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"Os conteúdos dos artigos publicados são de total responsabilidade dos autores e autoras."
FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
GOVERNADOR DO ESTADO
Carlos Orleans Brandão Júnior
REITOR
Prof. Dr. Gustavo Pereira da Costa
VICE-REITOR
Prof. Dr. Walter Canales Sant’ana
COMISSÃO ORGANIZADORA
Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes
Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho
Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio
Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim
Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Dra. Adriana Aparecida De Figueiredo Fiuza (UEL/UNIOESTE)
Profa. Dra. Alexandra Santos Pinheiro (UFGD)
Profa. Dra. Algemira de M. Mendes (UESPI /UEMA)
Profa. Dra. Ana Mafalda Leite – Universidade de Lisboa
Prof. Dr. André Rezende Benatti - UEMS/UFMS
Prof. Dr. Carlos André Pinheiro – UFPI
Profa. Dra. Elisabete da Silva Barbosa - UEBA
Prof. Dr. Elter Manuel Carlos – Universidade de Cabo Verde
Profa. Dra. Lucilene Machado Garcia Arf - UFMS
Profa. Dra. Joana Darc Rodrigues da Costa - CESTI/UEMA
Prof. Dr. Jorge Fernando Jairoce – Universidade Pedagógica de Maputo
Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho - UEMA
Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio - UFMA
Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa – UFMA
Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim -UFMA
Profa. Dra. Maristela Kirst de L Girola – UNISINOS
Profa. Dra. Marta Francisco de Oliveira - UFMS
Prof. Dr. Roberto Francavilla – Universidade de Genova
Prof. Dr. Sidney Barbosa - UnB
Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos – UEMA/UESPI
Profa. Dra. Tereza Maria Alfredo Manjate – Universidade Eduardo Mondlane –
Maputo
Apresentação
A Organização.
Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura,
Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades
Sumário
LITERATURA, INSÓLITO FICCIONAL E IMAGINÁRIO: RELATOS DE 9
PESQUISAS, DESAFIOS E PERSPECTIVA
Carlos Ribeiro CALDAS FILHO (PUC-Minas)
Josenildo Campos BRUSSIO (UFMA)
RESUMO
1 Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em seu Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião. Research Associate ("Pesquisador Associado")
do Departamento de Teologia e Religião da University of Pretoria (Universidade de Pretoria), África
do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa GPPRA - Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte
- certificado junto ao CNPq.
2 Professor Associado II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia do Centro de
Ciências de São Bernardo, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras-UEMA), da Universidade Estadual do Maranhão.
Líder do LEI (Laboratórios de Estudos do Imaginário) da UFMA/São Bernardo. E-mail:
josenildo.brussio@ufma.br.
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Anais
ABSTRACT
The present text presents reports of research carried out in the field of literature of the
unusual in its multiple faces with the fantastic, the strange, the wonderful, the horror, the
suspense and the fictional. This is a theoretical-expository article, with a descriptive-
bibliographic character, divided into two parts: in the first, we portray the theoretical-
conceptual plan on the literature of the fantastic and the fictional unusual in the discussions
of de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière (2009) and Filipe Furtado (2009), without
refuting the contributions of Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani
(2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), among others ; in the second, we
carry out a synthesis of the main theoretical and critical proposals and innovations about the
field of the fictional unusual presented at the thematic symposium Literature, Fictional and
Imaginary Unusual of the I International Colloquium of Literary Theory and Criticism and II
National Meeting of Literature, Memory and Subjectivity: displacements and identities,
promoted by the Postgraduate Program in Letters, of the State University of Maranhão, on
June 08, 09 and 10, 2022. As a result, we have that the reports presented and discussed at
the symposium bring challenges and new possibilities for the studies of the fantastic and the
fictional unusual, which emerge in new perspectives, innovative perspectives,
interdisciplinary dialogues and critical-theoretical-epistemological ruptures.
PROLEGÔMENOS (IN)SÓLITOS
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Anais
Todorov (2010), Irène Bessière (2009) e Filipe Furtado (2009), sem refutar as contribuições
de Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil
(2013), David Roas (2014), entre outros.
Na segunda parte da pesquisa, realizamos uma síntese das principais propostas e
inovações teóricas e críticas sobre o campo do insólito ficcional apresentadas no simpósio
temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário do I Colóquio Internacional de Teoria
e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade:
deslocamentos e identidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade Estadual do Maranhão, nos dias 08, 09 e 10 de junho de 2022.
Vale ressaltar que o presente texto não se propõe a apresentar uma proposta teórico-
metodológica inovadora para a literatura fantástica, tampouco uma nova sistematização
sobre os estudos do fantástico; outrora, demonstra as escolhas e caminhos teórico-
metodológicos dos autores para adentrar no labirinto (CALVINO, 2009) da literatura do
fantástico.
Dito isto, pretendemos fazer um convite ao mundo do maravilhoso, do estranho, do
insólito ficcional, do fantástico a partir da experiência do evento e dos relatos que trazemos
dos debates que têm sido travados em torno do tema na atualidade, com as suas diversas
vertentes teóricas a partir das abordagens tecidas nos últimos anos por pesquisadores
brasileiros e internacionais.
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Todorov (2010) aponta que, desde o século XIX, o tema já havia sido tratado por
diversos autores e correntes (francesa, alemã, inglesa), e destaca as iniciativas do filósofo e
místico russo Vladimir Soloviov que define o fantástico como “um fenômeno estranho que
pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A
possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico” (p. 16) e pelo autor inglês
especializado em histórias de fantasmas, Montague Rhodes James, como “uma porta de saída
para uma explicação natural, , mas teria que adicionar que esta porta deve ser o bastante
estreita como para que não possa ser utilizada” (p. 16), além da concepção alemã de Olga
Reimann que afirma: “O herói sente em forma contínua e perceptível a contradição entre os
dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele mesmo se assombra ante as coisas
extraordinárias que o rodeiam” (idem).
Para o teórico búlgaro, o fantástico caracteriza-se pela hesitação, vacilação comum ao
leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da “realidade”.
Dessa maneira, o gênero fantástico “mais que ser um gênero autônomo, parece situar-se no
limite de dois gêneros: o maravilhoso e o estranho” (TODOROV, 2010, p. 24), resultando em
novos subgêneros literários como o fantástico-maravilhoso e o fantástico-estranho.
Apesar da densidade dos argumentos de Todorov para uma teoria do gênero
fantástico, há autores que versam outra linha de pensamento, como Filipe Furtado (2009),
David Roas (2014) e Irène Bessière (2009).
Filipe Furtado (2009) postula o meta-empírico como um modo que abarca uma
heterogeneidade de textos e gêneros por intermédio de um fator que lhes é comum: o
sobrenatural, integrando o conto de fadas, o gótico, o maravilhoso, o estranho, a ficção
científica e outras modalidades e o insólito ficcional. Neste ponto, opõe-se a Todorov
ampliando o entendimento do que vem a ser o campo da ficção insólita que pode abranger
tanto o sobrenatural “quanto outras que, não o sendo, também podem parecer insólitas e,
eventualmente, assustadoras” (FURTADO, 2009, p. 2). Para o teórico português, “todas elas,
com efeito, partilham um traço comum: o de se manterem inexplicáveis na época de
produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus
princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva” (idem).
Gama-Khalil (2013) observa que, para os dois teóricos, Todorov e Furtado, “no
fantástico, ocorre a permanência da hesitação/ambiguidade. Portanto, mesmo contrariando
a visão todoroviana de hesitação, Furtado chega a conclusões muitíssimo similares a ela”
(GAMA-KHALIL, 2013, p. 23). E continua: “A diferença que ele estabelece é a de que a
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Anais
permanência da ambiguidade é uma questão interna à narrativa, ao passo que, para Todorov,
a hesitação estaria também condicionada à recepção do acontecimento insólito (GAMA-
KHALIL, 2013, p. 24).
O escritor e crítico literário David Roas também discorda de Todorov sobre o critério
basilar da hesitação como caracterização do fantástico. Para o teórico espanhol, “não se trata
simplesmente de introduzir um elemento impossível (sobrenatural) em mundo parecido ao
nosso” (ROAS, 2014, p. 97), mas provocar no receptor o escândalo racional “diante da
possibilidade de que suas convicções sobre a realidade deixem de funcionar” (idem).
Para Roas (2014), o fantástico causa uma transgressão da realidade, ele atua entre
irrompendo os limites das fronteiras do intransponível, provocando o estranhamento do
real, consequentemente, desencadeando o ameaçador, o incompreensível, o medo, a
inquietude, por fim, essa ameaça, essa transgressão se traduz no efeito fundamental do
fantástico.
Outra perspectiva crítica a obra todoroviana é apresentada pela pesquisadora Irène
Bessière, que propõe o fantástico como um modo literário, e não um gênero. Para a teórica
francesa, o fantástico não é senão um dos métodos da imaginação, cuja fenomenologia
semântica se relaciona tanto com a mitografia quanto com o religioso e a psicologia normal
e patológica, e que, a partir disso, não se distingue daquelas manifestações aberrantes do
imaginário ou de suas expressões codificadas na tradição popular. O fantástico pode ser
assim tratado como a descrição de certas atitudes mentais” (BESSIÈRE, 2009, p. 186).
Como se vê, para Bessière, o fantástico não define uma qualidade atual de objetos ou
de seres existentes, nem constitui uma categoria ou um gênero literário, mas supõe uma
lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para
o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e
do imaginário coletivo (2009, p. 186).
Apesar do engessamento genológico de Todorov em relação ao fantástico, de maneira
que a simples alteração na construção narrativa pode mudar o gênero que se realiza; para
Bessière, a simples manifestação do insólito e da incerteza na narrativa garantem a
realização do fantástico. Mesmo discordando neste ponto, ambas as teorias (Todorov e
Bessière) têm em comum o insólito, pois é necessária a manifestação, no plano narrativo, de
algo que fuja às regras convencionais da racionalidade própria do senso comum (GARCIA,
2011).
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Roas. Por fim, na quarta parte, dedica-se à “Teoria e crítica no Brasil”, com os textos de Paes
e Rodrigues, que datam dos anos 80 do século passado.
Como se vê, a literatura fantástica é um vasto campo de estudos, com diversas
abordagens teóricas no Brasil e pelo mundo. Mas não se pode negar que desponta como um
gênero (TODOROV, 2010) ou modo (BESSIÈRE, 2009) literário profícuo e prolixo que ainda
proverá muitos debates e discussões no campo da teoria e crítica literárias.
16
Anais
Azevedo Neto; 6 - FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA
LIBERTA, apresentado por Roman Lopes; 7 - AS AVENTURAS DE BAMBOLINA -
LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE IMAGENS, apresentado por Júlio César Lima
Fernandes, André Luís de Araújo.
No segundo dia, prosseguimos com as apresentações: 8 - CONSCIÊNCIA E CORPO
DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO NO CONTO “SONO”, DE HARUKI MURAKAMI,
apresentado por Vitor Yukio Ivasse Alves, Elizete Albina Ferreira; 9 - COUP D'OEIL
CIENTÍFICO: UMA ANÁLISE DAS NARRATIVAS DE BERILO NEVES À LUZ DO MARAVILHOSO-
CIENTÍFICO, apresentado por Irismar Lustosa Rocha, Daniel Castelo Branco Ciarlini; 10 -
AMÉRICA LATINA É O QUINTAL: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A SOLIDÃO A PARTIR DA
REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM ÚRSULA EM CEM ANOS DE SOLIDÃO, DE GABRIEL
GARCÍA MÁRQUEZ, apresentado por Fábio Júnior Vieira da Silva; 11 - O SI-MESMO COMO
OUTRO EM EXCERTOS SELECIONADOS DE EDWARD LEAR E QORPO-SANTO, apresentado
por Fernanda Marques Granato; 12 - INSÓLITAS METAMORFOSES NA LITERATURA: O
FANTÁSTICO EM “AÇUDE”, DE ROBERTO BELTRÃO, apresentado por Ivson Bruno da Silva;
13 - “PRECISO ESCONDER O QUÃO DURO É O ABRAÇO DE FERRO DA DOR”: OS ESTÁGIOS
DO LUTO VIVENCIADOS POR WANDA MAXIMOFF NA SÉRIE WANDAVISION (2021),
apresentado por Vitor Hugo Sousa Oliveira, Renata Cristina da Cunha).
Os debates realizados no Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e
Imaginário nos apontaram que os temas do fantástico, do insólito ficcional caminham por
novas perspectivas interdisciplinares. Muitos trabalhos utilizaram como base teórica-
referencial os textos de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière, David Roas (2014), Flávio
Garcia (2007), Filipe Furtado (2009), entre outros; e teceram diálogos com a psicanálise de
Freud, as fenomenologias das imagens poéticas de Gaston Bachelard, as estruturas
antropológicas do imaginário de Gilbert Durand, a geografia humanista fenomenológica de
Yi Fu Tuan, o duplo de Otto Rank e Edgar Morin, só para citar algumas das abordagens que
sustentaram as teses apresentadas.
Por isso, a proposta do simpósio temático trilhou uma abertura entre a literatura e
fantástico, sem abrir mão da intersecção entre o fantástico e o imaginário. Para Calvino
(1990), Balzac teria sido um dos primeiros escritores a tratar as questões do fantástico, ao
citar que “Para todas essas singularidades, o idioma de hoje só encontra uma palavra: é
indefinível.” (p. 82), aproximando-as do campo do imaginário: “Admirável expressão, que
resume toda a literatura fantástica; ela diz tudo o que escapa às percepções precárias de
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Anais
nosso espírito; e quando a colocais sob os olhos de um leitor, ele se vê lançado no espaço
imaginário...” (p. 82).
Vemos em Balzac a dificuldade em situar, pelas palavras, o universo que
caracterizamos como literatura fantástica. A palavra “indefinível” conduz a esfera do
“indizível”, aquilo que não podemos nomear, por desconhecimento ou incapacidade
linguística, mas que possui existência própria no espaço-tempo.
Para Maciel (2013), “esses elementos insólitos não possuem ligação fixa ou
verdadeira com a realidade e são responsáveis por despertar o imaginário do leitor, fazendo
com que ele sinta a estranheza dos fatos e ao mesmo tempo não busque reminiscências na
realidade para explicá-los” (p. 43).
Como dissemos na seção anterior, a relação entre o imaginário e o fantástico é
estreita, uma linha tênue, conforme aparece nas palavras de Todorov: “ou se trata de uma
ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação” (2010, p. 15), ou de Bessière: “o fantástico
não é senão um dos métodos da imaginação (2009, p. 186), enfim, temos a concretização
desse efeito.
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“pensar o fantástico, já no século XXI, obriga a repensar as categorias, em sentido lato, que
de sua literatura participam” (p. 8). Por essa, razão entendemos que as discussões sobre o
fantástico ou insólito ficcional são emergentes e ainda terão muito a nos oferecer neste início
de milênio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. In: Revista
Fronteiraz, vol. 3, nº 3, Setembro/2009. [p. 185 – 202].
__________. Rapidez. In: Seis Propostas Para o Próximo Milênio: lições americanas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 43-67.
CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2014.
CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Tripadalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
GAMA-KHALIL. A literatura fantástica: gênero ou modo? In: Terra roxa e outras terras –
Revista de Estudos Literários, Volume 26, Dezembro, 2013, p. 18 -31, ISSN 1678-2054.
GARCIA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.) Vertentes teóricas
e ficcionais do insólito - Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso Internacional
Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como Questão na
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Anais
MACIEL, Lilian Lima. A BOLSA AMARELA COMO ESPAÇO DE IRRUPÇÃO DO INSÓLITO. IN:
GARCIA, Flávio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.). Vertentes
teóricas e ficcionais do insólito – Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso
Internacional Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como
Questão na Narrativa Ficcional / XI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional.
Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013. / ISBN 978-85-8199-015-6.
ROAS, David. A Ameaça do Fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014.
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MEMÓRIAS DE UMA GAROTA
ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA
ESPECIAL: O AUTO LUTO NA
OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS,
DE AYA KITO
Atos Daniel Pereira da SILVA (UESPI)1
RESUMO
Este trabalho pretende analisar, diante uma perspectiva psicanalítica literária, o luto
antecipado — também conhecido como auto luto — vivenciado por Aya Kito em sua obra
Um litro de lágrimas (2013), evidenciando os processos psíquicos no trabalho de luto diante
da perspectiva da perda iminente da própria vida após a descoberta de uma doença
incurável. Para tal, aborda-se o conceito de auto luto de RANDO (1986) e fases do luto de
KUBLER-ROSS (2008) mantendo um diálogo teórico literário entre os escritos de AYA KITO
(2013) e as ideias dos autores. A partir da seleção de trechos da obra foram levantadas
quatro categorias de análise: o diagnóstico da doença – o modo como Aya vivencia esta
situação; negação – o ser lidando com o tempo após o diagnóstico de uma doença incurável;
barganha – ideia de morte e o possível amparo religioso desta vivência; aceitação –
conformismo com a doença. Diante disso, constou-se que Aya passa pelas fases do luto, que
são compreendidas por negação, revolta, barganha e aceitação, possibilitando uma
compreensão do fenômeno investigado, assim, desvelou-se a experiência do auto luto como
uma preparação para o enfrentamento da sua morte, com toda a complexidade envolvida
nesta vivência.
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ABSTRACT
This work intends to analyze, from a literary psychoanalytic perspective, the anticipated
mourning — also known as self mourning — experienced by Aya Kito in her work A Liter of
Tears (2013), highlighting the psychic processes in mourning work in the face of the
perspective of imminent loss. of life itself after the discovery of an incurable disease. To this
end, the concept of self-mourning by RANDO (1986) and stages of mourning by KUBLER-
ROSS (2008) are approached, maintaining a theoretical literary dialogue between the
writings of AYA KITO (2013) and the authors' ideas. From the selection of excerpts from the
work, four categories of analysis were raised: the diagnosis of the disease – the way Aya
experiences this situation; denial – being dealing with time after the diagnosis of an incurable
disease; bargaining – idea of death and the possible religious support of this experience;
acceptance – conformism to the disease. Therefore, it was found that Aya goes through the
stages of mourning, which are understood as denial, revolt, bargaining and acceptance,
enabling an understanding of the phenomenon investigated, thus, the experience of self-
mourning was revealed as a preparation for facing the his death, with all the complexity
involved in this experience.
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Anais
A partir do diagnóstico, a mãe de Aya aconselha que ela registre um diário para o
médico saber como conjuntura o dia-a-dia dela e observar o quanto a doença comprometia
a vida da garota. Contudo Aya foi além, começou a externar seus pensamentos, o que a
consternava e o que pensava e sonhava para o futuro. Seu diário intitulado um litro de
lágrimas (2013) foi publicado no Japão em 1986, dois anos antes de Aya deixar o plano
material. Kito travou uma dura batalha contra a doença por mais de dez anos e embora da
desmedida dor que teve de aguentar, jamais perdeu a esperança, como corroborado no seu
diário. Na maior parte das vezes, o autor de um diário é um narrador solitário que descreve
suas vivências e experiências apenas para si mesmo (BORTOLAZZO, 2010). Mas no caso de
Aya, ela transforma lágrimas em textos que tocam muitos corações:
Tantas vezes você se perguntou: por qual motivo derramei tantas lágrimas?
E hoje eu posso responder a você minha filha. Suas lágrimas se
transformaram em palavras que acalmam muitos corações. Elas foram
capazes de notar que não estão sozinhas. Você não está mais chorando por
aí não é mesmo Aya? (KITO, 2013, p. 133).
O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que
estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de uma doença degenerativa traz consigo o
estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com tais doenças passam por
todos os estágios do processo de luto antes mesmo de falecerem.
O luto antecipatório — também conhecido como auto luto — é um fenômeno cuja
conceituação foi elaborada pelo psiquiatra alemão Erich Lindemann e cuja descoberta
ocorreu no período da Segunda Grande Guerra ao observar as esposas dos soldados que, ao
retornarem da guerra, estes tinham dificuldades de inclusão ao seu núcleo familiar, visto que
suas esposas realizavam um processo de elaboração como se, realmente, eles tivessem
morrido (FONSECA, 2012). Nesse caso, elas aceitavam a morte antes de ela, de fato,
acontecer. Segundo o psiquiatra, este processo se desenvolve em função da separação a qual
indica ou uma ameaça ou um perigo real do membro vir a falecer e não em função da morte
em si; por isso, há um pressentimento de sua finitude.
O processo de elaboração da morte é realizado a partir de cinco estágios de maneira
sucessiva e com possibilidade de variação. Conforme a psiquiatra Kübler-Ross (2008), o
enlutamento inicia na fase de negação e termina com a aceitação, entre estas duas, há a
barganha e a revolta. No processo de luto antecipatório, estes estágios seguem a mesma
23
Anais
dinâmica proposta por Kübler-Ross, no entanto, existe um estágio adicional que não há no
luto normal: a esperança. (ALDRICH, 1974 apud FONSCESA, 2012).
Rando (1986) refere-se ao luto antecipado como um conjunto de processos
desencadeados pelo paciente de uma crescente ameaça de perda é um processo de luto sobre
aspectos psicossociais vivenciados pelo paciente, no período entre o diagnóstico e a morte.
luto antecipatório pode ser entendido como o tipo de luto que antecede a perda real e
apresenta as mesmas características e sintomas dos estágios iniciais do luto normal.
É muito importante entender a diferença entre o luto, que é um fenômeno natural e
faz parte de nossas vidas, e o auto luto, que é um processo complexo. O luto é considerado
saudável como a aceitação da mudança ocorrida, tanto em relação ao mundo exterior quanto
à ausência permanente de um ente querido. Há muitos aspectos a serem considerados, mas
em geral, se há um aumento de processos de luto persistentes, bem como de
comportamentos obsessivos, é um processo de luto complexo. Os processos defensivos são
característicos do luto e tornam-se patológicos à medida que persistem e acabam se
tornando parte da vida do enlutado (KOVÁCS, 1992).
De acordo com Kubler-Ross (2008) nem todas as pessoas irão vivenciar seu luto de
maneira semelhante, na ordem que é apresentada. “Nosso luto é tão individual como nossas
vidas” (KUBLER-ROSS, 2008, p.07). Assim, uma mesma pessoa pode ir da fase da negação
para a barganha, como da barganha para a raiva e voltar para a anterior. Cada luto é único
para os humanos, com suas características e diferenças. No presente trabalho iremos focar
no luto perante a situação de possível morte vivenciada por um sujeito, nesse caso Aya,
apresentando as fases do luto nessa circunstância.
Nesse estudo, portanto, o objetivo é investigar como fenômeno de luto antecipatório
ocorre a partir da leitura dos escritos de Aya Kito (2013) e sua luta contra uma doença
degenerativa. Nesse caso, o luto antecipatório será utilizado conforme o delineado por
Kübler-Ross, pois há o contexto da doença envolvida no fenômeno de enlutamento.
MÁQUINA DO TEMPO
É notável que estudos acerca do auto luto sejam escassos quando comparados à
produção científica existente relacionada a outros quadros de saúde mental (Silva; Nardi,
2010). Assim, pode-se dizer que o tema da morte e as questões relacionadas com o mesmo
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Anais
ainda são considerados como um tabu, um tema interditado que muitas vezes é sentido como
fracasso, por profissionais da área da saúde (Costa; Lima, 2005).
Como elucidado por Kübler-Ross (2008), o estágio inicial do luto é a negação, na obra
1 litro de lágrimas, ao descobrir a doença, Aya não aceita que terá que perder sua juventude
na cama de um hospital fazendo exames e mais exames a fim de descobrir maneiras para
retardar sua doença, já que a mesma não tem cura.
Em trechos da obra Aya afirma querer uma máquina do tempo para voltar aos tempos
em que não estava doente: “Quero construir uma máquina no tempo e voltar ao passado. Se
não fosse por essa doença, eu conseguiria me apaixonar e não depender de ninguém para
viver.“ (KITO, 2013, p. 39). A ideia de voltar no tempo para Aya está atrelada ao pensamento
de não estar mais doente.
A negação de Aya parte do pressuposto de que ela teria que deixar a escola em que
estuda para fazer parte de uma escola especial, já que a sua doença avança de maneira
acelerada:
Faltam 4 dias até o fim das aulas. Parece que por minha causa, todos estão
segurando mil garças de papéis. A imagem deles segurando-os com tanto
esforço, guardarei no fundo dos meus olhos para que eu nunca esqueça,
mesmo estando separados. Mas eu queria que dissessem: Aya, não vá. (KITO,
2013, p. 50).
Além da ocorrência de que mudar para uma escola especial para pessoas com doenças
degenerativas era como um atestado de invalidade para Aya, o fato de seus colegas de classe
estarem mais preocupados com as provas finais, ocasionava a sensação de rejeição e
desdenho, acarretando na intensificação desse processo de negação.
LÁGRIMAS DE REVOLTA
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Anais
Eu gosto do som das bolas ecoando no ginásio, da sala quieta depois da aula,
da paisagem que se vê da janela, do piso de madeira do corredor, das
conversas em frente à sala de aula, gosto de tudo. Talvez eu só esteja
incomodando, talvez eu não esteja ajudando ninguém, mesmo assim, eu
quero ficar aqui. Afinal, aqui é o lugar onde estou. (KITO, 2013, p. 101).
LÁGRIMAS E DEUS
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Anais
Por qual motivo eu estou vivendo? Aonde devo ir? Apesar de não conseguir
respostas, se escrevo, meus sentimentos melhoram. Estou à procura de
muitas mãos, mas não consigo alcançá-las, não consigo percebe-las, apenas
sigo em direção à escuridão, apenas ouço minha voz que grita sem
esperanças. (KITO, 2013, p. 79).
A barganha é a última etapa do luto, nesse estágio o enlutado ainda tem expectativas,
trazendo para a situação de Aya, uma garota doente, a perspectiva de um diagnóstico de
melhora ou até mesmo cura ainda era esperado pela mesma.
UM LITRO DE LÁGRIMAS
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Anais
nem meu corpo.” (KITO, 2013, p. 143). Aya entende que não pode fazer nada, apenas olhar
para o futuro com a esperança de dias melhores.
Como elucidado aqui, Kubler (2008) destacou um estágio suplementar que não há no
luto normal, a esperança. Esse estágio não consiste especificamente na esperança pela cura
de um câncer, doença auto-imune ou degenerativa como no caso de Aya, mas sim na
esperança de partir desse plano material da melhor forma possível. “O que tem de mais em
cair? Você pode se levantar de novo. Quando você cai, aproveite ao máximo a chance de olhar
para cima e ver o céu. Você o verá se espalhando infinitamente acima de você e sorrindo para
baixo. Sorria, você está vivo!" (KITO, 2013, p. 142).
A esperança de Aya a essa altura da vida não era regida pela expectativa de uma
possível cura e sim pela apreciação de pequenas coisas da vida. “Quando você acha que as
coisas são difíceis, essa é a hora que você está amadurecendo como pessoa. Se você superar
a escuridão, um novo dia maravilhoso virá.” (KITO, 2013, p. 159). A esperança de Aya
sustentava-se nos elementos da natureza, como o céu e as flores “Se eu fosse uma flor, minha
vida seria um botão. Esse começo de juventude quero guardar sem arrependimentos.” (KITO,
2013, p. 121). E também em alguns sentimentos como o de amadurecimento.
28
Anais
revolta, barganha, aceitação e por fim a esperança no caso de pacientes com doenças
incuráveis.
O auto luto é um tempo vultoso, pois aparelha o paciente desvincular os elos que ele
tem em sua vida e permitir uma melhor compreensão da ideia de deixar o plano material. É
um compromisso que o sujeito deve assumir para aprender a conviver com a realidade da
morte. A análise das categorias permite afirmar que o sujeito no mundo é um indivíduo
único, repleto de possibilidades subjetivas e formas concretas de perceber, viver e vivenciar
a realidade. A partir da ideia de estar morrendo, nascem às palavras de Aya que uma das
formas que a mesma enxerga de encarar a morte.
A existência é sinalizada por possibilidades existenciais. O homem é um indivíduo de
probabilidades alcançadas durante a existência. Após receber o diagnóstico, Aya surgiu com
significados distintos baseados em seu tempo e modo de existência. Diante da finitude da
experiência e da possibilidade de morte, Aya exibe comportamentos distintos em sua
experiência de auto luto. Com isso em mente, considera-se importante o aprofundamento de
pesquisas relacionadas a essa temática envolvendo aqueles que passam por uma doença
incurável e tem que elaborar o auto luto da própria morte.
REFERÊNCIAS
Costa, J., & Lima, R. (2005). Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem
sobre o cuidado à criança/adolescente no processo de morte e morrer. Revista Latino-
Americana de Enfermagem, 13(2), 151-157. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0104-11692005000200004. Acesso em: 25 mai. 2022.
29
Anais
KITO, A. 1 Litro de Lágrimas: Diário da Aya. Tradução: Karen Hayashida. São Paulo:
NewPOP, 2013.
RIBEIRO, Lohana. Filosofia de vida que prega a relação harmoniosa entre o homem e a
natureza. In: XINTOÍSMO. Brasil: Educa mais Brasil, 2018. Disponível em:
https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/religiao/xintoismo. Acesso em: 25 maio 2022.
Silva, O., & Nardi, E. Luto pela morte de um filho: utilização de um protocolo de terapia
cognitivo-comportamental. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 2010. 113-116.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-81082010000300008. Acesso: 25 mai.
2022.
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O FLÂNEUR, O MITO E O
OUTRO MUNDO
POSSÍVEL, EM DESEJO DE
KIANDA, DE PEPETELA
Adriano Guedes CARNEIRO (UFF)1
RESUMO
Esta comunicação tem como objetivo analisar O desejo de kianda (1996), do escritor
angolano Pepetela, sob a perspectiva de que o mesmo discute a construção do mito como
forma de recuperar os rumos da revolução/independência angolana. A kianda é o espírito
das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do Kinaxixi, bem
na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e cortaram a mafumeira, a sua árvore
sagrada. No romance, observamos esta força intemporal buscando recuperar seu território,
como força da natureza em face da cultura humana. Kianda precisa colocar abaixo os prédios
para recuperar seu lugar. As disputas políticas e a retomada da guerra civil, entre o MPLA –
Movimento pela Libertação de Angola e a UNITA – União Nacional pela Independência Total
de Angola – não importam, perante a força do espírito ancestral de kianda. A personagem
Carminda incorpora a transformação política do MPLA que, de movimento socialista passou
em 1992 para a defesa da economia de mercado, após o naufrágio da União Soviética. E seu
marido, João Evangelista é uma espécie de flanêur tecnológico que, mesmo no auge da sua
observação, não consegue perceber o que está acontecendo à sua volta. Aguarda, como todos,
calmamente a queda inevitável de seu prédio, como metáfora do fim do mundo em que todos
aguardam pacientemente nas suas rotinas, enquanto o mundo é destruído. Para tanto se
31
Anais
ABSTRACT
This communication aims to analyze The desire of kianda (1996), by the angolan writer
Pepetela, from the perspective that he discusses the construction of the myth as a way of
recovering the paths of the Angolan revolution/independence. Kianda is the spirit of the
waters of Kaluanda mythology and who inhabits the ancient Lagoa, and today Largo do
Kinaxixi, right in the central region of Luanda. From Lagoa, he passed to Largo and they cut
down the mafumeira, his sacred tree. In the novel, we observe this timeless force seeking to
recover its territory, as a force of nature in the face of human culture. Kianda needs to tear
down the buildings to regain her place. Political disputes and the resumption of civil war
between the MPLA – Movement for the Liberation of Angola and UNITA – National Union for
the Total Independence of Angola – do not matter, given the strength of the ancestral spirit
of kianda. The character Carminda embodies the political transformation of the MPLA, which
changed from a socialist movement in 1992 to the defense of the market economy, after the
sinking of the Soviet Union. And her husband, Joao Evangelista, is a kind of technological
flaneur who, even at the height of his observation, cannot perceive what is happening around
him. He calmly awaits, like everyone else, the inevitable collapse of his building, as a
metaphor for the end of the world in which everyone waits patiently in their routines, while
the world is destroyed. For that, it uses the thought of Aby Warburg, Walter Benjamin, George
Didi-Huberman, Maria Thereza Abelha Alves, among others.
-, nas sociedades bantu, na maioria ágrafas, “os responsáveis por registrar e recontar, quando
necessário, informações valiosas e historicamente relevantes com precisão” (FOURSHEY et
al, 2019, p. 79). Entre uma gama de atividades e competências dentro do grupo comunal, eles
ofereciam coesão, senso de pertencimento e explicação sobre as questões fundamentais que
os envolviam, mantendo vivas as chamas da tradição. Tal como, guardadas as devidas
proporções, faz Pepetela em sua escrita, que tem o compromisso permanente com o
processo de construção de Angola.
Perambulando entre o factum e o fictum, o vencedor do Prêmio Camões de 1997 é o
autor de uma obra vasta e diversificada. Alguns dos seus principais textos versam sobre
acontecimentos relevantes para a história angolana, inspirados em fatos e eventos que o
próprio escritor testemunhou, ou poderia ter testemunhado, como por exemplo, em
Mayombe (1979), onde guerrilheiros, na região de Cabinda, debatem as dificuldades da luta
e do futuro país a ser construído, ou em Geração da utopia, em que também se discute o
processo de independência, mas cobrindo um tempo histórico maior (1961-1992), desde a
CEI – Casa dos Estudantes do Império até o desencantamento com os rumos da libertação
nacional2. Nestes livros, suas memórias pessoais transformam-se em ficção, pois eles
acompanham o trajeto de vida de Pepetela. O escritor foi para Lisboa com o fim de estudar
Letras, mas abandonou o curso e ingressou no MPLA – Movimento Popular para Libertação
de Angola; graduou-se em Sociologia, na Argélia e participou da guerra de independência.
Após o 11 de novembro de 1975, fez parte do governo até 1982, tendo sido vice-ministro da
Educação3, por sete anos. Passou, então, a lecionar na Universidade Agostinho Neto e
dedicou-se à carreira literária. Foi presidente e um dos fundadores da União dos Escritores
2 Geração da utopia centraliza seu enredo em um grupo de angolanos que se conhecem em Lisboa,
em razão, principalmente, da Casa de Estudantes do Império. Esta que de fato teve um papel muito
importante no processo de construção da independência de Angola. Essa “geração da utopia”, da qual
Pepetela também fará parte, é aquela que tomará parte ativa na luta pela libertação, mas também é
aquela que se desencantará com os rumos da independência e a impossibilidade de realização dos
ideais utópicos. Interessante é o significado do termo “utopia”, oriundo do livro de Thomas Morus, A
utopia, como algo que está sempre à frente; algo que buscamos. Se o alcançarmos, deixa de ser utopia
e só é utopia porque nunca o alcançamos e está sempre à nossa frente.
33
Anais
Angolanos. E em 2002 recebeu o Prêmio Nacional de Cultura e Artes, pelo conjunto da obra,
em Angola4.
Em O desejo de kianda, não há a definição do que é a kianda. Sabemos que ela é o
espírito das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do
Kinaxixi, bem na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e, do momento em que
ocorre a narrativa, faz trinta anos atrás, por volta de 1966, cortaram a mafumeira, a sua
árvore sagrada. No livro no máximo são dadas algumas pistas e até uma conceituação
negativa, quando está presente a forte crítica à colonização, porque kianda não é uma sereia:
Foi a colonização que destruiu o país. Ela retirou a alma da nação, alterou tudo e virou
o país de pernas para o ar. Aliás, usando outro elemento da cultura bantu: o cágado. Se ele
está de pernas para o ar é que o mundo saiu da sua ordem, virou de pernas para o ar.
Maria Thereza Abelha Alves, em “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, chama a
atenção para o fato de que somente a criança, Cassandra, e o mais velho, Kalumbo6, dão-se
5 País virado de pernas para o ar pode remeter ao cágado virado de pernas para o ar como símbolo
de que a ordem natural da coisa está ferida, conforme A gloriosa família – o tempo dos flamengos.
“Subvertia a ordem do mundo, punha o cágado de patas para o ar? Como um cágado de patas para o
ar ficou o meu dono, quando o major o chamou, uma semana depois, para lhe comunicar uma decisão
que tinha tomado, com a anuência de Hans Molt” (PEPETELA, 1997, p. 172).
6 Ver o texto de Maria Thereza Abelha Alves: “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, presente em
Portanto...Pepetela (2009), p. 179 e seguintes.
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Anais
conta do que realmente está acontecendo com os prédios que estão caindo, ao longo do livro.
Kianda quer retomar a velha Lagoa, onde havia uma mafumeira e que agora é o Largo do
Kinaxixi:
Ali perto devia ser o sítio onde há trinta e tais anos derrubaram a mafumeira
de Kianda, quando construíram a praça. Toda aquela zona fora uma lagoa e
havia uma mafumeira7 que foi cortada e chorou sangue pelo cepo durante
uma semana. Ouviu a estória um dia, ali mesmo numa esplanada do Kinaxixi,
quando se sentou com o maior respeito à mesa onde se encontravam dois
escritores, Luandino Vieira e Arnaldo Santos, grandes sabedores das coisas
de Luanda8 (PEPETELA, 1995, p. 26).
Na sana de recuperar a antiga lagoa que agora é o Largo do Kinaxixi9, Kianda porá
abaixo todos os prédios construídos ao redor. As pessoas, os seus móveis e todas as
quinquilharias que possuem não desabam, mas flutuam até o chão.
Tudo isso acontece, em Luanda, em meio ao ligeiro processo de paz e à retomada, em
1992, da guerra civil, entre o MPLA – Movimento Popular pela Libertação de Angola e a
UNITA- União Nacional para a Independência Total de Angola.
A Guerra de Independência em Angola que começou em 1961 com a invasão da cadeia
de São Paulo por integrantes da UPA – União dos povos de Angola para libertar presos
políticos e se estendeu até 1974, quando a Revolução dos Cravos em Portugal fez cessar o
conflito armado. Em 11 de novembro de 1975, em Luanda, foi proclamada a Independência
por Agostinho Neto, líder do MPLA. O MPLA tinha um matiz socialista e recebia apoio de
Moscou e dos países do leste europeu. A independência foi contestada por outros grupos
como a UNITA e a FNLA – Frente Nacional para a Libertação de Angola e o país mergulhou
em guerra civil até 2002, quando houve assassinato do líder da UNITA, Jonas Savimbi, pondo
fim ao conflito.
7 A mafumeira, sumaúma ou samaúma (Ceiba pentandra) é uma planta tropical da ordem malvales
e da família malvaceae (antiga bombacaceae).
8 Linda essa passagem em que são convocados os dois escritores angolanos como detentores do
conhecimento e guardadores de memória. Fortalece a noção de que os escritores cumprem um papel
social como os antigos griots, como guardadores das antigas estórias.
9 Lagoa do Kinaxixi que ainda presenciamos em A gloriosa família – o tempo dos flamengos.
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10 Pepetela brinca com um certo gosto por siglas com o uso de CCC.
11 Será que os prédios caem como metáfora da abertura democrática, como desabitação e fim do
sonho da revolução angolana?
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Anais
Tanto que o pensador berlinense aponta a linha de produção, auge do capitalismo industrial,
reivindicada pelo taylorismo (Criado pelo engenheiro norte-americano – e muito estudado
ainda em Administração de Empresas – Frederick Taylor, o chamado taylorismo é o sistema
em que se procura obter o máximo de produção gastando o mínimo tempo e esforço. Está
normalmente associado ao fordismo, relativo a John Ford, o criador da marca de automóveis.
Representa o auge do capitalismo industrial que transformará o operário – retirando-lhe
ainda mais sua humanidade – em uma máquina, como tão bem retratado no filme “Tempos
modernos” (1936) de Charles Chaplin) como a grande inimiga da flânerie.
Para Benjamin o flâneur desafia as vertentes do capitalismo, entre elas a pulsão pelo
consumismo, pela aquisição de bens, traduzida na ideia de que o tempo deve ser dotado de
utilidade e portante estimado em capital, como produção, como que a dizer: “Produza,
produza, produza!” grita o capataz olhando para o seu relógio12, enquanto o proletário labuta
até o próximo sinal da fábrica. Pois “time is money” diz o jargão atualíssimo. O flâneur, por
lado diametralmente oposto, na inutilidade da sua observação13, da sua atividade
contemplativa permanente, desafia a modernidade. Imóvel na sua condição queloniana, não
liga ao tempo, permanece apenas apreciando, olhando, assistindo, sem produzir
necessariamente utilidade (pelo menos segundo a ótica capitalista). Ainda que o flâneur
sinta-se atraído pelas luzes das galerias, das vitrinas, das passagens.
Em O desejo de kianda, Pepetela parece também nos dizer que existem forças
maiores do que a da conjuntura política, da organização social, por exemplo. São forças
ancestrais, muito antigas e que não devem ser desafiadas. São forças anteriores ao homem.
É a desmistificação do mito, dando-lhe uma localização histórica. A kianda é a representação
de uma Angola anterior à colonização. Pepetela também nos diz que não será somente o
elemento português que definirá os angolanos como angolanos, mas que seriam angolanos
com ou sem a chegada portuguesa (ou qualquer outro nome). Os portugueses são apenas
mais um elemento e não o fundamental. Pepetela manifesta assim uma tentativa de ruptura,
12 A concepção de controlar o tempo como ideia de poder aparece XV, das Teses sobre o conceito de
história (1940) de Walter Benjamin: “Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa
consciência se fez valer. Chegando o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos
de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres”
(BENJAMIN, 2016, p. 250).
13 Evidentemente, sob a ótica capitalista, toda a observação e agir do flâneur é inútil, pois não produz
mercadoria, não produz riqueza. É tempo perdido.
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Anais
e de independência cultural, em face a uma cultura, digamos, lusófona. Ou, pelo menos,
procura se posicionar neste espaço lusófono em uma posição de menor submissão. Os países
colonizados do sul estão eternamente condenados a reproduzirem para o mundo a sua
condição subalterna ad infinitum?
É possível ainda pensar junto com George Didi-Huberman e Aby Warburg na ideia de
Nachleben que, embora construída num contexto histórico preciso: o do Renascimento do
quatrocento europeu. No entanto, associando-a à ideia de sobrevivência podemos
analogicamente aplicar à ideia de kianda, como sendo uma ideia que sobreviveu ao
colonialismo português. Diz Didi-Huberman:
Hoje tornamos a nos debruçar sobre essa ideia porque ela nos parece trazer
uma lição teórica apropriada para “refundar”, por assim dizer, alguns
grandes pressupostos de nosso saber sobre as imagens em geral. (…) O valor
geral da Nachleben resulta de uma leitura e, portanto, de uma interpretação
de Warburg: recruta apenas a responsabilidade de nossa própria construção
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 59).
14 Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del Cossa foram pintores. Ao passo que Poliziano e Picco della
Mirandola foram respectivamente draumaturgo e filósofo renascentistas. Referimos esses autores
como aqueles que tiveram textos ou obras publicadas por Warburg durante a sua vida.
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Anais
refazer, para consertar todos os problemas e a outra questão é: por que as personagens
continuam com suas vidas normalmente enquanto o seu mundo em redor está sendo
destruído? Preocupação ambiental do autor, já que em nossa vida real também parecemos
assistir impávidos à destruição do nosso mundo?
REFERÊNCIAS:
ALVES, Maria Thereza Abelha. “O desejo de kianda: crônica e fabulação”. In CHAVES, Rita.
MACEDO, Tânia. Portanto…Pepetela. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução por Sérgio Paulo Rouanet. Revisão técnica por Márcio Seligmann-Silva.
Obras Escolhidas. Volume I. 8ª edição. 3ª reimpressão. São Paulo, Editora Brasiliense, 2016.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização por Willi Bolle. Tradução por Irene Baron,
Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. 1ª reimpressão. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2019.
WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. Volume 1. Tradução por Cássio
Fernandes.
39
LITERATURAS AFRICANAS
PÓS-COLONIAIS: TENSÕES
ENTRE AS VISÕES DE
MUNDO DO COLONIZADOR E
DO COLONIZADO NAS
ESTÉTICAS DE LUANDINO
VIEIRA, GERMANO ALMEIDA
E MIA COUTO
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO)1
RESUMO
A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa impressão
que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um período
marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, conforme
Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2010), a pós-colonialidade não surge necessariamente
com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta da mesma forma
nos diferentes países desse continente. Uma vez que não existe um único modelo de sujeito
e de discurso pós-colonial, é preciso considerar as especificidades (geográficas, históricas,
culturais, econômicas e sociais) a partir das quais os enunciadores se apoiam para proferir
discursos de afirmação identitária. Tais especificidades, gestadas nas tensões próprias a cada
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Anais
comunidade, podem ser observadas como pano de fundo das distintas realidades ficcionais
construídas por Luandino Vieira, Germano Almeida e Mia Couto. Posto isso, o presente
trabalho tem por objetivo refletir sobre narrativas (“A fronteira de asfalto”, “O dragão do
Atlântico” e “A viagem da cozinheira lagrimosa”) escritas pelos autores citados,
considerando a diferença na representação das figuras do colonizador e do colonizado.
Rompendo com os estereótipos criados e reproduzidos sobre a África pelos europeus, as
obras selecionadas para objeto de estudo revelam o desejo de livrar as culturas e as
identidades africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da
construção de um olhar crítico sobre a realidade local que denuncia as mazelas produzida
pela longa dominação do branco colonizador.
ABSTRACT
The word “post-colonial”, thought in its most immediate sense, can give the false impression
that the resulting concept deals with a critical tendency born in a period marked by the end
of colonialism and that establishes a new order. However, according to Susana Pimenta and
Orquídea Ribeiro (2010), post-coloniality does not necessarily arise with the political
independence of African nations, nor does it manifest itself in the same way in the different
countries of that continent. Since there is no single model of post-colonial subject and
discourse, it is necessary to consider the specificities (geographic, historical, cultural,
economic and social) from which enunciators rely to convey discourses of identity
affirmation. Such specificities, gestated in the specific tensions specific of each community,
can be observed as a background to the different fictional realities constructed by Luandino
Vieira, Germano Almeida and Mia Couto. Having said that, the present work aims to reflect
on narratives (‘A fronteira de asfalto’, ‘O dragão do Atlântico’ and ‘A viagem da cozinheira
lagrimosa’) written by the aforementioned authors, considering the difference in the
representation of the colonizer and of the colonized. Breaking with the stereotypes created
and reproduced about Africa by Europeans, the works selected as object-matter of this study
reveal the desire to free African cultures and identities of colonialist images, discourses and
interpretations through the construction of a critical look at the local reality which
denounces the ills produced by the longstanding domination of the white colonizer.
A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa
impressão que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um
período marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, como
bem observam Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2013), a pós-colonialidade não surge
necessariamente com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta
da mesma forma nos diferentes países desse continente. Os efeitos do colonialismo, diga-se
de passagem, estão presentes ainda nos dias de hoje, posto que os antigos colonizadores
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vigorava o apartheid. Conforme Zoraide Silva (2016, p. 173-174), houve inclusive momentos
em que a elite branca local se organizou com o objetivo de implantar no país uma “solução ‘à
rodesiana’”, que nada mais era que uma cópia do regime segregacionista instaurado na
Rodésia do Sul. De acordo com a pesquisadora, vencer o colonizador em um momento
marcado pela divisão do mundo não foi suficiente: “a guerra civil sobreviveu à própria
Guerra Fria. Seus desdobramentos, infelizmente, continuam a afetar a Angola dos dias de
hoje” (SILVA, 2016, p. 179).
Germano Almeida, por sua vez, parece abordar a tensão entre colonizador e
colonizado, buscando reforçar certa necessidade de defesa da identidade nacional
caboverdiana. A crônica “O dragão do Atlântico”, publicada em Estórias Contadas (1998), é
um exemplo dessa postura, uma vez que o texto ironiza uma suposta tentativa de aculturação
por uma nova nação, a chinesa, em um momento em que Cabo Verde, independente, buscava
se inserir dentro da nova ordem mundial. Em determinado trecho, lemos:
...as nossas casas foram sobressaltadas por uma rouca e sedutora voz que
diretamente dos estúdios da Rádio Nacional nos comunicava a ruidosa
novidade de que o nosso pacato arquipélago estava em breve destinado a ser
o “Hong Kong de África”. Assim surpreendidos por tão afrontosa ameaça, a
nossa imaginação entrou em imediato pânico coletivo. Por que Hong Kong
se já somos Cabo Verde? perguntávamos. (ALMEIDA, 1998, p. 28)
Na citação fica evidente a certeza de uma identidade nacional com contornos bem
estabelecidos. É importante assinalar que Cabo Verde, diferentemente de outras nações
africanas marcadas por disputas internas entre grupos étnicos, não teve grandes
dificuldades em alcançar certa coesão identitária no pós-independência, uma vez que a
mestiçagem entre brancos e negros ocorreu em larga escala durante a colonização e
viabilizou a ascensão social da população mestiça (MARTINS, 2009, p. 47). Diante de um
passado recente regido pelo colonizador europeu, o narrador da crônica se recusa a aceitar
a possibilidade de uma nova tentativa de dominação nos planos econômico, político e
cultural. Rejeitando a figura do dragão chinês, o cronista apresenta a tartaruga como símbolo
da cabo-verdianidade:
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bem com as pretas, descobre-se apaixonado pela gorda cozinheira proveniente do litoral,
onde a maresia faz farfalhar as folhas dos coqueirais. Na sequência dos acontecimentos,
Antunes convida Felizminha para viajar, sem avisar-lhe o destino. A empregada aceita, ainda
que temorosa da ideia de habitar uma terra de branco. O desfecho do conto é de uma beleza
tão singela quanto o tempero atribuído à personagem:
No conto, não é o negro que precisa se encaixar na realidade e nos modelos do branco
europeu, mas este que busca fazer do território africano o seu lar, adaptando-se, em prol do
coletivo. Juntos os dois encenam a metáfora do povo moçambicano. Na literatura de Couto,
toda ela produzida no pós-colonialismo, há a defesa de um pensamento mestiço (PIMENTA;
RIBEIRO, 2010). Portanto, a refundação de Moçambique, enquanto nação independente, não
implica no retorno mítico a uma África primitiva destituída do elemento branco e sem o
conflito identitário. Não por acaso esse modo de estruturação da sociedade aparece na ficção
do escritor.
Segundo Marçal Paredes (2014), a instauração de um partido único (a Frelimo) no
período da primeira república foi decisiva para a construção de uma identidade nacional
menos fragmentada, haja vista a diversidade de comunidades tribais existentes em
Moçambique. Devido aos conflitos étnico-raciais, a identidade moçambicana não se apoiou
em um retorno às origens, às identidades tribais, mas numa recusa tanto destas últimas,
quanto do legado do colonizador. Nesse sentido, restava apenas olhar para o futuro e tentar
traçar uma identidade nova, focalizando o vir a ser do país (PAREDES, 2014, p. 146). No
conto de Mia Couto, a viagem de núpcias empreendida pelo sargento e pela cozinheira condiz
com essa tentativa de unificar as classes e construir um novo espaço social.
Por muito tempo, a historiografia da África foi pensada por um prisma europeizante,
de base iluminista, que condenou os países desse continente a uma história periférica, um
apêndice, em relação àquela maior, tida por universal. Nesse contexto, os valores do velho
mundo europeu (tais como a hierarquização social em classes e o uso da escrita para
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documentar a história nacional) foram empregados para a análise das sociedades africanas,
resultando na desqualificação de todas as culturas, tidas como tribais e incivilizadas. Dado
esse olhar negligente, mal intencionado e mal balizado em termos de teoria crítica, a África
passou a ser tratada como um país uniforme e atrasado ao invés de ser pensado como o
continente rico e plural que de fato é. Somente após o século XX, com a ascensão dos
discursos pós-coloniais e o surgimento da intelectualidade africana, as mistificações em
torno do território africano começam a ruir. As obras dos escritores mencionados aqui são
uma amostra dessa tendência, pois revelam esse desejo de livrar as culturas e identidades
africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da reescrita de suas
próprias narrativas nacionais pelas mãos dos filhos da terra.
REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MARTINS, Amarilis Barbosa. Relações entre Portugal e Cabo Verde antes e depois da
independência. 2009. 115 f. Dissertação (Mestrado em Espaço Lusófono: Lusofonia e
Relações Internacionais) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2009.
SILVA, Zoraide Portela. Guerra colonial e independência de Angola: o fim da guerra não é o
fim da guerra. Transversos, Rio de Janeiro, vol. 7, nº 7, p. 154-184, set. 2016.
VIEIRA, José Luandino. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
47
ENTRE A IDENTIDADE
NACIONAL E A CONDIÇÃO
FEMININA: BREVE ANÁLISE
COMPARATIVA DAS OBRAS
DE NOÉMIA DE SOUSA,
CONCEIÇÃO LIMA E ANA
PAULA TAVARES
Samira Pinto ALMEIDA (IFRO) 1
RESUMO
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constituído de nações plurais e ricas em termos de cultura, sofreu quase em sua totalidade
com os efeitos perversos do colonialismo perpetrado pelos países europeus desde o período
moderno. Na poesia das autoras, subsiste em maior ou menor grau, o grito de liberdade, o
desejo de independência (do colonizador e do patriarcado). O presente trabalho tem por
objetivo refletir sobre a produção poética das escritoras citadas, visando identificar dois
núcleos comuns: um deles, centrado na reelaboração da identidade nacional; enquanto o
outro trata da construção da identidade da mulher negra africana.
ABSTRACT
The attempt to circumscribe the characteristics that underlie the poetic and aesthetic
universe of a writer is, in itself, a complex task. This difficulty is considerably amplified when
the researcher has before him/her a work linked to a “trend” that is still controversial within
Literary Studies, as is the case of women’s writing. Despite being born surrounded by pre-
judgments, the category “female literature” has currently been used in a positive (and often
demanding) way by authors who are aware that their condition as a woman goes through
the apprehension of language and, therefore, its production. This is the case of Noémia de
Sousa (Mozambican), Conceição Lima (Sao Tome and Principe) and Ana Paula Tavares
(Angolan). These poets, when comparatively analyzed, reveal that they share the same
imagery territory, demarcated by the performance of gender and national identities. This
similarity comes not only from the shared official language, but also from the feeling of
belonging to a continent made up of plural and culturally rich nations and that suffered
almost entirely from the perverse effects of colonialism perpetrated by European countries
since the modern period. In the authors’ poetry, to a greater or lesser degree, the cry for
freedom, the desire for independence (from the colonizer and patriarchy) subsists. The
present work aims to reflect on the poetic production of the aforementioned writers, aiming
to identify two common nuclei: one is focused on the re-elaboration of national identity,
while the other deals with the construction of the identity of black African women.
KEYWORDS: Noémia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula Tavares, African Literatures in
Portuguese Language, Women’s writing.
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Anais
um momento em que seu país sofria um regime repressor, enquanto Lima e Tavares
produzem literatura no período pós-independência, nos tempos de “paz”, razão pela qual as
duas últimas poetisas já não precisam reivindicar a identidade nacional, exaltar os heróis da
terra e combater o inimigo estrangeiro (AMORIM, 2020). O período pós-colonial é marcado,
sobretudo, pela institucionalização do cânone e das estéticas de teor revolucionário. A nova
poesia revisita a memória nacional sem precisar levantar bandeiras, além de abrir o campo
literário para a experimentação estética e para a reflexão sobre outras temáticas. Assomado
a isso, a singularidade do ser mulher, em face às opressões do patriarcado, constitui um outro
ponto de contato ao qual, ouso dizer, nenhuma escritora consegue fugir, ainda que negue a
classificação de “literatura feminina” devido ao peso negativo de literatura menor
(secundária, de gueto) que tal designação recebeu e ainda recebe por parte da crítica
especializada. Ao ler a obra das autoras é possível, portanto, identificar dois núcleos comuns:
um deles, diz respeito à busca pela reelaboração da identidade nacional; enquanto o outro
trata da construção da identidade da mulher negra africana. A seguir, pretendo demonstrar
como as poetas supracitadas trabalham de forma inovadora esses aspectos.
Noémia de Sousa é considerada a mãe da literatura moçambicana, dado o caráter
fundador de sua obra, detentora de certa expressão identitária e de teor combativo. De
acordo com Petra Goricki (2018), a autora publicou o seu primeiro poema no jornal
Mocidade Portuguesa antes dos vinte anos, passando a colaborar posteriormente com o
jornal O Brado Africano, enquanto chefe responsável pela página feminina. Começou
timidamente, usando abreviaturas do seu nome e assinando com pseudônimos, sendo Vera
Micaia o mais famoso deles. Foi em Portugal, após aproximar-se de figuras centrais da luta
pela independência, a exemplo de Amílcar Cabral, que a poeta passou a criar cada vez mais
orientada pelo sentimento revolucionário. Nesse sentido, arte e política se apresentam
alinhadas no verso sousiano, servindo de combustível estético para o desejo de ver o país
livre do colonialismo. Convém lembrar que a autora teve sua única obra publicada em livro
apenas um ano antes de seu falecimento, dada a censura pela qual passava Moçambique nos
tempos de luta pela independência. Antes disso, os poemas circularam de forma esparsa em
jornais e revistas ou clandestinamente por meio de uma versão fotocopiada composta de 40
poemas (OLIVEIRA, 2008).
Sangue negro é uma obra organizada, subdividida por temáticas, a saber: Nossa Voz;
Biografia; Munhuame, 1951 (nome da cidade moçambicana onde a poeta passou parte da
vida); Livro de João (dedicado ao preso político João Mendes, amigo da autora); Sangue
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Anais
E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE (SOUSA, 2001,
[n.p.])
A leitura do poema não deixa dúvidas sobre a centralidade do papel da mulher negra
no continente, associando-a também à figura da mãe África. Em especial, a poeta denuncia
as falsas imagens (estereotipadas, exóticas) disseminadas sobre esse território pelos povos
de outros continentes, ressaltando que somente os da terra são capazes de desvendar e
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Anais
cantar os mistérios da mãe negra. Algo semelhante se verifica no poema “Sangue negro” que
se constitui como um louvor ao continente, à mãe, e denuncia as mazelas causadas pelo
colonialismo. A poeta canta a beleza de suas raízes metaforizadas no som do batuque,
reproduzido por meio de onomatopeia, e no sangue, signo relacionado ao elo familiar
(GORICKI, 2018). Os poemas citados são em verso livre, abusam da expressão oral da língua
e da mistura linguística, além de recuperar a imagem do tambor para trazer certa
ritualização ao ato de narrar as dores de seu povo tal como o faz um mestre Griot.
Por sua vez, Conceição Lima também se debruça sobre a construção identitária,
buscando revelar as marcas que definem a cultura e o povo de São Tomé e Príncipe, mas sem
incorrer nos essencialismos e idealizações. No livro A dolorosa raiz do micondó, o leitor pode
encontrar poemas que criticam o colonialismo e reverberam o canto de libertação ao mesmo
tempo em que falam das disputas internas pelo poder, a exemplo de “Anti-epopéia”:
Nesse poema, surge aos olhos do leitor a figura do chefe de uma tribo responsável por
facilitar a dominação colonial em troca de bugigangas, por ganância. Em Lima, o
pertencimento identitário está vinculado a certa nativização, diferenciando-se da vertente
que apela aos mitos ancestrais. Mais que isso, conforme Naduska Palmeira (2012), a poética
da autora não reduz a identidade aos sentimentos patrióticos, nem o feminino aos lugares
convencionais. É antes plural e diversa. Ao tratar da identidade, a poeta considera o novo
contexto do mundo globalizado, das grandes migrações, do esfacelamento do eu frente a essa
realidade transitória. Esse aspecto pode ser verificado, por exemplo, no poema “Canto
obscuro às raízes”:
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Anais
Em Libreville
não descobri a aldeia do meu primeiro avô.
[...]
O meu oral avô
não legou aos filhos
dos filhos dos seus filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido. (LIMA, 2012, p. 11-13)
No poema, o eu-lírico assinala que a filha de Kalua, chamada Magaída, embora nascida
em São Tomé, usa palavras de origem outra, demonstrando que algo das raízes permanece
mesmo quando ocorre a mistura étnica. Tal poema também nos permite observar como o
feminino é trabalhado pela poeta sem idealizações, com um olhar quase antropológico. Kalua
é uma mulher das classes baixas, cuja vida se resume a servir aos outros em silêncio. A poeta
53
Anais
faz, assim, uma crítica à opressão de gênero, humanizando a personagem que é descrita com
delicadeza. O corpo feminino, esgotado pelo trabalho, é também o corpo que gera o povo
miscigenado de Moçambique.
Já a poética de Ana Paula Tavares, quando retoma a tradição cultural, volta os olhos
para o mundo agrário da vida coletiva. Esse olhar, contudo, também não será idealizado: a
crítica à forma opressora de tratamento às mulheres nas sociedades tribais é abordada em
diferentes poemas. Tavares, em sua obra, parte de outro paradigma, diferente do da tradição
que ora precisava combater o colonialismo e o Estado opressor, ora refundar os valores
nacionais de seu povo, para tanto buscando uma compreensão identitária e cultural
unificadora e ancestral. Em Ritos de passagem, a poeta se vale de metáforas de frutos para
tratar de uma realidade concreta, cotidiana, campestre: os ciclos da vida, o amor, as crianças,
a liberdade, enfim, aspectos que caracterizam as sociedades pastoris. O erotismo e o amor
também são abordados a partir dessa realidade local, rural. Ao escolher retratar as vivências
das mulheres do meio rural e dar voz aos pastores do sul, Tavares reestabelece a
humanidade do corpo social, contestando as representações estereotipadas vinculadas a
essa parte da população e valorizando sua cultura. A sensualidade, inerente à escolha das
imagens, é a marca do poema “A abóbora menina”:
Acima, o leitor pode encontrar um exemplo significativo da estética da autora que fala
do corpo erotizado feminino a partir de elementos da natureza. O próprio título já sinaliza a
fusão: a menina é como a abóbora, guarda segredos em seu ventre jovem e redondo, onde
futuramente os rapazes desaguarão. Nesse sentido, Tavares rompe com o imaginário da
mulher purificada, impedida de perceber o próprio corpo e seus desejos eróticos. É também
comum na poesia de Tavares a referência a signos caracterizados pela cor vermelha (o vinho,
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REFERÊNCIAS
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LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó: poesia. São Paulo: Geração Editorial, 2012.
NUNES, Fernanda Cardoso; LIMA, Maria Graciele de. Uma poética dos sentidos na obra de
Gilka Machado e de Ana Paula Tavares. Cacto, Petrolina, vol. 1, nº 1, p. 79-91, 2021.
OLIVEIRA, Jurema José de. A poética e a prosa de: Alda Lara, Noémia de Sousa, Ana Paula
Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades
XXV, Petrolina, vol. 7, nº 25, p. 71-78, 2008.
PALMEIRA, Naduska Mário. As ilhas sob a pele da linguagem: a poética de Conceição Lima.
In: Colóquio Internacional São Tomé e Príncipe numa perspectiva interdisciplinar,
diacrónica e sincrónica, 2012, Lisboa. Anais...Lisboa: IUL, 2012. p. 383-391.
SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001.
TAVARES, Ana Paula. Amargos como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
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O ROMANCE NÃO
ESTÁ MORTO: A
METAFÍSICA
NIVOLESCA
UNAMUNIANA COMO
RESPOSTA À
DESUMANIZAÇÃO DA
ARTE DE GASSET
Walter Pinto de OLIVEIRA NETO (UFMA)1
Márcia Manir Miguel FEITOSA (UFMA)2
RESUMO
1 Graduação em Letras pela UEMA. Mestrando em Letras pela UFMA. Pesquisador do grupo de
pesquisa TECER (UEMA) e POLIFONIA (UFMA). Bolsista CAPES. E-mail:
walteroliveira16@outlook.com.
2 Graduação em Letras pela UNICAMP. Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) e Doutorado em
Letras (Literatura Portuguesa) pela USP. Atualmente é Professora Titular do departamento de Letras,
Bolsista de Produtividade do CNPq - nível 2 e docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em
Cultura e Sociedade e PG-Letras da UFMA. E-mail: marcia.manir@ufma.br.
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Anais
O seguinte trabalho aborda o embate filosófico e estético entre dois dos pensadores mais
importantes da modernidade: Miguel de Unamuno (1864-1936) e José Ortega y Gasset
(1883-1955). No começo do século XX, Gasset argumentava que o gênero se encontrava
numa crise sem antecedentes, sendo, com isso, iminente sua extinção. Para Unamuno, pelo
contrário, o romance ainda podia e devia sofrer mutações benéficas no âmbito estético e
metafísico. Nesse sentido, objetivamos confrontar tais perspectivas: uma que sugere a
remodelação radical de todas as manifestações artísticas da cultura por meio de uma
desumanização em que o sujeito e sua tentativa de transcender à imanência devem ser
erradicadas; e a outra, que humaniza a arte, mais concretamente a arte romanesca, a tal
ponto de dar-lhe às personagens uma roupagem autosubjetiva sem as interferências
próprias de seu autor. A fim de fundamentar nossa pesquisa, valemo-nos de alguns textos
desses pensadores em que expõem suas ideias sobre o romance (GASSET, 1982; UNAMUNO,
2009); estética (GASSET, 1986); comentadores (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); e romances
que ilustram ambas as teorias (UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). A partir dos suportes
supracitados, constatamos que a novela unamuniana, nomeada pelo autor e alguns críticos
de nivola, expressa algumas inovações tanto no aspecto estético como filosófico,
demostrando que o romance se abre em par a novas possibilidades criativas no século XX.
ABSTRACT
The following paper discusses the philosophical and aesthetic clash between two of the most
important thinkers of modernity: Miguel de Unamuno (1864-1936) and José Ortega y Gasset
(1883-1955). At the beginning of the 20th century, Gasset argued that the genre was in an
unprecedented crisis, and that its extinction was imminent. For Unamuno, on the contrary,
the novel could and should still undergo beneficial mutations in the aesthetic and
metaphysical spheres. In this sense, we aim to confront these perspectives: one that suggests
the radical remodeling of all artistic manifestations of culture through a dehumanization in
which the subject and its attempt to transcend immanence should be eradicated; and the
other, which humanizes art, more concretely the art of the novel, to the point of giving the
characters a self-subjective clothing without the author's own interferences. In order to
ground our research, we make use of some texts of these thinkers in which they expose their
ideas about the novel (GASSET, 1982; UNAMUNO, 2009); aesthetics (GASSET, 1986);
commentators (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); and novels that illustrate both theories
(UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). From the supports, we find that the Unamunian novel,
named by the author and some critics as nivola, expresses some innovations in both aesthetic
and philosophical aspects, demonstrating that the novel opens up on par with new creative
possibilities in the twentieth century.
58
Anais
A primeira vez que o termo nivola aparece no romance mais conhecido, talvez, do
autor: Niebla (1914). Nessa obra, Miguel de Unamuno experimenta processos narrativos
inovadores no romance espanhol, como o diálogo entre o autor empírico e sua personagem
no fim do enredo, a autonomia da personagem e o nivelamento das vozes do autor e do
herói/anti-herói.
Dado que o romance modernista ainda se encontrava em período de
amadurecimento, Don Miguel achou necessário modificar a nomenclatura concedida ao
gênero, anunciando, assim, que o que o leitor estava lendo não é uma novela3, mas algo
diferente, ou seja, uma nivola. Mas o que seria a nivola em si? E o que é mais importante: tem
alguma implicação prática, estética ou filosófica a nomeação de um novo gênero?
59
Anais
deus primogênito que a significou primeiro, o autor empírico, a fim de que cada romance que
leia lhe sirva para seu aprimoramento humano. Vejamos como essa ideia se funde na nivola.
60
Anais
Tula logra traspassar essa ética agônica aos seus filhos espirituais, com os quais se
perpetua uma vez cumprida sua missão terrenal:
Como presenciado no trecho acima, Tula consegue o que se propôs com tanto esforço
após desafios de várias índoles, até mesmo o de renunciar à carne. Não porque considere a
carnalidade maternal e sexual negativa, mas porque, como afirma Giménez (2011), a
materialidade espiritual, a metafísica, parece-lhe a única sublime.
Todavia, vale a pena determo-nos em outro ponto importante para entender a
ideologia do autor: La tía Tula não representa defesa alguma à castidade. Como dissemos, os
personagens que fazem parte das narrativas de Unamuno são peças que, unidas, refletem a
personalidade do autor. Assim, Tula é apenas uma das faces da identidade de seu criador,
sendo Rosa e Ramiro, que vivem mais de acordo com seus impulsos sensitivos, outra delas.
Em definitiva, La tía Tula é uma nivola pela psicologização das personagens, pelo
espaço único e simplificado – como na tragédia clássica –, pelas antíteses e oxímoros típicos
da literatura mística, e pela elipse temporal que dá ao texto a sensação de uma diegese
onírica; mas também pelo protagonismo dos personagens e seus dilemas demasiado
humanos, como se não fossem reais pela voluptuosidade do drama em que estão envolvidos,
e, ao mesmo tempo, como se fossem reais pelos dilemas existenciais que padecem, os quais
são passíveis de identificação por parte do leitor de qualquer parte do planeta.
4 “Mantinha a unidade e a união da família, e se ao morrer ela aflorou à vista de todos, fazendo-se
patente, divisões intestinais antes ocultas, alianças defensivas e ofensivas entre seus irmãos, foi
porque essas divisões brotavam da vida familiar em si que ela criou. Seu espírito provocou dissensões
e embaixo delas e sobre elas a unidade fundamental e culminante da família. A tia Tula era o cimento
e o teto daquele lar” (T.N.).
61
Anais
Unamuno chama Góngora e aos gongoristas de mentirosos por não falarem a verdade,
sendo para o bilbaíno a verdade na literatura tudo aquilo que fala da condição trágica da vida,
ou seja, a luta dialética assintética do ser com a razão e a fé.
5 “[…] Góngora não se propôs repetir um belo conto, mas inventar um belo idioma. Porém, é que há
idioma sem conto nem beleza de idioma sem beleza de conto? [...] E toda essa poesia que comemoram
[referindo-se à Geração de 27] não é mais que mentira. Mentira, mentira, mentira! O próprio Góngora
era um mentiroso” (T.N.).
62
Anais
Mais otimista foi com o vanguardismo o filósofo Ortega y Gasset. Ele soube ver com
um pouco mais de confiança as novidades artísticas provenientes dos outros espaços de
Ocidente. Considerou que a irrupção das vanguardas no cenário europeu se deu como
sintoma do esgotamento da arte moderna, a qual não tinha como seguir copiando a realidade
pela falta de realidades que copiar e pela falta de modos de copiar a realidade.
A arte moderna, segundo Gasset (1986), pecava por ancorar-se no mundo externo,
isto é, no fenômeno, e no interno, no humanizado. Essas fórmulas vigorantes durante
décadas já não satisfaziam o espírito dos jovens artistas, que buscavam revolucionar a
linguagem artística por meio de mudanças que atingissem as raízes, procurando a
contrariedade do status quo.
É a partir dessa nova filosofia da arte que Gasset formula seu famoso ensaio A
desumanização da arte (1925). Nesse texto, patenteia algumas noções basilares sobre o novo
espírito, tais como: em primeiro lugar (1), o vanguardismo aparece porque as formas
tradicionais estão rígidas, mortas, então, em lugar de criticar a novidade seus detratores,
deveriam entender o porquê da aparição dessa nova cara da arte e, ato seguido, ver seu
aspecto positivo. Em segundo (2), Ortega menciona que a arte desumanizada, mais que uma
arte em si, é uma proposta teórica, um programa que se formula no próprio produto artístico.
Assim, uma obra vanguardista é a ideia que um determinado autor vanguardista tem da obra
de arte. Em terceiro (3), entende que essa escola ainda está em evolução, precisando, por
isso, definir seus limites e borrar seus excessos para não se perder na mera intenção em
detrimento da busca pela qualidade. Em quarto (4) e último, o espectador dessa arte tem que
se adaptar às suas exigências receptivas, vê-las como opostas à realidade e não como
consequência desta (GASSET, 1986).
Partindo dessas bases, Gasset define os setes traços elementais das tendências
vanguardistas:
6 “Ao analisar o novo estilo se acham nele certas tendências sumamente conexas entre si. Tende: 1.,
à desumanização da arte; 2., a evitar as formas vivas; 3., a fazer que a obra de arte não seja senão obra
63
Anais
de arte; 4., a considerar a arte como jogo, e nada mais; 5., a uma ironia essencial; 6., a eludir toda
falsidade e, portanto, a uma escrupulosa realização. Enfim, 7., a arte, segundo os artistas jovens, é
uma coisa sem transcendência alguma” (T.N.).
7 “Preferiam reivindicar a poesia pura mais que a desumanização, ainda que tivessem semelhanças
com a estética da desrealização e da metáfora definida pro Ortega” (T.N.).
8 “Os escritores de minha geração começaram a escrever sabendo que Ortega estava ali, colocando o
olho! Implacável, irredutível” (T.N.).
64
Anais
9 “A juventude daquela época aderia à prosa de Ortega, que tinha o poder de centrar sua atenção na
forma. A forma aparecia para nós como um imperativo do que fazer...quero dizer que a perfeição da
forma, o rigor da palavra nos descobria as formas do mundo, nos fazia deter o olhar na forma, que é
o modo mais certeiro de aprofundar. A detenção na forma culmina na contemplação e imerge ou
mergulha ou escava em conhecimento” (T.N.).
10 “Intimidade expressada, uma interpretação que tira os objetos do mundo real para impregná-los
da intimidade subjetiva de um homem e de uma cultura” (T.N.).
65
Anais
impossibilidade das personagens de sair da condição ôntica. Nesse espaço árido do ente é
onde Chacel quer deixar a sós o leitor com o texto, buscando o espanto deste para com a
intranscendência que forma sua vida. Por esse motivo Sáenz (1994) denomina o texto da
autora de romance de investigação existencial.
Em La sinrazón (1960), o personagem principal, Santiago Hernández, projeta num
caderno longas reflexões a respeito do que lhe acontece. Basta dizer que são poucos os
acontecimentos padecidos, colocando mais ênfase nas projeções mentais advindas dos
fenômenos corriqueiros, sem se perder no histrionismo ou em resoluções transcendentais
típicas da nivola. O que Santiago quer, em definitiva, em palavras dele, é: “llegar al límite de
la razón, a la razón de la sinrazón. Porque la mayor sinrazón que a mi razón se hace es que
exista ese límite y que queden más allá de las fuentes de todas las cosas por las cuales la
razón se desvive” (CHACEL, 1989, p. 562).11
A sinrazón à qual ele se refere tem aproximações com a noção de arte desumanizada,
cuja procura pela suspensão do sentido da razão, seja humanizada ou da própria linguagem
artística em si, conforme sua pretensão primeira e última. Assim, encontrar a coerência
interna às coisas passa por não buscá-la, deixando-a suspensa, sendo o que são sem a
inferência de um eu/Deus que as ressignifique:
Los puntos más elevados que he llegado a alcanzar en mis explicaciones, han
sido a pretensión de poder, la petición, que haría mover las alas de la
mariposa. Esto, quiere decir, estrictamente, la respuesta. Esto significa ver a
Dios; y es sabido que no es posible verle sin morir. El golpe de audacia del
luchador es, a pesar de eso, querer verle (CHACEL, 1989, p. 576).12
11 “Chegar ao limite da razão, à razão da ‘semrazão’. Porque a maior ‘semrazão’ que cria a minha
razão é fazer que exista esse limite e que fiquem para além das fontes de todas as coisas pelas quais
a razão se desvive” (T.N.).
12 “Os pontos mais elevados que cheguei a alcançar em minhas explicações, foram a pretensão de
poder, a petição, que faria mexer as asas da mariposa. Isto, quer dizer, estritamente, a resposta. Isto
significa ver a Deus; e se sabe que não é possível vê-lo sem morrer. O golpe de audácia do lutador é,
apesar disso, querer vê-lo” (T.N.).
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seus criadores não têm coragem de expressar ou não conseguem colocar em perspectiva
senão por meio do canal comunicativo da ficção (HIDALGO, 2007).
Esse elemento teórico/filosófico é o elo mais visível entre a nivola e o romance
desumanizado, pois em ambas manifestações romanescas há uma intenção, há uma ética em
direção ao leitor. Porém, enquanto em Unamuno o autor se desdobra para dar às
personagens peças de sua consciência, em Chacel o autor desaparece a priori quando a
narrativa desumanizada inicia.
Não fica evidente, também, nos romances vanguardistas da Geração de 27 quais as
posturas que o personagem – em cuja sombra só podemos intuir abstratamente seu autor –
possui. Há, antes de tudo, o deflúvio de uma personalidade possível e ficcional, a qual é
lançada sem alicerces semânticos muito específicos, deixando ao leitor, portanto, um peso
maior no que tange à sua interação com a realidade intraliterária, o que propicia a exigência
de uma “entrega, cohesión o contribución de su propia sustancia a un trasunto de lo
contemplado” (CHACEL, 1993, p. 74).13
Esse nível de abertura não é possível na nivola, já que a aproximação de Unamuno
com o texto é maior. Isso se dá porque Unamuno considera que sua literatura é ele próprio:
“mi obra soy yo mismo que me estoy haciendo día a día y siglo a siglo” (UNAMUNO, 2009, p.
20).14 Eis o ponto decisivo de separação entre a nivola e o romance desumanizado.
Considerações finais
13 “Entrega, coesão ou contribuição de sua própria substância a uma transição àquilo contemplado”
(T.N.).
14 “Minha obra sou eu mesmo que estou me fazendo dia a dia, século a século” (T.N.).
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Anais
REFERÊNCIAS
CHACEL, Rosa. Sendas perdidas de la Generación del 27. In: Rosa Chacel. Obra completa
(III). Valladolid: Centro de estudios literarios fundación Jorgue Guillén, 1993
GASSET, José Ortega y. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza, 1982.
GASSET, José Ortega y. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética. 8. ed.
Madrid: Revista de Occidente: Alianza, 1986.
GASSET, José Ortega y. Meditaciones del Quijote. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014.
GIUSTINIANI, Eve Fourmont. Ortega y las artes. Una estética raciovitalista. Zamora Bonilla,
Javier (Dir.), Guía de Ortega, Granada, 2013, p. 293-309. Disponível em: https://hal-
amu.archives-ouvertes.fr/hal-01475050. Acesso em: 23 dez. 2020.
HIDALGO, Cora Requena. La deshumanización del arte en Rosa Chacel. Artifara, n. 7, 2007,
p. 79-86. Disponível em:
https://www.ojs.unito.it/index.php/artifara/article/view/6481/5570. Acesso em: 25 abr.
2022.
OLIVEIRA NETO, Walter Pinto de; SOUSA, Karla Cristhina Soares. A nivola como precursora
do romance metafísico: um diálogo sobre literatura entre Miguel de Unamuno e Simone de
Beauvoir. In: Anais do 8º Seminário Nacional e 2º Seminário Internacional de Língua e
Literatura: Conversas Remotas. Passo Fundo, 2020, p. 1-14.
SÁENZ, María López. La influencia de la estética orteguiana en Rosa Chacel. In: Actas del
Congreso en homenaje a Rosa Chacel, Logroño, Ed. Universidad de La Rioja, 1994, p.
107-118. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/555081.pdf. Acesso
em: 25 abr. 2022.
68
Anais
UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. 1ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009.
UNAMUNO, Miguel de. La tía Tula. 30ª ed. Madrid: Espasa Calpe, 2007.
69
MEDEIA: A ESSÊNCIA
DO FEMININO
Brenda Lima dos SANTOS (UFC)1
Yls Rabelo CÂMARA (UFC)2
RESUMO
Este trabalho é um estudo comparativo entre as duas versões mais famosas da tragédia de
Medeia: as peças de Eurípides e de Sêneca, com o objetivo de identificar as características
mais marcantes dessa personagem mitológica e elucidar que essas mesmas características
estão presentes na essência do feminino. Para além disso, fizemos, a priori, uma pesquisa de
natureza interpretativa e de abordagem qualitativa para melhor dissertarmos sobre esta
seara. Assim, constatamos que mesmo com as tentativas de marcar a personagem como uma
mulher sem escrúpulos, vilã e representante de tudo o que não deve ser seguido, o feminino
resiste e permanece, mostrando-se resiliente, ressignificando-se e atualizando
possibilidades. Destarte, o presente trabalho, pretende contribuir para que as obras
literárias que lidam com o protagonismo feminino revolucionário sejam lidas e analisadas
através de novos parâmetros, de lentes mais condizentes com a atual situação da mulher na
maioria das sociedades ocidentais, sem perder de vista a fidelidade ao tempo da narrativa, a
fim de não incorrermos em anacronismos. Para tanto, com o fito de embasar nossas
considerações, nos baseamos teoricamente nos trabalhos de Beauvoir (2019), Sousa (2013)
e Kury (2013). Concluímos que a Medeia Euripidiana carrega aspectos e críticas presentes
no interior tanto da figura feminina quanto das lutas empreendidas desde a Antiguidade
Clássica por todo ser que se identifica com o feminino. Já a Medeia senequiana demonstra
tudo o que as sociedades normalmente esperam de uma mulher e tudo aquilo que ela não
deve ser.
em Educação (Uece). Universidad de Santiago de Compostela (USC). Líder do Grupo de Estudos Filhas de Avalon
(Feclesc/Uece). E-mail: yls.camara@hotmail.com.
70
Anais
ABSTRACT
This work is a comparative study between the two most famous versions of Medea's tragedy:
the plays of Euripides and Seneca, with the objective of identifying the most striking
characteristics of this mythological character and elucidating that these same characteristics
are present in the essence of the feminine. Furthermore, we carried out, a priori, a research
of an interpretive nature and a qualitative approach to better discuss this area. Thus, we
found that even with the attempts to mark the character as an unscrupulous woman, villain
and representative of everything that should not be followed, the feminine resists and
remains, showing itself to be resilient, resignifying itself and updating possibilities. Thus, the
present work intends to contribute for the literary works that deal with the revolutionary
feminine protagonism to be read and analyzed through new parameters, of lenses more
consistent with the current situation of the woman in the majority of the western societies,
without losing sight of the fidelity to the time of the narrative, in order not to incur in
anachronisms. Therefore, in order to support our considerations, we theoretically base
ourselves on the works of Beauvoir (2019), Sousa (2013) and Kury (2013). We conclude that
the Euripidean Medea carries aspects and criticisms present within both the female figure
and the struggles undertaken since Classical Antiquity by every being that identifies with the
feminine. The Senecan Medea, on the other hand, demonstrates everything that societies
normally expect from a woman and everything that she should not be.
INTRODUÇÃO
71
Anais
METODOLOGIA
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Anais
Eurípedes está longe de ser o primeiro autor a citar Medeia em sua tragédia; as
primeiras referências à personagem foram feitas por Hesíodo, na Teogonia
(FERREIRA,1997). Segundo Hesíodo (2007), a filha do filho do sol e da virgem do Oceano,
Medeia, nasceu subjugada ao amor, graças a Afrodite. A tragédia de Eurípedes, Medeia, é
muito mais reflexiva e crítica do que a de Sêneca no sentido de olhar para a figura do
feminino, já que ele consegue ressaltar a singularidade da alma feminina. Dessa forma, a
personagem do tragediógrafo tem como características a inteligência, o amor, a força, a
culpa, a solidão, a resistência de ir contra tudo aquilo que era exigido dela e o sofrimento que
é ser mulher desde o nascimento – aspectos que definem o ser feminino desde a gênese da
sociedade.
Podemos perceber isso em uma longa fala da personagem, na qual ela expõe toda a
carga de sofrimento que carrega por causa de seu sexo desde o nascimento, além de falar
sobre o dote pago para servir a um marido que não escolheu, correndo o risco ainda de ser
repudiada:
[...] Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as
mais sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar,
assim, um dono, a nosso corpo - mal ainda mais doloroso que o primeiro.
Mas o maior dilema é se ele será mau ou bom, pois é vergonha para nós,
mulheres, deixar o esposo (e não podemos rejeitá-lo). (KURY, 2013, p. 217).
73
Anais
Assim, ela se vê sozinha, sendo acusada de crimes que cometeu em nome do marido, para
ajudá-lo, exilada, sem família e com a proibição de partir com os filhos. Dessa forma, uma
outra característica do feminino demonstrado por Medeia, no ato do filicídio, é a compaixão.
Ela tinha o conhecimento de como funcionava a vida dentro da Corte, sabia como os
filhos do primeiro casamento seriam vistos depois que os herdeiros reais nascessem: eles
seriam os bastardos, rejeitados, uma ameaça que deveria ser eliminada. Se não por isso, os
primeiros filhos seriam acusados dos crimes cometidos pelos pais, uma vez que a mãe não
estaria presente para ser julgada, devido ao exílio, e o pai, marido da princesa, não seria
acusado de nenhum crime; seriam condenados à morte.
Medeia viu que os filhos já estavam mortalmente feridos. Dessa forma, ela viu “[...] a
necessidade de permitir que a morte venha aos que estão morrendo.”. (ESTÉS, 2018, p.17).
Ela demonstrou a sua compaixão nesse ato, inspirada pelo arquétipo da mulher selvagem3,
irmã dos lobos. Ela foi dotada de uma força e grande resistência, demonstrando a profunda
intuição na preocupação com seus filhos, sua matilha. Medeia se adaptou às circunstâncias
com uma determinação feroz e uma coragem extrema.
Em Sêneca, a preocupação em criticar ou refletir sobre a sociedade não está muito
presente, até porque seu foco era difundir o Estoicismo, corrente que acreditava que o
homem deveria se submeter à razão e buscar sempre seguir um caminho equilibrado em
busca da virtude. Então, para ele, o excesso de amor, ódio e desejo de vingança de Medeia
fazem dela um exemplo de tudo o que é ruim e que não deve ser imitado: “[...] uma Medeia
rejeitada pelo marido e parceiro sobrepõe-se a figura desamparada do ser humano que
perdeu a justificação de sua vida.”. (GALDINO, 2008, p. 442).
Por isso, segundo Sousa (2013), a personagem principal pode ser caracterizada como
intrépida, desafiadora, vingativa, impulsiva e absoluta. Dessa forma, não há críticas em
relação à forma como ela foi tratada, mas Sêneca ressalta, mesmo que inconscientemente, o
poder da retórica de Medeia, que consegue não só convencer Jasão de que o perdoou e que
3 Segundo Estés (2018), a mulher selvagem é definida como [...] a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a
intuição, a vidência, é a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a continuarem a
ser multilíngues: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão, da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela
deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pelo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem
as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la. (...) Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito
tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Os pássaros que nos contam segredos pertencem a
ela. Ela é a voz que diz: ‘Por aqui, por aqui’. (p.27)
74
Anais
acredita que a decisão dele é correta, como consegue convencer o rei de que precisa de mais
um dia antes de partir, dia esse no qual consolida a sua vingança.
Esse domínio do discurso que ela possui causa um amedrontamento nos homens,
inclusive no rei, que ao perceber a inteligência de Medeia e a forma como ela conduz suas
conversas, atribui aspectos negativos à figura do feminino que contesta e pensa. Os
comentários de Creonte comprovam o que afirma Beauvoir (2019) sobre a visão que a
sociedade machista tem sobre o feminino que se rebela contra o que lhe é imposto:
A Medeia senequiana não se ocupa nem se preocupa em falar de sua condição como
feminino, diferentemente do que encontramos na tragédia de Eurípedes. Nessa peça, o foco
é a vingança. Contudo, podemos encontrar muito da essência do feminino nessa Medeia,
principalmente em relação ao desejo de mostrar o seu valor, indo contra tudo o que era
esperado dela; Medeia não se deixa quebrar, mesmo sendo privada de seu pai, pátria e reino,
deixada sozinha numa terra estrangeira (SOUSA, 2013, p. 43).
O Feminino
Ao longo da História, “[...] a mulher sempre foi, se não a escrava do homem, ao menos
sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições [...]”
(BEAUVOIR, 2019, p. 17). Por esse motivo, tudo de ruim que acontece(u), desde os
primórdios dos tempos, foi, vem sendo ou é atribuído às mulheres. Elas carregam, desde
antes de seus nascimentos, o peso de serem as que desviam, as pecadoras, as que seduzem,
as bruxas.
Sendo assim, a sociedade planta na consciência feminina que elas devem pagar a sua
penitência buscando a aceitação masculina. Logo, elas aprendem, desde o primeiro alento,
que devem obedecer sem questionar; se ousarem ir contra essa regra sofrerão as
consequências: rejeição, abandono e exílio. Sem embargo, o que essa sociedade esquece é
que o feminino nasce sabendo que sua caminhada será solitária independentemente do que
fizer. O verdadeiro lar feminino “[...] é a floresta virgem, emaranhada e sem trilhas; um
75
Anais
campo nevado onde até as marcas dos pés dos passarinhos sumiram. Aqui nós vamos
sozinhas e achamos até melhor.”. (WOOLF, 2014, p. 137).
Medeia se vê nessa floresta quando é informada sobre o abandono de Jasão. Ao invés
do que era esperado, a aceitação, ela mostra a sua firmeza e força, expondo que o verdadeiro
significado de força não é ter músculos bem exercitados, fama de herói e que,
definitivamente, a força não é um atributo apenas masculino:
Perder o marido, na sociedade grega da época, para uma mulher, era o fim de sua vida
social, uma vez que “Somente através do matrimônio a mulher grega conquistava o seu lugar
social: primeiro como esposa do cidadão, e em seguida como mãe, ao gerar filhos legítimos
para a comunidade em que vivia.”. (Maria Regina CÂNDIDO, 1996, p. 232). Assim, Medeia
demonstra, ao resistir, o arquétipo da mulher selvagem que é/está presente no ser feminino,
provando que a passividade, esperada como algo biológico da mulher, não passa de um
destino que tentam lhe impor (BEAUVOIR, 2019).
Consequentemente, olhar para a personagem trágica de Medeia não é ver apenas uma
personagem louca, vingativa, assassina ou uma mãe desnaturada. Pelo contrário: olhar para
ela é ver o destino de todo ser feminino, arrancada de sua família e pátria, iludida, submissa
por amor. Medeia conheceu o sofrimento e amadureceu com ele. Ela prova que a essência
feminina é a força, a coragem, o amor, a dor e, principalmente, a resistência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Anais
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2019.
CÂNDIDO, Maria Regina. Medeia: ritos e magia. Phoinix. v. 2, n. 1, p. 229-234, jan. 1996.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/phoinix/article/view/35533/19639
Acesso em: 05 de jan. 2022.
DUTRA, Enio Moraes. O mito de Medeia em Eurípedes. Letras. v.1, n.1, p. 66–75, jan. 1991.
Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11403 Acesso em: 05 de
jan. 2022.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da Mulher Selvagem. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
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Anais
FERREIRA, Luísa de Nazaré. A fúria de Medeia. Humanitas. v. XLDC, n.49, p. 61-84, 1997.
Disponível em:
https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas49/04_Ferreira.pdf
Acesso em: 05 de jan. 2022.
GALDINO, Marcelino. Medeia. Revista Eutomia. v. 1, n. 02, p. 440-45, dez. 2008. Disponível
em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1967 Acesso em: 05 de
jan. 2022.
KURY, Gama. O melhor do teatro grego: edição comentada: Prometeu acorrentado, Édipo
rei, Medeia, As nuvens. Rio de Janeiro: Clássicos Zahar, 2013.
SOUSA, Ana Alexandra Alves de. Sêneca: Medeia. Coimbra: Annablume, 2012.
WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros Ensaios. Cosac & Naify: São Paulo, 2014. p.
133-147.
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O GRITO E A DOR DOS
EXCLUÍDOS NAS BATALHAS
DE POESIA (SLAM POETRY):
UMA ANÁLISE DA
PERFORMANCE DA
TRAVESTI BIXARTE
Rian Lucas da SILVA (IFPB) 1
Hermano de França RODRIGUES (UFPB) 2
RESUMO
1 Graduado em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pelo Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). rian.lucas@academico.ifpb.edu.br.
2 Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
Professor Adjunto III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e do Programa de
Pós-Graduação em Letras (UFPB). hermanorg@gmail.com.
79
Anais
ABSTRACT
Slam Poetry, customarily (re)known only as 'slam', is a manifestation of spoken poetry that
is no longer restricted to the academic space, but migrates, above all, to the streets and
outskirts of cities, configuring itself , therefore, as a branch of marginal/peripheral literature.
In this (re)modeling of poetry, various subjects – commonly invisible and relegated to
obscurity and oblivion – have space and voice to (trans)form their own experiences, pains
and existences into art, or rather, into poetry. In this sense, the present study aims to analyze
the spoken poetry of Bixarte, artistic name of Bianca Manicongo, from Paraíba, winner of the
Slam Resistance, in the 2021 edition, with the aim of verifying the way in which the poet
incorporates, in her speech, a discourse of resistance by highlighting the social relations
faced by a transvestite in an extremely archaic and prejudiced society. Methodologically, we
carried out, firstly, the transcription of his poetry, which occurs in a spoken form on video
via the YouTube platform, to the written text; then, we started the analysis from the already
transcribed text. For the analyses, we rely on several studies by authors that include, for
example, Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) and D’Alva (2014). Finally, we
demarcate the importance of poetry battles as forms of marginal/peripheral literature, in
view of their aesthetic and literary capacity to shed light both on important and urgent
themes and on individuals who still remain adrift of the political and social processes of
current juncture.
Considerações iniciais
Historicamente, a poesia falada (spoken word) dos slam – fenômeno poético que se
abrangeu pela cidade de São Paulo e pelo Brasil – assume ligação – ainda que indireta, por
vezes – não somente com os aedos e rapsodos da antiga Grécia, como também com os
repentistas e cordelistas do Nordeste brasileiro (NEVES, 2017).
Assim, ao aproximar-se da canção popular e das batalhas de rap, as batalhas de poesia
se firmam enquanto uma prática coletiva e, por isso, estabelece-se no limite entre o oral, o
80
Anais
escrito e o verbal, tornando a performance do slamer – nome que se dá a quem participa das
batalhas de poesia – um elemento primordial na apresentação de seus versos. Nas
composições, não obstante abarquem uma infinidade de temáticas, é corriqueiro que os
conteúdos temáticos, que aqui podem ser entendidos como os enredos, circunscrevam
questões ligadas a pautas sociais e políticas da contemporaneidade comprometidas com a
diversidade e, sobremaneira, com a inclusão de pessoas ainda (in)visíveis, a fim de expor as
problemáticas da sociedade.
A partir disso, este estudo objetiva analisar uma poesia falada que foi a vencedora do
Slam Resistência, na edição de 2021, da artista Bixarte, nome artístico para Bianca
Manicongo. Ao tomar esse ponto de partida, analisaremos a maneira como a poeta incorpora,
em sua fala, um discurso pautado sob a resistência, pois coloca, em evidência, relações sociais
problemáticas vividas por uma travesti face a uma sociedade ainda transfóbica.
De forma metodológica, realizamos, em primeira instância, a transcrição de sua
poesia – que se apresenta de forma falada em vídeo postado na plataforma YouTube – para
o texto escrito; logo em seguida, iniciamos, assim, a análise em torno do texto escrito. Nesse
sentido, partimos, então, de uma pesquisa de caráter qualitativo de vertente bibliográfica-
interpretativa, pautada, teoricamente, em estudos de autores diversos, dentre os quais
citamos: Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) e D’Alva (2014).
Em último prisma, acreditamos que o presente estudo pode colaborar de forma
positiva aos estudos de gênero e, acima de tudo, de literatura tida como marginal/periférica,
pois realça e lança luz a respeito de sujeitos travestis que ainda sofrem com as mazelas
históricas e que, além disso, são relegados ao silenciamento, à opressão e, por vezes, até
mesmo à morte.
81
Anais
É válido frisar que, de acordo com Neves (2017), o termo “slam” é uma onomatopeia
da língua inglesa usada para significar o som de uma batida de porta ou janela. A autora ainda
ressalta que esse termo pode ser comparado à nossa “pá”, em língua portuguesa. Ademais,
esse termo também pode se referir às etapas finais de torneios de, por exemplo, baseball,
tênis, bridge e basquete.
De todo modo, o que se sabe é que a onomatopeia foi emprestada, inicialmente, por
Marc Kelly Smith – trabalhador de construção civil e poeta – para nomear o Uptown Poetry
Slam, evento de cunho poético surgido em Chicago, por volta de 1984 (NEVES, 2017).
Já no Brasil, por outro lado, Roberta Estrela D’Alva, atriz, diretora musical,
pesquisadora, apresentadora de programa infantil na TV Cultura e slammer3 brasileira, foi a
responsável por trazer, de acordo com Neves (2017), o “Poetry Slam”, mais especificamente
em dezembro de 2008, ao fundar o ZAP! Slam, em São Paulo. Para ela, pode-se conceituar o
Poetry Slam de amplas maneiras, a saber:
Sob uma nova linha de pensamento, também é plenamente cabível associar o evento
dos slams a um mecanismo de “arena”, pois, nesses espaços, discursos poéticos se
“digladiam” (NEVES, 2017). Em virtude disso, expressões do slam possuem a capacidade de
tensionar práticas que se intercalam, a exemplo das marcas culturais, orais, escritas e visuais
e, sendo assim, tais expressões situam-se no limite entre a literatura, a música, a arte e, acima
de tudo, o ativismo social (FREITAS, 2020).
Outro fator que não pode ser desconsiderado é o de que, para além de cenários
acadêmicos e elitistas, o slam chega às praças, às escolas, às escadas de prédios e a marcantes
espaços de circulação pública (ALVES; SOUZA, 2020). Freitas (2020) corrobora do mesmo
pensamento ao destacar que a poesia, nas batalhas de slam, deixa o ambiente acadêmico e
abandona, portanto, os modelos tradicionais de curadoria e de produção de sentido na
82
Anais
medida em que flerta com a canção popular e, assim, torna-se prática coletiva que se
estabelece entre o oral e o visual, tornando a performance um elemento primordial. Nesse
diapasão, Alcade (2016) até arrisca dizer que, na contemporaneidade, a capital paulista
conta com 25 slams, somando, aproximadamente, 50 slams espalhados em todo o Brasil. Os
mais conhecidos, porém, são estes: ZAP! Slam; Slam da Guilhermina; Slam Resistência; Slam
das Minas.
Entretanto, esses movimentos não podem ser entendidos como construções livres e
aleatórias no sentido concreto, pois as batalhas de poesia também possuem regras –
mecanismo esse que, por sua vez, pode variar a depender do local. Apesar disso, é comum,
conforme Freitas (2020) apregoa, algumas características similares, tais como: a
necessidade de que os textos criados sejam sempre inéditos e autorais; a duração, que
permanece em torno de três minutos, no máximo; a ausência de adereços e/ou instrumentos
musicais; a presença de jurados especialistas ou, em alguns casos, o próprio público ouvinte
é convidado a dar notas ao artista que variam entre zero e dez.
Por outro lado, há, para D’Alva (2014), três regras básicas que norteiam todo e
qualquer slam: “os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-lo, deve
ter no máximo três minutos e não devem ser utilizados figurinos, adereços, nem
acompanhamento musical” (D’ALVA, 2014, p. 113). Por causa dessa última regra, Neves
(2017) informa que os slammers precisam se concentrar bastante tanto na voz quanto no
corpo, posto que não poderão utilizar-se de subterfúgios cênicos nas suas performances.
Alcade (2016) informa que o objetivo final dos slams não é conseguir ganhar sucesso
na mídia, tampouco obter dinheiro com seus eventos, mas, acima de tudo, o movimento
objetiva se fazer ser ouvido. Para ele, compartilhar a poesia oral, ler, declamar, escrever,
promover batalhas e transformar suas vivências em arte e educação por meio da linguagem
são os maiores desafios dos slammers no mundo atual.
Dessa forma, por se tratar de uma poesia falada, a linguagem oral, nesse sentido,
assume total significância. Consoante à socióloga e teórica Djamila Ribeiro (2017), a
linguagem pode ser compreendida como uma forma de manutenção do poder de um grupo
maioritário sob outro minoritário, uma vez que se pode ouvir e/ou calar grupos sociais,
reivindicar o lugar de fala e, também, o direito à voz de cada sujeito, o que permite que
indivíduos mesclem, em suas composições, aspectos vividos por eles mesmos.
Não à toa, a poesia falada pode ser um excelente meio para que populações, como a
negra, falem sobre si, destacando o seu próprio local de fala a fim de mostrar a realidade e a
83
Anais
negritude deste grupo específico, pois “quando pessoas negras estão reivindicando o direito
a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, 2017, p. 43). Daí, pois,
a necessidade de se refletir sobre o lugar de fala, haja vista que fazer isso implica a criação
de uma postura ética reivindicada pela prática do slam.
É notório, assim sendo, que os slammers produzem narrativas4 poéticas, em primeiro
plano, escritas, para depois serem performadas. Estas produções são capazes de reafirmar
suas origens, relatar suas próprias vivências, expor seus sentimentos, posições políticas e
seus protestos enquanto seres que se inserem como porta-vozes de grupos socialmente
marginalizados, conforme postula Barbosa (2020).
O slam coloca-se, portanto, enquanto um local em que a pluralidade e a multiplicidade
de vozes se mesclam, formando diversas narrativas de vida. Daí, portanto, o fato de que os
slams partem sempre do princípio da coletividade, pois ele se constitui mediante contato
com o outro (ALVES; SOUZA, 2020), uma vez que na maioria dos poemas, Freitas (2020)
destaca que o significado dos textos se constitui não só por meio da narrativa, ecoado em
primeira pessoa acerca da experiência individual e subjetiva da pessoa, como também por
intermédio da relação existente entre a voz, o corpo e, por fim, as histórias do público que as
ouve.
A respeito disso, Paul Zumthor (2007) demonstra todo aquele que lê ou declama algo
em voz alta consegue tocar o outro pelas orelhas, ao passo que aquele que escuta é,
diretamente, capturado não só pela melodia, mas também pelo ritmo impresso durante o ato
de declamação. Em suas próprias palavras, “escutar o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo,
sua voz que vem de outra parte” (ZUMTHOR, 2014, p. 81).
Para o estudioso, à medida que nos colocamos à disposição para ouvir o outro,
também escutamos a nós mesmos e ao nosso corpo, tendo em vista que, para o pesquisador
francês, a voz trata-se de um corpo que se lança ao outro para poder, assim, retornar a si
mesmo. Nessa ótica, a performance oral é, para além de linguagem verbal, também gestual,
tomada por ritos que exigem a participação do corpo em uma espécie de “teatralidade” ou
de “espetacularidade” (ZUMTHOR, 2007).
4 Neste estudo, adotamos a perspectiva de Barbosa (2020) ao dizer que narrar é, antes de tudo,
contar histórias, uma forma peculiar de entender não só o mundo, mas a nós mesmos também,
processo esse que se inicia desde mesmo a nossa infância, quando aprendemos a ouvir e a fabular.
84
Anais
Apesar de tudo, Neves (2017) ressalta que a aceitação dos cânones tradicionais dessa
literatura tida como periférica não é pacífica. Dentre algumas justificativas para isso, alguns
apontam a “problemática” que reside no fato de essa poesia romper com a linguagem culta e
optar por valorizar termos e gírias próprias da periferia.
Stella (2015) confirma que essa literatura pode, de fato, provocar desconforto no
contexto literário nacional, tendo em vista que os indivíduos periféricos passam, então, a
reivindicar seu espaço na medida em que querem ser considerados como escritores. No
entanto, a estudiosa reitera a necessidade e a importância da legitimação das múltiplas vozes
que eclodem nesses espaços, indicando que é preciso conceber essa manifestação artística
não como um elemento exótico e/ou, muito menos, de valor estético inferior.
Com isso, percebemos que esse tipo específico de literatura, apesar de, por vezes,
diminuída e menosprezada, desempenha o seu papel enquanto arte e, em virtude disso, é
digna de ser estudada como qualquer outra. Diante disso, na seção seguinte, apresentaremos
uma análise aprofundada acerca da poesia transcrita da artista Bixarte.
Antes mesmo de partir para a análise da poesia, é crucial explicar, ainda que de forma
breve, sobre a artista aqui tomada como referência para este estudo. Dessa forma, Bianca
Manicongo, artisticamente identificada como ‘Bixarte’, é poetisa, escritora, atriz e uma das
maiores expoentes do Rap Paraibano. Em dezembro de 2021, apresentou-se na edição Slam
Resistência com seu texto extremamente potente ao destacar, por meio de sua poesia falada,
a vivência, existência, resistência e dor de uma travesti face a uma sociedade ainda marcada
pela heterossexualidade e enraizada por fortes preconceitos contra aqueles que fogem de
normas preestabelecidas pelo convício social moderno. Na ocasião, convém ressaltar
também que a poetisa foi a vencedora da batalha de poesia da edição de 2021.
A seguir, apresentamos a transcrição da poesia da artista. Antes disso, consideramos
relevante frisar que essa transcrição não anula nem exclui a possibilidade de o leitor
procurar o vídeo para assisti-lo, uma vez que, ao transcrever o texto, seja ele qual for,
sabemos que isso não oferece o pleno entendimento a respeito da forma como o sujeito se
expressou, agiu e/ou esboçou reações – marcas típicas da oralidade. Além disso, ressaltamos
que tentamos manter, ao máximo, o uso de termos utilizados pela própria artista, ou seja,
85
Anais
não adequamos certos termos para a norma-padrão, pois acreditamos que, caso o
fizéssemos, desmereceríamos a estrutura linguístico-textual pretendida pela poeta.
5 SLAM RESISTÊNCIA. Bixarte (vencedora) - Final Slam Resistência - dezembro 2021. Youtube. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=3EehckxB2qU. Acesso em: 15. mai. 2022.
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Logo na primeira linha do verso, há um prenúncio de uma afirmação que será feita
em virtude de um medo do eu-lírico ao dizer: “juro que em cada esquina tenho medo de
virar”. Até então, não se sabe quem é esse sujeito que diz sentir medo de algo que,
aparentemente, é natural à maioria das pessoas. Em seguida, o medo sentido é justificado,
no poema, pela voz que declama quase ter morrido simplesmente pelo fato de ter
atravessado uma esquina: “pois na última que virei / eles tentaram me matar”.
É pertinente perceber que há lacunas nesse primeiro momento da poesia: primeiro
porque o leitor ainda não sabe o porquê determinada pessoa teria medo pelo simples ato de
atravessar um lugar e, segundo, pelo uso do “eles” ao apontá-los como responsáveis por
tentar matar esse ser. Não se sabe ainda, portanto, a quem o eu-lírico estaria se referindo.
Não obstante o leitor possa vir a se sentir perdido nesse primeiro caso, logo adiante
tudo lhe é entregue, uma vez que o eu-lírico, ao contar uma história, revelou que alguém lhe
disse que ela era muito “trava” e que só servia para “comer”. Ao leitor se revela, pela primeira
vez, o sujeito que parece gritar de dor, o tempo inteiro, na poesia. A própria abreviação
utilizada, que possui, em seu valor semântico, um valor negativo e transfóbico, foi descrita
pelo eu-lírico desse modo porque é justamente a forma como as outras pessoas se referiam
a ela.
Ao dar prosseguimento à análise, o que se vê em seguida é uma apresentação típica
de violência física à travesti. O “levantar a mão” já indica esse ato agressivo e, para realçar o
aspecto da agressão, inclui-se a morte desse sujeito: “dois tiros foi disparado”. A respeito
disso, de acordo com o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), responsável por
monitorar dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos
os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil
(PINHEIRO6, 2022).
6 Informações a respeito disso podem ser buscadas na matéria redigida por Ester Pinheiro, via “Brasil
de Fato”, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-
lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo. Acesso em: 16. jun.
2022.
87
Anais
É interessante perceber também que, nos trechos, surge a utilização oculta do “ele”
como o autor do assassinato “mais uma trava que ele matou”. Pode-se inferir que, assim
como no caso anterior, apesar de haver uma ocultação de quem seria esse ser, trata-se da
própria sociedade como um todo e, de modo mais afunilado, de transfóbicos que se
consideram no direito de decidir o fim da vida dessas pessoas.
Face à menção ao assassinato brutal de travestis, o eu-lírico realiza uma crítica
àqueles que, por lei, deveria proteger as pessoas: os policiais. Pode-se notar isso a partir do
verso “a polícia inocenta quem arranca coração”, que desmascara e demonstra um lado frio
e cruel dos oficiais – estes sendo os indivíduos que deveriam colocar-se à disposição para
culpabilizar os que são preconceituosos. Esse viés de crítica do eu-lírico persiste na mesma
construção ao mencionar que travestis não se encontram seguras nem na igreja – templo
este que poderia ser acolhida – nem no ônibus, local público e, apenas aparentemente, livre
a todos. Além disso, surge ainda a ideia apontada de que nascer em um corpo cis implica
conhecer a liberdade. A cisgeneridade, grosso modo, pode ser compreendida como a
condição de qualquer pessoa em que sua identidade de gênero corresponda,
necessariamente, ao gênero que lhe foi dado no nascimento. A travesti, neste contexto, não
conhece a liberdade justamente por não apresentar essa correspondência com a condição
que lhe foi imposta desde a sua gênese.
Para além disso, o eu-lírico contina a tecer críticas ferrenhas a outras estruturas
sociais, como a do homem branco, aqui apresentado como o “colonizador”, que consegue ser
visto como herói apesar de todo o sofrimento que causou aos colonizados. Para isso, o eu-
lírico compara essa relação colonizadora com a de uma mulher preta quando é abandonada
no altar, pois, como se sabe, mulheres pretas, ao longo da história, foram preteridas, mas não
preferidas, ao passo que mulheres brancas, por outro lado, casam-se e vivem uma vida
econômica estável. Há, nessa ótica, uma disparidade de cor bastante notória.
Encaminhando-se ao final da poesia, o eu-lírico, desta vez em primeira pessoa e
abandonando o uso do “ele(s)”, conta uma história a partir de um relato: em uma noite,
determinado sujeito – que não foi nomeado – passava a mão pelo corpo dessa mulher sem o
seu consentimento, haja vista o medo forte que sentia a ponto de clamar “que ele leve o meu
celular / e que eu não chegue um corpo morto”. Nesse encontro, o sujeito sente-se aflito e
perturbado em virtude da expectativa de que poderia morrer naquele lugar pelas mãos dessa
pessoa que passava por seu corpo. Nota-se, nesse viés, o conhecimento que as travestis já
têm acerca das estatísticas alarmantes sobre a morte de seu grupo.
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89
Anais
O objetivo geral desta pesquisa foi alcançado a partir do momento em que se realizou
a análise em torno da poesia da poeta Bixarte. Com essa análise, tornou-se visível que a
linguagem empregada pela artista, conforme vimos, é carregada de uma potência artística
capaz de transformar dor e tristeza em arte.
Reiteramos, por fim, a necessidade de que outros trabalhos, como este aqui proposto,
possam surgir cada vez mais, com o propósito de que as batalhas de poesias tenham seu
lugar de privilégio no terreno da literatura brasileira e, ademais, artistas diversos espalhados
pelo mundo à fora consigam encontrar, na literatura, um caminho para a (sobre)vivência,
debate e reflexão tanto sobre si quanto sobre o outro.
REFERÊNCIAS
ALCALDE, Emerson. Slam na Educação: a poesia escrita com giz e dita com o coração. In:
ALCALDE, Emerson; ASSUNÇÃO, Cristina; MOTTA, Rodrigo; CHAPÉU, Uilian (Orgs.). Slam da
Guilhermina: três ponto zero. 1.ed., São Paulo: 2016.
D’ALVA, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
FREITAS, Daniela Silva de. Slam Resistência: poesia, cidadania e insurgência. Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, DF, n. 59, p. 1-15, 2020.
MANICONGO, Bianca. Quando comecei recitar poesia, sempre sonhei em pisar nesse
lugar. 4. jan. 2021. Instagram: @bixarte. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CYUl43ejHJh/. Acesso em: 15. mai. 2022.
NEVES, Cynthia Agra de Brito. Slams – letramentos literários de reexistência ao/no mundo
contemporâneo. Linha D'Água (Online), São Paulo, v. 30, n. 2, p. 92-112, out. 2017.
RIBEIRO, Djamila. Feminismos Plurais: O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento,
2017.
90
Anais
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
91
AS AVENTURAS DE
BAMBOLINA: LITERATURA
INFANTIL E LEITURA DE
IMAGENS EM CONTEXTO DE
ESCOLA PÚBLICA
Júlio César Lima FERNANDES (UNICAP)1
André Luiz de ARAÚJO (UNICAP)2
RESUMO
Desde o mês de maio do ano 2017, a Escola Municipal Lúcia Giovanna Duarte de Melo, em
João Pessoa - PB, desenvolve junto às crianças matriculadas, um projeto de leitura, efetivado
pela parceria com a Universidade Federal da Paraíba. Esta ação pedagógica permanente têm
sido um suporte que abarca momentos de formação aos professores, como também a
aplicação de estratégias de leitura literária. A proposta presente é apresentar aos leitores o
sub-projeto de leitura que foi aplicado nas turmas do infantil 5 durante o ano de 2019.
ABSTRACT
Since May 2017, the Lúcia Giovanna Duarte de Melo Municipal School has developed a
reading project with the enrolled children, carried out in partnership with the Federal
University of Paraíba. This permanent pedagogical action has been a support that
encompasses moments of teacher training, as well as the application of literary reading
- UNICAP.
92
Anais
strategies. The present proposal is to present to readers the reading sub-project that was
applied in the children's 5 classes during the year 2019.
1 Introdução
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94
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2 Objetivos
3 Recursos
4 Metodologia
4.1 Antes
95
Anais
4.2 Durante
O primeiro contato das crianças com o livro As Aventuras de Bambolina deve ser
mediado pela professora. Ele pode ser apresentado aos alunos junto da réplica da
personagem.
É indicado que a professora-mediadora faça perguntas que agucem a curiosidade dos
pequenos, direcionando seus olhares para detalhes de caracterização e composição da
personagem. Algumas das perguntas sugeridas são:
96
Anais
b. Quem é Bambolina?
c. Com o que ou com quem Bambolina se parece?
Uma vez que o livro e a personagem tenham sido apresentados, a professora pode
permitir que os alunos toquem e brinquem com a boneca-personagem Bambolina. Em
seguida, deve-se, então, realizar a contação da história. A ideia é que a professora estimule
as crianças a trazerem seus conhecimentos prévios para ajudar a contribuir na construção e
no desenvolvimento do enredo. Isso é especialmente válido quando se pensa em livros de
imagem, que é o caso de As Aventuras de Bambolina.
Segundo Duarte, Silva e Formiga (2017):
Esse ato de contar em conjunto, estimulado a partir da mediação, tende aser ri co: se
a professora fizer perguntas a respeito das personagens que aparecem na narrativa e
também sobre os espaços em que a boneca circula (“quem é o homem que dança com
Bambolina?”, “por que ela foi jogada fora?”, “por que as crianças fugiram do policial?”, “quais
os lugares pelos quais Bambolina passou?”, etc.), os alunos, voluntariamente, contribuirão
com suas distintas visões sobre as mesmas imagens e, assim, o sentido será construído de
forma coletiva.
4.3 Depois
Pensando que a experiência literária se estende para além do ato de ler a história,
elaboramos algumas ações que podem ser executadas após a contação. A ideia é que o
conjunto dessas ações faça com que a supramencionada experiência literária não se encerre
em si mesma e se estenda para além das paredes da escola, afetando não só os alunos como
também seus familiares e a comunidade escolar como um todo.
Assim, durante a semana, a cada dois dias, um aluno é sorteado para levar uma sacola
para casa, contendo a boneca réplica da personagem Bambolina e o livro As Aventuras de
Bambolina. A criança que levar a sacola para a casa deve ser orientada a contar a história do
97
Anais
livro para um familiar, envolvendo outras pessoas no processo de leitura. Além disso, ela
deve ser estimulada a criar e a viver suas próprias aventuras com a personagem.
A dinâmica da ação deve continuar mesmo depois dos alunos trazerem o livro de volta
para a escola. Após o retorno, a criança deve recontar a história de Bambolina para a turma
e também narrar sua experiência com a personagem.
Dessa forma, cada um, a seu modo, irá relatar o que viveu com Bambolina
(exercitando sua capacidade de organização de ideias e sua criatividade) e também recontar
a história que fora contada antes, em sala de aula. Esse reconto é especialmente interessante
quando se pensa que:
Ouvir várias vezes a mesma história ou canção, brincar das mesmas coisas,
são para ela [a criança] atividades saudáveis ao seu desenvolvimento, pois
não só ajudam a entender condutas humanas como operar com sentido
pessoal de acordo com o significado social. (GRACILIANO; MELLO, 2018).
Outra ação que pode ser executada é a da escrita de uma ficha de leitura do livro (ver
apêndice). Essa atividade, que é solicitada não só na ação do subprojeto, mas também em
toda e qualquer contação efetuada na escola, consiste em fazer com que o aluno ilustre e
escreva a história que ouviu na contação, visando exercitar a escrita e a imaginação das
crianças. É importante que esta atividade seja feita em sala e seja mediada pela professora.
É pedido, assim, que a professora escreva no quadro o nome do livro e do autor da
obra em pauta e, em seguida, distribua para os alunos as fichas. Na frente da ficha, a criança
é orientada a recontar por escrito a história de Bambolina – mesmo que de um jeito não
convencional, uma vez que estas crianças se encontram nos estágios iniciais de alfabetização
e ainda não dominam, obviamente, questões relacionadas à norma padrão. É pedido também
que ela ilustre o que conta. Uma vez que o aluno tenha concluído a atividade, a professora
deve, no verso da ficha, reescrever o que o aluno contou dentro do registro padrão.
Dessa maneira, graças ao conjunto de ações relacionadas à experiência literária (o
antes, o durante, o depois), Bambolina tende a contribuir para que a criatividade e a
imaginação de cada criança fiquem cada vez mais aguçadas, fazendo com que elas percebam
que leitura não é feita apenas de palavras, mas também de imagens. E que percebam
também, desde cedo, que ler literatura é algo que pode propiciar diversão, contentamento e
também aprendizagem.
98
Anais
Durante o ano de 2019 as ações descritas neste subprojeto foram, de fato, executadas.
Ao longo dos processos, as professoras se depararam com alguns desafios e alguns relatos
inusitados. Neste tópico, elencaremos alguns destes desafios e relatos e, partindo deles,
faremos algumas reflexões sobre a prática e os efeitos observados na comunidade escolar.
Logo no início, foi especialmente interessante notar o envolvimento e engajamento
das crianças. Um exemplo desse engajamento foi quando elas, vendo um dos professores da
escola com um violão na mão, pediram que cantassem “a música da Bambolina”. De maneira
orgânica e lúdica, alguns versos foram criados em cima de uma melodia improvisada. Esses
versos viraram “a música da Bambolina” e foram entoados em ocasiões diversas. Abaixo, a
letra da canção:
Bambolina {8 vezes}
Bambolina é uma boneca
Que não pode jogar fora
Ela pula, ela senta, ela anda e rebola.
99
Anais
que brincou de carrinho e até que acordou a criança “jogando um balde de água com sabão”.
Uma das alunas contou, inclusive, que acordou no meio da noite e viu “Bambolina com aquele
olhão” a vigiando. Quando indagada pela professora se teve medo, a criança foi enfática ao
dizer que não, que “aquele olhão dizia ‘vai dormir mais!’”.
É interessante notar como a boneca-personagem ganha, pela imaginação das crianças,
ares de “real”. A fabulação e a criatividade se tornam elementos ativos da experiência
literária. A boneca, nesses contextos, acaba virando mais do que uma mera boneca, ela é
encarada como personagem e vira uma amiga que, de fato, vivência junto dos pequenos uma
porção de aventuras. Não à toa, ela já participou, na qualidade de convidada, de festas de
aniversário, brincadeiras e piquenique.
Isso se reflete e transparece também quando alguns dos alunos reescrevem a história
de Bambolina nas fichas de leitura – espaço este que, originalmente, fora desenvolvido para
que a criança recontasse a história do livro. A criatividade é tamanha que há quem registre
suas próprias aventuras, acrescentando elementos que não estavam no enredo original.
Ciente disso, as professoras começaram a pensar que talvez, no próximo ano, seja
interessante, como tarefa, desenvolver no papel, deliberadamente, também as próprias
fabulações das crianças – como se elas fossem autoras não só do reconto da história, mas de
suas próprias aventuras com Bambolina.
Não obstante o fato de que as crianças desenvolveram a imaginação e trabalharam
suas habilidades de escrita, a experiência do subprojeto propiciou uma onda de leitores mais
atentos. Depois de Bambolina, as crianças passaram a prestar mais atenção nas imagens, a
observar mais detalhes dos cenários e na fisionomia das personagens. Algumas crianças
passaram a distinguir, por exemplo, rua, túnel e viaduto; além de chamar a atenção das
professoras a alguns detalhes do enredo. Eles passaram, também, a completar o sentido das
imagens com suas próprias experiências (o homem que dança com Bambolina na história
original, segundo as crianças, é “o homem do saco”) e, na hora do reconto, passaram a
estabelecer conexões visíveis entre as partes da história com uso de recursos de coesão (“e
depois...” e “e aí”, principalmente).
A mudança de percepção (e, consequentemente, prática) também atravessou as
professoras que, notando o interesse das crianças, passaram a fazer, durante outras
contações, perguntas mais específicas sobre as imagens – tornando-se assim mediadoras
mais atentas. Algumas delas, que até então não tinham experiência na leitura e na mediação
de livros de imagens, disseram que passaram a preferir usar livros desse tipo em suas aulas
100
Anais
por causa do leque de possibilidades de trabalho, já que, no livro de imagens, “uma coisa
puxa a outra” e as experiências tendem a ser riquíssimas, uma vez que as crianças, sentindo-
se mais à vontade com esse tipo de literatura, parecem se engajar e se apropriar das histórias,
justamente por perceberem que imagens também podem contar histórias de forma mais
ativa e autônoma: se em livros ilustrados ou em materiais de leitura com texto verbal as
crianças tendem a entregar os objetos para a professora, com os livros de imagem elas se
tornam exímias contadoras, que não só descrevem o que veem, mas que também
concatenam ideias e criam enredos possíveis a partir das imagens.
Diante de tudo, pode-se dizer que, embora o subprojeto ainda esteja em andamento,
as transformações e consequências observáveis a partir dele já são sentidas nas frentes
descritas até aqui. Isso faz com que acreditemos que As Aventuras de Bambolina, o livro, está
sendo um passo importante na bagagem leitora das crianças e que As Aventuras de
Bambolina, o subprojeto, está sendo um passo igualmente importante na formação leitora
dos alunos e das alunas.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Cristina Rothier; SILVA, Ana Paula Serafim Marques da; FORMIGA, Girlene
Marques. Lendo imagens e compondo histórias em A Pequena Marionete, de Gabrielle
Vicente. SELIMEL – X Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna, Estrangeira e de
Literaturas. Universidade Federal de Campina Grande, nov. de 2017.
SEGABINAZI, Daniela Maria; SOUZA, Renata Junqueira de; GIROTTO, Cyntia Graziella
Guizelim Simões. Educação Literária: infância, mediação e práticas escolares. Tubarão (SC):
Copiart, 2018.
101
ASSOMBRAÇÃO: A
CONFIGURAÇÃO DA IMAGEM
DO CASARÃO DO MARECHAL
RONDON NO ASSENTAMENTO
ANTÔNIO CONSELHEIRO
Maria Madalena da Silva DIAS (UNEMAT/PPGEL)1
RESUMO
102
Anais
ABSTRACT
In this study, there is an eagerness to problematize, from a set of testimonial narratives and
self-stories from the book “Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro” (2009), the
representation of Marechal’s big old mansion, bringing the dimension of the rural man’s
relationship with the land. From this set of narratives, we have selected narratives to analyze
the image configuration from the Casarão: “Família e acampamento”, “Escola Marechal
Candido Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”,
“Contente com a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez…”, “A cobra e a mansão”,
“História de assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra
motorista no casarão” and "Casarão assombrado". From the book inhabited by voices, the
power of speech is exclusive to men and women who occupy the position of fragile
communities, as they are ignored by the State apparatus. If the story that the people tell
seems to experience a deep loss of prestige, in a country that doesn't want to hear about the
poor; it gets even more serious when those people are called vagabonds, peasants and
troublemakers; yes, those who fought for agrarian reform. They organized themselves into
the Landless Rural Workers' Movement in Brazil (MST), united and won the right to return
to the countryside. To think about this question, we have used theoretical concepts
presented by Antonio Candido and Gaston Bachelard.
Por que um casarão pode despertar interesse? Diriam alguns que a prosa deste texto
deveria começar contando a história desse casarão. Outros duvidariam da sua existência, não
fosse seu antigo dono um cidadão ilustre, desses que a História não cansa de consagrar como
o herói. E, acaso, há heróis neste país? Aliás, como falar de heróis nestes tempos tenebrosos?
Avancemos. Fato é que a história oficial já foi contada. Quem não sabe do Marechal Rondon
e o telégrafo levando progresso para o sertão? Pois, sim. Pois, sim. O casarão foi do Marechal
Rondon2 que andou até por estas bandas de Tangará da Serra, passando por Barra do Bugres,
como destemido homem do telégrafo. Verdade que até hoje progresso não veio por estas
bandas, nem telégrafo, nem ferrovias, não há por léguas e léguas, nunca houve, nem sei se
um dia haverá. Fato é também que o sertão ganhou uma rota como ânsia de progresso.
Não falaremos do Marechal, falaremos de narrativas que dão vida a um lugar,
falaremos de histórias que o povo conta. Como diria Machado de Assis, acaso o leitor não se
2 Mais informações sobre as Expedições Telegráficas na localização do casarão ler o capítulo “Comissão de
Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas V” na obra Rondon conta sua vida (2010), de Esther Viveiros.
103
Anais
interesse por histórias, por histórias que o povo conta, deite fora este texto. Quem mesmo
quer saber? E dentre as histórias do povo deste sertão, uma delas chamou-nos a atenção: as
histórias do casarão, localizado no Assentamento Antônio Conselheiro3. São histórias
contadas por seus moradores, assentados, vigilantes da terra. Da história ouvida da boca,
contada por mais de um, há de ser verdade, não é, não? Essa coisa de espreitar a verdade na
sabedoria popular. Tanto em tanto de ouvir as histórias do povo do assentamento, se achou
tanto em tanto de verdade que se colocou em livro. E está lá para todo mundo vê. Para todo
mundo lê.
O livro Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro, publicado em 2009, organiza um
conjunto de narrativas de testemunho/ou histórias de si, a partir do lugar do homem
assentado, construindo uma imagem do homem e da sua relação com a terra. Desse conjunto
de narrativas, selecionamos para analisar a configuração da imagem do Casarão. As
narrativas escolhidas são: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido Rondon”, “A
organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com a terra”, “O
fantasma do casarão ataca mais uma vez...”, “A cobra e o casarão”, “História de assombração”,
“Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no casarão” e “Casarão
assombrado”.
Do livro habitado por vozes, o poder de fala é exclusivo dos homens e das mulheres
que ocupam a posição de comunidades frágeis, por serem ignorados pelos aparelhos de
Estado. Se a história que o povo conta parece viver profundo desprestígio, num país que não
se quer ouvir falar de povo; ainda mais grave quando o povo é aquele denominado de
vagabundo, roceiro e arruaceiro; sim, aqueles que lutaram pela reforma agrária4.
Organizaram-se em Movimento de retorno pela terra (MST), se uniram e conquistaram o
direito de retornar ao campo. Em território de latifundiário, de agronegócio, quem vai querer
3 O Assentamento Antônio Conselheiro, situado no Estado do Mato Grosso, é um dos maiores assentamentos
da América Latina, o território que o compõe é bem extenso, 38.337 hectares e é cortado por 527 quilômetros
de estrada. Geograficamente, abrange os municípios de Tangará da Serra, Barra dos Bugres e Nova Olímpia e,
é resultado de uma luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Comporta hoje um total de 999
famílias divididas, espacialmente, em sessenta e três agrovilas e, em três microrregiões: Zumbi dos Palmares,
na região de Nova Olímpia; Che Guevara na região de Tangará da Serra e Paulo Freire na região da Barra dos
Bugres. A divisão legal do assentamento ocorreu no ano de 1998, porém, as lutas iniciaram bem antes, os
primeiros registros que se tem de que os assentados já acampavam essa região é de 9 de outubro de 1996.
4 Maiores informações sobre o movimento de luta pela terra, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e a origem do Assentamento Antônio Conselheiro ler os artigos: “Movimento dos homens e
mulheres e a luta pela terra no Mato Grosso”, “Um olhar sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra – MST” e “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita de Si” na obra Olhares: realidade,
construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice Vilalva (Org) [et/al].
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5 Mais informações sobre a fazenda Tapirapuã no artigo “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita
de Si” na obra Olhares: realidade, construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice
Vilalva (Org) [et/al].
6 Não há pesquisas cientificas sobre a Escola Estadual Marechal Candido Rondon. Apenas para fins de conhecimento
sobre a casa de Marechal Rondon e o uso da mesma como alojamento há uma matéria jornalística “Casa de Marechal
Rondon é tombada como patrimônio histórico em MT” (2012) no site G1. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-
grosso/noticia/2012/03/casa-de-marechal-rondon-e-tombada-como-patrimonio-historico-em-mt.html. Visualizado no
dia 28 de junho de 2021 às 15 horas.
106
Anais
Renata Lourenço, que se propõe a contar a história do casarão, diz logo no início
“Moro no assentamento Antônio conselheiro há 8 anos [...] Eu vou contar a história do
casarão. Lá na agrovila 10, tinha uma velhinha” (2009, p. 80). Sebastião Pinto de Souza, assim
como Renata, começa falando de sua relação com o espaço, o assentamento: “Moro em
Tangará há muito tempo. Trabalhei um ano e meio puxando alunos na escola Marechal [...]
algo que aconteceu comigo” (2009, p. 107).
As noites na grande casa do assentamento não são como as noites na maioria das
casas na cidade. O Casarão de ontem do Marechal Rondon e o Casarão de hoje no
assentamento, com luz elétrica, acabando-se com o tempo, sem conservação, isolado,
distante, com paredes úmidas é um local com cheiro forte de mofo, cheio de entulhos, muitos
insetos e roedores. É nesse espaço mal iluminado que ocorrem ruídos e aparições estranhas.
Adriana de Fátima Novais foi uma das pessoas que morou no casarão enquanto
trabalhava na escola, situada no mesmo terreno, “moro e trabalho aqui na escola”:
“Aconteceu comigo”. “Dizem, que o lugar é mal-assombrado”. Ela descreve a experiência
como “algo de outro mundo”. Adriana narra que estava sozinha no quarto do casarão “eu
tava sozinha” e era noite “apagando todas as luzes pra gente dormi”. Ela narra com muito
respeito e medo “A coisa, a assombração resolveu puxar o meu travesseiro, daí, sim, que eu
fiquei com medo” (2009, p. 81). Ela não teve apenas uma experiência com a assombração: “E
não foi só essa vez que eu vi. Da outra vez que eu senti, parecia [...] alguém me olhando; assim,
passou do meu lado. Olhei não era nada [...] Eu estava sozinha” (2009, p. 82).
Sebastião Pinto de Souza, assim como Adriana de Fátima Novais, também já havia
escutado histórias sobre o casarão “o Reginaldo [...] o trem não deixou ele dormi [...] puxava
ele pela perna [...] Ele disse que o cara chegava de cavalo, entrava pela cozinha andava no
corredor”. Sua experiência com o fantasma do casarão aconteceu também no período da
noite “era base de meia noite [...] eu percebi que abriu a porta [...] Eu fiquei todo arrepiado,
de cabelo em pé [...] Chegô aonde eu estava e começo a me enforcar, e foi me enforcando [...]
eu rezei [...] e ele foi embora” (2009, p. 107).
O motorista contou para os outros colegas de trabalho e eles riram e não acreditaram:
“Daí, no outro dia, pegou o Santiago [...] sozinho a gente num dormia mais aí no casarão [...]
passado uma semana, pegou o outro motorista, o Marcelo [...] eles acreditaram em mim [...]
Muitos não acreditam ainda. Eu não duvido mais” (2009, p. 108).
As narrativas são experiências que possuem o casarão como o elo entre os sujeitos,
tornando-se meio comunicativo de acessibilidade e comuns aos integrantes do
107
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assentamento. Tais narrativas, portanto, estão aliadas a um sistema simbólico vigente, uma
vez que os narradores utilizam um discurso reiterado por outrem, representando a
expressão de uma sociedade, a comunidade do Assentamento Antônio Conselheiro.
Diferente de Sebastião e Adriana, Oscarino Santana, narrador de acontecimentos
sobrenaturais no casarão, é um morador do assentamento. Ele demarca isso no seu discurso
“Resido aqui no assentamento Antônio Conselheiro, na agrovila 17. Trabalho no colégio
Marechal Rondon”. Ele narra que também à noite estava dormindo no casarão e teve um
encontro com o fantasma “eu vi que era barulho de cavalo [...] ele desceu do cavalo [...] veio
para o lado do quarto que nós tava dormindo [...] eu vi quando a porta abriu [...] Eu queria
gritá” (2009, p. 109). As histórias de assombro, a figura do sobrenatural habitando um
espaço social e econômico. O Casarão é lugar de fantasmas. Há na narrativa de Sebastião e
Oscarino a permanência desse mesmo conteúdo narrado, o fantasma que vem a cavalo. É
possível perceber que nessas narrativas o conteúdo traz aspectos de marcação discursiva do
grupo, na reiteração do elemento sobrenatural. Aconteceu comigo e com ele também. E todos
remendando o dia, igualmente aos outros narradores, trazendo a afirmação que viu/viveu:
“esse casarão do marechal Candido Rondon é assombrado” (2009, p. 109).
Assim, além de as narrativas trazerem como características a transmissão de
experiências, elas trazem a comunicação expressiva de uma crença, de uma verdade
compartilhada: o casarão é assombrado. O narrador ainda faz um alerta “Todas as pessoas
que dormem sozinho aqui, essa criatura assombra eles” (2009, p. 110).
Renata diz que a velhinha da agrovila 10 lhe contou a história do casarão. Segundo a
idosa, o casarão já teve escravos morando lá antigamente e que o marechal Cândido Rondon,
visto pela história oficial como o herói das linhas telegráficas, era “muito antiquado [...]
Aquelas coisas antigas dele”. Há no casarão, no meio da grande sala, um buraco no chão
chamado de “o túnel” pelos moradores do assentamento, “no casarão tinha um túnel que
dava direto no rio”. Existem muitas histórias sobre a utilidade que o Marechal dava para o
túnel. O Marechal é descrito por essa narradora como cruel, “todas as maldades do Marechal”
no hábito de matar os escravos “O Marechal ficou bravo, foi atrás desses escravos, matou-os
e jogou seus corpos no túnel” (2009, p. 80). Segundo a narrativa dos assentados, o casarão
foi palco de acontecimentos ruins.
Essas histórias de assombro dos assentados carregam um significado histórico e
social. Tais narrativas configuram o mundo habitado do assentamento, configuram a terra e,
nela, o espaço da casa. São as histórias que o homem do campo conta. São histórias de
108
Anais
assentados. Quem dirá se são verdadeiras, senão eles próprios? E com essas narrativas tanto
a simbologia da casa deixa o lugar de morada segura quanto a imagem do Marechal Rondon
está subtraída da condição de herói. Essa necessidade em contar e compartilhar as
experiências de assombro no casarão é uma dinâmica e uma experiência coletiva, ou seja,
contar a história habita a rotina do assentamento como forma integradora da sua
complexidade e sua identidade. Narrar é uma experiência que permite o ato de
compartilhamento. É pela necessidade de contar a história que se formula uma identidade
complexa como registro na fronteira entre o histórico e o simbólico, entre o natural e o
sobrenatural. Deste modo, essas histórias possuem uma repercussão muito grande e
significativa dentro da comunidade, na voz dos assentados e dos não-assentados.
As narrativas do fantasma do casarão fazem com que os sujeitos tenham uma
interação social dentro do espaço em que vivem, uma vez que há tanto entre os moradores
do assentamento quanto os moradores do casarão uma ação discursiva. O casarão é um
símbolo cultural de pertencimento para uns e de mau presságio para outros, porque “a arte
é um sistema simbólico de comunicação inter-humana” (Candido, 2006, p. 31), uma vez que
as narrativas de assombro, que são relatadas na comunidade, passam a simbolizar o
pertencimento do sujeito ao grupo, elas se apresentam como legado e herança cultural
passada pela oralidade dentro da comunidade. Existe uma transmissão direta dos valores e
crenças que resulta na/da expectativa social. Ademais, elas também se apresentam como
uma narrativa de alerta quando contada aos novos sujeitos que aparecem na comunidade,
principalmente, os sujeitos chamados de “pessoas da cidade”. Pessoas que acabam
usurpando, na visão da maioria dos assentados, os empregos gerados dentro da comunidade,
como nas escolas e nos postos de saúde que, para eles, devem ser ocupados pelas “pessoas
da comunidade”, pois somente o povo da comunidade conhece suas próprias necessidades e
anseios. Essas narrativas de assombro servem para manter esses intrusos em estado de
vigília, pois ao contar sobre a assombração do casarão, “quando você dúvida de alguma coisa
[...] atrai os maus fluidos” (2009, p. 94), se estabelece um limite e um alerta.
A história do fantasma do casarão circula nas vozes de dois tipos de sujeitos: o
assentado e aquele que trabalha na escola e habita temporariamente o Casarão. A casa do
Marechal se apresenta como um espaço simbólico de habitação/morada (ainda que
temporária). Segundo Gaston Bachelard, a casa é um espaço que nos fornece imagens: o
casarão fornece aos seus moradores imagens discursivas, entre essas imagens está a do
assombro. Pessoas habitam o casarão; se “todo espaço verdadeiramente habitado traz a
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essência da noção de casa” (Bachelard, 1993, p. 200), o casarão não constitui em uma morada
tranquila como a dos assentados; mas, sim, uma morada desassossegada e cheia de
mistérios.
Sabemos que o ato de habitar é essencial ao ser humano, se a primeira morada é a
barriga da mãe, a segunda é a casa. Há, desta forma, também uma interação dos moradores
do casarão com esse espaço. Assim, os alojados se relacionam com o espaço do casarão como
suas casas. Quando os sujeitos que estão alojados no casarão levam seus pertences para lá,
como um simples porta-retrato ou até mesmo um fogão para cozinhar, esse simples fato de
levar objetos pessoais representa, inconscientemente, um pertencimento ao espaço. Com o
ato de levar coisas pessoais, os alojados dizem indiretamente que estão fixando morada no
casarão. Eles sentem que o casarão lhes pertence, mesmo que por uma estada curta, pois eles
habitam naquele espaço. Esse espaço os molda e influencia as atitudes e o discurso narrativo
desses sujeitos. O casarão recebe os alojados, acolhe e assombra: “a casa é um dos maiores
poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos” (Bachelard, 1993,
p. 201). No espaço casarão, as narrativas de assombro nomeiam a imagem do fantasma. Ao
ouvir os relatos, é possível perceber um pacto social entre os falantes no qual todos
enxergam, se não a mesma coisa, uma coisa muito semelhante. Ou seja, o casarão mantém os
narradores, tanto do próprio casarão quanto os da comunidade, fazendo uma tessitura de
narrativas com um enredo muito parecido. Há entre os moradores uma tradição
ininterrupta: narrar a história do casarão. O que chamamos aqui de tradição é este ato de
transmitir pela oralidade de uma geração a outra histórias, crenças e costumes de um povo.
Assim a vida social no assentamento se faz por meio de um ritual que consiste na repetição
do passado do casarão, sua história na época do Marechal, inspirando novas experiências
narrativas, a assombração do casarão no presente da enunciação.
As narrativas organizadas no Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro são
narrativas de retorno do homem para o campo. Entre este homem do campo e o homem
alojado no casarão prevalece o discurso narrativo ressignificando a história e trazendo o
sobrenatural, pois celebram em suas vozes uma experiência que é própria do assentamento.
Esse discurso narrativo está estritamente ligado ao meio de vida e organização social do
assentamento, visto que representa uma tradição cultural que traz a consciência de dois
grupos distintos que se assemelham e se completam. Porém, ao mesmo tempo em que o
casarão carrega uma imagem negativa, porque foi palco de acontecimentos muito ruins que
mantém no local viva uma assombração, na memória do assentado o casarão traz à
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: SCHWARCZ, 2004.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
ROSA, Marinês, LAFORGA, Gilmar, VILALVA, Walnice (Org.) Olhares: realidade, construção,
saberes na terra em assentamento de Mato Grosso. São Paulo: Artes e Ciência, 2012.
VIVEIROS. Esther Maria Terestrello da Câmara. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2010.
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A PALAVRA POÉTICA EM
FERREIRA GULLAR E IRAIDE
DA SILVA MARTINS: uma
análise memorialística na
literatura e cultura popular
maranhense
Luís Fernando Lima CAMELO (UFMA)
Rubenil da Silva OLIVEIRA (UFMA)
RESUMO
Este trabalho está vinculado ao campo dos Estudos Culturais e Literatura Comparada,
analisando assim fronteiras discursivas entre a poesia de Ferreira Gullar e Iraide da Silva
Martins. O presente artigo visa conhecer as características sociais na poesia gullariana e
iraidiana, estabelecendo assim um diálogo da ideia de poesia social por suas próprias
reflexões críticas. Com isso, a pesquisa tem como destaques duas poesias da literatura
brasileira contemporânea: “Dois e dois: quatro” (1966) e “Intolerância” (2020),
evidenciando a posição estética dos poemas como instrumentos de crítica social para a
literatura e cultura popular maranhense. O estudo proposto traz as concepções de memória
e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do
vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as
poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida. À
vista disso, a pesquisa tem como aporte teórico observações de autores como Carvalho
(2021), Corrêa (2016), Cevasco (2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015).
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ABSTRACT
This work is linked to the field of Cultural Studies and Comparative Literature, thus analyzing
discursive boundaries between the poetry of Ferreira Gullar and Iraide da Silva Martins. The
present article aims to know the social characteristics in Gullarian and Iraqi poetry, thus
establishing a dialogue of the idea of social poetry through its own critical reflections. With
this, the research highlights two poems from contemporary Brazilian literature: “Dois e Dois:
Quatro” (1966) and “Intolerância” (2020), evidencing the aesthetic position of the poems as
instruments of social criticism for literature and popular culture. from maranhão The
proposed study brings the conceptions of memory and its manifestations in literature and
culture, understanding memory as a record of what has been lived, rescue of images,
preservation and repair of human experience. Thus, the poems describe a constant action of
the human being that is the search for the meaning of life. In view of this, the research has as
theoretical support observations of authors such as Carvalho (2021), Corrêa (2016), Cevasco
(2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015).
INTRODUÇÃO
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alguns pontos centrais na visão do escritor Antônio dos Reis Carvalho (1874-1946). Diante
desses estudos, a literatura maranhense é dividida através de ciclos, a pontuar:
Apesar de ter deixado uma pequena contribuição para as pesquisas sobre a literatura
maranhense, o nome de Antônio dos Reis Carvalho ainda é pouco conhecido. Além de
ensaísta e poeta, Antônio dos Reis Carvalho, nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de abril
1874, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1946, foi também dramaturgo, jornalista e professor.
Merecedor de respeito e estima, o escritor foi bastante admirado por seus contemporâneos,
porém, com o transcorrer do tempo, decaiu no esquecimento. Sua maior contribuição dentro
desse estudo é intitulado A literatura maranhense, que foi publicado como primeiro verbete
do vigésimo volume da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, em 1923.
Vários outros escritores ajudam com a divulgação da cultura maranhense através de
seus estudos. Cada qual dispõe uma forma de escrita, com suas especificidades e grande
valor na construção do legado histórico-cultural do Maranhão. Escritores maranhenses,
como Aluíso Azevedo e Josué Montello, mostram a questão racial em sua literatura, recortes
para O Mulato e Tambores de São Luís, obras inspiradas na vida maranhense da época.
Destacam-se também, Arthur Azevedo, Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, João do Vale,
Gonçalves Dias, Graça Aranha, Maria Firmina dos Reis, Raimundo Correia, Humberto de
Campos e vários outros.
Em artigo publicado pela Revista Plural nº 3, Abril/2012, Ricardo Leão - maranhense,
doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp – sintetiza essa arte literária abordando
que “o Maranhão é terra de nomes que a todo momento deveriam ser cultuados e lembrados
pelos seus filhos”. Ele complementa:
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de São Paulo e se tornou presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos
Estudantes (CPC/ UNE).
Exilado desde 1971, após ser preso pela ditadura militar com outros artistas e
músicos, como Caetano e Gil, ele vai retornar ao Brasil em 1977. A partir daí, passa a
trabalhar como roteirista de televisão para a Rede Globo, onde trabalhou por 20 anos e viria
a escrever, em parceria com Dias Gomes, os roteiros de Araponga (1990) e As Noivas de
Copacabana (1992). Entre 1992 e 1995, atuou como diretor da Funarte. Ferreira Gullar
faleceu em 2016, aos 86 anos.
Ferreira Gullar poeta, estudioso da cultura brasileira, da poesia brasileira, da música,
da arte brasileira, era um teórico de crítica brasileira. “Dois e dois: quatro” foi publicado em
um livro que reúne obras de Gullar escritas entre 1962 e 1975. No poema, o eu lírico compara
sua convicção de que a vida vale a pena a outras certezas que ele tem.
Para compreendermos o poema em estudo é preciso saber que o escritor viveu o
período da ditadura militar no Brasil. O golpe militar de 1964 deu início à ditadura, que
perseguiu e torturou políticos, intelectuais, artistas, operários e outros cidadãos que se
manifestaram contra o regime. A censura vetou a exibição e a divulgação de livros, filmes,
peças de teatro, músicas, programas de televisão.
Esses acontecimentos afetaram a produção literária e, segundo a crítica, o movimento
concretista – poesia nova, em que o poema passa a ser ele mesmo um objeto de apreciação,
foi a mais marcante novidade da poesia brasileira que começou a se produzir nos anos de
1950-1960, ou seja, a primeira tendência da poesia brasileira contemporânea – mantinha-se
à margem dessa realidade. Assim, alguns poetas que tinham aderido ao concretismo
romperam com o movimento e começaram a produzir poemas que dizem respeito à
realidade imediata em que vivia a maior parte do povo.
Propunham o retorno ao verso, o emprego de uma linguagem mais simples e direta e
o uso da poesia como instrumento de participação política. É o caso de Ferreira Gullar, o
autor do texto lido. Se não soubéssemos essa característica de Ferreira Gullar, não
conseguiremos entender o poema Dois e dois: quatro. Sabendo disso, que Ferreira Gullar
nasceu em 1930 e morreu em 2016, vejamos trechos do poema:
120
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Observa-se que o poema fala sobre esse contexto ditatorial, analisando o trecho
acima, consideremos que ele fala o tempo todo no poema de “pão caro”, coisas caras,
“liberdade pequena”, não se podia falar tudo. Isso é um contexto da ditadura militar, 1964-
68. Porém, o poema também contextualiza a atualidade do Brasil.
Quando a gente ler uma poesia como essa de Ferreira Gullar é muito provável que
associamos aos dias de hoje, não tem como a gente ler e associar ao nosso cotidiano no Brasil.
Apesar de ter sido escrito em um período de ditadura militar, mas também ele é um poema
contemporâneo. A literatura é atemporal! Os problemas são os mesmos, seja em 1964, seja
em 2021-2022, e isso é uma característica da boa literatura, da boa arte, que é ser atemporal,
que é falar de questões que continuam com o passar do tempo.
Esse trecho também fala sobre a período militar, fala de esperança. A lagoa alí
representa a esperança de dias melhores. Essa lagoa que está atrás de tantos problemas que
estamos vivenciando hoje, ela é quem nos dar esperança de que as coisas vão passar, nada
dura para sempre.
Por conseguinte, o poema de Gullar está estruturado em versos livres, fazendo parte
assim da literatura contemporânea, apresenta algumas figuras de linguagens, como anáforas
(repetição de palavras no início dos versos), além de contemplar a simbologia do contexto
da ditadura militar. O mais importante desse poema é relacioná-lo aos nossos dias.
Segundo o crítico Alfredo Bosi, na fase mais participante de Ferreira Gullar é possível
perceber o abandono dos experimentos no corpo da palavra e uma opção pela estrutura mais
tradicional do verso. A mensagem assume o primeiro plano, em detrimento da forma, e o
engajamento social se evidencia. um primeiro olhar sobre sua poesia permite discernir-lhe
temas e imagens que se repetem obsessivamente e apontam para a existência de “uma
personalidade poética bastante coesa no interior da obra” (BOSI, 2003. p.171). Segundo o
crítico, o aprofundamento desse olhar, após algumas releituras, avança para a identificação
de um “universo bem determinado”, de modo que o leitor fica tentado a “desenhar-lhe o
mapa”. (BOSI, 2003. p.171).
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Assim, além do poema “Dois e dois: quatro” (1966), de Ferreira Gullar, o estudo
contempla também o poema “Intolerância” (2020), de Iraide Martins, as falas de
concepções de memória e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a
memória como registro do vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da
experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é
a busca do sentido da vida.
Partindo dos pressupostos teóricos sobre estudos literários comparados, temos
Sandra Nitrini. Em seu livro Literatura Comparada. História, Teoria e Crítica, ela apresenta
conceitos como influência, imitação e originalidade, assim como apresenta as principais
teorias que contribuíram mais recentemente para o desenvolvimento da estética da
recepção e a intertextualidade. Vejamos como Nitrini pontua o termo “literatura
comparada”:
A partir dessa definição no campo dos estudo comparatista dos estudos literários, fica
compreensível que, a Literatura Comparada não exclui o contexto social, histórico e político
da metodologia comparatista nos objetos de estudo, incorporando meios e materiais no
campo de investigação.
É válido destacar que os estudos de Carvalhal são de suma importância para os
estudos comparados, uma vez que ela enfatiza e destaca reflexões sobre a natureza e o
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funcionamento dos textos e sobre as relações que a literatura mantém com outros sistemas
semióticos, abrindo caminhos para a intertextualidade e procedimentos de criação literária.
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Percebe-se que a grande Iraide em sua escrita magnífica conversa com seu leitor,
traçando uma reflexão. Os poemas parecem empurrar seus leitores para um estado de
meditação que se prolonga para muito além da leitura. O título “Intolerável” traz esse recado
em seu discurso poético. Que não se consegue tolerar; que não se pode suportar; que não é
aceitável; insuportável: comportamento intolerável; pessoa intolerável.
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vazios são complementados com nossa criatividade e experiências. Deste modo, “se o que
vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas,
inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente”.
(HALBWACHS, 2006, p. 29).
Halbwachs (2006) relata ainda que, nossas lembranças são coletivas, mesmo que se
trate de eventos que somente nós participamos ou objetos que foram visto somente por nós.
O escritor diz que, isso se sucede, pois jamais estamos sós e sempre levamos pessoas que não
se confundem. Então, para recordar uma lembrança não é necessário que outras pessoas
estejam presentes sob uma forma material e sensível. Se a memória é o caminho de
autoconhecimento do poeta/poetisa, então é só através dela, e somente dela que a voz
narrativa vai se reconstruindo e assim passamos a conhecer a voz que fala no poema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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por exprimir os estados de ânimo dos sujeitos, passa a inserir na modernidade fatos levam a
refletir e questionar a vida em sociedade, além de entender nossa condição humana. Com
isso, possibilita um novo olhar para a realidade. Neste trabalho procuramos demonstrar a
relevância da atuação de Ferreira Gullar e Iraide Martins tanto na literatura quanto em seu
papel de intelectuais da Poesia Social no Brasil.
A fim de alcançar o objetivo proposto no desenvolvimento da pesquisa, fez-se
necessário um mapeamento da obra poética de Gullar e Iraide. Importante esclarecer que,
considerando-se o que tem sido publicado há décadas sobre sua obra e atuação estética e
política, dentro e fora do Brasil, sua poética vai muito além do que foi discutido e
interpretado neste trabalho. Além disso, investigamos os processos memorialísticos e
autobiográficos, sem perder de vista a relação entre os poemas que compuseram o corpus.
Ferreira Gullar deixa claro que sua poesia sempre teve uma aproximação da
realidade: “Devo dizer que a ligação com o real foi sempre uma necessidade em minha
poesia” (GULLAR, 2006b, p. 163). E a sua produção poética realmente se situa na realidade
e também no artístico, estabelecendo em seus escritos uma relação entre memória e história.
Memória, pois, em algumas obras, ele rememora o seu passado e baseado nisso realiza seus
poemas. Como salienta Jacques Le Goff: “A poesia, identificada com a memória, faz desta um
saber e mesmo uma sabedoria, uma Sophia. O poeta tem o seu lugar entre os “mestres da
verdade” (LE GOFF, 1990, p. 434), isto é, o escritor que trabalha com a memória, transforma
sua poesia em um saber fundamentado, pois é histórico.
Assim sendo, podemos considerar parte do percurso poético de Gullar e Iraide
formam uma verdade, justamente por estabelecer o momento real, de sua memória, sendo o
conceito de verdade entendido como aquilo que realmente acontece/aconteceu. Os dois
poemas são lindos, instigantes, reflexivos, filosóficos. A vida, realmente, vale a pena.
Ao aproximarmos a complexidade da obra de Ferreira Gullar e da obra de Iraide
Martins, observamos muitos pontos em comum, entre eles, a evolução da abordagem de
crítica social, buscando o entendimento do homem no mundo, ou seja, poesias de
resistências e de engajamento. A poética de ambas é ampla, valorizando as características da
literatura brasileira contemporânea. Assim, tanto Iraide quanto Gullar podem ser
considerados escritores empenhados com as causas sociais e do homem em seu texto.
Portanto, são várias as perspectivas de leitura da poética da palavra. Essa pluralidade
de leituras que demonstra a sua atualidade. As poesias em estudo, “Dois e dois: quatro”
(1966) e “Intolerância” (2020), podem ser vistas como ponto de reflexão e crítica à
126
Anais
sociedade da qual fazem parte. Muitos pontos acabam por nos revelar aspectos da realidade,
da política, da ética e, até mesmo, do trágico, que foi o caso do regime ditatorial no Brasil.
Entretanto, é a relação de humanidade, a dimensão humana que estabelece com o
interlocutor que faz a obra em análise atemporal e passível de interpretações várias. Gullar
e Iraide, em vários pontos, vai além da relação pessoal dos temas que abordam, eles
conseguem despertar no leitor a sensação de reconhecimento, transcedendo assim, a relação
autor-texto, atingindo seu alvo que é o homem-sociedade, em que podem reconhecer suas
faltas e excessos do cotidiano em que vive.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. “Roteiro do poeta Ferreira Gullar”. In:________. Céu, inferno: ensaios de crítica
literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
CEVASCO, Maria Eliza. Dez lições sobre estudos culturais. Editora Boitempo. 2003.
DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afrobrasileira.
Posfácio Úrsula. De Maria Firmina dos Reis. 4ª. ed. Florianópoles: Mulheres; Belo
Horizonte: PUC Minas, 2004.
GULLAR, Ferreira. Melhores Poemas – Seleção Alfredo Bosi. Editora Global. 2010.
GULLAR, Ferreira. Sobre arte sobre poesia (Uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olimpo,
2006b.
LEÃO, Ricardo. Uma Atenas sem Panteões. In: Revista Plural. Nº 3 – Abril/Maio de 2012 –
São Luís-Ma. p.40-49.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas: UNICAMP,
1990.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2000.
127
“A CIDADE ME VIGIA”:
EXPERIÊNCIAS DO URBANO
EM OS CLANDESTINOS DE
FERNANDO NAMORA
Karina Frez CURSINO (UFF)1
RESUMO
O presente trabalho tem como principal objetivo propor um diálogo entre paisagem urbana
e literatura a partir do romance Os Clandestinos (1972), de Fernando Namora, visando
demonstrar o quanto o jogo ficcional do autor explora a paisagem e a ambiência urbanas
para criar sensações e estabelecer significados. Para tal tarefa, são utilizadas teorias a
respeito da paisagem e da interação que a mesma estabelece com a narrativa. A metodologia
adotada é baseada na recolha e leitura de bibliografia que verse sobre a obra de Namora e
sobre a presença da paisagem na literatura, intuindo analisar como os personagens do
escritor estão incorporados no espaço citadino e o que a velocidade desse contexto traz como
consequência para a existência dos mesmos. O estudo conta, principalmente, com a teoria
sobre espaço/corpo, de Félix Guattari (1992), com os Pontos de vista sobre a percepção
de paisagens, de Michel Collot (2012), com A arquitetura e os sentidos (2011), do
filósofo/arquiteto Juhani Pallasmaa, além do livro Literatura e Paisagem em diálogo
(2012), organizado por Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos, entre outros. O trabalho
se vale ainda do conceito de dromologia, cunhado por Paul Virilio (1993), de modo a pensar
na aceleração dos corpos no espaço urbano e na consequente angústia dos mesmos. A
articulação das teorias assinaladas com o texto literário proposto transmite indícios
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Anais
ABSTRACT
The main objective of this work is to propose a dialogue between urban landscape and
literature from the novel Os Clandestinos (1972), by Fernando Namora, aiming to
demonstrate how much the author's fictional game explores the urban landscape and
ambience to create sensations and establish meanings. For this task, theories about the
landscape and the interaction that it establishes with the narrative are used. The
methodology adopted is based on the collection and reading of bibliography that deals with
Namora's work and the presence of landscape in literature, intuiting to analyze how the
writer's characters are incorporated in the city space and what the speed of this context
brings as a consequence for their existence. The study relies mainly on the theory of
space/body, by Félix Guattari (1992), Points of view on the perception of landscapes, by
Michel Collot (2012), with The architecture and the senses (2011), by the
philosopher/architect Juhani Pallasmaa, in addition to the book Literature and Landscape
in Dialogue (2012), edited by Carmen Negreiros, Ida Alves and Masé Lemos, among others.
The work also uses the concept of dromology, coined by Paul Virilio (1993), in order to think
about the acceleration of bodies in urban space and their consequent anguish. The
articulation of the indicated theories with the proposed literary text conveys relevant
evidence to demonstrate the city landscape as a mechanism of the writer's literary creation.
129
Anais
encontramos poemas que dão destaque aos elementos cotidianos da atmosfera citadina de
Lisboa, característica essa que mais tarde vai ecoar fortemente em sua prosa urbana, como
ocorre, por exemplo, em Os Clandestinos, que tem como cenário, predominantemente, as
ruas de Lisboa. Os aspectos negativos da vida na cidade, primeiramente evocados nas
poesias iniciais de Namora, são deixados de lado para a criação de obras sintonizadas
diretamente com os ideais neorrealistas. Tais publicações vão delimitar um segundo ciclo de
escrita, iniciado, segundo Álvaro Salema (2003), pela publicação de Casa da Malta, em 1945,
e organizado pelas obras que têm como ambiente o campo, fazendo do meio rural pano de
fundo e também eixo norteador na constituição dos personagens, geralmente, camponeses.
Mais tarde, contrapondo-se ao cenário campestre, inicia-se, a partir da publicação de O
Homem Disfarçado, em 1957, seu ciclo citadino, no qual o autor escreveu livros que têm
como marca o contexto urbano.
Para realçarmos o momento em que Namora elege a cidade como espaço primordial
de suas obras, escolhemos analisar brevemente como os elementos da cidade de Lisboa são
trabalhados em Os Clandestinos, demonstrando o quanto os espaços, além de algumas
vezes demarcarem geograficamente uma localização, estabelecem trocas com os corpos
narrados, provocando sensações nesses personagens. O romance escolhido foi publicado em
1972 e está inserido no ciclo urbano do autor, marcado pela relação dos indivíduos com a
cidade, principalmente, com Lisboa. Sendo assim, intuímos percorrer esses espaços
lisbonenses, tecidos juntamente com os personagens, indicando o quanto a paisagem
ressalta as emoções dos sujeitos narrados, participando ativamente do jogo narrativo.
Percebemos que a interação entre o homem e o espaço urbano é ponto chave no
romance, sendo evidenciada, entre outras coisas, pelo ritmo acelerado da cidade e pelos
corpos incapazes de comunicarem-se verdadeiramente uns com os outros. Essa
desarticulação do sujeito com o mundo ao qual está inserido atravessa a trajetória de escrita
de Fernando Namora, ganhando ainda mais relevo no ciclo citadino, onde é possível
propormos um diálogo entre os dramas existenciais dos personagens com o contexto
citadino em que os mesmos se encontram.
DESENVOLVIMENTO
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Filosofia, o arquiteto traz uma reflexão sobre o intenso intercâmbio entre os corpos e os
espaços habitados. Mais especificamente no ensaio Espaço, lugar, memória e imaginação,
presente no livro citado, nos deparamos com o olhar sensível do arquiteto/filósofo sobre a
experiência na cidade, espaço de nosso maior interesse no presente trabalho: “A experiência
de um lugar ou espaço sempre é uma troca curiosa: à medida que me assento em um espaço,
o espaço se assenta em mim. Vivo em uma cidade, e a cidade vive em mim.” (PALLASMAA,
2018, p. 25).
Percorremos a experiência dos corpos narrados no romance de Fernando Namora a
partir desse diálogo do indivíduo com o espaço urbano, observando, principalmente, como a
angústia humana se entrelaça com o narrar dos elementos da própria cidade, evidenciando
a relação dos sentimentos dos personagens com os ambientes. Pallasmaa (2011) discorre
sobre a associação do isolamento e da angústia existencial com o espaço urbano e também
com a tecnologia. Mesmo que por meio de transposições e deslocamentos temporais entre a
cidade de Pallasmaa e a Lisboa de Namora, podemos pensar na crise existencial de Vasco,
personagem central da obra analisada, a partir das reflexões do teórico finlandês. De acordo
com o filósofo/arquiteto: “A cidade contemporânea é a cidade dos olhos, do distanciamento
e da exterioridade” (PALLASMAA, 2011, p. 31).
Considerando essa interação entre corpo e espaço, acreditamos ser possível olhar
para Os Clandestinos buscando refletir sobre a associação dos personagens com a paisagem
urbana lisbonense, explorada no livro. O espaço urbano de Lisboa está constantemente em
questão, ainda quando não de maneira explícita, se evidencia a partir da própria angústia, da
solidão, do esvaziamento das relações, dos corpos acelerados ou até mesmo da falta de
paisagem natural no ambiente urbano.
Em introdução para o livro Literatura e Paisagem em diálogo (2012) as
organizadoras Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos estabelecem significativas
considerações a respeito da interação entre a Literatura e a paisagem. Nessa seção
introdutória percebemos a importância dos modos de olhar para o estabelecimento das
relações entre os espaços, as artes e os sujeitos. Notamos que são modos de olhar, pois não
se trata apenas da visão, mas sim da percepção sobre essa associação entre corpos e espaços,
refletindo sobre o estar no mundo e o estar também na escrita. Compreendemos dessa
maneira que a paisagem não é um objeto apenas para ser visto ou texto para ser lido, mas
compreende-se como um meio de troca entre indivíduo e espaço.
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As colocações sobre esse indivíduo que se sente deslocado na paisagem urbana muito
nos interessa, pois os personagens da narrativa escolhida passam por tensões com o meio
no qual se encontram. A velocidade da vida urbana parece atravessar esses corpos, fazendo
com que os mesmos não se enquadrem, demonstrando uma vivência errante frente ao
contexto no qual vivem. São figuras que não conseguem estabelecer relações significativas,
parecendo sempre viver superficialmente, sem participar inteiramente de nenhuma
situação. São pessoas que estão em constante afastamento, seja da sociedade em geral, seja
da própria família. Muitas vezes parecem seres incompreendidos, sujeitos “fora do tempo”.
Pensando nessa expressão “fora do tempo”, muito nos vale o estudo sobre a problematização
entre o tempo do indivíduo e o tempo da cidade, desenvolvido por Ana Fani Carlos (2001).
Carlos (2001) levanta essa incompatibilidade entre o tempo individual e o tempo coletivo
acelerado, sentido nas transformações urbanas, mostrando o quanto o indivíduo não
acompanha esse ritmo intenso e acaba sofrendo as consequências de estranhamento dessa
disparidade temporal.
As teorias analisadas permitem a produção do diálogo entre paisagem urbana e
literatura, fornecendo indícios para percorrermos Os Clandestinos a partir da ótica que
coloca o sujeito e a cidade em constante troca, na qual o indivíduo insere suas marcas no
espaço urbano e vice-versa. O romance tem como figura central Vasco Rocha, um conhecido
escultor que no passado foi militante de esquerda. As lembranças do tempo de ativista
político surgem em forma de memórias que vão e vêm na narrativa. Ele relembra os dias de
perseguição, prisão e tortura. Vasco recorda o quanto precisou se esconder, mudando de
nome, de país, e consequentemente, perdendo algumas características de sua personalidade.
A clandestinidade necessária no passado parece nunca ter fim. Através da narração da rotina
de um Vasco já consolidado como escultor observamos um homem que tenta
incessantemente passar oculto pela vida, pela esposa Maria Cristina e pela sociedade que o
rodeia. Ele tem frequentemente a sensação de que a cidade o vigia, assim como quando era
perseguido pela polícia política em tempos de ativismo (conforme relembra na citação
abaixo). Observamos que ele procura constantemente se esconder, seja por meio dos
encontros extraconjugais com Jacinta no apartamento discreto de Bárbara, seja em sua
própria personalidade reservada:
Percebi depois que era seguido. Dirigimo-nos para as ruas que, mesmo
àquela hora, tivessem algum trânsito, e, na primeira oportunidade,
estacionei num sítio onde o nosso carro poderia passar despercebido
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Era mais ou menos assim de todas as vezes, nessa avenida que parecia um
rio. O rio descia, correndo, suspendia-se ali, remoinhando, e passava
adiante; mas entre chegar e passar adiante, muitas coisas podiam acontecer,
muita gente poderia reconhecê-lo, a ele, Vasco Rocha, escultor a quem meia
Lisboa tirava o chapéu [...]. (NAMORA, 1972, p. 10, grifo nosso).
Assim como Lisboa corre como um rio também o seu pensamento e as suas memórias
acompanham a velocidade das ruas. Suas lembranças aparecem como percepções
fragmentadas e confundem-se em seu presente:
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Anais
exemplo, a Greve da Carris2, em 1964. Na época relatada pelo autor, muitas transformações
urbanas, que começaram a emergir ainda no século XIX, continuam ocorrendo na capital
portuguesa. Nos anos 50, Lisboa “trata-se de uma cidade alargada, já dentro da definição
regionalizada de «Grande Lisboa» (FRANÇA, 1980, p. 118).
Por mais que a Lisboa contextualizada em Os Clandestinos não fosse uma metrópole
como a Paris da época vale ressaltarmos que os aspectos da modernidade já se encontravam
naquele espaço. Notamos que as imagens mais recorrentes da essência da cidade moderna e
do sujeito moderno, tais como a artificialidade, a inautenticidade e a percepção fragmentada,
apontadas pela especialista em sociologia urbana Luciana Andrade (1996), podem ser
facilmente projetadas na Lisboa de Namora.
A artificialidade, apontada pela autora, nos leva ao modo de viver superficial
demonstrado por Vasco no romance, repleto de vivências falsas, representadas por seres
mecanizados, que se assemelham às máquinas, dominados por gestos repetitivos,
comandados pelo tempo artificial do relógio: “Nesse momento, preparava-se para acertar
escrupulosamente o relógio pelo Tissot gigante que trepara ao telhado do arranha-céus da
praceta” (NAMORA, 1972, p. 10). É um viver sem autenticidade, moldado pelas convenções
sociais ou movido pelo poder do dinheiro, gerando pessoas mascaradas. Os mecanismos
dessa cidade moderna fazem com que Vasco tente buscar uma clandestinidade cotidiana,
mas que acaba não sendo suficiente para fugir completamente daquele espaço:
Um dia, Jacinta dissera-lhe: << Que cor tem o mundo na tua cabeça?>> E Bárbara
repetia-lhe quase o mesmo. Bárbara e talvez alguém mais. Por isso, confundia as pessoas:
os teus horrores, as suas máscaras, os seus ressentimentos, não tinham um alvo definido.
Era o ambiente. Os medos, as frustrações, pertenciam à atmosfera que respiravam. O que
ainda restava de vivo ardia sob a clandestinidade quotidiana, mas era já um calor gretado.
Nele progredia a lava do enfado e da passividade. Assim acontecia a ele e aos outros − que
tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos (NAMORA, 1972, p. 121,
grifo nosso).
2 No dia 1 de julho de 1968, teve início a Greve da Carris (também conhecida como “Greve da mala”).
Os trabalhadores da Carris lutavam por melhores condições de salário. Iniciaram uma ação de
protesto, não cobrando bilhetes, deixando as malas de cobrança nas estações e ocupando as estações
de recolha de autocarros à noite. Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/greve-da-mala-foi-ha-50-
anos/55999.
137
Anais
O uso de máscaras para suportar o viver falso a que estavam condicionados é atrelado
na citação acima “à atmosfera que respiravam”. É por meio da existência de Vasco que o
medo e as frustações, intensificados pelo ambiente urbano, são revelados de maneira mais
evidente. Porém, através da passagem em análise, vemos que essa relação se estende aos
outros personagens, reforçando a troca existente entre o corpo e a cidade: “Assim acontecia
a ele e aos outros − que tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos”
(NAMORA, 1972, p. 121, grifo nosso).
Essa clandestinidade cotidiana leva, entre outras coisas, a um esvaziamento das
relações. O casamento de Vasco com Maria Cristina é o reflexo desse desgaste e da falta de
interação, advindos da ambiência citadina, caracterizada pelos seus “precários redutos de
um viver comunicativo” (NAMORA, 1972, p. 160). O desencanto e o desconforto, observados
no casamento, se estendem para o seu trabalho. O escultor passava horas em seu estúdio,
mas começava a desconfiar de sua atividade, demonstrando que até mesmo a arte poderia
entrar no círculo vicioso da vida urbana burguesa. Assim como o estúdio passou a ser um
local do desencontro o mesmo parece acontecer com os cafés. Espaços recorrentes nas obras
do ciclo urbano de Namora, os cafés apresentam significativa importância no cenário
citadino lisbonense do período narrado. Em Os Clandestinos, apesar de aparentar funcionar
como ambiente de reuniões também revela a convivência superficial e artificiosa que se
observava nesses estabelecimentos. A relação instituída pelos indivíduos que convivem no
café era baseada na repetição que regia suas existências, funcionando mais como um meio
que favorecia o não encontro:
Assim como o café e a importância que o mesmo transmite para o cenário urbano em
transformação também notamos a presença de outros elementos da cidade de Lisboa que
juntos vão dando corpo ao plano narrativo espacial que Namora quer destacar e relacionar
com os personagens. O apartamento de Bárbara, local de encontro de Vasco e Jacinta,
também é um espaço fundamental daquela cidade em constante transição. A arquitetura,
marcada pelo cinza do cimento, revela o crescimento desse tipo de construção:
138
Anais
Nos momentos que Vasco está no apartamento de Bárbara as janelas ganham espaço
de destaque no texto. São as frestas das persianas, indicadas na citação anterior, que
permitem o enquadramento pelo qual Vasco observa a vida urbana que o cerca. A janela que
esconde o personagem é a mesma que possibilita que ele veja a Lisboa em transformação, o
que o faz querer cada vez mais se isolar daquele contexto: “Olhou a rua, os táxis que se
enfiavam nas raras abertas do trânsito, esperando que um deles fosse abrandar, que num
deles, enfim, descesse Jacinta” (NAMORA, 1972, p. 210, grifo nosso). Nesse trecho, Vasco
observa pela janela e aguarda ansiosamente a chegada de Jacinta, que sempre faz questão de
atrasar, reforçando as angústias do escultor. No capítulo final da obra, ele toma a decisão de
não esperar mais pela amante e se libertar de tudo o “que em si se pervertera” (NAMORA,
1980, p. 258):
Dessa forma, tenta partir em busca da sua utopia – a demanda da sua felicidade –, que
parece que não passará disso mesmo: uma utopia, irrealizável face às suas relações
familiares e sociais profundamente desvirtuadas, reforçadas pelo meio em que se encontra.
Considerações finais
139
Anais
criação da narrativa, contribuindo, entre outras coisas, para exacerbar a angústia dos
personagens.
Os apontamentos da paisagem urbana, observados em Os Clandestinos e destacados
pelas próprias citações do livro, foram extremamente produtivos para pensarmos as marcas
espaciais na narrativa. Através da ambientação urbana do romance em questão, concluímos
que a escrita de Namora não se limita em percorrer lugares geograficamente estabelecidos,
já que muitas vezes até sem descrever em detalhes a paisagem, o escritor consegue ir além
da mesma quando demonstra, a partir do sentimento dos personagens, o que determinados
espaços podem criar e intensificar nos corpos.
REFERÊNCIAS
ALVES, Ida. Poesia e paisagem urbana: diálogos do olhar. In: NEGREIROS, Carmem; LEMOS,
Masé; ALVES, Ida (org). Literatura e Paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições
Makunaima, 2012.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001.
COLLOT, Michel. Points de vue sur la perception des paysages. In: Espace géographique,
tome 15, n°3, 1986. pp. 211-217.
JORGE, Silvio Renato. Pelas Ruas de uma cidade triste: Lisboa e as imagens da solidão. In:
ALVES, Ida (Org.); CRUZ, Carlos Eduardo da (Org.). Paisagens em Movimento: Rio de
Janeiro & Lisboa, Cidades Literárias. Volume 3. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2021, p. 193-
204.
140
Anais
NEGREIROS, Carmem; LEMOS, Masé; ALVES, Ida (org). Literatura e Paisagem em diálogo.
Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012.
______. Essências. Tradução de Alexandre Salvaterra. São Paulo: Gustavo Gili, 2018.
141
FOI UM RIO QUE
PASSOU EM MINHA
VIDA: O MERGULHO DA
PALAVRA LIBERTA
Roman LOPES (Univesp)1
RESUMO
142
Anais
ABSTRACT
The insistence on a synthesized presentation of reflections that sprawl and submerge into
countless vast spheres can only be destined for the moldy drawers of inflexible and
amorphous academic entities. It is not possible to summarize a dream. However, so that
people who venture to read the lines below, above and to the sides can vaguely guess what
awaits them, we will venture a few framed topics. The principle that every word is a
metaphor begins the tortuous journey toward the post-metaphoric river, whose dipping is
the goal. With this principle mapping our paths, we risk the denial of a literal language, seen
only as an imposition of a discursive colonialism that molds our expressive processes in the
name of an alleged communicability. Principle and negation are the brushes to color the path
of the words' states of meaning, whose metaphoricity deepens as we distance ourselves from
the river's banks. In the beauty of the post-metaphoric state we reach the depths and become
a river, and thereby free the words from any kind of discursive imposition, making them exist
in the immanence of their sonic, imagetic, and kinesthetic forces.
O décimo linear prescrito para esse espaço anterior à desenvoltura das ideias que
temos a seguir cumpre a função protocolar de indicar aos possíveis leitores desses devaneios
algumas facilidades para lidarem com os caminhos a percorrerem nas subsecutivas laudas…
Entretanto, o caminho é de pedras! Não há facilidade possível no mergulho em um rio
desconhecido. Apenas a coragem do mergulhar e a vontade de tornar-se rio, para um correr
fluído e livre, justificam a escolha em prosseguir na leitura. Uma leitura que leva a pessoa
leitora à doçura de uma dolorosa libertação discursiva, assim como a um encontro
sinestésico com as palavras. Bebamos, juntas e juntos, a seiva melodiosa da palavra que,
liberta de suas funções discursivas, transforma-se em imagem, som e fúria.
143
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144
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145
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O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso;
não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria
que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda,
indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha
expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria
senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz’; E a
instituição responde: ‘Você não tem por que temer começar; estamos todos
aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito
tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra,
mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que
ele lhe advém’. (FOUCAULT, 1996, p. 7).
146
Anais
Será essa proposição um absurdo desmedido, fruto de uma mente alucinada que não
respeita o já consagrado? Será a mera conjectura de um diletante que deseja uma
importância que não possui? Precisamos, verdadeiramente, de uma preocupação que
aparenta uma desimportância utilitária para o desenrolar da vida cotidiana? E, mesmo que
todas essas questões sejam superadas, como é possível essa libertação sem cairmos na
desorganização sistemática das comunicações?
147
Anais
Para desfazer o nó que parece estar nos envolvendo nessa construção discursiva meio
caótica, reforçando, ainda, o caráter necessariamente padronizador – será? – do sentido
literal das palavras, substituiremos esse conceito pelas ideias de sentido imediato e de
sentido consagrado, ambos navegando na pretensa calmaria da dominância dos significados
discursivos. O sentido imediato é aquele que pede pouca mediação. Ao ouvirmos – ou lermos
– uma palavra, conseguimos criar sentido para ela sem a necessidade de muitas associações
mentais, permitindo-nos uma construção de significação muito rápida. O sentido consagrado
é aquele que já recebeu uma validação pública, seja na ordem histórica, seja na ordem social
ou qualquer outra ordem que qualquer leitora ou leitor possa imaginar. A palavra já faz parte
do nosso arcabouço imaginário, pois os possíveis sentidos são plantados, numa escala
industrial, em nossas referências discursivas.
Pela possibilidade plural do literal, conforme fartamente martelado à guisa de um
diletante nietzschiano, assim como pelo quadro pintado em cores vivas da metaforicidade
imanente nas palavras, não falamos mais em sentidos das palavras, mas em estados de
sentidos que as palavras podem assumir nas diversas construções discursivas. A ideia de
estados de sentidos coloca a palavra em um fluir permanente, trazendo uma possibilidade
mais dinâmica do uso das palavras. O mergulho nesse rio é cada vez mais profundo e nos
coloca diante de um relativamente assustador – e, por isso mesmo, maravilhoso – vazio de
controle, deixando-nos à deriva nessa água... “O vazio é um desafio desconfortável para o
diretor e para o escritor, bem como para o ator. Pode um espaço ser deixado aberto, para
além de tudo o que a gente pensa, acredita e deseja afirmar” (BROOK, 2019, p. 46).
Nesse espaço aberto, que em verdade é o fluir constante das águas, vamos nadar nos
estados de sentidos, cada qual com sua força de correnteza, proporcionando possibilidades
múltiplas de mergulhos. E todos esses estados de sentidos têm na metáfora a sua essência
primeva, sendo que a intensificação ou o abrandamento da emanação metafórica de cada
palavra e de cada discurso localizam cada um deles. Vale ressaltar que usamos os estados de
sentidos tanto para referenciar palavras (entes travessos basilares para as construções
discursivas), como para os discursos (reunião desses entes para agenciamentos de
148
Anais
elaborações), pois ambas as presenças podem ser atravessadas por esses estados. Da mesma
forma, esses estados estão presentes tanto no ato da construção dos discursos como no ato
da fruição, sendo todas as pessoas agentes comuns de produção desses estados.
A forma visível é cavada pela escrita, arada pelas palavras que agem sobre
ela do interior e, conjurando a presença imóvel, ambígua, sem nome, fazem
emergir a rede das significações que a batizam, a determinam, a fixam no
universo dos discursos. (FOUCAULT, 1988, p. 23).
Adentrando a uma correnteza um pouco mais forte, mas ainda com os pés no fundo
do rio, brincamos com o estado metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de
forma a possibilitar a entrada em outros universos de sentidos. Com isso, a construção de
sentidos é mais individualizada, escapando do senso comum. No entanto, não é uma
149
Anais
construção totalmente livre, pois há uma linha tênue, difusa que liga esse processo de
construção aos sentidos imediatos ou consagrados. Nadamos em polissemias, catacreses e
metonímias, numa coreografia pleonasticamente hiperbólica, que nos enchem de ares
eufemistas e antitéticos. Um nadar um pouco mais despreocupado e, talvez, um pouco mais
irresponsável. No entanto, um nadar dançante que nos leva a outra dimensão de
possibilidades discursivas.
O estado metafórico lida com a chamada criatividade secundária ou relacional. O
sentido não vem sozinho. Ele é tecido em uma trama de conexões, que se relacionam para a
construção de sentidos. Porém, essa trama é limitada pelo sentido imediato ou consagrado.
Podemos colocar os pés no fundo do rio no momento em que quisermos, como raízes a nos
manterem em uma margem de segurança bastante apaziguadora. E essa segurança nos leva
ao risco de alguns mergulhos. Mais uma vez, a criatividade secundária não tem nenhum
caráter seletivo, mostrando que o ato criativo precisa de, pelo menos, duas mediações para
alguma construção de sentido. Essa segunda medição possui um caráter mais
individualizado, mesmo que ainda tenha alguma relação, mesmo que tênue, com os sentidos
imediatos ou consagrados.
Os processos de comunicação cotidiana, pelos quais fincamos os pés nas margens da
pré-metáfora, algumas vezes apelam ao estado metafórico, seja por reivindicar, mesmo que
sem intenção, a polissemia de algumas palavras, seja pela intenção de dar uma marca mais
pessoal aos discursos, mesmo que essa intenção seja inconsciente. Também no estado
metafórico podemos abrir as portas da criação literária, o que não significa que essa porta já
não estivesse aberta no estado pré-metafórico. Entretanto, é no universo das analogias,
espaço próprio das metáforas, que a criação literária mergulha sua exuberante presença. E
as analogias são galhos entrelaçados que, ao mesmo tempo em que se deixam balançar ao
vento, mantêm-se ligados aos troncos e às raízes... “O espaço das analogias é, no fundo, um
espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo
homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo” (FOUCAULT, 1999,
p. 31).
Mergulhando sem medo e nos deixando levar pela correnteza mais potente,
dancemos o estado pós-metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de forma
completamente livre, sem nenhum pressuposto a mediar o processo de construção de
sentidos. A estruturação do discurso não segue nenhum padrão e qualquer tentativa de
abordagem a partir dos sentidos imediatos ou consagrados é inócua. O discurso é de tal
150
Anais
forma aberto que a relação com ele se estabelece em outras bases, impossíveis de serem pré-
elaboradas. Cada operação discursiva é única, movida por impulsos que ultrapassam a
consciência de si mesmos. Não existe nenhuma necessidade comunicativa, apenas o desejo
expressivo, sem ponto de partida, nem porto de chegada, nem caminho estabelecido de
jornada. Apenas o fluxo discursivo, movido por pulsões incontroláveis que só querem existir
no partilhar simbólico das experiências.
151
Anais
o paroxismo da partilha vivencial! “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido
por ela e levado bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 1996, p. 5).
A comunicação cotidiana – talvez – não permite esse correr solto das águas, essa livre
manifestação rizomática dos discursos, pois ela se alimenta mais da compreensão de
mensagens do que do compartilhar de experiências. E essa compreensão precisa ser a mais
imediata possível e a mais padronizada, em nome da evolução dinâmica do cotidiano.
Existem alguns espaços para as manifestações metafóricas, mesmo que parcos e pouco
frequentes.
O que propomos, a partir dessa constatação, é que os processos literários possam
agenciar esses mergulhos. O universo da criação literária não pode ser contaminado pela
padronização e pelo imediatismo de mensagens prontas. Tanto as pessoas que escrevem
como as pessoas que leem (ou as pessoas que falam e as que escutam, em processos literários
desenhados na oralidade), devem permitir-se o movimento pelos estados de sentidos, numa
travessia constante desse rio discursivo, a fim de aproveitar sempre o melhor que essas
águas podem oferecer.
Encerramento metapropositivo
A imagem de um rio, aqui desenhada talvez com contornos difusos, foi a maneira
encontrada para unir forma e conteúdo em uma dança fluída, sinuosa e, por isso mesmo,
mais viva. As duas margens igualmente pré-metafóricas e sua única correnteza central pós-
metafórica eliminam a possibilidade de uma abordagem sequencial e evolutiva dos estados
de sentidos, abordagem essa totalmente desproposital em relação ao que pretendemos
enquanto proposição.
Queremos sentir todas as águas, desde as mais calmas até as mais caudalosas e, mais
do que isso, queremos nadar em todas elas, atravessando esse rio e sendo atravessados por
ele para, no abandono ao fluxo maravilhoso das dinâmicas – essas sim permanentes – dos
discursos, possamos experimentar a plenitude das experiências discursivas.
Que essas águas, turbulentas e tranquilas, nos venham em forma de criações literárias
mais livres, já que sonhar com esses mergulhos em processos de comunicação cotidiana seria
mais um delírio utópico desse pretenso proponente! Que consigamos, ao menos nas
experiências literárias, seja na condição de autoria, seja na condição de leitura, mergulhar
sem medo!
152
Anais
OS LAGOS REFERENCIAIS:
BROOK, Peter. Na ponta da língua: reflexões sobre linguagem e sentido. São Paulo:
Edições Sesc, 2019. 95 p.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1995. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Ed. 34, 1995. 94 p.
_______. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 90 p.
_______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 1999. 541 p.
LIMA, Paula Lenz Costa. Metáfora e Linguagem. In: FELTES, H.P.M. (Org.) Produção de
sentido: estudos transdisciplinares. Caxias do Sul: Annablume, Nova Prova, Educs, 2003. p.
155-180.
MANGUEL, Alberto. O leitor como metáfora: a torre e a traça. São Paulo: Edições Sesc,
2017. 147 p.
153
Anais
154
O INSÓLITO FICCIONAL
EM BORGES: UM
ESTUDO SOBRE O
MILAGRE SECRETO E A
CRENÇA NO
SOBRENATURAL
Mariany Lopes ALMEIDA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)1
Elizete Albina FERREIRA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)2
RESUMO
Jaromir Hladik é um escritor judeu preso e acusado de algo impossível de fugir: ser judeu em
terras alemãs nazistas. O escritor, que desafia a lógica temporal em suas obras, agora é o
protagonista de sonhos que perturbam a racionalidade do tempo e da existência do
sobrenatural. Em sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao divino, porém, o que
ganha são apenas dois minutos. O evento narrado no conto parece claro e sem maiores
questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação: qual o
tempo real concedido ao escritor? Um ano? ou dois minutos? Nestas condições, propõe-se
um estudo sobre o insólito presente no conto O milagre secreto, da coletânea de contos
Ficções (1944), do escritor Jorge Luis Borges, sob a perspectiva da literatura fantástica e seus
subgêneros. Segundo Tzvetan Todorov (2010), em Introdução à Literatura Fantástica, o
155
Anais
ABSTRACT
Jaromir Hladik is a Jewish writer jailed and accused of something impossible to escape: being
a Jew in Nazi German lands. The writer, who challenges temporal logic in his works, is now
the protagonist of dreams that deranges rationality of time existence of the supernatural.
The event narrated in the tale seems clear and without major questions, but in the subtext,
we can notice the birth of a hesitation. In these conditions, it is proposed a study on the
uncommon present in the short story The secret miracle, from the collection of short stories
Fictions (1944), by the writer Jorge Luis Borges, from the perspective of fantastic literature
and its subgenres. According to Tzvetan Todorov (2010), in Introduction to Fantastic
Literature, the unusual is constructed as a quality of the fantastic-strange, leading the reader
to believe in the presence of laws that are beyond natural within the narrative. Therefore, it
is necessary to use as theoretical support authors who focused on the study of the fantastic,
because it is given for granted that studies related to Fantastic Literature and its various
subgenres are essential to understand the richness of Borges' work. This discussion will be
organized in two parts: the first it is a theoretical descriptive nature, presenting the theories
that underlie the research and, in the second moment, the focus will be to discuss how such
theories can be found in Borges' fictional narrative.
Considerações iniciais
156
Anais
medida em que nos deparamos com personagens ou eventos que não têm explicação
familiar. Desta forma, analisaremos o conto “O Milagre Secreto” a partir da perspectiva
fantástica e da sua relação com o insólito ficcional.
O insólito ficcional é um subgênero – ainda em discussão quanto a sua categorização
– e é a expressão de eventos anormais ou irregulares dentro da narrativa.
Assim, o insólito se liga à literatura fantástica na medida em que ambos são formas
de estruturar eventos mundanos sobre-humanos ou sobrenaturais.
O caráter insólito do fantástico nasce no seio do fantástico-estranho. Em outras
palavras, podemos observar na teoria de Todorov duas formas de tentar explicar um
acontecimento fantástico: o estranho e o maravilhoso.
O fantástico nasce na hesitação, tanto do personagem, quanto do leitor, é um aspecto
da narrativa em que não se sabe ou não se pode explicar algum evento, e é enfraquecido no
momento em que se busca a sua justificativa: para uma narrativa que envereda para o
(sobre)natural – para aquilo que está além da percepção daquele mundo natural –, estamos
no território do que Todorov chamou de maravilhoso. Mas, quando se consegue chegar a
uma conclusão aceitável, mesmo que talvez essa conclusão não tenha uma explicação, o que
se tem é um acontecimento estranho.
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser
explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve
optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão de
sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo
continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas por nós. (TODOROV, 2010, p. 30).
157
Anais
Jorge Luis Borges ficou conhecido como um grande autor de Literatura Fantástica do
século XX. Ao lado de outros autores hispano-americanos, se destacou como mestre do conto
e do fantástico segundo David Roas (2014). O conto, como declara Roas em “A ameaça do
Fantástico”, é por si só um lugar propício para a manifestação do fantástico, porque é uma
narrativa relativamente curta e que, muitas vezes, termina de forma abrupta e aberta.
Todorov diz que “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 30-
31). Assim, nota-se que o fantástico é, sobretudo, uma hesitação, um momento em que o
personagem e o leitor experenciam algo que até então não tem explicação.
O Milagre Secreto integra a coletânea de contos Ficções, publicado em 1944 pelo
escritor argentino Jorge Luis Borges. Borges é conhecido como um grande nome da
Literatura Fantástica do século XX. Para Italo Calvino, um dos aspectos que chama a atenção
para a escrita de Borges é a sua forma de narrar, posto “[...] que inventou a si mesmo como
narrador.” (CALVINO, 1990, p. 63)
A ideia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido
escrito por um outro. Um hipotético autor desconhecido, que escrevia em
outra língua e pertencia a outra cultura – e assim comentar, resumir,
resenhar esse livro hipotético. [...] O que mais me interessa ressaltar é a
maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor
congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos.
(CALVINO, 1990, p. 63).
O escritor deste conto de Borges não gostava de seus livros publicados e queria
começar uma nova forma de escrever através de seu livro em construção cujo título seria “Os
inimigos”:
158
Anais
Em O milagre secreto, Borges nos apresenta Jaromir Hladik, um homem judeu que tem
por ofício a escrita. Narrado em 1939, na Alemanha nazista, o conto discorre sobre a prisão
desse homem, o crime: ser judeu, e a sua condenação seria a morte por fuzilamento. Ao se
ver sem saída ou perspectiva, o que resta a Hladik é imaginar de mil formas a sua própria
morte. “Em vão repetiu para si mesmo que o ato simples e geral de morrer era o temível, não
as circunstâncias concretas. Não se cansava de imaginar essas circunstâncias: absurdamente
procurava esgotar todas as variantes (BORGES, 2007, p. 137).
Dessa forma, percebe-se que, antes de sofrer pelas mãos que lhe tirariam a vida,
Hladik sofre pelo ato de perder a vida. O que lhe era caro – a vitalidade – ia ser arrancada. O
medo da morte – e de tudo que não sabemos que vem com ela – era o que tirava o sono do
condenado. Para o cristianismo, a morte é senão a coroação, para aqueles que creem, da vida
eterna, uma vida tranquila e uma paz que transcende todo e qualquer entendimento. Mas,
para o materialismo3, ela é apenas o fim, não marca mais que o fim da vida, é o vazio.
Esses múltiplos caminhos e especulações acerca da morte e do tempo percorrem o
imaginário de Jaromir Hladik e também a própria narrativa do conto, que discorre muito
acerca da brevidade da vida e a relatividade do tempo.
Há, na mitologia grega, dois deuses que tomam conta do tempo: Cronos e Kairós.
Cronos é um titã, filho de Gaia, que é a terra, e Urano, e é a personificação do tempo dos
homens, portanto, do tempo cronológico e linear. Dessa forma, não há como fugir de Cronos,
pois ele é o dono do tempo – é o próprio tempo.
Em contrapartida, existe Kairós, que tem uma concepção de tempo diferente. Kairós
não segue o tempo linearmente, mas um tempo específico, fora da temporalidade
cronológica, por isso, é conhecido como o “tempo de Deus” na Teologia. Podemos ver
passagens na Bíblia Sagrada que discorrem sobre o tempo de Deus: “[...] Não se esqueçam
disto: para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe, 3,8)4. Assim, em
sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao Ser divino, porém, o que ganha são apenas
dois minutos do ponto de vista de Cronos. O evento narrado no conto parece claro e sem
3 O materialismo rejeita a ideia de coisas que fogem do que é material, físico, palpável. “Segundo
Fernandes (1984) o materialismo histórico-dialético designa um conjunto de doutrinas filosóficas
que, ao rejeitar a existência de um princípio espiritual, liga toda a realidade à matéria e às suas
modificações. É uma tese do marxismo, segundo a qual o modo de produção da vida material
condiciona o conjunto da vida social, política e espiritual” (FERNANDES, 1984 apud ALVES, 2010)
4 BÍBLIA, 2 Pedro. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.
p. 1550-1553.
159
Anais
maiores questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação:
qual o tempo real concedido ao escritor? um ano? ou dois minutos? Temos duas concepções
para entender o que aconteceu a Hladik: de alguma forma, até então desconhecida, o escritor
conseguiu um ano como solicitado – ou até mais, já que do ponto de vista de Kairós o tempo
passa de forma diferente –; ou o que aconteceu não passou de uma ilusão vivida pelo
condenado e, de certa forma, pelo leitor do conto.
No dia 19 de março de 1939, Jaromir Hladik é preso. Sua sentença de morte foi fixada
para o dia 29 de março, às 9h. Em primeira instância, temos o personagem escritor, que não
consegue terminar de escrever seu romance, cujo título é “Os inimigos”. Assim, na prisão, faz
uma súplica a Deus.
3 BÍBLIA, 1 Reis. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão,
2016. p. 430-472.
160
Anais
Uma pesada gota de chuva roçou uma de suas têmporas e rolou lentamente
por sua face; o sargento vociferou a ordem final. O universo físico deteve-se.
As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo
permaneciam imóveis. O braço do sargento eternizava um gesto inacabado.
Numa laje do pátio uma abelha projetava uma sombra fixa. O vento cessara,
como num quadro. Hladik ensaiou um grito, uma sílaba, um torcimento da
mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais
tênue rumor do mundo estagnado. [...] adormeceu, depois de um tempo
indeterminado. Quando despertou, o mundo continuava imóvel e surdo.
(BORGES, 2007, p. 142-143).
Podemos observar que algo atípico ocorre nesse momento, algo insólito. O insólito se
caracteriza como algo que foge das leis que regem o sistema vigente, portanto, é uma
anormalidade dentro da narrativa.
O que se tem, afinal, é uma imprecisão do que realmente aconteceu no conto, visto
que o tempo cronológico volta após o momento em que Jaromir consegue terminar seu
romance pendente: “pôs fim ao seu drama: já não lhe faltava resolver senão um epíteto.
Encontrou-o; a gota d’água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, mexeu o
rosto, a quádrupla o derrubou. Jaromir Hladik morreu no dia 29 de março, às nove horas e
dois minutos da manhã.” (BORGES, 2007, p. 144).
Se considerarmos que o evento ocorrido não passou de um tipo de alucinação por
parte do protagonista, o que se conclui é que reina o tempo cronológico, assim, de alguma
forma desconhecida, houve um evento insólito, daí a intervenção de Kairós e do tempo de
Deus, o homem foi visitado por um Ser que está além da linha tênue do relógio, que o
transporta para um dimensão onde o tempo é medido de forma diferente, assim, horas
podem se comprimir a segundos ou vice-versa porque não se tem precisão cronológica.
Entramos no que Todorov vai chamar de estranho puro. Para o teórico,
Aqui temos um problema em mãos: parece não haver explicação para o que acontece
a Jaromir Hladik “pelas leis da razão” (TODOROV, 2010, p. 53), como Todorov afirma acima.
161
Anais
Assim, não é definitivo e assertivo dizer que o evento pertence ao gênero estranho puro.
Portanto, passemos a observá-lo de outra forma: fantástico-maravilhoso.
O fantástico-maravilhoso é uma outra instância da Literatura Fantástica. Nele, os
acontecimentos fantásticos acabam na aceitação do sobrenatural dentro da narrativa.
Logo, parece lógico concluir que o milagre secreto que foi concedido a Jaromir Hladik
por uma espécie de entidade que se assemelha ao Deus narrado na Bíblia – que fala e que
ouve os que nele creem –, seja um evento que se assenta no fantástico puro, porque
permanece sem explicação já que não nos é fornecido no conto formas que possam
comprovar o que de fato aconteceu, além da última frase que o encerra: “Jaromir Hladik
morreu no dia 29 de março, às nove horas e dois minutos da manhã” (BORGES, 2007, p. 144).
Mas há ainda um outro olhar sobre a obra. Umberto Eco, em seu livro Obra Aberta,
argumenta sobre as possiblidades que o autor deixa a cargo do leitor ao ler a obra e
reescrevê-la, no sentido da interpretação.
[...] uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma
seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa
recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos
sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada
obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz
uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja
compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia
dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma
situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente
condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendencias, preconceitos
pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica
segundo uma determinada perspectiva individual. No fundo, a forma torna-
se esteticamente válida na medida em que pode ser vista e compreendida
segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza de· aspectos e
ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria. (ECO, 1991, p. 40).
162
Anais
ocorrido seja estranho, insólito, mas que apresenta uma explicação: o homem teve um
momento de perda de consciência e percepção da realidade, por exemplo. Mas há
possibilidade para um olhar mais fantástico, daí a crença no sobrenatural e em algo que foge
às leis naturais que regem o mundo no qual a estória se passa.
Portanto, a participação do leitor é indispensável dentro da literatura fantástica,
porque pressupõe-se a sua contribuição em acatar eventos que distorcem a realidade
natural, o que faz com que ele os aceite mais facilmente do que em outros gêneros literários,
mesmo que isso exija que o leitor burle as suas próprias crenças, já que, dentro da narrativa
fantástica, “a participação do leitor é fundamental para a existência do fantástico, porque o
leitor precisa contrastar a história narrada com o fato real extratextual para considerá-lo
como relato fantástico.” (ROAS, 2014, p. 26).
Considerações finais
O fantástico nos inquieta porque, segundo David Roas (2014), é uma “subversão do
nosso mundo”. No entanto, o autor argumenta que a simples presença de elementos
sobrenaturais não garante o elemento fantástico na narrativa, contudo, o fantástico precisa
do sobrenatural para que possa existir. “O fantástico situa o leitor diante do sobrenatural
com o propósito de levá-lo a perder sua segurança diante do mundo real” (ROAS, 2014, p.
25).
O cenário narrado em “O milagre secreto” nos é familiar porque se passa em um
momento histórico: a Alemanha nazista e a perseguição aos judeus, isso faz com que os
eventos do conto sejam aceitos como verdadeiros pelo leitor, mas há o evento insólito que
confunde e distorce a realidade.
Em seu livro “Os inimigos”, Hladik pretendia discutir, em forma versada, sobre “as
unidades de tempo, lugar e ação” (BORGES, 20107, p. 139). Seu enredo soa familiar com a
própria realidade insólita vivida pelo escritor. Borges parece fazer um jogo de realidade e
ficção misturando realidades: primeiro Jaromir Hladik enquanto escritor; em seguida uma
segunda camada, em que se situa a realidade de seu livro em construção; e uma terceira, na
qual Borges infere a invasão da segunda dentro da primeira. O resultado que se tem é uma
estória passível de diversas análises e conclusões, mas nenhuma parece sustentar-se por
tanto tempo – uma contribuição do fantástico.
163
Anais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Italo. Rapidez. In: _______. Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 43-67.
ECO, Umberto. Poética da obra aberta. In: Obra Aberta. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
p. 37-66.
ROAS, David. A Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014.
164
OS SALÕES LITERÁRIOS
NA FRANÇA MODERNA:
memória e cultura na
Paris do Séc. XVIII
José Barroso de OLIVEIRA FILHO (UESPI)1
Raimunda Celestina Mendes da SILVA (UESPI)2
RESUMO
No século das luzes (XVIII), a França vivia uma intensa efervescência cultural e grande
insatisfação com as injustiças na sociedade, sob os poderes do regime monárquico. Com isso,
impõe-se o impetuoso desejo de iluminar mentes a independer dos poderes vigentes do
antigo regime. Com mais vigor, os salões literários encontros para leituras, debates,
declamação pública de versos, poemas e canções entre aristocratas e burgueses. A
participação das mulheres nessas reuniões de sociabilidade e atitudes sustentava a
existência dos salões franceses. Uma aristocracia ociosa, uma classe média ambiciosa, uma
vida intelectual ativa, a densidade social de um grande centro urbano, tradições sociáveis e
um certo feminismo aristocrático dava o tom de inconformação do momento. Facilmente
percebe-se a riqueza memorialística existente nesses espaços de memórias, individual e
coletiva - os salões literários de Paris nesse período da história, que não desapareceu em
1789, com a revolução francesa. Dessas proposições preliminares, tem-se que o objetivo
desse estudo é demonstrar os rastros históricos de memória na sociedade parisiense a partir
da participação ativa de homens e mulheres nesses lugares de recreação, estudos e debates.
E-mail: josebarrosorh@hotmail.com
2 Doutora em Letras pela PUCRS, professora da graduação e do PPGL da Universidade Estadual do
Piauí – UESPI. E-mail: raimundacelestina@cchl.uespi.br
165
Anais
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
166
Anais
sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.” Nesse
sentido, o presente estudo objetiva demonstrar os rastros históricos de memória na
sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nos lugares de
recreação, estudos e debates. Os salões literários desse período contribuíram para suscitar,
nos convidados e frequentadores desses espaços, debates que giravam em torno da grande
insatisfação advinda das injustiças sociais do poder monárquico. Evocando esses espaços de
sociabilidade e debates que carregam memórias da cidade de Paris, leva-se à confirmação de
Assmann (2011, p.317-318), que aponta as palavras de Cícero3, ao relacionar os locais, e seu
potencial de memória:
3 Estadista, orador e filósofo romano, Marco Túlio Cícero nasceu no ano 106 a.C. em Arpino, Itália, e morreu em
43 a.C. em Formia, Itália. Cícero é considerado o primeiro romano que chegou aos principais postos do governo
com base na sua eloquência e no mérito que obteve nas suas funções de magistrado civil. É um dos maiores
oradores e pensadores políticos romanos.
167
Anais
168
Anais
como se vê nos salões da França no século XVII, prática que perpassou séculos, alcançando
os séculos XVIII, XIX e os dias atuais.
Nessas residências particulares, ambientes repletos de significados e com aura
própria, damas inspiradoras, donas de salão conduziam e propiciavam aos visitantes,
convidados e frequentadores, espontânea atividade criadora do espírito, gerando momentos
de rica fruição, reflexão e de argumentação. Ali se formava a opinião pública e se iniciava a
contestação ao poder monárquico e eclesiástico, sobretudo com relação à vida na urbe
francesa. Nesse contexto, essas casas apresentam-se como um espaço de memória, pois
trazem marcas do passado. Como dito por Bachelard (1993, p.26), a casa “abriga o devaneio
[...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”; sentimentos de acolhimento e
subjetividades percebidos em Marcel Prust (2018) quando o príncipe Luís Napoleão,
incansável
[...] expressava pela centésima vez diante de alguns íntimos, no salão da rua
de Berri, seu desejo de ingressar no exército, sua tia, a princesa Mathilde,
desolada com essa vocação que lhe roubaria o mais amado dos seus
sobrinhos, exclamou, dirigindo-se aos presentes: - Vejam só que obstinação!
– Mas, infeliz, só porque tiveste um militar na família, isso não é motivo!...
Ter um militar na família! Reconhecemos ser difícil lembrar com menos
ênfase seu parentesco com Napoleão I. (PROUST, 2018, p.25).
Sobre isso, Ecléa Bosi (2003) destaca que as memórias pertencentes aos seres
humanos privilegiam os questionamentos, sonhos e desejos que permeiam o seu íntimo,
refletem os aspectos subjetivos e estão em constante diálogo com as ações desse indivíduo
na sociedade. De acordo com a estudiosa,
pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando
com as percepções imediatas, como também empurra, “decola” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante,
oculta e invasora. (BOSI, 2003, p. 36).
169
Anais
Quando se pensa que esse salão [...] foi um dos centros literários da segunda
metade do século XIX; que Mérimée, Flaubert, Goncourt, Sainte-Beuve
vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade, com uma familiaridade
tão completa que a princesa chegava a convidá-los a almoçar de improviso;
que eles não tinham segredos literários para com ela e ela não tinha reservas
principescas para com eles; que ela lhes prestou favores até o fim – não
somente favores cotidianos (Sainte-Beuve dizia: “Sua casa é uma espécie de
ministérios das graças”), mas favores de grande repercussão, daqueles que
põe fim a perseguições, dissipam preconceitos, facilitam o trabalho, auxiliam
no sucesso, adoçam a vida, mudam um destino. (PROUST, 2018, p.30).
As expressões, “vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade” e “Sua casa é
uma espécie de ministérios das graças”, confirmam o que diz Halbwachs sobre a importância
do espaço familiar, o primeiro que se tem contato, de modo que os membros da família
acabam fazendo parte da memória dos indivíduos que ali residem, em que ensinamentos são
transmitidos, caracterizando aquilo que o autor denominou de memória coletiva.
Evidencia-se, também a importância da memória coletiva ao afirmar que “nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso
acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Destaca-se que Halbwachs
não desconsidera a existência da memória individual, mas declara que em interação com o
social, a memória do indivíduo está atrelada a diferentes contextos e a vários participantes.
Quando os acontecimentos são partilhados pelo grupo, a memória deixa de ser individual
para tornar-se uma memória coletiva. Assim, a memória do indivíduo é constituída pelas
memórias dos diversos grupos de que ele participa e é influenciado.
Os salões literários de Paris, portanto, podem ser compreendidos como um momento
que se gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que
caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc.
XVIII. Logo, compreende-se que os salões literários parisienses canonizaram mansões que
iam desde as glamourosas organizações internas dos casarões, até o impecável
comportamento da alta classe durante os encontros.
Hoje, esses casarões, não possuem mais a função de moradia de seus primeiros donos,
mas são lugares de memória, ecoam rastros históricos e reminiscentes que narram um
período da antiga Paris durante um período em que as mulheres passaram a emergir na
sociedade impondo sua voz ao lado de pensadores do sexo masculino, seus cônjuges e
intelectuais.
170
Anais
No viés aqui considerado, a sociabilidade feminina nos salões de Paris, salienta-se que
estes eram instituições fundamentais para a vida literária dos séculos XVII e XVIII,
organizados por mulheres proeminentes, que passaram a ser o centro da vida no salão e
como reguladoras poderiam selecionar seus convidados e decidir os assuntos dessas
reuniões sociais.
Dentre outros salões do século XVIII, que também atraiam pessoas para trocas
culturais, aponta-se neste estudo quatro renomados salões e suas respectivas salonnières,
171
Anais
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Anais
aceitável para a educação formal que lhes era negada, porquanto reduzia a marginalização
das mulheres nesse quesito.
As limitações para as mulheres no acesso à educação, eram consideráveis na
sociedade, pois “a distância entre a leitura e a escrita era ainda maior do que para os homens,
porque segundo os padrões culturais vigentes, escrever poderia significar um aprendizado
inútil para elas, além de perigoso” (ZECHLINSKI, ano, 2012 página 32).
Em relação a estas questões de disparidade cultural, no caso das mulheres, as
diferenças em relação aos homens no acesso à educação e aos bens culturais levaram Peter
Burke (1999) a concluir que as mulheres nobres formavam um grupo intermediário entre a
elite, à qual pertenciam socialmente, e a não-elite, à qual pertenciam culturalmente. A
opinião de Peter Burke (1999, p.385) converge com a de Anne E. Duggan
Por toda parte um vão estava se formando, que separava aqueles que
possuíam capital financeiro e cultural daqueles que não possuíam. Mulheres
da classe alta se encontravam nos dois lados do vão. Financeiramente
separadas das mulheres e homens das outras “classes”, elas, no entanto, se
encontravam às vezes do outro lado dos trilhos no que se referia ao capital
cultural, para não mencionar direitos legais.
173
Anais
com homens influentes, como Valentin Conrart, um dos fundadores da Academia Francesa
que prestavam serviços ao poder real e depois disso se tornavam conhecidos pelo público.
Assim, os homens de letras, para obterem sucesso, dependiam não só do seu talento, mas
também de uma rede de relações pessoais que compunha a orquestra da república das letras.
Dessa forma, as instituições da vida literária, como as academias e os salões literários,
passaram a ter uma importância fundamental no panorama do mundo da crítica e da palavra
escrita na sociedade francesa do Antigo Regime.
Acresce que, chama atenção de quem aprofunda-se no estudo em questão, sentir o
esforço empreendido pelas mulheres parisienses do século das luzes, para colocarem-se na
sociedade e poder mostrar o quanto são capazes; e que, para além do enaltecimento da
maternidade, condescendência das convenções sociais, de boas esposas e boas donas de
casa, também questionarem seu lugar social; de elaborar e expressar suas próprias ideias e
de serem filósofas, escritoras, atrizes de teatro, artistas plásticas; enfim, conseguir
visibilidade, criar um lugar para si na vida social, sendo capazes de agregar com sua
inteligência e personalidade, pessoas e estabelecer espaço de conversação e de leitura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
174
Anais
175
Anais
contribuíram para o acontecimento dos salões literários também se faz de grande valia para
os estudos acadêmicos.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Rahel, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 25.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Tradução Denise
Bottmann. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 385p
DUGGAN, Anne E. Salonnières, furies and fairies: the politics of gender and cultural
change in absolutist France. Newark: University of Delaware Press, 2005. 288p
LILTI, Antoine. Le monde des salons. Sociabilité et mondanité à Paris au XVIIIe siècle.
Paris: Fayard, 2005. 568p. p. 9
LILTI, Antoine. Sociabilité et mondanité: Les hommes de lettres dans les salons parisiens
au XVIII e siècle, French Historical Studies, vol. 28, No. 3 (verão de 2005), p. 415-445
NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. IN Pierre NORA
(org). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, [1984]. Vol 1 La République. pp. VII a XLII. p.
XXIV.
176
Anais
ROSS, Sarah Gwyneth. Her father’s daughter: Cassandra Fedele, woman humanist of the
Venetian Republic. Studies across Disciplines in the Humanities and Social Sciences 2.
Helsinki, Helsinki Collegium for Advanced Studies, pp. 204-222, s.d.
ZECHLINSKI, Beatriz Polidori. Três autoras francesas e a cultura escrita no século XVII
gênero e sociabilidades. Beatriz Polidori Zechlinski. - Curitiba, 2312. 229 f. Tese
(Doutorado Ciências Humanas, Letras e Artes) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2012.
177
A CRÍTICA DIALÓGICA DA
ESCOLA DE GENEBRA
Carolina Rangel SILVA (Universidade de São Paulo)1
RESUMO
ABSTRACT
This production broaches the importance that the stablishment of a dialogue between
philosophy and literature has for literary criticism, taking as reference the criticism
178
Anais
conceived by the Geneve School. The perspective adopted resumes the questions about the
formal determinations of knowledge and the diferente conceptions of truth established
during the history of ideas. In this sense, the reflections refer to the transactional
relationship between the poetic and philosophical apprehension of reality from notion of
subjectivity implied in the literary criticism of the group in question. The formal particularity
of criticism produced by the School makes it possible to recognize the space of action
autlined during the Reading of literary work, by highlighting the subject´s position in relation
to the experience provided by the text. Such a position does not consolidate a categorical and
conceptual definition of the subject, since the performance of critical consciousness does not
assume na essentially positive or poetic conception of language. In terms of the critical
approach addressed, the place of subject for Geneva School is not categorically defined, but
evokes the dialogic relationship between poetry and philosophy that, in relation to the
central idea of this symposium, is in line with the thought of Benedito Nunes about the
subject. Thus, the work seeks to presente the subject as the central place where the
transaction between philosophy and poetry becomes possible.
O recorte que proponho aqui tem como objetivo expor o caráter necessário que
possui o diálogo entre a filosofia e a literatura para a reflexão crítica-literária da Escola de
Genebra. Cumpre dizer que o papel fundamental desempenhado por esse diálogo não é algo
difícil de ser reconhecido durante a leitura dos textos produzidos pelos autores desse grupo.
Ao contrário disso, a aproximação entre a filosofia e a literatura aparece de forma explícita
na obra de cada um dos críticos que participam desse conjunto. Tendo em vista o foco central
do presente seminário2, achamos por bem iniciar nossa reflexão a partir de um texto de
Marcel Raymond que aborda diretamente nosso tema. Trata-se de um texto inicialmente
apresentado pelo crítico em Strasbourg, em uma conferência realizada no ano de 1963 e
publicado no ano seguinte, em Genebra, com pouquíssimas alterações.
Nesse texto, cujo título é Cultura aberta e linguagem poética, Marcel Raymond reflete
acerca da situação em que se encontra a cultura literária naquele momento, bem como sobre
o tipo de fundamentação teórica que está por trás do valor conferido à linguagem poética e,
consequentemente, ao conhecimento que envolve esse tipo de produção. Com efeito, a crítica
literária da Escola de Genebra tem como princípio fundamental a consciência do sujeito a
respeito das determinações que lhe são impostas pela situação presente.
A consciência a respeito do contexto atual que envolve a produção crítica literária da
Escola de Genebra é tão essencial para a reflexão de Marcel Raymond que Jean Starobinski a
179
Anais
descreve como uma forma de resistência fundamental. Devemos ter em mente a radicalidade
dessa resistência, uma vez que Starobinsky frequentou o curso ministrado por Marcel
Raymond na Universidade de Genebra entre os anos 1934 e 1942, período este que coincide
com as conquistas nazistas e com o estado francês de Vichy. Nesse sentido, o vínculo entre a
elaboração teórica e a atualidade da consciência definia a direção opositiva da práxis crítica.
Conforme recorda Starobinski, Marcel Raymond fazia seus alunos compreenderem a
necessidade de abordar a obra literária a partir da consciência posicionada no instante
presente ou, para melhor dizer, a partir do momento histórico em que suas existências
estavam situadas3.
De fato, podemos reconhecer o caráter imprescindível que esse posicionamento
possui na produção de Marcel Raymond através da forma como ele fundamenta sua reflexão
crítica no exame da situação em que os estudos literários se encontram no momento
histórico em que a conferência se realiza em Strasbourg. Sendo assim, tanto a
particularidade da situação, quanto as limitações teóricas que ela implica são apresentadas
no texto supracitado a partir da seguinte reflexão:
3 Cf. 3 Starobinski, Jean. Les Aproches du Sens: Essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013 p.311
180
Anais
181
Anais
conhecimento cientifico impõem critérios que reduzem a expressão literária a mero auxiliar,
obrigando o crítico a assumir pressupostos e objetivos alheios a sua matéria para orientar a
interpretação do texto.
Não é à toa que Marcel Raymond descreve a assimilação dos métodos científicos como
um ato de submissão por parte do crítico que assume o papel de perdedor e dobra os joelhos
diante do que parece óbvio, a saber, que a instabilidade literária foi transposta pela eficiência
cientifica. Na prática, os críticos da Escola de Genebra apontam o preço cobrado da literatura
pela segurança da lógica positivista quando examinam o que acontece com a crítica literária
que assenta sua produção nos campos vizinhos que constituem o território da ciência.
Lembremos que, nesse momento, estamos pensando no campo das ciências humanas.
Como mostra uma análise de Jean Starobinski a respeito desse tema, a sociologia,
ciência das estruturas da vida social; psicologia, ciência da personalidade, linguística, ciência
da linguagem, cada um poderia incluir obras literárias no campo de sua pesquisa. A
dificuldade que ronda essa inclusão é a obrigação que se impõe aos críticos de voltar para a
escola e de modo a se formarem linguistas, sociólogos ou psicólogos.
Em outras palavras, segundo a posição expressa pelo crítico da Escola de Genebra, a
crítica literária, nos casos citados por ele, deixa de ser crítica literária para ser uma crítica
sociológica, crítica psicológica, crítica linguística etc. Por esse motivo a Escola de Genebra
coloca a exigência de refletir sobre as condições necessárias para a prática de uma reflexão
verdadeiramente comprometida com o caráter literário do conhecimento produzido por ela.
Retornando ao texto de Marcel Raymond, que serve de fundamento para nossa
apresentação, se por um lado a submissão à lógica cientificista acaba por suplantar o caráter
literário da crítica, por outro lado é impossível ignorar as transformações operadas durante
o desenvolvimento histórico da ciência moderna sobre a própria concepção de saber. Nesse
sentido, como afirma o autor, é preciso evitar ainda “uma segunda tentação, compensadora
da primeira, seria a da orgulhosa e vã retaliação: a ciência, ou nova ciência, Leva o mundo à
ruína; só nós saberemos, se ele deve ser salvo!” (RAYMOND, 1964, p.254)
Evitamos assim um erro comum àqueles que conferem aos críticos da Escola de
Genebra um sentimento de total aversão a qualquer procedimento vinculado às ciências ou
a preocupações que remetem à história das ideias. Ao contrário disso os críticos do grupo
reconhecem que a negação de todo arcabouço cientifico para instaurar uma espécie de
conhecimento literário puro implicaria a completa autonomia da reflexão em relação a todos
os métodos e parâmetros que fossem alheios à forma literária. E como o próprio Raymond
182
Anais
afirma, o fato é que hoje uma cultura literária que pretende extrair toda a sua substância de
seus próprios recursos e ser autossuficiente, dificilmente é concebível.
Dessa maneira, levando-se em conta as condições que pautam a prática dos estudos
literários, torna-se patente, para a Escola de Genebra, que o estabelecimento de um diálogo
com outras formas de saber é essencial. Contudo, é preciso considerar que dentre as
condições que envolvem um diálogo real, é fundamental que haja o reconhecimento mútuo
entre as partes que o estabelecem. Com isso queremos dizer que é preciso encontrar um
meio para suprimir qualquer tipo de hierarquia entre as diferentes formas de saber
envolvidas.
Como dissemos há pouco, a Escola de Genebra não ignora as transformações
históricas pelas quais passou o modo de enunciação do saber ou procedimentos
reconhecidos para a obtenção do conhecimento verdadeiro. Tanto as consequências de tais
transformações, quanto a necessidade de superar as limitações impostas por elas são
consideradas no texto de Raymond, quando o autor afirma o seguinte:
Desse modo, é a partir do reconhecimento dos limites, que a crítica literária manifesta
o desejo de sobrepuja-los. Como disse Marcel Raymond, o caminho para isso não é o da
retaliação, mas o do diálogo. A dificuldade de estabelecer o tipo de relação necessária para a
troca dialógica, por sua vez, exige a criação de um espaço transacional por parte do crítico.
Nesse sentido, os críticos da Escola de Genebra enxergam no trabalho a ser desenvolvido
pela consciência do leitor o mesmo sopro, a mesma inspiração que possui a obra literária.
Apesar da dificuldade que existe em encontrar este meio comum o crítico reconhece
que há espaços onde a possibilidade de interlocução é maior. Nessa apresentação vamos nos
restringir àquele apontado por Raymond como o mais natural: a filosofia. Devido ao tempo
reduzido que dispomos aqui, iremos apenas indicar o caminho adotado pelo crítico no texto
em questão, destacando que o diálogo entre a literatura e a filosofia atua como um elemento
de identificação para a formação e integração dos componentes da Escola de Genebra.
Devemos destacar também que os modos como cada um dos críticos atuam para composição
de tal espaço não são idênticos, nem estão subordinados a um quadro estático normativo.
183
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Anais
REFERENCIAS
STAROBINSKI, Jean. Les aproches du sens: essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013.
185
A VIDA LITERÁRIA NA “NOVA
ATENAS BRASILEIRA”:
TRAJETÓRIAS NEGRAS DE
NASCIMENTO MORAES E
ASTOLFO MARQUES
Patricia Raquel Lobato Durans CARDOSO1 (UFSC)
RESUMO
186
Anais
ABSTRACT
Broca (2005) salienta que o campo literário, assim como todo campo intelectual, não
é povoado só com textos, mas por redes de sociabilidade, incluindo o afetivo e o ideológico,
que se interpenetram. Ao contrário do que se pode pensar, mesmo estando situado em um
mundo de inteligência, no qual, teoricamente, os indivíduos reprimiriam suas emoções a
serviço da razão, de acordo com Sirinelli (2010), as relações de atração, amizade, hostilidade,
rivalidade, ruptura, briga e rancor desempenham papel decisivo, assim como as fofocas, as
intrigas, os boatos, as polêmicas.
De certa forma, Broca (2005) antecipa discussões que vão se dá de forma mais
profunda e sistemática a partir da década de 1970, quando, conforme Culler (2016), a teoria
literária passa a se preocupar não só com questões puramente de natureza literária, mas com
uma massa de textos teóricos sobre coisas que são importantes à literatura e que vão
desembocar em todas as mudanças que se tem atualmente nessa área de conhecimento.
Nessa perspectiva, este artigo, fruto de uma comunicação, tem o objetivo de colocar
em destaque dois intelectuais negros do final do século XIX, pensando-os como precursores
de uma literatura afro-brasileira a partir de atuações regionais no que a historiografia
maranhense chama de “Ciclo ou Fase Neoateniense”. Esse termo é escrito aqui entre aspas
187
Anais
para indicar que se trata atualmente de uma classificação historiográfica discutível e que tais
autores encaixados nesse período não representavam uma homogeneidade.
Para entendermos melhor a vida literária do Maranhão no século XIX, é preciso dizer
que a historiografia tradicional local (LOBO, 2008; CARVALHO, 1912; MEIRELES, 1955;
MORAES, 1977) afirma que a literatura maranhense teve três grandes ciclos ou fases no
século XIX. Para esses pesquisadores, antes desse século e do advento do Romantismo não
existia o que se pode chamar de literatura maranhense, mas literatura sobre o Maranhão. A
partir do regresso de uma elite econômica e intelectual que estudou em Coimbra e a
instituição da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, começou a aparecer
uma vida intelectual maranhense. Em termos literários, isso se deu com a aparição das obras
de escritores que foram se inserindo no chamado “Grupo Maranhense”, cujo início foi em
1832 com a publicação de Hino à tarde, de Odorico Mendes. Devido à vida literária intensa
nesse período e com a monumentalização da cidade, a criação de órgãos de publicação e
circulação de escritos e o sucesso literário de escritores do calibre de Gonçalves Dias, João
Lisboa, dentre outros, a capital maranhense recebeu o título de Atenas Brasileira. Para
resumir esse acontecimento, Corrêa (1993, p. 29) coloca que “a mitologia da Atenas
brasileira correlacionou o principium sapientiae grego ao papel desempenhado pelo Grupo
Maranhense no desafio de responder às exigências constitutivas de uma cultura brasileira”.
Aí está o primeiro ciclo.
O segundo ciclo nasce com uma literatura realista/naturalista e se configura pelo
esvaziamento intelectual do Maranhão, uma vez que esse ciclo foi constituído por
maranhenses estudantes da Faculdade de Direito de Recife e se caracterizou por escritores
que construíram suas trajetórias fora da sua terra natal. Por esse motivo, essa geração é
chamada de “Grupo dos Emigrados”. Não há um consenso na historiografia no que diz
respeito ao marco inicial desse grupo, mas o seu início se dá no final da década de 1860. O
motivo da saída desses intelectuais foi a divergência de ideias entre a população tradicional
e os intelectuais liberais. Nesse grupo está Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Graça Aranha,
Coelho Neto, Raimundo Corrêa, etc.
A partir desse esvaziamento literário interno, que via o Maranhão sem seus cérebros
mais brilhantes, nasceu o terceiro grupo da literatura maranhense, com a publicação de
Frutos Selvagens, de Inácio Xavier de Carvalho, em 1893. Esse grupo de intelectuais queria
reativar a literatura maranhense feita em sua terra e se inspirava na primeira geração para
isso. Como coloca Broca (2005), urgia restabelecer a supremacia intelectual da decantada
188
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Anais
Negro! Eis aí o insulto, a palavra com que eles pensam que nos esmagam, que
nos reduzem a última expressão!
Que não diriam se fossemos brancos da ilha, ou mesmo caboclo!
Negro! É o grito de terror, de medo e de ódio, é o grito do vencido, do nulo,
do inabilitado que não pode discutir e nem sabe fazer o que todo mundo sabe
- insultar!
Negro! Repetem tomados pela cólera, possuídos por uma idiota indignação!
[…]
Estamos satisfeitíssimos com esta amostra que deram do seu elevado
preparo e grandeza intelectual e moral!
Na verdade, é digno de nota, que um homem talentoso e de muito saber
escreva versos ameaçando de chicote, relho cru, etc. o adversário!!!...
Nada mais edificante, majestoso e eloquente, para quem brilha como estrela
de primeira grandeza literária, para quem guia espíritos de moços
inexperiente que lhe seguem as lições!!!... (MORAES, 1910, p.10).
Em outro momento, mais uma vez, Moraes se levantou contra Lobo no sentido de
mostrar a sua ancestralidade e reverter os ataques racistas que vinha sofrendo:
Diante desses insultos, questiona-se onde estaria Astolfo Marques nesse momento? O
que teria sentido vendo um homem negro, assim como ele, sofrer toda essa humilhação? E
que tal humilhação vinha de seu grande amigo Antonio Lobo? Em meio a tantos que foram
192
Anais
chamados ou citados na polêmica e que quiseram se retratar, Marques foi o único que
permaneceu indiferente, mesmo quando afirmaram que ele era inferior a Nascimento
Moraes e que só era reconhecido porque era da panelinha de Lobo. Não entrou na conversa.
Não escreveu nem para Lobo, nem para Nascimento. Permaneceu neutro, mesmo já tendo
sido elogiado pelos dois que estavam na polêmica.
Assim era a escrita de Astolfo Marques. Uma escrita que queria parecer neutra,
principalmente no que concerne às questões raciais. Enfatiza-se o parecer, porque Astolfo
não deixava de tratar sobre as questões mais urgentes de sua época, como instabilidade
política, problemas da República, escravidão, abolição e questões raciais, mas esses temas
apareciam no detalhe, ou seja, muito mais nos textos literários do que nos artigos
jornalísticos. No que diz respeito às polêmicas, o seu nome não estava registrado nessas
estruturas de sociabilidade e não se tem notícia de seu rompimento com Antonio Lobo. Este,
por sua vez, no final de sua vida, rompeu com todos os seus amigos, morrendo na mais
completa solidão. Enfim, o perfil de Astolfo era de uma aparente não implicação ideológica.
Mesmo vivendo na época em que vivia, ao contrário de Marques, Moraes tinha uma
escrita combativa e autoafroidentificada, sendo hoje reconhecido como um literato afro-
brasileiro. No caso de Marques, não foi até agora reivindicado um lugar na literatura afro-
brasileira para esse intelectual. Será que o contexto social, político, individual em que se
encontrava não dava margem para expressar o seu pertencimento racial? Será que a sua
sobrevivência enquanto escritor dependia do apagamento de sua identidade negra?
Marques não tinha essa escrita combativa, porém suas obras literárias não se furtavam em
discutir essas questões de uma maneira menos explícita e menos categórica.
Podemos perceber isso por meio de seus romances. Em Vencidos e Degenerados,
publicado em 1915, Moraes constrói uma São Luís negra, com personagens negros que se
envolvem politicamente para produzir melhores contextos de vida para si e para os outros,
mas são perseguidos por isso, ou mesmo vencidos e degenerados, como o próprio título já
expressa. A trama se desenvolve a partir de datas históricas que delimitam seu início e fim:
o dia da abolição da escravatura no dia 13 de maio de 1888, às oito horas da manhã, e a
Proclamação da República em 15 de novembro de 1900 (primeiro aniversário da data). A
história se passa em São Luís, capital maranhense. A escolha dessas duas datas é simbólica e
permite estabelecer entre elas uma relação de causalidade.
Contudo, é importante perceber que a consecução dos fatos revela uma quebra de
expectativa em relação aos tons das duas comemorações, pois a festa da abolição é uma festa
193
Anais
popular, alegre, do povo humilde, dos oprimidos, dos negros, enfim, uma festa de esperança;
já a festa da República era apenas uma solenidade esvaziada de sentido, burocrática, elitista,
uma festa que frustrava o povo, que se manifestava por meio de insultos àqueles ares que
eram republicanos, mas não democráticos (MORAES, 1968). Percebe-se explicitamente uma
decepção com a República por meio de uma denúncia em relação à não concretização dos
ideais sonhados com o regime político estabelecido.
Essa discussão em torno dos mesmos fatos históricos se apresenta no romance de
Marques, A nova Aurora, publicado em 1913 – uma república elitista e uma abolição popular
-, porém a São Luís negra de Marques é harmonizada com cenas que estão relacionadas ao
modo como a elite maranhense encarava tais fatos acontecidos. Na verdade, visões
contraditórias mantinham a cena equilibrada para que não se pudesse notar o tratamento
do tema da negritude. Isso se pode observar quando não se tem explicitamente uma tomada
de posição política, uma vez que a República era criticada, mas depois harmonizada com a
ideia de esperança, o que não ocorre em Moraes.
Presta-se homenagem tanto aos republicanos quanto aos monarquistas nas duas
dedicatórias do livro. A própria abolição começa sendo narrada como um problema para a
economia, destacando, inclusive, uma indenização para os donos de escravos e, mais tarde,
sendo exaltada como regeneração social e grande dinamizadora da economia maranhense
que se tornava industrial. Ao mesmo tempo que o texto exalta nomes como Eusébio de
Queiroz, José do Patrocínio e outros abolicionistas, coloca ao lado deles a Princesa Isabel,
destacando-a sempre como “A Redentora”, sem que se possa perceber se se trata de uma
menção irônica ou não.
Ao mesmo tempo em que o texto oferece grande destaque ao fuzilamento de homens
negros por se rebelarem contra a República, acredita no conceito histórico republicano. Em
meio a tudo isso, todas essas fricções, contrastes ou contradições do texto, elementos que
estão na sua própria tessitura, extrapolam para o âmbito estético e se consolidam por meio
da dificuldade de se definir o próprio gênero literário, classificado em sua capa como “novela
maranhense”. Em muitos momentos, o texto se constrói mesmo enquanto conteúdo não
ficcional, tendo sido antes publicado em partes como artigos de jornais.
O título já expressa uma doçura e uma noção de esperança que torna o texto menos
pesado e mais camuflado, embora o autor não se furte em narrar assuntos importantes para
a época. A escolha por essas questões e não por outras, ainda que sejam menos
problemáticas, já sugere um nível de comprometimento com os problemas de sua sociedade
194
Anais
maranhense e brasileira, produzindo uma atitude ética que coloca a escrita de Marques como
possibilidade de reflexão sobre diversas temáticas, dentre elas a questão racial. Isso está
presente nas obras dos dois literatos, porém, enquanto Moraes dá visibilidade à questão
racial, a escrita de Marques mergulha num jogo de visibilidade-invisibilidade das relações
raciais que estão imbricadas em sua condição social e racial. Cada um descobriu a seu modo
como jogar o jogo, ou seja, a identificar as estratégias que lhes permitiram atuar como
literatos/intelectuais na sociedade maranhense nos primórdios da Primeira República.
Enquanto Moraes explicita a sua literatura negra, Marques a guarda nas estruturas
mais profundas de interpretação. Enquanto Moraes usa tanto o jornalismo quanto a
literatura para a denúncia, Marques prefere escondê-la por meio da sensibilidade do molde
literário. Para a época, esse segundo modo era uma literatura possível, mas não menos
literatura afro-brasileira do que a primeira.
Marques e Moraes são duas trajetórias negras e maranhenses que seguiram caminhos
diferentes na luta antirracista.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil – 1900. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
Academia Brasileira de Letras, 2005.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária hoje. In: CECHINEL, André (Org.). O lugar da teoria
literária. Florianópolis: EdUFSC, 2016, p. 83-100.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI.
Rio de Janeiro: Pallas, 2014.
GALLIZA, G. Intervenção pacífica. Pacotilha, São Luís, ano XXX, n. 178, 30 jul. 1910. p. 2.
MARQUES, Astolfo. A nova Aurora. São Luís, MA: Tipogravura Teixeira, 1913.
195
Anais
MORAES, Jomar. Apontamentos de literatura maranhense. 2. ed. São Luís: SIOGE, 1977.
MORAES, Nascimento. Puxos e repuxos. São Luís: Typographia do Jornal dos Artistas,
1910.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÈMOND, René (Org.). Por uma história
política. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 231-269.
196
ASTERIX E O
FANTÁSTICO: ENTRE
HISTORIOGRAFIA E
SUBVERSÃO
Rafael Silva FOUTO (UFSC)1
RESUMO
1 Mestre em Inglês pela UFSC, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura – UFSC.
Órgão financiador: CAPES. E-mail: rafaelfouto@gmail.com.
197
Anais
ABSTRACT
Asterix (Astérix, in French) is a world-famous comic book series, originally created in 1959
by French duo René Goscinny and Albert Uderzo, and continued from 2013 onwards by Jean-
Yves Ferri and Didier Conrad. It narrates the adventures of Asterix and his companion Obelix,
members of a Gallic village of indomitable warriors shortly after the period of the Gallic
Wars. In an imaginary version of this historic moment, the small village in Gaul resists the
Romans thanks to the magic potion created by the druid Getafix, which gives the Gauls super
strength. Contact with various peoples both from the period in which the narrative takes
place and from later times allows Asterix's stories to mix aspects of historiographical reality
with fantasy, with social commentary based on textual and visual comedy. Thus, by working
on the issue of comics as a hybrid genre within literature (MESKIN, 2009; PIZZINO, 2016),
this work analyzes the fantastic in Asterix as an element of subversion, as explained by
Rosemary Jackson (1981). From this perspective, the adventures of Asterix and Obelix
against the Romans and other cultures seek to subvert historiography in order to question
contemporary aspects such as oppression, resistance, colonization and even economic
stratification, based on the magic potion that makes Asterix’s village the epicenter of social
transformations.
Introdução
198
Anais
A classificação conceitual das histórias em quadrinhos talvez seja, até hoje, uma das
mais difíceis de ser feita. Caminhando no limiar entre literatura e arte visual, os quadrinhos
desenvolvem características que fogem a ambos esses campos, criando uma forma de
narrativa única. Christopher Pizzino (2016) compreende a situação das histórias em
quadrinhos como um meio textual considerado ainda ilegítimo, mesmo havendo a ascensão
atual da noção de graphic novel e dos filmes baseados em quadrinhos de super heróis. Há,
nesse sentido, um entendimento tácito de que histórias em quadrinhos eram originalmente
um meio voltado ao público juvenil e que agora merecem um certo nível de atenção adulta
por sua maturação ocasionada pelo cinema (PIZZINO, 2016). Ainda que não mais
marginalizado no mesmo nível que no passado, muitas vezes se compreende esse meio como
inferior a outras formas de arte, excluindo-o, por exemplo, do campo da literatura. O que isso
gera, conforme Pizzino, é um grau de autoconsciência da ilegitimidade dos quadrinhos na
cultura por parte dos próprios escritores desse meio, algo que Pizzino nomeia de autoclasm,
ou “autorrompimento” (2016), isto é, a necessidade que esses autores de histórias em
quadrinhos encontram de justificar a relevância de seu próprio trabalho dentro do meio,
sendo um problema de status social. No caso de Asterix, o mero estudo de uma história em
quadrinhos de caráter cômico e fantasioso soma novas camadas de ilegitimidade a esse
autoclasm, uma vez que explora mais dois aspectos contra os quais a academia e a sociedade
demonstram resistência: o fantástico e a comédia dentro da literatura, considerados
historicamente formas menores de arte.
199
Anais
Desse modo, torna-se importante a legitimação dos quadrinhos como arte e, mais
importante, sua posição em relação à literatura. Aaron Meskin (2009) sugere classificar as
histórias em quadrinhos como uma forma híbrida de arte, visto que determinados
quadrinhos se aproximam ou se afastam daquilo que se pode compreender como literatura,
mas simultaneamente descendem desta em sua evolução como gênero artístico e textual. A
relação com a imagem, entretanto, vai além do que ocorre na literatura tradicional ou mesmo
no cinema, sendo algo que Scott McCloud (1994) chama de uma dança silenciosa entre o
visível e o invisível, o jogo contido entre os quadros que permitem compreender o todo, e
exigem o esforço visual do leitor para ser compreendido. Essa dança, conforme McCloud, é
única às histórias em quadrinhos; nesse sentido, ele se mostra contra a ideia dos quadrinhos
como híbrido entre arte gráfica e ficção em prosa, porque não há necessidade da presença
de texto para de fato ocorrer a dança visual mencionada. Contudo, o caso dos quadrinhos
que incluem textos não pode ser ignorado, e a hibridização proposta por Meskin não seria
no sentido de uma mera junção dos dois elementos apontados por McCloud, mas sim uma
mistura deles:
De fato, no caso específico de Asterix, poder-se-ia falar de uma dupla hibridização, não
apenas estrutural, entre ilustração e texto, mas também temática, entre historiografia
tradicional e fantasia, a relação imagética entre as culturas materiais históricas
representadas na ilustração e seu uso de maneira fantástica, que é misturado ao texto para
criar o efeito cômico. Dessa maneira, Goscinny e Uderzo trabalham simultaneamente com os
achados arqueológicos disponíveis a respeito dos gauleses e com o imaginário popular
desses povos, utilizando-os com o propósito de fazer diversos comentários sociais e culturais
a respeito da modernidade. A identificação de Asterix como obra de fantasia, por sua vez, é
200
Anais
claramente apontada por John Clute e John Grant no famoso trabalho The Encyclopedia of
Fantasy (1997), especialmente em sua capacidade de satirizar contextos históricos e sociais
por meio do fantástico.
Cabe ressaltar, nessa perspectiva, a necessidade já apontada por Rosemary Jackson
(2009) em localizar a escrita da fantasia em seu contexto social de produção. Uma análise
estruturalista como a de Tzvetan Todorov (1970), por exemplo, não daria conta de
caracterizar os aspectos fantásticos trazidos por uma história em quadrinhos como Asterix,
calcada na observação de especificidades culturais. Assim, a discussão trazida por Todorov
e outros referente a diferenciação entre os conceitos de “fantasia” e o “fantástico” não será
trazida na análise aqui presente: ambos as palavras serão abordadas de maneira
intercambiável, a primeiro como substantivo, e a segunda como seu adjetivo. Ainda
conforme Jackson, a fantasia seria uma literatura do desejo, buscando a experiência daquilo
que é entendido como algo culturalmente ausente ou perdido (JACKSON, 2009). Desse modo,
3 “Ao expressar o desejo, a fantasia pode operar de duas maneiras (de acordo com os diferentes
significados de 'expressar'): pode contar, manifestar ou mostrar desejo (expressão no sentido de
retrato, representação, manifestação, enunciado linguístico, menção, descrição), ou pode expulsar o
desejo, quando esse desejo é um elemento perturbador que ameaça a ordem e a continuidade cultural
(expressão no sentido de pressionar, espremer, expulsar, livrar-se de algo pela força). Em muitos
casos, a literatura fantástica cumpre ambas as funções ao mesmo tempo, pois o desejo pode ser
‘expulso’ através de ter sido contado e, assim, vicariamente experimentado pelo autor e pelo leitor.
Assim, a literatura fantástica aponta ou sugere a base sobre a qual repousa a ordem cultural, pois se
abre, por um breve momento, à desordem, à ilegalidade, ao que está fora da lei, ao que está fora dos
sistemas dominantes de valor”. Tradução nossa.
201
Anais
que é deste mundo, transformação do familiar em algo aparentemente outro e estranho. Atua
em uma relação simbiótica com o real, uma vez que não pode se desfazer dele, apenas
expressar o desejo por algo diferente desse real, ou expulsar esse desejo de modo a mostrar
aquilo que escapa ou é mal visto pela ordem dominante. Considerando o elemento central
satírico em Asterix, a presente análise seguirá o conceito de fantasia como subversão de
Jackson para investigar as maneiras como Goscinny e Uderzo (e, em menor grau, Uderzo
apenas) expressam o desejo pela desordem e diferença em sua visão de um passado
particularmente próximo da modernidade.
202
Anais
Vários grandes chefes haviam de fato sido derrotados por Roma, sendo Vercingetorix,
líder de uma aliança de diversas tribos gaulesas, um dos mais famosos. Repete-se o mito dos
gauleses como antepassados dos franceses modernos, já desmistificado por vários
historiadores e acadêmicos, mais famoso entre eles o pesquisador Jean-Louis Bruneaux
(2018), como fruto de uma invenção nacionalista criada no século XIX para prover a nação
francesa de um passado heroico, em que a trágica figura de Vercingetorix é apropriada para
representar o espírito resiliente francês. Entretanto, como pode ser visto na Figura 1,
Goscinny e Uderzo ao mesmo tempo subvertem essa narrativa ao localizarem a aldeia de
gauleses irredutíveis na região da Armórica: conforme John Koch (2006), historicamente
uma província que de fato causou problemas ao controle romano, essa região também é
palco das migrações de povos bretões vindos das Ilhas Britânicas para o continente, razão
pela qual recebe hoje o nome de Bretanha (Bretagne, em francês). A Bretanha é, até hoje, de
uma cultura diferente do resto da França, dita “céltica” em função dos falantes da língua
bretã, aparentada ao idioma galês. Desse modo, a escolha da Armórica como pátria de Asterix
e seus amigos reforça tanto a alteridade quando a celticidade desse grupo em particular de
gauleses, epicentro do fantástico nos quadrinhos. Não apenas isso, essa relação de
parentesco entre todos os grupos que são chamados atualmente de “celtas” é reforçada,
como se pode se ver no volume 8 dos quadrinhos, Asterix entre os Bretões:
203
Anais
se intimidam com sua presença, comentando-a de modo positivo, ao mesmo tempo em que,
textualmente, invertem substantivo e adjetivo, referência à gramática do idioma inglês
moderno falado na Grã-Bretanha. Por meio desse aparente anacronismo se desvela
novamente uma subversão da historiografia pelos autores, de modo a posicionar a cultura
moderna da Inglaterra no mesmo espaço geográfico da antiguidade.
Figura central para o desenvolvimento do fantástico em Asterix, a imagem do druida
é talvez o aspecto mais literário incluído por Goscinny e Uderzo. Cercados pelas brumas do
tempo, os druidas se mostram até hoje como uma classe de indivíduos cujas práticas são
largamente desconhecidas, e mesmo durante a Idade Média já haviam se tornado parte do
imaginário literário, especialmente no que tange à mitologia irlandesa (KOCH, 2006). Em
Asterix, a mesma ideia do druida como praticante de magia é ressaltada:
204
Anais
Como mostra a Figura 4, essa poção permite a Asterix arremessar, estapear e surrar
todos os soldados romanos que encontra em seu caminho, ainda que não lhe garanta
invulnerabilidade a eles. Obelix, por outro lado, é capaz de tudo isso por conta própria, já que
caiu em um caldeirão cheio da poção quando era bebê – uma das piadas recorrentes entre
os volumes é o desejo de Obelix em beber a poção, apenas para ser lembrado do que ocorreu
em sua infância e dos efeitos perigosos em bebê-la novamente. Como esperado, esse efeito
mágico abre caminhos para que Asterix e Obelix possam causar destruição e discórdia no
próprio coração de Roma, desmoralizando César e seus esforços para conquistar a diminuta
e indômita vila gaulesa. Essa desmoralização ocorre em todos os níveis, desde a constante
caça a exércitos romanos, descritos quase como uma delicadeza culinária por Obelix, até
mesmo aos jogos de gladiadores no Coliseu de Roma. Este último é infiltrado pela dupla no
205
Anais
A crítica social fica clara nessa passagem, não menos pela escolha de um escravo
africano para representar o líder dos escravos no acampamento romano, algo certamente
possível e talvez comum na Antiguidade, mas que remete principalmente à colonização
europeia – e francesa – na África e nas Américas e à escravidão durante a era moderna. A
escolha da maneira de representar esse escravo é questionável, uma vez que claramente se
utiliza de estereótipos racistas na construção fenotípica do personagem, algo esperado em
uma obra feita por dois franceses brancos no início dos anos 1970, fato este que requer uma
discussão específica aprofundada, infelizmente inviável na presente análise. Entretanto, a
presença de Asterix e Obelix oferecendo a poção mágica para que o líder dos escravos se
revolte contra seus mestres é uma poderosa mensagem social, provocando a inversão de
poderes dentro do acampamento, representada posteriormente pelos escravos ganhando
poder de negociação e salários pelos seu trabalho. Não se pode evitar verificar que, nessa
negociação entre Asterix e o líder de escravos, talvez se encontre também ansiedades
modernas da sociedade francesa em lidar com seu passado escravocrata, expressando o
206
Anais
desejo, conforme apontado por Jackson (2009), em modificar e reparar por meio do
fantástico essa dívida histórica.
Por fim, um último elemento fantástico que merece menção em Asterix é a presença
do bardo Chatotorix (Assurancetourix, no original francês, e Cacofonix, na tradução
portuguesa). Para esse personagem, Goscinny e Uderzo trabalham novamente com a
subversão de expectativas do fantástico apontada por Jackson (2009), por meio da inversão
do papel do bardo histórico, originalmente um grande mestre da poesia, exaltação e música
nas fontes da Antiguidade a respeito dos gauleses (KOCH, 2006). Em Asterix, todavia,
Chatotorix é desafinado e considerado péssimo em suas canções, com a piada recorrente de
terminar sempre amarrado próximo a uma árvore nos banquetes que concluem cada volume
dos quadrinhos. Contudo, no volume Asterix e os Normandos, Chatotorix demonstra uma
habilidade fantástica própria:
207
Anais
desprazer de ouvi-lo. Mais importante, suas habilidades fazem com que os normandos
sintam o medo pela primeira vez e fujam também, concluindo assim a missão de resgate. Em
outras ocasiões, como em As 1001 Horas de Asterix (UDERZO, 1987), Chatotorix é capaz até
mesmo de fazer chover com sua música, demonstrando que suas habilidades (ruins) são, de
fato, mágicas. É nessa fusão entre relato histórico dos bardos – em particular em sua
capacidade de satirizar os oponentes, conforme mencionada em fontes medievais insulares
(KOCH, 2006) – e inversão paródica de sua função social que Goscinny e Uderzo subvertem
mais uma vez a realidade.
Considerações finais
Com base no que foi analisado, pôde-se verificar que junto à hibridização de forma
em Asterix, isto é, a união entre literatura e arte visual dos quadrinhos, soma-se uma segunda
hibridização, de caráter narrativo: a fusão entre historiografia e fantasia. A escolha de
gauleses como o foco das histórias não é à toa, uma cultura celta oprimida e apagada
historicamente, possibilitando a comparação com a realidade atual das culturas falantes de
línguas celtas, que ainda vivenciam os efeitos da vida às margens, linguística e
geograficamente, das sociedades europeias, na chamada “franja céltica”. Por meio da
representação dessa pequena vila gaulesa cercada pelo domínio romano por todos os lados,
Goscinny e Uderzo se remetem à figura universal do underdog, o azarão cujas chances de
vencer são ínfimas, e subvertem essa figura de modo a torná-la um constante vencedor,
utilizando simultaneamente o veículo underdog das artes, as histórias em quadrinhos.
Expressam, por meio da poção mágica, o desejo do oprimido por uma força que o permita
não apenas se revoltar contra o opressor, mas derrotá-lo ao ponto de ser deixado livre em
sua própria posição marginal. Dessa maneira, Asterix demonstra a razão pela qual sua
narrativa – e as histórias em quadrinhos em geral – continua a ocupar um espaço especial
nos dias atuais. Mesmo após a morte de seus criadores, Asterix dialoga, através de seus
personagens fantásticos semi-históricos, com os debates sociais contemporâneos que visam
romper e desfazer os sistemas culturais dominantes há séculos. Esses opressores são loucos!
REFERÊNCIAS
208
Anais
CLUTE, John; GRANT, John (orgs.). The encyclopedia of fantasy. London: Orbit, 1997.
CUNLIFFE, Barry. Druids: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.
GOSCINNY, René; UDERZO, Albert. Asterix e os godos. Tradução de Eli Gomes. Rio de
Janeiro: Record, 1983a.
______. Asterix e os normandos. Tradução de Eli Gomes. Rio de Janeiro: Cedibra, 1969.
______. Asterix entre os bretões. Tradução de Jorge Faure Pontual. Rio de Janeiro: Record,
1985.
______. Asterix gladiador. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record, 2002.
______. Asterix o domínio dos deuses. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record,
1983b.
______. Asterix o gaulês. Tradução de Tânia Calmon. Rio de Janeiro: Record, 2022.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: the literature of subversion. London and New York: Routledge,
2009.
KOCH, John T. Celtic culture: a historical encyclopedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006.
McCLOUD, Scott. Understanding comics: the invisible art. New York: HarperPerennial, 1994.
MESKIN, Aaron. Comics as literature? British Journal of Aesthetics, Oxford, v. 49, n. 3, p. 219-
239, jul. 2009.
UDERZO, Albert. As 1001 horas de Asterix. Tradução de Gilson D. Koatz. Rio de Janeiro:
Record, 1987.
209
AS VISITAS DO DR. VALDEZ
PELO VIÉS PSICANALÍTICO:
RELAÇÕES ENTRE
LITERATURA E PSICANÁLISE
Nelsilene dos Santos SILVA (UEPB)
Reginaldo Oliveira da SILVA (UEPB)
RESUMO
210
Anais
ABSTRACT
João Paulo Borges Coelho, filho de mãe moçambicana e pai português, nascido no
Porto, em 1955, mas que cedo foi viver com os pais em Moçambique, adquirindo a
nacionalidade deste país. Historiador, ficcionista e professor de História Contemporânea de
Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, assim como
também atua na função de professor convidado no Mestrado em História da África da
Universidade de Lisboa.
A literatura é um vasto mundo a ser explorado, as narrativas ultrapassam o explanado
e os fatos expostos transpassam aquilo que é dito, ou seja, o que se conserva imêmore atrás
do que já foi pronunciado, ouvido ou até mesmo lido. Freud (1908) já articulava que a
literatura é uma escola que instrui a “ler” escritos e almas.
A narrativa de um autor é uma elegante quimera sobre sua própria vida, seu relato é
dirigido aos seus leitores na busca de atenção e visibilidade. O escritor está dirigindo sua
narrativa a um “outro”, pois tudo o que ele almeja é ser escutado e percebido.
Sendo assim, a Literatura de ficção com suas representações e significações tende a
contribuir significativamente com a Psicanálise, bem como a psicanálise tem o poder de
211
Anais
contribuir com a literatura para elucidar as indagações elencadas durante uma análise ou
até mesmo durante a leitura.
Portanto, podemos observar uma obra literária como sendo a construção de uma
fantasia, pois retomando a teoria freudiana, Lacan (1986) que aponta três dimensões na
fantasia, fazendo uma relação com os três pontos psíquicos por ele proposto: O real, o
simbólico e o imaginário.
Assim, a literatura pode ser observada como uma espécie de tela de projeção, na qual
o leitor tem acesso ao mundo do escritor e dos personagens, encontrando no exercício da
escrita e da leitura, uma maneira de ligar-se ao outro, estabelecendo um sentido para a
própria vida, utilizando-se da fantasia e do imaginário como ferramenta de defesa mediante
as situações traumáticas vivenciadas e ou observadas.
Abordar a literatura e a psicanálise é desenvolver um olhar diverso, capaz de reger à
apreensão de significados para além do que se apresenta como mera aparência, em favor do
que está implícito nas entrelinhas. Portanto, o escritor se desobriga da obediência ao real, o
que o atribui total liberdade de reflexão e criação.
Logo, a literatura permite a cada indivíduo transformar o mistério, o inútil, a
humilhação e o sofrimento dela proveniente, em criação e reflexão buscando dar sentido ao
caos, para isso a melhor forma de aprimoramento é a escrita literária.
Freud (1909), confere a denominação “cenas originárias” aos acontecimentos reais,
traumatizantes, cuja a lembrança por vezes é elaborada ou camuflada por fantasias.
É notório que Freud busca explorar a fantasia, a qual ele atribui concepção de
“fachadas psíquicas”, sendo assim em seus estudos, aponta que o que desencadeia as
neuroses podem ser elementos imaginários, que provocam o trauma, mesmo que que o
mundo da fantasia esteja situado entre o mundo interior, onde a satisfação se dê por meio
da imaginação, e o mundo exterior, que impõe os fatos reais, é visível que o mundo do sujeito
em neurose é originalmente o mundo do inconsciente.
212
Anais
[...] o termo “traumático” não tem outro sentido senão o sentido econômico.
Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à
mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser
manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em
perturbações permanentes da forma em que essa energia opera. Esta
analogia nos compele a descrever como traumáticas também aquelas
experiências nas quais nossos pacientes neuróticos parecem se haver fixado.
Isto nos proporia uma causa única para o início da neurose. Assim, a neurose
poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da
incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse
excessivamente intenso. (Freud, 1917 [1916-17] a, p.283).
213
Anais
- Por hoje está resolvido – concluiu Sá Caetana tapando a irmã com o lençol,
dando um jeito ao quarto desarrumado para apagar os traços da crise que
de alguma maneira a envergonhavam.
- E amanhã? Amanhã a patroinha vai querer saber quando chega esse doutor
- disse Vicente, intranquilizando a patroa. – Ela lembra-se sempre daquilo
que lhe faz falta.
Vicente conhece bem Sá Amélia, a quem chama patroinha talvez pelos modos
infantis da senhora. Conhece-a melhor que ninguém, de passar as tardes
contando-lhes histórias tal como Nastácia as contava quando ela era
pequena. E quem atravessa a vida ouvindo histórias estás sempre disposto a
acreditar. Saber, além disso, que Sá Amélia se arranja todos os dias com
cuidado, não vá uma visita inesperada apanhá-la descomposta. Custa-lhe vê-
la ao fim da tarde, quando ela invariavelmente conclui que já não virá
ninguém e se deixa apagar numa grande decepção. Sabe que por detrás da
loucura da doença e da idade ela é capaz de usar da lembrança para cobrar
o que lhe devem com a mesma facilidade com que recorre ao esquecimento
para se isentar de responsabilidades. (COELHO, 2016, P. 41-42).
214
Anais
“’Vais com a Senhora Grande, entendes?’ [...] ‘Vais para fazer tudo o que ela
te mandar, sem exceção. [...] Quando ela te ordenar alguma coisa será a mim
que ordena. E se desobedeceres, serei também eu próprio quem desobedece.
Entendes?’” (COELHO, 2019, p. 29).
Portanto, a submissão ensinada pelo pai, passa a refletir as angústias vividas por
Vicente ao despertar para um novo olhar do mundo. Olhar esse que não mais aceita a
submissão como obrigação, olhar que questiona a legitimidade da argumentação para os
traumas vividos.
Podemos notar que ao mesmo tempo que Vicente vê o médico refletido no espelho, o
médico retornar à ação ao notar Vicente por detrás do olhar.
Horas em que foi constituído um doutor que era o velho doutor que ele via
passar quando criança. [...] Tanto tempo levou a preparar-se porque também
por dentro se quis transformar. Como pensa um branco? Como sente um
branco? Como age um homem branco? Já mascarado, passeou-se na
escuridão do quarto para lá e para cá, procurando entrar na pele do Dr.
Valdez. (COELHO, 2019. p. 49).
No fragmento acima disposto, Vicente está se preparando para encenar o Dr. Valdez
pela primeira vez. Já nesse momento surgem os primeiros questionamentos do personagem
com relação a representação do outro, o colonizador, branco e que representa seu oposto.
215
Anais
Ao se vestir de Dr. Valdez faz com que Vicente perceba que o “branco” é tudo aquilo que a ele
é negado em uma sociedade dominada pelo outro.
Por causa da encenação Vicente poderá pela primeira vez sentar no sofá da casa em
que mora, recebe a autorização para conversar de igual para igual com Sá Amélia e Sá
Caetana.
A máscara utilizada por Vicente confere a ele o poder de se conhecer sentimentos
nunca antes permitidos, como a indignação diante de injustiças praticadas pelas irmãs, pois
enquanto criado ele não tem a permissão para conhecer tal sentimento. No entanto, quando
ele é o médico, seu status social lhe confere o poder de ultrapassar a fronteira de submissão.
Senta-se pela primeira vez naquele sofá que conhece tão bem por tantas
vezes lhe ter sacudido o pó. Sentar-se ali tem um gosto especial que ele não
sabia ainda definir, não só por ser mais macio para o rabo do que a esteira
onde se senta a ouvir futebol português e simangemange nas tardes de
domingo, ou a lata de petróleo que lhe serve de assento ao jantar. Sentar-se
ali no sofá é gozar uma promiscuidade nova com um mundo que tão bem
conhece, mas que até agora lhe estava vedado. (COELHO, 2016, p. 58).
216
Anais
Portanto, a tese de Freud de retratação, onde ele afirma que somente haverá trauma
psíquico posteriormente ao acontecimento traumático, nos remete para o fato de que
retomar as memórias consistiria na articulação de dois tempos, onde o segundo momento
estaria ressignificando o primeiro.
Assim sendo, aos analisar uma obra literária pelo viés da Psicanálise nos possibilita
adentrar não apenas no mundo exterior dos personagens, mas principalmente em seu
mundo interior e assim ressignificando os traumas vividos.
REFERÊNCIAS
COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr. Valdez. São Paulo: Editoria Kapulana, 2019.
FREUD, Sigmund. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. 7: O chiste e sua relação com o inconsciente
(1905).
217
HISTÓRIA LITERÁRIA,
MODERNISMOS E A
TEMÁTICA DO INSÓLITO
Joachin de Melo AZEVEDO NETO (UPE/Campus Petrolina)1
RESUMO
ABSTRACT
1 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor adjunto
de História Contemporânea e Historiografia e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa de
Política e História Literária – GEPPHIL na Universidade de Pernambuco – UPE/Campus Petrolina.
Contato: joachin.azevedo@upe.br
218
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history, on the other hand, consists in the realization that it is a theoretical and
methodological field that presents itself as a more empirically consistent alternative than the
generalizing proposal of the history of literature. This work aims to launch reflections, in an
essayistic way, about certain modernist representations of the unusual. Modernist literature
is a reading not only of the beautiful, but also of fear, horror, distrust and modern
disenchantment according to canonical authors such as Dostoievsky (1821-1881), Kafka
(1883-1924) and even for Freud (1856-1881). 1939): father of psychoanalysis. The
intertwining, therefore, of modernist fictions with the theme of the unusual aimed to cause
estrangement and questioning in the face of cultural habits present in the process of
formation of industrial societies.
Este trabalho tem como objetivo lançar reflexões, de maneira ensaística, acerca de
determinadas representações modernistas do insólito. Em termos de história literária, a
literatura modernista é uma leitura não apenas do belo, mas também do medo, do horror,
das desconfianças e do desencanto com as sociedades industriais. Esse é o mote principal de
autores canônicos como Freud (1856-1939): pai da Psicanálise, Dostoievsky (1821-1881) e
Kafka (1883-1924). Discussões e representações feitas por esses autores serão tratadas
como chaves de leitura para uma melhor compreensão da condição humana no mundo
contemporâneo. O entrelaçamento, portanto, de ficções modernistas com a temática do
insólito visou causar estranhamentos e questionamentos diante de hábitos culturais
presentes no processo de implantação da razão moderna.
No ensaio Teoria da história literária, traduzido para português e publicado no Brasil
em 1965, o crítico literário estadunidense Howard M. Jones elenca uma série de
preocupações em relação à legitimação de um campo de estudos que eclodia em meio ao
advento da interdisciplinaridade nas ciências humanas. Segundo H. M. Jones, a história
literária enfrentava, na época, desafios morais e estéticos. O primeiro deles deve-se ao fato
de que “salvo nos seminários universitários, o animal humano toma a página impressa
calmamente e não como um problema de casuística” (JONES, 1965, p. 16). Não querendo
adentrar aqui na labiríntica discussão sobre a relação entre leitor e escrita ou sobre uma
suposta hierarquia entre leitura contemplativa e a analítica, endosso a constatação, ainda
bastante atual, do autor de que o outro grande impasse desse campo de pesquisa diz respeito
à pluralidade e as dissensões em torno tanto do conceito de “história”, bem como o de
“literatura”.
As provocações de H. M. Jones – embora possuam fortes limitações patrióticas, porque
legitimam a oficialização nacionalista de uma história literária estadunidense – ainda estão
219
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220
Anais
rupturas ou mesmo dilatações em relação a noção de mundo vivido e real. Nesse sentido, o
romance modernista agrega, para conseguir atender a essa complexa proposta, uma série de
considerações em torno da composição e criatividade artística; representações da
intimidade psicológica dos indivíduos; um desconfortável ou fatídico mal-estar niilista em
relação aos padrões burgueses de comportamento e, em alguns casos, a radical defesa das
liberdades narrativas.
Esses postulados permitem aqui compreender temáticas frequentes nas obras de
cânones modernistas como o misticismo de cunho simbolista, a autoconsciência literária dos
autores, o futurismo, a paródia, o pastiche, a ironia, a introversão, o mitológico, o atemporal
e, sobretudo, o compromisso com a destruição estética dos ideais de beleza que perpassam
o classicismo greco-latino e de engajamento político no caso do realismo. Daí a potência
vanguardista, por exemplo, de obras como Em busca do tempo perdido (1913-27), de Marcel
Proust; O homem sem qualidades (1930-43), de Musil; Ulysses (1914-21), de James Joyce e
Mrs. Dalloway (1925), de Virgínia Woolf, na medida em que se tratam de romances nos quais,
de modo resumido, pode-se constatar que “a literatura é um ordenamento posterior aos
desencontros caóticos da vida” (FLETCHER; BRADBURY, In: Idem, p. 335).
Ainda de acordo com Fletcher e Bradbury, “o romance modernista”, enquanto
instrumento feito para pensar e interpretar as sociedades contemporâneas, explorou “a
confusão da vida humana, entre a Poesia e a História, entre o símbolo metamórfico e seu
lugar no tempo desordenado” (Idem, p. 336). Daí a supervalorização feita por diversos
artistas modernistas em relação a autonomia do campo artístico, pois essa tendência estética
tem sérias dúvidas não só a respeito do que se pode entender enquanto realidade, mas
também no tocante aos discursos que orientam a atividade criativa apenas para a finalidade
de se adequar a percepção dominante tanto de ficção, bem como do verdadeiro.
Em se tratando da ideia de insólito, o criador da Psicanálise, Sigmund Freud (1856-
1939), forneceu relevantes considerações, inclusive, em diálogo com a história literária. Na
antologia Escritos sobre literatura, traduzida para português em 2014, o autor interpretou a
dimensão simbólica de temáticas como o parricídio e o insólito presentes nas obras de
escritores como Ernest T. Hoffman e Dostoievsky. Para Freud, a literatura é uma leitura não
apenas do belo, mas do medo e do horror. Sobre o conceito de insólito ou estranho
(unheimlich), sugere que a palavra é o contrário de familiar (heimish). Para o autor, o
conceito dá conta do estranhamento que acontece quando algo novo e não familiar é inserido
em uma rotina.
221
Anais
O insólito, portanto, é tudo aquilo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas
que veio à tona. Analisa esse tema de investigação a narrativa “O homem da areia”, da obra
Contos noturnos, do escritor de literatura fantástica Ernest Hoffmann. Qual o motivo do
Homem de areia, que arranca os olhos das crianças? O protagonista Natanael sempre
relembra, mesmo já adulto, quando teve contato com esse mito folclórico ao longo de sua
infância. Não consegue esquecer também a misteriosa morte do pai.
A mãe assustava o pequeno Natanael e seus irmãos para não saírem das suas camas:
se saíssem, seriam vítimas da crueldade do homem da areia. Natanael decide esperar pelo
Homem da área para se certificar de sua aparência horrenda, mesmo com muito medo. O
efeito de estranhamento no conto é que o Homem da areia é o Dr. Coppelius, advogado da
família e ao mesmo tempo seu pai que havia sido dado como falecido. A partir daí o enredo
não deixa claro o que é realidade ou a imaginação da criança. Freud discorre sobre o
seguinte: o medo de ferir os olhos acompanha os indivíduos durante toda a vida. O medo de
se cegar é um substituto simbólico para o medo da castração:
A fonte que causa estranhamento nesse conto não é um medo infantil, mas um desejo
infantil que é constantemente reprimido pelos adultos que o cercam, seja a mãe, o advogado
da família ou até mesmo pela memória de seu falecido pai. O elixir do diabo, novela de autoria
do escritor citado, trata de uma sociedade de sósias nos quais os indivíduos são submetidos
a um tratamento que os deixam iguais uns aos outros, fisicamente, mentalmente, chegando
inclusive a haver comunicação telepática entre indivíduo e sósia. Essa sociedade entra em
crise após, por meio do uso do elixir, os sósias se tornarem imagens aterrorizantes do eu
originário. Para Freud, o romance trata de neuroses obsessivas. A sociedade descrita no livro
de Hoffmann é constituída de indivíduos que vivem mais no universo dos pensamentos do
que na vida material e querem, portanto, driblar a morte, alcançar a eternidade. É um
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uma padronização e controle bestial da condição humana que foi radicalizada mais ainda
durante a ascensão dos Estados totalitários na Europa.
A metamorfose, obra de ficção fantástica, com fortes elementos surrealistas, publicada
originalmente em 1915, é iniciada da seguinte maneira: “Numa manhã, ao despertar de
sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco
inseto” (KAFKA, 2020, p. 02). Quer dizer, no universo ficcional de Kafka, o simples ato de
despertar em um mundo industrial de tendências opressoras é bastante perigoso e insólito.
A desconfiança radical dos pilares institucionais da ordem burguesa, como a família, a
atividade policial e os dogmas religiosos, fizeram de Franz Kafka um escritor maldito cuja
obra foi considerada proibida em países da Europa oriental mesmo sob ocupação de um dito
Estado marxista como no caso do russo. Apesar da censura, a atualidade profética dessa
literatura distópica fez com que Kafka seja “provavelmente o escritor deste século que mais
cativa a imaginação moderna” (BRADBURY, 1989, p. 217).
Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guatarri, em Kafka: para uma literatura menor
(2003), propõem uma leitura da obra do escritor tcheco distanciada das perspectivas mais
comuns, focadas nas questões do trágico e da culpabilidade e mais enfocada na temática da
alegria e política. O fato dessa ficção com elementos surrealistas que conferem ao mundo
burguês um sistema pessimista de coordenadas ter sido escrita por um judeu
desterritorializado em solo europeu, tendo optado em representar aspectos desumanos da
lei; a violência da autoridade patriarcal e a barbárie enquanto elemento fundante da cultura
industrial, a tornam uma literatura menor no sentido de buscar dar voz para minorias; para
os desajustados. Nesse sentido, o modernismo de Kafka é considerado politicamente
revolucionário por esses comentadores (Cf. DELEUZE & GUATARRI, 2003).
Esta breve e ensaística reflexão pretendeu fornecer elementos imprescindíveis para
a exploração da temática do insólito a partir de cânones do modernismo que ocupam lugar
de destaque artístico na chamada história literária. Conforme pode-se deduzir, o uso de
recursos fictícios que visam questionar poeticamente a padronização de comportamentos, a
subserviência ou complacência diante de ordens sociais e políticas autoritárias não invalida
a literatura modernista enquanto testemunho histórico. Pelo contrário. Escritores como
Dostoievsky e Kafka com suas terríveis visões sobre as humilhações enfrentadas pelas
pessoas comuns, impotências cotidianas diante dos abusos de poder cometidos pela ordem
dominante e a frágil distinção entre autoridades e criminosos forneceram valiosas
representações simbólicas da psicologia do mundo contemporâneo.
228
Anais
REFERÊNCIAS:
BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.
Carlos Felipe Moisés {et. al.}. São Paulo. Companhia de Letras, 1986.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho.
Lisboa: Alvim & Assírio, 2003.
DOSTOIEVSKY, Fiodor. Notas do Subterrâneo. Trad. Moacir Castro. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Organização de Iuri Pereira. São. Paulo: Hedra,
2014.
JONES, Howard M. Teoria da História Literária. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Editora
Lidador, 1965.
KAFKA, Franz. Diários (1909-1923). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Todavia, 2021.
229
GUIMARÃES ROSA,
MACHADO DE ASSIS E
MARCOS FÁBIO BELO
MATOS E AS MEMÓRIAS
AMOROSAS UNIVERSAIS
Evandro Abreu Figueiredo FILHO (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2
RESUMO
Este trabalho assevera sobre as memórias amorosas universais e será embasado pelas obras
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Dom Casmurro, de Machado de Assis; e Crônicas
de Menino, do escritor maranhense Marcos Fábio Belo Matos. Destarte, o texto aborda
dilemas sentimentais que Riobaldo vivenciava na sua relação com Diadorim, na primeira
obra, e da obsessão, do ciúme, da amargura, dentre outros aspectos, que Bentinho sentia no
seu relacionamento com Capitu no segundo romance. São dilemas subjetivos que
ultrapassam o regional para se inscreverem como sentimentos humanos universais. As
análises feitas, nas obras mencionadas acima, serão inter-relacionadas com passagens da
narrativa Crônicas de Menino referentes aos casos amorosos vividos pelo autor/narrador na
sua infância/adolescência, tendo por alicerce as três dimensões do amor: Eros, Philia e
Ágape. Assim, busca-se a visão de como essas memórias amorosas são indispensáveis para a
composição mais ampla de percepções memorialísticas universais em Crônicas de Menino.
Nessa perspectiva, o escopo deste trabalho foi investigar as memórias amorosas universais
em Grande Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino. Dessarte, o artigo teve
como questão norteadora: quais as memórias amorosas universais encontradas em Grande
1 Mestre em Letras com ênfase em Teoria Literária pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
E-mail: evandrofilhoteo@yahoo.com.br
2 Doutora em Ciência da Literatura pela UEMA/UFRJ. E-mail: sogemorais@gmail.com
230
Anais
Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino? Para a elaboração deste constructo,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, tendo por base textos de teóricos, como: Assis (2016),
Rosa (2001), Fromm (2015) e Matos (2005). Assim, percebeu-se que o Amor e outros
sentimentos humanos são construídos pelos autores Rosa, Assis e Marcos Fábio a partir do
Regional, mas que transcendem para se inserirem no Universal.
ABSTRACT
The present study assert about the universal loving memories and it is based on the works
of Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa; Dom Casmurro, Machado de Assis; and Crônicas
de Menino, of the maranhense writer Marcos Fábio Belo Matos. Thus, the article approches
sentimental dilemmas, in the relationship between Riobaldo and Diadorim, in the first work,
of the obssession, the jelous, the bitterness, among other aspects, that Bentinho felt in his
relationship with Capitu in the second romance. These subjective dilemmas overtake the
regional in order to subscribe as universal humans feelings. The analysis done, on the woks
mentioned above, will be inter-related with narrative passages of Crônicas de Menino
regarding love affair experienced by the author/narrator in his childhood/adolescence,
having as foundation the three dimensions of love: Eros, Philia and Ágape.Therefore, we
search the view how those memories of love are indispensable to compose a wide universal
memorialistic perceptions in Crônicas de Menino. In this way, the article had as guiding
question: which universal loving memories were founded in Grande Sertão: Veredas, Dom
Casmurro and Crônicas de Menino? The elaboration of this construct, we have used a
bibliographic research, based on theoretical text, such as: Assis (2016), Rosa (2001), Fromm
(2015) and Matos (2005). As a result, we realized that The Love and other humans feelings
are construtecd by the authors Rosa, Assis and Marcos Fábio from regional, but they
transcend to be inserted in the Universal.
Considerações Iniciais
231
Anais
O mesmo pode ser percebido no tocante às dimensões do amor: Eros, Philia e Ágape.
Cada uma é responsável por administrar, cotidianamente, nas pessoas, esse sentimento
indispensável à humanidade. O primeiro, extremamente passional, sexual, pode ser
percebido de duas formas: Eros Vulgar, terreno, e Eros Divino, platônico, sem contato físico.
Já o segundo é voltado mais para a amizade, o carinho, externado à família e aos amigos, é
sólido, pois constrói parcerias, elos significativos. O terceiro, por sua vez, se estabelece a
partir da perspectiva de um amor puro, desinteressado, visa à coletividade, à humanidade.
Destarte, no livro Crônicas de Menino (2005), alguns desses sentimentos alocados e as
dimensões do amor aparecem, gradativamente, na narrativa e estabelecem inter-relações
que perpassam do regional ao universal, e isso, através da memória individual, gera uma
transmissão da identidade cultural ou coletiva a pessoas que, consequentemente,
compartilham essas lembranças.
232
Anais
Uma boa parte desse mosaico de sentimentos e das aflições de Riobaldo surge através
do caráter de ambiguidade de Diadorim, que apresenta questões maniqueístas e acaba por
introduzi-lo no ambiente jagunço, pois ela também é nomenclaturada como Reinaldo, já que
se traveste de homem para se inserir na jagunçada, e, desse modo, o amor entre eles não
poder ser concretizado, primeiramente por Riobaldo não saber da verdade, e depois, já
sabendo do mistério que o seu amigo/amor carrega, para que a sua verdadeira identidade
não possa ser descoberta. Nessa perspectiva, Pereira cita:
233
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234
Anais
forte, decidida e é a detentora dessa fragilidade da alma de Bentinho que, por não ter
controle da situação, acaba por sucumbir ao ciúme (GRINBERG, 2000).
Nesse cenário, assim como ocorre com Riobaldo e a influência marcante de Diadorim
na sua existência em Grande Sertão: Veredas, a personagem Bento Santiago, de Dom
Casmurro, desconfiado da fidelidade de Capitu, também traz, em suas memórias amorosas,
temas universais comuns que podem servir não somente para um homem velho da cidade
do Rio de Janeiro, casado com uma mulher, possuidora de “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada”, mas para todos que têm a sensação da presença de uma pessoa adúltera ao seu
lado; assim, essas temáticas são, além do ciúme, já falado acima, a amargura, a neurose, a
solidão, a obsessão e o parasitismo social já que Bentinho não trabalha, vive de renda.
O narrador de Dom Casmurro neurótico, amargurado e obsessivo surge a partir da
habilidade de Machado de Assis em conduzir as análises sobre o psicológico das suas
personagens; Capitu manipula Bento Santiago a ponto deste, movido pelo Amor,
representado pela dimensão Eros, e pelo ciúme doentio, não controlar a sua mente, muitas
vezes fugindo um pouco da realidade. Nesse sentido, tudo passa a girar naquilo que ele
acredita e não no que, de fato, acontece, daí as incertezas pairarem acerca da suposta traição
de Capitu visto que não se conhecem os episódios contados na visão dela.
Todo esse conjunto de temas amorosos universais, inerentes ao romance, e o clima
nada amistoso no casamento, por vezes Capitu pede o divórcio, acabam por deixar o
narrador solitário posto que, cheio de dúvidas e angústias, manda Capitu e Ezequiel, seu
filho, para a Suíça a fim de tentar organizar a sua mente e a sua vida. Capitu manda-lhe cartas
saudosas, afetuosas e sem ódio; porém, Bentinho, ainda motivado pelo ciúme obsessivo,
responde a ela friamente. Com a morte de Capitu, Bento Santiago continua amargurado e
cheio de neuroses, principalmente relacionadas ao ciúme, pois, com o regresso de Ezequiel,
ele percebe traços de Escobar em seu rosto. Nesse ambiente, a amargura é tão grande que,
quando o filho, formado em Arqueologia, pede dinheiro a ele para realizar uma viagem de
pesquisa pelo Oriente, o narrador diz “antes lhe pagasse a lepra” (ASSIS, 2016, p. 182).
Ezequiel não morreu de lepra, mas de tifo; isso aumenta mais a solidão de Bentinho.
235
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236
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que não existe a concretização de uma relação amorosa por inúmeros motivos, ou também
pode ser um Amor não correspondido, daí ser considerado difícil e impossível (MARQUES,
2010).
No que se refere ao Amor Philia, este é entendido como uma sensação de empatia
natural, de extensa amizade, estima, de carinho, dado aos amigos e a familiares. Esta
dimensão do Amor é um sentimento resistente, sólido e profundo do coração que dissemina
parcerias, companheirismo e propaga os mais nobres afetos entre os entes queridos. O Amor
Philia possui como características: a lealdade, a sinceridade, a reciprocidade, a gentileza, o
bem-estar das outras pessoas; assim, quando não existe mais o brilho do Amor Eros, é o
Amor Philia que continua a manter os casais juntos.
A última dimensão de Amor existente é o Ágape que se exterioriza, a priori, nos
seguintes formatos: Amor de Deus ao homem, Amor do homem a Deus e, posteriormente,
Amor do homem ao seu próximo; nessa conjectura, existem algumas características para
esse Amor, como: é um Amor genuíno, puro, é desinteressado, pois não visa a interesses
próprios, mas coletivos, ligados à humanidade; é intransponível, invencível, não escolhe a
quem amar, ou seja, para essa dimensão amorosa, até o mais execrável dos indivíduos é
digno de ser amado.
Na visão do apóstolo Paulo, o Amor Ágape não é insensato, inconstante, leviano, não
se envaidece, ensoberbece, não é injusto, não deseja o mal, é caridoso, piedoso, é sereno. Para
ele, essa dimensão por tudo se atormenta, em tudo acredita, confia, em tudo espera e suporta.
Nessa perspectiva, esse Amor é originado em Deus que o publiciza aos Seus seguidores, e
estes fazem desses ensinamentos a lição, o alimento do dia a dia; desse modo, essa dimensão
acaba por retomar a Ele.
A obra Crônicas de Menino apresenta, de certa forma, umas, em menor escala, outras,
em maior, as três dimensões do Amor mencionadas acima nesta dissertação. No livro, o autor
Marcos Fábio Belo Matos aborda o Amor Eros, representado pelo Eros divino (Amor
platônico), colocado por Pausânias em O Banquete, de Platão, em algumas passagens da
crônica; aparece também, em muitos trechos do livro, o Amor Philia (dimensão que se
exterioriza com mais frequência); e, em apenas uma crônica, surge a dimensão Ágape.
237
Anais
Com relação ao Amor Eros, a obra não aborda esta dimensão com as características
iniciais dela, ou seja, a presença da sensualidade e do amor carnal, presentes em Grande
Sertão: Veredas, simbolizado pelo relacionamento de Riobaldo com a prostituta Nhorinhá, e
em Dom Casmurro, refletido pela relação doentia, ciumenta entre Bentinho e Capitu, esse fato
é facilmente explicado porque se trata de um livro voltado para um público infantojuvenil.
Nessa perspectiva, Marcos Fábio traz, para Crônicas de Menino, o Eros divino ou Amor
platônico em duas narrativas: Meninas e Sesi. O autor menciona na sua crônica Meninas:
Meninas eram o alvo de todas as nossas atenções. Não havia muitas no grupo
que eu frequentava. Mas as que andavam por lá eram bem bonitinhas!... As
meninas com quem eu convivia eram do Sesi ou da igreja. As da minha rua
eram poucas, quase todas mais velhas que eu. Algumas meninas me
arrancaram paixões infantis. E ficaram lá no fundinho da lembrança, uma
doce saudade de irrealizações. (MATOS, 2005, p. 49).
Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a
mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino: porque eu
tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de
Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado. (ROSA,
2001, p.123).
O Eros sensual, carnal, também chamado de Eros vulgar, não é discutido em Crônicas
de Menino como em Grande Sertão: Veredas e Dom Casmurro. No primeiro romance, esse
238
Anais
amor é compreendido pelas mãos de Riobaldo e da prostituta Nhorinhá, esta que satisfazia
os desejos sexuais, ardentes, de Riobaldo visto que ele não podia viver toda essa volúpia com
Diadorim/Reinaldo. Nessa direção, Rosa esclarece:
Em Dom Casmurro, o Amor Eros é representado pela obsessão, pelo ciúme doentio de
Bentinho por Capitu. Antes do casamento, os dois enamorados lutam contra tudo e todos
para ficarem juntos, mas, quando isso acontece, Bento Santiago surge como uma figura
insegura, infeliz, possessiva e ciumenta, o que acaba por destruir a sua família. Nessa
vertente, Barthes comenta sobre o ciúme que, para ele, nasce de o medo da pessoa
extremamente apaixonada perder o seu posto, ser preterida por outro. Dessa forma:
Em Crônicas de Menino, o Amor Philia aparece em vários trechos da obra, como nas
crônicas A Serraria e Dona Conceição. Nessa perspectiva, seguem algumas passagens com a
presença dessa dimensão: “[...]Paizinho tinha também uma carroça, com a qual ia pegar casca
de arroz para fazer caeira – caeira é um monte de madeira coberta com casca de arroz, para
fazer carvão[...]”; Paizinho era o nome carinhoso que todos chamavam o avô do narrador.
“[...] Quando ele passava lá em casa, não tinha jeito: desvencilhava-me do que estivesse
fazendo e ia com ele pegar a carrada lá na usina. Às vezes, ia embaixo, no eixo, perto do rabo
do cavalo [...]”. “[...] Outras vezes, ele me dava a felicidade de ir em cima, segurando o cabresto
e guiando a carroça. Ia orgulhoso, sorriso nos lábios e acompanhado pelo olhar amoroso do
meu avô[...]” (MATOS, 2005, p. 45 – A Serraria). Nessa abordagem, o Amor Philia, como já
mencionado antes, caracteriza-se pelo Amor aos amigos e, no caso da crônica A Serraria, a
familiares.
239
Anais
240
Anais
Considerações Finais
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2016.
BENTO XVI. Carta encíclica Deus Caritas Est. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005.
FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes - selo Martins. 2015.
MARQUES, Marcelo P. Amor platônico. Revista Cult, São Paulo, v. 146, mai. 2010.
MATOS, Marcos Fábio Belo. Crônicas de Menino. São Luís: Banco do Nordeste, 2005.
241
Anais
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
242
SÍMBOLOS ATRÁS DA
PORTA: UMA REFLEXÃO
SIMBÓLICA E PSICANALÍTICA
SOBRE O QUE ESTÁ DO
LADO DE DENTRO
Dayanna Roberta Costa da ROCHA (UEPA)1
Izabelly Reis LOUREIRO (UEPA)2
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)3
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo principal centrar-se na observação das manifestações
líricas presentes nos poemas musicados “Atrás da Porta”, de Francisco Buarque de Hollanda
e Francis Victor Walter Hime, e “Do Lado de Dentro”, de Marcelo Camelo de Sousa, a fim de
demonstrar como essas duas construções trazem em seu repertório a possibilidade de temas
capazes de criar uma paisagem metafísica em um chamado universo imaginário próprio do
autor e que são recorrentes ao longo de toda produção. A relevância deste estudo evidencia-
se em buscar a imagem da visão feminina nesses textos poéticos contemporâneos. Dessa
forma, pode-se destacar a criação desse todo a partir do elemento simbólico “porta” nas
243
Anais
ABSTRACT
The main objective of this work is to focus on the observation of the lyrical manifestations
present in the poems set to music “Atrás da Porta”, by Francisco Buarque de Hollanda and
Francis Victor Walter Hime, and “Do Lado de Dentro”, by Marcelo Camelo de Sousa, in order
to demonstrate how these two constructions bring in their repertoire the possibility of
themes capable of creating a metaphysical landscape in a so-called imaginary universe of the
author and which are recurrent throughout the entire production. The relevance of this
study is evident in seeking the image of the feminine vision in these contemporary poetic
texts. In this way, the creation of this whole can be highlighted from the symbolic element
porta in the aforementioned songs, allowing the linguistic resource of intertextuality, one of
the tools that enables the communicative idea between works, from a guiding thread, such
as the joining of elements, in order to establish a relationship between them from a
psychoanalytic and symbolic perspective. The analysis takes into account a thematic
approach to the door as a kind of metaphorical and ambiguous sentimental landscape of
consensual imprisonment and freedom conquered by the female figure. To support this
study, authors such as Sigmund Freud will be used, through his Complete Works (2014); The
symbology of the door, by Chevalier and Gheerbrant (2007) and The poetics of space in
Bachelard (1958).
Considerações iniciais
244
Anais
todo a partir do elemento simbólico porta nas canções citadas. Em ambas as composições, o
elemento exibe uma espécie de transição de ambiente, de um estar fora para um estar
dentro; de um elemento que fecha e deve ser aberto e que também deve ser fechado se
estiver aberto; uma espécie de zona de conforto e/ou zona de desconforto, como se fosse a
demonstração de um ritual de passagem ou mesmo a representação medieval do bem e do
mal. Além disso, há a indicação de utilidade de delimitação de um espaço físico para um
espaço único de acesso, sendo possível dar mais importância ao elemento quando pensado
na presença ou ausência do mesmo.
As ideias que permeiam essa produção acadêmica abrangem a possibilidade de um
olhar não voltado tão somente ao plano do conteúdo, de modo que seja centralizado apenas
na análise dos aspectos histórico e social da figura feminina, mas também que sejam
alicerçadas no plano expressivo, ou seja, no plano da forma, permitindo o desvendar das
camadas interpretativas e de composição das duas obras, exibindo as habilidades e
estratégias trazidas pelos autores, assim como os estratos sensíveis da estruturação das
escolhas e seleções vocabulares presentes. Dessa forma, configurando-se no alinhar dos dois
planos, tanto o do conteúdo quanto o da forma, como o parâmetro solicitado pela BNCC -
Base Nacional Comum Curricular - garantindo a oportunidade de leituras variadas no
ambiente escolar, a apresentação do estilo particular do autor, o esmiuçar dos versos e com
tudo isso a amplitude de análises.
Sendo assim, cabe ao presente trabalho analisar a influência da simbologia da porta
como um elemento de destaque que configura, de forma expressiva, o ritmo da relação
amorosa presente nas duas composições acima citadas, bem como a conduta feminina no
que diz respeito à tensão vivida dentro de uma relação erótica e sensualizada, mas marcada
de pelo sofrimento amoroso da partida o que trará à tona o caráter psicanalítico de análise.
Para isso, o uso de autores como Sigmund Freud, através de suas Obras completas (2014); A
simbologia da porta, por Chevalier e Gheerbrant (2007) e A poética do espaço em Bachelard
(2009) estarão fundamentando essa produção.
Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, a mesma se fará da seguinte maneira:
apresentar-se-á por meio de subtópicos os versos de ambas as composições Atrás da porta 4
e Do lado de dentro 5 que demonstrem, primeiramente, a perspectiva de análise do elemento
4 https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45113/
5 https://www.letras.mus.br/los-hermanos/67556/
245
Anais
246
Anais
de passagem pode ser vista no trecho “Abre essa porta/Que direito você tem/ De me privar”,
no sentido de que a privação da qual trata o eu-poético o limita a uma circustância
desconhecida de inabilidade, inadvertido sobre a transferência de seus poderes para quem
o quer fora do recinto, separado pela porta fechada. Em outras palavras, ao questionar sobre
os direitos de quem o afasta, esses dois mundos se distanciam pelo portal trancado, criando
uma nova passagem, ou seja, uma nova fase para esse casal.
Enquanto isso, em “Atrás da Porta”, há a ideia desses opostos simbólicos entre dois
mundos, o tesouro e a pobreza extrema, quando, no trecho “Sem carinho, sem coberta/No
tapete atrás da porta/Reclamei baixinho/ Dei pra maldizer o nosso lar/ Sujar teu nome/ Te
humilhar”, essas desventuras amorosas também se apresentam como ponto de separação de
quem antes viveu juntos. Aliás, essa tensão tipifica algo que ocorreu recentemente na vida
dos amantes, percebida pela expressão “dei pra maldizer”, a partir da qual entende-se um
sentido de que esse comportamento não era assumido pelo eu-lírico antes, mas passou a ser
conveniente após o infeliz evento que o casal sofreu em seu relacionamento.
Assim, atravessada por maledicências, o que outrora era o recinto e ninho de amor,
supostamente harmonioso desse casal, passou a ser um lar tenebroso, frio e solitário. Com
referência ao abandono, intrincado pelos vocábulos que explicitam alguém exposto e
descoberto, é possível ver uma maneira de expressar a situação de pobreza afetiva em que
se encontra essa mulher, como nas palavras que se referem a um sentimento de mágoa e
também de superioridade, ratificado nos trechos “sujar teu nome” e “te humilhar”.
Apenas nesses dois excertos, são múltiplas as possibilidades de interpretação do
símbolo porta, pelo seu valor dinâmico e psicológico. A Chevalier e Gheerbrant, isso se deve
ao fato de tal objeto “não somente indica[r] uma passagem, mas convida[r] a atravessá-la. É
um convite à viagem rumo ao além....” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2009, p. 734-735).
Além disso, com essa moradia desfeita, o papel da porta ganha outros significados. No
trecho “Desse castelo que eu construí/Pra te guardar de todo mal/Desse universo que eu
desenhei/ Pra nós, pra nós”, pôde-se encontrar uma referência à nova funcionalidade da
porta fechada pelo lado de dentro: há uma necessidade dessa mulher de se proteger daquilo
que está do lado de fora. Portais chineses, por exemplo, são guarnecidos de símbolos que
posicionam bem e mal sobre aquilo que está dentro e fora, respectivamente. Para a poética
do espaço, “é justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como
devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.” (BACHELARD, 2009, p.
201).
247
Anais
248
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tornam-se menos visíveis entre o casal que discute na canção, já que a porta não permite
contato físico entre os interlocutores do poema – o que é reforçado, por Chevalier e
Gheerbrant (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.735), no fechamento das portas,
movimento de “retenção do sopro e aniquilação das percepções sensíveis”.
Outro aspecto relacionado à Bíblia pode ir, além de Maria, a como a porta é também
demonstrada na passagem da vida para a morte. Nós vocábulos “Abre essa porta/ Não se faz
de morta”, na canção de Camelo, há uma relação com a porta da morte (Isaías, 38, 10),
também conhecida como porta dos in dermos ou da morada dos mortos (Mateus, 16, 18).
Em ambas as histórias, o detentor desse poder de quem pode ou não acessar e sair da morte,
é Jesus, soberano filho de Maria. Em Apocalipses (3,7), quem detém a porta dos mortos
também é Cristo. No poema musicado, porém, o eu-lírico não tem mais esse poder, pois clama
por sua parceira, calada como morta, pela oportunidade de entrar junto a ela no recinto.
Agora, de posse do poder sobre a aldrava da porta de seu castelo, há o rompimento
da dependência dessa interlocutora, quando em seu discurso abre mão de tudo o que não
quer “guardar” – em oposição à finalidade de ser guardada nesse edifício, imposta pelo seu
parceiro –, bem como quando reconhece a prisão em que esteve dentro do castelo, do qual
quer se esquecer de “uma só vez”. Nesse momento, há intertextualidade de sua atitude com
o significado escatológico da porta, que não apenas significa passagem, mas “iminência do
acesso e da possibilidade do acesso a uma realidade superior”, ou seja, uma mulher que
encontra vias de recomeçar sua vida sem necessariamente recorrer ao aprisionamento na
relação em que esteve.
Em contrapartida, na canção de Buarque de Holanda e Hime, a dependência
emocional e sexual ainda se exprime, como em “Pra mostrar que ainda sou tua/Até provar
que ainda sou tua”, assim como a devoção e a inaceitabilidade do fim do relacionamento, em
“Eu te estranhei, me debrucei/ Sobre teu corpo e duvidei/ E me arrastei e te arranhei”, tal
qual um ser humano essencialmente instintivo e afoito, mas indefeso; faminto, sem o que
comer; saudoso de seu dono, mas magoado por ter ficado sozinho.
Enquanto há um “crescendo” quanto ao papel feminino na primeira música, de uma
mulher livre dos nós e dona do castelo que antes a prendia, em “Atrás da porta” há uma
sombra de alguém que só se faz carne completa com a presença de seu amante no quarto. O
desespero por essa pessoa que se vai é nítido em “E me agarrei nos teus cabelos/No teu peito,
teu pijama/ Nos teus pés, ao pé da cama”, pois há um lugar de submissão assumido por essa
mulher, em desespero, por ver a possibilidade de perder o lar que ambos construíram. Nota-
249
Anais
se, enfim, o que Bachlelard postulou sobre a casa ser muitas vezes não um refúgio – no poema
de Camelo –, mas um local que pode aprisionar e esmagar a personagem – na canção de Chico
Buarque e Hime. Nesta, a figura feminina, de tão absorta na tentativa de não estar só,
encontra-se sozinha e indefesa nesse exteriormente mais forte, que passa a ser seu “reduto”
(BACHELARD, 2009, p. 227).
E Freud explica?!
Tomamos como referência para análise psicanalítica das duas composições musicais,
o conhecido trabalho de Freud Dostoiévski e o parricídio (2014), a partir da articulação sobre
a ideia de culpa, partindo das orientações do consciente e inconsciente do ser.
É possível perceber no texto freudiano, que a culpa aparentemente inconsciente, pelo
desejo de morte dirigido ao elemento paterno, é considerada como a mola mestra que
provavelmente impulsiona os acessos histeroepiléticos de Dostoiévski, sendo esses
interpretados como uma espécie de auto castigo alimentado a si mesmo através de sua
identificação ao pai morto. No entanto, sucede-se, ainda, é que essa mesma identificação,
demonstrava a oportunidade de atuação de seu desejo ilegítimo e consanguíneo, ou seja, o
incesto.
Desse modo é prudente que haja, conforme a citada obra que analisa o escritor russo,
a afirmação e o reconhecimento de uma dupla função: de autocastigo e de realização do
próprio desejo. Sabe-se que em seu trabalho, Sigmund Freud busca depreender, a partir da
personalidade de Dostoiévski, em destaque, aos considerados ataques de morte, que tais
manifestações são, na verdade, ataques epilépticos graves, que talvez pudessem ser
classificados, segundo o psicanalista, um tom mais afetivo do que de fato orgânico para as
crises: “Dostoiévski se definiu e era tido como epiléptico, com base em sérios ataques que
envolviam perda da consciência, convulsões musculares e subsequente mau humor. É
bastante provável que o que chamamos de epilepsia fosse apenas um sintoma de sua
neurose” (FREUD, 2014, p. 341).
A necessidade de castigo implícito, dentro do olhar punitivo de Dostoiévski formula
as percepções de Freud, a partir de uma corrente psicológica moderna, a abordagem
psicanalítica, a qual “inclina-se a ver nesse acontecimento o mais sério trauma, e na reação
Dostoiévski o ponto central de sua neurose” (FREUD, 2014, p. 345), como resultante da
incerteza voltada à afetividade desse indivíduo que alimenta traços sádicos contra si mesmo.
250
Anais
251
Anais
essa porta/ Diz o que é que foi”, tenta impor uma certa ordem à figura feminina, reafirmada
na elocução a partir da posição sádica do Eu masculino junto à proposta de dominação
“Desse castelo que eu construí/Desse universo que eu desenhei”.
Em contrapartida, num segundo momento, o uso desse imperativo está subjugado a
uma espécie de pedido a essa mulher, apresentado como o indício de reflexão desse homem
ao reconhecer a provável culpa – Supereu. A atitude pode ser entendida como a sequela e a
resistência da então companheira, limitada e protegida, conscientemente, pela presença e
decisão de manter a porta fechada.
No entanto, essa mesma sequência de conjugação verbal é observada a partir da
figura feminina, durante o surgimento do diálogo formado pelo casal, porém há uma espécie
de determinação desse modo imperativo que se sobrepõe ao anterior, proferido pelo sexo
oposto: “Cala essa boca”, aqui é enaltecida a ordem pelo lado de dentro da porta, ou seja, pela
companheira, todavia isso acontece como consequência do rompimento da ideia de
dominação defendida pelo ex-companheiro.
O exposto acima concede salientar a independência afetiva dessa mulher, conquistada
e ratificada, simbolicamente, pela não abertura do elemento porta, pois se feita a ação,
apenas contemplaria o caráter permanente de submissão, além de permitir a posição sádica
do eu na relação desgastada.
Ao mesmo tempo, percebe-se que ela, num processo de autocastigo, rememora, como
numa posição masoquista, ações consideradas, naquele momento, destrutivas, em função de
um sentimento: “Eu que lavei/ Os teus lençóis/Sujos de tantas/outras paixões/Que
ignorei/As outras muitas, muitas”. A ideia da culpa é visivelmente apontada não por quem
feriu, mas por quem foi ferido, pois aponta a cumplicidade daquela mulher aos atos ilícitos
do companheiro que condicionada pelo sentimento amoroso, concorda em ocultar algo, as
traições, o que justifica o momento de angústia da vítima.
Em seguida, na demonstração desse empoderamento emocional, essa mulher
minimiza essa tensão, apoiando-se numa verbalização imperativa num tom de pedido: “Vai,
depois liga/Diz pra sua irmã passar”, mas que reafirma sua dominação frente àquele homem,
assim como alimenta a liberdade conquistada: “Mas o universo hoje se expandiu”, apesar da
não abertura da porta física, paradoxalmente, houve o querer abrir da porta psicológica “E
aqui de dentro a porta se abriu”.
Na canção de Chico Buarque e Hime, a tensão feminina é provocada pela ação oposta
àquilo que era considerado habitual entre o casal, no atrás da porta. A cumplicidade erótica
252
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Considerações finais
Neste trabalho foi exibida uma análise sobre a simbologia da porta e sua relação
expressiva a uma relação amorosa, presente em duas canções: Do lado de Dentro e Atrás da
Porta, composições nacionais dos autores Marcelo Camelo de Souza, da primeira obra; e
Buarque de Hollanda e Hime, da segunda obra. Para tanto, utilizou-se Os estudos simbólicos
desse objeto, por Chevalier e Gheerbrant (2007), e A poética do espaço, por Bachelard (2009).
Em análise, o ritmo da relação amorosa presente nas duas composições foi
vislumbrado, nas quais a tensão vivida dentro de uma relação sensualizada eroticamente e a
conduta feminina marcada pelo sofrimento decorrente da partida de seu amor são opostas:
de um lado, a liberdade de um eu-poético que transita para um momento sem as amarras
medievais impostas pelo seu amante; do outro, a dependência de um eu-poético feminino
que não consegue e não quer atravessar a porta, mas se esconde atrás desse objeto com as
lembranças e mágoas de uma relação outrora existente.
Tais constatações trouxeram à tona o caráter psicanalítico do estudo, com as
contribuições de Sigmund Freud, por meio de suas Obras completas (2014); em verificação,
notam-se as tensões provocadas pelas escolhas lexicais de ambas as composições, as quais
se relacionam à simbologia da porta pela presença de verbos no pretérito, indicando a
ruptura do relacionamento; do imperativo, reforçando o empoderamento feminino, bem
como outras impressões e analogias de libertação e prisão antitéticas, quando defrontadas
as duas canções.
Por fim, os subtópicos em que se relacionam os versos de ambas as composições
demonstram que a perspectiva de análise do elemento simbólico “porta” dialoga com a
interpretação psicanalítica do estado tensivo do eu-lírico. Isso ocorre, enfim, pela observação
dos universos criados nas canções, em que se apresentam momentos nos quais se
reconhecem uma figura feminina, um sentimentalismo e certa ambiguidade.
254
Anais
Tal ambiguidade revela uma ideia de oposição entre a liberdade, em “Do Lado de
Dentro”, e o aprisionamento, em “Atrás da porta”. Sendo assim, mesmo que essa ideia de
cerceamento próprio, revelada na segunda canção, pareça minimamente consensual na visão
do eu lírico feminino, a primeira música já rompe com esse ideário de dependência afetiva
da figura da mulher e aponta para um novo comportamento, o de empoderamento.
Referências
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonho, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
FREUD, Sigmund. Obras completas: inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e
outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MORAES, Marília Brandão Lemos. Poesia, psicanálise e ato criativo: uma travessia poética.
Estudos de Psicanálise, Rio de Janeiro. n. 29. 2006. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372006000100008.
255
ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO
E A VISIBILIDADE NOS CONTOS
DE LYGIA FAGUNDES TELLES E
EDGAR ALLAN POE
Mariluz Marçolla Ferreira AVRECHACK (PUC-SP)1
RESUMO
256
Anais
In fantastic literature the Brazilian Lygia Fagundes Telles (1918-2022) and North American
Edgar Allan Poe (1809-1849) are important names on the national and international scene.
Concerning the production of disconcerting short stories, the works "Come and see the
sunset" (1988) and "The cask of amontillado" (1846) are compositions in which the creation
of narrative space acts as a fundamental strategy to feed the reader’s imaginary. Thus, the
work seeks to investigate how the aesthetic constructions of the space are similar in both
narratives mentioned, and also seeks to understand how the textual language constructed
by the writers operates as a mechanism for the visibility of the spaces narrated in these short
stories. The theoretical references of the investigation will be constituted by Mikhail Bakhtin,
in Theories of the novel II: The forms of time and the chronotope (2018 [1975]), Italo Calvino,
in the essay "Visibility", presented in the work Six memos for the next millennium (1990
[1985]) and Remo Ceserani in his book The Fantastic (2006 [1996]). The development of this
research can contribute to the expansion of studies focused on the category of narrative
space - which its poetic still almost unexplored. The research is qualitative, descriptive,
following the analytical, hypothetical-deductive method.
Keywords: Comparative literature; Fantastic; Narrative space; Lygia Fagundes Telles; Edgar
Allan Poe
257
Anais
Poe inovou e tornou-se um pilar na produção de contos. Depois dele, vários autores
também enriqueceram a literatura desse gênero, dentre eles, uma especificamente chama
atenção pelos pontos que se assemelham entre as suas produções e as produções do norte-
americano: a brasileira Lygia Fagundes Telles. Nascida em São Paulo, em 1918, Telles foi
considerada uma das maiores contistas do país, além de ter sido premiada
internacionalmente. Mesmo com a diferença temporal existente entre esses escritores,
observa-se que ambos empregam uma linguagem textual específica, da qual se revela o
ambiente insólito das narrativas.
De modo a avançar as teorias já amplamente conhecidas desenvolvidas pelo teórico
búlgaro Tzvetan Todorov, o italiano Remo Ceserani (2006) é trazido à discussão. Para este
crítico ainda pouco explorado, o fantástico seria um “modo” literário utilizado em obras
2Poe’s critical comments towards the middle of the nineteenth century are responsible for the birth of the short
story as a unique genre. As the first short story theorist, he brought into discussion issues of form, style, length,
design, authorial goals, and reader affect, developing the framework within which the short story is discussed even
today. Evaluating the status of the short story as a genre, he ranked it very high in the pantheon of arts, second
only to the lyric form. His major contribution was to invest the short story with tension and thus to impregnate it
with the defining attributes of poetry.
258
Anais
Ceserani (2006) afirma ainda que a partir da primeira metade do século XIX, surgiu
uma clara prática textual que perdurou até o século seguinte, na qual o modo fantástico foi
empregado como elemento fundamental em diversas obras literárias nas quais o autor tinha
como principal intenção causar experiências intensas e inquietantes.
Edgar Allan Poe escreveu por volta da metade do século XIX e Lygia Fagundes Telles,
no século seguinte. Ao aliar essa premissa temporal juntamente com a unidade de efeito que
suas obras geram à mente do leitor, observa-se que, segundo as postulações de Ceserani, Poe
e Telles utilizaram em várias de suas produções o modo fantástico enquanto recurso
narrativo, produzindo então, contos fantásticos.
Dentro do conjunto de contos fantásticos elaborados por Lygia Fagundes Telles e
Edgar Allan Poe, há duas obras que chamam atenção devido a suas construções narrativas,
sendo “Venha ver o pôr do sol”, publicado por Telles em 1988 e “O barril de amontillado”,
publicado por Poe em 1846. De modo a expor mais claramente o elemento que mais nos
chama atenção nessas obras, apresentaremos brevemente o enredo de cada uma delas.
Em “Venha ver o pôr do sol”, o personagem Ricardo convida sua ex-namorada, Raquel,
para um último encontro. Raquel vai até o endereço indicado e percebe que esse encontro se
dá em um cemitério abandonado, com o portão consumido pela ferrugem, o mato cobrindo
até as sepulturas e as folhas secas espalhadas sobre os pedregulhos enegrecidos. A
personagem continua a ser guiada por Ricardo até que caminham suficientemente longe de
qualquer testemunha e, assim, Ricardo realiza sua vingança. Nessa narrativa, o espaço
também é responsável pela construção do horror presente no conto.
Em “O barril de amontillado”, o personagem-narrador Montresor manifesta o quanto
já havia suportado as diversas ofensas do vaidoso Fortunato. Em um dia de carnaval, no qual
259
Anais
Fortunato encontra-se alcoolizado, Montresor o atrai ao afirmar que possui, em seu castelo,
um barril de amontillado e que precisaria de alguém que comprovasse a veracidade daquele
raro vinho. Fortunato é guiado até a adega de Montresor, nas profundezas escuras de seu
castelo. Ao chegarem fundo suficiente naquele ambiente, Montresor executa sua maligna
vingança. Por meio desta breve explanação do enredo é possível perceber que a construção
do espaço desse conto contribui para a criação do horror na diegese.
Percebe-se um ponto especificamente inquietante: a construção do espaço narrativo.
E, mais precisamente, a maneira como as construções tornam-se visíveis na imaginação do
leitor durante o desenvolvimento da narrativa. A partir da leitura de obras literárias, a
imaginação produz imagens, e, diante dessa produção imagética urge questionar: de que
forma é possível aproximar a construção dos espaços narrativos nos contos “Venha ver o pôr
do sol” e “O barril de amontillado”?
Parte-se das hipóteses de que o espaço atua como mecanismo responsável pela
construção da visibilidade (CALVINO, 1990) nos contos, pois este operador se projeta na
mente do leitor e torna-se visível e o espaço narrativo é visível a partir da enunciação dos
narradores, por meio da linguagem investida em ambas as narrativas breves.
Para embasar a análise, o ensaio “Visibilidade”, de Italo Calvino, presente na obra Seis
propostas para o próximo milênio (1985) se faz essencial pois nele Calvino aborda a questão
da imagem visiva criada até o alcance da expressão verbal, com exercícios imaginativos. E,
sobre o espaço narrativo, serão abordados os estudos de Mikhail Bakhtin presentes na
compilação de ensaios intitulada Teorias do romance II: As formas do tempo e do cronotopo
concebida ao longo da década de 30 e publicada apenas em 1975. Nessa produção, Bakhtin
faz conceituações que embasam as relações entre tempo e espaço em narrativas em prosa,
sendo um estudo basilar contemporaneamente. Por meio de uma análise crítica a respeito
da visibilidade do espaço narrativo presente na construção dos contos fantásticos de Telles
e Poe pretende-se discutir o conceito de Calvino a partir da construção de um elemento da
macroestrutura narrativa – o espaço –, e assim, contribuir para a compreensão do lugar da
imagem na literatura, a qual, segundo Octávio Paz (2015) possui o poder de dizer o indizível.
A visibilidade
O ensaio de Italo Calvino, intitulado “Visibilidade” é iniciado por uma citação da obra
de Dante, O Purgatório, que revela: “Chove dentro da alta fantasia”. Calvino (1990, p. 97)
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suscitar a imaginação visual em suas obras, em especial contistas do século XIX como
Hoffmann, Nerval e Poe – um dos autores alvo de nossa análise.
Em seu ensaio, Calvino já se demonstrava preocupado com a formação do imaginário
em um período no qual as pessoas não precisam mais pensar por imagens. E realmente, na
contemporaneidade, grande parte das imagens chegam ao leitor sem que o mesmo faça
esforço algum para imaginá-la. As mídias digitais entregam um número incessante de
imagens em períodos de tempo curtos demais, logo, o leitor de posts instantâneos em redes
sociais de internet não desenvolve a parte visual de sua imaginação no mesmo grau que um
leitor de narrativas o faz. Como ficariam as narrativas fantásticas em meio a isso?
Nos contos fantásticos o leitor é mergulhado em inquietação do imaginário e aos
arrepios na espinha. Mesmo o leitor despreparado, acostumado com imagens prontas aos
seus olhos, rende-se a esse lançamento que a modalização fantástica e insólita construída de
forma habilidosa lhe impõe. Acredita-se que o efeito da visibilidade da imagem nas
narrativas fantásticas não se perde mesmo com as mudanças frenéticas no olhar do novo
milênio.
Tal posicionamento justifica-se pois, como define Gottfried Boehm (2015, p. 26), a
partir da imaginação pictórica, “as imagens nos colocam em um estado de infância, e nos
lembram como nós, crianças, aprendemos simultaneamente a ver e a fabricar imagens.” Ou
seja, por mais que o homem contemporâneo receba, na maioria das vezes, a visualidade já
pronta diante de seus olhos, na sua infância esse indivíduo exerceu sua imaginação por meio
de leituras imaginativas de livros quando ainda nem era alfabetizado – assim como Calvino
relata que era sua prática costumeira.
Com isso, objetiva-se demonstrar que o exercício da imaginação visual ocorre desde
a infância do indivíduo, e, quanto mais exercitada por meio de leituras literárias, mais
aguçada e clara torna-se a visualidade dos acontecimentos narrados. A visibilidade da
imagem, portanto, sempre poderá ocorrer, porém, a nitidez dessa visibilidade dependerá de
treinamento, do exercício de leitura narrativa.
A partir desta breve explanação sobre o conceito e expressão da visibilidade na
narrativa, em especial da visibilidade insólita-ficcional, espera-se ser possível compreender
como a imaginação torna uma imagem visível aos olhos do leitor, o qual passa a ler uma
narrativa como se desenrolasse uma projeção cinematográfica diante de seus olhos. Assim
sendo, um dos operadores narrativos em que melhor se pode ver projetada a imagem é o
espaço da narrativa. À vista disso, cabe compreender um pouco sobre o espaço e o quanto
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sua construção estética pode atuar como elemento imagético de narrativas, em especial, de
narrativas breves.
Dessa forma, observa-se que o espaço exerce a função de situar o leitor de uma
narrativa em relação às situações que se desenrolam na diegese.
É importante ressaltar que não se pretende fazer aqui um estudo meramente
geográfico-linguístico do espaço narrativo construído nos contos fantásticos “Venha ver o
pôr do sol” e “O barril de amontillado”. Nossa intenção é perceber como o espaço construído
pelos narradores elaborados por Telles e Poe revela a imagem fantástica nesses contos.
Para evidenciar a questão imagética que se manifesta a partir do espaço evidencia-se
o teórico Bakhtin (2018) e seu conceito de cronotopo – entendido como as relações de tempo
e de espaço que são assimiladas na literatura –, sendo então o “tempo-espaço” literário.
Bakhtin (2018, p. 227) afirma que no cronotopo os acontecimentos do enredo se
concretizam, ganhando forma e corpo e “o próprio cronotopo fornece um terreno importante
para a exibição-representação dos acontecimentos” narrados.
Bakhtin (2018) revela que há um significado figurativo do cronotopo que se manifesta
por uma condensação espacial que concretiza o tempo em narrativas em prosa – podendo
esse tempo ser histórico, o tempo da vida humana etc. – e, a partir disso, é criada a
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O diálogo revela que a adega é também uma catacumba e que há fileiras de garrafas
de variados vinhos empilhadas no chão. Se observa mais detalhes no trecho: “Havíamos
passado diante de paredes de ossos empilhados, entre barris e pipotes, até os recessos
extremos das catacumbas.” (POE, 2017, p. 220). O clima de horror passa a dominar a
narrativa a partir da descrição do espaço do conto, o leitor pode ver esse espaço ser exibido
em seus olhos: “Passamos por uma série de baixas arcadas, demos voltas, seguimos para
frente, descemos de novo e chegamos a uma profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia
a chama de nossos archotes a brasas avermelhadas.” (POE, 2017, p. 220-1).
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O leitor se vê guiado na cena pelo detalhamento com que o espaço sombrio lhe é
apresentado. O personagem vingativo leva sua vítima até o recanto mais remoto da cripta e
lá, há paredes já preparadas para a execução de sua desforra:
Através de sua imaginação visual, o leitor pode ver o personagem Montresor prender
Fortunado por correntes na catacumba, e em seguida, emparedá-lo aos poucos com
argamassa. Tudo já estava previamente preparado para o fim trágico de Fortunado. A estória
arrepia, pois o leitor é capaz de visualizar toda a cena sombria se desenrolar pela visibilidade
do local descrito na narrativa: “Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a.
Contra a nova parede reergui a vermelha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal
algum os remexeu. In pace requiescat.” (POE, 2017, p. 223).
A cena final do conto fantástico revela claramente que Montresor emparedou vivo o
personagem Fortunado, e que ninguém jamais tocou nos ossos que ele depositou acima da
parede na qual deixou Fortunato. A linguagem textual construiu espaço e, a partir daí, a
visibilidade da imagem foi produzida nos olhos do leitor, causando-lhe efeitos.
O conto “Venha ver o pôr do sol” possui a descrição dos espaços muito detalhada, o
que facilita ainda mais a imaginação visual dessa narrativa. Telles abre o conto com o
narrador, que está fora da estória, descrevendo que as personagens estão em um local quase
deserto: “Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam
rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios.” (TELLES,
1999, p. 123). Não demora para que a personagem Raquel perceba que o encontro é em um
cemitério abandonado, pois já à primeira vista há muros arruinados e o portão de ferro
carcomido pela ferrugem.
No conto de Poe, o leitor consegue visualizar a catacumba profunda, sombria e úmida
do palácio, a partir da descrição narrativa do espaço narrativo, transformando esse espaço
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em imagem à sua mente. Telles alcança o mesmo efeito, pois é possível ao leitor imaginar
visual e claramente a partir da linguagem que representa o espaço, como no trecho:
A construção do espaço em “Venha ver o pôr do sol” é muito cuidadosa, cada elemento
inserido agrega tensão e inquietação à narrativa, como se observa no momento em que são
descritas as sepulturas, com ervas daninhas brotando insólitas de dentro de fendas, os
musgos cobrindo os nomes das lápides, as folhas secas no chão, nas quais os personagens
vão pisando enquanto dialogam, revelando o silêncio daquele local inóspito.
A imaginação visual do leitor acompanha a apresentação de cada detalhe, o clima
insólito percorre a narrativa:
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia não furioso abraço de cipós e folhas. A estreita
porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de
paredes enegrecidos, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do
cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira
acordou tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco
crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois
triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que
alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da
porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra,
descendo em caracol para a catacumba. (TELLES, 1999, p. 128).
A partir das breves passagens dos enredos transpostas, é evidente o quanto o espaço
se manifesta como recurso instaurador do modo fantástico nos narradores elaborados por
ambos os escritores. O espaço pode ser enxergado claramente a partir da imaginação visual
do leitor, que passa a ser conduzido pela adega e pelo cemitério como se estivesse ao lado
das personagens na estória, no desenrolar da cena.
É importante ressaltar que o leitor precisa estar aberto à essa visibilidade espacial, e
assim, a narrativa penetra em várias de suas estruturas enquanto espectador, ou seja, o conto
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penetra em suas camadas subjetivas de visibilidade. Para atuar como espectador de uma
narrativa, é necessário atenção aos detalhes apresentados pelos narradores – os quais são
criações de Telles e Poe, caso contrário, pode haver lacunas visuais na projeção da cena
imaginada por meio da leitura. Sobretudo, é importante lembrar que o processo de
visibilidade gerado por meio da literatura não pode ser predefinido ou controlado, ele se
desenvolve natural e organicamente à medida que o contato com diversas narrativas ocorre
e se intensifica.
Considerações finais
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REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. São Paulo:
Editora 34, 2018.
BOEHM, Gottfried. Aquilo que se mostra: sobre a diferença icônica. In: ALLOA, Emmanuel
(org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 23-39.
CALVINO, Italo. Visibilidade. In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 95-114.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 2008.
PATEA, Victoria. The Short Story: an overview of the history and evolution of the genre in
Short Stories: a twenty-first century perspective. New York: Rodopi, 2012.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.
POE, Edgar Allan. O barril de amontillado. In: POE, Edgar Allan. Contos de terror, mistério
e morte. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 218-223.
TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr do sol. In: TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile
verde: contos. 16. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 123-131.
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UM ENTRE-LUGAR DE
ENUNCIAÇÃO NA NARRATIVA
CONTEMPORÂNEA: SORRIA,
VOCÊ ESTÁ NA ROCINHA
Josivânia da Cruz VILELA (UEPB)1
Wanderlan ALVES (Orientador – UEPB)2
RESUMO
A virada dos anos 1990 para os anos 2000 marca o início de certa efervescência nos debates
acerca da literatura, motivados em grande medida pelas supostas transformações no seu
estatuto, na sua forma, e nos procedimentos estéticos e linguísticos colocados em prática no
texto literário. O que ocorre é que a literatura, enquanto materialidade, e a própria
concepção do que seja literatura, se transformam ou se atualizam, de modo a problematizar
(novamente) os limites que haviam definido o literário com relativa comodidade até meados
do ano de 1960, em prol da mescla, do jogo, da hibridação com os signos literários
(linguísticos, culturais, sociais). Tendo isso em mente, no presente trabalho objetivamos
analisar o romance Sorria, você está na Rocinha (2004), de autoria do escritor brasileiro Julio
Ludemir. Composto por três partes que se fragmentam entre si, o romance se estrutura por
meio de um processo escritural que articula a escrita jornalística, traços autobiográficos,
diário pessoal e relato antropológico, compondo uma espécie de “objeto verbal não
identificado”, no sentido em que o termo é utilizado por Flora Süssekind (2013) para
discorrer acerca de práticas artísticas e literárias que não podem ser classificados
tranquilamente, porque fogem às configurações tradicionais de enquadramento em gênero,
por exemplo.
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ABSTRACT
The turn from the 1990s to the 2000s marks the beginning of a certain effervescence in the
debates about literature, motivated largely by the supposed changes in its status, in its form,
and in the aesthetic and linguistic procedures put into practice in the literary text. . What
happens is that literature, as materiality, and the very conception of what literature is, are
transformed or updated, in order to problematize (again) the limits that had defined the
literary with relative comfort until the mid-1960s, in favor of the mixture, the game, the
hybridization with the literary signs (linguistic, cultural, social). With this in mind, in the
present work we aim to analyze the novel Sorria, você está na Rocinha (2004), by the
Brazilian writer Julio Ludemir. Composed of three parts that are fragmented among
themselves, the novel is structured through a scriptural process that articulates journalistic
writing, autobiographical traces, personal diary and anthropological report, composing a
kind of “unidentified verbal object”, in the sense that the term is used by Flora Süssekind
(2013) to discuss artistic and literary practices that cannot be classified calmly, because they
escape the traditional settings of framing in genre, for example.
Fica parecendo um sonho, um delírio, uma visão, uma loucura: vista de longe,
com seus milhares de luzes faiscantes, a Favela da Rocinha se assemelha a
um gigantesco disco voador recém-pousado numa encosta de morro na
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Geneton Moraes Neto, orelha do
livro Sorria, você está na Rocinha, 2004)
271
Anais
sobre o lugar e seus habitantes para posteriormente escrever um livro. Esse personagem
poderia ser pensado como uma espécie de alterego de Ludemir, em razão da convergência
de elementos biográficos do escritor com aspectos da história narrada. Assim como o
personagem do seu livro, Julio Ludemir passou seis meses na Rocinha para realizar
pesquisas com o objetivo de escrever um livro, mas nesse período foi acusado de ser um X-9
(termo utilizado na gíria da favela para se referir a delator), o que o levou a ser julgado pelo
tribunal do tráfico, e posteriormente absolvido. Só para citar mais um exemplo, outro fator
que aproxima escritor e personagem é o fato de que em diversos trechos do livro Sorria, você
está na Rocinha há menções acerca do romance No coração do Comando, que aparece como
tendo sido escrito por Luciano Madureira. O livro realmente existe, foi o primeiro romance
escrito por Ludemir, e publicado em 2002.
É a partir desse entre-lugar de enunciação, dentro-fora da favela por ele pesquisada,
que Ludemir escreve Sorria, você está na Rocinha, dando visibilidade a espaços e sujeitos
marginalizados. E é também a partir desse lugar, “no meio” (para utilizar uma concepção de
Reinaldo Laddaga, 2010), que Ludemir pinta o mosaico coral de uma sociedade perpassada
por conflitos e diferenças sociais re/criando a “realidade” de indivíduos periféricos e
experimentais, que figuram à margem de nossos sistemas de representação social e
normalmente reaparecem na literatura também como representação ou figuração das
margens ou à margem. Nessa edificação de mundos na linguagem, o pobre, o periférico e o
marginal emergem sob aspectos e configurações fugidios. Ao construir sua narrativa
mesclando certo efeito que é realista no estilo, mas livre quanto aos modos de criação e,
mesmo, de fantasia do real, o escritor consegue distanciar-se das tradicionais dicotomias
representacionais que relacionam a favela à delinquência, à barbárie. O que resta de
inacessível à favela, no romance escrito por Ludmeir, é uma espécie de fantasma (LACAN,
2005) cuja lógica, instável ao olhar exterior, não se deixa circunscrever nem reduzir às
representações midiáticas estereotipadas difundidas acerca da periferia, da favela, de sua
população, de suas práticas cotidianas, sociais, culturais, etc.
A primeira parte do romance, intitulada “Livro I – um dia com 36 horas e 120 mil
habitantes”, é narrada por Paulete, produtor de moda que mora na favela e que desde a
chegada do jornalista passa a ajudá-lo em sua empreitada. Mais do que isso, Paulete acaba
apegando-se sentimentalmente ao pesquisador, o que o leva a tentar salvá-lo do tribunal do
tráfico após este ter publicado um texto-bomba comentando aspectos da violência da vida
na favela, assim como da economia do lugar.
272
Anais
Quisera chamar a atenção para o fato de que a solidariedade não é somente ensinada
desde a mais tenra idade na Rocinha, mas vivida na prática, no relato. Há disputas e conflitos
na Rocinha ficcionalizada por Ludemir, mas quando se trata de proteger a favela de ameaças
que vêm de fora, sua população se une em prol do bem comum. Essa união também é
colocada em prática quando a comunidade apresenta alguma necessidade (de certo modo,
tudo, ou quase, parte de/ou é motivada por uma necessidade, no romance escrito por
Ludemir). Foi por necessidade que emergiu a primeira escola da favela, assim como o bar
gay. No primeiro caso, a motivação para a construção da escola se deveu a necessidade de
“proporcionar [para as crianças] a matéria de que precisam para sonhar com dias melhores
tanto para si como para a comunidade em que vivemos” (LUDEMIR, 2004, p. 20). Já no
segundo caso, com a abertura de um bar gay na Rocinha, “a vida de todos os homossexuais
do morro se tornou muito mais fácil” (LUDEMIR, 2004, p. 19); não necessariamente porque
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Anais
os preconceitos tenham acabado a partir desse dia, mas porque a abertura desse ponto de
encontro potencializou a afirmação de tais sujeitos, o que os tornou mais fortes para
continuarem resistindo.
Ainda na primeira parte da narrativa, cabe ressaltar um trecho que corrobora a
premissa de que a favela é sedimentada e constituída de relações de afecção negociáveis não
somente no que concerne aos sujeitos, mas também no que diz respeito à própria realidade:
“a vida na favela é uma eterna negociação com a realidade e os seus estreitos limites”
(LUDEMIR, 2004, p. 56). De certo modo, negociar com a realidade também se configura como
uma alternativa (talvez a única possível) para continuar sobrevivendo em um contexto de
opressão; ou seja, negociar equivale a resistir (mas, por vias laterais) para continuar
existindo.
A segunda parte da narrativa é denominada “Livro II – os salvados”, possivelmente
em referência aos dezesseis cadernos (salvos por Paulete) que a compõem, nos quais
Luciano teria feito as anotações durante o tempo em que permanecera na Rocinha. Tendo
resguardado essa pesquisa, Paulete começa a ler os registros, o que serve de informação ao
leitor não somente sobre o local e a população pesquisada, mas também sobre a visão do
jornalista acerca do espaço da periferia e dos sujeitos que lá residem. No entanto, é paradoxal
a relação que se estabelece entre pesquisador e pesquisados, posto que ainda que as
anotações sejam de Luciano, tais linhas não saem propriamente de sua boca ou, ao menos,
não chegam aos leitores a partir do jornalista, mas, sim, através de Paulete, que é quem lê os
cadernos contendo os mínimos detalhes sobre o funcionamento da favela. Dessa forma, o
“livro opera um deslocamento do individual para o coletivo no qual nem experiência nem eu
pertencem a um indivíduo em particular, conseguindo desta maneira singularizar a
experiência” (GARRAMUÑO, 2014, p. 73) dos sujeitos, os quais aparecem numa rede de
relações com os outros. Além disso, no romance a intenção etnográfica fica eclipsada, já que
o leitor se torna presa daquilo que Paulete lhe revela das anotações de Luciano.
Nesses cadernos salvos por Paulete, nota-se que, à medida que Luciano conhece a
Rocinha, assim como os sujeitos que ali moram, vai anotando suas impressões, ou mesmo
frases supostamente pronunciadas pelos moradores, mas não sabemos o que é deixado de
lado ou mesmo acrescentado pelo produtor de moda durante o ato da sua leitura. É assim,
por exemplo, que temos acesso ao que o jornalista chama (de acordo com Paulete) de uma
pérola semântica, e que dita em referência à Rocinha potencializa uma gama de
interpretações, qual seja: “como-unidade”. Soletrada rapidamente, poderíamos ler essa
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Anais
palavra como “comunidade”3, o que pode nos levar a pensar em um grupo de sujeitos que
compartilham algo com outros, como uma história comum, um objetivo comum, uma
determinada área geográfica, ou práticas comuns, algo que não destoa do que é a Rocinha na
narrativa.
Por outro lado, se optarmos por ler a palavra pausadamente, de modo a separar o
termo “como” de “unidade”, pode-se pensar em algo que é uno, que não se divide. A
problemática que se coloca para essa segunda interpretação é que a favela em questão
apresenta diversas divisões, de ordem econômica, de classe social, assim como várias
(des)articulações no próprio terreno da periferia. No romance, por exemplo, se afirma que
há pelo menos “duas Rocinhas – uma que tem e a outra que não tem. A que tem é a da Estrada
da Gávea e suas imediações” (LUDEMIR, 2004, p. 174). O território que compõe a Rocinha é
diretamente associado aos moradores e seu poder aquisitivo, por isso, o tipo de “divisão” do
espaço parece ser indissociável dos sujeitos que ali residem, o que torna os moradores parte
e extensão da Rocinha ficcionalizada por Ludemir.
No romance, mesmo em uma favela considera a mais globalizada do Brasil como é a
Rocinha, há áreas nas quais não chega luz elétrica, sendo resolvido tal problema por meio de
3No livro Communitas: origen y destino de la comunidad (2003), Roberto Esposito tece importantes
considerações acerca do sentido da palavra comunidade, assim como de sua possível vitalidade nas
últimas décadas. O filosofo italiano parte do pressuposto de que não há nada mais imprescindível do
que pensar a comunidade em uma época em que se anunciam as perdas do comunismo e a assunção
do individualismo, e chega a afirmar que a concepção de comunidade não pode ser traduzida ao léxico
político, social e cultural atual sem que se leve em conta as torções próprias da nossa época. Diante
dos seus argumentos, a palavra “comunidade” aparece como um termo deslocado no tempo e no
espaço, como se participasse de um processo diacrônico, mas, em todo caso, potente para a
compreensão de certos grupos sociais. Nas palavras de Esposito (2003, p. 30-31), nos últimos anos o
termo comunidade, que deriva do latim “communitas, [puede ser pensado como] el conjunto de
personas a las que une, no una ‘propiedad’, sino justamente undeber o una deuda. Conjunto de
personas unidas no por un ‘más’, sino por un ‘menos’, una falta, un límite que se configura como un
gravamen, o incluso una modalidad carencial, para quien está ‘afectado’. Como indica la etimología
compleja, pero a la vez unívoca, a la que hemos apelado, el munus que la communitas comparte no es
una propiedad o pertenencia. No es una posesión, sino, por el contrario, una deuda, una prenda, un
don-a-dar. Y es por ende lo que va a determinar, lo que está por convertirse, lo que virtualmente ya
es no es lo propio, sino lo impropio —o, más drásticamente, lo otro— lo que caracteriza a lo común.
Un vaciamiento, parcial o integral, de la propiedad en su contrario. Una desapropiación que inviste y
descentra al sujeto propietario, y lo fuerza a salir de sí mismo. A alterarse”. Por essa perspectiva, e
vale ressaltar que essa é a concepção de comunidade que nos interessa para pensar o romance de
Ludemir, o que une os sujeitos da favela, formando uma comunidade, é uma urgência ou emergência,
não necessariamente algo que lhe seja próprio, mas sim impróprio. É na (ou da) falta que emerge o
comum; e é, também, devido a essa falta que tais sujeitos experimentam a vida em grupo.
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ligações elétricas clandestinas (também chamada de “gatos”, na gíria popular) feitas pelos
próprios moradores. Tal situação, se, por um lado, aponta para a potência de (re)inventar
condições (possíveis, ainda que clandestinas) de vida, por outro lado, também sugere a
negligência do governo que parece se omitir de sua responsabilidade. A parte da Rocinha em
que a luz não chega a não ser por vias clandestinas, também é a parte mais pobre da favela,
e onde as ONGs também não aparecem, nem a mídia televisiva, a não ser quando o objetivo
é fazer matérias sobre a pobreza, mostrar a vulnerabilidade alheia. Quando o objetivo é falar
sobre os supostos investimentos que os órgãos públicos fazem no âmbito da favela, os
holofotes são direcionados para a parte da Rocinha que compreende a Estrada da Gávea e o
seu entorno, a “parte que tem”.Enquanto isso, os moradores da “parte que não tem” driblam
por vias indiretas o poder público, suprindo suas próprias necessidades. Situam-se dentro
fora da instância legalista. Não é à toa que, no romance, um dos conceitos tido como
fundamental dentro da favela é o de beira (LUDEMIR, 2004), que aponta para uma posição
dentro fora (da lei, da cidade, etc.) ocupada pelos moradores da Rocinha.
Outra característica da favela criada por Ludemir, e que remete aos postulados de
Ludmer acerca das ilhas urbanas (2010), é que “a Rocinha inverte o público com o privado”
(LUDEMIR, 2004, p. 205). Tida como uma das chaves para entender o funcionamento da
favela, assim como as relações entre os sujeitos, essa assertiva sugere certo limiar
contaminante no qual se situam os moradores da periferia. É a partir desse entrelugar que
tais sujeitos agem borrando qualquer noção de limite; ou melhor, talvez seja devido a essa
ausência de limites (ou da noção de limite), interligada à necessidade dos sujeitos que
residem na favela, que se coloca em prática “o modo invasivo como [tais sujeitos] usam o
espaço, ocupando todas as áreas possíveis, inclusive as que já pertencem a outras pessoas,
os vizinhos e amigos” (LUDEMIR, 2004, p. 234). Aqui, mais uma vez o que seria privado se
fusiona ao que seria público, em um processo de contaminação das fronteiras.
É desse modo, pela contaminação de fronteiras e ocupação de territórios controlados,
que o da Rocinha parece ir se expandindo pelo restante da cidade, como vemos neste trecho:
“vendo a Rocinha de onde a conheci, observando-a da Lagoa enquanto corria em torno dela,
tinha a impressão de que ela continuava se espalhando pela encosta” (LUDEMIR, 2004, p.
133). Não é somente impressão, esse processo de expansão ocorre dia-a-dia, seja por meio
de uma casa que é construída nas margens da Rocinha (no espaço que era fora, mas se torna
dentro, ou dentrofora), seja por intermédio da aquisição de novos terrenos pelo tráfico. “Com
base nessa informação, temos pelo menos duas observações a fazer: uma, a onipresente na
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favela, da apropriação do espaço público tanto por meio do gato puxado do poste como do
uso da calçada sem o pagamento de impostos; dois, desse incessante diálogo com o asfalto”
(LUDEMIR, 2004, p.261).
É por meio desses diálogos com o restante da cidade, assim como também devido às
apropriações do espaço público, que começam a aparecer na Rocinha símbolos considerados
do “asfalto”, como as inúmeras propagandas. Aqui, há que chamar a atenção para uma
inscrição em um painel em particular, que fica sugerido na narrativa, posto que ela (a
inscrição) é importante por mais de um aspecto; tanto porque ajuda a compreender a favela
e os moradores, como também porque acaba potencializando interpretações sobre o
romance enquanto materialidade escritural, qual seja: “Sorria, você está na Rocinha”. Como
vemos no romance, essa frase sofre um triplo processo de apropriação até se tornar um
painel: 1) Possivelmente tenha sido vista em algum lugar e escrita em um painel na Rocinha
pelo Serginho da Pizzaria Lit, morador; 2) foi assinado posteriormente pelo Bob’s; 3) logo
após, tomada como título do livro de Ludemir, como podemos perceber no trecho abaixo:
Este painel que indica onde começa a Rocinha está (ele mesmo) dentro e fora do
território da favela; dentro, mas interligado ao exterior. Note-se, também, que a Rocinha
figura como uma civilização à parte, mas ao mesmo tempo não está desvinculada do restante
da cidade. Poderíamos, pois, afirmar que a favela em questão faz rizoma com o território que
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a rodeia a partir de um processo de desdiferenciação, o que permite que a favela possa ser
considerada como parte e extensão da cidade, mesmo possuindo regras e leis próprias. Como
na própria palavra “desdiferenciação”, que traz em si o prefixo polissêmico que conjuga certo
significado de negação e de reversão do elemento lexical ao qual acompanha, a Rocinha, no
romance, (con)funde-se na diferença com a cidade. Tomada como título do livro de Ludemir,
a frase “Sorria, você está na Rocinha” pode ser pensada, ainda, como um operador de leitura
que permite pensar a favela e até mesmo o romance em suas múltiplas metamorfoses.
Parafraseando Deleuze e Guattari (se lessem o romance Sorria, você está na Rocinha vendo
dentro dele o título como produto ficcionalizado): “ali figura a vespa, mesmo sendo
orquídea”. Não se trata de um processo de mimetização da favela, mas de complementação,
e assim cria-se uma realidade que supostamente o romance referência.
Já a terceira e última parte da narrativa está intitulada “Livro III – o legado de Bin
Laden”, possivelmente fazendo referência ao legado deixado por Luciano, assim como aos
seus cadernos que são entregues a ele por Paulete. Nessa parte também vemos a decepção
de Paulete por se sentir usado e enganado quanto aos objetivos de Luciano ao pesquisar a
Rocinha:
Como se pode notar pela fala de Paulete, por vezes as escrituras que se propõem
representar a periferia apresentam/representam uma visão negativizada da favela (é esse
maniqueísmo que a personagem questiona no fragmento acima), o que termina por
marginalizar de forma mais contundente os indivíduos que a constituem. Tratando do
desafio relacionado à distância daquilo que o artista observa enquanto etnógrafo, Hal Foster
argumenta que, assim como a superindentificação pode conduzir a uma visão
excessivamente reduzida por parte do artista, no âmbito da representação, a
desidentificação assassina o outro, colaborando para “construir uma solidariedade política
por meio do medo e da aversão imaginários” (FOSTER, 2017, p. 186), que geralmente é
explorada politicamente.
Por outro lado, não se pode deixar de enfatizar que se é Paulete que faz tal afirmação,
este personagem e sua fala são construídos por Ludemir. Ou seja, paradigmaticamente o
278
Anais
escritor mostra saber que certas imagens que são vendidas em artefatos artísticos
caricaturizam os moradores de espaços marginalizados socialmente. Tal jogo já está inscrito
desde o título de seu romance. Nesse sentido, a ambiguidade do “papel quasi-antropológico
atribuído ao artista pode promover uma presunção tanto quanto um questionamento da
autoridade etnográfica, uma evasão tanto quanto uma extensão da crítica institucional”
(FOSTER, 2017, p. 180). Diante disso, não seria absurdo conjeturar que ao “revelar os
mecanismos da sua potência ficcional, ao exibir seu próprio processo e idealizando sua
própria materialidade, [a narrativa] coloca em evidência a brecha entre o real e sua
representação, canalizando e expressando sua realidade” (SCHØLLHAMMER, 2012, p.130).
Ao construir a partir da linguagem literária uma favela e sujeitos que destoam de
representações caricaturescas, Ludemir acaba por denunciar certa vertente literária que
estigmatiza e comercializa a pobreza.
Como se pode notar no romance, não é por acaso que “os gringos fizeram da Rocinha
o terceiro ponto turístico mais visitado no Rio de Janeiro, superado apenas pelo Corcovado
e pelo Pão de Açúcar” (LUDEMIR, 2004, p. 182), pessoas “que chegam na favela querendo
conhecer os encantos da miséria brasileira” (LUDEMIR, 2004, p. 90). Esse fluxo alimenta o
que o escritor chama de “indústria da miséria”, que é fomentada pela mídia, que costuma
reforçar concepções e imagens dicotômicas acerca das periferias brasileiras, assim como
pelos tours que ocorrem no território da favela. No primeiro caso, é emblemático um trecho
do romance em que Paulete fala sobre o tipo de reportagem corrente quando se trata de
entrevistar moradores da Rocinha:
Conheço bem este tipo de reportagem, uma chatice. As perguntas são sempre
as mesmas e igualmente óbvias. E a violência? E os bandidos? E as drogas?
Como se fosse um milagre social uma jovem da Rocinha ser bonita, cuidar da
pele, malhar. Como se o fato de termos nascido no morro nos colocasse a
revolta como única alternativa de vida, ou formamos na boca ou então
saímos atirando nas madames de São Conrado, descarregando nelas todo
nosso ódio, toda nossa inveja, toda nossa incapacidade de lutar por uma vida
melhor, digna, sadia (LUDEMIR, 2004, p. 105).
279
Anais
binária da relação estabelecida por este olhar, sugerindo que suas premissas articuladas em
torno das noções de centro e periferia, de cidade e favela e de riqueza e pobreza não são
neutras nem simétricas e colaboram para uma identificação ideológica entre favela, periferia
e pobreza a partir de uma base moral. Enquanto as oposições estão constituídas por polos
que se oporiam na perspectiva do etnógrafo, a conclusão a que levam constitui um sintagma
complexo em que favela, pobreza e periferia aparecem coordenadas numa relação de
reciprocidade e suplementaridade que, no entanto, a personagem trata com ironia no
fragmento citado.
Já no segundo caso (quando se trata dos tours), território, pobreza e cultura vinculam-
se ao espetáculo, e “enquanto espetáculo a Rocinha dos Favela Tours não pressupõe a
simulação de uma realidade escondida, mas uma superposição de camadas de realidade que
são experimentadas na moldura espaço-temporal do passeio pela favela” (JAGUARIBE, 2007,
p. 149). No pacote que garante acesso ao “parque temático da pobreza” (para utilizarmos
uma expressão de Beatriz Jaguaribe, 2007), são selecionadas as imagens da favela que
podem ser vendidas para os visitantes. Centros culturais, as sedes de ONGs, as casas dos
moradores mais antigos da favela, estão na rota do passeio, mas os locais onde se
comercializam drogas, por exemplo, devem permanecer invisibilizados. Nesse sentido, no
romance de Ludemir, o glamour da favela que se comercializa nesses passeios tem a ver
também com um tipo de performance dos guias turísticos (que são sempre moradores do
local), e o que garante o espetáculo estético é o próprio espaço heterogêneo da favela, a parte
que se pode ver. O paradoxo que se instaura nesse tipo de “turismo [diz respeito] a busca
pelo autêntico quando os próprios turistas já desconfiam das encenações dos ‘nativos’
antenados com a vendagem de sua cor local”, conforme Jaguaribe (2007, p. 147-148). Como
vimos sugerindo nas linhas anteriores, ao escrever Sorria, você está na Rocinha, Julio
Ludemir aposta na construção de uma cartografia do espaço periférico e nos modos de
afecção território/sujeito, de modo a levar os leitores a “entrarem” na periferia ao passo que
estão lendo. Essa estratégia de aproximação dos leitores ao universo da favela a partir da
explicitação da geografia do lugar, se bem pode pintar a narrativa com certa tonalidade
realista, acaba por torcer o próprio paradigma da realidade representada, por meio de um
processo escritural que atravessa fronteiras e (con)funde realidade e ficção.
Considerações finais
280
Anais
Diante de tudo isso, poderíamos pressupor que Ludemir trabalha com referências
(espaciais) verificáveis, o que reforça o efeito de realidade criado no romance, mas joga,
também, para a concretização desse efeito, com o desconhecimento da periferia pelo leitor
médio (e de classe média), que tem de se pautar pelos discursos e imagens sobre a favela que
lhe chegam pelos meios de comunicação. Desse modo, para além da referência topográfica
codificada, não há clareza sobre o que mais na representação é expressivo da realidade que
o texto supostamente toma como referente. Nesse sentido, o efeito realista porta nessa
narrativa, também, o inevitável sentido de efeito da escritura, do real da (ou enquanto)
escritura e, portanto, do não representativo.
Por meio desse processo que beira o arquitetônico, tem-se, então, uma construção
narrativa que desponta quase como uma performance da escritura. Nesse caso, os efeitos
dessa performance problematizam a representação, criando uma realidade que o próprio
texto fabrica. Em outras palavras, encontramos nesse romance efeito de realidade que se dão
por meio de performances da escrita. Por sua vez, ao problematizar a relação imediata entre
representação e realidade, tal produção acaba reinvestindo a linguagem de certo potencial
crítico, o que produz como efeito o estranhamento do signo e aponta, com certo ceticismo,
para suas limitações, no que se refere à relação entre palavra e verdade. Por um lado, ele
procura abandonar abertamente toda noção de centro, sujeito ou referência privilegiados,
mas, por outro, não escapa ao dilema da interpretação como busca de verdade e
representatividade.
REFERÊNCIAS:
FOSTER, Hall. O retorno do real. (Trad. Célia Euvaldo). São Paulo: Cosac Naif. 2017.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.
281
Anais
LUDEMIR, Julio. Sorria, você está na Rocinha. Rio de Janeiro: Editora Record,.2004.
LUDMER, Josefina. Aquí América Latina: una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia,
2010.
282
A MEMÓRIA COMO
MEDIADORA PARA A
RESISTÊNCIA CONTRA O
RACISMO ESTRUTURAL: UMA
EVOCAÇÃO SUBJETIVA EM
“PONCIÁ VICÊNCIO’’, DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Adrielly da Silva GOMES (UNICAP)1
André Luís de ARAÚJO (UNICAP)2
RESUMO
Ponciá Vicêncio vive sua vida relembrando a vida, talvez como uma forma de se sentir viva
diante de uma sociedade que aniquila sua existência todos os dias através das desigualdades
social e racial. A personagem do romance evaristiano vive uma realidade que pode
transpassar a ficção e nos fazer repensar sobre o corpo social escravagista em que estamos
inseridos, visto que em Ponciá Vicêncio há uma negação da vida para continuar existindo em
memória. Por esse motivo, o objetivo central deste trabalho é analisar, na obra Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo, como a memória pode ter sido importante para uma
possível mediação para a resistência da personagem principal contra o racismo estrutural,
visando compreender como pode ter contribuído para um possível fortalecimento subjetivo.
Nesse sentido, as marcas da memória nessa obra podem contribuir para a observação de um
283
Anais
ABSTRACT
Ponciá Vicêncio lives her life remembering the life, maybe as a way to feel alive facing a
society that annihilates her existence everyday through social and racial inequalities. The
character of the evaristiano novel lives in a reality that can run through the fiction and make
us rethink about a slaver social body that we are inserted into, whereas in Ponciá Vicêncio
there is a denial of life to continue to exist in memory. For this reason, the central objective
of this work is to analyze in the book Ponciá Vicêncio, by Conceição Evaristo, how the
memory may have been a possible mediation for the resistance of the central character
against the structural racism. In that regard, the marks of memory in this novel can
contribute to the observation about a possible fortification of the memory to continue
existing, even in a society structured by racism, through her remembrance. Besides that, the
fictionality of the narrative talks about the reality of black people that rises, then, against a
society that annihilates these subjectivities daily, through lack of equity, denial of basic rights
and the forced marginalization from existence and from the history of these black people.
Introdução
Falar sobre racismo estrutural e memória é, também, falar sobre Conceição Evaristo,
visto que a autora, ao ser entrevistada pelo Itaú Cultural, em 2019, se colocou como canônica
das margens, ao ser questionada sobre a sua obra ser, possivelmente, um cânone. Ao se
colocar como uma pessoa que estaria, possivelmente, às margens, Evaristo evoca não apenas
o fato de ela ser uma mulher negra, mas o fato de ela escrever sobre quem está sendo,
historicamente, jogado para as margens da sociedade.
O romance evaristiano, que aqui será estudado, evocará a vivência do povo negro no
pós-abolição e a desigualdade racial vigente, essa que fez com que muitos indivíduos pretos
permanecessem nas fazendas dos senhores. Segundo Abdias Nascimento (2019), na obra O
quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, o negro se tornou indesejado
após o processo da Lei Áurea. Para o autor, não foi a escravização que foi abolida, mas a culpa
daqueles que cometeram o crime hediondo de sequestrar, de escravizar e de desumanizar
indivíduos.
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10). Quando Ponciá Vicêncio passeia pelas suas memórias, ela observa pessoas que ela não
mais encontrou e uma criança que se tornara mulher, mas agora numa situação que a
aprisionava enquanto indivíduo cujos direitos de dignidade lhes eram negados. Candau
(2021) ressalta, também, que a busca pela memória é considerada uma resposta às
comunidades que sofrem e vivem diante da fragilidade, por isso, há um apoio de um futuro
incerto em um passado que confere um certo reconhecimento. Dessa maneira, é possível
averiguar que a percepção de Ponciá sobre a sociedade que nada lhe prometia, a fez, também,
voltar a um lugar que lhe era reconhecível, onde a sua humanidade não era retirada
constantemente.
Ademais, na obra de Conceição Evaristo, vê-se durante a narração que a protagonista
não sabia mais quem era, o que havia se tornado, por isso, segundo o texto, “uma noite ela
passou toda no espelho chamando o próprio nome” (EVARISTO, 2008, p. 18). A personagem
chamava a si mesma no espelho, numa tentativa de tentativa de reanimar alguém que a
sociedade racista aniquilou aos poucos, ela tentava reanimar as sobras daquilo que, um dia,
existiu. Ponciá tentava encontrar algo além do que a estrutura social fez dela, tal questão é
enfatizada por Fanon (2008), na obra Pele Negra, Máscaras Brancas, quando o autor
exemplifica que pessoas negras acabam “adquirindo’’, na sociedade escravocrata,
características que não pertencem a elas, isso tem forte influência sobre a subjetividade
desses indivíduos.
Joël Candau (2021) explica que somos condenados ao tempo e nenhuma existência
pode escapar de tal condição, o tempo que Ponciá havia passado na cidade, desde que tomou
a decisão de deixar sua aldeia, estava fazendo-a se perder de si mesma a cada momento.
Candau (2021) diz que a memória pode causar a ilusão de que se está parando o tempo
presente, pois o que foi vivido no passado não é inacessível, por isso, “pela retrospecção o
homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi uma nova imagem que
poderá, talvez, ajuda-lo a encarar a vida presente” (CANDAU, 2021, p. 15).
Dessa forma, a rememoração de Ponciá, em busca de seu reconhecimento e da volta
à sua comunidade, foi uma estratégia para suportar o seu tempo presente, juntar os pedaços
da sua existência foi a alternativa que o racismo estrutural, implementado por uma
sociedade escravagista, a deixou. Ela buscava se reconhecer, visto que a sua identidade não
havia sido perdida, embora frágil diante dos sofrimentos os quais ela era submetida, pois ela
possuía memória e, segundo Candau (2021), se há memória, ainda há identidade, pois é
287
Anais
admitido que ambas estão imbricadas, sendo “a memória, a faculdade primeira, que modela
identidade” (CANDAU, 2021, p.16).
Assim sendo, apesar da dor inerente à existência de Ponciá, ela vivia em uma
“dialética da memória e da identidade” (CANDAU, 2021, p.16), as suas lembranças a
modelavam, mas ela também modelava as suas memórias a cada vez que sentava em sua
janela para viver por meio delas. Portanto, conforme Candau (2021), a memória e a
identidade nutrindo-se mutuamente caminham para que a trajetória de vida seja produzida,
uma está sempre apoiada na outra, para produzir seu mito, sua história. No caso de Ponciá,
ela é a persona formada pelas vivências anteriores, enquanto ela também vive, ainda, no
presente, por conta delas, são as memórias que alimentam a sua narrativa, enquanto ela
chama por si própria lutando pela identidade, que acredita ter perdido.
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Considerações finais
Diante da vivência de Ponciá Vicêncio, a memória foi importante em seu contexto para
que ela continuasse vivendo e não esquecesse de sua identidade, na dialética que a
personagem estava imersa, as lembranças eram a sua única forma de resistir. O romance
evaristiano reativa, também, a maneira dos leitores de ver o mudo de maneira crítica e,
sobretudo, a sociedade brasileira. Abdias Nascimento (2019) pontua nos seus estudos que,
graças a alguns estudiosos “as diversas estratégias e expedientes que se utilizam contra a
memória do negro afro-brasileiro têm sofrido, ultimamente, profunda erosão e irreparável
descrédito” (NASCIMENTO, 2019, p. 274). Isso significa que o trabalho de pessoas pretas
como Conceição Evaristo são importantes para reativar a memória do povo preto brasileira
acerca da sua identidade, história e cultura.
Dessa maneira, quando Ponciá relembra a sua história em busca da resistência da sua
identidade, pode significar também, que o povo afro-brasileiro, mesmo diante da estrutura
escravista e capitalista que solapa a sua existência, precisa reativar a sua memória para
continuar resistindo e existindo. A literatura de Evaristo é um levante contra a hegemonia,
pois levanta a discussão acerca das problemáticas vigentes no país. Tal posicionamento se
faz importante diante da colocação de Antonie Compagnon (2010), na obra O demônio da
teoria, “a literatura confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a
ruptura” (COMPAGNON, 2010, p. 36). A literatura evaristiana, portanto, é uma ruptura à
ideologia dominante, se há literaturas que servem como aparelhos ideológicos do Estado, o
texto de Conceição Evaristo tem seu caráter subversivo diante de uma sociedade
estruturalmente racista. Por isso, o texto Ponciá Vicêncio é um convite à criticidade e à
resistência.
291
Anais
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. – Salvador:
EDUFBA, 2008.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
292
PELOS CAMINHOS DA
MEMÓRIA E DA HISTÓRIA NO
POEMA CANTO À CIDADE DE
SÃO LUÍS DE ARLETE
NOGUEIRA DA CRUZ
Luis Claudio dos Santos FERREIRA FILHO (UEMA)1
Luzilene Nunes de SOUSA (UEMA)2
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA)3
RESUMO
Este trabalho analisa os caminhos percorridos pelo eu-lírico na memória urbana da cidade
de São Luís no poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz (2017). Nele a
autora faz a interpretação da cidade a partir do espaço urbano maranhense, que serve como
gatilho para o despertar de lembranças antes adormecidas na memória. O espaço físico
exerce papel essencial na preservação da memória individual e coletiva, pois ele registra a
marca do indivíduo e do outro, sendo esse espaço marcado pelo grupo que o ocupa e vice-
versa. Ressalta-se que a preservação da história é feita de forma eficiente, instigando
conhecer a cidade, para exaltar a contribuição econômica, bem como o turismo e a cultura
da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as necessidades
293
Anais
subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao mundo a partir
das possibilidades polissêmicas e metafóricas da linguagem, a partir das indagações que ela
oferece. Dessa forma, objetiva-se analisar as repercussões que o retorno ao local onde viveu
sua infância causa no eu-lírico, não somente no estrato psicológico, mas também físico. Como
fundamento teórico, utilizou-se as reflexões de Bourdieu (2004) sobre a literatura, sobre a
memória formulados por Ricceur (2007) e sobre a perspectiva da sua coletividade cunhada
por Halbwachs (2006), dentre outros que contribuíram para identificamos as formas
marcadas pela metamorfose do desgaste do tempo e do espaço, em que historicamente, a
memória está representada na diversidade cultural da cidade de São Luís/MA.
ABSTRACT
This work analyzes the paths crossed by the lyrical voice in the urban memory of São Luís
city in the poem Canto à cidade de São Luís, by Arlete Nogueira da Cruz (2017). In it the
author makes the interpretation of the city from the Maranhense urban space, which serves
as a trigger for the awakening of memories previously asleep in memory. The physical space
plays an essencial role in the preservation of individual and collective memory, because it
records the mark of each person, and this space is marked by the group that occupies it and
vice versa. It emphasizes that the preservation of history is done efficiently, instigating to
know the city, to exalt the economic contribution, the tourism and regional cultural as well.
Therefore, it is through literature that the human being satisfies subjective needs, being
allowed to assume a critical attitude towards the world from the polysemic and metaphorical
possibilities of language, from the questions it offers. Thus, the objective is to analyze the
repercussions that the return to the place where the lyrical voice lived her childhood causes,
not only in the psychological stratum, but also physical. As theoretical foundation, Bourdieu’s
(2004) reflections on literature, on the memory formulated by Ricceur (2007) and on the
collective perspective of it coined by Halbwachs (2006), among others that contributed to
identify the forms marked by the metamorphosis of the wear of the time and space, in wich
historically, memory is represented in the cultural diversity of São Luís city.
INTRODUÇÃO
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Anais
grandes nomes da literatura e de grande valia para que a história seja preservada, e dessa
maneira, não seja estagnada em apenas uma geração.
Para tanto, este trabalho analisa os caminhos percorridos na memória urbana da
cidade de São Luís a partir da leitura do poema Canto à cidade de São Luís, na obra Colheita
(2017) de Arlete Nogueira da Cruz. Neste poema a autora faz uma interpretação da cidade a
partir das lógicas cruzadas de atuação no espaço intelectual maranhense.
Utilizam-se conceitos formulados por Ricceur (2007), Bourdieu (2004), dentre outros
teóricos que contribuíram para identificamos as formas marcadas pela metamorfose do
desgaste do tempo e do espaço, em que a história e a memória estão representadas na cultura
e na diversidade da cidade de São Luís/MA.
Para o linguista russo Roman Jakobson, “a literatura é explicada com uma função da
linguagem, a função poética: que dá ênfase à própria mensagem” (SAMUEL, 2002, p.79). Já
bem dizia Mallarmé: “a poesia remunera as falhas da língua” (ibidem). Nessa perspectiva, o
texto poético traz consigo a possibilidade única de encontro particular com o autor, pois
através da relação leitor-texto-autor a literatura alcança possibilidades que somente a
linguagem pode oferecer. Assim, a arte literária está para além dos aspectos pragmáticos e
reais da vida
Dessa maneira, a preservação da história é feita de forma eficiente, por consequência,
instiga a curiosidade em conhecer o estado, contribuindo com a economia, o turismo e a
cultura da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as
necessidades subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao
mundo a partir das possibilidades metafóricas e polissêmicas da linguagem, como também
a partir das indagações que ela oferece.
Este artigo está divido em três partes que possibilitam a ruptura com a tradição, os
traços da modernidade, relacionando a imagem e o ritmo na poesia maranhense
contemporânea. No primeiro momento trata-se da leitura crítico-literária da cidade e
memória na produção poética maranhense, do ponto de vista histórico e cronológico, do
poema Canto à cidade de São Luís.
295
Anais
A leitura crítico-literária analisada do poema Canto à cidade de São Luís, um texto com
sua primeira publicação em 1973, na obra Canção das horas úmidas, que evoca a sublime e
nostálgica cidade de São Luís, está inserida na antologia poética Colheita (2017), é a última
obra organizada pela autora Arlete Nogueira da Cruz, na qual ela ressalta sua fortuna crítica,
situando no tempo e no espaço cada detalhe com apreensão estrutural do respectivo poema
que se apreende a partir das relações objetivas que definem e determinam sua posição no
espaço da produção.
Como forma privilegiada da modernidade literária, a poesia produz um objeto de
linguagem (o poema), objeto este que passa a existir de forma privilegiada no mundo da
cultura humana – como, aliás, outros objetos artísticos. A arte, se imita a natureza, imita-a no
sentido de ser capaz de produzir novas formas orgânicas e autônomas em si mesmas, mas
diferentes das encontradas no mundo natural.
Outrossim, essa nova forma orgânica, autônoma, fechada em si mesma, terá sempre
seu significado profundo, aberto, presentificado no ato da leitura. Nesse enredo, vale
salientar que, a poesia, segundo o Houaiss (2001, p. 2246), é uma “composição em versos
(livres e/ou providos de rimas) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou
conceitual na abordagem de ideias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc.,
quase sempre expressos por associações imagéticas” e por si só evidencia as multifaces da
experimentação pessoal.
4 Nomenclatura utilizada para indicar a voz que enuncia o poema. O gênero lírico é aquele destinado
a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu em seu encontro
com o mundo. (HOUAISS, 2001, p. 2245)
296
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5 O que ia de encontra às teses fenomenológicas de Agostinho, Locke, Husserl, por exemplo, que
acreditam que a memória era fenômeno individual, pessoal e interna.
297
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Sendo assim, pode-se afirmar que cada memória individual é um ponto de vista sobre
a memória coletiva e que, além disso, cada enfoque muda de acordo com o lugar que é
ocupado no campo social e, também, segundo a relação mantida em outros ambientes
Halbwachs (2006). Ao tratar da memória coletiva e do espaço, no capítulo IV da mesma obra,
o autor declara que o ambiente material no qual vivemos traz simultaneamente nossa marca
e a marca do outro.
Dessa forma, tudo o que compõe uma casa, por exemplo, seus móveis,
eletrodomésticos, cor das paredes e até o cheiro dos ambientes remetem à família e amigos
que podem ser vistos nesse contexto. Tal consideração vale tanto para pessoas que vivem
em família, independente da sua composição, quanto para pessoas que moram sozinhas.
Mesmo que seus adereços domésticos não remetam alguém com quem conviva
diariamente sob o mesmo teto, eles “circulam dentro do grupo e nele são apreciados,
comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do
gosto, e nos recordam os costumas e as antigas distinções sociais” (HALBWACHS, 2006, p.
158). Portanto, entende-se que o ambiente interno reflete a influência do social.
No entanto, não é somente o espaço domiciliar, interno, que sofre tais ações sociais, o
espaço público, externo, também recebe graus de interferência. Quando postula sobre o
espaço ocupado por um determinado grupo6, Halbwachs não o entende como um quadro-
negro onde se escreve e apaga sem deixar rastros. Isso se dá porque “o local recebeu a marca
do grupo, e vice-versa” (HALBWACHS, 2006, p. 159), tendo suas ações traduzidas em
“termos espaciais”, tornando esse lugar, a reunião de todos esses termos. Sobre a
significância desses termos, ele afirma:
Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível
para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou
correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de
sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável. (HALBWACHS,
2006, p. 160).
Dessa forma, o conjunto arquitetônico de uma cidade, bem como suas cores,
tamanhos e outras características pode remeter ao passado e carregar significados
específicos a um grupo. No entanto, a relação entre um grupo e esse lugar com o qual eles se
relacionam podem sofrer mudanças, caso algum acontecimento “grave” ocorra, seja porque
6 Podendo ser uma rua, um bairro, cidade etc. (HOUAISS, 2001, p. 2246)
298
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7 No poema Canto à cidade de São Luís, o eu-lírico é feminino. Constata-se isso pelo uso de artigos e
substantivos femininos para se referir a si mesmo no decorrer dos versos. (HOUAISS, 2001, p. 2248)
299
Anais
8 Provavelmente a mudança geográfica, que pode ser motivada por diversos fatores. Halbwachs
(2006) afirma que tais movimentações podem gerar uma modificação no grupo (nesse caso, o eu-
lírico, que representa um dos membros desse coletivo) e o local com o qual eles se relacionavam
(nesse caso, a casa onde eles moravam. No poema, os versos “Lembrança antiga da terra/ deixada
um dia apara trás” ilustra o pensamento de Halbwachs, embora não seja possível identificar o motivo
exato desse abandono.
300
Anais
comprometida” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Vinte anos transcorridos/ à praia volta a criança/
assustada dos havidos/ chorar materna lembrança” (CRUZ, 2017, p. 22).
O paralelo entre essas duas estrofes e o seu cenário, a praia9, é palco de episódios
emocionalmente marcantes: no primeiro momento, tornar-se purpurina, pode fazer
referência à menarca10 do eu-lírico, o que justificaria a razão pela qual ela, logo depois,
comprometeu-se com alguém, já no segundo momento, o retorno a praia relembra a perda
de sua mãe.
São Luís é palco de boas venturas não somente para o eu-lírico, mas para sua família:
“Ó cidade aventurada/ de nossa Márcia, das mãos/ dessa mãe Enoi, da amada/ mãe destes
seis irmãos” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Ó terra que ao pai foi/ prometida: de mel e azeite” (CRUZ,
2017, p. 20). A lembrança materna11 e paterna está carregada do sentimento de labor, o que
denota o esforço empregado pelos pais do eu-lírico na criação de seis filhos. Na estrofe que
fala sobre o pai, encontra-se uma referência ao texto bíblico12, denotando o conhecimento
bíblico e a fé (católica ou cristã) do eu-lírico.
Outras referências bíblicas são feitas durante a narrativa poética, a exemplo de:
“Através de ti nosso pai/ nos deu o pão de cada dia/ (a nossa for, nosso aí, a nossa mãe
resolvia” (CRUZ, 2017, p. 21) e “Dever que temos agora/ que tu mãe, e que tu pai, nos deram
naquela hora/ conduziu-nos ao monte Sinai” (CRUZ, 2017, p. 21).
Interessante notar que, todas as referências bíblicas estão baseadas no texto bíblico
de Êxodo, que narra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito e sua peregrinação
rumo “à terra prometida”13. Pode-se confirmar a hipótese de que, o eu-lírico e sua família não
9 Embora na primeira estrofe destacada o substantivo “praia” possa fazer referência à ilha de São
Luís (essa perspectiva será considerada posteriormente).
10 A menarca, a primeira menstruação de uma menina, em algumas culturas, marca a passagem da
infância para a vida adulta, o que a tornaria apta para casar, uma vez que, biologicamente, seu corpo
pode gerar uma nova vida.
11 Curiosamente o eu-lírico, no decorrer da narrativa poética, ao se referir aos seus pais, faz
referência à figura materna em primeiro lugar. Isso acontece, possivelmente, pelo fato da voz poética
ser feminina, o que pode gerar uma empatia e identificação quanto às lutas de sua progenitora.
12 Uma referência indireta, uma vez que o texto bíblico faz chama a terra prometida ao povo de Israel
de “terra que mana leite e mel”, e no poema de Arlete Nogueira ela chama a cidade de são de terra de
“mel e azeite”.
13 Foi no deserto que o povo recebeu o “pão de cada dia” em forma de maná; foi lá também Moisés
conduziu o povo “ao monte Sinai” e lá recebeu as tábuas da lei, que continham as diretrizes éticas que
o povo hebreu deveria seguir, como relatado no livro de Êxodo.
301
Anais
sejam ludovicense, mas retirantes que vieram para o litoral em busca de melhores condições
de vida. Ainda falando sobre o monte Sinai, pode-se relacionar essa ideia bíblica aos versos
que seguem sua referência: “alertado ao que seríamos, enquanto esperamos vez” (CRUZ,
2017, p. 21).
Assim, é possível constatar que, a cidade de São Luís seria esse local onde os pais do
eu-lírico tentaram traçar um destino para ela e seus irmãos, uma vez que o monte Sinai é um
local no qual, os destinos são traçados, no contexto bíblico. É possível notar a fé sendo esteira
para as decisões tomadas pela família do eu-lírico: “Com século de cidade-ilha/ São Luís, ficou
esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia chegando” (CRUZ, 2017, p. 19). Essa
estrofe carrega um enigma, pois pode ser considerada como um momento de transição
temática no poema.
As estrofes anteriores tratam de lembranças e sentimentos individuais do sujeito
lírico que narra seu retorno à cidade de São Luís. Considerando apenas essas primeiras
estrofes, pode-se pensar que o eu-lírico seja ludovicense, no entanto, ao ponderar os versos
destacados a cima, em “São Luís ficou esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia
chegando”, a imagem pintada é de um grupo de pessoas se mudando para a ilha14.
A personificação atribuída à cidade conota o sentimento de acolhimento que a ilha
proporcionou a esses retirantes, que vieram em busca de novas oportunidades, o que pode
ser verificado em: “/ Ó tu que nos deste o boi/ às nossas manhãs de leite/ nos deste em torno
da mesa/ ciência de um solitário/ esforço para proeza/ do nosso comer diário” (CRUZ, 2017,
p. 20). A cidade recebe novas características humanas nos versos: São Luís então se oferece/
maternalmente na noite (CRUZ, 2017, p. 22). Aqui São Luís assume o papel da mãe que o eu-
lírico perdeu, agindo com condescendência e, mais uma vez, acolhimento: “Acolhe esta
andarilha (CRUZ, 2017, p. 22), “Ó terra que sempre soube/ dar dia e dar noite” (CRUZ, 2017,
p. 22), “nos deste em ganho à lavoura” (CRUZ, 2017, p. 21), “mostraste a esperança” (CRUZ,
2017, p.21).
Os versos “à órfã que desconhece/ a origem de tanto açoite” (CRUZ, 2017, p. 22)
aludem a um sentimento recorrente nessa narrativa poética: dor. Embora a ilha tenha
recebido bem essa família, a voz poética constantemente descreve sentimentos de angústia:
302
Anais
“(a nossa dor, nosso ai)” (CRUZ, 2017, p. 21), “suor, sangue e salmoura” (CRUZ, 2017, p. 21),
“asila-me neste desvio/ repleta destes meus idos” (CRUZ, 2017, p. 22), “subindo no desamor/
das águas que me querem ilha, / de outras que me trazem dor” (CRUZ, 2017, p. 22).
Assim, nota-se a curva descendente que o desbloqueio dessas memórias causou no
eu-lírico. Não existe clareza quanto aos infortúnios sofridos por essa família de possíveis
migrantes, mas os sentimentos narrados são suficientes para constatar que o despertar
dessas lembranças fazem-na reviver na pele essas emoções aviltantes, motivadas pelo
abandono de sua terra natal, pelas dificuldades vivenciadas em família na sua nova casa,
pelas perda de entes queridos (como é descrito no início do poema e reiterado em alguns
versos seguintes sobre a perda da mãe), pela saudade dos parentes vivos – e mortos –, ou até
mesmo um pouco de cada uma dessas hipóteses levantadas.
No entanto, constata-se o protagonismo da cidade de São Luís no despertar dessa
memória, e sua plena participação como palco de momentos marcantes na história (e
ficaram na memória) da voz poética que narra com saudosismo e pesar, mas com gratidão,
os caminhos trilhados por seu eu de tempos atrás.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O retorno para suas origens se revelou uma experiência dolorosa para o eu-lírico que
narra a Canção para a cidade de São Luís. Ao mesmo tempo que as boas lembranças de sua
infância junto de sua família trazem acalento ao seu interior, os anos de labor e perdas
sofridas maculam de angústia e luto essas memórias. Ao investigar parte da fortuna crítica
de Arlete Nogueira (Colheita, 2017), percebemos a relação entre a cidade de São Luís e a
pessoa de Arlete, embora não seja suficiente para afirmar que o eu-lírico do poema seja a
própria. Identificamos, também, as formas marcadas pela metamorfose do desgaste do
tempo e do espaço, representados metaforicamente pelo salitre.
Sendo assim, a obra Canção das horas úmidas (1973), livro esse que tem sua estrutura
demarcada dentro da antologia poética Colheita (2017), ressalta como marco importante de
contribuição contemporânea na mensagem dos poemas: Canto à cidade de São Luís, no qual,
o brilho através do tempo, torna-se uma grande riqueza para a literatura maranhense.
Portanto, neste trabalho, intitulado: Pelos caminhos da memória e da história no
poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz, percebeu-se a relevante
303
Anais
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: _______. Coisas ditas. São
Paulo: Brasiliense, 2004.
CRUZ, Arlete Nogueira da. Colheita (antologia poética). São Luís: INIGRAF, 2017.
SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
TV ASSEMBLEIA MARANHÃO. Arlete CRUZ da Cruz lança livro 'A Colheita', no terraço
da casa de Nauro Machado. – 29 de nov de 2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=qouEXuI8DHk – Acesso em 13 de jan de 2022 às 22h.
304
AUTOBIOGRAFIA E CONSTRUÇÃO
DO NARRADOR EM CAZUZA
Erika Maria Albuquerque SOUSA (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2
RESUMO
305
Anais
ABSTRACT
The complexity of identity construction in Cazuza (1938), by Viriato Corrêa, reveals itself in
an intricate network of representations, in which the character submits to so many others
(family, friends, schoolmates, etc.), constitutive of your own persona. If autobiography is this
representation of events based on memory, we believe that Corrêa is guided by the act of
remembering by transmitting through writing the experience (his childhood) and the act of
describing it, by transforming his reminiscences into a novel; In this sense, autobiography as
a construction of the narrator/author of a redefinition of the form of historical memory is
considered as a fact that the novel is located “in a kind of zone of undefined boundaries
between fiction and reality” (SENA, 1997, p. 9). From the narrator's point of view, the present
work discusses and recognizes Viriato Corrêa's autobiographical novel, Cazuza, as “a kind of
tension between the present and the past of the self” (SENA, 1997, p.9). As a result of these
encounters, the present text appears, attentive to its subjects: characters, narrator, author,
subjective instances that are self-revealed through language. National and transnational
subjects that, in the book Cazuza, are united as critical texts on the theme of autobiography
as a construction of the narrator. The research is analytical and has as its primary basis the
work and as a theoretical basis the studies of researchers who, in some way, have in common,
works that present ideas about the work Cazuza (1938), as is the case of Moisés (1994),
Lejeune (1975), Benveniste (1982) among others.
Introdução
306
Anais
política ao ser preso pela Revolução de 30.3 Da política seguiu para a Literatura, onde
escreveu romances, peças teatrais, livros para crianças e crônicas históricas. Em 14 de julho
de 1938 acaba sendo o terceiro ocupante da Cadeira 32, na sucessão de Ramiz Galvão e
recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 29 de outubro de 1938. Datas concomitantes ao
lançamento de seu livro infantojuvenil, Cazuza, publicado em 1938, período de ascensão do
Estado Novo.
Em vista disso, o romance em questão trata de um relato autobiográfico dos tempos
de meninice do escritor, apresentando críticas, em tom singelo, sobre o período em que o
Brasil se encontrava, tanto na educação como na política, nos apresenta, também, os
costumes, as crenças e a religião do povo maranhense. Com uma linguagem simples e bem
humorada os personagens do livro levantam discussões sobre os métodos de ensino
vigentes, a ideia de pátria, a guerra e a diferença de tratamento entre ricos e pobres, fazendo-
nos conhecer o Maranhão e a História do Brasil.
Nessa perspectiva, a pesquisa é feita a partir de um suporte teórico direcionado aos
estudos de teoria da literatura voltados tanto para o Narrador como para o Pacto
Autobiográfico, especificamente para o papel do narrador enquanto protagonista da diegese.
Para tanto, entre os pesquisadores estudados, serão utilizados aqueles que abordam a
literatura sob o enfoque da Memória, da Autobiografia e do Narrador, tais como Lejeune
(2008), Josef (1998), Benjamin (2012), dentre outros.
Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, ou simplesmente Viriato Corrêa, foi uma
figura de destaque no cenário intelectual maranhense, na primeira metade do século XX.
Nasce em 1884, na cidade de Pirapemas, Maranhão, filho de Manuel Viriato Corrêa Baima e
de Raimunda Silva Baima. Cursou as primeiras letras numa escola pública, no povoado de
Pirapemas, e, ainda criança, aos nove anos, deixou a sua cidade natal para dar continuidade
aos estudos primários no colégio São Luís, na capital do Estado. Uma vez concluídos os
estudos preparatórios no Liceu Maranhense, mudou-se para Recife-PE, onde frequentou por
3 A chamada Revolução de 30 pode ser entendida como a disputa pelo poder federal entre as
oligarquias de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba. Neste sentido há a obra
de Boris Fausto (1997).
307
Anais
três anos a Faculdade de Direito, encantando-se com a vida intelectual que esta lhe
proporcionava.
Sob o pretexto de terminar o curso jurídico na metrópole, Viriato Corrêa também
deixou o Maranhão, no início do século XX, transferindo-se para a Faculdade Nacional, na
capital federal, onde se bacharelou. Cumpria-se, assim, o destino de Viriato, vaticinado desde
sua infância por uma vizinha que, ao presenciar a avidez com que o menino aprendia as
primeiras letras do alfabeto, rabiscadas na areia pelo pai, dizia “em seu pitoresco linguajar
de mulher do povo”: “- Qual! Esse menino não é daqui, é de lá...” E abrindo os braços: é do
mundo!”.4
Ainda perambulando pelas redações, fundou os jornais Fafazinho, nome de sua seção
da Gazeta que tanto êxito obtivera e A Rua, que organizou com Peixoto de Castro e que logo
se tornou um jornal muito popular. Foi também diretor do jornal A Noite, onde assinou por
vários anos uma coluna com o pseudônimo de Pequeno Polegar, e colaborador de várias
revistas, entre as quais Careta, Kosmos, Ilustração Brasileira, A Noite Ilustrada, Para Todos, O
Malho e Tico-tico. Em 1941, quando é fundado, sob a direção de Cassiano Ricardo, o jornal A
Manhã, Viriato redige a coluna diária sobre teatro, que mantém durante anos na seção “O Rio
e suas diversões”, dividindo a página com escritores como Manuel Bandeira (1886-1968) e
Vinícius de Moraes (1913-1980).
Apesar de sua vasta produção e trajetória, destacando-se como jornalista, cronista,
advogado, dramaturgo, teatrólogo e político brasileiro, o que consagrou Viriato até os dias
atuais foram seus escritos na literatura infantil como: Histórias de nossas histórias (1991),
Brasil dos meus avós (1927), O país do pau de tinta (1939), Cazuza (1938), A macacada
(1949), e, História do Brasil para crianças (1934). Viriato Corrêa faleceu no Rio de Janeiro,
em 10 de abril de 1967.
O que é Autobiografia?
308
Anais
Phillipe Lejeune (1975, p.14) ao definir autobiografia, descreve o termo como uma
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
põe o acento em sua vida individual, particularmente na história de sua personalidade”.
Nessa definição entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias
diferentes:
A primeira se trata da forma da linguagem: a) narrativa; b) em prosa. A segunda, o
assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. Na terceira, situação do
autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. Por quarta,
a posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem principal; b) perspectiva
retrospectiva da narrativa.
Desta forma, para Phillipe Lejeune (1975) é uma autobiografia toda obra que
preenche ao mesmo tempo as condições indicadas em cada uma dessas categorias. Para Sena
(1997) A autobiografia é uma representação de acontecimentos baseada na memória, no
próprio ato de recordar que adquire forma e sentido por meio da escrita, ocorre uma
aproximação entre vivido (o passado) e o ato de descrevê-lo (o presente).
Gusdorf (1991) defende que a narrativa autobiográfica não se limita à narração exata
dos fatos, ao contrário: preocupa-se em revelar o sentido de uma vida, na plenitude de sua
permanente atualidade. A Autobiografia, enquanto gênero ou subgênero da escrita literária,
é uma forma híbrida de expressão, porque essencialmente destinada ao registro de fatos
tidos como verídicos; ela pode ser um discurso documental, testemunhal ou ficcional (JOSEF,
1998, p.295). De qualquer forma, o que marca o eu do texto autobiográfico é seu caráter
“real”, segundo o desejo do escritor de “oferecer um retrato do seu ego (civil, autêntico) e
não de um ‘eu’ imaginário, em que se transformasse ou que constituísse o eixo de suas
projeções (MOISÉS, 1994, p.163).
Para Klinger (2006) na definição de autobiografia de Philippe Lejeune, o que
diferencia a ficção da autobiografia não é a relação que existe entre os acontecimentos da
vida e sua transcrição no texto, mas o pacto implícito ou explícito que o autor estabelece com
o leitor, através de vários indicadores presentes na publicação do texto, que determina seu
modo de leitura. Assim, a consideração de um texto como autobiografia ou ficção é
independente do seu grau de elaboração estilística: ela depende de que o pacto estabelecido
seja “ficcional” ou “referencial”.
309
Anais
310
Anais
idílica da primeira infância do autor não sendo possível lê-la sem sentir nos olhos o calor das
lágrimas da emoção e da ternura”. 5
Viriato afirma que nutria por Cazuza um carinho especial, pois o protagonista era um
retrato de sua meninice, no Maranhão, fato que pode ser comprovado porque a obra vem à
luz somente em 1938, tendo consumido dez anos de trabalho de seu autor, que nunca se dava
por satisfeito com o resultado: “Tudo porque eu queria fazer de Cazuza, o personagem
principal, um garoto igual a muitos outros. Um dia, finalmente acertei e depois de parar um
pouco para pensar, cheguei à conclusão de que Cazuza sou eu, nos meus tempos de criança”.6
Italo Calvino (1993), ao discorrer sobre os livros considerados clássicos e a
importância de sua leitura, explica que o que torna uma obra clássica é seu efeito de
ressonância numa cultura - e isso se aplicaria tanto para obras modernas quanto para as
antigas. Os livros clássicos seriam, então, aqueles que “exercem uma influência particular
quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da
memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 1993, p.11).
E as constantes reedições de Cazuza podem comprovar essa ressonância. (PENTEADO,
2001).
Segundo o historiador Robert Darnton (1988, p. 34):
Diante disso, o enredo da obra Cazuza, inicia-se com o relato explicativo, que irá
justificar o título do romance e sobre como tudo aconteceu:
6 “Viriato vai ver sua ‘História da Liberdade’ no samba do Salgueiro”. Diário de Notícias. Rio de
Janeiro, 19/08/1966.
311
Anais
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada
vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é
manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo
privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável:
a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p. 213).
Conforme o trecho acima pode-se afirmar que Corrêa através de seu narrador-
personagem cumpre a faculdade de intercambiar experiências ao descrever com
fidedignidade a hospitalidade como um dever religioso, no interior do Nordeste, conforme
descreve:
312
Anais
Pinto (1966, p.21) descreve como esse dever religioso de hospedagem é típico do
Maranhão, verificado em Cazuza (1938), tem caráter processual, como defendido por Hall
(1999), ao afirmar que, para outrem, seria perfeitamente natural, já para os sertanejos
maranhenses seria qualquer coisa profundamente ofensiva, pois tanto no romance como na
vida real, hospedar alguém é um dever pago com simpatia:
Talvez por isso tudo, toda gente que vinha tomar a gaiola, hospedava-se na
Casa Grande. Como a passagem dos barcos não obedecia a horário rígido,
muita vez, famílias inteiras ficavam ali alojadas uma semana, 15 dias,
comendo, bebendo, na mais santa das tranquilidades. O barco chegava,
agradeciam com efusão e partiam sem perguntar aos hospedeiros quanto
deviam porque, tal pergunta que, para outrem, seria perfeitamente natural,
para estes era qualquer coisa profundamente ofensiva (PINTO, 1966, p. 21).
Hércules Pinto em seu livro Viriato Corrêa (a moda de biografia), publicado em 1966,
decide fazer uma homenagem ao seu amigo Viriato, pois como era amigo da família sentiu a
necessidade de contar a história de seu admirável amigo, Corrêa. Deste modo, ao se traçar
um estudo comparativo entre o livro de Pinto e a obra Cazuza, podemos encontrar muitos
traços autobiográficos de Viriato Corrêa, como o trecho acima, que destaca o dever religioso
de recepcionar os visitantes; bem como a casa grande, que era a casa dos pais do autor e que
na obra ele preserva a lembrança ao descrevê-la como a casa de Cazuza: “a melhor casa de
telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás.
Chamavam-lhe a casa-grande, por ser realmente a maior do povoado” (CORRÊA, 2011, p.17).
Outro ponto interessante a se ressaltar é o lugar onde a história se desenrola, pois
Viriato Corrêa nasceu em Pirapemas/Maranhão e o primeiro capítulo de Cazuza, desenrola-
se justamente no mesmo local, reforçando o pacto autobiográfico presente. Assim, o
narrador irá apresentar seu local de nascimento como:
313
Anais
Considerações finais
314
Anais
cultural, histórico e social, pois além de retratar os costumes e tradição de um povo, insere-
o em um contexto de aparente inovação de uma determinada época, utilizando-se do
contexto educacional para tecer suas críticas. Estabelecendo, ainda, por meio do desvio
autobiográfico situações que deixam margem para interpretações, como se compararmos o
fato de Viriato Corrêa quando infante também vivenciado o processo migratório campo-
cidade, e concluir seus estudos na capital do Maranhão, São Luís, com a coincidência do
menino Cazuza, também concluir seus estudos na capital. Com uma linguagem simples, o
autor utiliza-se da autobiografia e suas memórias para passear por um período e nos
apresentar aspectos relevantes para uma época, um povo e uma cultura.
A obra analisada, para além das áreas de pesquisa utilizadas por esse artigo, ainda
deixa margem para outras linhas de pesquisa em vieses distintos, reconhecendo e agregando
ainda mais notoriedade à Corrêa e suas obras. Estas conclusões são, portanto, parciais,
deixando margem para muito do que ainda pode ser dito sobre o autor e toda a sua obra.
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia
das Letras,1993.
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa
latino-americana contemporânea. 2006. 205 f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de
Letras, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
315
Anais
NIGRO, Cláudia Maria Ceneviva; BUSATO, Susanna; AMORIM, Orlando Nunes de. Literatura
e representações do eu: impressões autobiográficas. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
MOISÉS, M. A criação literária: prosa II. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Cultrix, 1994.
MUFTI, A.R. “Auerbach in Istanbul: Edward Said, Secular Criticism, and the Questiono f
Minority Culture”. CriticalInquiry, v. 25, n. 1, p. 95-125, 1998.
PINTO, G.E. Viriato Corrêa a modo de biografia. Rio de Janeiro: Editora alba limitada, 1966.
SENA, J. Os grão-capitães: uma sequência de contos. 5. ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
316
A MENINA SEM PALAVRA:
O SILENCIAMENTO E A
CRÍTICA PÓS-COLONIAL
EM MIA COUTO
João Batista TEIXEIRA (FMB)1
Renata Martins de LEMOS (FMB)2
RESUMO
317
Anais
falar, se inspirar na expressão mar, única palavra a fazer parte de seu vocabulário e termo
que responde por vários significados, sendo um deles a vivência do povo moçambicano com
o mar, seja pelo Índico ou pelo Atlântico, quantas histórias são veiculadas via mar?, histórias
de invasões, violência colonial, trânsitos culturais assim como sentimentos de travessia,
itinerância, passagem e também libertação, elementos socioculturais já pontuais na
literatura de Mia Couto.
ABSTRACT
Mozambican literature in its various exponents with their stories dealing with tradition,
daily life and the experiences of this people who have in their contemporary literature the
fiction of Mia Couto. His narratives work as representations that fictionalize the various faces
of Mozambique, from urban to rural, the author travels from his literary construction paths
and misdirections, wanderings and uncertainties through the most varied aspects of human
experience, exposes the wounds of colonization as well as also beckons to decolonization, a
process that is being redone every day in the search for Mozambican identities, silenced by
the colonizer who usurped the land and violated fundamental rights by imposing his
presence for years in a violent process on which Mia Couto's fiction speaks so that this
shameful past is not repeated in the history of Mozambicans. The wordless girl, tale and title
of the collection, by Editorial Caminho (1997) in Portugal and in Brazil by Companhia da
Letras (2020), The wordless girl when speaking, inspired by the expression sea, the only
word to be part of her vocabulary and term that accounts for several meanings, one of which
is the experience of the Mozambican people with the sea, whether by the Indian Ocean or the
Atlantic, how many stories are transmitted via sea?, stories of invasions, colonial violence,
cultural transits as well as feelings of crossing , itinerancy and passage and also liberation,
sociocultural elements already specific in Mia Couto's literature.
Introdução
318
Anais
trabalho nas machambas, o cuidar da família quando os homens eram levados a servirem
nas guerras e no trabalho fora do país, temas que o escritor esboça nos espaços ficcionais
para que nesse mover e descontruir discursos a mulher possa ser visibilizada e metaforizada
como a nova nação tão propalada na libertação de Moçambique:
319
Anais
A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam
só em sons que não somavam nem dois nem quatro. Era uma língua só dela,
um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais
não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela
esquecia o pensamento. Quando construía um raciocínio perdia o idioma.
Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há na actual humanidade.
Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de
encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na
entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse. (COUTO,
1997, p. 4).
320
Anais
Há uma outra língua que a menina sem palavra conhece, seria a língua da tão sonhada
liberdade que viria na libertação de Moçambique? De quantas liberdades se constrói um
mundo melhor?
Seria essa língua uma canção ainda ensaiada em vistas à uma existência melhor para
o indivíduo mulher, em uma sociedade atravessada por diferenciados códigos culturais e
neles há sempre a ordem de não falar, de não dizer de si.
Em se tratando do termo silêncio e silenciamento:
Estar em silêncio se relaciona a uma ordem estabelecida e que se impõe a negar a fala
a outrem. Não há total ausência da linguagem, o que se verifica é que a menina do conto
articula uma língua e linguagem desconhecida e até sugere uma espécie de música: havia
quem pensasse que ela cantasse, com esse modo de querer emitir algum som, de mostrar-se
como pessoa, a menina do conto intensifica o processo de subalternização naquele espaço
familiar que não se materializa o lugar de fala, de afetos e possibilidades de expressão e
comunização.
Quais categorias de silêncio a personagem de Mia Couto podem ser perspectivadas?
Esse silencio é também medo, censura, apagamento da fala. Para que falar? Para quem falar?
São questionamentos que perseguem essa análise, a qual se baseia na reflexão de que
enquanto sujeito mulher em uma sociedade patriarcal e herdeira de uma colonização
violenta, para a mulher é reservado os espaços de silêncio.
A menina sem palavra, expõe o quanto ainda é necessário reconhecer os direitos civis
das mulheres nessas sociedades e que haja mais espaço para que a mulher fale, reclame,
persista, exija seu espaço e lugar para falar e se construir em perspectiva de respeito a
enfrentar a vida a partir de um lugar na agenda política dos tempos atuais a desconstruir
esse mundo que ainda traz a marca do poder colonial.
Sobre o termo lugar de fala, convocamos o pensamento de Djamila Ribeiro:
321
Anais
Spivak é uma das autoras importantes para se pensar lugar de fala. Sua obra
Pode o subalterno falar, publicada pela primeira vez em 1985, originalmente
como um artigo, com o subtítulo especulações sobre os sacrifícios das viúvas,
traz reflexões importantes sobre como o silêncio imposto para sujeitos que
foram colonizados. A professora indiana é um importante nome do
pensamento pós-colonial, que, resumidamente, pretende questionar e
interrogar os fundamentos da epistemologia dominante e evidenciar os
saberes produzidos por grupos que foram subalternizados em territórios
coloniais. (RIBEIRO, 2017, p. 8).
322
Anais
Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as
mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:
- Fala comigo, filha!
Os olhos dele deslizaram. À menina beijou a lágrima. Gostos e ou aquela água
salgada e disse:
- Mar...
O pai espantou-se de boca a orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os
ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que ouvisse. Disse
mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e
se debruçaram sobre ela. Mas nenhum som entendível se anunciou. (COUTO,
1997, p. 4).
Qual a relação que há entre o mar e a ficção de Mia Couto? Podemos elencar algumas,
o Índico que banha Moçambique e traz a relação de elos que ligam o continente à ilha.
323
Anais
Mia Couto nasceu em Beira, nas margens do Índico, numa cidade onde todo
homem tem a impressão de não se encontrar em lugar nenhum, na visão do
próprio autor. Lugar de passagem e pouso durante as longas travessias, toda
a costa moçambicana sempre foi um entrecruzar de civilizações. Ilhas,
muitas ilhas, e portos que, primeiro, foram ocupados pelos naturais do lugar,
que nunca foram poucos e sempre carregaram entre si históricas dissenções.
(BEZERRA, 2007, p. 31).
Vale lembrar também do insílio, ou seja do exílio interior, tema trabalhado por Nazir
Can e que neste conto se relaciona a segunda categoria, a textual, representação da
personagem construída pelo silêncio e exílio interno no seu território a mirar o mar:
O mar surge para a menina sem palavra como o lugar das memórias, das dores,
saudades, distância, ligações com outros mundos e metaforicamente é o mar lugar de
passagens, de lavar as narrativas e tornar a dizê-las pelos mitos e representações próprias
deste lugar:
324
Anais
do oceano. [...] Daí que a realidade de outros espaços banhados pelo Oceano
Índico acabe por ser incorporada apenas parcialmente, através da
representação de personagens que, sendo nacionais e simultaneamente
diaspóricas, fazem ecoar o tal outro lado. Importa, neste sentido, salientar o
viés “fantasmático” de algumas designações ao outro índico, visíveis em
expressões que são já lugares comuns nas respectivas sociedades. (CAN,
2013, p.97).
Para a personagem que balbucia a palavra mar e depois emudece fechando-se em seu
mundo, mesmo sendo ainda uma criança, há uma saudade doída por um tempo que ainda
não aconteceu, há um olhar perdido para além do mar a perder-se nas memórias coletivas
da colonização, ferida que evocada via imaginação retrai a fala de uma menina ou de uma
nação ainda vivendo a infância da liberdade?
Há um cuidado do pai sobre o silenciamento da filha, ele deseja que a menina fale, que
diga algo e se manifeste, sabe que o mar tem uma ligação cultural e até espiritual com aquela
criança e espera que ao mirar o oceano possa através desse instante ser uma pessoa que se
comunica:
A relação entre o pai e os filhos na ficção de Mia Couto e se repete a cada produção de
maneira mais criativa e sensível, uma troca entre a tradição e a modernidade, relação sempre
325
Anais
necessária para que possa as humanidades se revestirem de identidades novas sem perder
a riqueza da ancestralidade.
Essa relação é verificada também em Antes de nascer o mundo(2010),quando
Mwanito, um menino que encontra em seu pai Silvestre Vitalício a sua razão de suportar as
dores da guerra civil e o território queimado, destruído a ponto do seu pai criar via
imaginário a Jesusalém, lugar onde Jesus Cristo iria se descrucificar, lugar onde não haveria
mais dor nem sofrimento, nessa relação entre pai e filho, pai e filha como no caso da menina
sem palavra, Mia Couto em sua ficção, mostra os danos da colonização, mas também aponta
para uma esperança mesmo que tênue, que que frágil a pensar caminhos, travessias ainda a
serem feitas por essa humanidade:
A criança ainda se volta e estende a mão ao pai, ao avô – figuras da tradição para que
não se percam na pós-modernidade que emerge nos tempos atuais muito mais que uma
marco temporal, mas como um discurso geopolítico, como mais uma invenção das
sociedades sejam elas descolonizadas ou aquelas que ainda colonizam as mentes, respondem
esses discursos por novas ordens que muitas vezes portam também maneiras de calar
mulheres, pobres, refugiados, aqueles que à margem da vida e sociedade pela violência
perdem a capacidade de falar.
Considerações finais
326
Anais
personagens a história de seu país à título de passado e presente, a dizer das várias maneiras
de ser moçambicano e moçambicana.
O conto A menina sem palavra, evoca as relações entre a colonização, o mar e os
silêncios como falas perdidas nas fronteiras do pensamento e da história de Moçambique.
Os temas que gravitam por essa análise se relacionam ao silêncio, silenciamento da
mulher e subalternidade como resquícios da colonialidade que ainda se mostra nas
instituições civis, nas maneiras que os países de eixo africano e para além do continente, se
relacionam em ordens políticas as mais diversas a provocar a diáspora, os exílio interno e
insílio assim como a desorganização familiar e cultural produzindo pessoas sem fala, sem
lugar de pertencimento, refugiados das guerras e apagamento das culturas.
Nesse direcionamento a escrita de Mia Couto acena e permuta saberes e reflexões
sobre as representações de Moçambique como um mapa a ser reconstruído pelas histórias
orais e narradores a apresentarem as vozes por anos silenciadas, que exigem audibilidade e
encontram na construção literária do autor, espaço de reclamação e existência fora da
literatura e maquinaria colonial.
Referências
CAN, Nazir Ahmed. Índico e(m) Moçambique: notas sobre o outro. Diacrítica, v. 27, n. 3,
2013, pp. 93-120.
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S08078967201300300007
COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
327
Anais
COUTO, Mia. Antes de Nascer o Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COUTO, Mia. O outro Pé da Sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COUTO, Mia.O jogo das reinvenções. In: La Insignia. Entrevista com Mia Couto. Sophia
Beal. Storm. Portugal, março de 2005. Disponível em:
http://www.lainsignia.org/2005/marzo/cul_030.htm
TEIXEIRA, João Batista; BEZERRA, Rosilda Alves. A infância e o Fantástico nos contos: A
menina, as aves e o sangue, de Mia Couto e a menina de lá, de João Guimarães Rosa:
um estudo comparativo. In: Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC
Internacionalização do Regional – Universidade Estadual da Paraíba – Campus I –
Departamento de Letras e Artes – Campina Grande – PB,2013. Disponível em:
https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/4362
328
DESENVOLVIMENTO DA
ORALIDADE E DA CRITICIDADE
NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: O GÊNERO
PODCAST NA SALA DE AULA
Giovanna Silva da SILVA (UEPA)1
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)2
RESUMO
O presente estudo tem o intuito propor, a partir do gênero digital podcast, uma metodologia
para que o professor possa tornar a sala de aula um ambiente propício ao desenvolvimento
da oralidade e da criticidade do aluno. Para a construção desta pesquisa, foram lidos os
autores Zilberman e Lajolo (1993), Rojo e Barbosa (2015), Costa Val (2006) e Schneuwly e
Dolz (2010). O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum
– BNCC (2018) e pela obra de literatura infantojuvenil Histórias de quem conta histórias
(2018), uma coletânea de contos – organizada por Lenice Gomes e Fabiano Moraes –
registrados por diferentes contadores, os quais são originados do Brasil, de Portugal e do
México. Assim, mediante uma pesquisa bibliográfica com fins a uma pesquisa-ação, busca-se
329
Anais
ABSTRACT
The present study aims to propose, from the digital podcast genre, a methodology so that the
teacher can make the classroom an environment conducive to the development of orality
and criticality of the student. For the construction of this research, authors Zilberman and
Lajolo (1993), Rojo and Barbosa (2015), Costa Val (2006) and Schneuwly and Dolz (2010)
were read. The theoretical framework is also composed of the National Curricular Common
Base - BNCC (2018) and the work of children's literature Histórias de quem conta Histórias
(2018), a collection of short stories - organized by Lenice Gomes and Fabiano Moraes -
recorded by different accountants, the which originate from Brazil, Portugal and Mexico.
Thus, through a bibliographical research with the purpose of an action research, the
construction of an interventional project is sought. This is because, during the face-to-face
classes after the remote teaching period, the students' difficulty in explaining their
respective academic works and analyzing their paradidactic books was remarkable. In view
of this, it is argued that the digital podcast genre has pedagogical potential to help the student
share information, experiences and impressions, since, for the construction of such,
planning, production and adaptation to the communicative situation are considered. The
project will be applied in a class of 7th grade of Elementary School of a private school in the
city of Ananindeua, in Pará. With this, it is expected that students learn the characteristics of
the podcast genre, reflect on different contexts in which oral texts are produced and
understand the formal, stylistic and linguistic differences that they determine.
Introdução
330
Anais
ser, pensar, agir e sentir, o que será fulcral para que esses valorizem e respeitem a
diversidade em suas vivências cotidianas.
De início, destaca-se que a escolha pela temática foi feita em consonância com a Base
Nacional Curricular Comum – BNCC (2018), a qual defende que cabe ao professor selecionar
procedimentos e estratégias de leitura para promover um processo de ensino e
aprendizagem que instigue o educando a ler, de forma autônoma, lendas e contos, e
compreendê-los para, posteriormente, expressar suas respectivas avaliações. Esse será o
ponto de partida da pesquisa.
É indispensável destacar que durante as aulas presenciais posteriores ao período de
ensino remoto motivado pela pandemia da covid-19, notou-se que os discentes
apresentaram dificuldades para explicar seus respectivos trabalhos acadêmicos e tecer
análises sobre seus livros paradidáticos. Diante disso, percebeu-se a necessidade de
construir uma estratégia pedagógica a fim de auxiliar o desenvolvimento da oralidade dos
educandos.
Ademais, é importante, também, que a sala de aula seja um ambiente no qual gêneros
que circulam socialmente possam ser analisados. Tal demanda é ratificada pelo fato de que
os gêneros digitais3, como o podcast, estão cada vez mais presentes nos livros didáticos,
sobretudo naqueles que são adotados pela rede privada de ensino.
Considerando essa crescente, o gênero midiático podcast será explorado nesta
pesquisa, os alunos frequentarão aulas tuteladas por um docente que utilizará um método
de ensino apoiado na tecnologia podcast, com o fito de instigá-los a perceberem a
importância da disciplina Língua Portuguesa para a comunicação em suas diferentes
situações. Desse modo, propõe-se a exploração do potencial pedagógico dos podcasts no
ambiente escolar.
Vale ressaltar, a partir de tal discussão, que a sala de aula é, muitas vezes, vista como
local de aprendizagem de via única, como se o aluno fosse apenas receptor do conhecimento,
das informações e dos direcionamentos, já que, recorrentemente, o educando recebe tudo
isso de forma não crítica, ou seja, sem ser um sujeito questionador, participante, de fato, da
3 A área da educação passou por intensa transformação desde 2020. Considera-se aqui que o uso da
realidade virtual serve como suplemento para a sala de aula, visto que a hiper conectividade leva a
novas formas de aprendizado, explorando o potencial humano.
331
Anais
aula. Diante desse contexto, a promoção de atividades a partir de um gênero digital pode ser
a ponte entre docente e discente, para promover a criticidade neste.
Nesse sentido, levanta-se a questão norteadora: Como o gênero digital podcast pode
contribuir para o desenvolvimento da oralidade e tornar os alunos do Ensino Fundamental
(Anos Finais) mais críticos diante daquilo que leem?
Para a construção desta pesquisa, foram lidos os autores: Zilberman e Lajolo (1993),
para versar sobre a literatura infantojuvenil; Rojo e Barbosa (2015), com o intuito de discutir
letramentos múltiplos; Costa Val (2006), para fundamentar a abordagem acerca da escrita;
e Schneuwly e Dolz (2010), como auxílio no desenvolvimento uma sequência didática.
O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum –
BNCC (2018), a qual configura um documento de caráter normativo criado e desenvolvido
com o intuito de constituir um conjunto progressivo de aprendizagens essenciais para os
alunos da Educação Básica.
332
Anais
Nesse contexto, o documento normativo elucida que nos Anos Finais do Ensino
Fundamental, o adolescente participa com maior criticidade de situações comunicativas
diversificadas. Diante disso, é necessário fortalecer a formação para a autonomia nessa
etapa, visto que é quando os jovens assumem maior protagonismo em práticas de linguagem
realizadas dentro e fora da escola.
Dentre as competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino
Fundamental, vale ressaltar aqui a terceira, que consiste em:
Podcast: a história
333
Anais
distribuição on-line de áudios, Adam Curry discutiu com Dave Winer a inclusão de arquivos
MP3 no RSS. Sendo assim, Adam se dispôs a aprender sobre programação Apple Script para
desenvolver um aplicativo com o fito de distribuir, por demanda, áudios digitais. Entretanto,
essa ferramenta era consideravelmente precária.
No ano de 2004, Adam Curry produziu o primeiro podcast, o qual se chamava Daily
Source Code. Tal produção foi feita para que os softwares de podcasts pudessem ser
aprimorados. A partir disso, determinados profissionais da tecnologia passaram a
demonstrar interesse pelo projeto de Curry e, dessa forma, a colaboração conjunta
proporcionou o desenvolvimento técnico daquilo que outrora era a ideia de Adam. Com esse
aprimoramento, foi possível alcançar maiores graus de compatibilidade, o que foi fulcral
para o mecanismo ser utilizado, até mesmo, pelo iTunes, da multinacional norte-americana
Apple, o qual passou a agregar, em 2005, podcasts na sua plataforma.
A notável popularidade da Apple influenciou o nome da nova tecnologia, pois o termo
podcast advém da junção de iPod – o tocador MP3 da supracitada marca – e broadcast. Outras
grandes empresas, posteriormente, perceberam o forte potencial de distribuição de
conteúdo sob demanda dos podcasts. E diante de tal popularidade, em 2006, o dicionário
New Oxford American atribuiu ao termo podcast o título de “palavra do ano”.
Hodiernamente, os conteúdos em áudio disponibilizados pelas plataformas de
streaming auxiliam as pessoas a aproveitarem o tempo com informações acerca de distintos
assuntos. Isso porque a facilidade para ouvir um episódio torna o conteúdo extremamente
acessível, podendo ser escutado, por exemplo, no carro, no ônibus ou na academia. Constata-
se, pois, que a referida tecnologia conquistou, pelas características de sua funcionalidade,
espaço no cotidiano social.
334
Anais
Este estudo propõe uma metodologia que conjuga a tradicional leitura silenciosa e
solitária – defendida por Zilberman e Lajolo (1993, p.67) – com a nova tecnologia,
configurando, desse modo, um letramento digital associado à literatura infantojuvenil.
Considerando que a finalidade desta pesquisa é a criação de uma sequência didática
pela qual o professor poderá promover o desenvolvimento da oralidade do aluno e de sua
criticidade diante daquilo que lê, será construída uma pesquisa bibliográfica com
características de pesquisa-ação que, segundo Thiollent (2008, p. 11), trata-se “[...] da
pesquisa voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou a ação
orientada em função da resolução de problemas efetivamente detectados nas coletividades
consideradas [...] com observação e ação em meios sociais delimitados”.
O projeto será aplicado em uma turma de 39 discentes do 7º ano do Ensino
Fundamental (Anos Finais) de uma escola privada Ananindeua, município da região
metropolitana de Belém, os quais produzirão, de forma individual, resenhas sobre as obras
lidas e, posteriormente, podcasts em 13 grupos formados por três pessoas.
A execução pedagógica desta pesquisa será composta pelas seguintes etapas:
Todas essas etapas explorarão a obra Histórias de quem conta histórias (2018), a qual
é oriunda da oralidade de contadores brasileiros, portugueses e americanos. Nessa
coletânea, são apresentados textos escritos por autores que se empenham em, com
qualidade, transmitir a palavra falada, construindo rememorações de narrativas ancestrais.
Assim, o livro apresenta em suas páginas registros de alto valor cultural.
335
Anais
Nesse contexto, é válido ressaltar que o contato com lendas, contos de assombro,
histórias de fadas e causos de esperteza propicia a familiaridade com livros e com diferentes
gêneros literários. Sob esse viés, as experiências com a literatura infantojuvenil, propostas
por um professor aos alunos, têm potencial para desenvolver o gosto pela leitura, estimular
a imaginação e ampliar o conhecimento de mundo.
Portanto, para construir um produto pedagógico com o fito de desenvolver a
oralidade dos educandos, foi selecionado um livro com a transcrição de narrativas orais, pois
acredita-se que a obra despertará nos alunos o encanto pelas palavras – as quais são
organizadas para criar histórias e, posteriormente, compartilhá-las –, estimulando-os a
compreender as narrativas, interpretá-las e dividir com outras pessoas, por intermédio de
episódios de podcast, suas respectivas considerações acerca dos textos lidos.
Considerações finais
336
Anais
planejamento, elaboração, revisão e edição; desse modo, será possível corrigir e aprimorar
as produções realizadas, fazendo cortes, acréscimos, reformulações, ajustes e alterações de
efeitos.
Por fim, é importante que os discentes desenvolvam, também, a competência de
serem ouvintes ativos. Isso será possível a partir do trabalho do professor com a leitura
coletiva seguida de comentários pertinentes, da escuta de podcasts exemplificativos e da
escuta dos episódios produzidos pelos colegas da turma. Essa interação ativa contribuirá,
inclusive, para que esses possam ouvir mais atentamente os professores das outras
disciplinas – melhorando, consequentemente, o desempenho em outras áreas do
conhecimento.
Referências
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GOMES, Lenice; Moraes, Fabiano. Histórias de quem conta histórias. 1.ed. São Paulo.
Cortez, 2018.
ZILBERMAN, Regina & LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças. Para conhecer a literatura
infantil brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1993.
337
REFLEXÕES SOBRE O CORPO
FEMININO NA LITERATURA
PORTUGUESA NO ROMANCE
OS TRÊS CASAMENTOS DE
CAMILLA S. DE ROSA
LOBATO DE FARIA
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)1
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)2
RESUMO
O presente estudo traz uma análise do romance Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), da
escritora portuguesa Rosa Lobato de Faria, com o objetivo de estudar a personagem
principal do respectivo romance, observando, especificamente, sua condição feminina, que
foi absolutamente sufocada pela sociedade patriarcal da época e cuja as vivências revelam-
se na construção do seu corpo. Por se tratar de uma literatura de autoria feminina, não
apenas enfatiza a questão da corporalidade da personagem em destaque, mas as suas lutas
em romper com tradicionalismo. Assim, destaca-se a escrita de Rosa Lobato de Faria que,
338
Anais
The present study presents an analysis of the novel Os Três Casamentos de Camilla S. (1997),
by the Portuguese writer Rosa Lobato de Faria, with the objective of studying the main
character of the respective novel, observing, specifically, her feminine condition, which was
absolutely suffocated by the patriarchal society of the time and whose experiences are
revealed in the construction of her body. As it is a literature by women, it not only
emphasizes the issue of the highlighted character's corporeality, but also her struggles to
break with traditionalism. Thus, the writing of Rosa Lobato de Faria stands out, which,
through literature, brings reflections on the construction of female identity and the struggle
of women to conquer their autonomy. For these inquiries, the theoretical contributions of:
Cecil Jeanine Albert Zinani (2003), Constância Lima Duarte (2019), Elizabeth Grosz (2000),
Elódia Xavier (2007), Rita Terezinha Schmidt (2019), among other critics and theorists were
used. who helped to complement and enrich this work with their positions on the topic
addressed.
Apresentação
339
Anais
340
Anais
De acordo com Grosz (2000, p. 47) “o feminismo adotou acriticamente muitas das
suposições filosóficas em relação ao papel do corpo na vida social, política, cultural, psíquica
e sexual.”. A partir desse viés, é possível analisar a construção da protagonista no romance
por meio das representações que marcaram sua vida e a transição entre um corpo
disciplinado, nos anos iniciais da sua vida, passando para um corpo liberado ao longo de sua
vivência.
341
Anais
342
Anais
relativos à infância, conforme percebe-se com a reação dela ao saber do matrimônio: “Junto
as poucas forças que me restam e pergunto, numa voz quase inaudível: - Posso levar minhas
bonecas?” (FARIA, 1997, p. 67).
Diante da citação anterior, revelasse a face de uma menina muito jovem que está
prestes a abandonar a fase infantil para adentrar em um casamento com um homem bem
mais velho, com as bonecas sendo um símbolo do momento em que ela deixa a vida e
costumes regulares de sua idade, para assumir o papel de mulher casada e suas respectivas
responsabilidade impostas pela sociedade da época, sendo obrigada por seus familiares,
conforme revela-se no seguinte trecho: “Continuo a não querer casar com aquele velho de
barbas [...]” (FARIA, 1997, p.68). Novamente, Camilla apresenta características de um corpo
disciplinado, que, segundo o pensamento de Xavier (2007, p. 59) é possível identificar uma
“relação entre carência e a subordinação”, conforme será visto mais detalhadamente adiante.
Após algum tempo do casamento, a jovem torna-se uma “mulher formada” como eram
consideradas as mulheres ao iniciar o período menstrual: “A água do meu banho está cor-
de-rosa, alguém esmagou o meu bago de romã, a Paca tira-me da água, vai buscar um pano
de algodão, ensina-me a usá-lo. Finalmente sou púbere, [...]” (FARIA, 1997, p. 80). Assim,
poderia iniciar sua vida sexual com o médico Emídio Sobral. Diante do acontecimento e com
a possibilidade de consumar seu casamento, Emídio convida Camilla para um baile, afim de
apresentar a sua esposa: “Quero que se apresente deslumbrante, porque se trata da sua
entrada oficial na sociedade”. (FARIA, 1997, p. 84).
No baile, Camilla apresenta-se deslumbrante para a sociedade e conhece André
Sobral, por quem se apaixona rapidamente, mesmo estando casada e sem ter ainda chegado
às núpcias do casamento. Na mesma noite, Emídio Seabra percebe que Camila já não é mais
apenas uma menina e, ao chegar do baile, faz inferências sobre a relação de pertencimento
que a jovem lhe tem e resolve ter a primeira relação sexual com a mesma, após os
agradecimentos da jovem:
Agradeço-lhe ter-me levado ao baile, desejo-lhe boa noite, mas ele segura
com força as minhas mãos, faz-me sentar no cadeirão de veludo e olhando-
me profundamente nos olhos pergunta com doçura, Camilla, sabe o que
significa ser casada? Bem, tio Emídio, eu... A partir de hoje não volta a
chamar-me tio Emídio, apenas Emídio, está bem? Sim, se o tio quer assim...
Diga a Paca que a dispa, que a lave, que a perfume, que lhe vista o seu mais
bonito négligé e vá ter ao meu quarto daqui a uma hora porque quero
ensinar-lhe algumas coisas muitíssimo importantes. Mas... hoje? Sim, hoje,
daqui a uma hora. (FARIA, 1997, p. 92).
343
Anais
Embora esteja a pensar em André Sobral, aquele por quem se apaixonou após os
momentos vividos no baile, a partir daquele momento ela passa a ser percebida como mulher
que deve desempenhar suas atividades de esposa. Este impasse simboliza o momento que
se inicia a ruptura de Camilla para com os costumes estereotipados de sua época. Depois da
noite de núpcias com Emídio, ela lembra do convite para o encontro que André Sobral lhe
fizera:
Paca, o André está à minha espera, às onze, no parque. Que parque? Que
André? Estás louca Nena? Agora és uma senhora casada, acabou o devaneio.
Agora teu marido espera de ti compostura, prudência, dignidade, beleza e
muito amor. E eu, Paca? E eu? Pobrezinha. Não existe mais isso, EU. (FARIA,
1997, p. 94).
344
Anais
Em meio a essa situação, com objetivo de reverter a possível perda da casa, que, ao
voltar para Lisboa, Camilla resolve procurar trabalho. A partir desses acontecimentos da
vida da protagonista, acontece a transição do seu corpo disciplinado para um corpo liberado.
Sobre o assunto, Xavier (2007, p. 169) ressalta a importância das protagonistas mulheres
“que passam a serem sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores
redescobertos através de um processo de autoconhecimento”.
Esse processo de redescobrimento de valores e de autoconhecimento é o que
acontece com a protagonista do romance, uma vez que, após a morte dos seus tios e, em
seguida, a do seu primeiro marido, se encontra sozinha e responsável pelo seu próprio
destino, sendo a partir desse momento que começa a transição de um corpo disciplinado
para um corpo liberado. Conforme cita Xavier (2007, p. 173): “ao exorcizar o passado
doloroso, ela se liberta das amarras familiares e das dependências afetivas, ousando viver,
sem repressões e sem medo, a existência com seus mistérios”.
Diante das inúmeras crises econômicas que permeavam sua vida, Camilla consegue
alugar a casa, entretanto, não é o suficiente para custear as suas dívidas e gastos mínimos.
Entretanto, surge uma vaga de pianista numa casa de alta costura que se enquadra no perfil
dela, dominando algumas poucas notas no piano e tem beleza exuberante: “Está à procura
de uma senhora de muito bom aspeto que acompanhe as passagens com uma música leve e
agradável. Se não esqueceste o teu Chopin, és a pessoa ideal”. (FARIA, 1997, p. 104). Camilla
resolve aceitar a proposta de trabalho.
Assim, a nova fase da vida da protagonista se inicia quando ela decide trabalhar,
tornando-se uma mulher independente, não estando mais presa e submissa como foi
durante toda a sua vida até este momento, primeiro pelos seus tios e depois pelo seu marido,
“construindo assim uma nova postura diante da vida, em que o corpo e como o “mar” com
seus mistérios, mas é também uma “viagem” aberta ao desconhecido” (XAVIER, 2007, p.
173).
Sua primeira impressão do ambiente de trabalho é de que não há nada fora do
habitual: “É um salão muito luxuoso, onde a nova alta sociedade lisboeta se exibe com
segurança” (FARIA, 1997, p. 108). Com o passar dos dias, Camilla começa a perceber que
atividades obscuras ocorrem naquele lugar, servindo também para a realização de encontros
escusos:
345
Anais
Além do salão onde está o piano e se recebem as clientes, há, por trás de
reposteiro chumbo-dourado, várias salas de provas e o atelier propriamente
dito. Um dia Madame Armandine pede-me que suba ao camarim. Abre com
uma chave que tira do decote a misteriosa porta do corredor e manda-me
entrar para uma sala absolutamente encantadora em tons de malva, onde os
jarrões cheios de hortênsias nos dão as boas-vindas. [...]. Sem perder de vista,
contudo, que há algo de insólito nesta situação. (FARIA, 1997, p. 109).
346
Anais
querer pôr um pouco de ordem nas hipocrisias” (FARIA, 1997, p. 129). Francisco era fruto
da libertação daquele corpo de Camilla que, desde muito cedo, fora privado de conhecer a
concretização de seus verdadeiros desejos, de viver conforme lhe era conveniente.
Por fim, Camilla se casa com Alexandre Silveira, que faz com que Camilla perceba a
felicidade de uma forma mais leve e serena. Alexandre mostrava-se menos ligado a questões
corpóreas, preocupando-se mais como a dimensão de sentimentos de bem-estar, o que que
a faz refletir sobre os seus casamentos anteriores e quais marcas foram lhe impostas
mediante o desenrolar de cada um. Considerando o período que a mesma se envolveu com
outros homens com os quais não veio a se casar:
Pensa-se que uma mulher se deita com um homem sempre pelo mesmo
motivo, mas não é assim. Há mil razões para uma mulher receber um homem
no seu corpo. Ao longo da minha aventurosa vida deitei-me por obrigação,
por paixão, por medo, por necessidade, por amor ou por prazer, mas nunca,
como com o Alexandre, por ternura infinita, por repouso secreto, por
procura da paz. (FARIA, 1997, p. 132).
Considerações finais
347
Anais
REFERÊNCIAS
DUARTE, Constância Lima. Feminismo: uma história a ser contada. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2019.
FARIA, Rosa Lobato de. Os três Casamentos de Camilla S. Dom Quixote – Ed. Grupo Leya,
Portugal, 1997.
SCHMIDT, Rita Terezinha. Na literatura, mulheres que reescrevem a nação. In: HOLLANDA,
Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 2007. 208 p.
348
A VISÃO DO FEMININO
NAS POESIAS
CONTEMPORÂNEAS DE
ANGÉLICA FREITAS
Bianca Socorro Salomão SANTIAGO (UEPA/PPGELL)1
Raphael Bessa FERREIRA (UEPA/PPGELL)2
RESUMO
349
Anais
acerca dos paradigmas impostos ao universo feminino. Desse modo, o interesse desse estudo
parte do pressuposto da visão feminista e do estudo estilístico, para entender como a poesia
de Angélica Freitas pretende desmistificar certos “padrões sociais” que circundam o
universo feminino e a construção do que é ser mulher nos dias de hoje, tendo as referências
que sinalizam o sujeito feminino, permitindo assim, direcionar um novo olhar para
possibilidades de ressignificação do modo de existir e entender de que forma Angélica
Freitas impacta o interlocutor e o faz refletir acerca da questão do feminino na sociedade
atual.
ABSTRACT
The present study aims to focus on the contemporary poetic manifestation of female
authorship, having as main focus the poetry of Angélica Freitas. We sought to analyze some
of the poems present in the book A uterus is the size of a fist, published in 2012, which
presents characteristics of modernist aesthetics that will be analyzed based on the
theoretical contribution of the book Introduction to Stylistics, by Martins (2000). ). The
relevance of this study is evidenced in seeking the image of the feminine vision in the
contemporary poetic texts of Angélica Freitas, which has a modernist style that uses
everyday elements and clichés as starting points, provoking reflections in the reader about
the paradigms imposed on the feminine universe. . In this way, the interest of this study
starts from the assumption of the feminist vision and the stylistic study, to understand how
the poetry of Angélica Freitas intends to demystify certain "social patterns" that surround
the feminine universe and the construction of what it is to be a woman nowadays. , having
references that signal the female subject, thus allowing to direct a new look at possibilities
of re-signification of the way of existing and understand how Angélica Freitas impacts the
interlocutor and makes him reflect on the issue of the feminine in today's society.
Keywords: Angelica Freitas. A uterus is the size of a fist. Female authorship. Feminine vision.
Social context.
Considerações iniciais
Este trabalho fora desenvolvido a partir do desafio que é ser e tornar-se mulher no
século XXI, pois é preciso pensar o ser mulher a partir do contexto social, uma vez que os
pensamentos falocêntricos, machistas e patriarcais agem na criação de representações,
expectativas, determinações, imposições e silenciamentos sobre o que é ser mulher na
sociedade. Com o intuito de pensar como agem as mulheres que problematizam tais
representações, a literatura apresenta-se como um dos grandes espaços de contestação dos
discursos historicamente combatidos na luta das mulheres.
350
Anais
351
Anais
longos: Uma mulher limpa, Mulher de, A mulher é uma construção, Um útero é do tamanho
de um punho, 3 poemas com o auxílio do Google, Argentina e O livro rosa do coração dos
trouxas.
Destas, a maioria traz o vocábulo “mulher” em destaque, seja no título das mesmas –
como se percebe nas três primeiras – ou nos títulos dos poemas que as compõem, como
ocorre em “3 poemas com o auxílio do Google”, que se divide em “A mulher vai”, “A mulher
pensa” e “A mulher quer”. Em “Um útero é do tamanho de um punho”, se o vocábulo não
surge expressamente, em compensação, a mulher se faz metonimicamente representada
pelo seu órgão genital.
Nas duas seções finais, “Argentina” pode comparecer como adjetivo feminino
substantivado – [a mulher] argentina –, além da referência ao país sul-americano, e a cor
rosa em “O livro rosa do coração dos trouxas”, que pode fazer referência irônica aos
estereótipos impostos à figura feminina na sociedade contemporânea. Desse modo, tal
padrão cromático se associa quase automaticamente ao feminino em sua versão mais
“comportada” – “trouxa”, portanto, segundo uma visão transgressora e revolucionária da
realidade.
Conforme Freitas (2012), as mulheres, quase sempre, recebem rótulos categóricos
como “uma mulher gorda”, “uma mulher limpa”, “mulher de vermelho”, “uma mulher sóbria”,
e, por vezes, subvertem-nos, como a Amélia que “fugiu com a mulher barbada”. Sendo assim,
Angélica busca representar um novo cenário de poesia contemporânea, trazendo em seus
versos discussões do dia a dia que passam despercebidos pela naturalização de falas
machistas.
Um útero é do tamanho de um punho demonstra então o cenário de concentração de
acidez em Angélica Freitas, não podendo definir que a poeta se torna monotemática ou
limitada, pois consegue abordar as questões do feminino, como expusemos de início, sob
diversos aspectos e de modos sempre inovadores e contundentes – às vezes um pouco sem
“modos”, em desacordo com a educação formal da família/burguesia tradicional.
Em suas obras, Angélica tem uma poética caracterizada pela retomada da estética
modernista, que pode ser observada nos versos livres, no experimentalismo linguístico, na
linguagem coloquial, na paródia de referências eruditas e populares, na irreverência, no
352
Anais
Sendo assim, os poemas aqui analisados irão além do escrito, do gramatical e dos
efeitos sonoros, eles irão ser analisados com base em suas conotações, no dito pelo não dito
e em seu processo, pois
Dessa forma, as análises serão iniciadas com o poema “mulher de vermelho”, e nele
será possível perceber os traços estilísticos nas escolhas lexicais:
mulher de vermelho
O que será que ela quer
353
Anais
No âmbito formal, o poema inicia com o título “mulher”, grafado com “m” minúsculo,
sendo ele tomado como substantivo comum, designando uma atribuição a que toda mulher,
enquanto coletivo e sem distinção, irá ser submetida caso porte um traje vermelho, por isso
o “mulher de vermelho”. Há no poema um tom de indagação, construído por versos livres,
chegando a uma “conclusão” para as escolhas do sexo feminino ao portar determinada roupa,
assim como a repetição do pronome pessoal “ela”, fazendo referência ao fato de que é “dela”
que se fala e não “ela” quem fala.
Assim sendo, em: “o que será que ela quer/ alguma coisa ela quer/mas ela escolheu
vermelho/ela sabe o que ela quer/o que ela quer sou euzinho”, há um trajeto investigativo
em relação a essa mulher a partir do momento da escolha de sua vestimenta. Como resposta,
tem-se os versos “essa mulher de vermelho/mas ela escolheu vermelho/ela escolheu
vestido/ela é uma mulher”, em que inferências são realizadas como percurso a uma
determinada conclusão do eu poético, criando uma cadeia de intencionalidade e sentido, no
ato dessa mulher, que justifique o porquê de se escolher um vestido e que esse seja da cor
vermelha.
A fim de chegar em uma conclusão, o tom investigativo citado anteriormente é
retomado nos versos finais, em que há inclusive um jogo intertextual, por meio da referência
ao personagem Dr. Watson, parceiro de investigação do detetive Sherlock Holmes. A situação
criada pelo eu lírico masculino é o da certeza de ser um objeto de sedução pela mulher de
vermelho, afinal a cor vermelha, comumente associada ao desejo, foi a escolha para o vestido
354
Anais
“podia ser um amarelo/ verde ou talvez azul”, fazendo com que se crie uma determinada
ideia de entrega ao outro, sem cogitar a ideia do prazer próprio, da mulher vestida para ela
mesmo, para ser feliz ou qualquer outra situação. É desse modo, perceptível a objetificação
e idealização do corpo feminino, julgando intencionalidades não existentes.
Outro poema analisado será o de mesmo título do livro, este sendo “um útero é do
tamanho de um punho”, porém este sendo um poema extenso, tem-se um excerto:
Um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem cadeiras
todos os médicos couberam num útero
o que não é pouco
uma pessoa já coube num útero
não cabe num punho
quero dizer, cabe
se a mão estiver aberta
o que não implica gênero
degeneração ou curiosidade
ter alguém na palma da mão
conhecer como a palma da mão
conhecer os dois, um sobre a outra
quem pode dizer que conhece alguém
quem pode dizer que conhece a degeneração
quem pode dizer que conhece a generosidade
só alguém que sentiu tudo isso
no osso, o que é uma maneira de dizer
a não ser que seja reumático
ou o osso esteja exposto
im itiri i di timinhi di im pinhi
im itiri i di timinhi di im pinhi
quem pode dizer tenho um útero
(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)
i midici
o medo de que não funcione
para que serve um útero quando não se fazem filhos.
(FREITAS, 2012, p. 59).
O título do livro veio a partir de um verso do longo poema de 42 estrofes e 173 versos
que trata do útero feminino e dos discursos privados e públicos que o cerceiam. O tema
central do poema são as repressões exercidas sobre o órgão reprodutor e, por extensão,
sobre a mulher, que tem sua autonomia interditada no que diz respeito ao exercício da
sexualidade e à interrupção de uma gravidez indesejada, por exemplo.
Note-se que a palavra “mulher” não é mencionada uma única vez em toda a extensão
do excerto, e por consequência do texto integral, o que reforça a condição de passividade do
sujeito feminino, submetido à voz e ao poder dos “outros”. De acordo com o Dicionário
Houaiss (2012), a palavra útero, além de “órgão muscular oco do aparelho genital feminino
355
Anais
que acolhe o ovo fecundado durante seu desenvolvimento e o expulsa, finda a gestação”,
também tem o sentido de “madre, mãe do corpo, matriz”. Já a palavra punho refere-se à “mão
fechada”, à “força da mão bem fechada” ou mesmo “parte de arma branca em que se segura;
cabo, empunhadura”. Na relação semântica entre as duas palavras, o útero é semelhante ao
punho não só em tamanho, mas na sua função de acolher ou segurar um feto como uma “mão
fechada”.
Essa associação é feita por meio das inferências externas sobre o útero e sua
capacidade reprodutora, principalmente na obrigatoriedade da gravidez e na proibição da
prática de aborto, quando diversas instituições e agentes externos à mulher e a sua esfera
íntima – o legislativo, a igreja, a escola, a mídia, os religiosos, os cientistas, os médicos –
determinam sobre seu corpo e sua decisão de gerar ou não uma criança.
Essas circunstâncias se estendem à mulher, esse ser possuidor do útero que é
representada por meio do seu útero e, portanto, a sua capacidade reprodutora e ao papel
social de mãe. O poema então personaliza a capacidade geradora do útero ao afirmar que
nele couberam indivíduos formados, dotados de razão e discernimento.
Por fim do excerto, há uma experimentação da “língua do i”, prestando-se a esse tipo
de humor, já que a substituição das vogais das palavras dá ensejo a uma fala ridícula e
infantilizada. Afinal, a convenção social diz que se torna mulher, ou popularmente “mocinha”
a partir da primeira menstruação, o que biologicamente entende-se como a possibilidade de
gerar um feto em seu útero, e fica a reflexão de BEAUVOUIR (1970):
Considerações finais
356
Anais
do mesmo modo pensamos como problemática a tentativa de resposta para uma possível
indagação do que vem a ser uma produção feminina.
Por fim, o intuito da pesquisa é a reflexões acerca das produções voltadas para os
inúmeros questionamentos a serem levantados pela sociedade, tornando assim o processo
do ser e tornar-se mulher algo que pode sim ser escolhido e realizado pela figura feminina.
Não mais necessitando do parâmetro e olhar masculino sobre seus comportamentos e
escolhas do dia a dia.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e mitos. 4. ed. Trad. Sérgio Milliet. São
Paulo: Difusão Europeia do livro, 1970.
CORTÊZ, Natacha. “Um útero é do tamanho de um punho” [entrevista]. Revista TRIP, 2012.
Disponível em: < https://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um-
punho>. Acesso em: 04 jul. 2022.
DICIONÁRIO HOUAISS. Disponível em: http.:// houaiss.uol.com.br. Acesso em: 03 jul. 2022.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
357
CONSCIÊNCIA E CORPO
DESALINHADO: O
FANTÁSTICO E O
INSÓLITO NO CONTO
SONO, DE HARUKI
MURAKAMI
Vitor Yukio Ivasse ALVES (PUC Goiás)1
Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás)2
RESUMO
A escuridão da noite revela a enseada oculta de possibilidades que nos espera durante o
sono. Para alguns, o sono fornece a distração e o reabastecimento necessários para realizar
nossas rotinas diárias. Enquanto nos aconchegamos sob a segurança de nosso cobertor
favorito e, lentamente, começamos a fechar os olhos, sucumbimos à beleza que é o sono. Sem
hesitação, aceitamos e acolhemos nosso sono noturno. Não questionamos nosso estado
vulnerável e nem os rituais que nos preparam para um estado de coma de oito horas. Em
Sono (2015), Haruki Murakami escreve a partir da perspectiva de uma dona de casa de 30
anos com insônia. A história começa em seu 17º dia sem dormir e volta ao início de como
começou. A total ausência de sono neste conto encantador pode ser tomada pelo seu valor
E-mail: yukiovitor@gmail.com
2 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
elizetealbinaferreira@gmail.com
358
Anais
nominal (como uma história fantástica), ou pode ser interpretada como símbolo do incomum
(insólito). Para o teórico literário Tzvetan Todorov, nós, leitores, somos transportados para
o centro da fantasia para pisar em solo desconhecido e vivenciar eventos que não podem ser
explicados pelas leis deste mundo. Em sua obra Introdução à literatura fantástica (2010),
Todorov relata que tais acontecimentos são frutos da nossa imaginação e que o fantástico
está ligado, intrinsecamente, à função da incerteza, designando o conceito de hesitação. Para
apontar as peculiaridades desse gênero, será realizada uma análise dos elementos do
fantástico e do insólito na obra de Haruki Murakami, traçando as características da narrativa
com as observações e concepções de Tzvetan Todorov.
ABSTRACT
The darkness of the night unveils the cove of possibilities that awaits us during sleep. To
some, sleep provides the distraction and the replenishment needed to fulfill our daily
routines. While we are cozy under the security of our favorite blanket and, slowly, start to
close eyes, we succumb to the beauty that sleep is. Without hesitation, we accept and
welcome our nocturnal sleep. We don't question our vulnerable state nor the rituals that
prepare us to a coma state of eight hours. In Sleep (2015) Haruki Murakami writes by the
perspective of a thirty-year-old housewife with insomnia. The story begins on her 17th day
without sleep, then it goes it’s way back to how it started. The complete lackness of sleep on
this charming tale may be interpreted by it's nominal value as a fantastic story or as a token
of the unusual. To the literary theorist Tzvetan Todorov we, as readers, are transported to
the center of this fantasy, to step on unknown ground and to live events that can't be
explained by the laws of this world. On his work Introduction to Fantastic Literature (2010),
Todorov reports that such events are a figment of your imagination and that the fantastic are
connected intrinsically to the function of uncertainty, designating the concept of hesitation.
To point to the peculiarities of this genre, an analysis will be made of all the elements of the
fantastic and of the unusual on the work of Haruki Murakami, tracing the characteristics of
the narrative with the observations and conceptions of Tzvetan Todorov.
Considerações Iniciais
359
Anais
com esse distúrbio começam o dia sentindo-se cansadas e sem energia, tendo um
desempenho ruim nas atividades diárias. Muitos adultos experimentam insônia em algum
momento de suas vidas, mas algumas pessoas sofrem de insônia crônica, que pode durar
muito mais do que o normal. A insônia também pode ser secundária a outras causas, como
doenças ou abuso de substâncias.
Entretanto, no conto Sono, do autor japonês Haruki Murakami, a narrativa introduz
uma personagem feminina, com nome desconhecido, vivenciando seu drama particular que
parece uma espécie de insônia, mas não se encaixa com os sintomas desse distúrbio do sono.
No começo do conto, a protagonista relata sua situação atual: “É o décimo sétimo dia em que
não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco” (MURAKAMI,
2015, p. 5).
Fazendo alusão ao seu passado, a protagonista informa que passou por algo parecido
durante o período de faculdade: “Na época da faculdade tive uma coisa parecida. Digo
“parecida” pois não posso afirmar categoricamente que aqueles sintomas estavam
relacionados ao que as pessoas costumam chamar de insônia” (MURAKAMI, 2015, p. 5). Ela
situa sua condição colocando em dúvida a origem do seu problema, uma vez que não se trata
de uma insônia autodiagnosticada.
Sendo assim, busca-se investigar de qual maneira o distúrbio vivenciado pela
protagonista pode ser identificado e caracterizado como uma manifestação do
insólito/fantástico.
360
Anais
Essa era sua vida com pequenos e singelos momentos de prazer, uma repetição. A
escrita em um diário esboçado no final do capítulo 1 expõe um sentimento de vazio da
mulher de trinta anos que se sente assustada por não conseguir segregar dias e horários. E
essa era sua vida antes de não conseguir dormir.
A protagonista relata, no capítulo 2, que em uma fatídica noite, teve um sonho
extremamente repulsivo, um pesadelo sombrio ao qual deu origem a sua falta de sono. Nesse
sonho, ela estava acordada e uma sombra negra materializa-se perto dos seus pés. A sombra
aparenta uma espécie medonha de homem que começa a jogar água nos seus pés e, após
ambos se olharem fixamente durante algum tempo, o processo é interrompido com o susto
e toda a névoa onírica se esvai. A protagonista, ao acordar, percebe-se com uma sensação
estranha, algo dentro dela se entregou totalmente ao vazio.
361
Anais
porém, era desprovido de expressão. Ele não se dignava a falar comigo. Era
vazio como um buraco. (MURAKAMI, 2015, p. 33-34).
A água presente no sonho pode ser vinculada às tristezas cotidianas que acometem a
mulher insone. A água suspende e materializa o corpo adormecido, libera a mente para
flutuar e torna a materialidade da matéria remota e indescritível.
“O que era aquele velho vestido de preto?”, pensei. Nunca o tinha visto antes.
Sua roupa preta também era muito estranha. [...] Quem era aquele homem?
Por que que ele jogava água nos meus pés? [...] Não encontrava nada que
fizesse sentido. (MURAKAMI, 2015, p. 42).
362
Anais
leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma
das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um
produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que
são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da
realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para
nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente,
exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o
encontramos. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra
resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho
ou o maravilhoso. (TODOROV, 2010, pg. 30-31).
O hábito torna as tarefas simples de serem realizadas. Pode-se dizer que elas
se tornam fáceis. Basta desconectar a mente do corpo. Enquanto meu corpo
se movimentava à vontade, minha mente pairava em seu próprio espaço
exclusivo. [...] Depois que deixei de dormir passei a considerar fácil
administrar a realidade. De fato, cuidar da realidade é uma atividade muito
simples. Era tão somente a realidade. Consistia apenas em tarefas
domésticas. (MURAKAMI, 2015, p. 71-72).
363
Anais
A insone relata que, apesar de não dormir por dias, não foi notada nenhuma alteração
da sua fisionomia pelos seus familiares. Sua inquietação é notada na sua segunda semana
sem dormir, pois, ela começa a notar que esse tempo sem dormir pode levar uma pessoa à
loucura.
Até então, eu achava que o sono era um tipo de morte. Ou seja, a morte seria
uma extensão do sono. Em outras palavras, a morte era como dormir.
Comprada ao sono, a morte era um sono bem mais profundo, sem
consciência. Um descanso eterno, um blecaute. (MURAKAMI, 2015, p. 100).
O último capítulo do conto se inicia com a protagonista vestindo uma roupa simples
e adotando um visual masculino. Dirige-se até um parque, estaciona e ajeita o boné de uma
forma que não possa ser identificada, uma medida que se entende como uma forma de não
ser vulnerável a agressões e violência por ser uma mulher vagando sozinha pela noite.
Reflete sobre seus dias e mudanças, concluindo que mudou. Fecha os olhos e observa a
escuridão e analisa se o seu desejo seria a morte. Contudo, sua divagação é interrompida
quando nota a presença de duas sombras negras, que são os elementos primordiais para o
desfecho ao conto.
364
Anais
365
Anais
Considerações Finais
Haruki Murakami utiliza o sono (ou a falta dele) como um artificio simbólico para
alavancar reflexões da protagonista sobre o desconhecido, a rotina, o cotidiano e o sentido –
sendo esse o processo fisiológico de reconhecer estímulos da audição, visão e tato. O final do
conto, apesar de deixar brechas para diversas interpretações, revela à protagonista que estar
sempre acordada era o mesmo que estar morta., e que sua insônia não era libertação da vida
cotidiana. Cada afirmação no final é uma metáfora para algo.
A narrativa é toda permeada com pequenas e singelas características que fazem
alusão ao insólito e o fantástico, mas acabam mesclando a vida da protagonista com padrões
366
Anais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TODOROV, Todorov. Introdução à literatura fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
367
ESCRITA DE SI, ESCRITA
DO OUTRO: A TENSÃO
ENTRE AUTOFICÇÃO E
ESCREVIVÊNCIA NO
CENÁRIO
CONTEMPORÂNEO
Caroline da Conceição Barbosa da PURIFICAÇÃO (UFBA)1
Luciene Almeida de AZEVEDO (UFBA)2
RESUMO
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-
mail: barbosacarol41@gmail.com
2
Doutora em Literatura Comparada e professora do Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail:
aaluciene@gmail.com
368
Anais
A partir dessas considerações, o trabalho quer investigar a tensão entre os dois termos,
avaliando se o entrelaçamento entre o ficcional e o autobiográfico e a convivência no
presente dos dois termos, autoficção e escrevivência, promovem um jogo desestabilizador
que envolve não apenas o autor e a instância narrativa, mas as esferas do pessoal e do político
e se como isso se reflete no valor teórico de cada um dos termos, a partir do comentário de
O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, e A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy.
ABSTRACT
This article seeks to think about the problematic relationship between autofiction and
escrevivência with the autobiographical. Autofiction (a term that appears in France in 1977,
from the novel Fils by Serge Doubrovsky) predicts the ambiguous pact(ALBERCA, 2008)
between fiction and autobiography. The same tension is present in the term escrevivência
(created in 1995 by the Brazilian writer Conceição Evaristo). According to Diana Klinger
(2007), autofiction is a type of self-writing, subject to narcissism and spectacle. In relation to
escrevivência, the political character of first-person narratives is clear (which brings
narrators and authors together), as the term is used as a way of rescuing, through literary
devices, the history of the Afro-Brazilian population. Your main characteristic is the identity
pact with the reader, since the individual experience also says about the collective. From
these considerations, the work wants to investigate the tension between the two terms,
evaluating whether the intertwining between the fictional and the autobiographical and the
coexistence in the present of the two terms, autofiction and escrevivência, promote a game
destabilizing that involves not only the author and the narrative instance, but the spheres of
personal and political and if this is reflected in the theoretical value of each of the terms, from
the commentary of O Averso da Pele (2020), by Jeferson Tenório, and A chave de casa (2007),
by Tatiana Salem Levy.
No presente trabalho3, serão tecidas algumas considerações sobre dois termos que
possuem incidência biográfica, mas que parecem ocupar lugares distintos dentro da cena
literária contemporânea: a autoficção e a escrevivência. A tensão entre eles, através de obras
que realizam seus empreendimentos, pode elucidar como o campo literário está lidando com
produções que possuem subjetividades, objetivos, temas e origens diferentes, mas que fazem
parte do mesmo cenário literário contemporâneo. Para refletir sobre seus desdobramentos
e os locais que eles ocupam dentro da literatura contemporânea será realizada uma análise
das obras A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy, e O avesso da pele (2020,) de
Jeferson Tenório
3 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
369
Anais
Mas antes vamos a uma breve apresentação teórica sobre a autoficção. O termo surge
em 1977, na França, com o romance Fils, de Serge Doubrovsky. O escritor se sente impelido
a escrever a obra após ter acesso a um quadro elaborado por Philippe Lejeune em 1973 que
explicitava a noção de pacto autobiográfico ao prever um contrato de leitura entre autor e
leitor. Nesse quadro, Lejeune apontou que não havia exemplos conhecidos de romances que
mantinham a relação onomástica entre autor, narrador e personagem. O próprio Serge
Doubrovsky afirma, então, que o termo autoficção quer contrariar a conclusão de Lejeune e
por isso ele escreve uma ficção na qual o autor tem o mesmo nome do personagem.
Doubrovsky estabeleceu as seguintes características para o termo: a ausência de
linearidade, a relação onomástica entre autor, narrador e personagem, o uso da
metalinguagem, do tempo presente e da fragmentação e a exploração do caráter psicanalítico
do que é narrado. Em um primeiro momento, o autor assumiu ser o criador da prática
autoficcional que ele definiu como “ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais”
(NORONHA, 2014, p. 120). Entretanto, com o crescimento da especulação sobre a autoficção
reconheceu que a prática já existia em autores como Louis-Ferdinand Céline e Sidonie
Gabrielle Colette, por exemplo. No século XXI, o termo parece ter se expandido e
incrementado pelo interesse na vida privada do autor, pela valorização do biográfico e pela
intensa visibilidade que o autor assume hoje publicamente.
Esse cenário propiciou que o termo se tornasse popular dentro da academia. Dessa
forma, diversas obras autoficcionais começaram a surgir, assim como pesquisas que
buscavam refletir sobre a prática. Essa popularização incidiu na perda de alguns pontos de
definição fazendo com que ele ficasse em uma zona de nebulosidade. Nesse cenário, outros
termos que buscavam definir certo grau de relação entre autor, narrador e personagem
ganharam força como a alterbiografia de Ana Maria Bulhões-Carvalho (2011), a
autonarração de Dorrit Cohn (1978) e a alterficção de Evando Nascimento (2008). Muitas
vezes, esses termos parecem ser vistos como variantes da autoficção, pois estariam ligados
por fazerem parte de uma ‘’constelação biográfica’’(KLINGER, 2007, p. 39) em que a linha
entre factual e ficcional é tênue.
A partir dessa perspectiva, autoficção e escrevivência estariam inseridos no mesmo
rol, pois ambos tensionam verdade e ficção. Contudo, Conceição Evaristo (2020) pontua que
as obras de escrevivência fazem parte de uma “escrita de nós”, pois as obras não estão
centradas em uma vivência individual e sua preocupação maior é estabelecer com o leitor
um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) em que ele reconheça suas experiências enquanto
370
Anais
371
Anais
diferente dentro do campo literário. Esses tensionamentos nos deixam algumas questões,
pois como podemos relacionar a autoficção que nasce do ambíguo, do não-saber, do jogo com
o leitor com a escrevivência que busca construir uma narrativa literária que une o sujeito de
enunciação individual com o coletivo, que busca construir uma estética que dialoga com sua
temática centrada em revelar memórias que foram negadas pela sociedade? Será que
podemos dizer que a autoficção, classificada como escrita de si, também abriga a
escrevivência, que é uma “escrita de nós”? Como essas estratégias são realizadas dentro das
obras literárias que buscam nublar a linha entre ficcional e real?
Vamos à análise de romances que realizam estes empreendimentos e observar como
as estratégias podem se assemelhar e/ou distanciar.
A chave de casa (2007) Tatiana Salem Levy conta a história de uma mulher que recebe
a chave de uma casa na cidade de Esmirna, na Turquia. O avô que saiu do país jovem para
tentar construir a vida no Brasil, deseja que a neta conheça suas raízes e também é uma
maneira de atribuir-lhe uma tarefa, retirando-a da paralisia depois da perda da mãe e em
virtude dos traumas vividos em um relacionamento abusivo.
A obra pode ser analisada a partir da autoficção, pois a autora estabelece um pacto
ambíguo com o leitor ao tornar tênue a linha entre ficção e o factual. Apesar de não utilizar a
relação onomástica, ela constrói uma narradora em primeira pessoa que não é nomeada e
passeia por muitas características biográficas da autora como a mesma origem, a idade e
profissão. Além disso, temos a escrita fragmentada, a escrita do presente que busca
reconstruir o passado, a reflexão metalinguística e o caráter "psicanalítico", pois a
personagem aborda suas dores e traumas:
Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido
expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil
por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a
Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal. (LEVY,
2007, p. 25).
372
Anais
Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de
contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não
estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem
pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando
acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical.
[Lá vem você narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente
sofrido. No nosso caso, não foi. (…) Quando você nasceu, não estava frio nem
cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz,
você nasceu de parto normal.] (LEVY, 2007, p. 24-25).
Você escondeu o quanto pôde, evitou a palavra até onde foi possível. Você
assegurou-me de que não morreria doente. De que não morreria. Você
assegurou-se disso, agarrou-se a essa certeza que criara para si, mas também
para mim. Eu acreditei, você não morreria. [...] Não importa aonde for,
faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro
e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo
quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão
sempre coladas às suas. (LEVY, 2010, p.- 14-15).
Tatiana Salem Levy, que apresentou o romance como parte de sua tese de doutorado,
não nega que quis escrever uma autoficção. Mas será que o termo pode ser empregado
também para nomear outra obra atual, que possui incidência biográfica, escrita por Jeferson
Tenório? O avesso da pele (2020) pode ser considerado uma autoficção?
No Brasil, em narrativas de autoria negra, que exploram a proximidade das
experiências do autor ou autora com suas ficções, é mais comum utilizarmos o termo
escrevivência. Na obra O avesso da pele(2020), de Jeferson Tenório, o autor também transita
entre o factual e o ficcional. No romance, acompanhamos a história de Pedro, um jovem negro
que perdeu o pai para a violência policial e tenta passar pelo luto reconstruindo a história do
progenitor.
Apesar de um dos elementos tradicionais da definição de escrevivência ser o
protagonismo feminino, Evaristo (2020) aponta alguns autores que também escreveram
obras que realizam essa prática, como Lima Barreto e Cruz e Sousa. Em O avesso da pele
(2020) podemos observar algumas dessas características, pois a narrativa possui um tempo
circular, já que Pedro precisa refazer os passos do pai, da mãe e de outros familiares para
373
Anais
Você tinha dezenove anos, mas ainda não sabia muita coisa sobre
autoestima, nem sobre se valorizar e essas coisas necessárias para manter a
sanidade, por isso você não conseguiu olhar por muito tempo nos olhos dele.
Bruno percebeu isso. Você era tudo que ele precisava. Você era uma presa
fácil. Assim, com total domínio da situação, Bruno disse, com muita
naturalidade, que não gostava de negros. Talvez ele esperasse alguma reação
sua. Mas nada aconteceu. Você permaneceu imóvel. (TENÓRIO, 2020, p. 20).
Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca
tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela
vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que
o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as
orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos
brancos [...] (TENÓRIO, 2020, p. 88).
Diferente do que ocorre com Levy, aqui não temos nenhum dado explícito que remeta
a Tenório a não ser o fato dele e Henrique serem professores. Contudo, de acordo com Luis
Henrique Oliveira, a escrevivência constrói um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) com
o leitor através da utilização de aspectos da vivência dos autores enquanto sujeitos negros
que passaram por situações de racismo, assim como os personagens, sendo que algumas
obras, como as da própria Evaristo, realizam essa aproximação de forma mais marcada
desde a capa do livro, como no romance Becos da memória (2017) em que a fotografia na
capa do livro parece apontar para o universo narrativo dos personagens que vamos
conhecer.
Escrevivência ou autoficção? Ainda que cada um dos termos tenha um lugar de
enunciação distinto e seja visível uma disputa teórica, que também é política, os termos
apontam para um mesmo diagnóstico: uma tensão cada vez maior entre os limites que
chamamos de realidade e ficção, dentro e fora do que chamamos literatura.
374
Anais
REFERÊNCIAS
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada
NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2014.
TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
375
PELOS BECOS DA
MEMÓRIA:
CONTRAPONTOS ENTRE A
MORTE DO AUTOR E A
ESCREVIVÊNCIA
Caroline SERGEL (Unioeste)1
Mariana Elizabeth Ceris Burtett GUDINO (Unioeste)2
Valdeci Batista de Melo OLIVEIRA (Unioeste)3
RESUMO
Em ensaio intitulado “A morte do autor” (1988) Roland Barthes discorre sobre o prestígio
dado ao autor a partir do momento em que a visão positivista se impôs culturalmente.
Segundo Barthes, o relevo dado à figura do autor impõe um travão ao texto literário, pois
levou a crítica à pretensão de decifrar o texto, buscando no autor a explicação e sentido nele
contidos, isto é, limitar o texto a um significado último, visto que personificar o autor
conduziria a buscar em sua biografia a maior relevância da obra. Entretanto há diversas (os)
críticas (os) e escritoras (es) que possuem uma visão contrária dessa desvalorização da
figura do autor, para elas (es) a análise da autoria pode ser vista como espaço de resistência
e representatividade, de escrita e reescrita de si, de seus semelhantes e de sua história, das
vozes oriundas das maiorias sociais minimizadas. O enfoque aqui será a autoria feminina e o
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
carolsergel@hotmail.com.
2
Mestranda no programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
mecbgudino@gmail.com.
3
Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (2007). Docente do Curso de Letras da
Unioeste/Cascavel. Docente do Mestrado Profissional em Letras (Profletras/Unioeste/Cascavel) e do Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGL/Unioeste/Cascavel), nível Mestrado e Doutorado. E-mail:
valzinha.mello@hotmail.com.
376
Anais
ABSTRACT
In the essay entitled "The Death of the Author" (1988), Roland Barthes discusses the prestige
given to the author from the moment the positivist view was culturally imposed. According
to Barthes, the relief designated to the author's figure imposes a barrier on the literary text,
for it led the critic to the pretension of deciphering the text, seeking in the author's figure the
explanation and meaning, that is, limiting the text to an ultimate meaning, since personifying
the author would lead to seeking in his biography the greatest relevance of the work.
However, there are several critics and writers who have a contrary view to this devaluation
of the author's figure, for them the analysis of authorship can be seen as a space of resistance
and representativeness, of writing and rewriting of themselves, of their fellows and their
history, of the voices coming from the social minorities . The focus here will be on female
authorship and the writing process. To ground the analysis we will use authors who research
and discuss the themes of female authorship (ZOLIN, 2012), the writing of the self (KLINGER,
2012), the escrevivência (EVARISTO, 2007, 2008, 2017), the woman in the Brazilian literary
field (DALCASTAGNÈ, 2012). Among other voices that may contribute to the analysis on the
issue of authorship and the recognition of these women's writers, whose work seek to
transcend the critical view, in an attempt to break with neutrality and resignify the treatment
given to women and the author's figure, in this specific case, the female author.
Introdução
A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa
grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo
Em seu ensaio intitulado “A morte do autor”, Roland Barthes tece considerações sobre
a supervalorização dada ao autor pela episteme positivista que permeia o ideário
modernista, ao ponto de levar parte da crítica a centralizar sua análise e considerações sobre
as obras na pessoa do autor e em sua biografia buscar atribuir sentidos ao que está escrito
em seus textos, ou seja, a explicação de sua obra resultaria da história de vida do autor. Dito
377
Anais
[...] desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir
diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não
seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua
origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES,
1988, p. 66).
378
Anais
Tenho dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como
ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da
invenção. Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As
histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o
acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que
explode a invenção. Nesse sentido venho afirmando: nada que está narrado
em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da
memória é mentira. Ali busquei escrever ficção como se estivesse
escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no fundamento da
narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e dos meus. Escrever
Becos foi perseguir uma escrevivência. (2017, n. p.).
A autora aqui se apresenta como sujeito que constrói e é construído pela narrativa,
aproximando as vivências das personagens das suas próprias e reais vivências e dos seus
semelhantes, permeando os becos e os vazios da memória com a imaginação, movimento
que suscita, em quem a lê, a curiosidade interpretativa de quanto daquilo é a personagem e
de quanto é a autora projetando na primeira as suas vivências.
A morte de autor e escrevivência são os dois conceitos teóricos selecionados neste
ensaio para analisar de maneira mais específica a obra Becos da memória de Conceição
Evaristo, assim como analisar seus contrapontos e a impossibilidade da morte do autor
quando nos referimos a movimentos de conquista do espaço autoral pelas minorias sociais
e aqui, mais especificamente, a autoria feminina.
Barthes, em seu ensaio “A morte do autor”, realiza uma crítica e análise sobre a
supervalorização da pessoa do autor observada na crítica literária após a Idade Média, num
período em que a sociedade passa a dar maior prestígio ao indivíduo, a “pessoa humana”
(BARTHES, 1988). Isto posto, a autoria passou a ser um objeto integrante da análise feita
pela crítica da época, na busca pelo sentido último e “verdadeiro” do texto e da obra. Uma
perspectiva limitadora da amplitude de significações possíveis do processo de interpretação.
O ensaísta também discorre sobre como as obras modernas buscam superar esse movimento
de associação entre o texto, a vida e história da pessoa do autor, citando autores e suas obras
como exemplos.
Isso nos leva à conclusão de que Barthes considerava a valorização do autor em
detrimento da obra um equívoco que resultava na desqualificação do texto como obra de
379
Anais
arte, pois encerrava na pessoa do autor sua explicação tornando-a utilitária, meramente
informativa.
380
Anais
Ana Cláudia Viegas (2010) em seu artigo intitulado “COM A PALAVRA, O AUTOR –
exercícios de crítica biográfica na contemporaneidade” também defende o retorno do autor
como personagem midiática ao invés do modelo reducionista onde o estudo do e sobre o
autor era usado para explicar a obra. Segundo Viegas “O próprio Barthes, ao mesmo tempo
que assinala a “morte do autor”, reconhece sua permanência “nos manuais de história
literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria
consciência dos literatos ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra.”
(VIEGAS, 2010, p. 9).
Klinger percebe que “tanto na antropologia, na filosofia, como na teoria literária, há
um movimento de retorno à problemática do sujeito, uma busca de um meio termo entre
desconstrução e hipóstase do sujeito que caracteriza muitas investigações filosóficas
contemporâneas” (2007, p. 35). Nos romances trabalhados no corpus de sua tese de
doutorado, Diana Klinger aponta que eles fazem parte de um terceiro momento da escrita de
si no contexto latino-americano que “não se apresenta sob a marca da memória da classe, do
grupo ou do clã, mas aparece como indagação de um eu que, a princípio, parece ligado ao
narcisismo midiático contemporâneo.” (p. 21). Todavia, na sequência a autora salienta que
toda contemplação de si possui elos com as relações sociais e que um relato de experiência
sempre possui, em certa medida, os traços de uma época, de uma geração e um classe. (p. 21-
22). Em sua tese, a autora sustenta a hipótese de enquadrar a escrita de si na categoria auto-
ficção que se insere no núcleo do paradoxo filosófico do século XX “entre o desejo narcisista
de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita”.
(p. 22). Para Klinger "auto-ficção é um conceito capaz de dar conta do retorno do autor
depois da crítica filosófica da noção de sujeito.” (p. 23).
Como expoentes do “retorno do autor” temos a autobiografia, a auto-ficção e a escrita
de si. Nosso foco neste trabalho é a escrita de autoria feminina, a qual, conforme aponta Lúcia
Osana Zolin (2019), contou com o feminismo crítico que se dedicou ao trabalho de resgate e
reavaliação de obras de autoria feminina, trabalho este fundamentado no
381
Anais
382
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383
Anais
Menina negra que vive em uma favela, assim como a autora viveu quando menina,
Maria-Nova quer um dia contar as histórias que ali viveu e ouviu, assim como faz Conceição
ao criá-la, bem como suas outras personagens. A ânsia por um dia poder contar as histórias
é diversas vezes lembrada durante a história do romance.
384
Anais
Ao escrever com base em sua vivência como mulher negra de periferia, Conceição
Evaristo (re)escreve e ressignifica não somente suas vivências, mas também a de seus pares.
Com essa dicção coletiva (SOUZA, 2018) materializada no processo de escrevivência, insere
no campo literário a fala do sujeito subalternizado, dando-lhe nome, cor e gênero.
Conclusão
Maria-Nova ouvia a história que Bondade contava e, por mais que quisesse
conter a emoção, não conseguia. Hora houve em que ele percebeu e se calou
um pouco. Calou-se também com um nó na garganta, pois sabido é que
Bondade vivia intensamente cada história que narrava, e Maria-Nova, cada
história que escutava. Ambos estão com o peito sangrando. Ele sente
remorsos de já ter contado tantas tristezas para Maria-Nova. Mas a menina
é do tipo que gosta de pôr o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela
que ela traz no peito. Na ferida que ela herdou da Mãe Joana, de Maria-Velha,
de Tio Totó, do louco Luisão da Serra, da avó mansa, que tinha todo o lado
direito do corpo esquecido, do bisavô que tinha visto os sinhôs venderem
Ayaba, a rainha. Maria-Nova, talvez, tivesse o banzo no peito. Saudades de
385
Anais
um tempo, de um lugar, de uma vida que ela nunca vivera. Entretanto o que
doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente,
mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os
miseráveis; em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim,
quase sempre, os vencidos. A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e
sangrava muito. (EVARISTO, 2017, p. 62-63).
Ao escrever suas histórias a autora fala por si mesma, pela sua própria experiência e
perspectiva como mulher negra da periferia. Das histórias, experiências e perspectivas e
existências da (o) negra (o) na vida social em um país que carrega mais de 350 anos de
escravização dos negros em sua história, regime que deixou cicatrizes profundas e feridas
ainda abertas na memória e na percepção de si de grande parcela da sociedade descendente
dos escravizados. Assim,
suas narrativas são concebidas a partir do corpo, um corpo presente que traz
a tona as memórias do passado e as lançam para o futuro em forma de
reescrita, a promessa/o por vir aqui é a reescrita da história do negro que
outrora fora escrita numa perspectiva ocidentalista e excludente que
ironicamente rechaçara o corpo negro de sua própria história. (LEITE;
NOLASCO, 2019, p. 3).
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução
Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 66-70.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 200 p.
386
Anais
brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-
21.
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia
Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 4. ed.
ampl. e rev. Maringá: Eduem, 2019. p. 319-330.
387
ORALIDADE EM CAZUZA:
MEMÓRIA CULTURAL
MARANHENSE
Valéria de Carvalho SANTOS (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2
RESUMO
A oralidade é uma das formas mais legítimas de transmissão de conhecimento e, por muito
tempo, foi a única forma existente para muitas civilizações. Em sociedades em que a escrita
não tem a primazia, é comum que a comunicação oral seja vista por seu caráter de
preservação de saberes ancestrais (VANSINA, 2010). Tendo isso em mente, mesmo obras
originalmente escritas, se falam sobre um determinado povo, podem carregar traços da
oralidade, em especial no que tange a suas tradições. É o que acontece com Cazuza (1938),
romance de Literatura Infantil do escritor Viriato Corrêa, natural de Pirapemas/MA, obra
que preserva tesouros da tradição oral existente no Maranhão rural do início do século XX,
ajudando a manter viva a memória de uma coletividade. Nessa perspectiva, esta pesquisa
investiga as marcas orais presentes na obra, em especial aspectos relevantes para a cultura
regional e, consequentemente, brasileira. Dado o exposto, este estudo considera como aporte
teórico pesquisas de autores voltados para o campo da oralidade, como Finnegan (2016),
Zumthor (1985), Hampaté Bâ (2010) e outros; além de estudiosos dedicados à questão da
memória, seja ela individual ou coletiva, como Le Goff (1990) e Halbwachs (1990). Além
disso, trata-se de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pelo Conselho Nacional de
388
Anais
ABSTRACT
Oral communication is one of the most legitimate forms of knowledge transmission and, for
a long time, it was the only existing form for many civilizations. In societies where writing
does not have primacy, it is common that oral communication is seen for its character of
preservation of ancestral knowledge (VANSINA, 2010). Bearing this in mind, even originally
written works, if they talk about a certain people, can carry traces of orality, especially
regarding their traditions. This is what happens with Cazuza (1938), a Children's Literature
novel by the writer Viriato Corrêa, born in Pirapemas/MA, a work that preserves treasures
of the oral tradition existing in rural Maranhão at the beginning of the 20th century, helping
to keep alive the memory of a collectivity. From this perspective, this research investigates
the oral marks present in the work, especially aspects relevant to regional and, consequently,
Brazilian culture. Given the above, this study considers as theoretical contribution
researches of authors focused on the field of orality, such as Finnegan (2016), Zumthor
(1985), Hampaté Bâ (2010) and others; besides scholars dedicated to the issue of memory,
whether individual or collective, such as Le Goff (1990) and Halbwachs (1990). Moreover,
this is a scientific initiation research supported by the The National Council for Scientific and
Technological Development (PIBIC/CNPq) and part of the project Cenas de meninices: a
produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the
children's literary production of the maranhense writer Viriato Corrêa).
Introdução
A obra infantil mais conhecida do escritor maranhense Viriato Corrêa, Cazuza (1938),
marcou época pelo caráter educativo e formador, e por alcançar com sucesso as crianças,
público até então pouco valorizado no Brasil no que diz respeito à produção de obras
literárias a ele destinadas. Acontece que o escritor, já um intelectual muito prolífico em sua
época, era conhecedor do grupo a quem se dirigia, uma vez que tinha contato frequente com
ele por meio da coluna que dirigia chamada Gazeta das Crianças, no jornal Gazeta de Notícias,
a qual fazia bastante sucesso entre os receptores mirins (PIAIA, 2014).
Por retratar a vida no interior do Maranhão sob a perspectiva do infante, o autor foi
capaz de discutir, no cerne de sua obra, temas cotidianos, mas de muita importância para
que as crianças fossem capazes de se perceber no mundo como agentes transformadores da
própria realidade. Cazuza (1938) apresenta ao leitor os problemas de um modelo
Tradicional de ensino e a lenta evolução desse sistema; critica a pobreza, a má distribuição
389
Anais
A oralidade é uma das faculdades mais básicas do ser humano e, portanto, anterior à
escrita. Mesmo existindo outras formas de expressão humana, é na oralidade que reside o
cerne da comunicação. Segundo afirma Walter Ong (1998, p. 15),
Ver a linguagem como um fenômeno oral parece ser inevitável e óbvio. Num
sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem importância capital.
Não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento está relacionado de
forma absolutamente especial ao som. Todos nós ouvimos dizer que uma
imagem vale mil palavras. No entanto, se essa afirmação é verdadeira, por
que ela é feita com palavras? Porque uma imagem vale mil palavras apenas
em certas condições especiais que comumente incluem um contexto de
palavras em que está situada a imagem. Onde quer que existam seres
humanos, eles têm uma linguagem, e sempre uma linguagem que existe
basicamente por ser falada e ouvida, no mundo sonoro.
390
Anais
391
Anais
fato, ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização
gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos” (ZUMTHOR, 1993, p. 18).
Esse tipo de oralidade, na perspectiva do autor, é característica de grupos sociais que
não fazem qualquer uso da escrita. Com o avanço da escrita, contudo, se tornou cada vez mais
rara a existência de tais agrupamentos de pessoas, uma vez que atualmente, mesmo em
locais em que predomina o analfabetismo, a escrita se faz cada vez mais presente em seu
entorno.
Os outros dois tipos de oralidade mencionados por Zumthor (1993) seguem esse
raciocínio, pois têm como ponto em comum o fato de não serem isentas de escritura, mas
“coexistirem [com ela] no seio de um grupo social” (ZUMTHOR, 1993, p. 18). Segundo afirma
o autor:
Assim, no que diz respeito à existência das oralidades mista e segunda, percebe-se
que apesar de ambas estarem em contato com a escritura, distinguem-se uma da outra na
medida em que a primeira apenas pode fazer uso da escrita para determinado fim, enquanto
a segunda é influenciada pela supremacia da chamada “cultura letrada”. Nesse sentido, a
oralidade segunda seria a mais presente nas sociedades contemporâneas, que tendo como
base um sistema criado para registro da língua oral (BRANDÃO, 1997), tende a impor sua
presença em diferentes contextos de comunicação oral, “chegando a simbolizar educação,
desenvolvimento e poder” (MARCUSCHI, 2001, p. 17).
É fato que essa visão vem sofrendo alterações ao longo do tempo, mas segundo
observa A. Hampaté Bâ (2010, p. 181), “Entre as nações modernas, onde a escrita tem
precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural,
durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura”. Nessa
mesma perspectiva, Ruth Finnegan (2016) problematiza discursos que, enquanto enaltecem
a palavra escrita, tendem a associar a existência de sociedades orais a um certo primitivismo
ou falta de qualquer sabedoria ou conhecimento. Nas palavras da autora:
392
Anais
Dado o exposto, percebe-se que a falta de compreensão acerca dos grupos orais, gera
nas sociedades a tendência de menosprezar ou mesmo rejeitar suas manifestações culturais,
consideradas por Hampaté Bâ (2010) como os “tesouros do conhecimento transmitidos pela
tradição oral, tesouros que pertencem ao patrimônio cultural de toda a humanidade”
(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 181). Reconhecer a legitimidade desses tesouros trata-se de um
avanço considerável para os estudos no campo da oralidade.
3 Oralidade em Cazuza
393
Anais
contato com toda a sua comunidade, a qual possuía diferentes saberes e costumes
provenientes da tradição oral.
Não é porque se trata de uma narração escrita, que todas as marcas orais tenham
desaparecido, uma vez que, segundo defende Brandão (1997),
Antes de tudo porque o texto literário, qualquer que seja, se presta a usos
diversos, na qualidade de um bem cultural que circula livremente entre os
usuários como qualquer outro. Assim, é natural que o texto literário – escrito
ou oral – fale daquilo que é importante para a cultura em que se inscreve e à
qual se destina. (BRANDÃO, 1997, p. 228).
Nessa perspectiva, mesmo optando por narrar de forma escrita, não é surpresa que
um escritor adote características da cultura em que está inserido, podendo até mesmo
colocá-la em destaque em suas obras; nesse processo, se torna natural que seus escritos
preservem marcas da linguagem e da tradição oral valorizada por um povo.
Uma das personagens identificadas na obra, que preserva o costume da “contação de
histórias” é chamada pelo protagonista de Vovó Candinha, não por ser avó legítima, mas por
representar o estereótipo de uma avó da roça. Segundo a descrição presente no romance,
“Devia ter seus setenta anos: rija, gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão
em pasta” (CORRÊA, 2002, p. 24). A chegada dessa figura no povoado de Pirapemas sempre
gerava alvoroço entre as crianças que, ansiosas, não viam a hora de sentarem-se ao seu redor
para ouvi-la narrar as belas histórias:
Não havia, realmente, mulher que tivesse maior prestígio para as crianças da
minha idade. Para nós, era um ser à parte, quase sobrenatural, que se não
confundia com as outras criaturas. É que ninguém no mundo contava melhor
histórias de fadas do que ela [...]
– Quantas histórias vovó traz? Perguntávamos.
– Um bandão delas, respondia a velha.
De dia não conseguíamos que ela nos contasse história nenhuma.
– Quem conta histórias de dia, dizia, negando-se, cria rabo como macaco.
Mal a noite começava a cair, a meninada caminhava para a casa de Luzia,
como se se dirigisse para um teatro. Após o jantar, vovó Candinha vinha
então sentar-se ao batente da porta que dava para o terreiro. [...] Sentávamo-
nos em derredor, caladinhos, de ouvido atento, como não fora tão atento o
nosso ouvido na escola. (CORRÊA, 2002, p. 24-25).
394
Anais
precisava ser à noite, todos sentados em círculo em torno da mulher, que se posicionava no
“batente da porta que dava para o terreiro”. Mesmo Cazuza e seus amigos frequentando a
escola, nenhuma história que fossem capazes de ler substituiria as sensações causadas pelas
narrações da velha senhora. Cazuza expressa tal experiência da seguinte maneira:
Ela começava:
– Era uma vez [...]
Acendiam-se os nossos olhos, batiam emocionados os nossos corações... Não
sei se é impressão de meninice, mas a verdade é que até hoje, não encontrei
ninguém que tivesse mais jeito para contar histórias infantis. Na sua boca, as
coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um tom de grandeza que
nos arrebatava; tudo era surpresa e maravilha que nos entrava de um jato
na compreensão e no entusiasmo.
O que sucede às crianças, no que diz respeito à forma como as narrativas são contadas
e como a “contadeira de histórias” (CORRÊA, 2002, p. 24) é enxergada por elas, se assemelha
muito ao fenômeno descrito por Zumthor (1993), que consiste no fato de que
A ação da voz é, portanto, de suma importância para que a tradição oral receba o
reconhecimento devido. O efeito exercido por ela sobre as crianças que amavam ouvir as
histórias de vovó Candinha foi tão importante que foi uma das principais memórias a
fazerem parte do relato de Cazuza, criadas na infância e guardadas até a vida adulta.
Essa, contudo, não é a única memória do menino que aponta para a tradição oral.
Muito se aproximando da fala de Zumthor (1993) acerca da autoridade dada àqueles que
cantam ou recitam textos memorizados ou improvisados, Cazuza apresenta ao leitor um
costume muito característico do Nordeste brasileiro. Trata-se do “desafio”, um duelo de
versos improvisados de que participavam os cantadores de viola.
Segundo a narração de Cazuza, por ocasião da colheita de algodão de um lavrador da
região chamado João Raimundo, ocorria uma festa anual caracterizada por muita música e
dança, mas principalmente pela participação dos “cantadores” convidados para realizarem
o desafio. Para o menino Cazuza e as pessoas daquela localidade, o duelo de versos era o
momento mais almejado da festa:
395
Anais
Fica claro, com o trecho, que além de ser uma prática admirada, era também muito
respeitada pelas pessoas da região, que faziam questão de interromper todas as outras
atividades para assistir a que se iniciaria. Nessa perspectiva, Cazuza descreve o ritual do
duelo da seguinte maneira:
396
Anais
Ainda que existam textos orais que são transmitidos ao longo das gerações da forma
mais fiel possível, caracterizando uma “tradição”, também há aqueles cujo aspecto mais
marcante é a mutabilidade. Os versos lançados pelos cantadores presentes eram
improvisados, mas continham várias características também presentes em poemas escritos.
De acordo com as palavras da pesquisadora Ruth Finnegan (2016), cujo estudo está voltado
para a existência do que ela chama de “literatura oral”:
Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo:
autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico. A sua figura inspirava
respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal
ele chegava e a desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa,
5 Corisco: raio
397
Anais
para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão.
Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver
juntos. Ninguém tomava um remédio, sem lhe perguntar que remédio devia
tomar. Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se
acreditava ter ele cursado escolas. (CORRÊA, 2002, p. 16).
Assim, mesmo não tendo “cursado escolas” e o menino tendo definido o pai como
“inculto”, o trecho deixa claro que o homem possuía conhecimentos que não deixou de
adquirir por não ter estudado. Essa afirmação não se trata, contudo, de uma negação da
validade da cultura escrita, mas de uma ressalva acerca da importância de não menosprezar
saberes adquiridos através da tradição oral, como provavelmente sucedeu ao pai do
protagonista. De forma sumária, segundo destaca Hampaté Bâ (2010, p. 183),
4 Considerações Finais
398
Anais
“cantadores” de versos improvisados foram preservados pela tradição oral e perderam força
ao longo do tempo, mas continuam a existir nas sociedades atuais por sua validade como
manifestações culturais.
Dado o exposto, acredita-se que o estudo da oralidade a partir dos exemplos
apresentados pelo romance do escritor maranhense, constitui-se como algo deveras
importante, tanto para a preservação de elementos culturais do Maranhão, como para maior
valorização de manifestações e costumes que continuam a dar primazia aos tesouros
provenientes da comunicação oral. Assim, esta pesquisa ainda possui outras possibilidades
analíticas nesse campo, sendo este artigo, portanto, apenas um dos olhares possíveis sobre
o assunto.
REFERÊNCIAS
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Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 181-218.
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1999.
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tradição oral. Belo Horizonto: FALE/UFMG, 2016. p. 61-98.
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Cortez, 2001.
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Papirus,1998.
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imprensa no início do século XX. Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio:
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África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 157-179.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura medieval”. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
399
Anais
ZUMTHOR, Paul. A Permanência da Voz. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1985.
400
CAZUZA: PASSADO,
MEMÓRIA E
RECONSTRUÇÃO
Êmile Raquel Soares de SOUSA (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2
RESUMO
Cazuza, de Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, publicado em 1938, é considerado
um romance autobiográfico clássico da literatura infantil, que retrata a trajetória de um
menino do interior do Maranhão, cujos eventos que vivenciou muito se aproximam de
situações da vida do autor. Ao realizar uma espécie de resgate de imagens do passado do
protagonista, a obra leva o leitor a mergulhar em memórias relacionadas ao povo
maranhense que viveu entre o final do século XIX e início do século XX, seus costumes,
tradições e até sua história. Nessa perspectiva, esta pesquisa tem a intenção de estudar a
obra Cazuza considerando os aspectos concernentes à reconstrução imagética do passado,
que ocorre por meio do relato do personagem principal sobre suas memórias de infância.
Parte-se da premissa que o passado é fenômeno histórico (LE GOFF, 2003) não repetível e
que sobre ele não há que falar em construção, mas em reconstrução, com todas as
implicações que a ideia de reconstrução carrega (HALBWACHS, 1990). A narrativa focaliza-
se nos episódios da vida do autor em seus estudos primários que ocorre em Pirapemas,
Coroatá e São Luís, no Maranhão. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujo aporte teórico
conta com autores como Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), e outros. Este trabalho,
401
Anais
além disso, faz parte de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pela Universidade
Estadual do Maranhão (PIBIC/UEMA) e parte do projeto Cenas de meninices: a produção
literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa.
ABSTRACT
Cazuza, by Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, published in 1938, is considered a
classic autobiographical novel of children's literature, which shows the trajectory of a boy
from the interior of Maranhão, who lived events that are very close to situations in the
author's life. By performing a kind of rescue of images from the protagonist's past, the work
leads the reader to dive into memories related to the Maranhense people who lived between
the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth century, their customs,
traditions, and even their history. In this perspective, this research intends to study the work
Cazuza considering the aspects concerning the imagetic reconstruction of the past, which
occurs through the main character's account of his childhood memories. We start from the
premise that the past is a non-repeatable historical phenomenon (LE GOFF, 2003) and that
we should not talk about it in construction, but in reconstruction, with all the implications
that the idea of reconstruction carries (HALBWACHS, 1990). The narrative focuses on
episodes from the author's life in his primary studies that take place in Pirapemas, Coroatá
and São Luís, in Maranhão. This is bibliographical research, whose theoretical basis relies on
authors such as Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), and others. Moreover, this is a
scientific initiation research supported by Universidade Estadual do Maranhão
(PIBIC/UEMA) and part of the project Cenas de meninices: a produção literária infantil do
escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the children's literary production of
the maranhense writer Viriato Corrêa).
INTRODUÇÃO
402
Anais
história do Brasil, tais como o sentimento patriótico, a educação como forma de ascensão
social, e a formação de professores, mas também o problema da pobreza, analfabetismo e
outras questões que assolavam o país.
Contudo, a obra entrega aos leitores muito mais que críticas às condições vivenciadas
pelos personagens; traz à tona, além disso, muitos aspectos que conferem riqueza cultural à
região a qual a obra pertence, como por exemplo a valorização de tradições e costumes muito
característicos desse povo. E tudo isso, por sinal, é realizado na obra recorrendo-se a um
artifício muito utilizado na literatura: a memória.
O romance de Corrêa, portanto, é visto como de caráter memorialístico por não se
limitar a falar da história de um menino em idade escolar, mas fazê-lo a partir da voz de um
narrador que tenta não só contar, como reconstruir muitos eventos da sua época de criança,
a partir de sua atual compreensão do mundo que o cerca (BOSI, 1994; HALBWACHS, 1990).
Os registros das memórias do protagonista permitem ao leitor a identificação de imagens do
passado que foram reconstruídas por ele, uma vez que quando o assunto é passado, não se
deve falar em construção, mas em reconstrução, com todas as implicações geradas por essa
concepção (HALBWACHS, 1990).
Nessa perspectiva, este artigo tem como objetivo demonstrar como ocorre o processo
de reconstrução imagética dos acontecimentos e vivências do passado, na obra Cazuza, tendo
em vista que não há repetição no presente das relações sociais do passado. Portanto,
pretende-se apresentar alguns conceitos relativos à memória e reconstrução, para em
seguida verificar como ocorrem esses processos ao longo da narrativa do escritor
maranhense.
O campo da Memória constitui-se como uma das áreas das ciências humanas mais
abrangentes no que diz respeito à pesquisa. Contudo, se é possível estabelecer um ponto de
partida para este estudo, pode-se dizer que a obra do filósofo e diplomata francês Henri
Bergson (1859-1941), Matière et Mémoire (Matéria e Memória), publicada pela primeira vez
no ano de 1896, é considerada uma das maiores referências na área. Bergson (1999)
preocupava-se especialmente em explicar a relação existente entre corpo e espírito, e nesse
processo, apresentava conceitos como de “tempo”, “memória”, “imagem”, “matéria” e outros.
403
Anais
No que diz respeito à “imagem”, o autor apresenta a noção de que o ser humano é
cercado por imagens já existentes, a saber, o mundo material, e ele próprio constitui-se como
uma delas, de modo que pode alterar os elementos que o cercam e ser afetado por eles.
Explicando isso de uma maneira mais simples, seria afirmar que a forma como esse indivíduo
percebe o mundo material a sua volta serve como um estímulo para que ele responda com
uma ação que foi antes imaginada, e só então concretizada ou não. Como conclui o filósofo,
“O que isso significa, senão que minha percepção traça precisamente no conjunto das
imagens, à maneira de uma sombra ou de um reflexo, as ações virtuais ou possíveis de meu
corpo?” (BERGSON, 1999, p. 16).
Nessa perspectiva, no que diz respeito aos processos sensoriais da memória, essa
virtualidade se faz presente no que o francês nomeia como “lembranças-imagens”, as quais,
segundo a sua concepção, não estão prontas e acabadas, mas se atualizam continuamente a
partir da percepção de estímulos exteriores ou interiores, realizada pelo sujeito. Assim, nota-
se uma relação de interdependência entre lembranças-imagens e a percepção, visto que
[...] não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados
imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes
de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças
deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que
algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória
antigas imagens. (BERGSON, 1999, p. 30).
Com essa afirmação, segundo observa Bosi (1994), começa-se a atribuir à memória
um papel de extrema importância nos processos psicológicos descritos por Bergson (1999),
uma vez que “a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo
404
Anais
tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações” (BOSI, 1994, p. 9). Levando em
consideração tal concepção, ainda nas palavras da autora:
Nessa perspectiva, é nada menos que a memória a grande responsável por mediar
esse relacionamento entre as lembranças provenientes do passado, e as percepções do
presente, além de incumbir-se de preservá-las.
Maurice Halbwachs (1990), sendo um dentre os nomes mais proeminentes nas
pesquisas de caráter memorialístico, não se furtou ao dever de tematizar esse processo tão
complexo e, talvez por isso, muito estudado, que é a rememoração. Sem deixar de lado sua
concepção mais discutida – memória coletiva –, o sociólogo francês parte da premissa de que
desde criança qualquer indivíduo está inserido em grupos sociais diversos e que, quando
cresce e se torna adulto, tende a participar deles “de maneira mais distinta e refletida da vida
e do pensamento desses grupos dos quais fazia parte, inicialmente, sem disso aperceber-se”
(HALBWACHS, 1990, p. 71). Partindo disso, o intelectual questiona-se se há como esse
sujeito não modificar a ideia que faz do seu passado, nem permitir que as informações
reunidas reajam sobre suas lembranças. Assim, conclui:
Para o autor, portanto, no que diz respeito a lembranças evocadas de um passado, não
se fala em construção, mas em reconstrução, visto que ao longo da vida e principalmente
quando amadurece, o sujeito passa a enxergar aquilo que lembra, com os olhos do presente,
405
Anais
não mais com aquela sensação inicial das experiências vividas. Por outro lado, trazendo a
noção de memória coletiva, afirma que essa reconstrução não ocorre com um sujeito isolado,
mas no momento em que ele mantém contato direto com os grupos de que participa.
Nessa perspectiva, levando em consideração as imagens-lembranças descritas por
Bergson (1999) e a própria noção de reconstrução apresentada por Halbwachs (1990),
assim como a importância dada aos processos que envolvem o resgate de memórias
individuais ou coletivas, descrito por vários autores, este estudo desenvolve uma leitura
analítica da obra Cazuza (1938), de Viriato Corrêa.
Cazuza (1938) não foi só uma das mais importantes obras de literatura infantojuvenil
maranhense, como foi o maior sucesso editorial da carreira do autor, considerada sua obra
de maior proeminência. Por se tratar de um romance de formação, a narrativa acompanha
uma parcela da vida de Cazuza, um menino em idade escolar que vive no interior do
Maranhão entre os séculos XIX e XX, e que representa uma grande parcela da população
maranhense de sua época.
Logo de cara, a obra deixa claro que se trata da narração das memórias de alguém. Em
uma espécie de prefácio, descobrimos que “um sujeito alto, quarentão, um tanto calvo”
(CORRÊA, 2011, p. 8), foi quem escreveu suas memórias e as deixou com seu vizinho,
dizendo: “São minhas memórias dos tempos de menino. O senhor, que escreve, veja se isto
presta para alguma coisa” (CORRÊA, 2011, p. 8). Assim, ao refletirmos sobre os eventos que
o texto nos apresenta a seguir, nos deparamos com um passado coletivo por meio das
lembranças individuais de alguém que viveu e decidiu narrá-las (HALBWACHS, 1990).
Segundo Le Goff (1994, p. 477) “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”
Reconstrói-se o passado não para repeti-lo no presente, mas para ter-se a
representação de uma época; uma vez que, não há repetição no presente das relações sociais
do passado. Através dos registros é possível ter acesso a um dado momento da história. De
acordo com Bosi (1979), esse movimento de rememoração não se trata apenas de trazer o
passado de volta ao presente, mas de percebê-lo relacionado a experiências e percepções
imediatas. Desse modo, não é mais uma “lembrança-pura”, como nomearia Bergson (1999),
406
Anais
mas uma “imagem-lembrança”, que só passa a existir quando evocada por um evento
presente (BOSI, 1994).
Na obra, encontramos vários exemplos de lembranças que Cazuza resgata e
reconstrói, e que demonstram a forma como o passado se encontra com o presente, causando
ainda, sensações. Uma delas é descrita quando o narrador conta como transcorreu sua
chegada a São Luís. Tudo ali, para uma criança que viveu em um povoado e uma vila, era
novidade; um relógio de brinquedo ou até mesmo uma farmácia fazia com que ele ficasse
encantado pela cidade. Essa memória da simplicidade de sua meninice, e de como as coisas
simples fascinavam as crianças, tal como as brincadeiras que marcaram sua época, fazem
com que ele conclua, associando o seu passado e o presente, o quanto as coisas mudaram
radicalmente:
Foi num dia de sol, pela manhã, que chegamos a São Luís. [...]Até hoje não
pude fixar, com exatidão, a lembrança daquele dia. Parece que ainda estou
atordoado. O mundo, acreditem, mudou inteiramente. O progresso tornou a
vida tão veloz, que as crianças da atualidade não têm mais meninice. Aos seis
anos já viram e já gozaram tudo, aos dez estão enfastiadas e velhas. No meu
tempo, qualquer coisa era novidade. [...] Eu, que vinha da roça, e que quase
nada tinha visto, estava com a alma preparada para todas as emoções.
(CORRÊA, 2011, p. 158).
407
Anais
É evidente, segundo o relato, que havia muito descaso com a educação primária da
época, a qual comportava um ensino ineficiente para aquelas crianças que precisavam
submeter-se a ele. A esse sentimento det desgosto pelas práticas pedagógicas, nota-se uma
associação às lembranças sobre o próprio ambiente em que elas eram desenvolvidas.
Segundo Cazuza,
A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha,
caiada por fora. Dentro, unicamente um grande salão, com casas de
marimbondos no teto, o chão batido, sem tijolo. [...] as paredes nuas, cor de
barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista. [...] As paredes furadas,
pareciam respiradouros de formigueiro [...] (CORRÊA, 2011, p. 30, 39).
Quando analisamos esse fragmento do texto, assim como o anterior a ele, notamos
que é muito possível essas imagens-lembrança terem sido evocadas, não por um evento
particular do presente, mas pelas próprias mudanças que se operaram no mundo ao longo
do tempo, tanto no que tange às condições de vida do personagem, como na completa
distinção existente entre os ambientes em que viveu, e os que provavelmente tem como
presente. Segundo aponta Bergson (1999, p. 84), às vezes
408
Anais
O narrador de Cazuza (1938), portanto, parece evocar essas lembranças tendo como
estímulo exterior unicamente a sua percepção do quanto o mundo, em seu presente, se
distingue do que era na sua infância, exercício de reconstrução imagética do passado
realizado por todo ser humano ao menos uma vez na vida. “O momento de recordação, é
então o de reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus de
rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta para a narração”
(RICOEUR, 2007, p. 57).
Se considerarmos esse reconhecimento segundo a concepção de Ricoeur (2007),
entendemos que um dos principais elementos percebidos pelo protagonista para evocar sua
infância foi o ambiente que o cercava, os quais avaliava sempre a partir dos lugares da
memória.
Era uma casa pequenininha, caiadinha, muito limpa, num terreiro alvo, bem
varrido, com laranjeiras plantadas em derredor. Mas a doidice da meninada
era o riacho que ficava atrás da casa. Não vi, no mundo, cantinho mais suave
e mais doce e que tanto bem me fizesse a alma. Eu ali ficava horas inteiras,
saboreando, sem saber, a poesia simples daquele pedaço amável da
natureza. (CORRÊA, 2011, p. 23).
409
Anais
Nota-se que esses e outros locais são para Cazuza lugares de pertencimento, por ter
partilhado coletivamente episódios vividos e contados por ele com outras pessoas e associá-
los a diferentes sensações. É pensando por esse ângulo que, para Halbwachs, a memória
geralmente é uma reconstrução a partir de uma interação social:
As lembranças do personagem principal são marcadas por esse traço, mesmo sendo
lembranças que pertencem ao Cazuza, ele melhor recorda do seu passado ao recorrer
memórias que foram marcadas pelo que foi vivido em comum com os outros, pois de acordo
com Halbwachs (1990), a memória individual está estritamente conectada aos contextos
sociais em que se está inserido, isto é, “Sem dúvida, reconstruímos, mas essa reconstrução
se opera segundo linhas já demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas
lembranças dos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 77).
Ao visitar o sítio, o que acontecia com Cazuza dava-se também com os outros meninos,
seduzidos pelos balanços, frutas e bichinhos daquele local, os quais provavelmente também
guardaram com carinho as lembranças associadas ao ambiente. Em dado momento, o
narrador praticamente nos pinta uma imagem-lembrança, permeada por uma aura poética,
que até estimula a imaginação do leitor e chega a aguçar os sentidos:
410
Anais
talvez por isso, geraram reconhecimento em muitos maranhenses do século XX e até dos dias
atuais. De acordo com suas palavras,
Pensei, então, em fazer um livro que inspirasse amor ao Brasil e fosse lido
com agrado pelas crianças. Levei mais de dez anos pensando nisto. Fazia e
desafiz planos. Afinal, depois de várias tentativas, resolvi fazer um livro que
saísse de dentro de mim, fosse eu mesmo...E assim, surgiu o ‘Cazuza’, que é a
minha vida de criança, com meus companheiros, as nossas brigas, as nossas
festas...Todas as figuras do livro viveram comigo – arremata o escritor
maranhense: o livro fez sucesso porque escrevi com sinceridade.” [...]
(CORRÊA, 1960, apud FERNANDES, 2009, p. 85).
Viriato decide escrever o livro Cazuza retratando as situações que ele vivenciou na
infância e as lembranças que tomam formas de imagens, guardadas em sua memória, vem à
tona. Muitas recordações existentes na obra, como quando declara que “No interior do Brasil
a hospitalidade é um dever sagrado, que se cumpre religiosamente” (CORRÊA, 2011, p.18),
contribuem para a valorização dos hábitos e costumes de uma sociedade, preservando a
identidade de um povo, através do sentimento de pertencimento. É parte do que defende Le
Goff (2013, p. 435), quando diz que “A memória é um elemento essencial do que se costuma
chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 2013, p.435).
Em síntese, verifica-se que os textos teóricos que abarcam o tema em questão dão um
embasamento essencial a essa pesquisa. No entanto, muito ainda deve ser observado na
obra, principalmente no que diz respeito aos relatos memorialísticos que nos pintam um
quadro histórico a respeito do Maranhão e do Brasil daquela época. Por outro lado, a partir
dos estudos realizados, já foi possível observar a forma como acontecem alguns dos
processos de rememoração e reconstrução imagética do passado descritos por Bergson
(1999), Halbwachs (1990), Bosi (1994), Ricoeur (2007) e outros, e como eles são
importantes para a compreensão do valor social e literário da obra que temos como objeto
de estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
411
Anais
felicidade só existisse no passado; mas também reconhece algumas delas como inaceitáveis,
visto que seu presente fez com que adotasse essa visão com maior convicção, como
percebemos na crítica que faz ao sistema educacional de sua época.
Cazuza, como todo ser humano, estava sempre envolvido em algum grupo social, a
escola, a família, os amigos com quem conviveu na sua infância. As imagens foram sendo
construídas pelas experiências de um menino no seu convívio com outros indivíduos; ele
conta sobre pessoas que tiveram alguma importância e que ficaram registrados em sua
memória apesar do tempo decorrido. As descrições memorialísticas do protagonista são
carregadas de afeições com o passado, as pessoas, os lugares, a cultura, além dos
ensinamentos recebidos que foram conservados e são transmitidos aos leitores.
Ademais, Viriato Corrêa consegue tratar de temas necessários como a educação,
compondo a narrativa pela rememoração de muitos fragmentos da sua infância, ainda que
não sejam lembranças exatas dos acontecimentos. Trata-se, portanto, de uma história
composta por alguém que se dedicou ao ato de recordar, de um narrador que através da
memória realizou a façanha de dar aos leitores, acesso ao seu mundo de outrora.
REFÊRENCIAS
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Tradução Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos – 3. Ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Editora Revista dos Tribunais LTDA: São
Paulo, 1990.
412
Anais
413
ESCRITOS URBANOS E
LITERATURA: A
MEMÓRIA FEMININA
RETRATADA EM
QUARTO DE DESPEJO
Tainá Dias de CASTRO (UFV)1
Hugo Martins GOMES (UFV)2
RESUMO
Este trabalho tem como intuito estudar as subjetividades e o contexto sociopolítico urbano
na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, para expor as fragilidades da escrita
feminina em espaços marginais, bem como a realidade sociopolítica urbana da década de
1960. Como objetivos este estudo visa identificar as condições necessárias à autora para que
esta pudesse produzir sua obra, além de analisar as violências de gênero e raciais relatadas
pela autora em seu diário. Ademais, objetivamos também apontar como a dinâmica da cidade
desemboca no contexto retratado pela autora, bem como a forma como as cidades produzem
desigualdades e moldam a política e a sociedade de quem a vivencia. Como metodologia para
este estudo foi utilizado um arcabouço teórico pautado no estudo da crítica literária
feminista, estudos de gênero e relações étnico raciais, além das teorias sobre cidades que
conversem diretamente com o contexto retratado por Carolina Maria de Jesus, identificando
fenômenos urbanos que se adequem à narrativa da autora. Assim, pretendemos realizar,
para além de uma análise sobre o perfil da mulher que narra o livro, uma análise sobre a
1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista CAPES, CPF: 344.405.328-29
(taina.castro@ufv.br)
2 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa, CPF: 161.972.317-43
(hugo.martins@ufv.br)
414
Anais
ABSTRACT
This work aimed to study the subjectivities and the urban social political context in the book
Quarto de Despejo from Carolina Maria de Jesus, to expose the weaknesses of the women’s
writing in marginal spaces, as well as the urban social political reality of the 60’s. As
objectives this study aims to identify the necessary conditions for the author so that she
could produce her work, in addition to analyzing the gender and racial violences reported by
the author in her diary. In addition we aim to show how the dynamics of the leads to the
context portrayed by the author, as well as the way the cities produce inequalities and shape
the politics and the society of those who experiences it. As a methodology for this study, a
theorical framework was used based on the feminist critical, gender studies and ethnic racial
relations, beyond the theories of the cities that talk directly with the Carolina’s context,
identifying urban phenomenal that fit the author’s narrative. Thus, we intend to carry out, in
addition to an analysis of the profile of the woman who narrates the book, an analysis of
women's writing in marginal literature and the role of urban spaces in the development of
subjectivities found in the work.
Keywords: Urban spaces; women’s writing; Carolina Maria de Jesus; Quarto de Despejo.
Introdução
A literatura por muitos anos tem sido fonte de prazer e crítica a determinados
assuntos, contextos e sociedades, refletindo realidades de diversas épocas e grupos sociais.
A escrita de Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo (2014) nos exemplifica
como a realidade da mulher negra, em um espaço urbano tido como despejo da cidade, pode
servir como exposição de um regime político que apenas privilegia uma camada social.
Por meio de descrições sobre seu dia a dia, a autora demonstra como a sua vontade
de se tornar escritora acaba por se tornar cada dia mais difícil em virtude do local onde se
encontra e por falta de recursos e meios para escrever, reafirmando o argumento de Virgínia
Woolf em Um Quarto Todo Seu (2014), a qual afirma que “uma mulher precisa ter dinheiro e
um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” (p. 12). Teóricas como Sandra
Gilbert e Susan Gubar trilharam caminhos para se repensar classificações que marginalizam
obras de escritoras (2000, p. 8). No entanto, na tentativa de construir uma tradição literária
feminina, obras foram classificadas sob um mesmo prisma e diversas obras de autoria
415
Anais
feminina foram excluídas. O que nos leva a questionar os lugares dos cânones literários
dominantes e quais ficam como subalternos (Spivak, 2014), além da própria instabilidade
presente nas categorias anlíticas do feminismo (Harding, )
Conforme percebemos pelos relatos de Jesus, além da falta de espaço físico e
condições financeiras para escrever, havia também o preconceito racial e de gênero, algo
histórico no Brasil, como bem demonstra Lélia Gonzalez (2020) ao nos apresentar dados
históricos sobre a trajetória da mulher negra em nosso país, além de sua função no mercado
de trabalho. Nos relatos descritos em seu diário, percebemos como o espaço urbano interfere
diretamente na escrita e na atuação profissional de Carolina Maria de Jesus, pois a favela,
vista como o quarto de despejo da cidade, se encontrava em um contexto de precariedade
espacial e social. O espaço urbano aqui aparece como um personagem subjetivo em suas
obras, nos demonstrando como a polarização entre centro e periferia demarcam um ponto
de importância na carreira de Carolina.
Ademais, o presente trabalho tem como objetivo destacar o contexto urbano ao qual
Carolina Maria de Jesus está inserida na obra em questão, evidenciando como os seus relatos
revelam processos de espoliação urbana (KOWARICK, 1979) e a existência da ideia de Não-
Cidade (MARICATO, 2013). Destacaremos também a cidade escassa (REZENDE DE
CARVALHO, 1995) nos relatos de Quarto de Despejo quando Carolina Maria de Jesus escreve
sobre o cotidiano da favela e a relação com a política (ou falta dela), à luz daquilo que a favela
é em seu contexto de formação e a forma como a autora a relata. Assim, objetiva-se, dessa
forma, mostrar como a cidade produz a realidade vivenciada por Carolina Maria de Jesus,
tanto socialmente quanto politicamente.
Com isso, o artigo se divide em 1) crítica literária sob ótica das violências de gênero e
raciais e suas relações com a escrita de Carolina Maria de Jesus; 2) a sua escrita vinculada
aos processos e dinâmicas da cidade e a produção do contexto urbano vinculada aos relatos
da autora e 3) as considerações sobre as análises realizadas por esse trabalho.
416
Anais
vida o sonho de ser escritora e de, por meio de sua escrita, explanar urgências da realidade
das pessoas que vivem em condições marginais.
O meu sonho era andar limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa
casa confortável, mas não é possível. eu não estou descontente com a
profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato
papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (JESUS, 2014, p. 19).
Mediante o exposto pela autora percebemos que as condições sociais e espaciais não
são propícias para que ela tenha o mínimo de assistência para cuidar de seus filhos, ou
mesmo para manter a higiene básica do dia a dia. Virginia Woolf sempre se posicionou em
relação ao lugar das mulheres na literatura, como bem demonstra em seu livro Um Teto Todo
Seu (2014). No capítulo introdutório desta obra somos apresentados ao tema principal de
uma palestra, ministrada em uma universidade britânica, bem como a alguns dados e
devaneios da autora, desta forma, o tema mulheres na ficção acaba por perpassar a diferença
nas escritas entre homens e mulheres e o tema torna-se mais amplo do que o título inicial da
palestra. Assim, a autora expressa sua opinião, sobre mulheres na ficção, nas seguintes
linhas: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser
escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema da
verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.” (WOOLF, p. 12, 2014),
no caso de Jesus, as faltas de condições econômicas, o racismo estrutural presente na
sociedade, o seu lugar de residência e o fato de ser uma mulher, impossibilitavam que ela
seguisse apenas com a carreira literária e proporcionam críticas, por parte dos próprios
moradores do Canindé, por Carolina sempre estar lendo e escrevendo.
Mediante esta nova abordagem da mulher na literatura, a representação feminina
passa a ser analisada por outra ótica, tentando, assim, descrever qual o papel da mulher na
sociedade, qual posição e acima de tudo qual seu status e identidade. Assim, começam
trabalhos que abordam uma releitura que não simplifique o conceito de identificação e que
não apague a construção da mulher enquanto ser humano pertencente a uma sociedade real
e não apenas a um universo feminino, assim “uma crítica feminista, deve rejeitar ‘a hipótese
de uma leitora mulher’ e promover em seu lugar a ‘leitora feminina real’” (de Lauretis, p. 234,
2019). “Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que
quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. eu
até gosto porque não preciso parar para conversar”. (JESUS, 2014, p. ). Carolina era criticada
417
Anais
por escrever livros na favela e sobre a favela, principalmente por parte das mulheres, as
quais eram submetidas a violências, na maioria das vezes, e não gostaria de ser expostas.
Todavia, uma das maiores críticas que recebia era por querer ser uma escritora sendo
mulher, negra e favelada.
Pela passagem acima descrita, percebemos como as denúncias feitas por Carolina,
sejam pelas condições sociais ou por violências ocorridas na favela, ela era criticada pelos
próprios moradores por expor suas vidas. Além disso, estes sempre mencionavam que Jesus
era uma “negra soberba”, pois eles consideravam que a autora se sentia superior por saber
ler e escrever.
Além dos moradores da favela, o julgamento que recaia em cima de Carolina muitas
vezes se dava por sua cor. “Agora o lixo vai falar” (GONZÁLEZ, 2020, P. 70), esta frase exibe
bem o que Carolina passava dentro das cidades e por se propor a expor as circunstâncias nas
quais se encontrava, além de expor, também, as condições que as mulheres negras possuiam
dentro da ordem espacial das favelas.
A relação que ocorre dentro da cidade de São Paulo, mais precisamente na favela do
Canindé, demonstra como se dá a ordem social, ou seja, há uma forma de dominação na qual
a cidade, as casas de alvenaria exercem forte influência nas pessoas das comunidades. Como
Spivak (2014) menciona: fica exposto que existe na sociedade os dominantes e os
subalternos. “...Os visinhos da alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus
olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem
nojo da pobresa. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres”. (JESUS, 2014, p. 49),
418
Anais
percebe-se pelo exposto da autora que a relação entre dominação da cidade se dava em
diversas instâncias, inclusive nas políticas públicas e desigualdade social, apresentando
problemas como a exclusão e a espoliação.
A obra de Carolina Maria de Jesus, para além do que foi exposto acima, são relatos “de
dentro” de quem vive um modelo de cidade que escancara desigualdades das mais diversas
formas, desde a retratação das pessoas da favela até a rotina extenuante em busca de
sobrevivência na modalidade da subsistência. A fome, miséria, frustrações, vontade de sair
da favela e o cansaço (tanto de sua parte quanto dos moradores da favela) são recorrentes
em quase todos os dias em que a autora escreve seu diário. Conforme coloca Jesus (2014)
“Hoje vários homens não foram trabalhar. Coisa de segundas-feiras. Parece que eles já estão
cançados de trabalhar.” (p. 69)
O que é escrito é reflexo de diversos processos, sendo um deles o de espoliação urbana
(KOWARICK, 1979) na medida em que a classe trabalhadora é privada do uso dos direitos
que a cidade pode oferecer. Esse tipo de expulsão acontece na forma da pouca oferta de
transportes coletivos, por especulação imobiliária que faz com que as classes
subalternizadas procurem espaços afastados desses pontos e, portanto, são capitaneadas
pelo Estado e sua (não) oferta de políticas públicas.
A metáfora de Carolina Maria de Jesus sobre como ela observa a favela, sendo o
Quarto de Despejo da cidade, é a verbalização dos processos descritos acima. Essa metáfora,
ademais, evidencia a existência de uma Não-Cidade (MARICATO, 2013), uma vez que a favela
do Canindé é uma antítese do projeto de cidade liberal e democrática que as classes
dirigentes tanto reforçaram na época (Governo Juscelino Kubitschek, por exemplo, adotava
o lema “50 anos em 5” e ao falar de desenvolvimento da nação). Sendo um terreno esquecido
pelo poder público e formado em consequência das desigualdades oriundas do capital
especulativo imobiliário, Carolina Maria de Jesus tem essa percepção em suas idas para a
cidade:
O que deixou-me preocupada foi o predio ter 82 andar. Ainda não li que São
Paulo tem predio tão elevado assim. Depois pensei: eu não saio do quarto de
despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita?” (JESUS, 2014, p.
71).
419
Anais
420
Anais
aqui da favela. Ele passa as noites aqui. O soldado é turbulento. Que bom se o tenente
retirasse este soldado da favela. Qualquer coisa pra ele, é tiro. Já feriu dois na favela.” (p.68)
A escrita de Carolina Maria de Jesus possui um tom de melancolia para com essa
cidade que é tão dura e autoritária com trabalhadores/as, mulheres, negros/as e suas
intersecções. A escritora em Quarto de Despejo deixa um legado e um registro dos processos
urbanos aqui analisados: mostra a espoliação urbana dos/as subalternizados/as para a Não-
Cidade, o que desencadeia na escassez da cidade enquanto espaço democrático e direitos.
Conclusão
A partir do que foi exposto neste trabalho, é notável que as condições retratadas em
Quarto de Despejo, tanto a questão identitária quanto a condição material de Carolina Maria
de Jesus, contribuíram para a produção da obra da forma como ela se apresenta.
Conforme observamos, a escrita de denúncia da autora se dá por diversos
atravessamentos. A condição de mulher negra, favelada, mãe solo e catadora de papel lhe
expõe a uma realidade extremamente difícil, uma vez que a subalternização de Carolina
dificulta o seu acesso a diversos serviços e também a possibilidade da mesma de poder
escrever. A violência dos mais diversos tipos e naturezas, sendo aqui relatadas as violências
do contexto urbano e as identitárias, evidenciam o quanto a escrita de Carolina Maria de
Jesus é importante para refletir sobre a favela do Canindé e as condições políticas da cidade
à época, mas também nos convidam a pensar sobre a permanência das desigualdades sociais
e espaciais gritantes relatadas em seu livro até os dias atuais.
Além disso, a questão da escrita de Carolina Maria de Jesus também demonstrou como
as violências de gênero e racial são retomadas em vários momentos por meio de seus relatos.
A todo momento a escritora se coloca como mulher negra, mãe solo e catadora de papel e
sem dissociar tais condições: ela é tudo isso o tempo todo e não sente vergonha de falar isso.
Exatamente por tais condições as violências se manifestam a todo momento, tanto pelo
descaso estrutural construído por uma sociedade como a brasileira da década de 50 (e, claro,
anterior a tal época) quanto pelas pessoas de dentro da favela. Os diários de Carolina
escancaram as condições (des)humanas, às quais sua identidade se vê situada
A dinâmica da cidade é também um fator perceptível para a construção do que foi a
obra de Carolina. Desde o processo de formação das favelas a partir de um contexto histórico
de expulsão das classes subalternizadas para espaços considerados “degradados”, até a
421
Anais
REFERÊNCIAS
BARONE, Ana Cláudia Castilho. ST 10 Carolina Maria de Jesus, uma trajetória urbana. Anais
ENANPUR, v. 16, n. 1, 2015.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática,
2014.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.
REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. Cidade escassa e violência urbana. Série estudos,
n. 91, p. 2, 1995.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução: Bia Nunes de Sousa, Glauco Mattoso. 1. ed.
São Paulo: Tordesilhas, 2014.
422
A LITERATURA E OS
“NOVOS” MEIOS DE
COTEJAR ESTILO: UM
ESTUDO ESTILOMÉTRICO
COM FANFARRAS (1882),
DE TEÓFILO DIAS
Ana Paula Nunes de SOUSA (UFSC)1
RESUMO
423
Anais
ABSTRACT
Considerações iniciais
424
Anais
hoje, graças aos esforços dos pesquisadores da computação, com novas formas de cotejar o
objeto literário.
Para maiores esclarecimentos, os estudos quantiqualitativos, também chamados de
estilometria literária ou estilística estatística (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009), trata-se
do estudo do objeto literário viabilizado por meio de ferramentas computacionais que
permitem ao pesquisador realizar, de maneira rápida e precisa, levantamento estatístico de
elementos estilísticos de escritores, épocas e/ou escolas literárias. Interessa dizer que esse
método de pesquisa não tem por fim inviabilizar o método tradicional de análise
(leitor/obra/crítica literária), pelo contrário, há uma união entre essas duas estratégias de
leitura crítica.
Se se fizer uma pesquisa na internet em busca de estudos acadêmicos feitos a partir
do método quantiqualitativo de análise, ver-se-á que os pesquisadores brasileiros, mesmo
que seja a passos lentos, têm aderido a essa estratégia de leitura crítica, como é o caso dos
trabalhos desenvolvidos pela equipe de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em
Informática, Literatura e Linguística (NuPILL) (https://nupill.ufsc.br/), e do Núcleo de
Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias (LAMID). Além disso, ver-se-á, também, a quantidade
de ferramentas e/ou programas computacionais gratuitos dispostos na rede, dentre os
quais, citam-se os softwares: Hyperbase, desenvolvido pelo professor Etienne Brunet; e
Lexico 3, uma ferramenta de estatística textual feita pela equipe YLED-CLA2T, da
Universidade de Sorbonne nouvelle-Paris3.
Feitas essas considerações, o objetivo do presente artigo é apresentar os resultados
iniciais de uma pesquisa quantiqualitativa que está sendo realizada com a obra Fanfarras
(1882), do poeta maranhense Teófilo Odorico Dias de Mesquita. Neste estudo, recorremos a
uma ferramenta computacional, o Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), que é capaz de realizar
escansão automática de poemas escritos em língua portuguesa, além de fornecer elementos
formais de construção de versos, como a quantificação dos metros, dos esquemas rítmicos
(acentos principais e secundários) e dos processos de acentuação e pontuação.
A ideia geral da pesquisa consiste em verificar se os elementos formais de construção
de verso do poeta Teófilo Dias assemelham-se às características estilísticas apontadas e
levantadas pela crítica convencional (ASSIS, 1882; MAGALHÃES, 1889; ROMERO, 1905;
CARVALHO, 1937; CARPEAUX, 1951; BANDEIRA, 1951; CANDIDO, 1960; BOSI, 2017, etc) a
respeito da produção literária vigente na época em que ele viveu, cujas correntes literárias
predominantes no período eram o Realismo poético e o Parnasianismo.
425
Anais
Para isso, além de realizarmos buscas nos manuais de história literária brasileira (os
quais, diga-se de passagem, trazem poucas informações acerca da produção literária do
maranhense), verificaremos, em periódicos dos decênios de 70 e 80 do século XIX, como se
deu a recepção crítica da obra de Teófilo Dias, precisamente de Fanfarras (1882).
426
Anais
exuberante e sedutora dos realistas, exposta em sua materialidade carnal, igual coloca eu
lírico de “A matilha”, de Teófilo Dias:
[...]
As fibrilas sutis dos lindos braços brancos,
Feitos para apertar em nervosos arrancos;
A exata correção das azuladas veias,
Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias,
— Tudo a matilha audaz perlustra, corre, aspira,
Sonda, esquadrinha, explora, e anelante respira,
Até que, finalmente, embriagada, louca,
Vai encontrar a presa, — o gozo — em tua boca. (DIAS, 1882, p. 03).
A fortuna crítica de Teófilo Dias (ASSIS, 1882; ROMERO, 1905; CANDIDO, 1960)
considera o poema “A matilha” como uma das melhores poesias do maranhense. Segundo
informam, nota-se, nesse poema, duas faces do poeta nascido em Caxias: o lirismo e o
erotismo.
O crítico Antonio Candido (1960), em Teófilo Dias: poesias escolhidas, ressalta que o
literato caxiense pode ser descrito da seguinte forma: “Romântico pelos começos, aspirando
logo a uma renovação, que pensa encontrar, primeiro, na poesia social, depois, também no
‘realismo’ e na correção da forma, situa-se entre os últimos românticos pelos livros iniciais,
entre os parnasianos pelo último” (CANDIDO, 1960. p. 14).
Com Fanfarras, que fora publicada em 1882, Teófilo Dias teria inaugurado o
Parnasianismo no Brasil, conforme apontam Manuel Bandeira (1951), Alfredo Bosi (2017) e
o próprio Antonio Candido (1960). No dizer de Candido:
427
Anais
similaridade de estilo entre Teófilo e os poetas Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo
Bilac.
Para Romero (1905), o literato maranhense seria o quarto integrante desse terceto, o
que ele denomina áurea quadriga parnasiana. Vale dizer que mesmo que Teófilo Dias não
conste na grande maioria dos manuais de história literária brasileira, ele teve uma boa
recepção na imprensa periódica do seu tempo, basta ver o que escreveram os poetas e
críticos Machado de Assis (1882) e Aluísio Azevedo (1882) (que assinava sob o pseudônimo
Eloy, O Herói), em periódicos como O Mequetrefe (RJ), Gazetinha (RJ) e a Tribuna Liberal (RJ).
Igual aos seus companheiros, Valentim Magalhães, em 08 de abril de 1889, publicou,
na revista Tribuna Liberal, uma crítica muito pertinente acerca da vida e obra do
maranhense, de quem guardava grande e sincera admiração. Conforme escreveu Magalhães
(1889), Teófilo Dias foi o responsável pela publicação da primeira obra com traços e
características da escola literária parnasiana, em suas palavras:
Magalhães (1889) fala de suas impressões para com as duas partes que compõem
Fanfarras (1882) – “Flores funestas” e “Revoltas”. A primeira delas é considerada pelo poeta
como sendo de uma perfeição extrema, no seu dizer: “em todas as composições da primeira
parte intitulada Flores funestas, reconhece-se a influência poderosa dos poetas franceses
então mais modernos – a começar por Baudelaire, de quem até o título imitou”
(MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01). Para além do título, essa influência é percebida
mais ainda pela quantidade de traduções de poemas de Charles Baudelaire e Lecomte de
Lisle.
Diferente de “Flores funestas”, “Revoltas”, ao ver de Valentim Magalhães (1889), não
possui a mesma qualidade, não tanto do ponto de vista formal, mas pelo conteúdo. Para o
poeta e crítico, “na Revolta, embora seja o mesmo apuro artístico, a espontaneidade é menor
e muito mais limitada a originalidade” (MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01).
428
Anais
Esse juízo crítico acerca de “Revoltas” não se restringe somente a Valentim Magalhães
(1889), Machado de Assis (1882) também possui a mesma impressão. Ele informa que
“Teófilo Dias nos versos dessa segunda parte, é menos espontâneo, é menos ele mesmo. Sabe
compor o verso, e dispõe de um vocabulário viril, apropriado ao tema, mas o tema, que é o
de suas convicções políticas, não parece ser o de sua índole poética” (ASSIS, Gazetinha, 1882,
p. 03).
Fonte: Aoidos.
429
Anais
Fonte: Aoidos
Tanto o poema “O sono” quanto a maioria dos outros que compõem Fanfarras (1882)
são poemas formados por versos alexandrinos. O segundo metro mais usado por Teófilo Dias
é o verso formado por dez sílabas poéticas, isto é, o decassílabo. Vez por outra ele faz uso da
sextilha e redondilha maior (versos formados por sete sílabas poéticas), mas não se compara
aos demais metros utilizados no corpus de Fanfarras (1882). Vide a figura 03:
430
Anais
Fonte: Aoidos
Ainda no que toca aos processos de construções de verso dos parnasianos, Manuel
Bandeira (1951), em Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana, diz que esses poetas
jamais eram infiéis à sinalefa e à sinérese. Segundo ressaltou o poeta e crítico, “foi esse
processo que deu à poesia parnasiana aquele caráter escultural, censurado por Lucio de
Mendonça nos versos dos Sonetos e Poemas, de Alberto de Oliveira” (BANDEIRA, 1951, p.
19). Logo, tendo isso em vista, observe-se o recorte feito no corpus acerca dos processos de
acentuação e pontuação:
Fonte: Aoidos
431
Anais
Considerações finais
Referências
ASSIS, Machado de. Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol.
III, 1994.
ASSIS, Machado. Bibliografia. Gazetinha (RJ). Rio de Janeiro, 17 Jun. 1882, ed. 136. Disponível
em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=706850&pesq=%22Te%C3%B3fil
o%20Dias%22&pagfis=865. Acessado em: 09/07/2022.
AZEVEDO, Sânzio de. Roteiro da poesia brasileira: parnasianismo. São Paulo: Global, 2006.
BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. 3 edição. Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2017.
432
Anais
CANDIDO, Antonio. Teófilo Dias: poesias escolhidas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1960.
CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde / Serviço de Documentação, 1951.
CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 6ª ed. Rio de Janeiro: F
BRIGUIE T & C , Editores, 1937.
ELOY, O HERÓI. Semaninha. Gazetinha (RJ). Rio de Janeiro, ano 1, 23 abr. 1882, ed. 91.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=706850&pesq=%22Te%C3%B3fil
o%20Dias%22&pagfis=679. Acessado em: 09/07/2022.
MAGALHÃES, Valentim. Escritores e escritos: Teófilo Dias. Tribuna Liberal (RJ). Rio de
Janeiro, 8 abril 1889, ed. 126, p. 01-02. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709808&pesq=%22Te%C3%B3fil
o%20Dias%22&pasta=ano%20188&hf=memoria.bn.br&pagfis=512. Acessado em
19/07/2022.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário. 2 ed.
Petrópoli7s-RJ: Vozes, 2009.
MORAIS NETO, Prudente de; OLIVEIRA, Alberto de. A Manhã, [s. l.], v. II, n. 8, p. 122-123, 8
mar. 1942.
RAMOS, Péricles Eugênio da. Introdução ao Parnasianismo brasileiro. São Paulo: Revista da
Universidade de São Paulo, 1959.
433
MEMÓRIA E CIDADE:
UMA LEITURA DA
OBRA O CHAMADO
DA NOITE, DE
CARLOS RIBEIRO
Vanessa Mayara Cavalcante OLIVEIRA (UEMA) 1
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2
RESUMO
434
Anais
ABSTRACT
The work aims to analyze the process of remembrance in the work O chamado da noite
(1997) by contemporary Bahian poet Carlos Ribeiro. The work refers to old spaces in the
city of Salvador - BA, resignified by the narrator's gaze. The work was based on the vision of
Halhwachs (2006), Bosi (2003) and Asmann (2011), Ferrara (1998), Pesavento (2003),
Ascher (1998), Zukin (2018) and Soja (1993). It is relevant to think about the work from the
figure of the flâneur, with his impressions focused on the spaces that are markers of
references (streets, neighborhoods, squares, among others) so that, through his optics, it is
also perceptible the social problems of the city, as well as individual and collective memories.
Faced with the fragmented reality of modern times, the entangling is problematic and the
references to being in the town end up dispersing, however, literature can protect spaces
considered valuable by preserving the memory of the place. The narrator of O chamado da
noite (1997) has a relationship of attachment to the city streets and other city elements,
which makes him see it with the eyes of yesterday and resignify it from his present moment,
seeking to value the urban heritage through his impressions and sensations.
Keywords: Memory. Man. City. O chamado da noite.
Introdução
435
Anais
436
Anais
fica claro que muitas lembranças tendem a ceder espaço a novas, em um processo de
revezamento entre lembrança e esquecimento. Como afirma Bosi (2004, p. 24): “As coisas
aparecem com menos nitidez dada a rapidez e descontinuidade das relações vividas. Desse
tempo vazio a atenção foge como ave assustada”. No entanto, as lembranças da infância
tendem a resistir na memória e, no caso do narrador, elas surgem revestidas de detalhes
vividos na cidade.
O protagonista é um homem de meia-idade que se descreve como alguém que vive
uma fase em que a sua memória começa a falhar. Esse é o momento em que ele passa próximo
ao Teatro Castro Alves e lembra-se dos momentos da infância em que assistia ali os
espetáculos. Halbwachs (2003, p. 53) diz que “a condição necessária para voltarmos a pensar
em algo aparentemente é uma sequência de percepções pelas quais só podemos passar de
novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas [...]”.
É exatamente isso que o narrador faz: como um flanêur, deambula pelas ruas, bairros,
esquinas de sua cidade rememorando acontecimentos vividos, por conseguinte, dando
visibilidade à memória do lugar. Para Benjamin (1994, p. 35), a rua se torna a moradia para
o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre
suas quatro paredes BENJAMIN, 1994, p.35).
Para o flâneur, a multidão é o seu refúgio, mas para o narrador da obra O chamado da
noite as ruas da cidade são moradas apenas se for para apreciar a paisagem com os olhos de
ontem, especialmente à noite, que para ele é poesia
Na contemporaneidade é quase impossível viver sem mudanças, sem as rupturas que
a vida oferece. Sobre isso, no trabalho sobre a poesia de Ferreira Gullar e H. Dobal, Santos
(2015, p. 89) assevera: “O sujeito [...] vê-se impotente diante do novo mundo ampliado,
tornando-se inviável evitar que algo transborde. (GULLAR, 2015. p.89). O homem moderno
vê-se, muitas vezes, impotente diante das transformações e, desacomodado, busca as
referências nas imagens de outrora. Assim, no detalhamento do narrador de O chamado da
noite percebe-se que o seu vínculo com os espaços da cidade é latente gerando o seu
enraizamento nos espaços da urbe.
A vila de Itapuã é personificada como uma senhora de muita beleza. Ao rememora-la,
imprime sentimentos e lembranças prazerosas que comporta sensações sinestésicas e de
liberdade: “Itapuã é um sentimento e uma lembrança; Itapuã é dona Francisquinha, uma
senhora muito bonita e bela [...]” (RIBEIRO, 1997, p.82). Que é o bairro mais famosa da
capital, ele é uma vila antiga de pescadores, com estilo boêmio desde os anos 60. E muito
437
Anais
conhecido por sua beleza por ser próximo ao mar, pelo contato com a natureza e pela sua
cultura, sendo um local de patrimônio da cidade.
As lembranças prazerosas se misturam com tristeza, ante as transformações pelas
quais passam os lugares de memória.
Com as rápidas transformações urbanas, o homem passa adotar costumes
compatíveis com a realidade do seu tempo, sendo a pressa uma das atitudes incorporadas,
mas o narrador da obra, não. Ele não aplaude, não acompanha as mudanças. Vive num estado
de crise existencial da modernidade e sofre com os resultados das transformações.
Com as mudanças, surge no final do século XIX uma nova figura de homem na cidade:
o flâneur, passeador que observa a cidade com entusiasmo e sente-se vivo no meio da
multidão. Como descreve Benjamin, sobre o flâneur:
438
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O flâneur do protagonista é ativado desde a infância, quando pegava sua bicicleta e andava
pelas ruas da cidade contemplando os detalhes. O narrador-protagonista conta que desde
criança sempre procurou algo para fazer na cidade, especialmente à noite, o que justifica o
título da obra: “eu amo também a cidade e a noite. Existe uma poesia estranha nessas
avenidas [...] ”. (p.56). É esse sentimento de enraizamento pelo passado da cidade, a
qualidade de sua vida.
Acerca dos espaços pós-modernos, Soja (1993, p. 81) esclarece que os mesmos
acabam direcionando as ações do indivíduo: “[...] É uma estratégia expressamente
geopolítica, na qual as questões espaciais são a preocupação organizadora fundamental, pois
o poder disciplinador atua primordialmente através da organização, do encerramento e do
controle dos indivíduos no espaço [...]”. Com isso, fica claro que a rapidez dos tempos
modernos, somado à hiper valorização do novo, acabam invisibilizando os espaços de
memória. O narrador de O chamado da noite, atento a essas questões, deposita suas
impressões e sentimentos sobre o corpo da cidade, suscitando o olhar a espaços de
enraizamento que comportam a memória do lugar.
Considerações finais
A obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro é marcada pela figura do flâneur e por
um processo de rememoração dos espaços marcadores de referências, especialmente os
relacionados com as vivências de infância do narrador. A narrativa vai desfiando paisagens
e imagens pretéritas da cidade e do eu que se pronuncia, a partir de um presente de rápidas
mutabilidades. Dessa maneira, vemos a importância da rememoração para a preservação da
memória da cidade, bem como para a memória particular do protagonista na sua relação
com a cidade.
Sobre a relação do homem com a cidade, percebemos que a obra é marcada pelo
comportamento flâneur do narrador, desencadeado pelo processo de modernização urbana.
O mesmo deambula pelas ruas e tem a alma apaixonada pelos detalhes da urbe, e procura
dar visibilidade à memória citadina.
A fisionomia da cidade, sob a ótica do narrador, faz vir à tona não somente as rasuras
do passado, mas também os problemas sociais e as lembranças particulares e coletivas do
sujeito que se pronuncia. A condição desagregadora do homem contemporâneo, desperta no
narrador o desejo de enraizamento nos espaços de pertencimento: Ruas, bairros,
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REFERÊNCIAS
441
Anais
ABREU, Mauricio A. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III nº 4, (p.01-
22), jan./jun.1998.
ECLEA, Bosi. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano - Paris, Rio
de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002.
442
AUTOFICÇÃO: A
ESCRITA DE SI EM
DIVÓRCIO, DE
RICARDO LÍSIAS
Thauana Mara de Carvalho SILVA (UFT)1
Rejane de Souza FERREIRA (UFT)2
RESUMO
2 Doutora de Letras e Linguística pela UFG. Docente do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Letras UFT – Porto Nacional. E-mail: rejaneferreira@mail.uft.edu.br.
443
Anais
This work aims to discuss fiction and non-fiction in “Divórcio” (2013), by the Brazilian writer
Ricardo Lísias. The novel is reported as a fiction genre and it gathers many biographical
coincidences between the writer and the character. The book deals with the divorce of a
writer called Ricardo Lísias who, upon finding the diary of his wife, a famous journalist, has
found out that she cheated on him with one of the judges of Cannes festival during the
coverage of the event in 2011. Divórcio is a novel that shows some of the main tendencies of
contemporary literature which are based on convergence of identities among the author and
character and the fictional reconstruction of memories. Thus, considering controversial
issues such as adultery and questions of Journalism ethics, it is investigated here the
autofictional genre of the book and the complexity in delimitating fiction and non-fiction into
the text. This work analysed studies of Serge Doubrovsky (1988), who coined the term
autofiction; the thoughts on autofiction, by Ana Fraedrich Martins (2014); the considerations
by Luciene Azevedo (2013) on Lísias´ book; the postulates on autofiction and writing the self,
by Diana Klinger (2006), among others.
Introdução
444
Anais
445
Anais
446
Anais
Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da
minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas
pernas perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei
contra mim mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi
por fim ler o diário da primeira à última linha de uma só vez. (LÍSIAS, 2013,
p. 25).
Após descobrir a traição por meio dos textos contidos no diário, o narrador-
personagem inicia seu relato sobre as suas angústias. Decepcionado, faz uma cópia do diário,
sai de casa e muda-se para o cafofo, local usado como depósito de móveis e livros após seu
casamento. Ricardo conta sobre suas noites sem dormir, sua constante sensação de
sufocamento e sobre se sentir em “carne viva”. “[...] Minha cabeça só pensava no diário da
minha ex-mulher e mesmo as necessidades básicas, como comer e ir ao banheiro, não me
interessavam.” (LÍSIAS, 2013, p. 52).
A partir daí a narrativa é construída por meio de flashbacks, anotações, fragmentos
do diário da ex-esposa, fotos da infância do autor e de suas próprias falas. Na tentativa de
recobrar a consciência e voltar à rotina, Ricardo recorre a caminhadas noturnas, o que,
posteriormente, acaba tornando-se um hábito e evolui para a prática de corrida. “Depois,
comecei a correr. [...] A corrida nos deixa empolgados”. (LÍSIAS, 2013, p.126). Em razão desse
fato, os capítulos do livro são intitulados por quilômetros, em um total de quinze, distância
equivalente à percorrida pelo narrador-personagem ao final do livro, quando decide
participar da Corrida de São Silvestre.
Divórcio é uma narrativa não linear. Os fatos se sobrepõem ao longo da obra e a sua
estrutura é desordenada. Em meio a fotografias e relatos sobre seus ressentimentos, o
narrador faz revelações de detalhes sórdidos da relação, fala das suas lembranças da infância
e expõe suas memórias de viagens. Essa ausência de linearidade é uma das características
do gênero autoficcional. Segundo Martins (2014, p.24) “A escrita autoficcional parte do
fragmento, não exige início-meio-fim nem linearidade do discurso; o autor tem a liberdade
para escrever, criar e recriar sobre um episódio ou uma experiência de sua vida, fazendo,
assim, um pequeno recorte no tempo vivido.” Além disso, o romance imprime um ritmo
acelerado das revelações feitas pelo protagonista, refletindo, dessa forma, seu estado de
angústia e nervosismo durante as cenas relatadas.
447
Anais
Tenho trinta e seis anos e uma renda, há algum tempo, que me permite
figurar entre os privilegiados. Mesmo assim, nunca fiz nenhuma aplicação
financeira. Não guardo dinheiro. Compro livros com tudo o que me sobra.
Jamais quis ter um carro ou me preocupei em comprar uma casa. Já gostei de
algumas mulheres e ainda vou encontrar um grande amor para ter filhos e
passar o resto da vida. [...] Quanto aos objetos, como com tudo, sempre fui
muito constante: gosto apenas de livros. Tenho doze mil e pretendo aos
sessenta anos ter multiplicado meu acervo por dez. (LÍSIAS, 2013, p. 122).
448
Anais
dificuldade com as lembranças antigas. A questão é recordar o que vivi nos últimos anos”
(Lísias, 2013, p.133-134). Entretanto, Ricardo não consegue encontrar nenhum registro do
período em que ele manteve o relacionamento com sua ex-esposa, todos os acontecimentos
que se sucederam nesse período surgem de forma desordenada e obscura em sua mente.
Desse modo, a partir do capítulo/quilômetro oito, o narrador-personagem passa a
inserir fotografias suas de quando era criança e também de seus familiares. Em uma das
imagens, aparece o escritor Ricardo Lísias quando era bebê. Na foto, o menino está sem
roupa ao lado de um homem adulto. A narrativa tem continuidade sem qualquer relação com
essa imagem, no entanto, em uma passagem próxima, Ricardo faz uma nova referência ao
fato de seu corpo ainda estar sem pele. Isso pode ser entendido como uma tentativa de o
autor relatar uma experiência simbólica de morte e renascimento, relacionando a troca de
sua pele de quando nasceu à sua nova pele adquirida após o trauma.
Sem sucesso em sua busca por registros de sua história recente, o narrador-
personagem progride com a narrativa e com a apresentação de mais algumas imagens suas
quando criança. A maioria delas, contudo, sem uma possibilidade clara de associação com o
que está sendo narrado. Ricardo instiga a curiosidade do leitor com os registros biográficos
apresentados, porém, em virtude de sua instabilidade emocional, torna complexa a tarefa de
analisar a veracidade e transparência do relato. Como em um jogo de quebra-cabeças, o autor
apresenta as peças por meio de textos e imagens, tornando impossível atribuir a um único
sujeito (real ou ficcional) os fatos descritos.
Há, no livro de Lísias, uma série de outros elementos que atravessam o leitor quanto
à verdade dos acontecimentos, como no trecho em que o narrador-personagem afirma: “Não
aconteceu nada: ela não escreveu esse diário e não cobriu o Festival de Cannes de 2011 para
um jornal. É só um conto.” (LÍSIAS, 2013, p.15) e outro trecho afirma o extremo oposto:
“Acabo de achar a folha com as frases autobiográficas que redigi naquele dia. [...]
ACONTECEU NÃO É FICÇÃO” (LÍSIAS, 2013, p.16).
Nesse sentido, a ambivalência proposta pelo autor cria uma contradição entre
verdade e imaginação, sendo impossível definir a veracidade dos fatos apresentados pelo
sujeito. O eu fragmentado e híbrido provoca essa ambiguidade característica do jogo
autoficcional. Acerca dos limites existentes entre a ficção e a autobiografia que marcam o
romance, Martins (2014) afirma que “[...] em Divórcio, temos um caso extremo dos efeitos
práticos e reais desse jogo com a realidade.” (MARTINS, 2014, p.135). A noção entre o que é
449
Anais
ou não real se dilui pela forma contraditória com a qual o narrador-personagem expõe os
fatos.
Klinger (2006), em sua tese, discorre sobre a linha que separa a autoficção dos demais
gêneros. Segundo a autora, um traço característico dessa categoria de texto é o grau de
ficcionalidade apresentado. A autoficção, de acordo com ela, “[...] mistura verossimilhança
com inverossimilhança e assim suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto
da sua verossimilhança” (KLINGER, 2006, p. 47-48). Nessa perspectiva, ela formula um
conceito para o gênero.
É nesse interstício que Klinger situa autoficção e enfatiza o autor como personagem
que se constrói por meio do seu discurso. Em Divórcio, Lísias faz uso de si para criar seu
personagem, assim, lança mão da indecibilidade entre identidade e alteridade. Através desse
recurso, tece críticas e reflexões sobre o mote e os demais personagens. “Se minha ex-mulher
não queria inspirar uma personagem, não deveria ter brincado com a minha vida. No estágio
atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista.” (LÍSIAS,
2012, p. 189-190). O escritor joga a todo instante com a noção de verdade e falsidade dos
fatos.
Na trama, o protagonista revela que foi ameaçado de processo judicial pela ex-esposa,
em razão disso, teve de se explicar: “Não estou tratando de uma pessoa em particular. Minha
ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013, p. 128). Apesar de suas
colocações, foi necessária uma justificativa à notificação extrajudicial em que ele afirma ser
ridículo o fato do romance ser levado a julgamento.
O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar,
Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama ficcional
elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente criado e
diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para justamente causar
uma separação. [...] Enfim, Excelência, o senhor sabe que a literatura recria
outra realidade para que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era
justamente reparar um trauma: como achei que estava dentro de um
450
Anais
romance ou de um conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter
certeza de que estou aqui do lado de fora, Excelência. (LÍSIAS, 2013, p. 217-
218).
Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”. [...] A
literatura não reproduz a realidade, mas cria outra realidade a partir da
utilização da linguagem. Sabemos todos que a linguagem é limitada e muito
diferente da realidade, as palavras não são as coisas. Portanto, não pode
haver realidade de nenhuma ordem na ficção. O que parece ocorrer é que,
com as novas mídias, a figura do autor passou a aparecer mais e, então, a
leitura dos textos dos autores começa a ser calcada nessa representação de
sua vida pelas diferentes mídias. Ainda que o resultado sociológico possa ser
interessante, uma leitura do tipo “há experiência pessoal aqui” é redutora do
ponto de vista artístico. Estou tentando escrever, na minha ficção, textos que
induzam as pessoas a verem como elas podem se enganar quando vão atrás
da “realidade”. (MARTINS, 2014, p. 239).
Entretanto, sabe-se que o livro tem como ponto de partida uma experiência real e
traumática do próprio escritor. Bastante midiático e ativo em redes sociais, o autor anunciou
seu processo de divórcio pelo Facebook. Logo em seguida, ele publica um conto intitulado
“Meus três Marcelos”. De acordo com Azevedo (2013), exatos três meses antes do anúncio do
divórcio é possível ler em um jornal semestral idealizado pelo próprio Lísias, uma nota
editorial em que ele comemora seus três meses de casamento. Para a pesquisadora, a
publicação do conto logo na sequência do anúncio evidencia a clara possibilidade de
associação entre o Ricardo do texto e próprio autor. Em sua acepção,
451
Anais
desafiadora – tem a última palavra.” Por sua vez, esse elemento paratextual introduz ao leitor
um aspecto realístico da trama.
Os esforços em narrar à vida parece ser um recurso recorrente nas produções de
Lísias. Antes da publicação do romance, o autor publica outros contos, são eles: Divórcio e A
corrida, respectivamente, em novembro de 2011 e fevereiro de 2012 pela revista Piauí. Junto
a eles, Meus três Marcelos, publicado em 2011 pelo selo Dobra Editorial. Azevedo (2013)
considera os três contos uma “espécie de trilogia” em que o escritor confunde,
inquestionavelmente, os limites entre realidade e ficção.
Ademais, outro ponto bastante discutido na obra é o questionamento da ética
jornalística. O narrador-personagem evidencia em Divórcio a sua “insatisfação” com os
jornalistas. Enfatizando a profissão da sua ex-esposa, jornalista de um veículo importante da
cidade de São Paulo, o protagonista tece críticas e faz reflexões sobre a prática dos
profissionais. “O sistema em que as pessoas fazem denúncias sem precisar assumi-las é
dominante na imprensa brasileira”. (LÍSIAS, 2013, p.196).
De acordo com o conteúdo do diário apresentado por Ricardo, sua ex-esposa relata a
relação extraconjugal que manteve com um cineasta, que resultou em informações
privilegiadas na cobertura do Festival de Cinema de Cannes. Ao que parece, para o autor,
esse motivo é o principal objetivo do romance: uma crítica à falta de ética no
jornalismo.Nessa perspectiva, é possível inferir que o artifício da autoficção contribui para
sustentar o projeto de literatura política do autor, já que por meio dela ele consegue “criar”
o seu enredo e fazer suas considerações sobre o jornalismo embasadas pelo seu ponto de
vista pessoal. Segundo o escritor Lísias em entrevista à Bruno Soares dos Santos, “Divórcio
não é um romance sobre adultério, é um romance sobre adultério cometido durante o
festival de Cannes, com um dos jurados do festival, para que uma jornalista soubesse quem
iria ganhar o festival antes dos outros jornalistas.” (2017, p. 55). Todavia, não é válido
desconsiderar a realidade em partes reproduzidas na obra em prol de uma situação
unicamente ficcional. Em um artigo não ficcional, intitulado “Eu sou normal” o escritor diz
que
452
Anais
Lísias utiliza, desse modo, os mecanismos da autoficção para criar uma estratégia
narrativa que confunde o leitor, ao unir biografemas e ficção. O autor parte de uma
experiência pessoal, mas a verdade ali representada é distorcida. Sendo assim, observa-se
que não é possível separar a realidade da invenção na obra, atendendo assim de forma
incontestável ao gênero autoficcional.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Luciene. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY,
Giovanna; VIDAL, Paloma (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura
brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
453
Anais
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: _______. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 1. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DOUBROVSKY, Serge. O último eu. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios
sobre autoficção. Tradução: Jovita Maria Gerheim, Maria Inês Guedes. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
454
A CIDADE DE SÃO LUÍS E OS
PERCURSOS MEMORIALÍSTICOS
EM QUATROCENTONA CÓDIGO
DE POSTURAS & IMPOSTURAS
LÍRICAS DA CIDADE DE SÃO LUÍS
DO MARANHÃO (2021), DE LUÍS
AUGUSTO CASSAS
Ana Caroline Nascimento OLIVEIRA (UEMA)1
Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2
RESUMO
Este trabalho objetiva analisar a relação entre homem e cidade na obra Quatrocentona:
código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) de Luís
Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA. A cidade de São Luís, fundada em
455
Anais
1612, é conhecida como cidade dos azulejos, os quais fazem parte da antiga decoração das
fachadas dos casarões, e por seu calçamento colonial, igrejas seculares, monumentos, fontes,
ruas, becos, dentre outros, concentrados no centro histórico da capital, cuja paisagem é
ressignificada pelo eu lírico da obra Quatrocentona. A paisagem arquitetônica da cidade está
cada vez mais se alterando em decorrência da vida moderna, o que tem influenciado a
relação que o homem estabelece com ela, fato que nos motivou a investigar a obra em
questão na perspectiva memorialística. Nesse sentido, vale os seguintes questionamentos:
como os fatos urbanos do acervo patrimonial de São Luís são ressignificados pelas
impressões do eu lírico? de que modo o eu lírico dá relevância à memória da cidade e também
aos costumes e tradições do lugar? Como se dá a relação do eu lírico com a cidade? A pesquisa
está fundamentada no pensamento de Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes
(2008) e Santos (2015).
ABSTRACT
This work aims to analyze the relationship between man and city in the work Quatrocentona:
código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) by Luís
Augusto Cassas, a poet born in the city of São Luís - MA. The city of São Luís, founded in 1612,
is known as the city of azulejos, which are part of the old decoration of the facades of the
mansions and for its colonial paving, secular churches, monuments, fountains, streets, alleys,
among others, concentrated in the historic center of the capital, whose landscape is re-
signified by the lyrical self of the work Quatrocentona. The city's architectural landscape is
increasingly changing due to modern life, which has influenced the relationship that man
establishes with it, a fact that motivated us to investigate the work in question from a
memorialist perspective. In this sense, the following questions are worth asking: how are the
urban facts of the São Luís heritage collection re-signified by the impressions of the lyrical
self? How does the lyrical self-give relevance to the memory of the city and the customs and
traditions of the place? How does the lyrical self relate to the city? The research is based on
the thinking of Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes (2008), and Santos
(2015).
Introdução
Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre homem e cidade, a partir da
memória na obra Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São
Luís do Maranhão (2021), de Luís Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA.
O estudo integra a pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq (2021-2022) vinculado à
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
Cassas estreou na literatura com a publicação de República dos becos em 1981, sendo,
de imediato, aclamado pela crítica local. O poeta já fazia parte do cenário cultural
456
Anais
3 Ao longo do artigo, adotaremos apenas a palavra Quatrocentona para nos referir ao título do livro, objeto
de estudo.
457
Anais
O centro histórico, da cidade de São Luís foi tombada pela UNESCO em 1997, sendo
considerada Patrimônio Cultural Mundial, por sua importância cultural e arquitetônica para
a humanidade. Em Quatrocentona o eu lírico estabelece uma relação de familiaridade com os
lugares que guardam a memória da cidade de São Luís: ruas, igrejas seculares, casarões,
becos, bondes, dentre outros. São espaços públicos, comuns aos habitantes do lugar, que
cedem lugar à memória coletiva, de modo que a memória individual do eu-poético ajuda na
consolidação dessa memória do grupo.
Abreu (1998) diz que a memória da cidade envolve o estoque de lembranças
eternizado na paisagem e nos registros de um determinado lugar, lembranças essas que são
458
Anais
pelo sinal
do cuscuz com coco
e do peixe-serra
livrai do mal
o povo
da minha terra
minha cidade
minha ruína
minha catarina mina
meu licor de tangerina
minha mina
meu buquê de hiroxima
[...] (CASSAS,2021, p. 21).
Servindo-se das lembranças do eu-lírico, a cidade acaba por se tornar o alicerce para
a memória poética, relacionada a práticas sócios-culturais da região. Em Quatrocentona
percebe-se uma sensibilidade do sujeito lírico para com a cidade, expressando forte ligação
com as particularidades que a envolve, é o que podemos observar no poema bechianas n°10:
459
Anais
minha casa
tem muitas meias-moradas
entrai: abri as tramelas
quem penetrar
as escadas & sacadas
salvará as portas e janelas
460
Anais
cidade. Faz referência aos primeiros transportes que circularam na ilha: os bondinhos
elétricos.
Noturno na rua Grande
em vão espero o bonde
Bonde bonde bonde bonde
[...]
Até 1966 os bondes circulavam pela Ilha, foram os primeiros transportes moderno a
chegar na província e até hoje são lembrados por poetas maranhenses. Em Poema sujo (2004,
p. 261), o eu poético de Ferreira Gullar rememora a cartografia da cidade fazendo referência
aos bondes: “[...] enquanto o bonde Gonçalves Dias/ descia a rua Rio Branco/rumo à Praça
dos Remédios e outros/ bondes desciam a Rua da Paz [...]”. O bonde é um dos elementos
urbanos marcado no imaginário coletivo, especialmente por sua funcionalidade trafegando
pelas ruas antigas da capital. Algumas das costumeiras ruas por onde os bondes circulavam
encontram-se interditadas para tráficos aumobilísticos, livres apenas à circulação de
pedestres.
O eco que se visualiza ao final de cada estrofe de “Ecos da cidade-fantasma” remete a
um passado distante, som que se duplica no vazio da rua, o que justifica o título do poema.
No verso: “Estou em ti e tu estás em mim” expressa, mais uma vez, sensação de
pertencimento, de modo que homem e cidade se completam. O eu-lírico precisa da cidade
para vivenciar suas memórias e a cidade precisa do seu flâneur para dar visibilidade à
memória, existindo numa relação simbiótica, como é explicado por Santos e Moreira (2020,
p,527):
Em geral, nada questiona porque está atrelado ao meio por vínculos afetivos,
modelados por pegadas deixadas em calçadas e ruas, por lastros que se
461
Anais
Os paralelepípedos
das ruas de São Luís
Parecem e são
bordados de croché
feitos à mão
navalhas do belo
pedras da criação
os paralelepípedos
das ruas de São Luís
poetram do chão
ovos barrocos
testemunhos dos destroços
ó paralelepípedos
das ruas de São Luís
granito dos meus ossos
462
Anais
(CASSAS,2021, p.61)
Considerações finais
O cenário urbano tem papel importante para a memória do lugar, visto que os espaços
são palcos de vivências e de memórias. Observamos que o sujeito poético de Quatrocentona,
ao longo da obra, rememora os espaços citadinos por meio de recortes da cidade e mostra
seu vínculo afetivo com a urbe. Assim, faz refletir sobre a importância da preservação do
463
Anais
patrimônio cultural em colaboração com o ato de rememorar. Por outro lado, a história da
cidade também depende dessas mesmas ações de rememorações.
Vejamos na poesia de Cassas uma pluralidade de lembranças no mesmo cenário: o
centro histórico de São Luís, cujos elementos pertencentes à paisagem são ressignificados a
partir das percepções e impressões do eu lírico.
A cidade, com seus costumes e tradições, exerce um papel relevante na vivência e
experiência dos sujeitos que a habitam. Ela carrega em suas curvas a história do próprio
lugar, isso acaba repercutindo na literatura, especialmente na poesia. Sendo o poeta um
construtor, aproveita-se dos recursos linguísticos à sua disposição para construir seu
cenário poético por meio do patrimônio urbano.
A relação homem e cidade mostra-se forte, pois o sujeito poético sente-se ligado à
cidade ao ponto de chamá-la de “minha casa”, como é destacado no primeiro verso do poema
“bechianas n°10”. Dessa maneira, demostra sensação de pertencimento à cidade por
intermédio de elementos que os interligam. Por outro lado, nota-se em outras passagens que
o eu poético sofre com o processo de desenraizamento, em decorrência de modificações e
fragmentações da paisagem urbana.
Desse modo, a voz poética consegue apresentar a relação homem/cidade, a partir de
experiências e vivências; ressignifica a memória do lugar e dá um novo sentido ao
patrimônio, demarcando o lugar de pertencimento. Portanto, pode-se afirmar que o processo
de restauração, tombamento, valorização dos elementos que compõem os centros urbanos
antigos são de suma importância para a memória citadina. Diante disso, considera-se
importante a conservação dos lugares de memórias frente ao ato de rememorar, pois eles
fazem parte da construção pessoal e social de uma comunidade.
REFERÊNCIAS
ABREU, Mauricio de Almeida. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III
n°4, (p,01-22), jan./jun.1998
CASSAS, Luís Augusto. Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade
de São Luís do Maranhão. Cajazeiras: Arribaçã Editora, 2021
464
Anais
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio
de Janeiro: Rocco, 2008.
SANTOS, Silvana Maria Pantoja dos; MOREIRA, Marcello. Quando a cidade não passa:
memória e patrimônio na poesia baiana. Patrimônio e Memória, Assis, SP, v. 16, n. 2, p. 522-
539, jul./dez. 2020. Disponível em: pem.assis.unesp.br.
465
MEMÓRIA E ESPAÇO
CABO-VERDIANO:
IMPACTOS NA FORMAÇÃO
DA IDENTIDADE DOS
SUJEITOS
MARGINALIZADOS
Igor Luid de Souza OLIVEIRA (UFMA/PGLB/CCEL)1
RESUMO
466
Anais
memória e identidade; Alvarenga (2017) e Relph (2012) e dentre outros, apresentando suas
noções de lugar, e vivências/experiências que transfiguram o espaço em lugar atuando na
identidade dos sujeitos.
ABSTRACT
This research searches the concepts of memory and identity, in order to understand how the
space described in the novel, Marginais, by the writer Evel Rocha, contributes to the
construction of the identity of marginalized subjects who experience the contextualized
place in the work. Memory is a phenomenon that is constituted in groups, but it is also always
a work of the subject, and the identity portrays, in the construction of memory, all the
investment that a group makes as far as it goes through countless experiences. In the novel
Marginais, the approach of these concepts is notorious, since it reflects the lives of the
characters, both in individuall and collective plans. It is important to highlight that the space
in which the characters live and transit, the chaotic moments experienced there, interferes,
in the formation of their identity directly, in the construction of their memories. This work
is presented here, which is the product of bibliographic research and focused on a qualitative
approach, based on reflections and discussions developed by theorists such as Halbwachs
(2003) about collective memory; Joel Candau (2012) with his contributions about the
dialectic of memory and identity; Alvarenga (2017) and Relph (2012) and others, presenting
their notions of place, and living/experiences that transfigure space into place, operating in
the identity of the subjects.
Keywords: Space memory. Identity. Social subjects. Literary criticism. Evel Rocha.
INTRODUÇÃO
A memória e o espaço são dois conceitos cruciais para formação identitária do sujeito
marginalizado, uma vez que o contato diário com os objetos materiais, mudados ou não,
resultam para o sujeito uma imagem de permanência e estabilidade. Este trabalho vem tratar
sobre os conceitos de memória, espaço e identidade, apresentando reflexões sobre como a
memória e o espaço da Ilha de Sal, em Cabo Verde, constituída no Romance Marginais
(2010), escrito por Evel Rocha, contribui nessa construção da identidade do ser
marginalizado na obra.
Ilha de Sal, pertencente ao arquipélago de Cabo Verde, é o ambiente descrito em
Marginais (2010), onde o autor apresenta uma narrativa social com situações
desalentadora, representando um cenário forte de desigualdade social, violência de gênero
e uma opressão das classes bastardas em relação ao restante da população, condenada à
margem da sociedade, à miséria. Como afirma Lugarinho (2012, p. 220), sobre o lugar
467
Anais
narrado em Marginais, entre 1977 e 1999: “A terra é esvaziada de sentido porque a nação é
representada por um Estado indolente, incapaz de ser a entidade capaz de promover justiça
e a estabilidade social, com políticas efetivas de inclusão e socialização”.
O romance Marginais é percebido como uma construção que representa uma
narrativa dentro ou além da própria narrativa, uma vez que Sergio Pitboy, personagem
principal, pega as suas memórias e entrega para um “Engenheiro”, na expectativa de serem
divulgadas, perpassando ou antecipando a narração principal. Na obra, Evel subintitula as
memórias de Sergio Pitboy como “Apontamentos de um vagabundo”, e ademais, como
segundo autor, confessa as mudanças apontadas no texto original.
A princípio, a memória pode ser entendida como um conceito individual, algo
literalmente íntimo da pessoa, porém, Halbwachs (2003), já apontava que a memória pode
ser vista também como um fenômeno coletivo e social, a saber, como algo que é construído
coletivamente e sujeito a transformações, como aponta Halbwachs (2003): “Nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros...” (HALBWACHS, 2003,
p. 30).
A identidade pode ser compreendida em até duas dimensões, a saber, a primeira na
dimensão social, que pode ser também política e cultural, e a segunda está conectada no
plano pessoa, ou seja, individual. Desse modo, a identidade pode ser tanto auto atribuída
como também apropriada, isto significa que ela é socialmente marcada por outros e pode se
modificar para se acomoda-se em diferentes cenários. Hall (2006) faz nota-se a identidade
como um processo em andamento, em construção: “A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas, através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros...” (HALL, 2006, p. 39).
Em relação ao o espaço, como cenário, entende-se como um conceito que fundamenta
a presença do sujeito no mundo, uma vez estando unidamente ligado com as memórias dos
sujeitos e das coletividades humanas. Alvarenga (2017) aponta: “A abordagem
fenomenológica do lugar, como espacialidade da experiência, ultrapassa a dimensão da
experiência direta, estritamente individual” (ALVARENGA, 2017, p. 102).
Relph (2012) aponta: “cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se
relaciona conosco” (RELPH, 2012, p.31). Desse modo, o espaço/cenário, considerado nesta
pesquisa, é o que traduz melhor essa atuação da memória na conduta social sujeito aos
lugares, tendo em vista que é uma relação que une a idealização de espaço e experiência.
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469
Anais
melhor, “representações coletivas”, nas quais a experiência comum do indivíduo está ligada
a uma esfera de valores de grupo. Por extensão, revela que as identidades culturais são
formadas, tendo uma base concreta precisamente nessas representações, compartilhadas
por um determinado grupo social, ao qual, mais amplamente, se relacionam com a
centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa
como ator social. Desse modo, Halbwachs (2003), diz:
Por isto, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado por
ninguém, sem dúvida durante algum tempo ‘ele andou só’, na linguagem
corrente – mas ele esteve sozinho apenas em aparência, pois, mesmo nesse
intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam por sua natureza de ser
social e porque ele não deixou sequer por um instante de estar encerrado
em alguma sociedade. (HALBWACHS, 2003, p. 42).
Nesse sentido, pode-se aplicar uns dos elementos que faz parte desse processo de
construção da memória, tanto no plano individual quanto coletivo, a saber, os
acontecimentos conhecidos como “vividos por tabela”. Como aponta Oliveira (2021) sobre
esse esquema das tabelas:
Pode-se dizer, então, que para esse autor não existe passado em si, mas um
passado construído/reconstruído pelo grupo, a partir de uma consciência
dotada de significados, subjetividades, intencionalidades, relações de poder
na construção de uma homogeneização do ver e pense em um elemento
particular da vida cotidiana. (OLIVEIRA, 2021, p. 17).
Desse modo, para Halbwachs (2003): “Geralmente o indivíduo vincula suas memórias
a um espaço e a uma temporalidade em que compartilha com outros sentimento em relação
ao compartilhamento dessa temporalidade”. (HALBWACHS, 2003, p. 54).
470
Anais
Outro teórico bastante necessário para esta discussão chama-se, Paolo Rossi (2010),
que traz em seu livro O passado, a memória e o esquecimento, onde no capitulo primeiro,
apresenta que quão importante tratar da memória é também entender a relação que tem
com o esquecimento. Diante disto, o escritor trata os significados da memória e
esquecimento, observando como esse quadro memória/esquecimento vem sendo abordado
na tradição filosófica. Rossi (2010) evidencia que:
Pensando sobre o conceito de identidade, Candau (2011) ressalta “que o ato de ver a
identidade como um estado construído socialmente de certa maneira sempre acontece no
quadro de uma relação dialógica com o Outro” (CANDAU, 2011, p. 09).
Desse modo, ver-se que assimilar a identidade social de si, para si e com os outros, há
um elemento nessas definições que inevitavelmente escapa do indivíduo e se estende ao
471
Anais
grupo, e esse elemento é obviamente o outro. Ninguém pode constituir uma autoimagem
sem mudança, sem negociação e sem mudança nas funções dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se refere ao outro, referenciando padrões de aceitabilidade
e credibilidade, e se concretiza por meio da negociação direta com o outro.
Acerca do processo de construção das identidades, reforça-se que o exercício de
poder seja simbólico ou autoritário, será uma ação constante, uma vez que as identidades
são forjadas para garantir a manutenção de um grupo no poder. Desse modo, Silva (2014)
ressalta:
Para Hall (2006) há três tipos de concepção sobre a identidade. Nessas concepções, o
autor mostra que a identidade se torna uma celebração móvel, uma vez que ela é formada e
constantemente transformada em relação aos meios que são representados ou interpelados
nos sistemas culturais que estão ao redor.
472
Anais
final desta época, as cenas culturais foram se modificando, atingindo também a ideia da
identidade pessoal, inclusive o sujeito assumindo um novo olhar sobre si.
Desse modo, a construção e a constituição da sociedade, sempre estiverem espaço às
relações de poder, aprestando que para que o indivíduo tenha a necessidade de ser inserido
vai depender da sua representatividade. Nesse sentido, a identidade do indivíduo é
desenvolvida pela necessidade de sobreviver, também seguindo o curso das variáveis
relações sociais, e de sua limitação no espaço e tempo em que o sujeito está inserido. A
identidade também se apresenta como uma forma do indivíduo fazer parte de algo referente
a uma formação de grupos, etnias, gênero, raça ou profissão no quais o igual e o diferente
vivem simultaneamente. Nesse sentido, a construção da identidade está unificada com o
contexto, sendo que todas as mediações sociais e as peculiaridades de cada tipo de
identidade está conectada ao ser social.
Como isso, Bauman (2005), reporta a consideração de que pensar sobre a identidade
leva-se a uma conceituação e a tendências que dão ênfase sobre as mudanças
comunicacionais que acorre na sociedade, as relações sociais, também quando se refere a
limitação quando se diz respeito a cunho humanístico até morais. Para Bauman (2005), no
que diz respeito às comunidades, ressalta que elas são definidoras de identidades, dividindo-
as em tipos: “comunidades de vidas e destino, cujo membros vivem juntos numa ligação
absoluta; e outras que são fundidas unicamente por ideias ou por uma variedade de
princípios” (BAUMAN, 2005, p 17).
Nesse sentido, Bauman (2005) ressalta a não solidez e o não pertencimento da
identidade por toda a vida, uma vez que as relações são negociáveis e o livre arbítrio também
faz parte desse processo. Ademais, mostra que com as presunções apresentadas, os sujeitos
também procuram, produzem e mantêm as referências dos movimentos de identidade que
se acham em mudanças, porém se combinam entre os vínculos grupais em um limitado
espaço temporal. A identidade pode ser compreendida e reinterpretada de várias formas,
uma vez que guiada pelas pressuposições conceituais e causando reflexões enfatizadas por
cada sujeito e em sua complexa subjetividade.
473
Anais
Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver locais de
suporte à memória, são os locais de celebração. Lugares muito distantes, fora do espaço-
tempo da vida de alguém, podem ser um lugar importante para a memória do grupo e,
portanto, para a própria pessoa, seja por tabela ou por pertencer a esse grupo.
O apego ao lugar decorre da perspectiva da experiência cotidiana, entendida e
percebida muitas vezes como sua raiz como pessoa, sugerindo um profundo sentimento de
conexão e pertencimento, mas também, paradoxalmente, um sentimento de quietude.
Quando se pensa a atuação dos Pitboys, percebe-se que o grupo já se tornara um
espaço para a construção de identidade ou identificações contínuas, possibilitado a
experiência e o vigor proveniente da união dos pares, garantindo o reconhecimento da
individualidade, como afirma o narrador do romance cabo-verdiano:
474
Anais
Como aponta o trecho a cima, esse sentimento de pertencer aos Pitboys, que o
narrador, a saber, Sergio apresenta, não trata somente de um lugar no qual tem uma ligação
mais forte, como aquele lugar que traz à memória as experiências despreocupadas e,
também, feliz da infância, mas um lugar de refúgio onde os personagens marginalizados
podem refletir sobre a vida.
Sérgio, funda desde pequeno, junto com seu amigo Fusca, esta gangue chamada de
Pitboys. Grupada por crianças carentes, a gangue transformou-se numa organização onde o
futebol, a diversão e as experimentações sexuais eram trocadas por furtos e outras práticas
ilícitas. Desde a infância, Sérgio aprendeu trabalhando nas casas dos ricos, a furtar comida
para ajudar na sustentabilidade da família que vivia na miséria:
Fui o menino da Ribeira Funda que mais deu trabalho aos adultos. Conhecia
todos os cantos onde as galinhas poedeiras escondiam seus ninhos, sabia
todas as manhãs de como tirar o sorvete das outras crianças, sabia cor o
nome dos actores famosos e era capaz de falsificar ingressos para entrar no
cinema. Claro que não me orgulho dessas façanhas, mas ajudaram-me a
aliviar a dor de ser pobre, compensavam as privações que o destino me
impunha. (ROCHA, 2010, p. 35).
O lar é uma referência à vida que ainda está guardada na memória e molda nossa
identidade. Mesmo quando saímos deste lugar, estamos constantemente à procura de outro
espaço para ocupar o seu lugar, trazendo de volta o que vivenciamos em primeiro lugar; que
é o sentimento e certeza de pertencimento e identidade. É por meio dessa transformação do
viver e/ou dos espaços de convivência que os construímos e lhes damos sentido.
Opondo-se aos ideais dos Pitboys nas páginas dos Marginais, eles lutam por melhores
condições de vida, enquanto a sociedade da ilha de Sal está imersa nos arquétipos do
preconceito e da discriminação, e reprime os chamados marginalizados. As trágicas
475
Anais
consequências de certos personagens do romance podem ser vistas como a cristalização das
condições sociais, que são causadas por uma série de fracassos vivenciados cotidianamente
pelos marginalizados de Evel Rocha:
[...] naquele ano, quase fui violado por um polícia, perdi a zizi, perdi o direito
à escola, via a mãe viajando para a terra longe, meu irmão expulsou-me de
casa, a professora Izilda humilhou-me à frente de todos e, para cúmulo das
desgraças, recebi a notícia que não tinha futuro como jogador de futebol.
Meu corpo era pequeno demais para conter tanta angústia e sofrimento. [...]
Atirei-me cegamente para baixo do camião para pôr fim à minha desgraça,
porém, o condutor travou a tempo de evitar minha morte. [...] Ensopei a
minha tristeza com grogue33 e passei a acreditar na força da droga como o
caminho da redenção. (ROCHA, 2010, p. 83).
Nesse sentido, o trecho acima ilustra como há alguns lugares que podem ganhar
novos significados, se remetem a uma memória não prazerosa, como a perda de alguém. Uma
vez que há essa perda do outro, o lugar pode trazer novos sentidos transfigurando-se em
“cenário de tragédias”.
Outro fator a ser considerado aqui são as evidências: a importância da narrativa no
processo de memória. Por meio do processo de narrativa, o sujeito sequência e dá coerência
aos acontecimentos e experiências de sua vida nos espaços e tempos que considera
importantes. Dessa forma, o ato de narrar leva à preservação da memória para si e para os
outros, pois nossas memórias são compartilhadas, como aponta Rocha (2010):
476
Anais
Desse modo, percebe-se que a Ilha de Sal, cenário que se passa a narrativa do romance
Marginais é contraposta com a noção de lugar como uma imagem que a partir do qual “cada
um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco” (RELPH, 2012,
p.31). Estabelecendo um diálogo entre a teoria e o romance menciona-se:
Há melhor terapia do que quebrar os vidros de uma montra num país onde
os filhos dos pobres são excluídos e a discriminação é estimulada? É
necessário vandalizar os interesses da burga, que enriquece facilmente, para
que o estado possa olhar para nós, os marginalizados; é necessário
vandalizar o património dos coronéis da ilha, conquistado à custa dos fracos,
para que chorem de raiva como nós chorámos por um pedaço de pão e pelos
nossos direitos. (ROCHA, 2010, p. 40).
Desse modo, pode-se sentir que o processo de construção da identidade está gravado
no processo memorial, que envolve reconstruir o passado, renovar e esquecer algumas
imagens do passado. É preciso trazer a identidade para o discurso, e é a memória que
possibilita que a identidade se realize para que o sujeito possa narrar a si mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse artigo, foi visto que a memória e o espaço são fatores fundamentais na
construção identitária do sujeito marginalizado. Essa relação que a memória e o espaço
apresentam, resultou de uma força para que o grupo dos Pitboys consagrassem a pertença
como marginais.
A partir das reflexões propostas neste trabalho, refletiu-se, ao longo do texto, com
base nos autores que tratam sobre a temática de identidade, memória e espaço. A memória
é essencial para uma cultura que quer manter sua identidade e está intimamente ligada a ela,
pois fornece subsídios para o estabelecimento e fortalecimento da identidade por meio de
vínculos comuns. O vínculo comum é a vida miserável e a desigualdade social em que estão
imersos os jovens e os mais pobres da Ilha do Sal, espaço da narrativa Marginais (2010), de
Evel Rocha, adolescentes que vendem seus corpos como Mirna na esperança de uma vida
melhor. Deles apenas o Jorginho escapa à má sorte da marginalidade, foi escolhido para ser
477
Anais
jogador de futebol de um time português, Beto Vesgo casa e passa a viver longe da
marginalidade, o Fusco, embarcou em um iate e não se soube mais dele, o Pianista, depois de
preso foi diagnosticado com AIDS, Lela Magreza morreu de paixão pela filha do Dr.
Apolinário e Sérgio também morre aos 23 anos.
Observa-se que a temática da identidade é importante para refletir, atuar e permite
um conhecimento de si, como sujeito histórico, social, político e aponta as perspectivas de
sua identificação como único e múltiplo, pelas diferenças que o tempo faculta no processo
contínuo de transformação pessoal e múltiplo porque ele é um e outro ao mesmo tempo.
Nesse processo de compreensão acerca de identidades o estudo possibilitou-nos
compreender que as identidades vão sendo modeladas em diferentes contextos, sejam eles
familiares, escolares, experienciais e vão sendo processados ao longo da vida sem
desconsiderar as questões que envolvem a sociedade atual.
Considerando a teorização sobre a memória presente em Halbwachs (2003), Rossi
(2010), os estudos da identidade presente em Hall (2006), Candau (2012) e Bauman (2005)
entendeu-se que a memória é fundamental para tecer uma cartografia identitária. No
tocante, à obra de Evel Rocha, Marginais (2010), a identidade de Sérgio Pitboy é toda tecida
pela memória, as experiências da infância, os sofrimentos na escola e na esfera social da Ilha
do Sal, a viagem da mãe para a Itália, a expulsão da casa dos pais pelo irmão. Todas as
vivências de Sérgio, a doença que o tira a possibilidade de ser jogador de futebol, a evasão
escolar que o impede de ser um advogado como ou melhor que o seu desafeto, Dr. Apolinário
e a sua entrada no mundo da marginalidade e os últimos dias na prisão. Tudo entrelaça
memória e identidade, o leitor só conhece a Sérgio e os outros marginais porque a substância
guardada na memória, traz viva a lembrança individual que é também sabida pela
coletividade como presente em Halbwachs.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
478
Anais
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Laís Teles Benoir, São Paulo:
Centauro, 2003.
LUGARINHO, Mário César. Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e
gênero. Via Atlântica, n. 22, p. 219-233, São Paulo, dezembro, 2012.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In. SILVA, Tomaz
Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.
479
FILOSOFIA E
LITERATURA: TEMPO
E MEMÓRIA EM
INGLÊS DE SOUSA
Messias Lisboa GONÇALVES (UFPA)1
Antônio Máximo FERRAZ (UFPA)2
RESUMO
A Filosofia busca pensar o tempo com um toque qualitativo, que leva em conta sua relação
com a dimensão existencial e a literatura não fica alheia à discussão acerca do tempo, sobre
ele refletindo, não discursivamente, mas concretizando-o em imagens que se apresentam em
toda narrativa. Pensando a respeito disso, este estudo destaca os romances O Cacaulista
(1876) e O Coronel Sangrado (1877), de Inglês de Sousa (1853-1918). O objetivo fulcral deste
trabalho é pesquisar as questões do tempo e da memória postas em obra pelos romances O
Cacaulista e O Coronel Sangrado. O estudo limita-se à reflexão do personagem Miguel, que se
destaca por sua relação com o tempo, tendendo ao futuro, mas sempre tecendo conexões
com o passado e o presente, por meio do manifestar da memória. E, no eterno desvelamento
e velamento das questões, ir além dos caminhos conceituais e classificatórios, para oferecer
outras chaves de leitura acerca da produção de Inglês de Sousa. Para realizar este intento,
buscamos especialmente em Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson (1859-1941),
480
Anais
Benedito Nunes (1929-2011) e Manuel Antônio de Castro (1941-) um diálogo que permitiu
pensar como se manifestam as questões do tempo e da memória naquelas obras de Inglês de
Sousa.
ABSTRACT
Philosophy seeks to think about time with a qualitative touch, which takes into account its
relationship with the existential dimension and literature is not alien to the discussion about
time, reflecting on it, not discursively, but concretizing it in images that are presented in all
narrative. Thinking about it, this study highlights the novels O Cacaulista (1876) and O
Coronel Sangrado (1877), by Inglês de Sousa (1853-1918). The main objective of this work
is to research the questions of time and memory put into work by the novels O Cacaulista
and O Coronel Sangrado. The study is limited to the reflection of the character Miguel, who
stands out for his relationship with time, tending to the future, but always weaving
connections with the past and the present, through the manifestation of memory. And, in the
eternal unveiling and veiling of the issues, to go beyond the conceptual and classificatory
paths, to offer other keys to reading about the production of Inglês de Sousa. In order to
achieve this aim, we sought especially in Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson
(1859-1941), Benedito Nunes (1929-2011) and Manuel Antônio de Castro (1941-) a
dialogue that allowed us to think about how the questions are manifested. of time and
memory in those works by Inglês de Sousa.
3 O Coronel Sangrado foi publicado em 1877 na Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras e a primeira edição do
romance em livro ocorre somente em 1882. No entanto, a data de publicação do romance ficou fixada pela história
literária oficial como sendo em 1877 (Cf. FERREIRA, 2017).
481
Anais
Dessa maneira, a contagem do tempo pelo relógio não demonstra o que seja o tempo
nem tão pouco expressa o que seja o fluir contínuo do tempo, porque o tempo é uma questão.
Desse modo, já que o tempo é uma questão, não é possível ao homem viver fora do tempo
nem sem o tempo. Então, o tempo não pode ser encontrado na cronometragem da máquina
criada pelo homem com o intuito de dominá-lo, mais afinal “onde, porém, está o tempo? É,
aliás, o tempo e possui ele algum lugar? O tempo, sem dúvida, não é nada” (HEIDEGGER,
2005, p. 258).
Diante de tal fato, Manuel Antônio de Castro no Dicionário de Poética e Pensamento4
reflete que “o nada, possibilidade das possibilidades, é sempre doação de novas realizações,
4 Este dicionário digital distingue-se por ser feito de verbetes-questões e não por definições conceituais ou por
levantamento de significados semânticos. O leitor terá para cada verbete diferentes acessos através de reflexões e
passagens essenciais de diversos pensadores e poetas. Tais acessos querem provocar o leitor e levá-lo a questionar, a
pensar, mostrando como cada verbete se constitui numa questão que não pode ser resolvida através de conceitos
lógicos. Pelo contrário, deve prevalecer o diálogo poético, interpretativo, onde interpretar é interpretar-se na e com a
escuta do que é. Consultando o dicionário, o leitor tem acesso a diferentes indicações bibliográficas. Em muitos casos,
o dicionário limita-se a transcrever uma passagem julgada essencial. Cabe a cada leitor procurar a fonte integral
indicada para aprofundar o pensamento. O Dicionário está disponível em <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>.
482
Anais
tempo sendo, que voltam sempre ao nada que é tudo” (CASTRO: Nada, 2)5. Logo, o nada é a
esperança do acontecimento.
Cabe evidenciarmos que o tempo, o qual o homem intentou controlar por meio de um
relógio contador, não pode ser comensurado, uma vez que existe uma concepção de tempo
que se estende e se faz presente nas ações do próprio homem, fugindo assim de qualquer
medição ou cálculo. Martin Heidegger (2005) nos explica que o tempo é presença, o tempo é
poético, o tempo é acontecer e o tempo é destinado a cada ser vivente.6 Nesse sentido, o
tempo é vida sendo, destinando-se ao ser humano. Em consonância com esse pensamento,
Manuel Antônio de Castro menciona que
O vivente só vive e sabe que vive e pensa a vida porque sua vida como vivente
já vigora na vida como tempo e este como unidade ou sentido. A
sucessividade de nossa vida nunca nos aparece nem como um amontoado
desconexo de momentos nem como uma sequência linear e causal de
vivências. Vivemos de surpresas inesperadas. Isso é o sentido não a
explicação racional e muito menos o significado. (CASTRO: Tempo, 7).
O tempo instaura sentido na vida do ser vivente e, por isso, a vida ininterrupta
daquele que vive não se apresenta como um aglomerado de momentos. A vida não pode ser
pausada, uma vez que é contínua. Nem mesmo quando dormimos, deixamos de viver ou de
termos vida, mas, como somos um ser temporal, findamos. No entanto, o tempo e a própria
vida continuam existindo, e a nossa existência só tem sentido por causa do tempo, e o tempo
é vida.
A vivência temporal é o tema de onde deveremos sempre partir e para o qual sempre
retornaremos ao estudarmos o pensamento bergsoniano. Importa mencionar que, quando
um pensamento repousa inteiramente sobre um fato originário, a saber, o da passagem do
tempo, não é de se espantar que as respostas científicas universalmente aceitas apareçam
como insuficientes, uma vez que tais explicações não esgotam o sentido primitivo dessa
passagem e não expressam o que seria por natureza inexprimível.
Além disso, Henri Bergson (2010) reflete que a memória tem tanto a função de
“recobrir” de lembranças a percepção imediata quanto a de contrair os múltiplos momentos
5 Todas as referências que vierem nesse formato estão de acordo com as normas de citação sugeridas pelo dicionário
digital Dicionário de Poética e Pensamento, de Manuel Antônio de Castro. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>. Acessado em: 2 jul. 2022.
6 Cf. Heidegger (2005).
483
Anais
Em suma, a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma
camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também
enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal
contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de
nosso conhecimento das coisas. (BERGSON, 2010, p. 31).
quanto mais alegre a alegria, mais pura é a tristeza nela adormecida. Quanto
mais profunda a tristeza, mais a alegria que nela repousa nos convoca.
Tristeza e alegria tocam e jogam uma com a outra. O jogo que afina tristeza
e alegria entre si, aproximando a distância e distanciando a proximidade, é a
dor. Por isso, tanto a alegria mais intensa como a tristeza mais profunda são,
cada uma a seu modo, dolorosas. (HEIDEGGER, 2003, p. 186).
484
Anais
Assim, o tempo vivido expande-se no menino, a São Miguel permanece com ele no
presente, “parecia-lhe ouvir o mugido do gado no curral” (SOUSA, 2004, p. 34) e que é muito
mais que um simples parecer, visto que logo em seguida acrescenta o narrador “via
perfeitamente boiarem à pequena distância enormes tartarugas e monstruosos peixes-bois”
(SOUSA, 2004, p. 34).
Então, o passado caminha com o menino, e o futuro que ainda não é; porém, torna-se
a vigência do passado7. Por essa razão, Miguel escapou do tio rumo à fazenda, saiu correndo
pela rua à frente da igreja, “em breve desapareceu nas matas que mediam entre o cemitério
e a cidade” (SOUSA, 2004, p. 34).
Sendo assim, a escuta da voz do narrador e do silêncio da narrativa nos permitiu
chegar até o protagonista Miguel Faria, uma criança órfã de pai, que de maneira furtiva
regressou para Paraná-miri de Cima para reencontrar e morar com a mãe.
Miguel transporta-se para a narrativa de O Coronel Sangrado colocando-nos em
contato com o prosseguimento de sua travessia enquanto ser humano. As linhas finais de O
Cacaulista reportam a partida de Miguel da cidade de Óbidos para Belém e as páginas
primeiras de O Coronel Sangrado aludem o seu retorno para Óbidos.
485
Anais
O Pensamento é um passado tão vigente que sempre está por vir. Qualquer
esforço da Filosofia não deixa de ser um esforço do e pelo Pensamento. E por
quê? – Porque nenhum esforço filosófico, em qualquer hora, tanto outrora
como agora, pode dispensar a força de futuro do Pensamento no passado.
(LEÃO, 2010, p. 13).
É quase certo que o pensamento de Miguel Faria estava mesmo voltado para o
passado, essa é grande possibilidade do pensar humano, como nos alerta Emmanuel
Carneiro Leão (2010).
Logo, é inegável a comunicação entre passado, presente e futuro. Além, disso fatiar o
tempo nessas três dimensões é se afastar mais ainda da possibilidade de compreendê-lo.
Como nos adverte Henri Bergson (2010). O tempo pretérito pulsa na vida de Miguel, o tempo
para ele é uma questão que o interroga constantemente.
A História da Filosofia mostra que o tempo sempre foi uma questão para os homens
sendo motivo de muita investigação filosófica. Outrossim, o passado não estando confinado
a um eterno esquecimento desvela-se diante de Miguel, ao passo que em seu desvelar sempre
resguarda o horizonte de seu desvelo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
486
Anais
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad.
Paulo Neves. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
CASTRO, Manuel Antônio de. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2011.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Nada, 5”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de
Poética e Pensamento. Internet. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Nada>. Acesso em: 2 jul. 2022.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Tempo, 7”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de
Poética e Pensamento. Internet. Disponível em:
<http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Tempo>. Acesso em: 2 jul. 2022.
FERREIRA, Marcela. Inglês de Sousa: imprensa, literatura e realismo. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2017.
487
Anais
HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos.
Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010.
SOUSA, Inglês de. O Coronel Sangrado (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA,
2003.
SOUSA, Inglês de. O Cacaulista (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA, 2004.
SOUSA, Inglês de. História de um pescador (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém:
EDUFPA, 2007.
488
A SUBALTERNIDADE
FEMININA NA OBRA
PONCIÁ VICÊNCIO,
DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)1
Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)2
RESUMO
Este trabalho tem como corpus a obra Ponciá Vicêncio (2017) da escritora Conceição
Evaristo, romance, cuja temática reflete na realidade subalterna da protagonista em
destaque. A escritora apresenta fatos a serem desenvolvidos e misturados com a realidade,
utilizando-se da sua “escrivivência” tratando de temas relativos à vida e a representatividade
de sua classe, enquanto mulher, negra e escritora, fazendo alusão a escrita e a vivência de
suas lutas, que representa também a de outras mulheres, objetivando a sua legitimidade em
um ambiente que ainda se diz muito homogêneo em relação aos espaços de fala. Visto que
existe uma tradição literária que vai de encontro com a tentativa de mudança social
principiada pelas classes subalternas, as quais têm como objetivo permitir a fala
transgressora dos subalternos e expressarem a voz de outros indivíduos por meio de seus
escritos, implicando a responsabilidade de representação no cenário literário
contemporâneo. Sendo assim, para confirmar e reafirmar os pensamentos expressos neste
489
Anais
trabalho utilizaremos os seguintes referenciais teóricos: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak
(2010), Michelle Perrot (2007) e Regina Dalcastagnnè (2012), e entre outros aportes, a fim
de tratar dos impasses desta ciência, em especial dos marginalizados no campo literário.
ABSTRACT
This work has as its corpus the work Ponciá Vicêncio (2017) by the writer Conceição
Evaristo, a novel, whose theme reflects on the subaltern reality of the featured protagonist.
The writer presents facts to be developed and mixed with reality, using her "writing" dealing
with topics related to life and the representation of her class, as a woman, black and writer,
alluding to writing and the experience of her struggles, which also represents that of other
women, aiming at their legitimacy in an environment that still claims to be very
homogeneous in relation to speech spaces. Since there is a literary tradition that goes against
the attempt of social change initiated by the subaltern classes, which aim to allow the
transgressive speech of subalterns and express the voice of other individuals through their
writings, implying the responsibility of representation in the contemporary literary scene.
Therefore, to confirm and reaffirm the thoughts expressed in this work, we will use the
following theoretical references: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak (2010), Michelle Perrot
(2007) and Regina Dalcastagnnè (2012), and among other contributions, in order to to deal
with the impasses of this science, especially those marginalized in the literary field.
Introdução
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Anais
Outro ponto a ser estudado neste trabalho é a relação da escrita feminina e o estado
de subalternidade, a legitimidade do dizível na literatura brasileira a partir de novas vozes,
em especial daqueles que buscam falar sobre si e visam também a autenticidade daquilo que
dizem/ escrevem, incluindo os que outrora não eram valorizados por não corresponderem
a um perfil estereotipado, por meio de um enquadramento social privilegiado,
hierarquizado, esteticamente definido de como se deve fazer ou dizer para se legitimar, de
modo confortável na literatura a que pertencem.
Sendo assim, no presente artigo traremos uma breve abordagem temática baseando-
nos na obra e na pessoa de Conceição Evaristo, tomando os textos pertencentes à crítica
literária anteriormente citados no resumo, levando o leitor a refletir sobre a
autorrepresentação subalterna atual e indiferença reproduzida por alguns grupos e classes
que põem em obscuridade a fala e a representatividade do sujeito subalterno, assim como a
voz, e a sua legitimidade na sociedade por meio dos textos literários. Por isso serão
observados alguns dados passíveis de reflexão sobre o julgo em relação a valoração de
determinadas obras literárias.
O romance Ponciá Vicêncio, traz em seu enredo a história de Ponciá Vicêncio e sua
família descendente de negros escravos que desde o tempo de seus avós viviam nas terras
do coronel Vicêncio que fora também dono de suas bisavós. A partir destes fatos iniciais a
trama se desenvolve acerca dos acontecimentos referentes a escravidão e a exploração do
trabalho na zona rural, de modo que Ponciá e sua família mesmo não estando mais na
condição de escravos, continuavam cultivando a terra, trabalhando para aqueles que um dia
fora o dono de seus parentes, fato que lhes causava desconforto: Se eram livres por que
continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se
arribavam à procura de outros trabalhos? (EVARISTO, 2017, p.17).
Havia em todo aquele ambiente uma relação de subserviência e semiescravidão que
os envolvia, e despertava na protagonista o desejo de sair do povoado para a cidade, pois:
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Anais
colheitas serem entregues aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória,
a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto
alguns conseguiam enriquecer a todos os dias. (EVARISTO, 2017, p. 30).
Afetando assim, sua dignidade enquanto ser humano simplesmente pelo fato de
serem negros abolidos da escravidão propriamente dita, inseridos em outros sistemas de
escravidão que lhes era imposto devido a condição social e a falta de opção para seguir e
contemplar a liberdade que outrora só foi instituída no papel, mas que os leva a outras
situações desiguais e humilhantes, permeada por grupos distintos e resistentes. Para Ponciá,
era preciso desbravar novos mundos, no caso, a cidade grande, em busca de novas
oportunidades: “Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida
nova”. (EVARISTO, 2017, p. 30).
Ponciá e sua família, em especial seu pai e seu irmão trabalhavam na roça: “A mãe da
soleira da porta abençoava o filho e desejava em voz alta que eles seguissem a caminhada
com Deus.” (EVARISTO, 2017, p.25). Submissos e manipulados pela classe dominante,
sujeitos a condições limitadas de crescimento (se é que existiam), funcionando assim como
máquinas, exercendo atividades na pesada labuta, quase não ficavam em casa com a família,
de modo que:
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Anais
A moça acreditava que: “Haveria, sim, de traçar o seu destino.” (EVARISTO, 2017,
p.33), mesmo sabendo de outros exemplos negativos acerca dos que ousaram sair do
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Anais
povoado para viver na cidade, de modo que: “A vida se tornava pior do que na roça.”
(EVARISTO, 2017, p. 33). Ponciá exerce um papel subalterno, no contexto da obra, além de
fazer parte de um grupo minoritário, a qual passava por incompreensíveis batalhas sociais,
desafios de quem “Chegou ali sem eira nem beira”. (EVARISTO, 2017, p. 59) em busca da tão
sonhada mudança de vida e da legitimação de suas lutas, por meio do trabalho.
Assim como Ponciá, Luandi, irmão da protagonista também se aventurou na cidade
grande, sem saber ler, apenas com a coragem de trabalhar e conhecer o novo, de mostrar ao
povoado quando voltasse que o negro também tem suas possibilidades de crescimento, de
encontrar ou de redescobrir seu lugar no mundo. Ao chegar à cidade ele conseguiu trabalho
na parte da limpeza na delegacia local e aos poucos ia aprendendo a escrever seu nome e a
ler algumas palavras. Mesmo assim, tanto para Ponciá quanto para seu irmão:
A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também.
Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da
falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar
novos quilombos, de inventar outra e nova vida. (EVARISTO, 2017, p.72).
Eles percebiam, que, mesmo não morando mais no vilarejo e não mais cultivando a
terra eles continuavam submissos ao poderio hegemônico dos brancos que eram
caracterizados como seus patrões. Viviam a subalternidade urbana e percebendo que para
viver na cidade é importante muito mais que saber escrever o nome:
Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da
própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E
que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de
tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio
punho, outras letras e marcas havia. (EVARISTO, 2017, p.110).
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Anais
pondo em questão a valorização ou a desvalorização do mesmo, onde ele pode ou não habitar
a partir de seus saberes e de sua cultura, por meio da diversidade cultural existente, que
integra a expressiva pluralidade discursiva de grupos subalternos.
De maneira análoga ao que acontece na obra de Evaristo (2017) a literatura brasileira
contemporânea no que diz respeito ao universo dos produtores de textos literários sejam
eles homens ou mulheres, existe um “território contestado” Dalcastagnè (2012) que precisa
ser democratizado para atender as necessidades sociais dos indivíduos serem ouvidos e
representados por sua própria fala, mesmo que para isso o indivíduo tenha de agir a partir
da diferença com vistas a legitimação discursiva.
Vale ressaltar, que Evaristo mesmo conseguindo publicar suas obras na
contemporaneidade, “Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da mesma
forma”. Dalcastagnè (2012).Evaristo, no decorrer da sua história de mulher, negra e
escritora percebe as dificuldades enfrentadas no ato da representação escrita, quando esta
foge à regra de estereótipos implantados na identidade nacional, “...quando diferentes
grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, ” [...], por meio da “busca de espaço
– e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala”.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p.7).
De modo, que temos em nossa literatura brasileira contemporânea uma grande parte
das publicações feita por homens, “o perfil do escritor brasileiro. Ele é homem branco,
aproximando-se ou já entrando na meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-
São Paulo.” Dalcastagnè (2012, p.162), enquanto que suas criações, suas personagens são
representadas da seguinte forma: “Os brancos somam quase quatro quintos das
personagens, com uma frequência mais de dez vezes maior que a categoria seguinte (negros)
”Dalcastagnè (2012, p.173), caracterizando o monopólio no ato de escrever sobre si e sobre
o outro, influenciando a caracterização de suas personagens, criando um ato constrangedor
na tentativa de representar o outro, resultando inclusive numa atitude repressora, de modo
que a literatura é um espaço que pode ser habitado por todos, para que haja interação entre
os saberes e culturas, universo plural ao qual todos devem de acordo com a suas lutas se
autorrepresentarem, pois veem o mundo cada qual a seu modo:
495
Anais
Diferentemente do que ocorre na tradição literária, pois o indivíduo narrador “[...] não
nos daria espaço para questionamentos. Até porque, sua presença no texto não estava em
questão. ” Dalcastagnè (2012, p.93), confirmando assim, a diferenciação entre tradição x
modernidade, refletida na contemporaneidade por meio da atitude narrativa de representar
a realidade da sua classe. Onde os negros têm de falar sobre si, os brancos sobre eles mesmos
e assim por diante, cada qual com a sua peculiaridade, credibilizando o ato da fala,
demarcando a identidade de sua classe, “que penetram no texto para se justificar diante de
suas criaturas” Dalcastagnè (2012, p.109) como acontece na obra em estudo, quando a
personagem e a escritora se misturam, para compor a existência de uma classe.
Percebemos que os dados a respeito da postura feminina no campo das letras, no
caminho da escrita, travam uma luta constante por espaços para discutir a importância e a
valorização escrita de minorias. A literatura contemporânea deixa desejar a notabilidade de
narradoras e personagens em posições privilegiadas, tirando-as apenas do aspecto
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Anais
doméstico e familiar como aparecem na maioria dos escritos contemporâneos, que de acordo
com Dalcastagnè que (2012, p. 172) : “apontou a ausência da mulher na representação do
espaço urbano na narrativa brasileira recente. A personagem que caminha pela cidade é, via
de regra, o homem. Às mulheres, cabe a esfera doméstica, o mundo que a ficção lhes destina.
A protagonista feminina delineada por Conceição Evaristo nos faz refletir sobre a
presença da mulher em sociedade, em especial, da mulher negra, a qual no decorrer das Eras
surge como um sujeito subalterno, mesmo participando das constantes mudanças no âmbito
social caracterizado pelas “novas identidades”, (Hall, 2015, p.9). Evaristo em seu texto,
mostra-nos uma tentativa da mulher negra de sair da posição de oprimida por meio da
mudança de território, embora não obtenha êxito. A partir desse momento, nós, leitores, nos
deparamos com uma situação inquietante ao ver na personagem um indivíduo com poucas
possibilidades de ascensão devido sua falta de conhecimento científico ao chegar nos
grandes centros, cabendo a ela habitar em espaços domésticos e não em espaços abertos, nas
ruas em cargos que necessitam de outros saberes.
Vemos na personagem (conforme o pensamento de Hall (2015)), uma “identidade
fragmentada, em processo de mudança” que “está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (Hall, 2015, p.9). No que diz respeito a
este deslocamento e a este “abalo nos quadros de referência”, temos a própria escritora que
atua sob essa nova perspectiva feminina, de mulher negra letrada, ao contrário de sua
personagem, criação literária que representa um outro grupo de mulheres de sua mesma
classe.
Na contemporaneidade, as discussões sobre as classes minoritárias estão a cada dia
tendo mais visibilidade, pois devido ao rompimento dos estereótipos impostos as mulheres
e seu local de existência, muitas foram as mudanças e as situações em que elas se
(re)inseriram através das reivindicações do movimento feminista3 que incluía não apenas as
3 O movimento feminista (ou feminismo) “[...] ressurge num momento histórico em que outros movimentos de libertação
denunciam a existência de formas de opressão que não se limitam ao econômico. Saindo de seu isolamento, rompendo seu silêncio,
movimentos negros, de minorias étnicas, ecologistas, homossexuais, se organizam em torno de sua especificidade e completam na
busca da superação das desigualdades sociais.” (Alves;Pitanguy, 1991, p.7)
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Anais
mulheres, mas todos aqueles que eram excluídos pela sociedade por algum aspecto que
estava em “desconformidade” com a tradição e, consequentemente, com os ideias machistas.
Pois, segundo o pensamento patriarcal machista, “Mais vale deixar as mulheres isoladas e
mantê-las ocupadas em casa do que as reunir aos montes, pois as pessoas dessa categoria
são como as plantas que fermentam quando se amontoam”, (Perrot, 2007, p.26).
A partir desse pensamento exposto por Perrot (2007), confirmamos que os fatos
expostos na produção literária de Evaristo (2017) são passíveis de serem discutidos e
problematizados, visto que as mulheres antes de se dedicarem as lutas por direitos
igualitários para uma boa convivência em sociedade, eram tratadas como sendo menores,
cabendo e estes últimos o zelo com o ambiente doméstico, conforme é exposto quando o pai
de Ponciá sai com seu irmão para o trabalho, enquanto que as mulheres cuidavam da casa.
Semelhante ao período da revolução industrial, Ponciá e as demais mulheres “[...] se sentiam
culpadas se não estivessem constantemente ocupadas, tendo interiorizado o emprego em
tempo integral de dona de casa.” (Perrot, 2007, p.132).
As mulheres enfrentaram muitas situações de julgo desigual, fato que está disposto
na literatura de Evaristo, a fim de problematizar as situações inquietantes que envolvem as
mulheres, em especial, as negras, que aparecem na literatura representada em posições
subalternas conforme constatou Regina Dalcastagnè (2012). Por meio da personagem
Ponciá Vicencio, pobre, negra e iletrada visualizamos uma figura feminina subalterna que
desejava inserir-se na esfera social urbana a fim de tornar-se um sujeito feminino exímio dos
demais que havia perpassado a sua história.
Evaristo (2017) embora nos apresente uma personagem subalterna em processo de
desterritorialização, submissa aos designíos do “homem branco” ora nas propriedades
rurais, ora nos limites urbanos, desencadeia em nós, leitores de sua obra, constante
percepção da condição limitante em que está inserida a mulher negra, que se sente
escravizada nas diversas conjunturas sociais. A escritora ao dá voz a sua personagem,
expondo de modo crítico a angústia de inúmeras mulheres negras que ao longo das Eras
revestem-se de coragem para enfrentar o novo e desafiar estruturas e desarticular “as
identidades estáveis do passado”. (Hall, 2015, p.14).
Ainda neste limiar que envolve as identidades que se modificam ao longo dos tempos,
podemos revestir-nos do seguinte pensamento: Evaristo, a partir da sua escrivivência leva
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Anais
ao seu leitor dilemas enfrentados por mulheres negras que ao longo da vida tentaram sair
dos limites subalternos, mas que diante das situações inquisidoras envolvendo a classe
feminina e negra nem sempre tiveram uma oportunidade sair dos limites da subalternidade.
Evaristo deixa-nos outra breve reflexão: sair dos limites geográficos que as oprime nem
sempre significa sair da submissão.
É preciso trilhar novos caminhos para obter novas possibilidades de vida, visto que
as mulheres negras (em especial) são sujeitos cuja identidade está se modificando, não é uma
formação estável, pois vivenciamos o período da pós-modernidade, que nos insere em um
ambiente aberto a novos processos distantes do conforto permeados pela tradição. Portanto,
pensar na mulher-negra é refletir sobre a capacidade de atuação da mulher, das inúmeras
possibilidades de existência, na tentativa de extrair do imaginário masculino a posição
subalterna que a história as inscreveu e que a literatura se remete a fim de nos apontar as
mudanças, os deslocamentos feitos por elas no decorrer das Eras.
Por fim, na obra de Evaristo (2017) o pensamento de Hooks (2014, p.07), mediante
as imposições masculinas nesse âmbito da legitimação se desenvolve a fim de que
reconheçamos que as mulheres negras ao longo da história já foram submissas dentro de sua
própria classe, agindo sob circunscrições cujo objetivo era a subserviência, pois:
Conclusão
499
Anais
Em virtude dos fatos mencionados acerca da obra de Conceição Evaristo e dos textos
utilizados como aporte teórico, tivemos a oportunidade de perceber nesta pesquisa a
importância da representação do indivíduo, da reivindicação de tornar o sujeito
marginalizado e oprimido como um indivíduo que pode falar e ser ouvido na sua condição
sem precisar utilizar-se do “discurso hegemônico para fazê-lo”, como afirma Spivak (2010,
p.16), é preciso, verdadeiramente, criar espaços em que estes sujeitos subalternos de classes
minoritárias falem e sejam ouvidos.
Evaristo, na condição militante, enquanto mulher negra, traz representações das
dificuldades enfrentadas por ela e por sua classe, envolvendo os desafios de se legitimar em
um universo literário homogêneo, a qual milita por ter sua voz audível e ouvida por aqueles
que compõem este ambiente estereotipado, de julgo desigual para com as classes
minoritárias no trabalho intelectual da escrita, com vistas na valorização da história, do
contexto em que fora produzido, ou seja do lugar ocupado por quem deseja falar.
Este trabalho teve como principal foco a observação do sujeito subalterno feminino,
em especial os de origem negra, como é o caso da personagem Ponciá Vicêncio que a partir
de suas lutas representa o negro e sua condição subalterna na busca por uma mudança de
vida que requer desbravar novos horizontes, “desterritorializar-se”, sair do seu lugar e
buscar outras opções para sua condição de vida, mas que fora impedida por falta de
letramento e conhecimentos outros exigidos pela cidade. Fato que acontece nos dias atuais
com aqueles que saem de sua região de origem para tentar sobreviver nos grandes centros,
mas ao chegarem em determinados espaços lhes resta apenas papéis, condições, profissões
que ainda os escravizam, ou “semiescravizam” com longas jornadas de trabalho e salários
baixos como acontecia com os familiares de Ponciá.
No entanto, esta pesquisa levou em consideração a “escrivivência” da autora para
chegar aos resultados aqui expressos, como por exemplo, as indiferenças sociais que cercam
o universo literário desde o perfil de quem a produz e até mesmo aquilo que produz, como
vimos em algumas citações de Dalcastagnè (2012) em relação a posição minoritária que se
insere as personagens das obras produzidas por homens escritores privilegiados, expondo a
condição subalterna dada as mulheres e o espaço em que aparecem, relatando assim a
obscuridade do perfil feminino dessas produções.
Ao contrário do que acontece na maior parte das obras contemporâneas de escritores
homens e brancos, Evaristo, a partir de sua vivência cria espaços para que as mulheres
negras (em especial) sejam ouvidas por meio de seus próprios contextos e condições de
500
Anais
autorrepresentação, se utilizando de uma mulher negra, pobre, sem leitura, sem origens
explícitas por meio do seu sobrenome e desterritorializada, para tratar de maneira cúmplice
e concreta do “ser marginal” que enfrenta estruturas resistentes para com seu deslocamento
em meio as classes estereotipadas, socialmente constituídas, na tentativa incessante por
mudança desse perfil homogêneo dos produtores de textos literários, visando assim
fortificar a pluralidade e a interculturalidade da escrita contemporânea, possibilitando o
espaço de fala aos de classe subalterna, que outrora não conseguiram se autorrepresentar a
partir do seu local cultural de fala. Como é o caso dos trabalhadores da roça, das empregadas
domésticas, dos negros, entre outros que por meio de sua subalternidade na maioria das
vezes não conseguem ter sua voz legitimada na sociedade.
REFERÊNCIAs
ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo? São Paulo: Abril Cultural.
Brasiliense, 1991.
Regina Dalcastagnè. Vinhedo, Editora Horizonte/ Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2012.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismo. 1ª edição 1981.
Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro, 2014.
PERROT, Michelle. Parte II: Mulheres. In: Os excluídos da história: operários, mulheres e
prisioneiros. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Recurso digital, 2017.
SPIVAK, Gayatry. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.
501
ENTRE AS PATAS DO
LOBO: LIBERDADE E/OU
APRISIONAMENTO
FEMININO EM “A
COMPANHIA DOS LOBOS”
Mirian Lúcia FERREIRA (UFCAT)1
RESUMO
502
Anais
Ocidente, de Jean Delumeau (2009), Da fera à loira, de Marina Warner (1999), A mulher
que eles chamavam fatal, de Mirelle Dottin-Orsini (1996), dentre outros.
ABSTRACT
In the short story The Company of Wolves, initially published in 1979, Angela Carter
intertextualizes with the fairy tale Little Red Riding Hood, by Charles Perrault. The rewriting
seeks to deconstruct the social role of the main character, who goes from passive and
submissive to being portrayed as empowered, voracious, and sensual. Both versions make
us think about issues that women have been subjected to throughout time, such as the
patriarchal order, for example. In the case of traditional fairy tales, the female figure is
portrayed as either domesticated or perverse, while the rewritten tales, and here we quote
Carter, are guided by transgression insofar as they bring women as protagonists and owners
of their destinies. However, the question still remains: are women in fact free to choose, or
are they still objects of desire, belonging to a new patriarchal order of imprisonment? Our
goal, therefore, is to demonstrate that despite being separated by centuries, both works still
bring common issues, such as marginalized women, holders of sin and guilt, condemned and
maintained as forms of otherness. To further our readings, our research will draw on
theories about female representations and misogyny. We will use the works History of fear
in the West, by Jean Delumeau (2009), From the beast to the blonde, by Marina Warner
(1999), The woman they called fatal, by Mirelle Dottin-Orsini (1996), among others.
Introdução
The Bloody Chamber and other stories é uma coleção de contos da autora britânica
Angela Carter, cujo trabalho foi e continua sendo amplamente divulgado por críticos
contemporâneos, apesar de sua morte prematura em 1992. A coleção de contos de Carter foi
publicada pela primeira vez em 1979 e ganhou o Prêmio Literário do Festival de Cheltenham.
Este trabalho é uma revisão de contos de fadas clássicos que possuem um viés feminista
contra as formas de patriarcado impostas à sociedade quando foram escritos. Carter deixou
claro que, neste trabalho, sua intenção não era fazer versões de contos de fadas tradicionais,
mas usá-los como material para extrair histórias clássicas para iniciar novas narrativas.
Carter conta a história de uma menina cujo nome é Chapeuzinho Vermelho, que está
na puberdade. Uma menina que não tem medo de nada, principalmente da floresta, seus pais
dizem que a floresta é perigosa porque há lobisomens por toda parte. No caminho para
visitar sua avó, ela conhece um belo rapaz que aposta que se ele chegar primeiro na casa de
sua avó, ela o beijará. No entanto, o menino bonito, que era lobisomem, comeu a pobre vovó,
503
Anais
e planejava comer Chapeuzinho Vermelho, foi seduzido por ela para sua surpresa: ela
conseguiu não ser devorada pelo lobisomem, e entende-se que Chapeuzinho Vermelho
conseguiu fazer sexo com ele porque a história termina com a seguinte frase: "Ele dormia na
cama da avó, entre as patas do lobo tenro". (Carter, 1979, p. 129).
A composição dos personagens, especialmente as personagens femininas, expressa
uma crítica ao patriarcado e uma ruptura com seus valores na história. Portanto, o objetivo
deste estudo é ler o artigo The Company of Wolves, tendo em vista a fratura do estado
feminino de representação feminina no patriarcado, ou seja, o ideal de comportamento
feminino mudou, causando surpresa ao leitor. Para leitores acostumados aos contos de fadas
tradicionais e seus finais moralizantes e óbvios.
Os contos de fadas começaram como uma tradição oral, contada pelos agricultores
para agradar aqueles que pertenciam à sua comunidade. Essas pessoas se reuniam para
ouvir as narrativas, para entreter e também para servir como fonte de aprendizado, a partir
dos exemplos de comportamento social contidos nas histórias. Uma vez considerada uma
fonte de entretenimento e ensino, é comum oferecer lições morais explícitas. Portanto, é
necessário registrar essas narrativas orais e dar-lhes o caráter da época, bem como as
questões sociais e ideológicas dominantes. O trabalho de transcrição de exercícios de ditado
foi iniciado pelo escritor francês Charles Perrault e continuado décadas depois pelos Irmãos
Grimm.
É importante ressaltar que as obras transcritas criam uma ilusão de fidelidade entre
seus leitores porque os autores fizeram escolhas específicas em seus textos. Dessa forma, o
resultado da transcrição é uma montagem de palavras colocadas pelo autor e integradas pelo
leitor, visto que não tem acesso ao texto original. Conforme cita Lejeune na seguinte
declaração:
O gênero conto de fadas foi institucionalizado, dessa forma, Martins afirma que
504
Anais
A ausência de vozes femininas ocorre não apenas nos preparadores da história, mas
também, muitas vezes, no processo de criação literária, no processo narrativo, onde os
discursos das personagens femininas são revistos e até mesmo excluídos. Como argumenta
a escritora indiana Spivak (2010), essa reticência imposta às personagens e escritoras
femininas reflete uma sociedade da época, que via as mulheres como subordinadas
superiores, as marcava como secundárias, que é um assunto apagado da história e da escrita.
A estudiosa Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar (2010), enfatiza que a subclasse é
"pessoas que pertencem às camadas mais baixas da sociedade, excluídas do mercado, da
representação política e jurídica e que podem se tornar membros de um estrato social
completamente dominante" (SPIVAK, 2010, p. 12). Nos contos de fadas, a mulher é quem
ocupa esse papel subalterno.
Diante disso, vemos uma reprodução do discurso silencioso das mulheres nos contos
de fadas nos escritos de Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863) e William
Grimm (1786-1859). Analisando os séculos em que Perrault e os Irmãos Grimm viveram, a
articulação entre o estado da produção literária e a esfera social atesta o discurso do
patriarcado, aspecto marcante da narrativa clássica. No entanto, ainda que esses autores
acrescentem que revelam seus princípios de ordem religiosa ou social, “isso não implica
necessariamente uma mudança significativa em relação à ideologia patriarcal por trás do
texto” (Martins, 2005, p. 10).
O revisionismo, comum hoje, constitui uma estratégia de manipulação das
convenções literárias, abrindo a possibilidade de que as histórias sejam revistas e
reestudadas a partir de outras perspectivas. Adrienne Rich o define como "o ato de olhar
para trás, olhar-lhe com novos olhos e inserir um texto antigo de uma nova direção crítica"
(1985, p. 2045). A crítica feminista mais tarde tentou atribuir papéis a personagens
femininas em contos de fadas ao longo dos anos. O revisionismo é uma técnica que erve como
505
Anais
ferramenta para abrir fronteiras na história cultural de todas as mulheres que ficaram em
silêncio no passado. Portanto:
Andando por uma floresta, ela encontrou uma amiga loba e quis comê-la,
mas não se atreveu porque havia lenhadores na floresta. Ele perguntou para
onde estava indo. A pobre menina, sem saber que era perigoso parar e ouvir
o lobo, respondeu: "Vou visitar minha avó e trazer-lhe um bolo e um
pequeno pote de manteiga da minha mãe." "Sua avó mora longe, perguntou
o lobo, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Ela mora longe do moinho, na
primeira casa da aldeia”. “Excelente!” disse o lobo. "Eu vou vê-la também. Eu
vou por aqui, você vai por ali. Vamos ver quem chega lá primeiro."
(MACHADO, 2010, p. 43).
As feras rugiam para a lua com seus focinhos afiados, como se ela tivesse
partido seu coração. Dez lobos, vinte lobos, mais do que ela podia contar,
uivando em uníssono, como se estivesse louco ou distraído. Seus olhos
captaram a luz da cozinha, brilhando como uma centena de velas. Está muito
frio, coitado, disse ela. Não é à toa que eles estavam soluçando. Ela fechou a
janela para bloquear o lamento do funeral do lobo e tirou o xale escarlate das
oferendas e da menstruação. Como o medo não a ajudava em nada, ela não
tinha mais medo. (Carter, 1979, p. 126).
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Angela Carter foi muito além do pensamento feminista dos anos 1970. Ela revisita a
liberdade do corpo feminino, argumentando que a ideia de que o corpo serve apenas para
despertar os homens é vaga porque as mulheres podem fazer mais para alcançar seus
objetivos. Objetivos, usando tentações, por exemplo, jogos ou outros meios para atingir seus
desejos, como nessa passagem do conto:
Ela estava deslumbrada e nua, os dedos penteando seu cabelo; seu cabelo
parecia tão branco quanto a neve lá fora. Então ele caminhou direto para o
homem de olhos vermelhos, os piolhos se movendo em sua juba bagunçada.
Ele ficou na ponta dos pés e desabotoou o colarinho da camisa. (Carter, 1979,
p. 127).
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(...) Arrancou sua camisa e a jogou no fogo ao lado dos vestígios de fogo de
suas próprias roupas descartadas. As chamas dançavam como almas mortas
na noite de São Silvestre, e os velhos ossos debaixo da cama começaram a
colidir violentamente, mas ela os ignorou. Encarnado como um carnívoro,
apenas uma carne impecável pode apaziguá-lo. (Carter, 1979, p. 128).
509
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Perrault veio com a moral porque no final de sua história, Chapeuzinho Vermelho foi
devorado pelo lobo, pois ela ingenuamente parou na floresta para falar com ele e dizer-lhe
para onde ir. Carter, por outro lado, propõe que o comportamento de sua personagem é
completamente diferente da moralidade que Charles Perrault defende. Ela mostra em sua
personagem um ato de saber o que quer e buscar sua própria vontade, uma atitude e um ato
de coragem.
O lobisomem foi quem seguiu as instruções de Chapeuzinho Vermelho, deixando-a
decidir o final da história para os dois. Ao contrário do final de Perrault, além de mostrar a
vulnerabilidade, infantilidade e inocência da protagonista, a falta de atitude de Chapeuzinho
Vermelho a leva a aceitar seu trágico destino:
Perrault termina sua história após esta passagem, dizendo: “Com estas palavras, o
lobo pulou em Chapeuzinho Vermelho e a devorou.” (Perrault, 2010, p. 45). Assim, o autor
pinta sua história de forma objetiva, não deixando espaço para a imaginação e sem espaço
para alterar a história, permitindo que o leitor desenhe exatamente o que diz. Isso fica mais
claro quando comparamos essa passagem com a obra de Angela Carter. Ela usa o diálogo de
mesmo nome da história Chapeuzinho Vermelho, mas sob o preconceito da personagem
feminina, pois o protagonista não se deixa devorar por um lobisomem, mas o seduz,
mostrando que sua personagem é uma mulher com voz e não permite que outros escrevam
510
Anais
sua própria História: “Quão grandes são seus braços. Para te abraçar melhor. Os lobos de
todo o mundo estavam cantando uma canção de casamento do lado de fora da janela, e ela
de bom grado deu-lhe o beijo que ela merecia.” (Carter, 1979, p. 127)
Seus dentes são tão bons! (...) para te comer melhor. A garota riu alto, eu
sabia que não era a carne de ninguém. Ela riu dele, na frente dele, rasgou sua
camisa, e deitou perto do fogo ao lado dos restos ardentes de suas próprias
roupas descartadas. (Carter, 1979, p. 127 e 128)
Conclusão
Angela Carter revisa os contos de fadas clássicos com um viés feminista para
combater as formas de patriarcado impostas à sociedade quando os contos de fadas foram
escritos. Ao fazer isso, ele subverterá essas identidades em um nível consciente, pois fará
com que os leitores questionem e questionem desconfortavelmente a realidade que insere.
A autora usa sua habilidade de escrever por meio da literatura para ampliar maiores
possibilidades para esse leitor desconstruir ideias que antes generalizavam, surpreendiam
e descortinavam uma possível nova forma de olhar o papel da mulher na literatura. Assim,
nos contos de fadas, a moralidade de manter a ordem vigente e difundir o duplo conceito de
bem e mal, certo e errado é questionada por Carter, que abre novas possibilidades para as
personagens femininas dessas histórias.
Assim, neste trabalho, o conto The Company of Wolves é usado como exemplo para
mostrar a obra de Carter tentando derrubar mulheres sempre vulneráveis, ingênuas, caladas
diante das vozes masculinas, sempre seguindo esses estereótipos. Um comportamento
padrão imposto pelo patriarcado, atualizando a antiga tradição dos contos de fadas com uma
versão mais moderna.
511
Anais
REFERÊNCIAS
CADEMARTORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
CARTER, A . The Bloody Chamber and Other Stories. First published in Great Britain by
Victor Gollancz Ltd, 1979.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: Paulinas,
2008.
CRUNELLE-VANRIGH, Anny. The Logic of the Same and Différance: "The Courtship of
Mr.Lyon". In: ROEMER, Danielle M.; BACCHILEGA, Cristina (Ed.). Angela Carter and the Fairy
Tale. Detroit: Wayne State University Press, 2001. p. 128- 144.
MARTINS, Maria Cristina. "E foram(?) felizes para sempre..." : (Sub)Versões do feminino
em Margaret Atwood, A. S. Byatt e Angela Carter. 2005. 295 f. Tese (Doutorado em Letras:
Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2005.
RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-vision. In: GILBERT, Sandra M.;
GUBAR, Susan (Ed). The Norton Anthology of Literature by Women: The Tradition in
English. New York: W.W. Norton, 1985. p. 2044-56.
SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? 1.ed . Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos
Pereira Feitosa; Andre Pereira. Belo Horizonte. Editora da UFMG, 2010.
WALKER, Barbara G. Feminist fairy tales. New York: Harper Collins. 1996.
WARNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. Trad. Thelma
Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
512
O RACISMO RETRATADO NA
NARRATIVA ÚRSULA DE
MARIA FIRMINA DOS REIS E
NO CONTO MARIA DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
Welliton dos Anjos BARBOSA (UESPI)1
Antonio Vinícius da Silva NASCIMENTO (UESPI)2
Debora Keyte Rodrigues LIMA (UESPI)3
Jailma Santana SILVA (UESPI)4
Luana Clenilda de SOUSA (UESPI)5
Maria Aurilene de SOUSA (UESPI)6
Mariza de Moura Machado GUIMARÃES (UESPI)7
Mônica Maria Feitosa Braga GENTIL (UESPI)8
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar, uma análise comparatista entre as obras
Úrsula da escritora Maria Firmina dos Reis e o conto Maria que está no livro de contos Olhos
D'Água da escritora Conceição Evaristo, evidenciando que ambas possuem em suas
narrações a exposição de um problema que tem sido persistente na sociedade brasileira, o
racismo. A partir da escrevivência, as autoras relatam os atos de racismo que aconteceram
no Brasil em Úrsula, e ainda acontecem, em Maria. Lima e Vala (2004), ao apresentarem uma
definição de racismo afirmam que: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização,
513
Anais
exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida
como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re-
significada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de
comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p. 402). Desse modo, mostraremos que Úrsula e Maria
apresentam em suas narrativas representações do racismo, mesmo que sob perspectivas
diferentes, através da atitude de personagens, que se colocam em situação de superioridade,
desumanizando aqueles que possuem uma cor de pele diferente, sentindo-se livres para
praticar violência contra seus corpos, e que se utilizam de estereótipos para agredir o outro.
ABSTRACT
This paper aims to present a comparative analysis between the works Ursula by the writer
Maria Firmina dos Reis and the short story Maria, which is in the book of short stories Olhos
D'Água by the writer Conceição Evaristo, showing that both have in their narratives the
exposure of a problem that has been persistent in Brazilian society, racism. Based on their
experience of writing, the authors relate the acts of racism that happened in Brazil in Ursula,
and that still happen in Maria. Lima and Vala (2004), when presenting a definition of racism
state that: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação
contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base
em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re-significada em termos de
uma marca cultural interna que define padrões de comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p.
402). In this way, we will show that Ursula and Maria present in their narratives
representations of racism, even if from different perspectives, through the attitude of
characters, who put themselves in a situation of superiority, dehumanizing those who have
a different skin color, feeling free to practice violence against their bodies, and who use
stereotypes to attack the other.
O livro “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis e o conto “Maria” de Conceição Evaristo
compartilham uma mesma temática, o racismo, possuindo nas suas narrações a
representação dos sofrimentos enfrentados pelos negros no Brasil, no passado com a
escravidão, e no presente, com o preconceito racial. As obras foram escritas em períodos
diferentes e se passam em períodos diferentes, contudo ambas estão conectadas, são
comprometidas em expor e denunciar um problema da sociedade brasileira que se
perpetuou através do tempo, continuando a causar sofrimento e dor. Destacaremos a seguir
alguns elementos em comum entre as duas obras, bem como as discussões e reflexões que
podem surgir tendo-as como ponto de partida.
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, nos apresenta uma história de amor entre dois
jovens extremamente apaixonados, Úrsula e Tancredo, narrando como se dá e se desenvolve
esse romance. Contudo como apresenta Rosa ao parafrasear Teles: “[...] o que mais distingue
514
Anais
o livro não é o enredo romântico de amor, dor, incesto e morte, temas comuns ao romance
do século XIX, mas o tratamento dado à questão do escravo.” (TELES, 1997 Apud ROSA, 2018,
p. 3). O maior destaque do livro está em apresentar e representar a questão daqueles que
foram arrancados de sua terra e trazidos para o Brasil para serem escravizados, fazendo-o
com um olhar humano, dando evidência aos terríveis sofrimentos e privações que eles
passaram, sempre enfatizando a perda, ou melhor, o roubo da liberdade dos negros forçados
a serem escravos, como verificamos no seguinte fragmento que é uma conversa entre Túlio
e Suzana, ambos personagens negros:
Podemos ver nas palavras de Suzana a dor que ela sente quando se lembra da época
em que era livre e chora com amargura, infelizmente como ela mesmo diz lágrimas inúteis,
prestando seu tributo de saudade, a personagem transmite ao leitor seu sentimento de
aflição, percebe-se que há aqui, uma intenção por parte da autora em mostrar como se
sentiam aqueles que eram desumanizados, evidenciando como era grande o sofrimento e
como havia a saudade da terra natal e do tempo em que se era livre. A autora em diversos
momentos da obra confronta o leitor com os pensamentos e sentimentos dos personagens,
mostrando uma preocupação de nessa representação apresentar uma visão interna e não
externa da escravidão.
Enquanto que, no conto Maria de Conceição Evaristo, vê-se a representação do
racismo nos dias atuais mostrando que as práticas de violência contra o corpo negro
persistem através do tempo. A narrativa mostra o fim de um dia de trabalho de uma
doméstica chamada Maria, quando ela está voltando para casa e pega um ônibus que é
assaltado. No desenrolar da história, Maria acaba sendo acusada de ser cúmplice do assalto
por ter envolvimento com um dos assaltantes. A narrativa evaristiana mostra de forma crua
a violência que é enfrentada pelos negros no Brasil, infelizmente, o conto pode confundir-se
com a realidade de uma notícia atual. Maria em uma narrativa breve, porém impactante,
deixa evidente o racismo que existe na sociedade brasileira, e a facilidade com que uma
pessoa negra pode ser brutalmente agredida no Brasil.
515
Anais
Pode-se ver nas obras, exatamente o que é definido por Herculano como racismo, a
anulação do outro como semelhante, como pessoa, como sendo não dotado das mesmas
características humanas, apenas por possuir uma cor de pele diferente, sendo por isso a ele
atribuída uma raça diferente. Há nos personagens das obras, a sensação de superioridade e
a imputação de inferioridade nos negros, isso fica evidente em Úrsula no comportamento do
personagem Túlio em relação a Tancredo logo na primeira vez em que se encontram:
“Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou, com o acanhamento que a
escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser-
vos útil. Perdoai-me!”. (REIS, 2018, p. 20).
Verifica-se que Túlio, havia sido ensinado a se ver como menor pela escravidão, pois
mesmo em uma situação em que estava prestando socorro, sente-se pressionado a pedir
perdão pela atitude que tomou diante de seu “superior” sem que este lhe tenha dado a devida
permissão para ajudar. O que reforça a representação real dos efeitos que a escravidão sobre
aqueles tornados escravos, que tentava fazer com que estes se vissem da forma que eram
vistos pelos escravizadores, sendo desumanizados. Túlio não conhecia Tancredo, mas
mesmo assim já havia sido ensinado a considerá-lo como superior a si, apenas pelo fato de
ele ser branco, fica clara a ideia de separação que a escravidão buscava implantar. Tancredo
tenta se aproximar e estabelecer uma relação no mesmo nível mostrando também gratidão,
chamando-o de amigos: “— Meu amigo, – continuou – podes acreditar no meu
reconhecimento e na minha amizade.” (REIS, 2018, p. 20), porém Túlio insiste: “A minha
condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Ah! O
escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que...” (REIS, 2018, p 21).
Em Maria também podemos perceber que o racismo definido por Herculano está
presente, quando a personagem é diminuída, desumanizada e tratada como inferior por
outros ocupantes do ônibus. Ela não é vista como igual, e por ser de outra “raça” não lhe é
dado o direito nem de explicar-se, aliás lhe é retirado o direito de sequer defender-se, ela foi
acusada, julgada e condenada quase que no mesmo instante, restando àqueles que eram
516
Anais
517
Anais
lhe uma carga negativa, na tentativa de uma ofensa, imagens que foram sendo criadas através
do tempo, emergindo dos estereótipos que são frutos da escravidão.
Nota-se também que as duas obras dão uma atenção especial para a questão da
mulher negra. Em Úrsula somos apresentados a uma personagem chamada Suzana, ela foi
retirada da sua terra trazida para o Brasil de navio e tornada escrava, tendo sua história e
sua vida no seu país de origem completamente ignorados. Na narração feita pela própria
Suzana em uma conversa com Túlio, percebemos a sua dor, em um momento ela era livre, e
alguns segundos depois sua vida tinha mudado completamente. Ela saíra para colher milho,
deixando sua filhinha aos cuidados da mãe, porém ela não sabia que nunca mais a veria:
“Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah!
Nunca mais devia eu vê-la…” (REIS, 2018, p. 70). A vida de Suzana muda bruscamente e
rapidamente:
518
Anais
Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham
enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar
fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os
dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e
aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata
de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham
comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão? (EVARISTO,
2016, p. 24).
Nota-se que, ao questionar se os seus filhos iriam gostar de melão, ela demonstra e
retira de si a preocupação de qualquer outra coisa em relação a seu próprio bem-estar.
Assim, temos uma personagem que traz consigo não só o peso imposto pela sociedade de ser
uma mulher negra, mas que enfrenta a dificuldade de ser mãe solo. Logo, seu trabalho e sua
dedicação vão direcionar-se apenas a como eles estarão no fim do dia. Os restos e a gorjeta
são mais úteis se puderem suprir as necessidades de seus pequenos. Ao reencontrar o pai de
seu filho, Maria remonta lembranças de um passado. Ambos se desmontam e reconhecem
que a vida não continuou fácil.
Evaristo (2016) toca em um ponto de bastante relevância: “surgiram os dois filhos
menores. E veja só, homens também! Homens também? Eles haveriam de ter outra
vida.”(EVARISTO, 2016, p. 24). A autora usa estas palavras para deixar claro como a vida de
um homem pode tornar-se melhor e mais próspera ou, simplesmente, distante da dureza
que é ser uma mulher. O fato é que ela parece mais aliviada por ter filhos, e não filhas, já que
aparentemente, o homem não tem o mesmo peso ou responsabilidade de ser pai, e não é
cobrado por isso.
Pode-se ver que as obras apresentam diferentes manifestações de racismo, Úrsula
apresenta a crueldade da escravidão, mostrando como eram tratados os escravizados, vistos
apenas como mercadorias como se não possuíssem humanidade, como se não fossem
pessoas iguais aqueles a quem serviam:
Como o próprio trecho deixa claro, Suzana é tratada de forma inferior a um ser
humano, o que importava era que o “produto” chegasse até o Brasil e fosse comercializado,
519
Anais
aquelas pessoas eram apenas mercadorias que estavam sendo transportadas, em nenhum
momento são minimamente reconhecidas como semelhantes. Em Maria vemos que a
situação não mudou muito, Maria, acaba sendo marcada por ser negra: “A primeira voz, a
que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava
com os ladrões!” (EVARISTO, 2016, p. 25). Certamente, ela não teria sido acusada e
brutalmente assassinada se fosse de outra cor.
As obras apresentadas mostram a liberdade que os brancos sentem em praticar
violência contra o corpo negro, em Úrsula, vemos o terrível tratamento que era dado aos
escravizados, por exemplo, quando destaca como era a vida dos escravos do Comendador:
“Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas de sono
fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor”. (REIS, 2018, p. 98). Em Maria vemos a
mesma situação se repetir agora sob outra forma, mas ainda assim demonstrando a
liberdade sentida por aqueles que se colocam em situação de superioridade: “Lincha! Lincha!
Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado
e as frutas rolavam pelo chão” (EVARISTO, 2016, p. 26). As pessoas tanto daquela época
quanto de hoje, aplicam essa violência com uma normalidade e naturalidade que não deveria
acontecer. As obras cada uma a sua forma são um grito de denúncia, e mostram a liberdade
que foi brutalmente roubada de Maria, com sua morte, de Túlio, Suzana e tantos outros com
a escravidão. O que se observa ainda é que a cor de sua pele parecia ser o suficiente para
justificar as agressões verbais e físicas, como também ter domínio sobre seu corpo, de modo
a tratá-lo como lhes parecia justo.
Úrsula apresenta em determinado momento uma visão otimista sobre o futuro,
conforme a fala de um personagem, uma esperança de dias melhores onde a situação que era
vivenciada seria extinta: “— Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o
jovem cavaleiro – dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos.”(REIS, 2018,
p. 21). É triste saber que embora a situação tenha mudado, e tenha melhorado em muitos
aspetos a esperança que é apresentada em Úrsula sobre o futuro melhor, não se concretiza
completamente, Maria nos mostra que infelizmente a mudança que ocorreu não foi o
suficiente, ainda se mantém muito preconceito e violência, percebe-se que nem todos os
homens se veem como irmãos. É fato que o período da escravidão deixou marcas profundas,
não somente para aquele século. Há aqueles que tomam esses registros históricos para
transformar os dias de hoje, para que não se repitam, e isso se dá pelos movimentos de luta
em prol de seus semelhantes, sendo que muitas vezes estes são menos favorecidos na
520
Anais
sociedade contemporânea. Quando lemos o que registra Evaristo (2018), nos entristecemos,
sabendo que alguns fecham os olhos como ato de negação para combater o racismo e não
admitem que ele ainda está presente, e são alguns desses que o reproduzem para abrir
feridas.
Conforme aponta Nilha (2021): “A palavra "escrevivência” foi criada por Conceição
para definir a sua arte: escrever a vivência do dia a dia e das lembranças dela mesma e de
seu povo. Palavras e vida, sempre unidas, como ela havia aprendido ao guardar no peito as
histórias que eu via no pindura saia.” (2021). Dessa forma destacamos que as obras citadas,
se enquadram nesse estilo de escrita, suas histórias contém a vivência do passado e do
presente, as lembranças do sofrimento enfrentado pelos negros no brasil, sinalizando que
até hoje discriminações semelhantes aconteçem. Em Úrsula a escravidão é apresentada sob
uma ótica interna, promovendo uma aproximação com as histórias narradas, em Maria o
racismo é mostrado com clareza, bem como suas consequências mais severas.
Orlando Nilha (2021) ao falar sobre a literatura de Evaristo também diz:
A literatura de Conceição resgata uma voz ancestral, voz das “mães pretas”
escravizadas que eram obrigadas a contar histórias para entreter os filhos
dos senhores. Conceição não ecoa essa voz para agradar aos ouvidos das
classes privilegiadas, mas para expressar o mundo interior da mulher negra:
“a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-
grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (NILHA, 2021, p.
29).
521
Anais
como guia e espelho para que se reconheçam e sintam-se inspirados a erguer sua própria
voz.
As narrativas acima contam a história de personagens negras que, embora estejam
localizadas em períodos históricos diferentes sofrem com o problema do racismo, sendo
desumanizadas, humilhadas e tratadas com muita violência, contudo, fora da literatura
continuam existindo várias “Marias”, “Túlios” e “Suzanas” que convivem com essa realidade
atordoante. O racismo é um fator persistente nas diversas camadas sociais, mas as mulheres
negras e de baixa renda acabam sendo mais martirizadas, ficando evidente o problema
estrutural no Brasil. O corpo negro é sexualizado e objetificado, causando a desvalorização
da mulher negra, resumindo-a a algo que ainda sirva somente para suprir prazeres alheios.
As obras possuem uma distância entre os anos em que se passam, todavia ao serem
comparadas, mostram que tratam da mesma temática, mesmo que cada uma represente sob
sua perspectiva os problemas da época em que se passam, infelizmente tais problemas ainda
persistem na sociedade e violentam essas mulheres. O tema tratado é de grande importância
e tais obras são muito pertinentes para que essas questões possam ser discutidas através da
literatura, reconhecer e estudar esse acervo é enaltecer a escrita feminina negra diante de
uma sociedade que não reconhece o valor dessa literatura.
REFERÊNCIAS
ROSA, Soraia Ribeiro Cassimiro. Um olhar sobre o romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis. Revista Literafro, Belo Horizonte, 2018.
REIS, Maria Firmina. Úrsula e outras obras [recurso eletrônico]. ed. 11. Brasília: Câmara
dos Deputados, Edições Câmara, 2018.
HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Racismo ambiental, o que é isso. Rio de Janeiro:
Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006.
522
“UMA FORMA QUE ENCONTROU
PRA POLÍTICA EXERCER FOI NA
ARTE LITERÁRIA”: Uma análise
do cordel Maria Firmina dos
reis, de Jarid Arraes
Mairylande Nascimento Cavalcante Ferreira (PPGLB-UFMA/FAPEMA)1
Mikeias Cardoso dos Santos (UFMA-PPGLB)2
Orient.: Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA-PPGLB/PGCult)3
RESUMO
Este estudo tem a intenção de analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que faz
parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes,
lançado em 2017. Na obra em destaque, a autora versifica 15 mulheres negras que
exerceram um importante papel na sociedade. A poesia de cordel surgiu em Portugal por
volta do século XV, e espalhou-se pela França e Espanha, e em meados do século XVII o sertão
Federal do Maranhão – UFMA, no Centro de Ciências, Educação e Linguagens de Bacabal – CCEL na Área de
Concentração Linguagem, Cultura e Discurso com ênfase na Linha de Pesquisa 2 Literatura, Cultura e Fronteiras
do Saber. Integrante do Literatura e Visualidade - CNPq-UFS e do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense
- NUPLIM/ CNPq-UEMA. E-mail: mikeias.cardoso@discente.ufma.br
3 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Docente adjunto III do curso de Letras da Universidade
523
Anais
do Brasil foi agraciado com esse gênero literário, isso aconteceu por causa da vinda dos
colonizadores da Península Ibérica que trouxeram seus livros para as terras brasileiras,
sendo ressignificados de acordo com a história e o contexto dos que a teciam no novo
território. Com uma linguagem acessível, o cordel não ficou somente no Nordeste do Brasil,
espalhando-se por todo o país. Na literatura brasileira estão presentes mulheres escritoras
que publicam suas obras e têm seu reconhecimento para tal oficio. Nesse sentido, buscamos
analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis, o qual narra a trajetória de vida e luta da
primeira romancista negra brasileira que nascera em São Luis-MA,11 de outubro 1825. Ela
escreveu contos, livros e poesias, entre suas obras de grande potência destacamos o romance
Úrsula, publicado em 1959, que é visto por uma parcela da crítica literária como o primeiro
romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil. A
metodologia aplicada é de caráter analítico e a pesquisa é bibliográfica. O aporte teórico é
composto por autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei (2019), Mendes (2006)
e Dalcastagnè (2015/2018).
ABSTRACT
This study intends to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis that is part of an
anthology entitled Heroínas negras brasileira em 15 cordels, by Jarid Arraes, released in
2017. In the featured work, the author versifies 15 black women who exercised an important
role in society. Cordel poetry emerged in Portugal around the 15th century, and spread to
France and Spain, and in the mid-17th century the sertão of Brazil was graced with this
literary genre, this happened because of the coming of the colonizers from the Iberian
Peninsula. who brought their books to Brazilian lands, being re-signified according to the
history and context of those who wove it in the new territory. With an accessible language,
cordel was not only in the Northeast of Brazil, spreading throughout the country. In Brazilian
literature there are women writers who publish their works and have their recognition for
such an office. In this sense, we seek to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis,
which narrates the life and struggle of the first black Brazilian novelist who was born in São
Luis-MA, October 11, 1825. She wrote short stories, books and poetry, among In his works
of great power, we highlight the novel Úrsula, published in 1959, which is seen by some
literary critics as the first abolitionist novel and the first novel written by a black woman in
Brazil. The methodology applied is analytical and the research is bibliographic. The
theoretical contribution is composed by authors such as: Arraes (2017), Fanon (2008),
Tolomei (2019), Mendes (2006) and Dalcastagnè (2015/2018).
524
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é popular por apresentar uma linguagem acessível e que agrada os mais variados grupos de
leitores.
Sobre a literatura de cordel ser popular, Arantes (1998), nos fala que:
525
Anais
O artigo tem o objetivo de apresentar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que
faz parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis, de Jarid
Arraes, lançado em 2017, a autora versifica 15 mulheres negras que tiveram um importante
papel na sociedade. Entre as 15 Poesias de Cordel foi escolhido o folheto de cordel Maria
Firmina dos Reis, o cordel narra à trajetória de vida e luta, de uma das mais importantes
romancistas do Brasil. Essa poetisa e romancista nasceu em São Luis-MA, dia 11 de outubro
1825, foi uma grande ativista em favor da raça negra.
A escolha de analisar o folheto de cordel em questão foi em decorrência de sua
importância para o Contexto histórico-social para nossa Literatura Brasileira, e de
apresentar a primeira romancista negra brasileira. Além de escrever prosa, Maria Firmina,
escreveu contos, poesia, uma de suas obras famosa é o romance Úrsula, publicado em 1959
como primeiro romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no
Brasil.
Acredita-se, que a Literatura Brasileira tem a presença de muitas mulheres escritoras
e poetisas que publicam anualmente suas obras e tem o seu reconhecimento merecido por
tal oficio, graças às tantas mulheres que se destacaram e, ainda, são destaques na tarefa
árdua que demanda tempo e dedicação, o ato de escrever.
Na construção do trabalho será considerada que a metodologia aplicada é de caráter
analítico, pesquisas bibliográficas e com a análise de fragmentos do folheto de cordel em
questão. A pesquisa está apoiada em autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei
(2019), Mendes (2006) e dentre outros estudiosos e teóricos que serão vistos no decorrer
do artigo.
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527
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Esse gênero textual comunica de maneira popular às culturas dos diversos povos e
nações, além disso, tem o interesse de divulgar conhecimentos para as futuras gerações que
alimentam o imaginário com as histórias que são registradas no folheto de cordel por meio
dos cordelistas e cantadas pelos repentistas por meio da viola.
Corroborando com o que foi dito anteriormente Certeau fala sobre a “cultura
popular”:
A ‘cultura popular’ supõe uma ação não-confessada. Foi preciso que ela fosse
censurada para ser estudada. Tornou-se, então, um objeto de interesse
porque seu perigo foi eliminado. [...] Uma repressão política está na origem
de uma curiosidade científica: a eliminação dos livros julgados subversivos
e imorais. [...] Os estudos desde então consagrados a essa literatura
tornaram-se possíveis pelo festo que a retira do povo e a reserva aos letrados
ou aos amadores. [...] Ao buscar uma literatura ou uma cultura popular, a
curiosidade científica não sabe mais que repete suas origens e que procura,
assim, não reencontrar o povo. (CERTEAU, 2001, p. 55-56).
Na fala de Certeau “‘a cultura popular’ precisou ser censurada para ser estudada pelos
estudiosos e defensores dessa cultura do povo.” A literatura popular até hoje é criticada pelos
defensores do cânone, por causa de sua linguagem acessível e também por ser escrita
pessoas que possui poucas instruções das letras, mas ao longo dos anos essa literatura
popular está ganhando formas e incentivando pessoas interessada sem estudar, conhecer e
divulgar por meio dos estudos da academia as produções da cultura popular.
Em relação ao interesse dos estudos da cultura popular, a literatura de cordel também
pode ser pensada por meio dos estudos culturais, corrente de pensamento que teve início
por volta dos anos 1950 e 1960 desenvolveu nos EUA, pois nos possibilita os estudos e
observar o além das culturas nos diversos grupos sociais, tais como: pós-colonialismo e
multiculturalismo, movimentos negros e dentre outros assuntos.
Em relação a necessidade de estudarmos os Estudos Culturais, Cardoso nos fala que:
528
Anais
Segundo a citada os Estudos Culturais vieram a somar com os estudos literários, pois
ampliou o leque de corpus de investigação dos estudiosos, que passam a buscar novas
fronteiras do saber e levando ao estudo interdisciplinar dos assuntos que podem dialogar
com os mais variados estudiosos e teóricos de nossa literatura. A exemplo da literatura de
cordel que também traz sua parcela de contribuição, pois faz parte meio literário que está
em ascensão na academia.
A Literatura de Cordel recebeu recentemente um título através do IPHAN – Instituto
do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, considerado a partir do ano de 2017 como o
“Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro”. Uma conquista muito valorosa dos defensores da
cultura popular que incansavelmente buscam o reconhecimento de suas raízes e tradições
para que as novas gerações venham a conhecer e preservar.
3 Análise literária do folheto Maria Firmina dos Reis, de Jarid Arraes “Uma
Maranhense”
529
Anais
local e data de nascimento São Luís-MA no dia 11/10/1825.Nesse período o país sofria um
momento muito triste de sua história a escravidão que assolava africanos que vieram ao
Brasil em navios negreiros como cativos que durou a partir de meados de 1530, século XVI,
e termina no século XIX com A Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em maio de 1888.
A seguir são expostas as dificuldades de Maria Firmina para conseguir concretizar o
sonho de ser professora:
(...)
Para ter vida melhor
Com a tia foi morar
Sempre muito esforçada
Conseguiu se educar
Pois sabia da importância
Que existe em estudar. (ARRAES, 2017, p. 108).
A protagonista da narrativa teve uma vida muita sofrida, além de sofrer preconceito
era pobre e humilde, porém ela não se deixou abater diante das circunstâncias, era muito
dedicada para com os estudos, resolve mudar de vida e foi “Com a tia foi morar”, o resultado
de sua dedicação foi tamanha “Quando foi ela aprovada” para trabalhar em uma escola como
professora efetiva.
Em relação a vida dura de Maria Firmina dos Reis, Mendes (2006) nos diz que Firmina
era:
Firmina era uma mulher além de seu tempo, pois diante das situações que eram
desfavoráveis por causa de sua posição social não a deixou se intimidar, e
consequentemente, concretiza seus sonhos, entre eles ser aprovada em primeiro lugar como
professora concursada do Estado do Maranhão. Uma conquista por méritos próprios. Isso
enaltece a figura feminina que através de Maria Firmina, busca sua independência diante de
uma sociedade que observa a mulher como um ser inferiorizado.
E sua luta não parou somente na educação:
530
Anais
Maria Firmina sempre lutou pela educação e tinha seu coração o desejo de acabar com
a escravidão de seu povo, pois acreditava que cedo ou mais tarde a abolição aconteceria. A
romancista encontrou no ato de escrever o desejo de exercer sua libertação e de seu povo
com a escrita de “Contos, livro e poesia” que ajudaram alimentar seus anseios como uma
mulher sonhadora. Firmina não perdeu tempo escrevia suas poesias de amor para jornais da
época, porém não assinava com sua autoria.
Sobre a destreza e garra de Firmina relatada nas estrofes anteriores, segundo
Cristiane Tolomei:
Segundo a citada as mulheres eram subalternizadas por causa do machismo que era
frequente, em tempos remotos que a mulher não tinha o direito de falar e muito menos de
escrever e publicar suas obras. Mas ao longo dos tempos a mulher vem conseguindo ocupar
direitos que outrora foram renegados pelo homem, como o direito a publicação de livros, ao
voto democrático e outros direitos que foram conquistados por meio do “movimento
protofeminista” que defendia as causas e interesses das mulheres, semelhantemente, como
hoje temos as feministas.
Em seguida Arraes apresenta a publicação do livro de Maria Firmina e sobre o
pseudônimo de Firmina:
(...)
Como “Úrsula” chamou
Seu romance publicado
E na História brasileira
531
Anais
Ao publicar Úrsula, Maria Firmina dos Reis desconstrói uma história literária
etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações
afrodescendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da
literatura brasileira, [...], mas é também o primeiro romance da literatura
afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente,
que tematiza o assunto do negro a partir de uma perspectiva interna e
comprometida politicamente em discutir a condição dos negros no Brasil
[...]. O romance Úrsula vem inaugurar, em nossas letras, o momento em que
remanescentes escravos tomam, com as suas mãos, o sonho de, através da
literatura, construir um país sem opressão. (DUARTE, 2004, p. 279).
Para o citado a obra Úrsula marca uma nova história no meio literário, pois é por meio
dessa obra que a produção feminina ganha destaque, na medida que apresenta o primeiro
romance abolicionista escrito por uma mulher negra, que discute por meio de sua prosa os
interesses da população negra, que buscava o respeito e o reconhecimento de seus direitos,
pois foram revogados ao longo dos séculos.
A seguir Jarid destaca o dom da arte de escrever que Firmina possuía:
(...)
Quando publicou seu livro
Chegou mesmo a falar
Que não tinha educação
E o prestígio elementar
De quem era branco e rico
Podendo a tudo comprar. (ARRAES, 2017, p. 110).
A protagonista afirma que quando lançou seu livro não possuía a educação de branco
e muito menos era uma pessoa rica, mas tinha a força de uma mulher, por que ela sabia
escrever “E sabia o seu valor”, detinha o talento de escrever, pois dava o brilho em sua escrita
que tanto faz refletir os leitores e ouvintes que estudam as obras literárias de Firmina.
Em relação à submissão do negro para com seu senhor, Maria Luiza Tucci Carneiro,
na obra O racismo na história do Brasil: mito e realidade (1996), diz:
532
Anais
O negro não tinha forças para libertar do homem branco, pois com a “libertação” pela
Lei Áurea, o negro voltou a ser escravizado outra vez por meio de trabalhos bem inferiores
que legitimava sua escravidão. O negro sofria a humilhação de não possuir um emprego
digno e tão pouco um salário que desse subsídio para a sobrevivência.
Firmina realiza o sonho de fundar uma escola mista:
Passados os dias como professora na escola em São Luís, Firmina se aposenta e vai
para a cidade de Guimarães-MA, onde por conta própria funda uma unidade de ensino mista
e gratuita no povoado da cidade mencionada, porém seu sonho durou pouco tempo somente
três anos “E o portão já foi fechado”. Isso não foi motivo para Firmina ser vencida em seu
período da história que predominava o machismo, preferindo mostrar sempre a
determinação para lutar por dias melhores por meio suas produções literárias.
A seguir a poeta Arraes apresenta a data que marca o falecimento e o legado que Maria
Firmina deixou:
(...)
Em mil novecentos e dezessete
A Firmina faleceu
Mas deixou para memória
A herança que escreveu
E que sempre a duras penas
Para o mundo ofereceu. (ARRAES, 2017, p. 111).
Diante de tantas lutas e vitórias morre Maria Firmina “Em mil novecentos e
dezessete” uma data que está registrada no pensamento das pessoas “Mas deixou para
memória” as lembranças duras que foram motivos para seguir em frente. Em seguida a
autora do cordel expõe um momento de subjetividade “E a mim muito emociona/ Quase ao
533
Anais
ponto de chorar” e isso de certa forma, contribui para afirmar mais uma vez reconhecimento
do valor literário que Firmina possui para quem lê suas obras.
Em seguida Arraes faz algumas ressalvas a respeito de Firmina, com o intuito de
reconhecimento de suas obras:
(...)
No entanto, me revolta
O nojento esquecimento
Pois nem mesmo na escola
Nem sequer por um momento
Eu ouvir falar seu nome
Para o reconhecimento (ARRAES, 2017, p. 111).
O negro ainda busca sua libertação, essa luta ainda persiste nos dias atuais, quando o
mesmo se depara com as situações da sociedade que não dá o seu devido respeito e valor. O
mesmo se acha pequeno e incapaz de superar e reverter essa situação, porém
correlacionando com o cordel em discussão Firmina a personagem conseguiu superar essa
sensação de ser “inferior” através de sua produção literária, mas esse reconhecimento
chegou tardiamente. A seguir são mencionados alguns livros de Firmina:
534
Anais
Nas duas últimas estrofes a poeta cita algumas obras literárias que marcaram a vida
literária de Reis livro Úrsula e os contos A Escrava e Cantos à beira-mar, isso é um convite
aos leitores para realizarem leituras e discussões acerca dos escritos. E por fim, a autora
enaltece “A Firmina escritora” / “Uma negra corajosa” um jeito de respeito pela romancista
e reafirmar sua importância para a Literatura Negra. Corroborando com as duas estrofes
analisadas anteriormente, Zin (2017) menciona a respeito de algumas obras de Maria
Firmina:
Segundo o citado Maria Firmina apresentava por meio de suas obras literárias
personagens negras como forma de denuncia social sobre o negro que era a temática central
dos seus escritos, mas Firmina foi uma escritora além do seu tempo, pois já questionava e
refletia outras questões pertinentes a sociedade, como a cultura europeia e a cultura
indígena por meio da sua escrita multifacetada.
Firmina por ser negra e não possuir riquezas, conseguiu vencer tudo isso por meio de
sua escrita, na medida que foi uma autora à frente de seu tempo, deixando um legado e uma
lição para seus contemporâneos. Firmina sempre buscou mostrar a força do negro em querer
ser livre das mãos do homem branco, que tanto usurpou seus direitos e falseou uma
libertação. Firmina é um exemplo de mulher que sempre defendeu a libertação, todavia
muito já foi conquistado, como direito a saúde, educação, emprego, direito ao voto e dentre
outros, mas faltam outros que serão conquistados ao longo do tempo. Acreditamos que eles
desejam mais é o reconhecimento de igualdade entre o negro e o homem branco que até hoje
não foi concretizado por causa de um preconceito estrutural da sociedade em querer dividir
as raças como superiores e o negro como inferiorizado.
535
Anais
busca pelo espaço na produção literária. Como Maria Firmina dos Reis, por ser uma mulher
negra não deixou se abater pelas críticas da sociedade, que de certo modo, não davam
vislumbre a escrita feminina que buscava o espaço no cenário da Literatura Brasileira.
A romancista Maria Firmina usou o pseudônimo “Uma Maranhense” em tempos que
a escrita feminina não tinha espaço, mas sua ideia criativa de usar o pseudônimo favoreceu
a divulgação no mundo literário, as pessoas ficaram interessadas em saber quem estava
escrevendo, isso foi se cumprindo na vida romancista que por meio de seus escritos deixou
registrada sua marca na produção da Literatura brasileira e maranhense.
Maria Firmina realizou seu desejo em lecionar e obteve sua aprovação em concurso
público, podemos nos atrever a imaginar que foi uma professora que tentou de todas as
maneiras mudar a realidade daquele grupo de alunos por meio do estudo. Firmina queria
mais, depois que cumpriu sua vida pública, fundou uma escola mista que dava acesso ao
ensino gratuito as pessoas carentes no Maranhão.
Quando se fala abolição não deixar de mencionar Maria Firmina que escreveu uma
obra primorosa sobre o assunto, a obra chamada Úrsula, publicado em 1959. A obra tem sua
importância para academia e também para a literatura afro-brasileira, pois é o primeiro
romance abolicionista e escrito por uma mulher negra no Brasil. Firmina escreveu um
material substancioso para a produção do país. Uma mulher que foi além de seu tempo e
contribui muito para o fortalecimento da raça negra por dias melhores e o respeito de seus
direitos.
O cordel é um gênero textual riquíssimo que não poderia deixar de lado a importância
de Maria Firmina dos Reis e de outras mulheres negras que foram importantes para o Brasil,
esse é o trabalho da autora do cordel analisado Jarid Arraes, que tenta mostrar a voz feminina
no cenário literário, às vozes de mulheres que outrora foi silenciadas e esquecidas por quem
escreve e divulga a história, porém Firmina está sendo divulgada por meio da poesia de
cordel, que tem o seu papel social que é facilitar a divulgação acessível aos seus leitores e
ouvintes.
Referências bibliográficas
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1998.
ARRAES. Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. 1 ed. São Paulo: Pólen, 2017.
536
Anais
CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O racismo na história do Brasil: mito e realidade. 4 ed. São
Paulo: Ática, 1996.
CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001.
DUARTE, Eduardo de Assis. Posfácio. In: REIS, Maria Firmina. Úrsula: A escrava.
Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. p. 265-281.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
MARINHO, Ana Cristina. PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo:
Cortez, 2012.
MENDES, Algemira de Macêdo. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história
da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. 2006.
372 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras. Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis e seu conto Gupeva: uma breve digressão
indianista. Em Tese. Florianópolis. v. 14, n. 1, jan./jun., 2017. p. 31-45.
537
A PRESENÇA DO
INSÓLITO NA FICÇÃO
MARANHENSE/CAXIENSE:
DUAS MULHERES DE
TERRAMOR
Aerlys Pinheiro do SANTOS (UEMA)1
Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2
RESUMO
O trabalho trará uma análise teórica na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) do escritor
Maranhense e Caxiense Osmar Rodrigues Marques (1929), apontando elementos reais e
irreais que por vezes se misturam, ocasionando o fenômeno espantoso, admirável e
incomum, com a finalidade de evidenciá-los na ficção à luz das teorias insólita e seus gêneros
vizinhos: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Rodrigues Marques apresenta-nos uma
incrível ‘viagem’ na leitura, propicia aventura com direito a expectativas à romance, como
também, aguça o imaginário por linhas traçadas com eventos sobrenaturais, naturais e/ou
quiméricos na pequena cidade – interiorana – sinais de fantasia - hesitação; estranheza -
explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de acontecimentos
aparentemente inexplicáveis e imprecisos. Assim, temos como objetivo contribuir para
futuras pesquisas na área literária caxiense e maranhense, possibilitando aos estudantes e
pesquisadores conhecer a grandeza e a importância do acervo literário cultural, além de
resgatar a literatura local e valorizar nossos conterrâneos. Desse modo, são utilizados
referenciais teóricos que nos cercam de reflexão sobre a presença da teoria no decorrer da
1 Graduanda em Letras e Literaturas da Língua Portuguesa – CESC / UEMA, membra do NuPLiM/CNPq e LICLE
(Liga Interdisciplinar do Curso de Letras)
2 Professora Dra. Solange Santana Guimarães Morais dos cursos de Letras-CESC/UEMA, do Mestrado em Letras-
538
Anais
narrativa, no qual, instiga uma leitura atenta e emotiva, visto que para identificá-las está
intrinsecamente ligado ao deleite do leitor. Para tanto, acolheremos Tzvetan Todorov
(1939), Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) e outros estudiosos devidamente
referenciados.
ABSTRACT
The work will bring a theoretical analysis in the work Duas Mulheres de Terramor (1976) of
the writer from Caxias, Maranhão Osmar Rodrigues Marques (1929), pointing out real and
unreal elements that sometimes mix, causing the amazing admirable and unusual
phenomenon, with the purpose of evidencing them in fiction in the light of the unusual
theories and their neighboring genres: the fantastic, the strange and the wonderful.
Rodrigues Marques presents us with an incredible 'trip' in the reading, provides adventure
with the right expectations to the novel, as well as, sharpens the imaginary by lines drawn
with supernatural, natural and/or chimerical events in the small town - interior - signs of
fantasy - hesitation; strangeness - rational explanation to the event, in other words, implies
the existence of seemingly inexplicable and imprecise events. Thus, we aim to contribute to
future research in the literary area of Caxias and Maranhão literature, enabling students and
researchers to learn about the greatness and importance of the literary cultural heritage, in
addition to rescuing local literature and valuing our fellow countrymen. In this way,
theoretical references are used to reflect on the presence of theory in the course of the
narrative, which instigates an attentive and emotional reading, since to identify them is
intrinsically linked to the reader's delight. For this, we will take in Tzvetan Todorov (1939),
Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) and other scholars duly referenced.
INTRODUÇÃO
539
Anais
540
Anais
Embasamento teórico
Os eventos insólitos seriam aqueles que não são freqüentes de acontecer, são
raros, pouco costumeiros, inabituais, inusuais, incomuns, anormais,
contrariam o uso, os costumes, as regras e as tradições, enfim, surpreendem
ou decepcionam o senso comum, às expectativas quotidianas
correspondentes a dada cultura. (GARCÍA, 2007, 19).
3
Palavras retirada do artigo intitulado A presença da fenomenologia insólita na narrativa literária da Gisela Lacourt
(UPF).
541
Anais
tendo como principal embrião o sobrenatural. Conforme Maria Cristina Batalha4 (2012)
explicita:
4 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura
Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: cbatalh@gmail.com
5 Citação retirada do artigo Literatura fantástica: algumas considerações teóricas. R. Let. & Let. Uberlândia-
Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso
de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero -
(UCS)
7 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura
542
Anais
Logo, o excerto acima deixa explícito que o Fantástico ‘acompanha’ o homem desde
tempos remotos, através das “epopeias, contos populares” (RODRIGUES, 2003, p. 95),
oralidade e outras formas. Considerações que remetem ao fantástico produto de
racionalidade e não oriundo de uma mente doentia, de acordo a professora doutora Cecil
Jeanine Albert Zinani8.
Nesse sentido, o estilo literário desponta na narrativa causando hesitação no leitor –
a dúvida entre o real e o sobrenatural para certos acontecimentos na ficção - diante do evento
insólito. Subverte os padrões da narrativa literária real-naturalista. Todorov (1939)
assevera que “o fantástico (...) dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao
leitor e à personagem” (TODOROV, 1939. p. 47), ou seja, dura apenas enquanto o leitor fica
na dúvida permanente, se aconteceu ou não, procurando explicações para o evento.
Destarte, se ocorre uma explicação plausível/racional deixa-se de ser fenômeno
fantástico e transita para seus gêneros vizinhos: o Estranho e o Maravilhoso, conforme
evidencia Todorov (1939): “O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra
resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o
maravilhoso” (TODOROV, 1939. p. 31).
Logo, o Estranho se manifesta quando há no final da narrativa uma justificativa
racional para o ocorrido, conforme declara Todorov “acontecimentos que parecem
sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional”
(TODOROV, 1939, p. 51) e o Maravilhoso quando não há uma explicação possível, o leitor
aceita como parte de uma realidade impossível, de acordo a professora Cecil Jeanine Albert
Zinani considera que “No fantástico maravilhoso, não há explicação, apenas uma sugestão
referente ao sobrenatural, não há reação de estranhamento, uma vez que ocorre uma
8
Doutora em Letras - Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso de Letras da
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero - (UCS)
Nota: excerto lido no artigo - O insólito na literatura: perspectivas da narrativa fantástica, 1° capítulo do livro: O
insólito na Literatura olhares multidisciplinares (2020).
543
Anais
negociação com o leitor de aceitação daquela realidade como natural (ZINANI, 2020, p. 21).
Logo, o Maravilhoso se porta como fenômeno aceitável pelos leitores, presente na
humanidade desde o pretérito, nos contos de fada, bosques encantados, magia,
acontecimentos inexplicáveis racionalmente. Conforme defende Nelly Novaes Coelho sobre
o evento aludido:
É com este epíteto - que faz jus à problemática levantada - que se realizará as reflexões
da parte final do trabalho. O célebre escritor maranhense e caxiense Osmar Rodrigues
Marques (1929), publica sua obra Duas Mulheres de Terramor em 1976, pela Livraria São
José. Autor de uma escrita simples, como aponta o escritor piauiense Francisco de Assis
Almeida Brasil na descrição do autor na orelha do livro que diz: “a linguagem simples sem
maiores compromissos literários, é o forte de Rodrigues Marques”. Assis Brasil prossegue o
comentário e relata que “seu romance, Duas Mulheres de Terramor (1976), é sem dúvidas a
soma benéfica de toda a sua experiência anterior”. Afrânio Coutinho não poupou elogios ao
544
Anais
nosso escritor na obra intitulada “brasil brasileiros de hoje” que redigiu: “homem
contemporâneo, à custa de quem o país vai progredindo em seus diversos setores”9.
Em vida, foi um escritor ativo, participando e propiciando eventos culturais. Nascido
em Caxias – MA em 23 de janeiro de 1929; aos 12 anos iniciou sua carreira, publicando seu
primeiro conto. Herdeiro de uma família simples: pai apicultor e marceneiro Dionísio
Rodrigues Marques e mãe doceira, Maria Lourdes Marques, não foi empecilho para seu
envolvimento na literatura, assim como em outras áreas, dentre elas, jornalista, contista e
advogado; sua intensa dedicação ao mundo das palavras e das artes lhe rendeu diversas
premiações pelo país, entre eles: “Orlando Dantas - 4° centenário do Rio de Janeiro”; “Graça
Aranha” (São Luís); “Ficção”, do Banco Regional de Brasília; “Ficção”, do Governo do Distrito
Federal; “Prêmio Adelino Magalhães”; (Rio de Janeiro); e o Prêmio romance, do Governo de
Goiás, assim como, inúmeras obras publicadas, entre romances, contos e novelas.
Rodrigues Marques, reúne em seu romance ficcional – Duas Mulheres de Terramor
(1976) - um percurso imaginário e real, na mesma proporção que sucedem cenas reais que
remetem a cidades pequenas – interiorana – apresenta sinais de fantasia - hesitação;
estranheza - explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de
acontecimentos aparentemente inexplicáveis e imprecisos.
A ficção discorre sobre uma cidade fictícia - Terramor -, em que mãe e filha sonham
em encontrar o amor. As personagens vivem em um casarão de três andares, no qual, o
terceiro é reservado às vacas. Em meio a sonhos e delírios acontecem os mais inusitados
fenômenos na pequena e agitada cidade, fenômenos que por vezes assustam e surpreendem
o leitor. Um trecho estranhíssimo10 ocorre quando a mulher leva o defunto do seu marido
para ser chicoteado em troca de dívidas que deixou no plano terreno, a seguir a cena deste
episódio:
[...] Antuza disse que não e a mulher explicou: como não tinha dinheiro para
pagar todos os credores – ela e dois carregadores mais tarde sairiam com o
defunto, pelo comércio, perguntando se havia dívida a pagar. Se houvesse, o
credor poderia dar uma surra no defunto e o compromisso assim ficaria
quitado. (MARQUES, 1976, p. 69).
9 Informação retirada de um antigo jornal, publicado em uma página do Facebook: Farol Caxiense, em que
reúne diversas informações e documentos importantes que foram com o tempo se perdendo. Disponível em:
https://www.facebook.com/ronaldocxma. Acesso em 11/02/2022
10 Palavra utilizada com o sentido de: não afeito; não habituado. Definição dada pelo dicionário online
545
Anais
Insólito abarca aquilo que não é habitual, o que é desusado, estranho, novo,
incrível, desacostumado, inusitado, pouco freqüente, raro, surpreendente,
decepcionante, frustrante, o que rompe com as expectativas da naturalidade
e da ordem, a partir senso comum, representante de um discurso oficial
hegemônico. (GARCIA, 2007, 1 apud citação do ebook).
Rodrigues Marques nos apresenta uma narrativa surpreendente, fugindo, por vezes,
do real; aludindo para uma literatura ficcional insólita/maravilhosa, ocorrências que
veremos a seguir em outros trechos. À exemplo, em um outro capítulo, no primeiro, ocorre
a mesma ação de provocar terror seguido de nojo e incompreensão, pois Artemiza, filha de
Antuza, avisa sua mãe que há um corpo (defunto) na praia carregado de guaiamuns - espécie
de caranguejo -, a mãe de imediato pede a filha que vá buscar, sem ao menos certificar quem
era o indivíduo. Conforme verifica-se na passagem:
Artemiza segurou o cachimbo por alguns minutos e pediu a filha que voltasse
à praia e se de fato os siris fossem bonitos e gordos como acabara de dizer,
os trouxesse todos [...] Antuza andou novamente légua e meia até alcançar a
praia. Quando se curvou para retirar os siris do seu interior, o róseo de sua
pele parecia mais belo [...] com as mãos ágeis foi retirando os gordos siris no
jacá e, ao notar que já não havia mais um só para levar para Artemiza,
permaneceu ainda algum tempo ajoelhada ao lado do afogado e concluiu que
se tivesse força para atirar novamente o cadáver ao mar, por certo quando
voltasse à praia viria mais recheado de siris e até trouxesse algum peixe ou
algum caranguejo no seu bojo. ( MARQUES, 1976, p. 12 grifo nosso).
Nestes breves trechos que narra o exemplar, nos apresenta ações que se dá “num
mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem sílfides, nem diabos, nem
vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo
546
Anais
DESCEU UMA NÉVOA PESADA SOBRE A CIDADE e durante seis dias ninguém
saiu de casa – as luzes todas acesas sumidas dentro do cinza opaco. No
sétimo dia apareceu o sol queimando o nevoeiro, mas, quando todos
pensavam que o tempo ia normalizar, novamente o nevoeiro o venceu e as
pesadas nuvens que começavam a avermelhar escureceram de novo outra
vez e a cidade ficou perdida de si mesma [...] A maioria das mulheres
engravidou de tanto não ter o que fazer naqueles dias e houve quem dissesse
– mentindo - após tudo passado, que só não se perderia numa das ruas do
centro porque estava com um facão na mão quando desceram as trevas e foi
cortando o nevoeiro com a ferramenta para poder andar. ( MARQUES, 1976,
p. 31).
11Trecho retirado do artigo:O INSÓLITO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, do prof Flavio García UERJ /
UNISUAM. Publicações Dialogarts 2008 (http://www.dialogarts.uerj.br)
547
Anais
Revelando assim “mecanismos dos fatos até então sucedidos” (Ide, Ibidem, p. 51). Dessa
forma, o fenômeno Estranho na narrativa se dá pela explicação do nevoeiro que atingiu a
cidade.
Por conseguinte, assim como a presença do estranho, encontra-se fragmentos do
fantástico, causando hesitação e dúvida no leitor - é importante ressaltar que a hesitação
mencionada se dar pelo leitor implícito, visto que, “para se manter, o fantástico implica pois
não só a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no
herói, mas também um certo modo de ler.” (TODOROV, 2003, 151) - circunstância observável
na personagem Artemiza, que por vezes se perde nos próprios pensamentos, levando ao
leitor perguntar se o evento se efetuou ou não.
Diante disso, em uma entrevista a professora Maria Cristina Batalha acerca da
literatura insólita na língua portuguesa12, afirma ter uma concepção mais aberta do
fantástico, uma vez que, a concepção Todoroviana é mais restrita, por isso ela tem uma
convicção muito mais aberta, considerando-o “macro-gênero, ou um gênero que pode
comportar muitos subgêneros que têm o insólito como ponto em comum”, em conformidade,
a narrativa manifesta traços do gênero fantástico comportando o insólito, retomando o
episódio em que Antuza se ’perde’ em seus próprios pensamentos, impulsionando o leitor a
questionar-se sobre a eventualidade, como pode-se observar o trecho:
Diante desta cena infere-se durante a leitura a morte da personagem Antuza, visto
que, sua mãe ‘idealiza’ e pratica ações que nos dar a certeza do falecimento da filha, como
quando ela cogita: “Antuza ficaria muito mais bonita com o seu caixão cheio das frutas da
região do que todas aquelas flores. E seria diferente de qualquer enterro, satisfazendo seu
12 Entrevista publicada pela revista Desassossego, DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p188-192 por Bruno Anselmi Matangrano.
548
Anais
gosto de não fazer nada igual aos outros” (p., 18), porém, ao prosseguirmos deparamo-nos
com a seguinte situação:
Pensou em subir mais um lance de escada ir ver suas vacas, mas o cansaço
das pernas a desestimulou. Contentava-se em ouvir seus longos mugidos
vindo do outro lado do maciço portão. E com eles nos ouvidos desceu a
escada e de novo estava diante de suas flores. Antuza quando a viu, o
pensamento tão distante, quis saber onde a mãe estivera tanto tempo. -
Depois que colhi as flores, subi um pouco para chorar no segundo andar.
Quando cheguei lá em cima a vontade de chorar já havia passado. Nesse
instante, Artemiza, como se voltasse de não do segundo andar, mas de um
outro mundo, esbarrou em seu próprio susto: - Mas você não estava morta?
Eu vi com meus próprios olhos você esticada sobre a mesa. Eu mesma vesti
sua mortalha. - é possível. Eu às vezes acompanho meu próprio enterro.
(MARQUES, 1976, p. 18/19).
549
Anais
ilusões” (NORDIER, 1832, s/p. Apud LOPES NIELS, p. 640)14. "Incerteza”,” imprecisão”,”
ambiguidade”, “real”, “irreal”, “ilusório”, “imaginação”, “fantasia”, “criação”, “natural e
sobrenatural” são alguns exemplos da força motriz da narrativa Fantástica.
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
14
Citação retirada do artigo: O FANTÁSTICO GENOLÓGICO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E OUTRAS
CONSIDERAÇÕES, da autora Karla Menezes Lopes Niels (UFF)
550
Anais
Flavio García. Regina Michelli. Marcello de Oliveira Pinto (orgs.) 2008. Poéticas do Insólito
Conferências e Palestras do III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa
ficcional”: o insólito na literatura e no cinema. ISBN 978-85-86837-46-3. Disponível em:
http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/poeticas_do_insolito.pdf. Acesso em: 03 de
fevereiro de 2022.
Flavio García; Marcello de Oliveira Pinto; Regina Michelli (org.) O insólito em questão Anais
do V Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional I Encontro Nacional
Insólito como Questão na Narrativa Ficcional - Simpósios - 2009. (pgs. 242).
Marques,R. Duas Mulheres de Terramor, impresso pela Gráfica editora do livro LTDA.
Livraria São José,1976.
551
VITORIA E CHICA DA
SILVA: PERSONAGENS
HISTÓRICAS E
LITERÁRIAS NO
BRASIL COLÔNIA
Jade Mariam Carvalho SILVA (UFDPar)1
Sávio Roberto Fonsêca de FREITAS (UFPB)²
RESUMO
552
Anais
ABSTRACT
The present work aims to approach the representation of the black trans woman in the
literature of Eliana Alves Cruz and the representation of the black woman (cis) in the work
of Joyce Ribeiro. The explanation of the theme will be based on the analysis of the literary
character Nada digo de ti que em ti não vem (2020) by Eliana Alves Cruz and analyze the
character Chica da Silva from the biographical novel Chica da Silva- a novel of a lifetime by
Joyce Ribeiro (2016), a work that demystifies the image built on the history of Chica da Silva
from Minas Gerais, a former freed slave who becomes the wife of the governor of Gerais, the
contractor João Fernandes de Oliveira, a novel that addresses the affective aspect of the
woman who was a wife. , mother, society lady who gained visibility having a different story
than what was expected for a black woman. To understand the gender issues inherent to the
work, the theoretical contribution of authors such as Judith Butler (2013), Paulo Roberto
Ceccarelli (2019), among other theorists is necessary. With regard to black female
authorship, the theoretical contribution of Ebonolowa (2021) and Ferreira (2019) is
necessary to highlight the need to value a feminism focused on an African philosophy, as well
as a feminism that thinks about the place of the black transvestite in the world. Brazil.
1 INTRODUÇÃO
553
Anais
Vitória, a protagonista da obra literária, pode-se dizer que se trata de uma mulher
trans negra que no início da história é escravizada, a narrativa se passa no século XVIII, e
devido a sua astúcia consegue tornar-se uma mulher livre. Vitória, a negra forra e prostituída
vive um amor proibido com o fidalgo Felipe Gama, que seria sua perdição. Porém, a trama
nos faz refletir se o amor que os unia seria capaz de ser mais forte que as imposições sociais.
Pensar nesta vivência é pensar numa vivência trans em um contexto em que a
sociedade não reconhecia tal vivência, porém a pessoa trans existia naquela sociedade do
Brasil Colônia setecentista, conforme os trechos “negro que se diz mulher” (CRUZ, 2020b,
p.34) e “o medonho africano metamorfoseado em mulher” (CRUZ, 2020b, p 148), tais trechos
revelam que Vitória pode ser lida conforme o que hoje denominamos travesti ou mulher
trans, pois assumia socialmente uma identidade feminina ainda que tal identidade não
tivesse reconhecimento por parte do Estado. Isto faz da personagem um ser errante, naquele
contexto dominado pela Coroa, pelos poderes do Clero, tais poderes que poderiam condenar
554
Anais
Vitória à morte tanto da sua identidade feminina, como também à sua morte física. Cruz
(2020) em sua poética traz à tona a reconstituição de uma época, o início do século XVIII.
Cruz investigou casos de pessoas nascidas com o sexo biológico masculino, que conforme
constam em documentos históricos, se apresentavam como mulheres, assumiam
socialmente uma identidade feminina, o que corrobora com Mott “quando o chamam de
homem, não gosta disso. Comumente o chamam de Vitória e só queria que lhe chamassem
de Vitória, e quem lhe chamava de negro, corria às pedradas” (MOTT, 2005, p. 12). Logo, este
relato histórico que fala de uma outra Vitória, mulher trans, vamos denominá-la desse modo,
que fora presa em 1556 em Lisboa, sob a acusação de sodomia. Vitória que era natural do
Reino do Benin se prostituía, fazendo concorrência às demais mulheres profissionais do
sexo, até que foi descoberto o seu sexo biológico sendo masculino, portanto, fora condenada
ao degredo, trabalhando de forma análoga a escravidão nas galés de Algarve.
A trama da obra literária analisada se passa em São Sebastião do Rio de Janeiro e
revela que a sociedade é um tanto hipócrita em suas práticas, pois as famílias de
escravocratas Gama e Muniz, antagonistas da trama, possuem segredos que são revelados
no decorrer da narrativa, por exemplo, uma origem judaica que poderia resultar em uma
acusação de lesa-majestade, punida com a morte por enforcamento ou fogueira. A trama
dialoga com temas atuais do contexto brasileiro, como o racismo estrutural, as fake news, os
dogmas da Igreja, como também uma possível redenção através da Delação Premiada diante
do tribunal da Inquisição, ou melhor, Santo Ofício como era conhecido no Brasil. No
desenrolar da história as personagens de origem judaica são acusadas de bruxaria
juntamente com a travesti Vitória que se mostra como uma curandeira, calunduzeira, e era
procurada pelas pessoas para a realização de práticas como reza para tirar “mau olhado”,
tratamentos médicos, previsão do futuro, entre outras. A narrativa revela a associação entre
ser mulher e a bruxaria, conforme o trecho “vossa mercê pensa que não sei de vosso
intercâmbio com estas bruxas de um lado tens as feiticeiras judaizantes” (CRUZ, 2020, p.
148). O ponto forte da narrativa é a construção evidente da identidade de gênero feminina
de Vitória conforme o trecho “Não sou negro. Sou negra! Ne- gra” (CRUZ, 2020, p. 184),
mostrando assim o sentimento de pertença da personagem a uma identidade feminina, o que
ocorre em diversos outros trechos da trama.
Um dos pontos principais da narrativa é a relação entre o jovem Felipe Gama estaria
fadada ao fracasso, pois seria impossível a relação entre um fidalgo e uma travesti negra
(usar tal termo pode gerar um anacronismo), porém seu uso se dá devido às evidências de
555
Anais
que a personagem de fato tinha uma identidade de gênero feminina assumida socialmente,
conforme o trecho “Ela sabia que o mundo em que viviam não nutria pessoas como ele para
que tivessem musculatura de espírito para viverem abertamente suas verdades” (CRUZ,
2020b, p. 183). A partir da narrativa vemos que seria inviável o personagem Felipe assumir
socialmente sua relação com uma pessoa lida socialmente como “um negro que se diz
mulher”, posto que tal relação trouxesse não somente consequências sociais, mas o risco
iminente da morte, para além do opróbrio em que cairia a família do fidalgo.
Porém, o desenrolar da história revela reviravoltas, como o desfecho em que diversos
personagens são acusados pelo tribunal do Santo Ofício por diversas acusações e, por isso,
um possível final feliz é vislumbrado para os amantes protagonistas da trama. Analisar esta
narrativa aponta que a realidade brasileira carrega consigo o jugo de resquícios do processo
histórico de escravização, fazendo-nos refletir acerca de uma nova perspectiva de
enfrentamento à realidade, olhar para a África como um norte nesse processo decolonial.
Conforme:
A partir desta narrativa podemos refletir sobre o lugar de uma travesti negra na
sociedade, tendo em vista que até hoje o Brasil representa o país que mais mata travestis e
transexuais, havendo grandes índices de transfeminicídio, ou seja, o extermínio sistemático
de corpos trans negros, o que revela uma verdadeira necropolítica, na qual os corpos não
importam em uma sociedade cis-heteronormativa. Com base nesta reflexão se faz necessário
propor uma nova perspectiva de ver o mundo e defender os direitos de pessoas trans negras,
o conceito que pode ser entendido como um norte para tal enfrentamento, pode estar dentro
da perspectiva mulherista, abraçando conceito do mulherismo, ou seja, uma variação
afroamericana do feminismo, que corresponde a abarcar pautas específicas das mulheres
negras, tendo como uma das estratégias de enfrentamento ao patriarcalismo convidar os
homens para a luta antimachista, com um olhar especial para o homem negro, conforme
Ebonoluwa (2009).
Em vista de que as mulheres negras trabalharam em condições sub-humanas devido
ao colonialismo, assim como os homens negros. E partindo do ponto de que o feminismo
556
Anais
No ano de 2016, a influente jornalista negra Joyce Ribeiro, conhecida por atuar como
repórter da emissora de TV SBT, lança sua biografia romanceada de Chica da Silva, em sua
releitura da clássica história da ex-escravizada, que se tornou a esposa do contratador dos
diamantes, João Fernandes de Oliveira, a mulher negra que de escrava passou a ser rainha
do Arraial do Tijuco. Em sua narrativa, Chica é uma mulher forte, determinada, porém
resignada em determinados aspectos, como no que concerne ao cuidado da casa e dos filhos,
e acima de tudo, ela é mostrada como uma mulher apaixonada. Podemos vê-la como uma
mulher à frente do seu tempo, conforme o trecho “Chica era livre por natureza” (RIBEIRO,
2016, p. 08), não aceitando o destino de ser uma escrava ou mesmo uma simples amante,
como se vê em “Chica não acreditava que o afeto era privilégio das mulheres brancas”
(RIBEIRO, 2016, p. 08). Logo, Chica não se via inferior às mulheres brancas considerando-se
digna do mesmo afeto e também do lugar de esposa de um fidalgo de El Rey.
Com o contratador ela gerou filhos que teriam a chance de “branquear sua origem”
devido à influência do pai, logo ela teve filhas que se tornaram monjas, o que na época
representava uma posição de destaque na sociedade, tendo em vista a união entre Estado e
Igreja, como também teve filhos que puderam estudar no Reino, garantindo assim um lugar
de destaque na sociedade seja como religiosos ou bacharéis (RIBEIRO, 2016, p. 09). Devido
ao fato de João Fernandes ser governador do Tijuco, era como se Chica fosse sua consorte,
ainda que a houvesse comprado enquanto escrava a libertou e, inclusive, não fizera o uso
daquele corpo sem o consentimento de Chica. A narrativa ribeiriana revela que havia “outras
negras forras proprietárias de casa e escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 20), porém ela tinha um
diferencial, pois ainda que seu casamento não fosse oficialmente legalizado pela Igreja, não
vivia como concubina, participando de determinadas atividades sociais, assim ela se mostra
uma mulher religiosa dedicada ao lar e ao marido. Chica, que a princípio fora conhecida como
557
Anais
Chica, a parda, era filha da escravizada africana Maria da Silva e do capitão português
Antônio Caetano de Sá, posteriormente Chica recebera o nome de Francisca da Silva, tendo
em vista que Silva, aquele que hoje é o sobrenome mais comum do povo brasileiro era na
verdade um epíteto usado como sobrenome para quem não tinha família, logo ex-
escravizados, entre outras pessoas tidas como ralé. Os filhos de Chica carregavam o
sobrenome do pai, porém em seus registros constava “pai desconhecido”, o que não os
impedia de estudar no Reino, era um branqueamento, porém sem detalhar maiores
informações sobre o influente pai (RIBEIRO, 2016, p. 30).
Em determinados momentos da narrativa Chica é mostrada como uma mulher
luxuriosa, como, por exemplo, no trecho que afirma que ao se confessar, o homem que se
enamorara por Chica “a cada confissão se livra do pecado da luxúria a que se entrega com
entusiasmo com sua Chica” (RIBEIRO, 2016, p. 42). Ainda que esta faceta de luxúria não seja
o foco da narrativa ribeiriana aparece também em outros trechos como “Ir para a cama está
longe de ser um sacrifício ou obrigação como acontece com as brancas sem amor nem
paixão” (RIBEIRO, 2016, p. 54).
Podemos refletir também sobre o fato de Chica ser uma sinhá, portanto “por
paradoxo, uma senhora de escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 46) o que nos leva a problematizar
como pôde uma mulher negra escravizar outrem, porém é preciso levar em conta que Chica
apenas reproduz um padrão, ela demonstrara em determinados aspectos igualar-se ou
quase igualar-se às mulheres brancas, inclusive neste aspecto negativo, o que numa
perspectiva contemporânea, pode levar-nos a concluir que, o oprimido quando pode em
determinadas circunstâncias assume um papel de opressor, ou sequer tem a consciência
disto. É como se Chica houvesse herdado um lugar de rainha consorte e seus súditos fossem
escravizados, logo determinadas conjecturas geram um anacronismo.
Em determinado momento da narrativa, Chica e João Fernandes precisam separar-se,
pois o contratador vai ao Reino resolver questões relativas a uma briga judicial com a viúva
de seu pai, o que para Chica representa uma nostalgia sem fim, no entanto ela segue
resignada como uma fervorosa mulher católica (2016, p. 82). Contudo, no arraial do Tejuco
continua sendo tratada como a mulher do desembargador mesmo em sua ausência. E como
nem tudo são aspectos positivos, a narrativa mostra a erotização dos corpos negros, Chica
era vista como alguém “capaz de enfeitiçar” (2016, p. 114), ainda que respeitada socialmente
ou supostamente respeitada, no mínimo, tendo um lugar de destaque como se fosse uma
mulher branca, havia rumores de que em algum momento ela enfeitiçara o contratador, e
558
Anais
com tal feitiço conseguira se tornar uma dama da sociedade colonial. Para a visão colonialista
ela era “uma doidivanas capaz de manter cativo” um homem da estirpe de João Fernandes.
No entanto, em seu funeral a dama negra do arraial teve honrarias de fidalgo.
No que concerne à discussão sobre a erotização dos corpos, pode-se refletir acerca do
trecho do texto autoral de Jade Mariam Vaccari (2018), recitado no decorrer do II Seminário
Mulheres e Universidade: Juntas contra o racismo, o machismo e a LBTfobia. Conforme
Vaccari (2019), a mulher trans muitas vezes é vista como “Apenas um corpo destinado ao
sexo, ao exotismo e à erotização. Uma mulher trans não é gente, é só um ser destinado ao
prazer”. A poética de Vaccari evidencia o lugar de subalternidade, na qual a pessoa trans é
relegada, fato frequente, tendo em vista que a sociedade está pautada em valores
heteronormativos e, por isso determinadas relações sejam vividas apenas no “sigilo”, pois a
masculinidade dos homens cisgênero pode ser posta em xeque caso venham se relacionar
com uma travesti ou transexual.
Atualmente vemos o emergir de um protagonismo de pessoas trans na arte, trazendo
à tona questões como a realidade de ser mulher negra e trans, ser trans e periférica, entre
outros recortes sociais, conforme a poética de Ferreira "Todo livro escrito por uma travesti
deveria ser saudado e encarado como um rasgo no tecido histórico" (FERREIRA, 2019, p. 9).
Sendo assim, tais escritos representam um marco histórico ao desviar-se do cânone literário,
que inclusive, o âmbito acadêmico em geral aborda, mostrando que tais vozes são
importantes. Destarte, o lugar de fala da mulher trans negra pode ser exposto em uma obra
que seja de sua autoria, expondo seu ponto de vista da realidade. Somasse a isso o fato de
que a sociedade está condicionada a valorizar a escrita de homens ou de mulheres cis, em
sua maioria branca e heterossexual, como afirma Ferreira, "sim, para a pele preta de signos
coloridos essas coisas são privilégios" (FERREIRA, 2019, p. 19).
A poética de Ferreira desperta a atenção para realidades, como aquilo que podemos
chamar de o privilégio cis da afetividade, que seria o fato de que para uma mulher trans, o
vivenciar dos relacionamentos afetivo-sexuais está condicionado a diversos dilemas, como a
dificuldade de estar em uma relação heterossexual com um homem cis, pelo fato da mulher
trans ter sua identidade de gênero deslegitimada socialmente, não sendo vista enquanto
mulher. Além disso, a masculinidade do homem que se relaciona com uma mulher trans é
559
Anais
posta em xeque, como Ferreira reflete no trecho "voei pro sol demais e minhas asas
derreteram, eram apenas uma cis-ilusão" (FERREIRA, 2019, p. 32). Sendo assim, para a poeta
o fato de uma travesti negra se envolver afetivo-sexualmente com um homem é comparável
ao mito de Ícaro, em que suas “asas” podem derreter a qualquer momento, ou seja, a relação
se desvanecerá, logo a relação estaria fadada ao olhar preconceituoso da sociedade, como se
a afetividade fosse apenas um atributo destinado às pessoas cis. A poética de Ferreira
evidencia a abjeção dos corpos de pessoas trans, enquanto corpos dissidentes, pois o senso
comum lhes aponta como corpos que não importam "corpo que é almejado dentro de um
saco como se fosse a coisa mais nojenta" (FERREIRA, 2019, p. 57).
Contemporaneamente, autores trans têm tido visibilidade através de publicações,
como a obra Academia Transliterária (2019). Tal fator evidencia como pessoas trans estão
galgando seu reconhecimento através da literatura, música e área de digital. Um exemplo
disso é como os influencer ou como os youtubers muitas vezes usam de uma linguagem
própria da população LGBTQ+, o pajubá, "linguagem afro-centrada, como também a
população trans tem sua cultura própria" (JESUS, 2019, p. 16).
3 CONCLUSÃO
A obra literária afro-brasileira Nada digo de ti que em ti não veja evidencia a existência
de vivências de gênero dissidente e explana sobre a realidade de um corpo negro prostituído
em um Brasil Colônia. Enquanto obra Chica da Silva romance de uma vida revela as facetas
de uma mulher que marcou época na sociedade brasileira, e foi representada em diversos
romances históricos, no entanto há o diferencial do romance analisado se tratar de uma obra
de autoria negra. Logo, a literatura afro-brasileira nos convida a compreender a realidade de
uma mulher negra, trans, escravizada, prostituta. O estudo desta narrativa mostra a
importância de reconhecer as epistemologias que se formam a partir do estudo de obras com
personagens negros, de autoria negra tendo em mente o conceito de Escrevivência, pois
quem vive determinada realidade possui lugar de fala sobre aquela realidade, no que
concerne também à sua própria ancestralidade. Logo, pode-se entender que a literatura tem
um papel de trazer à tona a reflexão sobre determinadas vivências, quiçá possamos através
do estudo deste tipo de literatura fomentar o desenvolvimento de leitores críticos cientes do
seu papel de cidadão em prol de uma sociedade brasileira equânime.
560
Anais
REFERÊNCIAS
CHISALA, Upile. Eu destilo melanina e mel. Tradução de Isabela Aleixo. São Paulo: Leya,
2020.
CRUZ, Eliana Alves. Nada digo de ti que em ti não veja. Rio de Janeiro: Pallas, 2020b.
CRUZ, Eliana Alves. Novo romance de Eliana Alves Cruz expõe o apartheid brasileiro.
[Entrevista concedida a] Guilherme Augusto. Jornal Estado de Minas, 28 jun. 2020a.
Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1354-eliana-alves-
cruz-nada-digo-de-ti-que-em-ti-nao-veja>. Acesso em: 15 dez. 2021.
EBUNOLOWA, Sotunsa Mobolanle. Feminismo por uma variação africana. Tradução para
uso didático de EBUNOLUWA, Sotunsa Mobolanle. Feminism: The Quest for an African
Variant. The Journal of Pan African Studies, vol.3, n.1, 2009, p. 227-234, por Luana Cristina
Muñoz Roriz. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com Acesso em 27 de
dezembro de 2021, às 17:43.
FERREIRA, Luna de Souto. Mem (orais) poéticas de uma byxa travesty preta de cortes.
Bragança Paulista: Urutau, 2019.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Coletânea TransLiterária. Belo Horizonte: Editora Marginália,
2019.
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade / Luiz Mott. - Salvador : EDUFBA, 2010.
561
Anais
562
SIGNIFICADOS
JUSTAPOSTOS: UMA ANÁLISE
A RESPEITO DAS ESCOLHAS
TERMINOLÓGICAS
UTILIZADAS POR REINA
ROFFÉ NA OBRA AVES
EXÓTICAS
Marta Mickaele Almeida ARRUDA (UEPB)1
Maria Luana Caminha VALOIS (UFPE)2
RESUMO
1
Graduada em Letras com Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
martamickaele1997@gmail.com.
2
Doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Capes - CNPq,
luanavalois30@gmail.com.
563
Anais
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
564
Anais
Assim, a América Latina buscava singularizar sua expressão escrita para inscrever-
se na tradição do ocidente, além disso, devido à revolução cubana, o mercado consumidor
nutria uma curiosidade a respeito deste território, dessa forma a literatura latino-
americana assume mundialmente status de cânone literário. Este reconhecimento foi
denominado boom latinoamericano3.
Ressaltamos ainda, que o boom está ligado por ideais da Revolução Cubana (1953-
1959), já que, este movimento político influenciou diversas modificações no campo da
3O termo boom é a denominação que a literatura latinoamericana recebe na década de 60. Este refere-se ao
movimento explosivo a que esta é submetida, tendo a internacionalização, a demanda do mercado e a qualidade
dos escritores. Vale ressaltar, ainda, que o vocábulo é problemático e segue em disputa pelos críticos literários,
por se tratar de um termo em inglês.
565
Anais
566
Anais
de suas obras são: Monte de Venus (1976), La rompiente (1987), Lorca en Buenos Aires
(2016), Juan Rulfo: autobiografía armada (1973), Espejo de Escritores (1984), Juan Rulfo:
las mañas del zorro (2003), dentre muitos outros contos, relatos, novelas e ensaios.
Consequentemente, optamos por investigar a obra Aves exóticas. Cinco cuentos con
mujeres raras (2004), que aborda as nuances do exílio - por um olhar feminino -, e o
silenciamento imposto pelo sistema hetero-dominante4. A obra apresenta cinco histórias
com protagonistas mulheres, que a partir de suas experiências materiais e subjetivas
constroem um diálogo com o trauma. E a partir disso, tecem uma ressignificação acerca de
suas perspectivas de vidas.
O primeiro conto da obra é intitulado Convertir el desierto, este será nosso objeto
de análise neste artigo. Nesta narrativa, conhecemos a história de uma mulher que teve
que mudar para a Espanha para fugir de uma realidade traumática. Ao longo do texto é
possível perceber que a protagonista carregava consigo um sentimento de vingança e ódio,
os quais transformaram sua vida. Por fim, Maria R., ao longo de sua jornada, é dissuadida
a não realizar sua retaliação.
Destarte, buscamos constatar, neste item, como a década de 1960 e a revolução
cubana influenciaram na literatura hispanoamericana, incluímos, ainda, alguns dos
escritores que mais se destacaram neste período, por fim, trouxemos um breve resumo da
vida de Reina Roffé e do conto Convertir el desierto, que se encontra na obra Aves exóticas.
Cinco cuentos con mujeres raras (2004), o qual iremos investigar na parte seguinte deste
estudo. Desta forma, buscaremos validar a importância da escrita de autoria feminina, bem
como seus reflexos no texto literário.
O título é uma síntese precisa do texto, cuja função é estratégica, pois: ele nomeia o
texto após sua produção, sugere o sentido do mesmo, desperta o interesse do leitor para o
tema, estabelece vínculos com informações textuais e extratextuais, e contribui para a
orientação da conclusão. O título, então, tem a função de expressar o conteúdo temático de
um texto, como também de orientar, em certa medida, a leitura, pois é usado para exprimir
4
Sempre que este termo for evocado dentro do trabalho, estaremos nos referindo ao Sistema de poder político, no
qual as mulheres são reificadas e submetidas a dominação patriarcal branca.
567
Anais
ou inferir o tema da narrativa, devendo ser interpretado em primeiro lugar, porque sua
informação, formal ou semântica, inicia o complexo processo de compreensão.
Dessa forma, decidimos pensar neste segmento a respeito do título Convertir el
desierto presente na obra Aves Exóticas: Cinco cuentos com mujeres raras (2004) da autora
Reina Roffé, bem como, o nome da personagem principal, na tentativa de desvelar os
significados que se aderem aos termos escolhidos pela autora estudada. Com isso,
buscaremos demonstrar os efeitos de sentido no título escolhido, tomamos como ponto de
partida, os pressupostos teóricos descritos na obra A Metáfora Viva de Paul Ricoeur
(1983).
Partimos, dessa forma, da conjectura de que a metáfora é um veículo que produz
conhecimento, dado conferível desde os estudos aristotélicos, e reiterado pelo filósofo
francês supracitado. Assim, a plasticidade desta figura de linguagem tem o papel de criar
diferentes efeitos no discurso com funções variadas, pois a metáfora se baseia na
capacidade de ver os termos em lugar de outros.
À vista disso, o tropo mencionado se materializa no título que estamos estudando,
pois ao ler a narrativa Convertir el desierto, percebemos que Maria R., protagonista do
conto, busca seu agressor “para matarlo y aniquilar en él el odio de su exilio involuntario,
de su irremisible fracaso” (ROFFÉ, 2004, p. 7)5. Através do desejo de vingança, contra
aquele que lhe causou sofrimento e a deixou sem aqueles que ama, a jovem vive solitária
e alimentando as experiências traumáticas do passado. Este contexto, descrito pela autora,
em nossa análise, e conforme a teoria alicerçada, é o deserto que precisa ser transformado.
5 "matá-lo e aniquilar nele o ódio de seu exílio involuntário, de seu fracasso irremissível" (ROFFÉ, 2004,
p. 7).
6 “vinte anos querendo ter sido um dos corpos e não um morto que viu outro morto” (ROFFÉ, 2004, p. 8).
568
Anais
Neste trecho frisamos que apesar da distância que ela coloca entre sua vida e o
trauma, não conseguiu desvincular-se de tais sentimentos, pois, apenas um detalhe
deflagrava uma gama de memórias do terror vivido, como podemos conferir no trecho:
Pero unos meses atrás, un maletín de cuero con dos iniciales entrecruzadas
la remitió a la casa y a los cuerpos, a las cosas que habían sido suyas y
saqueadas. El maletín en el banco de andén, pertenecía a un extraño, un
extraño con el que había convivido veinte años. (ROFFÉ, 2004, p. 8)8.
7 Afastou dez mil quilômetros, esforçou-se para esquecer, até acreditou ter esquecido o desejo de amar e
ser amada, um título com honras, o exercício de uma profissão e as maravilhas que um dia viu em seu
futuro. (ROFFÉ, 2004, p. 8)
8 Mas há alguns meses, uma pasta de couro com duas iniciais cruzadas a enviou para a casa e os corpos,
para as coisas que haviam sido dela e saqueadas. A pasta no banco da plataforma pertencia a um estranho,
um estranho com quem ele vivia há vinte anos. (ROFFÉ, 2004, p. 8).
9 Maria também nunca sonhou em ir para a Índia. Na verdade, ele preferiu não se lembrar dos sonhos. Às
vezes, ao acordar, ela tinha vislumbres de algo enterrado, talvez a raiz de um desejo conscientemente
varrido de imitar a si mesma, o protótipo de uma mulher que ela repetia todas as manhãs, previsível como
a xícara de chá deliberadamente amarga que ela bebia antes de dormir. . Um trabalho simples, muito aquém
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Anais
Portanto, Maria R. passou anos tendo uma vida na qual repetia doentiamente a
mesma rotina, com o anseio de encontrar o seu agressor. Isto a impedia de sonhar com
outros caminhos possíveis para sua vida. Até que, durante uma de suas viagens em trem,
se depara com el maestro, a princípio, apenas um senhor que lhe chamou atenção. Na
citação a seguir demonstramos a primeira vez que a protagonista fixa atenção em alguém:
Sendo assim, mal sabia Maria R. que o ancião em questão iria ajudá-la a transformar
suas inquietações com um passado de terror em um presente agradável:
El maestro, que esta vez se había sentado frente a ella, la observaba con
insistencia. Por un momento, le sostuvo la mirada; él aprovechó para decirle:
-Hay que convertir el desierto.
- Sí - respondió débilmente María, y pensó que había demasiados locos y
demente seniles. Pensó, además, que el apelativo maestro le quedaba
grande, más apropiado era denominarlo viejo a secas, no quería cometer el
exceso de llamarlo viejo loco. (ROFFÉ, 2004, p. 6)11.
A partir deste momento Maria R. começa a identificar o quanto sua vida estava
previsível, solitária e sem perspectiva, apenas preenchida pelo seu desejo de retaliação ao
das suas qualificações, com uma remuneração modesta, que lhe deixava a tarde livre para se fechar no
quarto, no seu isolamento tenaz. (ROFFÉ, 2004, p. 9)
10 Durante algumas tardes, sua viagem coincidiu com a de um velho de boina branca. Ele batizava estranhos
com um nome ou uma denominação, e este era chamado pelo professor. O mesmo caminho os havia
reunido, mas o itinerário de cada um tinha propósitos diferentes. Ele ia salvar um homem da morte, ela ia
matá-lo. (ROFFÉ, 2004, p. 6)
11 O Maestro, que desta vez estava sentada à sua frente, observava-a com insistência. Por um momento,
ele segurou o olhar dela; aproveitou para dizer:
-Você tem que converter o deserto.
- Sim - respondeu Maria fracamente, e ela pensou que havia muitos loucos e loucos senis. Ele também
achava que o mestre de denominação era grande demais para ele, era mais apropriado chamá-lo de velho,
não queria chegar a chamá-lo de velho maluco. (ROFFÉ, 2004, p. 6).
570
Anais
[...] María oyó la voz de un hombre, saludaba a alguien; luego vio al hombre
darse la vuelta y dirigirse en dirección contraria a la suya. A medida que se
acercaba a ella fue relacionando la voz, con la cara, la cara con los ojos, el
puño cerrado con los cuerpos, el maletín de cuero con su vida entera. Sintió
la omnipresencia de todos los momentos del tiempo y un odio infinitamente
instalado. Estaba a tiro y era tan repugnante como lo recordaba. Había
llegado el final de la búsqueda. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11)13.
-O que você quis dizer quando me disse que tem que converter o deserto?
Brais tirou o boné e pensou na resposta:
-É um verso -disse antes de se despedir-, me ajuda a iniciar uma conversa. (ROFFÉ, 2004, p. 7).
13 [...] Maria ouviu a voz de um homem cumprimentando alguém; então ele viu o homem se virar e seguir
na direção oposta dele. Ao aproximar-se dela, relacionou a voz com o rosto, o rosto com os olhos, o punho
cerrado com os corpos, a pasta de couro com toda a sua vida. Ele sentiu a onipresença de todos os momentos
do tempo e um ódio infinitamente instalado. Estava dentro do alcance e era tão nojento quanto eu me
lembrava. O fim da busca havia chegado. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11).
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Anais
[...] No era cobardía sino destiempo. Acaso un error en la cadena del azar: lo
había matado ya tantas veces que repetir la escena se le hacía oneroso,
absurdo, un acto de violencia contra ella misma. Quería reservar su coraje
para repechar por donde más duele y alimentar el repentino y floreciente
deseo de empezar nuevamente. (ROFFÉ, 2004, p. 11)14.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
14 [...] Não foi covardia, mas um mau momento. Talvez um erro na cadeia do acaso: ela já o havia matado
tantas vezes que repetir a cena parecia oneroso, absurdo, um ato de violência contra si mesma. Ela queria
reservar sua coragem para escolher onde dói mais e alimentar o repentino desejo de recomeçar. (ROFFÉ,
2004, p. 11).
572
Anais
REFERÊNCIAS
ROFFÉ, Reina. Aves Exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras. Editorial Leviatán, Buenos
Aires - Argentina, 2004. p. 43.
VIDAL, Paloma. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. São Paulo:
Annablume, 2004. 98 p.
573
INSUBMISSAS LÁGRIMAS
DE MULHERES:
IDENTIDADE REFLETIDA
NO ESPELHO DA LÁGRIMA
Gisele Silva OLIVEIRA (Universidade Federal de São Carlos)1
RESUMO
Este trabalho tem como foco a reflexão acerca do processo de formação identitária das
mulheres negras representado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição
Evaristo, em especial no conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos. Essa reflexão terá
como base os conceitos de identidade e de pós-colonial, sob a perspectiva de Stuart Hall
(1992; 2014; 2003) e ainda a categoria de amefricanidade proposta por Lelia Gonzalez
(1988). Além disso será abordado o diálogo entre essa obra e narrativas mítico-religiosas
relacionadas à Orixá Oxum.
ABSTRACT
This work focuses on the reflection on the process of identity formation of black women
represented in the book Unsubmissive women’s tears, by Conceição Evaristo, especially in the
short story Maria do Rosário Imaculada dos Santos. This reflection will be based on the
concepts of identity and post-colonial, from the perspective by Stuart Hall (1992; 2014;
2003) and also from the the category of Amefricanity proposed by Lelia Gonzalez (1988). In
574
Anais
addition, the dialogue between this work and mythical-religious narratives related to Oxum
will be addressed.
Introdução
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continuava pobre, mas o palácio do rei era coberto de ouro. Após consultar Ifá2, que lhe
aconselhou a levar um cesto de guloseimas para o rei, Oxum decide seguir o conselho, mas
chegando lá, em ira começa a gritar contra a injustiça de, apesar do árduo trabalho, não ter
nada e o rei ter tanto ouro. O rei para acalmá-la manda darem-lhe ouro, porém Oxum não
para de gritar e quanto mais grita, mais ouro recebe. Logo muitas mulheres a ela se juntam,
em coro, no grito pelo direito ao ouro. Assim, ela fica conhecida como dona do ouro e porta-
voz das mulheres. É esse papel de porta-voz das mulheres que Conceição Evaristo afirma
desejar em sua escrita e que podemos perceber representado em Insubmissas lágrimas de
mulheres.
Conceição Evaristo (2005) reflete sobre a representação da mulher negra na
literatura escrita no Brasil, cuja perspectiva autoral é majoritariamente branca e masculina.
Destaca, nesse contexto, o caráter subversivo da escrita de autoria feminina negra e o
cuidado que tais escritoras devem ter a fim de produzirem uma literatura que se
contraponha a estereótipos de personagens, como Gabriela de Jorge Amado ou Rita Baiana
e Bertoleza de Aluísio Azevedo.
2 Natradição Yorubá trata-se de um sistema divinatório. Esse sistema também é relacionado ao orixá Orunmilá
que também é conhecido como Ifá. (VERDUGO, 2016)
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Também em Rose DusReis, personagem, cujo sobrenome tem como marca a violência
sexual sofrida pela bisavó escravizada, tais reconfigurações são representadas. DusReis vive
uma infância marcada pela negação de direitos. Obrigada a trabalhar sem remuneração na
escola para ter o direito a frequentar, apesar de romper a barreira que impedia o acesso de
pessoas negras à educação, a situação de desvantagem, com relação às colegas brancas
continuou sendo expressa de diversas formas.
Conseguindo vencer as dificuldades e se formando bailarina (quase sempre a única
negra nas companhias que integrou), ao fim do conto, a personagem executa uma coreografia
criada com inspiração numa dança, por meio da qual os Kandianos (povo que conheceu em
viagem a África) celebra a vida. A coreografia, porém, não é idêntica à dança kandiana. A
referência é posta em confluência com o que aprendeu nas companhias de balé de tradição
branca/europeia. Esse episódio dialoga com a necessidade apontada por Hall (2003) de
pensar o mundo pós-colonial de modo diaspórico não originário, sob a ótica de hibridismo
cultural, transnacional e transcultural.
Nesse contexto do pós (colonial ou moderno) enquanto ruptura e continuidade: “A
identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente (Hall 2014, p. 13).” O
sobrenome DusReis também reflete esse hibridismo. No contexto escravocrata, o povo negro
perdeu o direito ao nome de origem, tendo os sobrenomes muitas vezes substituídos pelos
de seus opressores, como no caso da família dessa personagem. Mas, nesse caso, o
sobrenome imposto sofreu modificação. Não foi adotado exatamente Dos Reis, mas DusReis,
registro mais próximo ao modo como os antepassados de Rose pronunciavam.
Há, assim, um registro no próprio nome de família, das relações de poder
estabelecidas, que se por um lado impedem o resgate a um nome e identidade originais dessa
família negra, por outro produzem alterações no nome/identidade branca, evidenciando
uma dinâmica de hibridismo cultural e a impossibilidade de retorno a uma identidade pura.
A essa marca de africanização decorrente da oralidade dos povos de origem africana em
território brasileiro Gonzalez (1988) denomina pretoguês.
O exemplo da coreografia evidencia ainda a viabilidade de pensar as dinâmicas
identitárias representadas no livro também em diálogo com a categoria de amefricanidade
de Gonzalez (1988), pois essas representações conversam com a ideia da autora de pensar a
identidade negra em países do continente americano, sem visar ao retorno à pureza cultural
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Maria do Rosário Imaculada dos Santos: a mulher negra portadora de uma voz coletiva
O conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos nos leva a duas vias interpretativas,
que se confundem e se complementam. A primeira seria pautada na história da protagonista
em si, e a segunda partiria da premissa de essa personagem e, consequentemente, a narrativa
constituírem uma alegoria do povo negro trazido para o Brasil em diáspora forçada.
Maria do Rosário Imaculada dos Santos viveu até os cinco anos numa pequena
comunidade familiar. Morando em uma casa com a mãe, dois irmãos, mais duas tias e um tio,
além de dois primos e os avós, tinha como vizinhos parentes de diferentes graus. Era uma
comunidade situada no Brasil, mas onde residiam apenas pessoas de descendência africana.
Sob uma perspectiva alegórica, essa moradia inicial da personagem, onde tudo lhe é familiar,
poderia corresponder à situação do povo negro no período anterior ao tráfico negreiro. Até
esse momento a formação identitária da personagem e do povo que ela representa está em
consonância com a concepção sociológica de identidade relembrada por Hall (2014), uma
noção de identidade que resultaria do diálogo entre o sujeito e os mundos culturais
exteriores. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o
sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 2014, p. 12).”
Entretanto, Hall (2014) entende que esse sujeito unificado, estável, bem como as
identidades possíveis na sociedade, entram em crise no contexto pós-moderno, em que a
identidade é destituída de estabilidade e permanência, adquirindo um caráter de mobilidade
e transformação. Há um momento em que essa crise se instaura na história de Maria, que é
o seu rapto. De um local, onde todos se identificavam nas feições e hábitos uns dos outros, é
roubada ainda criança por um casal que inicialmente pensa ser de estrangeiros, mas depois
descobre serem do sul do Brasil. Esse contato forçado com uma cultura diferente coloca em
xeque um processo de formação identitária que até o momento construía-se de modo
estável.
Como ocorreu com as pessoas negras trazidas à força da África durante o processo de
colonização e escravização no Brasil, a personagem adentra em um universo social, no qual
diferentes estratégias serão utilizadas a fim silenciar sua origem histórica, cultural, enfim
sua identidade construída até o momento. Perde o direito ao próprio nome, não ouve ou tem
possibilidades de compartilhar sua história com aqueles que a roubaram. Convém lembrar
que Hall (2003), ao defender o potencial analítico do conceito de pós-colonial, em sua
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de Mim, sua cidade de origem, o receio de não encontrar o que esperava a fazia adiar a volta.
Mudava-se constantemente, aproximando-se, mas sem coragem de chegar de fato até lá.
Talvez o medo não fosse só de encontrar um lugar diferente, mas de ela própria ter mudado
a ponto de não se identificar como antes, mesmo que lá ainda fosse parecido com o que se
lembrava. Como os antigos escravizados negros e seus descendentes, ainda que de volta à
sua terra de origem, jamais teria uma experiência de identificação equivalente à anterior.
Lélia Gonzalez (1988) reflete sobre essa perda e procura por uma identidade original,
criticando a busca que alguns negros vindos dos Estados Unidos, fazem, ao tentar encontrar
na Bahia a sobrevivência da cultura africana. Segundo ela, a noção de sobrevivência já seria
problemática ao denotar que algo escapou ao evolucionismo cultural eurocêntrico. Além
disso, essa busca teria como premissa a ignorância acerca de um potencial cultural, criativo
e artístico que já não se pode mais compreender como africano. A autora reforça, desse
modo, a necessidade de uma forma de autodesignação, cujo compromisso não deve ser com
a restituição de uma identidade original africana, mas com uma conceituação que abarque
as experiências comuns ao povo negro na América, sem com isso romper de todo os vínculos
a uma herança africana. Por isso, formula a categoria político identitária de amefricanidade.
O acolhimento da vivência de trânsito e a relevância dada ao ato de narrar as
experiências desse trajeto histórico, que reconhece a origem como ponto de partida, mas não
se prende a ela, são aspectos importantes da identificação amefricana, que se encontram bem
representados ao fim do conto analisado. Nesse desfecho Maria encontra sua irmã mais nova,
em um evento sobre crianças desaparecidas, ao qual compareceu e em que uma moça, muito
semelhante à sua mãe, narra a história de uma irmã perdida, o que lhe perturba.
Porém não era o relato de minha irmã nascida depois de minha partida
forçada que eu ouvia. Não era a fala dela que me prendia. E sim o Jipe. Lá
estava o Jipe ganhando distância, distância, distância… Lá estava o meu
irmão chorando no meio da história e eu indo, indo, indo… Quando acordei
do desmaio, a moça do relato segurava a minha mão; não foi preciso dizer
mais nada. A nossa voz irmanada no sofrimento e no real parentesco falou
por nós. Reconhecemo-nos. Eu não era mais a desaparecida. E Flor de Mim
estava em mim, apesar de tudo. Sobrevivemos, eu e os meus. Desde sempre.
(EVARISTO, 2011, p. 53).
Esse parágrafo final, em que o motivo de crise é, sobretudo, essa rota forçada, também
se relaciona com o que Hall (1992) estabelece, ao propor que, estando a identidade
radicalmente subordinada a uma historicização, o debate sobre ela deve considerar aspectos
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Anais
Considerações finais
As análises sobre a obra objeto de estudo, evidenciara a busca por uma reconstrução
identitária negra na literatura de Conceição Evaristo. Nessa busca, o poder de narrar,
atribuído às mulheres negras, como herdeiras de Oxum, em seu potencial de fazer ecoar um
585
Anais
grito e refletir especularmente a história de suas iguais e do povo negro teria papel
fundamental. Nesse sentido, os estudos de Lélia Gonzalez (1988) e sua categoria de
amefricanidade permitiram pensar a identificação racial representada nos contos,
considerando os processos de dominação e resistência em países do continente americano
e, especialmente, compreenderesse processo opressor luso-espanhol, baseado em
estratégias de racismo disfarçado (por denegação), como fator que complexificou a
identificação racial em países como o Brasil.
Atentar-se a essa complexidade e à intersecção entre raça e gênero foi importante
para que se considerasse a identidade em sua historicidade e multiplicidade, fatores, que
como aponta Stuart Hall (2014), caracterizam os mecanismos de identificação na
modernidade tardia. O diálogo com os conceitos de identidade e pós-colonial (HALL,1992,
2003, 2014) mostrou-se bastante produtivo para se compreender como os modos de
representação e a narrativização do eu – mesmo marcada pelo ficcional - contribuem para
os processos de formação identitária no contexto pós-colonial e pós-moderno. Nesse sentido,
as reflexões nos levaram, enfim, a reconhecer a escrevivência como possibilidade de
preencher lacunas e recontar a história das mulheres e do povo negro, construindo uma
perspectiva que permita enxergar um outro modo de suturação e assim de identificação a
partir da narrativa literária.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Eduardo Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: DUARTE, Eduardo
Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.) Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011, vol. 4, História, teoria, polêmica.
EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo: a questão do negro não é para nós resolvermos, é
para a nação. [Entrevista concedida a Pedro França]. Marie Claire, dez, 2019. .
EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA,
Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (Org.). Mulheres no mundo: etnia,
marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia; Editora Universitária UFPB, 2005.
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Anais
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad.
Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
HALL, Stuart.Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu (Org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. p. 103-133 -
GONÇALVES, Kary Jean Falcão. Oxum, mãe da beleza: o poder da divindade de maior
popularidade do panteão afro-brasileiro. Revista Saber Científico, Porto Velho, v. 2, n. 1, p. 1-
14, abr. 2009. ISSN 1982-792X. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2021.
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LITERATURA CONTEMPORÂNEA
MARANHENSE DE AUTORIA
FEMININA: DECOLONIZANDO A
MATRIZ COLONIAL DE PODER EM
QUEM É ESSA MULHER? (2018),
DE MILENA CARVALHO
Thais Nascimento da SILVA (UFMA/CNPq-IC)1
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)2
RESUMO
588
Anais
Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa (2014), Schmidt (1995) e Giddens
(1992). O artigo encontra-se dividido em três principais momentos: no primeiro será
discutido acerca da colonialidade de poder de Aníbal Quijano e a crítica de Maria Lugones,
no segundo momento será debatido acerca da condição subalternizada da literatura de
autoria feminina e por fim será feita a análise do romance Quem é essa Mulher? buscando
mostrar como a autora apresenta uma personagem que sofre com a colonialidade de gênero.
ABSTRACT
This article is the result of the research project entitled “Contemporary literature from
Maranhão by female authors: decolonizing the colonial matrix of power in Who is this
woman? (2018)”, by Milena Carvalho and aims to analyze how the author presents in her
novel the impositions of the modern/colonial gender system and how this system
contributes to the subordination of black women in society. From a decolonial reading of the
novel, it was possible to observe how the colonization process contributed to the
construction of a system that oppresses and violates women of color. It was also essential to
show the relevance of working with literature by women from Maranhão, since it is
marginalized in the literary context. This research has a qualitative, bibliographic approach
and has the theoretical bases: Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa
(2014), Schmidt (1995) and Giddens (1992). The article is divided into three main moments:
in the first, it will be discussed about the coloniality of power of Aníbal Quijano and the
criticism of Maria Lugones, in the second moment, it will be discussed about the subordinate
condition of literature by female authors and, finally, the analysis of the novel Who is this
Woman? seeking to show how the author presents a character who suffers from gender
coloniality.
Introdução
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Anais
METODOLOGIA
Esta pesquisa é de classificação básica, pois não há aplicabilidade prática, para a sua
realização seguiu-se as seguintes etapas: (i) pesquisa bibliográfica acerca dos estudos
decoloniais, literatura maranhense contemporânea e fortuna crítica da obra da escritora por
meio de levantamento bibliográfico e revisão de literatura.; (ii) quanto à abordagem, a
pesquisa é qualitativa, pois não se preocupa com representatividade numérica e sim com o
aprofundamento da compreensão do objeto, ou seja, a análise do corpus
590
Anais
civilizados em oposição aos considerados povos primitivos”. (2005, p. 117) Isso demonstra
os efeitos de uma sociedade ocidental baseada no pensamento dicotômico.
Quando a américa foi constituída, os povos colonizados foram classificados de acordo
com a raça, com base nas diferenças fenotípicas os grupos foram divididos em superiores e
inferiores. Dessa forma, os sujeitos inferiorizados foram destituídos de humanidade e
dominados. As relações sociais que estavam se configurando foram baseadas a partir da
dominação e exploração desses povos, cada grupo possuía lugares e papéis sociais baseados
em sua raça. “Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como
instrumentos de classificação social básica da população”. (QUIJANO, 2005, p.117).
A colonialidade de poder se reproduz a partir de três dimensões: colonialidade do
poder, do saber e do ser. Na colonialidade do poder, a raça dominante se mantem no
comando do controle de trabalho, na colonialidade do ser, os indivíduos colonizados são
vistos como irracionais, selvagens, aqueles que não possuem controle de sua sexualidade.
E por fim, têm-se a colonialidade do saber, que dita que apenas os conhecimentos
baseados na ciência e produzidos pela Europa são válidos. Quijano aponta que “toda
sociedade é uma estrutura de poder” (2005, p. 130), e que existe uma relação de imposição
de alguns sobre os demais. Ele divide o poder colonial em “controle do trabalho, de seus
recursos e de seus produtos, controle do sexo, de seus recursos e produtos e controle da
autoridade, seus recursos e produtos (QUIJANO, 2005, p. 123). É interessante apontar esse
aspecto, pois será comentado logo adiante.
591
Anais
A literatura brasileira por muito tempo foi composta pelo público masculino, em
especial, pelo homem branco, burguês de classe média. Mesmo existindo muitas mulheres
escritoras, existem poucos registros de romances publicados pelo público feminino. As
mulheres demoraram adentrar no cenário literário, porque somente os homens podiam
592
Anais
escrever e publicar suas obras. As mulheres estavam relegadas ao lar, por isso, acreditava-
se que não existia a necessidade de elas terem acesso ao letramento.
Acerca das mulheres negras na literatura, nota-se que elas enfrentaram mais
adversidades, visto que sofreram discriminação por serem mulheres e por serem negras. O
primeiro romance publicado por uma mulher foi em (1859) com a obra “Úrsula” da autora
Maria Firmino dos reis, depois dessa publicação, apenas foi publicado outro romance em
1966 com a obra “A parede” de Arlete Nogueira. Isso mostra o vazio de uma publicação para
outra, mostrando como as mulheres estavam subalternizadas no meio literário.
Schmidt (1995) em sua obra que trata sobre gênero e literatura na américa latina
afirma que:
O acesso das mulheres a escrita foi crucial não apenas para que houvesse uma escrita
voltada para temas do imaginário feminino, mas também para transformar a literatura como
uma ferramenta de resistência. Porque a mulher sempre carregou estereótipos que a
ligavam ao espaço privado, a dona de casa, a esposa, aquela relegada ao lar e nunca como
alguém que pudesse produzir conhecimento. Por isso, a escrita feminina é importante para
desmistificar esses estereótipos e modificar a representação da mulher na literatura, para
que dessa forma ela possa sair de seu papel de subalternidade. O romance de autoria
feminina maranhense também encontra dificuldades no contexto literário, ele é
representado no século XIX, por Arlete nogueira, Conceição Aboud e Virgínia Rayol. De
acordo com Correa (2014):
593
Anais
Diante do exposto, nota-se que a escrita feminina maranhense por muito tempo foi
silenciada, e quando se trata de uma literatura de resistência como é o objeto de estudo desta
pesquisa que trata sobre violência sexual, patriarcado, sexismo, tende a ter mais impasses.
A autora
A obra
594
Anais
violando o corpo de Liane. A partir desse acontecimento, Liane Truga teve sua vida mudada
drasticamente, ela se distancia da família e de seus amigos, passa a se vestir como uma
mulher mais velha e alimenta a ideia de que não merecia ser feliz.
É interessante abordar a imagem de Marcinho dentro do romance, ele era o rapaz que
ela se relacionava antes da violação, quando ocorreu o fato ela cortou os laços com ele porque
acreditava que não merecia mais viver aquela paixão. Na entrevista cedida pela autora, ela
fala da importância da criação desse personagem para a construção da narrativa, Marcinho
nunca existiu, ele foi criado para representar todas as pessoas que passaram na vida dela e
para esse personagem ela fala as coisas que não teve coragem ou oportunidade de dizer na
época do ocorrido.
Após vinte e cinco anos do acontecido, Liane acorda como em um sonho e passa a se
questionar acerca do tempo que viveu sendo uma outra pessoa. Ela se permite passar por
um processo de autodescoberta, a partir de uma conversa que ela teve com uma amiga que
sofreu a mesma violência que ela, decide retomar a sua cidade natal, onde tudo aconteceu e
em uma conversa com seu pai biológico decidem falar sobre o trauma sofrido. A partir disso
ela reconheceu que não precisava de uma figura masculina para se sentir segura, ou seja, ela
mesma poderia fazer aquilo por ela. A seguir, serão analisados alguns trechos que foram
retirados do romance, quem é essa mulher? para que seja possível observar a situação da
mulher racializada na sociedade patriarcal e como ela reage a esse sistema.
No trecho abaixo a personagem Liane Truga relata o momento em que o violador
invade a sua casa e pratica a violação sexual contra o seu corpo:
Liane Truga sofreu violência de gênero sexual quando tinha dezessete anos, mas a
violação não foi cometida por uma pessoa do seu grupo familiar, e sim, por um indivíduo
desconhecido que invadiu a sua casa. O trecho apresentado narra o momento em que o
violador agride Liane e indaga-a acerca das joias da família. Percebendo que não teria êxito,
ele decide descontar sua raiva sobre as mulheres da casa. É interessante observar que a
595
Anais
partir do olhar europeu, as mulheres racializadas tiveram seus corpos objetificados, foram
vistas como inferiores e sexualmente imperativas e isso justificava toda a violência e
desumanização que elas tiveram que suportar. As mulheres racializadas atraem para si, a
dominação sexual por parte dos homens, eles acreditam que por serem homens possuem
poder sobre o corpo das mulheres. Como pode ser observado no trecho acima, o violador usa
de seu poder sobre o corpo feminino para disciplinar Liane.
Maria Lugones apresenta-nos o conceito de hierarquia dicotômica, onde afirma que
os povos colonizados foram considerados como machos e femêas, dessa forma as mulheres
de cor foram vítimas de estupros e violações. Essa perspectiva leva-nos a pensar acerca do
sistema moderno/ colonial de gênero, proposto por Lugones (2020, p. 78), Liane é uma
mulher marcada pelas categorias de raça e de gênero, e por isso enfrenta uma sociedade
machista e patriarcal que oprime e violenta os corpos das mulheres. Ela como tantas outras
estão vulneráveis a dominação masculina.
No trecho abaixo, a personagem escreve uma carta endereçada ao seu namorado
Marcinho, onde explica o porque de ter tratado-o mal quando este procurou-lhe depois do
ocorrido.
O menosprezo com que você pensa ter sido tratado foi tudo o que eu
senti pelo lixo de mulher que acabava de me tornar. Maldito. Ele
semeou, arou, colheu, debulhou e sovou um ódio quase tão medonho
quanto o amor que você havia plantado em mim. (CARVALHO, 2018,
p. 9).
Safiotti traz um conceito de violência, onde afirma que: “Trata-se da violência como
ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica,
integridade sexual, integridade moral.” (SAFIOTTI, 2015, p 18). A violência não é apenas
física, ela deixa traumas e feridas que são muito difíceis de cicatrizar, se é que cicatrizam.
Como pode ser observado no trecho acima, a violência sofrida por Liane teve impactos na
relação que ela tinha com as pessoas com quem convivia. Ela teve sua vida destruída, não
conseguia manter relacionamentos afetivos e vivia uma história onde ela se colocava como
coadjuvante.
Giddens (1992) afirma que:
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indivíduos, para definir as suas carências; ela ou ele não pode sentir
autoconfiança sem estar dedicado às necessidades dos outros. Um
relacionamento codependente é aquele em que um indivíduo está
ligado psicologicamente a um parceiro(...). (Giddens, 1992, p. 101-
102).
Considerações finais
Nesta pesquisa buscou-se analisar como o romance intitulado Quem é essa mulher? da
autora Milena carvalho, permitiu um estudo acerca da condição da mulher racializada na
sociedade brasileira, sobretudo, maranhense. A partir de uma perspectiva decolonial, este
artigo buscou compreender como o processo de colonização contribuiu para a construção
de um sistema que oprime e violenta as mulheres de cor.
A partir deste artigo foi possível evidenciar a relevância de se trabalhar com a
literatura de autoria feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no
contexto literário. Também foi possível observar a importância de uma literatura
597
Anais
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Milena. Quem é essa mulher? São Luís: Editora Pulsar, 2018.
—2. Ed. – São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.
598
DECOLONIZANDO A MATRIZ
COLONIAL DE PODER EM A
CASA DO SENTIDO
VERMELHO (2013) DE
JORGEANA BRAGA
Jocileide Silva SOUSA (UFMA/CNPq-IC)1
Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)2
RESUMO
1 Graduanda em Letras /Português – UFMA. Membro dos grupos de pesquisas Marginalia Estudos Decoloniais
e GEPELIND. Bolsista CNPq modalidade Iniciação Científica. E-mail: jocileidesilva2011@gmail.com
2 Doutora em Letras. Professora Adjunta III do Centro de Ciências Educação e Linguagem da Universidade
599
Anais
Vermelho desconstrói o ideal de mulher para o sistema machista e patriarcal ainda em voga
na sociedade, pois, as personagens do romance são apresentadas de maneira forte e
independente que não veem no casamento e maternidade o único caminho a ser seguido pela
mulher.
ABSTRACT
This article is the result of the research project “Contemporary literature from Maranhão by
female authors: decolonizing the colonial matrix of power in A Casa do Sentido Vermelho
(2013) by Jorgeana Braga” and aims to investigate how the author from Maranhão
deconstructs the impositions of the system in her novel. modern/colonial gender in terms of
female sexuality and the relationship between women and motherhood. The development
of this research proved to be relevant, because literature has always been a place of male
domination, especially the white man, so the female characters were represented from a
sexist and patriarchal look, so working on writing contribution to thinking about the position
of women in literature. This research is focused on the contemporary author Jorgeana Braga
and how her writing as a black woman configures a resistance to the modern/colonial
gender system. This research is qualitative, bibliographical and has the theoretical bases of
Saffioti (2004), Gonzalez (2020) and Lugones (2020). From the analysis of the novel, it is
concluded that the author Jorgeana Braga, in her work A Casa do Sentido Vermelho,
deconstructs the ideal of woman for the sexist and patriarchal system still in vogue in society,
since the characters of the novel are presented in a different way. strong and independent
way that they do not see marriage and motherhood as the only way to be followed by women.
INTRODUÇÃO
600
Anais
domesticada, vale destacar que as personagens do romance de Jorgeana Braga fogem desse
ideal de mulher.
O objetivo com esse artigo é analisar o romance A Casa do Sentido Vermelho
focalizando em como a autora Jorgeana Braga desconstrói em sua narrativa as imposições
do sistema moderno/colonial de gênero no que se refere a relação da mulher com a
maternidade e a sexualidade feminina e, como essas personagens femininas desconstroem o
padrão ideal de mulher para o sistema eurocentrado que tem o sexismo como uma de suas
marcas mais significativas.
As próximas seções deste artigo se concentrarão no que é a colonialidade de gênero
e seus efeitos no conceito de feminilidade e como isso se refletiu no meio literário, além de
contar com uma análise da obra focalizada nas personagens femininas do romance A Casa do
Sentido Vermelho e a relação dessas personagens com a maternidade e a sexualidade. No
entanto, primeiramente, será apresentado a perspectiva metodológica aplicada para o
desenvolvimento desta pesquisa.
METODOLOGIA
601
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entre elas Laura Rosa, Mariana Luz e Lucy Teixeira. Essas poucas mulheres conseguiram
superar as dificuldades encontradas para terem seus textos publicados e reconhecidos, entre
essas dificuldades está a subalternização da escrita feminina. Correa comentando esse
contexto literário do Maranhão afirma em sua tese de doutorado que
602
Anais
se refletiu na escrita literária, sendo essa uma das razões para as poucas produções de
mulheres, especialmente negras, fazendo com que poucas conseguissem superar as
barreiras impostas pela colonialidade entre elas Maria Firminina dos Reis, Carolina Maria de
Jesus e Conceição Evaristo, no entanto, ainda assim, suas escritas foram marginalizadas no
meio literário.
Essa dificuldade encontrada pelas escritoras em terem seus textos publicados fez com
que as personagens femininas fossem representadas a partir de uma visão sexista, sendo
assim, esse lugar de falar permite desconstruir as maneiras estereotipadas com que
personagens femininas foram descritas, pois, as mulheres para o sistema de gêneros são
“marcadas pelo culto ao belo e ao santo” (COSTA E SANTOS, 2012, p. 328), ou seja, a mulher
ideal presente nas produções literárias precisavam ser brancas e castas, quantas as
personagens negras são representadas com uma sexualidade extrema, ou como força de
trabalho, perpetuando, assim a supremacia branca e a visão estereotipada da mulher de cor.
Pensando nessa situação imposta pelo sistema moderno/colonial de gênero, foi
optado trabalhar uma escritora maranhense que foge dos padrões exigidos pela sociedade
no que diz respeito a mulher. A autora Jorgeana Braga é maranhense nascida na cidade de
São Luís, com formação em filosofia e atua como professora da rede básica de ensino, seus
primeiros textos foram publicados em 1997, uma coletânea de poemas intitulado Janelas que
Escondem Espíritos, em 1998 a autora escreve o livro A Casa do Sentido Vermelho, no entanto,
a obra só é publicada em 2013, com esse romance ela foi vencedora do prêmio Aluísio
Azevedo no XXXIV Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís.
Como informado por Jorgeana Braga em entrevista3, ela utiliza de suas personagens
para expressar os seus próprios incômodos, pois por ser mulher, negra, lésbica e zeladora
de santo pode perceber por si mesmo as tentativas de silenciamento do sistema
moderno/colonial de gênero. Como observado, Jorgeana é uma escritora que tanto pela sua
biografia, quanto pela sua escrita, resiste ao padrão de perfeição da mulher exigido pela
sociedade sexista, isso fica ainda mais evidente quando é analisado como suas personagens
do romance A Casa do Sentido Vermelho apresentam uma quebra as exigências do sistema
patriarcal de gênero, como será exposto na próxima seção do artigo.
3
Entrevista realizada com Jorgeana Braga no dia 17 de fevereiro de 2022, por vídeo chamada no Instagram
603
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RESULTADOS DA ANÁLISE
Amar sensualmente é dose [...]. Nem sei como eu era, o que gostava de fazer,
sobre o que gostava de falar, tornei-me triste, contida, sem liberdade para
ser, e tudo em mim ligado a capacidade luciferiana de desabrigo. [...] Porque
até para ser bom é preciso oportunidade, essa coisa que a gente faz com a
gente é tão cansativa, tão desgastante, temos que ficar em meio ao
bombardeio, e a vontade de berrar socorro. (BRAGA, 2013, p. 34).
Como se pode observar essas personagens precisavam lidar com os desafios em ser
moradoras da casa, deixando de lado até mesmo as suas personalidades e gostos pessoais,
tornando-se o sujeito necessário para habitar nesse local em que elas estavam inseridas, isto
é, pessoas alegres e que para isso ignoram as suas dificuldades e passado. No entanto, vale
destacar, que essas personagens se encontravam no único espaço cabível a elas, pois, elas
fazem parte de uma camada subalternizada e negligenciada pelo sistema, além disso, é essa
casa que oferece a essas mulheres o suporte que elas precisavam para enfrentar o nocivo
sistema capitalista e patriarcal em voga na sociedade ludovicense.
A maneira que essas personagens se apresentam na obra deixam claro as influências
do sistema machista e patriarcal, a exemplo disso está a descrição da personagem Charlote
que no romance é apresentada como uma mulher devassa em que “duas da tarde é seu
horário matinal, porque a noite foi feita para massacrar as ruas e inunda-las de escuro,
esconder os pecados de Charlote” (BRAGA, 2013, p. 14), além disso, é destacado o fato da
personagem “ter que se loucamover lenta e dolorosamente por entre os matizes da
604
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depressão; o alheio, o olhar alheio, o sentir alheio” (BRAGA, 2013, p. 16). Como se pode
observar nos trechos apresentados essa personagem é descrita como uma pecadora que
precisa lidar constantemente com o julgamento das outras pessoas da sociedade. Nesse
aspecto é relevante pensar no que o sistema sexista espera do comportamento de uma
mulher, Saffioti destaca que
A mulher foi socializada para conduzir-se como caça, que espera o “ataque
do caçador”. [...] Como o homem foi educado para ir à caça, para, na condição
de macho, tomar sempre a iniciativa, tende a não ver com bons olhos a
atitude de mulheres desinibidas, quer para tomar a dianteira no início do
namoro, quer para provocar o homem na cama, visando com ele manter uma
relação sexual. (SAFFIOTI, 2004, p. 27).
De acordo com o que foi exposto por Saffioti, torna possível compreender a razão de
uma mulher como Charlote ter que lidar com constantes julgamentos sociais, pois, suas
atitudes não coincidem com a ideia de mulher casta, pura e passiva do sistema
moderno/colonial de gênero. Além disso, essa personagem é descrita como pecadora, pois,
a religião cristã desempenhou um papel fundamental para formação do conceito de gênero
ainda em voga hoje, de acordo com o Catecismo da Igreja Católica - compêndio, pecado “é
uma palavra, acto ou um desejo contrário à lei eterna (S. Agostinho). É uma ofensa a Deus,
na desobediência a seu amor”, nesse aspecto a Bíblia se tornou o manual a ser seguido por
todos na sociedade e levando-se em conta que ela ordena que “a esposa esteja sujeita ao
marido, de modo que, se ele não for obediente à palavra, seja ganho sem palavras, por meio
da conduta de sua esposa, por ter sido testemunha ocular de sua conduta casta junto com
profundo respeito”4, como se pode observar, com base nesse manual, a mulher tem como
principal função na sociedade cristã a submissão ao marido, a castidade e o respeito ao
homem. Com base nessa ideia faz sentido Charlote ser considerada uma pecadora,
principalmente por se referir a uma mulher sexualmente ativa e de muitos amores.
Outro aspecto abordado na obra é relação das personagens Charlote e Raná no que se
refere a maternidade, pois, ao passo que a primeira é incapaz de se “enternecer com a
gargalhada de uma criança” (BRAGA, 2013, p. 19), a outra “quer porque quer ter um filho”
(BRAGA, 2013, p. 19). É interessante pensar nessas duas formas de se abordar a relação da
mulher com a maternidade, pois, para a sociedade machista e patriarcal “os ideais de
feminilidade [...] baseiam-se no princípio de que as relações de família, notadamente
4
1 Pedro 3: 1, 2
605
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COSIDERAÇÕES FINAIS
606
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demonstra que as verdades universais impostas à mulher se configura como uma farsa, pois,
nem todas elas encontram a felicidade no ideal de mulher para o sistema moderno/colonial
de gênero, isto é, a mulher branca, heterossexual, cristã e relegada ao espaço doméstico.
Esse trabalho se focalizou, sobretudo, no efeito do patriarcado na escrita feminina e
como é trabalhado no romance A Casa do Sentido Vermelho a ideia da mulher pecadora por
ter uma vida sexual, além disso, a desconstrução feita por Jorgeana Braga da maternidade
como o ideal de felicidade da mulher.
REFERENCIAS
- Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. Cesário Lange, SP: Associação Torre de
Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.
COSTA, Márcia Silva; SANTOS, Lígia Pereira dos. O corpo feminino na obra de Pedro
Américo: tessituras de gênero e vivencia artística. In. FERREIRA, Maria Mary (org).
Conhecimento feminista e relações de gênero no Norte e Nordeste brasileiro. São Luís:
Redor; NIEPEM, 2012.
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Anais
PAULA JUNIOR, Francisco Vicente de. A Semântica das cores na literatura fantástica. Rev.
Entrepalavras, Fortaleza, v.1, n. 1, p. 129-138, ago/dez 2011.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2004.
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Organização dos Anais
Sobre os Organizadores
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Organização dos Anais
Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura pelo Programa de Pós-
graduação em Memória: linguagem e sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -
UESB (PROCAD - AM/CAPES). Doutorado e Mestrado em Letras, área de Concentração Teoria
Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Graduação em Letras pela Universidade
Estadual do Maranhão - UEMA. Professora de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade
Estadual do Piauí - UESPI e da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, Professora dos
Programas de Pós-Graduação em Letras de ambas Universidades. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa Interdisciplinar em Literatura e Linguagem - LITERLI cadastrado no Diretório de Pesquisa
do CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos de Paisagem nas Literaturas de Língua Portuguesa
e do Grupo de Estudos sobre o Espaço na Literatura - TOPUS. Atua nas linhas de pesquisa da
Literatura e suas interfaces com o espaço, a cidade e a memória. Pesquisadora CNPq/Edital Universal.
Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.
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Organização dos Anais
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