseguiram publicar as suas obras caíram no esquecimento.
Entre as razões da não-presença da mulher na literatura estão as dificuldades em elas
terem os textos publicados, nesse ponto a colonialidade de gênero desempenhou um papel
crucial para esse silenciamento, pois para o sistema moderno/colonial de gênero a mulher é
impossibilitada de ocupar posições de destaque na sociedade, isso se deve ao fato delas
serem carregadas de rubricas ideológicas, entre elas a ideia da mulher como sendo inferior
ao homem por ser mais emocional e distante da razão (CASTRO, 2020), essas rubricas
marginaliza as mulheres em diversos campos, incluindo a literatura. Quando se pensa a
situação da mulher negra pode-se concluir que as dificuldades encontradas por elas são
ainda mais significativas, pois

Nós mulheres e não brancas fomos “faladas”, definidas e classificadas por um


sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor um lugar
inferior da sua hierarquia [...] suprime nossa humanidade justamente
porque nos nega o direito de sermos sujeitos não só do nosso próprio
discurso, como da nossa própria história. (GONZALE, 2020, p. 44).

Conforme o que foi exposto o sistema moderno/colonial de gênero seleciona a


categoria mulher como sendo a mulher branca, heterossexual, cristã e ainda assim essa
categoria é subordinada ao homem (LUGONES, 2020), ou seja, a mulher negra enfrenta a
dupla opressão por ser mulher em um sistema sexista e ser negra em uma sociedade
racializada, isso faz com que ela ocupe as posições mais baixas da sociedade. Essa condição

602
Anais

se refletiu na escrita literária, sendo essa uma das razões para as poucas produções de
mulheres, especialmente negras, fazendo com que poucas conseguissem superar as
barreiras impostas pela colonialidade entre elas Maria Firminina dos Reis, Carolina Maria de
Jesus e Conceição Evaristo, no entanto, ainda assim, suas escritas foram marginalizadas no
meio literário.
Essa dificuldade encontrada pelas escritoras em terem seus textos publicados fez com
que as personagens femininas fossem representadas a partir de uma visão sexista, sendo
assim, esse lugar de falar permite desconstruir as maneiras estereotipadas com que
personagens femininas foram descritas, pois, as mulheres para o sistema de gêneros são
“marcadas pelo culto ao belo e ao santo” (COSTA E SANTOS, 2012, p. 328), ou seja, a mulher
ideal presente nas produções literárias precisavam ser brancas e castas, quantas as
personagens negras são representadas com uma sexualidade extrema, ou como força de
trabalho, perpetuando, assim a supremacia branca e a visão estereotipada da mulher de cor.
Pensando nessa situação imposta pelo sistema moderno/colonial de gênero, foi
optado trabalhar uma escritora maranhense que foge dos padrões exigidos pela sociedade
no que diz respeito a mulher. A autora Jorgeana Braga é maranhense nascida na cidade de
São Luís, com formação em filosofia e atua como professora da rede básica de ensino, seus
primeiros textos foram publicados em 1997, uma coletânea de poemas intitulado Janelas que
Escondem Espíritos, em 1998 a autora escreve o livro A Casa do Sentido Vermelho, no entanto,
a obra só é publicada em 2013, com esse romance ela foi vencedora do prêmio Aluísio
Azevedo no XXXIV Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís.
Como informado por Jorgeana Braga em entrevista3, ela utiliza de suas personagens
para expressar os seus próprios incômodos, pois por ser mulher, negra, lésbica e zeladora
de santo pode perceber por si mesmo as tentativas de silenciamento do sistema
moderno/colonial de gênero. Como observado, Jorgeana é uma escritora que tanto pela sua
biografia, quanto pela sua escrita, resiste ao padrão de perfeição da mulher exigido pela
sociedade sexista, isso fica ainda mais evidente quando é analisado como suas personagens
do romance A Casa do Sentido Vermelho apresentam uma quebra as exigências do sistema
patriarcal de gênero, como será exposto na próxima seção do artigo.

3
Entrevista realizada com Jorgeana Braga no dia 17 de fevereiro de 2022, por vídeo chamada no Instagram

603
Anais

RESULTADOS DA ANÁLISE

A obra A Casa do Sentido Vermelho é um romance baseado nas memórias da


narradora, o enredo concentra-se nas aventuras amorosas e sexuais de um grupo de amigos
na cidade de São Luís que compartilham as suas vivências em um cabaré na capital do
Maranhão, local esse que serviu a esses personagens como refúgio e abrigo, apresentando
entre os frequentadores da casa a única família e amigos que elas conhecem. Vale destacar o
fato de a casa ser associada ao vermelho, cor que remete ao “sangue, luxúria e morte”, além
disso, “vermelho representa o amor carnal, a paixão, o erotismo, além de personificar o
sangue, a luta, o perigo e a morte” (PAULA JUNIOR, 2011, p. 132, 133), isso é relevante, pois,
essa “casa noturna se transmutava em bordel” (BRAGA, 2013, p. 60), ou seja, os moradores
da casa enfrentavam as dificuldades impostas pela vida de prostituição, conforme
expressado pela narradora

Amar sensualmente é dose [...]. Nem sei como eu era, o que gostava de fazer,
sobre o que gostava de falar, tornei-me triste, contida, sem liberdade para
ser, e tudo em mim ligado a capacidade luciferiana de desabrigo. [...] Porque
até para ser bom é preciso oportunidade, essa coisa que a gente faz com a
gente é tão cansativa, tão desgastante, temos que ficar em meio ao
bombardeio, e a vontade de berrar socorro. (BRAGA, 2013, p. 34).

Como se pode observar essas personagens precisavam lidar com os desafios em ser
moradoras da casa, deixando de lado até mesmo as suas personalidades e gostos pessoais,
tornando-se o sujeito necessário para habitar nesse local em que elas estavam inseridas, isto
é, pessoas alegres e que para isso ignoram as suas dificuldades e passado. No entanto, vale
destacar, que essas personagens se encontravam no único espaço cabível a elas, pois, elas
fazem parte de uma camada subalternizada e negligenciada pelo sistema, além disso, é essa
casa que oferece a essas mulheres o suporte que elas precisavam para enfrentar o nocivo
sistema capitalista e patriarcal em voga na sociedade ludovicense.
A maneira que essas personagens se apresentam na obra deixam claro as influências
do sistema machista e patriarcal, a exemplo disso está a descrição da personagem Charlote
que no romance é apresentada como uma mulher devassa em que “duas da tarde é seu
horário matinal, porque a noite foi feita para massacrar as ruas e inunda-las de escuro,
esconder os pecados de Charlote” (BRAGA, 2013, p. 14), além disso, é destacado o fato da
personagem “ter que se loucamover lenta e dolorosamente por entre os matizes da

604
Anais

depressão; o alheio, o olhar alheio, o sentir alheio” (BRAGA, 2013, p. 16). Como se pode
observar nos trechos apresentados essa personagem é descrita como uma pecadora que
precisa lidar constantemente com o julgamento das outras pessoas da sociedade. Nesse
aspecto é relevante pensar no que o sistema sexista espera do comportamento de uma
mulher, Saffioti destaca que

A mulher foi socializada para conduzir-se como caça, que espera o “ataque
do caçador”. [...] Como o homem foi educado para ir à caça, para, na condição
de macho, tomar sempre a iniciativa, tende a não ver com bons olhos a
atitude de mulheres desinibidas, quer para tomar a dianteira no início do
namoro, quer para provocar o homem na cama, visando com ele manter uma
relação sexual. (SAFFIOTI, 2004, p. 27).

De acordo com o que foi exposto por Saffioti, torna possível compreender a razão de
uma mulher como Charlote ter que lidar com constantes julgamentos sociais, pois, suas
atitudes não coincidem com a ideia de mulher casta, pura e passiva do sistema
moderno/colonial de gênero. Além disso, essa personagem é descrita como pecadora, pois,
a religião cristã desempenhou um papel fundamental para formação do conceito de gênero
ainda em voga hoje, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica - compêndio, pecado “é
uma palavra, acto ou um desejo contrário à lei eterna (S. Agostinho). É uma ofensa a Deus,
na desobediência a seu amor”, nesse aspecto a Bíblia se tornou o manual a ser seguido por
todos na sociedade e levando-se em conta que ela ordena que “a esposa esteja sujeita ao
marido, de modo que, se ele não for obediente à palavra, seja ganho sem palavras, por meio
da conduta de sua esposa, por ter sido testemunha ocular de sua conduta casta junto com
profundo respeito”4, como se pode observar, com base nesse manual, a mulher tem como
principal função na sociedade cristã a submissão ao marido, a castidade e o respeito ao
homem. Com base nessa ideia faz sentido Charlote ser considerada uma pecadora,
principalmente por se referir a uma mulher sexualmente ativa e de muitos amores.
Outro aspecto abordado na obra é relação das personagens Charlote e Raná no que se
refere a maternidade, pois, ao passo que a primeira é incapaz de se “enternecer com a
gargalhada de uma criança” (BRAGA, 2013, p. 19), a outra “quer porque quer ter um filho”
(BRAGA, 2013, p. 19). É interessante pensar nessas duas formas de se abordar a relação da
mulher com a maternidade, pois, para a sociedade machista e patriarcal “os ideais de
feminilidade [...] baseiam-se no princípio de que as relações de família, notadamente

4
1 Pedro 3: 1, 2

605
Anais

casamento e maternidade, são a fonte da realização de uma psique feminina normal”


(SCHAWANTES, 2006, p. 9,10), ou seja, nessa sociedade vigora o princípio que a mulher se
realiza apenas na família e no ambiente doméstico, a partir do casamento e da maternidade;
conceitos esses que a autora Jorgeana Braga desconstrói ao apresentar personagens
femininas com diferentes pontos de vistas nesse respeito. Isso é especialmente notável, pois,
para o sistema moderno/colonial de gênero as mulheres são tidas apenas como “objetos da
satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas
reprodutoras” (SAFFIOTI, 2004, p. 105), isso demonstra que o papel da mulher é reproduzir,
sendo assim Charlote não cumpre o que é esperado dela.
No romance também é abordado o fato da maternidade ser condicionada a condição
de esposa, isso fica claro na declaração da narradora de não saber para que nem de quem
Raná quer ter esse filho, pois, ela é uma mulher solteira e de vários amores. Nesse aspecto
Oyèwumí destaca que na família nuclear “a mãe identidade dominante das mulheres, é
subordinada à esposa”. (OYÈWUMÍ, 2020, p. 99), com base nisso pode-se perceber a quebra
da lógica patriarcal, levando-se em conta que Raná quer ter esse filho embora não tenha
marido.
Com base na análise dessas personagens do romance A Casa do Sentido Vermelho é
possível conclui que embora o sistema machista e patriarcal do sistema moderno/colonial
de gênero imponha seus conceitos de sujeitos ideais, esses conceitos não se referem a uma
verdade universal. Além disso, os corpos que não seguem essas imposições tendem a sofrer
as consequências sendo marginalizados e subalternizados pelo sistema, esse ponto explica
as reflexões da narradora a respeito de Charlote “mesmo hoje a vejo nua andando pela praia
totalmente inclusa na paisagem desolada da cidade, arrebentada até os dentes. É possível
compreender que Charlote era assim, necrotrágica” (BRAGA, 2013, p. 14). É interessante
destacar que esse trecho da narrativa se passa após a venda da Casa, uma vez que essa
personagem estava sem o local que serviu de abrigo para ela, o resultado foi a total exclusão
do convívio social e isso fez com que ela ficasse “arrebentada até os dentes”.

COSIDERAÇÕES FINAIS

No romance A Casa do Sentido Vermelho a autora Jorgeana Braga utiliza suas


personagens para apresentar as consequências para a mulher que não concorda com a lógica
colonial, cabendo a ela apenas uma condição de subalternidade. Além disso, a autora

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Anais

demonstra que as verdades universais impostas à mulher se configura como uma farsa, pois,
nem todas elas encontram a felicidade no ideal de mulher para o sistema moderno/colonial
de gênero, isto é, a mulher branca, heterossexual, cristã e relegada ao espaço doméstico.
Esse trabalho se focalizou, sobretudo, no efeito do patriarcado na escrita feminina e
como é trabalhado no romance A Casa do Sentido Vermelho a ideia da mulher pecadora por
ter uma vida sexual, além disso, a desconstrução feita por Jorgeana Braga da maternidade
como o ideal de felicidade da mulher.

REFERENCIAS

"Catecismo da Igreja Católica - Compêndio". Vatican, 2005. Disponível em:


<<https://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendi
um-ccc_po.html>>. Acesso em: 15 de jun. de 2022.

- Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. Cesário Lange, SP: Associação Torre de
Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.

BRAGA, Jorgeana. A Casa do Sentido Vermelho. São Luís: Pitomba, 2013.

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HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais.
1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

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XX. Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura, UFRJ, 2014.

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Américo: tessituras de gênero e vivencia artística. In. FERREIRA, Maria Mary (org).
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Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1. ed. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020.

LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In. HOLLANDA, Heloisa Buarque de.


Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2020.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos


conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. In. HOLLANDA, Heloisa
Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1. ed. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020.

607
Anais

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Entrepalavras, Fortaleza, v.1, n. 1, p. 129-138, ago/dez 2011.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2004.

SCHAWANTES, Cintia. Dilemas da representação feminina. Rev. NIESC, vol. 6, 2006.

608
Organização dos Anais

Sobre os Organizadores

Algemira de Macêdo Mendes


Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (1993),
Mestrado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco (2002), Bolsista de
Produtividade do CNPQ-2 - Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2006) com estágio de doutorado sanduíche em Coimbra-PT (2005). Realizou estágio de Pós-
Doutorado, (CAPES) na Universidade de Lisboa em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Professora Associada IV - da Universidade Estadual do Piauí- Professora Emérita da Universidade
Estadual do Maranhão. Atua no PPGL das duas IES. Coordena o Núcleo de Estudos Literários
Piauienses -NELIPI, NELG e Membro do Comitê Institucional de Pesquisa da UESPI, Conselho
Editorial das revistas Pesquisa em Foco (UEMA) e Letras em Revista/UESPI, Membro do conselho
editorial da EDUESPI. Membro do CLEPUL-Universidade de Lisboa. Bolsista de produtividade da
UEMA. PT em experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Feminina, História da
Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura brasileira, Literatura Piauiense,
Literatura de autoria feminina, Literatura Africanas e Africanas de Língua Portuguesa e História da
Literatura.

José Henrique de Paula Borralho


Possui graduação em História pela Universidade Federal do Maranhão (1997), mestrado em História
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) e doutorado em História pela
Universidade Federal Fluminense (2009). Atualmente é membro da associação de pesquisa
jacarandá da Universidade de Genova, professor permanente do mestrado em letras da Universidade
Estadual do Maranhão, professor adjunto IV da Universidade Estadual do Maranhão e coordenador
programa pós-graduação em letras da Universidade Estadual do Maranhão. Tem experiência na área
de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando principalmente nos seguintes
temas: literatura e história/, literatura maranhense, literatura, literatura, filosofia, teoria e literatura,
contemporaneidade, gêneros. Bolsista Produtividade UEMA

Josenildo Campos Brussio


Pós-Doutorado em Turismo, pelo PPGTUR (Programa de Pós-graduação em Turismo) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob a supervisão da professora Titular Maria
Lúcia Bastos Alves. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2012), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (2008), Bacharel em Direito
pela Universidade Federal do Maranhão (2012) e Licenciado em Letras Português/Inglês e
respectivas Literaturas pela Universidade Estadual do Maranhão (1998). Professor Associado II do
Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia do Centro de Ciências de São Bernardo, da
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE-UEMA), da Universidade Estadual do Maranhão. Professor colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras-UEMA), da Universidade Estadual do Maranhão.
Professor colaborador do Curso de Turismo do Centro de Ciências de São Bernardo, da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Meio Ambiente,
Desenvolvimento e Cultura (GEPEMADEC) e coordenador da linha de pesquisa 1: "Imaginário,
cultura e meio ambiente". Líder do LEI (Laboratório de Estudos do Imaginário) e coordenador da
linha de pesquisa 1: "Imaginário, símbolos, mitos e práticas educativas". Participa da "REDE DE
PESQUISA EM TURISMO RELIGIOSO NO NORDESTE BRASILEIRO. Membro da Société Internationale
de Sociologie des Religions (SISR). Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as.

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Organização dos Anais

Maria Aracy Bonfim

Professora Adjunta no Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão onde ministra


disciplinas de literaturas de língua inglesa. Líder do Grupo de Pesquisa Grifo - Estudos Literários.
Integra como pesquisadora o Grupo de Estudos Osmanianos da UnB. Atualmente é editora gerente
da Revista Littera Online; professora colaboradora no Mestrado em Letras da Universidade Estadual
do Maranhão - UEMA e pós doutoranda na Temple University, Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos
da América.

Silvana Maria Pantoja dos Santos

Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura pelo Programa de Pós-
graduação em Memória: linguagem e sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -
UESB (PROCAD - AM/CAPES). Doutorado e Mestrado em Letras, área de Concentração Teoria
Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Graduação em Letras pela Universidade
Estadual do Maranhão - UEMA. Professora de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade
Estadual do Piauí - UESPI e da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, Professora dos
Programas de Pós-Graduação em Letras de ambas Universidades. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa Interdisciplinar em Literatura e Linguagem - LITERLI cadastrado no Diretório de Pesquisa
do CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos de Paisagem nas Literaturas de Língua Portuguesa
e do Grupo de Estudos sobre o Espaço na Literatura - TOPUS. Atua nas linhas de pesquisa da
Literatura e suas interfaces com o espaço, a cidade e a memória. Pesquisadora CNPq/Edital Universal.
Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.

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Organização dos Anais

Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade


Estadual do Maranhão (EdUEMA).
ISBN: 978-85-8227-276-3.

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