Você está na página 1de 206

-

..-Jrt»
Apresentação
Releitura Levi-Strauss-Bricalage
Fernanda Amalfi
O céu da História:
sobre alguns motivos judaico-henjaminianos
Olgária Chaim Féres Matos
O jogo de ajuntar coisas
e a arte da descontinuidade
Sérgio Lima
Le lien social
Leslie Kaplan
A oralidade: a escrita da memória
Elizabeth Ceita Vera Cruz
Percursos da Etnografia:
loucura e imaginário dogon
Denise Dias Barros
Considerações sobre justiça e violência:
o camponês paraibano como bricoleur
Marcelo Gomes Justo
Religiões transnacionais.
A Igreja católica romana no Brasil
e a Igreja ortodoxa na Rússia
Ralph Delia Cava
A espada e a lagoa: duas versões do fim do mundo
Carlos Alberto Steil
La Virgen de Luján:
el milagro de una identidad nacional católica
Eloísa Martin
La nueva era en Posadas,
Viejos escenarios, nuevas miradas
Maria dei Rosário Contepomi
Uma tentativa de percorrer caminhos,..
Fernanda Amalfi
Resenhas
Imaginário

Percepção/B ricolage
número 6
São Paulo-2000
ISSN 1413-666X
Revista Publicação do Núcleo Interdisciplinar do Imagi-

Imaginário nário e Memória (NIME) e do Laboratório de Es-


tudos do Imaginário (LABI) - Departamento de
N° 6 - 2 0 0 0
ISSN 1413-666X Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimen-
to e da Personalidade (PS A) do Instituto de Psico-
logia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Conselho Editorial: Bernadete Castro Oliveira, Coca Rodrigues, Deni-


se Dias Barros, Fernanda Amalfi, Leila de Sarquis,
Magali Franco Bueno, Marcelo Gomes Justo, Már-
cia Maria Cabreira Monteiro de Souza, Maria de
Lourdes Beldi de Alcântara, Maria Luisa Sandoval
Schmidt, Maria Regina Toledo Sader, Tatiana
Freitas Stockler das Neves.

Conselho Consultivo: Adalberto Santana (UNAM - México), Antonio


Cândido (FFLCH - USP), Décio de Almeida Prado
{in memorian), Francine Saillant (Universidade de
Lavai - Canadá), Paulo Vanzolini (ICB - USP), Ma-
ria Luisa Sandoval Schmidt (Instituto de Psicologia/
USP), Maria Regina Toledo Sader (FFLCH - USP),
Renato da Silva Queiroz (FFLCH - USP), Sylvia
Leser de Mello (Instituto de Psicologia - USP).

Editor: Maria de Lourdes Beldi de Alcântara

Capa e ilustração: Liana Cardoso Soares


Fotografia da Ilustração: Rômulo Fialdini
Produção Gráfica da Capa: Guilherme Rodrigues Neto
Fotografia: Gianni Puzzo
Editoração Eletrônica: Patrícia Morante
Equipe de Tradução: Marcelo Gomes Justo e Maria Regina Toledo Sader
Revisão: Simone Zaccarias
Revisão da prova: DenisePolli Felix e Tatiana Freitas Stockler das Neves
Secretaria: Denise Polli Felix
Imaginário
Endereço para correspondência
Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI)
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, trav. 4, Bloco 17, Sala 18
CEP 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: (Oxxll) 3818-4386 (Ramal 22)
Fax: (Oxxll) 3818-4475 Imaginário/NIME-LABI, Instituto
e-mail: labi@edu.usp.br de Psicologia, Universidade de São
website: www.imaginario.com.br Paulo, n° 6. São Paulo, 2000.

Anual

Patxocímo Cultufal: ISSN 1 4 1 3 - 6 6 6 X

1. Antropologia
2. Arte
3. Geografia

Credibel 4.
5.
Psicologia
Sociologia
sumario

Apresentação 9

Releitura Levi-Strauss-Bricolage 12
Fernanda Amalfi

O céu da História: sobre alguns motivos judaico-benjaminianos 14


Olgária Chaim Féres Matos

O jogo de ajuntar coisas e a arte da descontinuidade 26


Sérgio Lima

Lelien social 46
Leslie Kaplan

A oralidade: a escrita da memória 50


Elizabeth Celta Vera Cruz

Percursos da Etnografia: loucura e imaginário dogon 57


Denise Dias Barros

Considerações sobre justiça e violência —


o camponês paraibano como bricoleur 84
Marcelo Gomes Justo
Religiões transnacionais. A Igreja católica romana no Brasil
e a Igreja ortodoxa na Rússia 98
Ralph Delia Cava

A espada e a lagoa: duas versões do fim do mundo 118


Carlos Alberto Steil

La Virgen de Luján: el milagro de una identidad nacional católica 136


Eloísa Martin

La nueva era en Posadas. Viejos escenarios, nuevas miradas 159


Maria dei Rosário Contepomi

Uma tentativa de percorrer caminhos 185


Fernanda Amalfi

Resenhas 187
9 apresentação. Imaginário - usp, n= 6, pág. 9-10, 2000

O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo,
amanhecendo cada manhã num pouso diferente,
sem juizo de raiz?
Não se tem onde acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve.
Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos.
Guimarães Rosa

Percepção e bricolage: no interior destes dois conceitos tão decantados por


vários autores, e conseqüentemente por várias linhas teóricas, buscamos anali-
sar as sociedades. Consideramos esses conceitos como universais e sua
aplicabilidade como a constatação da diversidade cultural. Operamos, usual-
mente, nos antagonismos que se apresentam no universal e no particular, no
inerente e no adquirido, mas trata-se, para nós, de apreendê-los em suas ambi-
güidades e permanente tensão, na esfera interdisciplinar, onde não há fronteiras
e as ciências dialogam, constituindo um intrincado campo de intersecções, de
hibridismos, como coloca Latour.
Nessa complexa rede de interpretações, a percepção torna-se um concei-
to em que o adquirido e o inato, o individual e o coletivo fazem uma intersecção,
mostrando-nos a riqueza dos universos simbólicos. Podemos definir que a
percepção tem uma natureza híbrida entre a fenomenologia e a semiose. O
que isto significa? Que a representação é forjada, de forma dialética, na
intersecção entre mundo e interpretação.
Nessa perspectiva podemos dizer que agimos como bricoleurs em re-
lação à percepção, criando e recriando representações que darão corpo,
identidade e, portanto, alteridade, às formas do vivido. A metáfora e a
metonímia definidas por Levi-Strauss como a característica das maneiras
10 apresentação. Imaginário - u s p , n= 6, pág. 9-10, 2000

de apreensão entre o pensamento concreto e o abstrato abriram caminhos


para não mais separaramos os pensamentos e sim uni-los, como bem faz
Benjamin. A separação das formas de apreensão e formação do mundo e
do vivido estarão expressas em todas as manifestações culturais. Cabe a
nós localizá-las e atribuir-lhes toda a sua complexidade. Não podemos mais
fragmentar as disciplinas e, conseqüentemente, as manifestações do vivi-
do, pois como método de um melhor entendimento temos que procurar um
diálogo entre as várias áreas para buscar no todo a compreensão das ambi-
güidades e suas completudes.
Pensamos que nesse intento incessante a Literatura exerce um papel de
destaque que nos permite destrinchar essa rede de representações criadas e re-
criadas, Literatura aqui abrangendo todas as formas de arte, tomando-se conti-
nente do imaginário cultural. Nesse sentido, o novo bricoleur tem a função de
apresentar como a diferença, a alteridade, o outro, a representação e, portanto,
as manifestações culturais são extremamente importantes para a compreensão
do todo sem cair em outras ideologias, neste momento complicado da
globalização econômica e do crescente fechamento de fronteiras, quando se
manifesta a nefasta xenofobia.
Assim a Literatura apresenta o imaginário no qual a linguagem, a imagem
e todas as manifestações culturais mostram a sua verdadeira face, sem a influ-
ência da fragmentação das ciências e da procura de uma verdade ocidental e
soberana, mas corporificando de maneira independente aquilo que podemos,
neste momento, nomear como o vivido, o real e o cultural. Perpassando classes
e culturas convém atribuir-lhe o lugar até então negado na academia.
Na Literatura podemos perceber a metáfora e a metonímia operando e crian-
do vozes polifônicas e polissêmicas do vivido. É neste jogo que tentaremos defi-
nir o imaginário. Entre o objeto — hibridismo de objeto-interpretação-sujeito —
e a representação, localizamos a nossa preocupação e nossa tentativa de clarificar,
provisoriamente, o imaginário.
O imaginário ocupa o lugar de um conceito-chave para analisar o vivido,
tornando-se interdisciplinar pelo fato de congregar, entre outros, conceitos como
cultura, tempo, espaço, lugar, representação, emoção! Na polissemia, na
pohfonia, desenha-se um percurso.
No conto Recado do Morro, de Guimarães Rosa, uma ameaça de morte é
relatada por várias personagens que vão contando, mudando, acrescentando, cri-
ando versões fragmentadas cujo significado não pode ser compreendido por aquele
a quem a mensagem se destina: Pedro Orósio. Somente Laudelino, cantador
repentista, consegue reordenar e ordenar os fragmentos dos relatos deslegitimados
por serem expressos pelos loucos, pela criança e pelos simples, construindo o
sentido pela poética. Esse poeta é o paradigma para o pesquísador-bricoleur.
releitura Levi-Strauss-Bricolage
fernanda amalfi
dimensões?); inve
^ormada de mode
ca se
^da com

• l i


matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 14

I ceu d a historia: s o u r e
alguns motivos j Maico-

olgária chaim féres matos*

Em diversas tentativas, Walter Benjamin procurou estudar o hebraico. Esta não


é, para ele, uma língua entre outras, que podemos ou não aprender, que decidimos
ou não conquistar. Seu amigo Scholem, erudito nos textos bíblicos, no messianismo
judaico e na cabala, escreveu: "estudei hebraico sem ter nunca experimentado o
sentimento de que o conheceria verdadeiramente um dia. Achava-o extremamente
difícil e pensava que não o dominaria jamais" (in Felicidade e Utopia). Não se
passava o mesmo com Benjamin. Sempre recomeçados, seus estudos adquirem,
para ele, um sentido preciso: uma hngua sagrada e inacessível ao profano.
O hebraico, como a Palestina — para onde deveria ter-se mudado para ser docen-
te na Universidade de Jemsalém a convite de Scholem — é uma figura da 'Terra
prometida". Tal como sua viagem, o hebraico é, permanentemente, adiado. Em carta
a Scholem de 29 de dezembro de 1920, anota: "entrar no hebraico possui um alcance
incalculável". Ou: "se um dia for possível, deverei, sem mais demora, levar a sério o
hebraico" (19 de fevereiro de 1925). Em carta de janeiro de 1926, ainda a Scholem,
diz que seufilhoStephan "está aprendendo o hebraico, naturabnente, com facilidade".
Quanto a ele, deixará o hebraico "para mais tarde" pois, no momento (1928), dedica-
se ao francês e ao alemão. Ou seja: ao Tmuerspiel e ao Livro das Passagens (obra

* Professora do Departamento de Filosofia - FFLCH/USP


matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 15

projetada sobre Paris e a Baudelaire, mas também outros temas). Esses trabalhos cons-
tituem, por assim dizer, sua Bíblia, uma vez que a "introdução ao Trauerspiel só pode-
rá ser compreendida por alguém que conheça a Cabala".
O Drama Barroco Alemão do século XVII — e o "drama barroco francês
do XIX — o Passagem Werk (Livro das Passagens) — conjugam-se em uma
"teologia renovada": aquela que reúne a tradição mística judaica e a marxista.
Não por acaso, ao criticá-lo por não aderir "genuinamente" ao materiahsmo
histórico. Adorno lhe diz que seus escritos sobre Paris e Baudelaire, isto é, sua
concepção de História, mesclam "misticismo e positivismo". Marxista para te-
ólogos como Scholem, e teólogo para marxistas como Brecht, Benjamin não
contrapõe teologia e revolução ^ No Trauerspiel e na "capital do século XIX"
— Paris, a "capital do Capital" —, uma personagem é constante — o Anjo: a
Melancolia I no Drama Barroco, Satã, em Baudelaire. Em seu ensaio sobre
Karl Kraus, Benjamin refere-se à imagem talmúdica das hostes incontáveis de
anjos recriados a todo instante para cantar a glória de Deus para logo retomarem
ao nada. Esse "angelus novus" — que Benjamin reencontra na aquarela de Klee
—, possui, a um só tempo, os traços da redenção messiânica como também da
destruição: "há um quadro de Klee que se entitula Angelus Novus. Representa
um anjo que parece querer afastar-se de algo sobre o qual fixa seu olhar. Seus
olhos estão estarrecidos, sua boca aberta, suas asas desdobradas. Deve ser este o
aspecto do anjo da história (...). Onde para nós se apresenta uma só cadeia de
acontecimentos, ele vê uma única e mesma catástrofe que não cessa de acumu-
lar ruínas sobre ruínas e as joga a seus pés (...). Ele gostaria de deter-se ainda um
instante, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do paraíso sopra uma
tempestade que se entranha em suas asas tão fortemente que ele não pode mais
fechá-las. Esta tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro ao qual ele
dá as costas, enquanto até o céu, diante dele, acumulam-se as ruínas. Esta tem-
pestade é o que chamamos progresso" (tese n. 9). Aqui, o anjo melancólico se
encontra na contramão da história, contemplando catástrofes e desolação; sua
visão expressa alegoricamente a história do sofrimento do mundol
Benjamin preconiza a "organização do pessimismo" e de seu próprio pessi-
mismo, uma estratégia do desespero: "um relato da cabala", escreve Benjamin,
"conta que a cada segundo Deus cria uma infinidade de anjos; antes de desapare-
cerem no nada, todos comparecem um instante diante de seu trono para cantar
seus louvores. O meu interrompeu seu ofício: seus traços não ofereciam nada de
humano. Fez-me pagar caro tê-lo incomodado, pois aproveitou da circunstância
que me fez nascer sob o signo de Saturno — planeta das revoluções mais lentas,
astro da hesitação e dos atrasos". Messianismo e niilismo não encontram mais
uma "boa nova", os anjos não são aqui mensageiros do bem.
Encontram-se melancolia e anjo no Drama Barroco e na obra de Baudelaire.
Na tradição religiosa até a Renascença, a melancolia é obra do demônio: "na
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 18

da que não poderia ser curada: meu neto, que como todos viu essas imagens, já
não será capaz de ver a lua como eu a vi: com os olhos de um grego. A palavra
Selene tomou-se uma referência meramente erudita: a Lua, tal como hoje surge
no céu, já não responde a esse nome". Se nos reportamos, agora, à premissa
gnoseológica do Drama Barroco Alemão, poderemos compreender a importân-
cia do pensamento grego, em particular o de Platão: o transitório — os fenôme-
nos —, são "salvos", perenizados na eternidade do céu dos astros perfeitos e
luminosos: as Idéias. É dessa natureza o Belo e a beleza: "a beleza em geral",
escreve Benjamin, "permanecerá fulgurante e palpável enquanto admitir fran-
camente ser uma simples fulguração. Seu brilho, que seduz, desde que não queira
ser mais que bilho, provoca a inteligência que a persegue (...). O mesmo vale
para o amor humano: o homem é belo para o amante e não em si mesmo, porque
seu corpo se inscreve numa ordem mais alta do que a do belo (...). Amante e não
perseguidor, Eros segue (a beleza) em sua fuga que não terá fim, porque a bele-
za, para manter sua fulguração, foge da inteligência por terror e por medo do
amante. (Para Platão) o Ser da beleza não se manifesta no desvendamento e sim
num processo que pode ser caracterizado metaforicamente como um incêndio,
no qual o invólucro do objeto se consome em chamas, uma destruição pelo fogo
durante a qual a sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade lumino-
sa" {Drama Barroco Alemão). No Banquete, com efeito, Platão diz que a chama
da paixão nos queima como com pontadas, porque as figuras geométricas são
pontiagudas e, em movimento, nos ferem assim, como sentem os que queimam
de amor. E a geometria é alma, alma abstrata e espiritual, experiência que trans-
cende o sensível e revela a espiritualidade presente na matéria, o que é imutável
e eterno; é deles que depende ultrapassar-se o efêmero e salvá-lo na verdade
essencial. A geometria platônica é co-partícipe do deus, traz consigo vestígios
do invisível. A palavra grega idèin (ver) e eidenai (saber) procedem de eidos
(idéia) — forma inteligível, aspecto visível. O conhecimento é expresso e inter-
pretado pelos olhos. Em Platão, a idéia esplende no mundo inteligível, é espetá-
culo e especulação — cuja raiz comum ensina que ambos se vinculam à idéia do
conhecimento como operação do olhar e da linguagem. Mas não só. Ver e viver são,
também, o mesmo pois "para se estar vivo, é preciso ver a luz do Sol e, ao mesmo
tempo, ser-se visível aos olhos de todos. Morrer significa perder a visão e a visibili-
dade" (Vemant, op. cit.). A visão é possível pois entre o que é visto e aquele que vê
há uma plena reciprocidade ou, pelo menos, expressa senão uma identidade absolu-
ta, uma estreita afinidade. O Sol que ilumina todas as coisas é, também, no céu, um
olho que tudo vê, e se nossos olhos vêem, é porque irradiam uma luz comparável
àquela do sol: "o raio luminoso que emana do objeto e o toma visível é da mesma
natureza do raio óptico que sai de nossos olhos e lhes dá visão (...). A luz é visão e a
visão é luminosa" (Vemant, op. cit.). Que se pense também na "alegoria da caverna"
da República, onde o Sol que ilumina o mundo fenomênico é o análogo do Bem no
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 19

Inteligível. A idéia é inteiramente visível, é "nua" como a verdade que se revela. Na


nudez encontra-se uma experiência metafísica, religiosa e erótica que atribui clareza
ao ver. Associado ao primado do ver a olho nu está a noção de Teoria. De tea (vista)
e ora (olhar), teoria significa "ter cuidado com o ver". Há nisto um potenciamento
metafísico da visão, para além de toda vestimenta e de todo invólucro. Em outras
palavras, o homem antigo não diferencia o psíquico do físico. Por isso Benjamin
diz: "a relação do homem antigo com o cosmos cumpria-se na embriaguez" ("A
Caminho do Planetário", in Rua de Mão Única). Também os raios luminosos não
são somente físicos, pois arrastam consigo sentimentos, paixões, estados de espíri-
to: "quando alcança o objeto, o olhar transmite-lhe aquilo que o observador sente ao
vê-lo" (Vemant, op. cit.).
O céu das "estrelas fixas" ou o das "estrelas errantes" constituíam, tam-
bém, fonte de orientação no pensamento e na vida. De fato, a origem da palavra
astro reúne, em uma única experiência, conhecimento e vida. Considerare é
consultar o alto para nele encontrar o sentido e o guia seguro de nossas ações e
pensamentos. Desidedare, por sua vez, é o contrário, é estar desprovido dessa
referência, é abandonar o alto ou ser por ele abandonado. Considerare e
desiderare têm por radical o substantivo sidus (estrela), cujo plural é sideral
(conjunto de estrelas, constelações): "porque se diz dos astros, sidera é empre-
gada como palavra de louvor — o alto — e, na teologia astral ou astrologia, é
usado para indicar a influência dos astros no destino humano, de onde sideratus
— siderado: ser adngido ou fulminado por um astro. De sidera procede
considerare — examinar com cuidado, respeito e veneração — e desiderare —
cessar de olhar os astros, deixar de vê-los (...). Desiderare é abandonar o alto ou
ser por ele abandonado. Deixando de olhar para os astros, desiderium é a deci-
são de tomar nosso destino em nossas mãos e nesse caso desejo é "vontade
consciente"; ou, contrário, cessando de ver os astros, desiderium significa uma
perda, privação de saber sobre o desfino, queda na roda da fortuna incerta" (Chauí,
M., "Laços do desejo", in O Olhar). O "desencantamento da natureza", despo-
jada pela racionalidade científica de seus aspectos míficos, místicos, sagrados e
proféticos, converte-se em mero objeto a ser controlado, dominado. Desse pon-
to de vista, Kepler não é um "moderno", pois nos fala em uma anima motrix que
emana do Sol. As descobertas da astronomia na Idade Moderna — com Kepler,
Copémico, Tycho Brahe — sob o impulso científico guardavam ainda uma cor-
respondência entre microcosmo e macrocosmo cuja analogia influenciava os
comportamentos da alma e inseria o homem no universo: "Se, como uma vez
fez Hillel com a doutrina judaica", anota Benjamin, "se tivesse de enunciar a
doutrina dos antigos em toda conclusão (...), a sentença teria de dizer: 'a Terra
pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos'. Nada distin-
gue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência
cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 20

florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copémico,


Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente por impulsos científicos"
C'A Caminho do Planetário", op. cit.). O Sol é "o único corpo que, em virtude de
sua dignidade e poder", diz Kepler, "parece a propósito mover os planetas em
suas órbitas, e é digno de converter-se em morada do próprio Deus, para não dizer
em primeiro motor". Kepler é, como indica Benjamin, um matemático neoplatônico
ou neopitagórico convencido de que a tarefa do cientista era encontrar as regulari-
dades matemáticas simples que se escondem em todas e em cada uma das partes
da natureza, esforçando-se em descobrir harmonias matemáticas com as quais o
espírito divino impregnou a natureza. Para ele, o fenômeno luminoso era a mais
evidente manifestação da transcendência, o índice mais seguro de Deus na cria-
ção. Kepler faz literalmente da luz a própria alma do homem e do universo unindo
estreitamente a ordem ontológica do mundo com a excelência teológica.
Já com Descartes, o céu estrelado é desdivinizado. Na Dióptrica e nos Meteo-
ros a luz é "mecanicidade", é simples objeto da ciência. Ao fmal desta obra. Descar-
tes consagra-se à desilusão do sábio mecanista diante das maravilhas da natureza. A
Dióptrica termina celebrando as realizações da técnica como tantos outros "mila-
gres" da Ciência. A análise geométrico-algébrica da luz como fenômeno físico só
considera a experiência do ver se passar pelo crivo de uma teoria físico-matemática
da luz e da íisiologia da visão, baseadas nos princípios da nova mecânica. Ao final
dos Meteoros, o filósofo vangloria-se de ter a tal ponto desvendado os mistérios do
céu que seu leitor não encontrará mais nas alturas nenhuma matéria de admiração,
libertos agora os olhos do "sentimento do maravilhoso". Admirar-se é desconhecer
a "ordem das razões". Como escreve Merieau-Ponty: "(a Dióptrica) é a tentativa de
exorcizar os espectros e fantasmas da visão, fazendo-os ilusões perspectivas sem
objeto em um mundo límpido e sem equívoco. Ela é o breviário de um pensamento
que não mais quer assediar o visível e decide reconstruí-lo em conformidade com
um modelo que dele o pensamento proporciona" {O Olho e o Espírito).
A revolução cartesiana assinala a mutação do "espírito de geômetra" do mundo
grego em "espírito geométrico-científico moderno": "há, no acentuar exclusivo
de uma vinculação óptica com o universo, ao qual a astronomia muito breve con-
duziu, um signo precursor daquilo que estava por vir (...), o que se patenteou da
maneira mais terrível na (Primeira Guerra Mundial) que foi um ensaio de novos,
inauditos esponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças
elétricas foram lançados a campo aberto, correntes de alta freqüência atravessa-
ram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas
marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais
na Mãe Terra" ("A Caminho do Planetário", Rua de Mão Única). Retoma, neste
momento, o tema benjaminiano do "sofrimento da natureza" desenvolvido no
Drama Barroco Alemão, inspirado no cabalista Franz Molitor: "durante e após a
Primeira Guerra Mundial", diz Scholem, "o fenômeno do judaísmo ocupou muito
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 21

Benjamin (...)• Quando lhe contei em 1916 que A Filosofia da História ou


Reflexões sobre a Tradição, obra em quatro volumes sobre a cabala, de Franz
Molitor —, publicada há sessenta ou oitenta anos, se encontrava, surpreendente-
mente ainda disponível na editora, foi uma das primeiras obras sobre o judaísmo
que ele adquiriu (...). Benjamin, um leitor apaixonado da Estrela da redenção de
Franz Rosenzweig — o trabalho mais original da teologia judaica de nossa gera-
ção —, vivenciou aí, como também nos escritos cabalísticos, a profunda ligação
do genuíno pensamento teológico judaico à hngua, que se tomou um traço marcante
de seu próprio trdbalho^XBenjamin, Buber e outros justos: Judaica I).

Há, em Benjamin, uma circularidade entre Deus, a natureza, o homem e a


língua, através dos quais transita o sagrado. Questão central de todo pensamen-
to benjaminiano: linguagem e nomeação. Se, como afirma no Drama Barroco,
o primeiro filósofo não foi Platão mas Adão, "pai dos homens e pai da filoso-
fia", é porque a linguagem adamítica é nomeadora, dá vida às coisas, fazendo-
as existir. Esta língua da "origem", da "expressão" é sagrada: "a leitura profa-
na", observa Benjamin, "tem em comum com a leitura sagrada o fato de depen-
der de um ritmo necessário, ou melhor, de um instante crí'tico no qual aquele
que lê não deve de nenhuma maneira negligenciá-lo, se não quiser ficar de mãos
vazias" (Benjamin, "Doutrina das Semelhanças", in Illuminationen).
O moderno é a impossibilidade da linguagem expressiva, comunicadora de
um sentido originário. A palavra é muda, como a natureza. No Drama Barroco,
Benjamin escreve: "toda natureza começaria por se lastimar se lhe fosse dada a
palavra". A natureza não era muda, mas tomou-se, pois é tomada como entidade
abstrata e neutra, como "reservatório do útil", como o especifica Benjamin na tese
n. 11, na medida em que a natureza é entendida como um conjunto de objetos
disponíveis e manipuláveis por finalidade o lucro: "a natureza está aí, grátis". O
homem não se comunica mais com a natureza e com sua natureza; esta não possui
mais significação humana; o homem não se reconhece mais na natureza primeira
ou naquela transformada visando a fins humanos; ela é, de agora em diante, mo-
bilizada para a acumulação, reprodução e acréscimo do Capital, bem como para
intervenções técnicas. Assim como há o silêncio da natureza, há também o dos
homens na história. Na modemidade, o homem é um ser pós-lingüístico que ca-
minha entre minas materiais e espirituais. Ruína exemplar, os homens voltavam
mudos dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, "não mais ricos e sim
mais pobres em experiências transmissíveis" ("Experiência e Pobreza", op. cit.).
Só conheceram a linguagem das trincheiras. Desse modo, Benjamin caracterizou
o silêncio na contemporaneidade, aproximando-se daquele evidenciado por Kafka.
Se a técnica silenciou a natureza, a guerra silenciou os homens. A trincheira é sua
única pátria. Diante dessa catástrofe, Benjamin cita Karl Kraus: "se algum ho-
mem tiver algo a dizer, que dê um passo adiante, que tome a palavra e se cale".
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 22

No Livro das Passagens, anotações que reúnem escritos entre 1929-1940, en-
contram-se entrecruzados mais de um paradigma de análise onde a presença cons-
tante é a teologial Contra a continuidade temporal que é a repetição do tempo do
infemo, a teologia oferece a experiência de um tempo disruptivo, da interrupção das
catástrofes da História e da repetição dos massacres. O tempo redimido é o tempo
messiânico, pois "todos aqueles que até agora conquistaram a vitória participam
desse cortejo triunfal em que os dominadores de hoje só chegaram a essa posição
porque marcham por sobre os corpos daqueles prostrados no chão" (tese n. 7, "So-
bre o Conceito de História", in Illuninationen). O "tempo homogêneo e vazio" é o
do devir abstrato onde vencedores e vencidos, os que estão no poder e os que lutam
pela vitória histórica encontram-se no mesmo registro da violência. Aqueles que
desejam poder assemelham-se, mimeticamente, por uma secreta identificação, àque-
les que o ocupam. O vencedor é sempre e apenas o vencedor do momento e todo
vencido é sempre vítima. No continuam do tempo, linha reta ou espiral, Benjamin
reconhece a ideologia do moderno em sua identificação com a noção do progresso.
Este quer se fazer passar como espaço de tempo no qual o que vem depois é neces-
sariamente melhor do que o que veio antes. Mas não só. Nele "coincidem" desen-
volvimentos técnicos e científicos com os da humanidade enquanto tal, o que resul-
ta na sonegação da barbárie que o progresso preservou. Existe a superstição do
progresso, mas também suas vítimas. Recaídas periódicas na barbárie são conside-
radas como "acidente de percurso" rumo a futuros gloriosos. Fala-se em progresso
obliterando-se suas vítimas. O progresso silencia a dor da natureza circundante e a
do homem na história. Com respeito ao que Benjamin escreveu, inspirado na obra
do cabalista Molitor: "Por ser muda, a natureza decaída é triste. Mas a inversão
dessa frase vai maisftindona essência da alegoria: é a sua tristeza que a toma muda"
(DBA). A incapacidade de falar uma bngua comunicativa, vale dizer, adamítica,
nomeadora é o luto da natureza e da história. A obra da Criação só se completa, para
Benjamin, quando as coisas recebem um nome, e isso em um sentido preciso — a
hnguagem é potência de nominação: "nada liga melhor o homem à linguagem que
seu nome" ("Afinidades Eletivas", in Illuminationen); e é nele que a essência espiri-
tual do homen) se comunica com Deus". A "queda" da linguagem é sua redução ao
estado de instrumentalização comunicativa. No ensaio "Problemas da sociologia da
linguagem", de 1935, Benjamin inclui a sociolingüística em uma antropologia his-
tórica do corpo, do gesto e do Sujeito. Mostra a que ponto seus diferentes domínios
supõem uns os outros, requisitando uma teoria que abranja o conjunto das realiza-
ções humanas: sociedade, linguagem, história.
Circunstância por excelência da modernidade, a Torre de Babel. Não por
acaso, Benjamin comenta a obra de Kafka'^. Ambos se encontram na questão da
escritura, da língua. Sua conclusão resulta nas línguas instrumentais, aquelas
que não têm "nenhum eco", ignoram uma experiência originária. Todo diálogo
comunicativo do homem com a natureza e com o outro está rompido.
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 23

Diante disso, a pregnância do pensamento judaico mais uma vez


presentifica-se. Toda ação humana por meio da qual a natureza toma a palavra
é uma indenização: reparando o sofrimento, ela reenvia, pontualmente no es-
paço e por um instante no tempo, homem e natureza ao estado de felicidade
originária em que se comunicavam imediatamente um ao outro em cada pala-
vra da língua e em cada coisa presente no mundo, encontra-se latente e oculto
um resíduo do verbo criador, e sob este aspecto, "a língua é", para Benjamin,
"uma daquelas múltiplas camadas que envolveram a centelha da luz infinita
de Deus"^. O instante (o Jetztzeit — o "agora") é interrupção da continuidade
histórica e irrupção do novo. O judaísmo oferece "um conceito do presente
como tempo do "agora" no qual ingressam centelhas do tempo messiânico".
Pelo Jetztzeit — a "agoridade" — o messianismo não representa apenas uma
urgência; é, também, a possibilidade de enunciação de um Sujeito histórico em um
limiar. Reúnem-se, aqui, Baudelaire, Marx e o Messias, "guardiães do limiaf\
Baudelaire: "(em sua prosódia) as palavras possuem um lugar rigorosamente de-
finido, como conspiradores antes da explosão da revolta. Baudelaire conspira
com a linguagem" {Charles Baudelaire..., op. cit.). Em Marx o tempo é messiânico,
o oposto do continuum: é ruptura, interrupção e salto tigrino, isto é, revolução: "a
história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e
vazio, mas forma aquele pleno de "'agoridade''. Assim, para Robespierre, a Roma
antiga era um passado carregado de ''agora'' que ele fazia "jorrar" da continuida-
de da história. A Revolução Francesa se entendia como uma Roma recomeçada.
Ela citava a antiga Roma como a moda cita uma vestimenta de outrora. É percor-
rendo o bosque do outrora que a moda "respira" a fragrância do atual. Ela é o
salto do tigre no passado. Mas este salto se realiza em uma arena na qual comanda
a classe dominante. Efetuado sob o céu livre da história, o mesmo salto é o salto
dialético, a revolução tal qual Marx a concebeu" (tese n. 14). Instante e limiar
indicam uma experiência judaica do tempo e do futuro e não constituem um "tem-
po homogêneo e vazio", pois são o "tempo oportuno" (o kairós) e cada segundo é
"a porta estreita pela qual poderá passar o Messias" ^ (tese n. 18, op. cit.).

Resumo: O texto enfoca a centralidade da linguagem nas reflexões


de W. Benjamin, tendo como fundo seus estudos sobre o hebraico,
que nunca se completaram. A autora toma a infinda tentativa de
Benjamin em aprender hebraico como uma metáfora da dificuldade
de se atingir o sagrado para um pensador do profano; mas que,
mesmo assim, tinha na idéia da vinda do messias uma temática re-
corrente. Isto é, nas considerações de Benjamin sobre a História
havia a preocupação com a irrupção de um novo sujeito.
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 24

Palavras-chave: Walter Benjamin, cultura judaica, misticismo.

Abstract: This article focuses on the main position ofthe language


in W. Benjamin 's thought. The author works on Benjamin 's never
ending studies of Hebrew.The endless attempt to learn Hebrew is
taken, in this article, as a metaphor of how dijficult it is, for a
thinker of the profane, to reach the sacred. Benjamin had the
Messiah's coming as an appealing theme. It means that,in his
considerations on History, Benjamin was worried about the
irruption ofthe new subject.

Keywords: Walter Benjamin, jewish culture, mysticism.

notas

^ Talvez encontre-se aqui a influência de seu pensamento na "teologia da libertação" dos


anos 80 e 90, em particular entre missionários alemães na América Latina (Cf. Thiele,
R., tese de doutorado, Dep. de Filosofia da UFMT, 1990).
^ Na tese n. 1 de "Sobre o Conceito de História" (1940), Benjamin refere-se à teologia
como auxiliar do materialismo histórico; na n. 2 fala que o passado é portador de re-
denção, pois a cada geração foi conferida uma "leve força messiânica" que faz "valer
essa pretensão"; na terceira escreve que apenas a uma humanidade redimida pertence
inteiramente seu passado e isso quando este se torna citável. Não é a História que julga
os homens em seu tribunal, mas os homens julgam a História. A idéia de "História
Universal" (hegeliano-marxista) só se realiza no dia do Juízo Final; n. 6: o "Messias
não vem somente como redentor, mas como o vencedor do Anticristo". E por último:
"sabe-se que aos Judeus estava interditado prever o futuro. A Tora e a prece ensinam-
se, ao contrário, na comemoração. Para eles a comemoração desencantava o futuro ao
qual sucumbiram aqueles que procuravam instruções com os adivinhos.
O recurso à cronologia na periodização das obras de Benjamin estabelece três conjun-
tos de preocupações: entre 1910 e 1923 volta-se para os movimentos de juventude e o
judaísmo está presente em sua filosofia da linguagem, como em "A doutrina das seme-
lhanças", "Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana", entre outros; entre
1923-1928, o paradigma seria estético, como no Drama Barroco Alemão, e finalmen-
te, o político — desde a Passagen Werk até as teses "Sobre o Conceito de História".
Porém, no registro estético subsistem elementos do teológico, assim como no político.
O estético, o político, o teológico tratam de uma história que não é regida pela causa-
lidade ou pela consciência constituinte de um Sujeito. N e m positivismo, nem
matos, olgária chaim féres. Imaginário - USP, n'^ 6, pág. 14-25, 2000 25

historicismo, portanto. O caráter qualitativo do tempo messiânico e a política articu-


lam-se, em Benjamin, com a sensibilidade teológica.
Albert Camus reconhece o mesmo fenômeno em Kafka: "trata-se agora de agir de modo
a que ninguém se compreenda, mesmo falando a mesma língua. Pode-se mesmo dizer
que nos aproximamos do instante perfeito em que o mundo inteiro falará sem jamais
encontrar qualquer eco, e as duas linguagens — que se confrontam — destruir-se-ão
uma à outra com tal obstinação que necessariamente tudo se encaminhará para a realiza-
ção final: o silêncio" (L'État de Siège).
Cf. ainda, Lissovski, Maurício. "Signo: Tigre. Ascendente: Lontra - História, fotografia
e adivinhação em Walter Benjamin".
Os principais traços do messianismo presentes em Benjamin são: a ordem presente do
mundo é injusta e essa injustiça é obra dos homens ("Para uma Crítica da Violência",
por exemplo); a liberação-redenção passa pela destruição dessa ordem, por seu
desordenamento, pela destruição, pela restauração da justiça (Cf., entre outros "O Ca-
ráter Destrutivo"); a redenção está prometida e, apesar de não se saber quando virá,
sabe-se que virá no devido tempo (Cf. "Madame Ariadne, segundo pátio à esquerda");
a vinda do Messias é precedida de sinais de sua chegada (o reino do Anticristo) e pela
presença dos profetas que o anunciam, correndo o risco de serem confundidos com ele
(Cf. tese n. 6); a conflagração será universal e é preparatória do advento do tempo
messiânico, tempo este que é pleno porque vem depois do tempo que destruiu a injus-
tiça da ordem do presente {''Fragmento Teológico-político''); o tempo messiânico é
indestrutível porque é "sem tempo", fora do tempo da dominação e da opressão, da
ideologia do progresso que ignora as regressões da s o c i e d a d e e se considera
ontologicamente "o melhor" de todos os tempos ("Reflexões sobre o fascismo", in
Documentos de Cultura, documentos de Barbárie", org. Willi Bolle); as características
do tempo messiânico são desconhecidas. Só se conhecem por profecias características
do tempo que o prepara, isto é, as do reino de Anticristo (teses n. 6 e 14); o movimento
salvífíco é a apokatastasis - idéia retomada da tradição herética de Orígenes: o Messi-
as virá e salvará primeiro os justos, depois os pecadores. N o final todos serão salvos.
(Cf. Scholem, A Mística Judaica', Benjamin, "Agelilaus Santander" (1933); primeira
versão da Crônica Berlinense (a revolução não deverá tomar o "caminho descendente
do ódio, mas o ascendente da oração") e fragmentos do Livro das Passagens.
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

i artíc da âescostlBiai/cada
Sérgio lima*

Apenas o que foi separado pode ser juntado


(provérbio oriental)

O jogo de ajuntar coisas, também chamado bricolage, possui vários ângu-


los tangentes com a esfera das artes. Verificam-se contatos estreitos e até
superposições com o descobrir das artes, com o fazer e seus métodos e técnicas
distintivas da expressão artística, quer plástica quer poética. Tal variedade pode
ser apresentada em blocos de idéias como fazemos a seguir. Mesmo que num
primeiro instante possa passar por pedaços desconexos, pensamos que o todo se
aclarará e acabará por explicitar, de modo palpável, toda a tessitura de laços e
símbolos que constitui a visão crítica aqui proposta. Reiteramos que os pedaços
e blocos de idéias expostos a seguir como que obedecem ao mesmo procedi-
mento do ajuntar e da acumulação verificada nas culturas ditas primitivas, de
suas instâncias fundamentais, as quais nunca se apresentaram de maneira linear.
A idéia central aqui perseguida seria apresentar a bricolage, que se situa
num estágio anterior e/ou exterior à arte enquanto querer, desejo e atuação e
intencionalidade. Dizemos anterior por ser caudatária do princípio do jogo, o
que, ademais, lhe dá um caráter de vestíbulo ou entrada ao mundo das artes, sem

* Artista Plástico.
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

contudo permanecer aí, em entrega, ou aí se entender, nessa gruta do maravilhar


que resulta sempre e por definição numa praxis encantatória. Prática ou opera-
ção mágica do saber, do fazer, do saber/fazer que é expressão da arte.

Os prestígios do homem arcaico, do primitivo e seu olhar selvagem, sempre


estiveram ligados à magia e ao pensamento analógico, a um olhar fresco, novo,
essencial e ao mesmo tempo ancestral. Oficiantes do sagrado e da transgressão que
o implica, ou seja, oficiantes de um saber e fazer primordiais para as instâncias da
expressão e da vivência extrema dos estados de transportes e exaltações, rituais
artífices do feitiço e do encantamento do mundo, enfim instauradores daquilo que se
ampliou expressivamente para fora do consagrado e depois veio se chamar arte.
Enquanto determinados autores situam o início das artes nas operações
encantatórias do "feiticeiro" pré-histórico, simultâneas, pois, ao surgimento dos
artefatos e utensílios feitos pelas mulheres, outros optam por não diferenciar o
mágico das demais produções pré-históricas de uso corrente, como lascas, facas,
jarros etc. Para os primeiros as pinturas nas cavernas eram necessariamente frutos
de uma iniciação e de uma mudança de estado do feiticeiro, além de externarem
uma força transformadora inequívoca; enquanto, para outros, as peças de uso da
pequena comunidade (que por vezes estariam inclusas em jogos e folguedos) vin-
culavam-se só às atividades da vida comum e não visavam a indicar qualquer
outro estado. Muito embora em determinadas tribos e culturas primitivas já se
pode verificar que o mundo do sagrado permeia o dia-a-dia, chegando mesmo a
propiciar algumas aberturas e brechas significativas no comportamento corriquei-
ro, até impregnar certos objetos de uma carga bem diversa daquela de uma sim-
ples função ou de mera extensão do gesto humano.
No âmbito das culturas primitivas (sobretudo naquelas de fonte matriarcal,
como as de Santarém, por exemplo, ou as de Marajó com suas pubes rituais), ou
do pensamento selvagem, enfim do primitivismo (Blachère, 1996)^ que marcou
fortemente toda a modemidade literária e artística (e com mais razão ao Surrealismo
mesmo), temos, assim, arte e suas múltiplas faces em campo distinto àquele da
produção funcional, seja de objetos utilitários ou de simples peças decorativas.
Não deixou de ser observado e nem passou despercebido que as culturas primiti-
vas não possuem objetos "só decorativos" ou enfeites, além de ignorarem qual-
quer tipo de efeito (exterior ao objeto) nas suas realizações.

O jogo é anterior à cultura e se constitui em "campo alheio à esfera das


normas éticas", como lembra Joan Huizinga no seu histórico ensaio Homo
Ludens. Ao passo que a arte, contrária ao alheiamento do jogo, complementa o
autor, "participa quase sempre do mundo sagrado e está carregada de seus pode-
res: força mágica, significação sagrada, identidade representativa com seres cós-
micos, valor simbólico" (Huizinga, 1971).
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

Diferenças entre o jogo e a reflexão plástica, entre o lúdico e o sagrado, bem


como em relação às formas de expressão plástica têm sido decisivas para certos
aprofundamentos do fazer transformador que configura a própria praxis e o campo
sensível do que se denominou arte.

Dentre as muitas tentativas de se apreender sua essência, a arte viu-se definida


por ser, nas palavras de Gérard Legrand, "atividade ordenada com vista a um fim
diferente dela própria, o que a diferencia do jogo, e cujas práticas são objeto de
aprendizado ou de ensino." As ditas "belas artes" são em geral abordadas a partir de
uma classificação puramente formal. Ou seja, independente do sistema utilizado,
teremos sempre a relação de cada uma delas com as categorias de espaço-tempo,
estabelecidas por Kant, o que reserva à poesia um último lugar, como observou um
autor e especialista na questão, do porte de Gérard Legrand.
Uma generalização abstrata do termo arte vem sendo periodicamente
introduzida, a partir de novas aplicações do seu sentido. Por exemplo, no século
XIX começou a se especular em termos de "arte industrial"; por volta de 1900
surgem as "artes decorativas"; cerca de 1920 surgia "a sétima arte: o cinema" etc.
A essas noções apresentadas e analisadas por Gérard Legrand, no seu recente
Dictionnaire de Philosophie, de 1983, soma-se uma enorme quantidade de outras
tantas definições. Embora na sua maioria sejam válidas, tais definições acabam indi-
cando, de certa forma, a dificuldade mesma de uma definição que configure o princí-
pio do sentido da arte, visto que por unânime prevalece o caráter plural e múltiplo de
sua essência, de um particular religar que instaura seu gesto próprio, de seu fazer
transformador, explosivo e inovador por definição, enquanto meio de expressão.

Invocando novamente o homem selvagem ou o herético homem adâmico,


do Paraíso Perdido, queremos sublinhar que a maior parte das atenções de artis-
tas e poetas do Moderno — sendo que dentre eles merecem destaque nomes
basilares de toda uma corrente que vai de Lautréamont a André Breton ou de
Cruz e Sousa a Raul Bopp — quando instados pelo primitivismo souberam
muito bem não voltar para trás, com destino a um primitivo passado. Mas, pelo
contrário, souberam sim atualizar tais fontes primeiras. O que quer dizer o se-
guinte: tais autores, com suas respectivas excelências, foram uníssonos em pro-
mover o retomo pelo primitivo, pelo olhar selvagem e, através dele, re-atualizar
o caminho em direção ao hoje, de agora para o futuro. "O Surrealismo é o que
será", exclamava a seu tempo Breton.
O retomo pelo primitivo tão pouco e tão mal estudado, apresenta um vetor de
atualização imprescindível e, diria mesmo, um acento de redimensionamento, ou res-
gate essencial para o passo inicial da aventura de hoje. O caminho para amanhã traz o
resgatado e reencontrado encanto, ainda vivido e intensamente já experienciado para
o horizonte do novo. Horizonte do desejo que é o ser amado, eros gestado pelo amor.
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

Vale a máxima de Giovanni Gentile em sua filosofia da ação, caudatária dos


'900: "O objeto do amor, qualquer que seja, não pré-existe ao amor, mas em
verdade é por ele criado".
Do mesmo modo que é o amor que gera o objeto amado, podemos dizer
sem erro que, assim, é a arte que gera a pintura e não o contrário.
Comentou-se também e não poucas vezes, um certo primado do olhar so-
bre os demais sentidos em nossa cultura. Gérard Legrand estende-se igualmente
sobre os trunfos da visão e do ver, de Heráclito a Demócrito, de Platão a Bergson.
Como diz no Dicionário,

A maioria das metáforas usuais e desaparecidas da filosofia tem origem no sentido


da vista (por exemplo evidência). A teoria marxista da consciência evoca-a como
um reflexo. O próprio existencialismo fala habitualmente do olhar e da opacidade.
A experiência da intersubjetividade foi muitas vezes descrita como a da troca de
olhares, da captação do olhar de outrem. (...) Mas o estudo psicanalítico da relação
entre a vista e a palavra mal começou. Pode-se lastimar o privilégio filosófico dado
à vista, mas é um fato (Legrand, 1986).

Em que pesem algumas ressalvas (como a muito usada depreciação


"redniana" face ao significado, ao conteúdo da visão que lhe escapa), cabe lem-
brar que os senridos respondem interativamente aos estímulos e que a visão em
questão não deixa de ser sempre a visão do espírito como um todo, enquanto
universo desejável, sensível e percebível.
Em razão do que e não por acaso, cabe perfeitamente a ironia do irlandês Jonatiian
Swift, citada por Gérard Legrand: a visão é "arte de ver as coisas invisíveis".
Contudo, apesar desta primazia do oUiar, a nossa cultura ocidental ainda se funda
e se desenvolve toda apoiada no texto, no império da escrita. Equivocadamente fala-se
em "civilização da imagem", enquanto o que temos é justamente o autoritarismo e a
ditadura do texto. Vivemos numa cultura de códigos e a imagem é o oposto do código,
por princípio. A maioria das "imagens" que ilustram as pubhcações impressas não
decorre de uma experiência da imagem enquanto Natureza, mas de um conjunto de
informações escritas, de um texto ou de uma cabca-preta. O divórcio do homem com
a Natureza cristalizou-se a partir da Revolução Industrial e da mecanização.

Ao entendermos como uma expressão da lógica o "universo do discurso", pode-


mos colocar no seu oposto, aquele das sensações e do sensível, e até mesmo o mundo
da volúpia, visto que esta se qualifica por ser um prazer muito intenso, pleno e consci-
ente, o qual extema e desperta em nós o eco de toda uma personalidade, de toda uma
experiência do ser e sua transgressão possível. Vale lembrar que uma das definições de
arte é justamente configurar o gesto de mais querer e de mais consciência, ampHação
do conhecimento e "mais luz" (Goethe): a vontade de mais vida, essa intehgência
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

aplicada à ação. Vontade que é o desejo "tomado perfeitamente consciente", nos diz
Legrand e, comentando Nietzsche, prossegue: "É a prova concreta da Liberdade".

Assim, mesmo em oposição aos campos da lógica, restritos ao racional e às


normas e leis do status quo, o mundo dos sentidos — e das artes — implica igual-
mente o consciente e o inconsciente. E sua percepção se dá de outra maneira que
aquela dos códigos, racionalizante e redutora, a qual se impõe linearmente,
unidimensionalmente: o texto está escrito sempre em sentido de mão única.
Ora, a arte ou as artes jamais se apresentam num único sentido. Enquanto
meios de expressão são plurais, de muitas direções e nem se reduzem a uma
codificação, seja um código escrito, impresso ou desenhado. Em arte, mais do
que construir, levantamos e exaltamos. Trata-se de gestar, de dar nascimento e
dar formas, descobrir, revelar algo novo e o animar.
Por outro lado, certamente, as artes implicam a percepção, o conheci-
mento de um fazer e a experiência de amalgamar o novo numa matéria. Di-
ríamos que arte é processo de vivência, de conhecimento através e na maté-
ria, descobrimento e meio de expressão, transformando-a e instaurando um
novo mundo dinâmico de formas, de ritmos e poesia. Enquanto meio, a arte
funda-se no coletivo e é necessariamente feita para o outro, para "o olhador",
seja ele passado ou presente ou futuro.
O que não quer dizer comunicação de massa, muito pelo contrário, aliás...

Adentremos as questões do sensível, da sensação e da sensibilidade, enfim


do sensual, esse mundo inerente à arte. Inicialmente convém lembrar que a sen-
sação implica o problema de seu valor cognitivo, questão aguda e não obstante
obscura na maioria das teorias do pensamento. Sabe-se que a informação, o
alcance informativo advindo da sensação varia, e muito, com o sentido informa-
do. Segundo Hegel, citado por Legrand, as "sensações seriam descobertas, acha-
dos, embora sua cunha de passividade venha implicar, desse modo, o dito re-
conhecimento''. Além desse ângulo, o território do sensível reenvia diretamente
à questão da memória, vetor capital para a questão da arte enquanto meio de
conhecimento e expressão: afinal de contas, a mãe das musas ou melhor a mãe
das artes, das ditas artes liberais da Antigüidade, chama-se Mnémosyne, que
quer dizer e é hteralmente memória (Lima, 1995)1

A sensibilidade compreende a condição humana de responder aos vários


estímulos do exterior, reagindo em relação aos mesmos. Tal responder ou capa-
cidade de percepção foi atualizado, nos dias de hoje, para sensorialidade em
lugar de sensibilidade. Vemos aí um certo ar moralizante, desqualificando "a
sensação" (sensibilidade sendo equivalente à sensualidade...) pelo menos com-
prometedor, digamos assim, "sensorial"...
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

Nessa ótica, a expressão "sensualismo" foi imediatamente classificada como


pejorativa, muito embora seja a razão mesma das várias doutrinas que indicam
a proveniência dos conhecimentos pela senda das sensações (Legrand cita Hume,
Condillac, Diderot e mesmo Lenine, que "reivindica, como ponto de partida de
seu materialismo e empiriocriticismo um sensualismo objetivo'').
Vale ponderar que as questões do sensível, intrínsecas às formas expressi-
vas, nem sempre estão abertas às demais linguagens. E mais: sensação implica
ainda quer o sentimento quer a intuição. Adiantemos que sentimento, antiga-
mente, era sinônimo de sensação ou afeto. E, na sua acepção moderna, citando
Legrand novamente, quer dizer "estado da afetividade provocado por uma re-
presentação. O sentimento contém sempre uma parte de prazer (ou desprazer),
subconsciente ou não. É informado pelo seu objeto e, segundo a Fenomenologia,
obedece ao princípio de intencionalidade. Chega até a fase cognitiva da experi-
ência vivida (sentimento de fracasso, por exemplo). Pode ser a fase intermediá-
ria entre uma emoção e uma paixão (por exemplo, no amor)".
Sentimento também pode ser compreendido por intuição, que é "mais ou
menos racional mas não discursiva, que permanece pouco clara e pouco comu-
nicável". Ainda Legrand o exemplifica e complementa: "o homem começa por
levantar uma hipótese que não é mais que a expressão do seu sentimento, depois
raciocina a seu respeito (diz Claude Bernard). O apelo ao sentimento nunca
deixa de ser transitório em Filosofia".

Igualmente tão abusivo quanto o exclusivismo do código e da informação


cifrada, bases categóricas dos meios (autoritários) de comunicação de massa, se-
ria pretendermos que a arte fosse só sentimentos, só sensação ou feixe de sensa-
ções como passa em algumas instâncias mais populares. Concepção mais enclinada
para o hedonismo, digamos, e que, via de regra, beira o não responder às exigên-
cias mesmas de mais consciência e da vontade que impregna seu fazer. Arte cons-
titui-se e se forma numa praxis vitalista, a partir de "um mordente colérico"
(Bachelard). O fazer que caracteriza a arte é aquele da transformação e descober-
ta, da operação de magia que é a animação mesma, tangível e desejável das "for-
mas vivas" (Schiller), que é o próprio cadinho da arte.

Inicialmente, nas cavernas da magia primitiva, do mundo mírico e do


eterno retorno, da pré-história enfim, o fazer da arte era eminentemente
ritual e uma operação mágica expressa. Implicava inclusive uma mudança
de estado ou oficiar, um obrar sacral, que se dava enquanto operar na "gru-
ta", no espaço consagrado que os gregos chamaram de temenos. Obrar que
se transformou progressivamente, mantendo no início seu senso primeiro
de num saber/fazer conjugados e, depois, ainda segundo os gregos, trans-
mitindo o movimento de zoographiké: a grafia do vivente (vivente sendo o
3 8 lima, sérgio. Imaginário - u s p , n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

que cresce e decresce no interior do mundo da physis — o que não se


reduz a mundo material da natureza, segundo os romanos, os quais opu-
nham o natural à história e ao divino).
Complemente-se com Kostas Axelos (1964):

Aos olhos dos gregos, os seres da physis manifestam-se, desvelam-se — mas


se revelam igualmente — em tanto que 'phenomenos' (aparições), fenômenos
que captam o artista, o qual, por sua vez, os capta e os nomeia, escreve-os e os
descreve. É apenas neste sentido que a arte grega 'imita' a natureza: ela apre-
senta aquilo que é, pois possui um fundamento ontológico... e a arte capta a
presença desta manifestação graças e pelas manifestações (e suas imanências).
Outro é o fundamento metafísico. (...).

Em períodos posteriores, da Renascença para frente, tivemos o divórcio


progressivamente ampliado entre saber e fazer, desdobrados ainda em teoria e
técnica — o que veio dar, época mais recente, nas abstrações letradas como
conceito e tecno-informação, com suas respectivas codificações.
Sublinhamos ainda que tais decorrências remontam à invenção da impren-
sa; invenção que precede de algumas décadas ao período dos descobrimentos,
das conquistas e colonizações do Novo Mundo, das invenções e do poder emer-
gente da cristandade e seus reinos. A Igreja foi o primeiro poder a sair plena-
mente do texto, ilustrando-o com figuras visuais ou "imagens" para impor seus
ditames de domínio e pregar sua lei junto aos gentios.

Retomemos as abordagens de Kostas Axelos, desta feita considerando a


figura heraclitina do "jogo do mundo", em tudo e por tudo similar à dança de
Shiva e ao maya indiano, como podemos alertar. Axelos assim o expõe:

Poesia e arte nos mostram o que não vemos, e o que não (se) vê até que seja
mostrado. (...) O homem moderno parece ser um ser do olhar, do Ver. Porém,
olha tudo sem ver, ou, vemos tudo sem olhar? O primado visual transforma
tudo em espetáculo digno de ser visto...

Nós apenas começamos a compreender o que significa a seguinte frase: a arte


plástica é que nos ensina a ver as coisas do mundo.

O primado da perspectiva, da terceira dimensão, do ponto de vista e da vista


(da olhada) é, ao mesmo tempo e simultaneamente, o primado da imaginação
e da representação. As coisas tornam-se imagens das coisas (...) Toda presença
se transforma em representação. No abraço único que liga, relaciona e confun-
de olhar e olhado, à qual cabe o papel primordial?! (Axelos, 1969).
38l i m a , sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

A metáfora do jogo serve para designar a atividade do Demiurgo, encontran-


do-se disposta como tal desde a antigüidade grega e, incluso, em várias outras
mitologias. Relativo ao processo da criação e seu rapto, ou roubo do fogo, reenvia-
se ao caso do mito de Prometeu, o qual instaura e é iniciador da "primeira civiliza-
ção humana". Não se deve esquecer que "fazer fogo", além de ser um modelo e
matriz remota da sexualidade, não deixa de revelar igualmente uma iluminação.

Considerando que a obra artística "participa do mundo do sagrado", como vimos


mais acima nas palavras de Huizinga, reiteramos que a conexão do sacro e do íntimo
com a esfera do jogo ocorre em seu extremo ou no próprio excesso que o configura,
enquanto seu limite mesmo e sua transgressão, beirando a desordem. É a festa.
Georges Bataille, o principal enunciador contemporâneo da festa como trans-
gressão e rito de passagem do erótico, debruçando-se sobre "a vítima" enquanto
"objeto", ou seja, enquanto "coisa", nos diz:

A introdução do trabalho no mundo, pelo encadeamento racionável e desde o


início, substituiu à intimidade, à profundeza do desejo e aos seus livres
desencadeamentos; encadeamento este (do trabalho) onde a verdade do ins-
tante presente não mais importa, mas o que importa é o resultado ulterior das
operações. Ou produtos. O primeiro trabalho fundou o mundo das coisas, o
homem tornou-se por sua vez uma das coisas deste mundo, pelo menos duran-
te o tempo no qual trabalhava. É desta perda de direitos, desta desgraça, que o
homem de todos os tempos esforça-se para escapar. Em seus mitos estranhos,
nos seus ritos cruéis, o homem está desde o início à procura de uma intimidade
perdida. (...) O sentido desta profunda liberdade interior (arrancar-se da ordem
real, da pobreza das "coisas") é dado na destruição, cuja essência é de consu-
mir sem proveito aquilo que poderia permanecer no encadeamento das obras
úteis. O sacrifício destrói o que consagra (...) A oferenda consagrada não pode
ser devolvida à ordem real. Tal princípio abre a via ao desencadeamento, libera
a violência, reservando-lhe a região onde ela reina sem equivalentes.
O mundo íntimo opõe-se ao real como a desmesura à medida, a loucura à
razão, a embriaguez à lucidez. Não existe medida senão a do objeto, razão
senão na identidade do objeto consigo mesmo, lucidez senão a do conheci-
mento distinto dos objetos. O mundo do sujeito é a noite: essa noite movediça,
infinitamente suspeita que, no sono da razão, engendra monstros (Goya). Co-
loco desde o início que do sujeito livre mesmo a loucura passa uma idéia ame-
nizada. Eu posso, de imediato, em desordem, fazer da totalidade de bens de
que disponho uma consumação instantânea. Essa consumação inútil é o que
me agrada, tão logo suspensa a preocupação do dia seguinte. E, se eu consumo
assim sem medida, revelo a meus semelhantes o que sou intimamente: a con-
sumação é a via por onde se comunicam os seres separados. (...) O sacrifício é
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

o calor, onde se reencontra a intimidade daqueles que compõem o sistema das


obras comuns. A violência é o seu princípio, cujas obras a limitam no tempo e
no espaço; ela subordina-se à preocupação de unir e conservar a coisa comum
(...) a vítima é abandonada à violência.
A vítima é um excesso pego, tomado à massa da riqueza útil. Ela não pode ser
retirada senão para ser consumida sem proveito e, em conseqüência, destruída
para sempre. Ela é, desde que escolhida, a parte maldita (que é) prometida à
consumação violenta. (...) A vítima será a única, com efeito, a sair inteiramen-
te da ordem real, pois que é a única a ser levada até o extremo pelo movimento
da festa. (Bataille, 1949).

A noção de jogo em seus desenvolvimentos mais contemporâneos parece indi-


car que a arte teria "saído" do jogo. Considerando que "a origem lúdica da primeira
apreensão da realidade pelo pensamento não é estruturada talvez apenas na menta-
lidade infantil", o que, como observa Legrand, nos leva a considerar o jogo em sua
perspectiva mais aguda: "o jogo apresenta-se inversamente, ou se insinua inconsci-
entemente, na qualidade de reivindicação oposta ao trabalho". E, retomando a polê-
mica colocação de UÉrotisme de Bataille, fundamentada na descontinuidade das
relações e na transgressão da festa, essa instância do excesso, desbragada e ao limite
extremo do jogo, temos que : "no plano do erotismo, a festa é o mais das vezes o
momento da licença sexual; no plano propriamente religioso, a festa é em particular
o momento do sacrifício, que é o momento mesmo da transgressão (da proibição de
matar)" (Lima, 1976:78).

Já foi colocado por Gaston Bachelard, há longa data, diga-se (1939), que o
poeta destrói a simples linearidade do tempo encadeado, da continuidade do
tempo, "para construir um tempo complexo, para unir sobre este instante as
numerosas simultaneidades de um tempo que chamaremos de vertical — dis-
tinguindo-o assim do tempo comum que foge horizontalmente com a água de
rio, com o vento que passa".
Adiantamos mais, ainda a partir de Bachelard, que o instante da verticalidade
poética onde "o ato criador se inscreve bruscamente", essa descontinuidade do
instante em sua radicalização de absoluto, abre para uma nova realidade.
Sabemos que a arte transporta e nos fala desta nova realidade. Mas não o jogo.

Absoluto aqui que se articula propriamente com o esgar de Eros, com o erótico
e toda a de-formação, o dar forma que jorra da sua real transgressão. Poder-se-ia
avançar, de certo modo e quase sem hipóteses de erro, a afirmação de uma arte
fundada no erótico. Uma arte que dá passagem ao erótico (e a seu contexto sacral)
caracteriza praticamente toda a expressão desmedida do transgredir e do à margem
de parâmetros convencionais. Transbordo do excessivo que, categórico, configurou
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

sempre e de forma revolucionária a todas as obras identificadas com o Surrealismo.


Lembramos também, aqui, que collage continua sendo uma das expressões própri-
as desse Movimento extra-artístico, extra-literário e extra-religioso.
A arte que se articula na harmonia das formas baseia-se sobre o princípio
eficaz do contato da alma humana com as formas e transformações da matéria,
como precisa Kandinsky no seu Do Espiritual na Arte (1912): "princípio que
chamamos aqui de Princípio da Necessidade Interior".
Sublinhamos, também, que o mencionado princípio do contato da alma remete
diretamente aos princípios de analogias e sistemas analógicos, seja das
correspondances baudelairianas seja do pensamento primitivo, do mágico por defi-
nição. Princípio esse de que o jogo está isento.

As formas da arte não são gratuitas ou vazias, mas sim prenhes de signifi-
cado. E mais, são formafivas e embasam a organização da experiência humana,
nos lembra Emst Cassirer:

Como as demais formas simbólicas, a arte não é mera reprodução de uma


realidade dada, já pronta. É um dos caminhos que conduz à visão objetiva
das coisas e da vida. Não é imitação, mas descobrimento da realidade (...)
A linguagem escrita e a Ciência abreviam a realidade; a arte intensifica-a.
A linguagem e a Ciência dependem do mesmo processo de abstração. A
arte não admite esta espécie de simplificação e generalização dedutiva (da
Ciência). O artista é tanto um descobridor das formas naturais quanto o
cientista o é dos fatos ou leis naturais.
Leonardo da Vinci falou do escopo da pintura e da escultura com as pala-
vras saper vedere.

Comparando arte ao jogo da criança, Cassirer ressalta que:

a criança brinca com coisas e o artista com formas, linhas e desenhos,


ritmos e melodias. Quando a criança brinca ela apenas troca as coisas
reais ao seu redor por outras coisas possíveis. Nenhuma troca desta or-
dem caracteriza a genuína atividade artística: a exigência é muito mais
severa. Pois o artista dissolve a matéria bruta das coisas no crisol da ima-
ginação e o resultado desta faina é o descobrimento de um novo mundo
de formas plásticas, poéticas e musicais... O gozo da arte não se origina
de um processo de abrandamento ou relaxamento, mas da intensificação
de todas nossas energias.
A diversão que encontramos no jogo é exatamente o oposto da atitude que é
um pré-requisito necessário da contemplação estética e seu julgamento: a arte
exige a mais completa concentração. (...)
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

O próprio Schiller define a beleza como "forma viva". Para ele, a consciência
das formas vivas é o passo inicial e indispensável que leva à experiência da
liberdade. A contemplação, a reflexão estética, segundo Schiller, é a primeira
atitude de liberdade do homem em relação ao Universo. Precisamente esta
atitude de liberdade consciente e reflexiva falta ao jogo das crianças, assina-
lando a fronteira entre o jogo e a arte (Cassirer, 1982).

Muito antes de ser um termo apropriado pela escola do Estruturalismo,


bricolage era a denominação popular de coisas várias e heteróclitas, ajuntadas
indiscriminadamente. De certa forma, estes acúmulos de coisas ajuntadas seri-
am uma espécie de desdobramento tardio e vulgar dos Gabinetes dos séculos
XVI e XVII, com guardados raros, exóticos e científicos, enfim dos Curiosa ou
Gabinetes de Curiosidades e de Estampas dos viajantes coloniais.

Voltando ao senso de uma estrutura lúdica ou "jogo" por vezes implícito na


bricolage, podemos avançar toda uma polaridade entre jogo e arte, entre bricolage
e collage, entre restos ou usados com o novo "objeto".

O jogo, por sua singularidade de tempo fechado e regras fixas, mesmo quando
inclui o erradio e o aleatório, não preenche as necessidades de uma interpretação da
realidade como a arte o faz, por meio das formas sensoriais ou das intuições.

Porém, todos esses procedimentos, quer assemblage e collage ou quer a


bricolage, decorrem de uma operação que no plano material, da própria
operacionalidade sobre uma matéria, implica a mecânica usual da colagem —
ou seja, tais procedimentos implicam inicialmente aproximar, justapor, anexar e
grudar, ou colar uma coisa em outra.

O Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1975), de Aurélio Buarque de Holanda


Ferreira, não traz o termo bricolage mas sim o já incorporado "bricabraque": "conjun-
to de diversos e velhos objetos de arte ou artesanato, antigüidades, móveis, vestuários,
bijuterias etc". Ainda nessa sua primeira edição traz colagem apenas como "ato de
colar", e ignora os demais termos especializados que listei acima. Entretanto estes
termos já se faziam presentes em revistas e no espaço reservado às artes na imprensa,
por vezes apresentando imprecisões.

Em vista do que seguem-se algumas oportunas e devidas definições para


subsidiar melhor o presente texto. Senão vejamos:

Assemblage - Expressão que designa volume de material diverso, trabalha-


do em técnica mista. Termo oficializado em 1961 por William C. Seitz, em
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

publicação do MOMA / Museum of Modem Art of New York, quando num


trabalho de prospecção histórica deparou-se com as diferenças entre colagens
gráficas e collages (gráficas e com objetos diversos), ou entre colagens no pla-
no e processos acumulativos tridimensionais, os quais podem tanto indicar re-
petições quanto introduções do aleatório e do acaso. Com art of assemblage
Seitz manteve a dicção francesa dos demais termos da área plástica. E, ao pre-
ferir assemblage no lugar de bricolage, Seitz privilegia, literalmente, o senso
genérico de "ajuntar/assembler", somado ao fato de que bricolage já havia se
firmado em ponto de partida do Estruturalismo há quase duas décadas.

Bricolage - Expressão do âmbito popular que inicialmente indicava o ajun-


tar coisas disparatadas dos clochards, em suas deambulações, passeios erradios
e aleatórios pela cidade. Não raro indicava igualmente o insólito e o pouco
usual dos bric-à-brac.

Mais tarde, por volta da n Grande Guerra, Claude Lévi-Strauss ligou o senso
de bricolage à noção de um "pensamento selvagem", fundando uma nova pers-
pectiva do conhecimento e da análise científica que fez fortuna: o Estruturalismo.

Colagem - Chama-se colagem o ato de colar um material qualquer em ou-


tro. No caso das artes plásticas, colagem é uma técnica mista. Colagem indica
material aplicado num plano por meio de cola, colado e grudado, ou justaposto.
Termo esse que se generaliza para toda e qualquer superfície formada por justa-
posições, superposições ou outro processo acumulativo no plano. A noção de
grudar e justapor da colagem está na base de outros processos, além de ser
ponto comum às atividades que implicam fixar material gráfico ou impresso
com objetos, como collage, assemblage e bricolage. Nota-se na colagem, em
geral e pelo seu senso de arranjo narrativo, que o reenvio é aquele do mosaico
enquanto modelo primeiro: os fragmentos formando um todo e obedecendo a
conhecidos parâmetros plásticos, da pintura por exemplo.
A ênfase da colagem reporta-se ao tratamento do material, ao plano diga-
mos matérico e não à linguagem.

Collage - Emst cunhou o termo collage com a finalidade de distingüir a


operação de linguagem simbólica, a sua poesia no caso, das meras colagens no
nível de apenas grudar materiais. Enquanto colagem serve para todas as aplica-
ções e materiais grudados, o mesmo não se poderia dizer da collage, expressão
introduzida por Max Emst em 1919.
Na collage trata-se de uma nova sintaxe que rompe com os modelos pré-
existentes (incluso o do mosaico), abrindo para o maravilhoso e o re-encantamen-
to do mundo. Portanto a collage não tem como modelo um mundo pré-existente.
38 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

nem um todo perfeito e acabado. O próprio Emst já lembrava que "não é a cola
que faz a colagem". André Breton, quando apresentou a primeira exposição de
Emst em Paris (maio de 1920), também sublinhou que as colagens cubistas eram
outra coisa: "os papéis colados dos cubistas respondiam a uma necessidade esté-
tica e resultavam, assim, numa solução estética, ao passo que as collages surrealistas
nasceram de uma outra necessidade, a de se rebelar contra a exterior distribuição
(somente utilitária) dos objetos".
As duas ressalvas acima fizeram época e estão citadas em extenso no
livro de Ernst, Beyond Painting (1948). Dentre muitas outras ocasiões em
que já foram citadas, destacamos que também estão presentes no The Imagery
of Surrealism, de J. H. Matthews (1977), o qual acrescenta outra pertinente
colocação, já citada por nós em Collage (Lima, 1984) e que reiteramos:

A collage, linguagem própria do Surrealismo, representa nitidamente uma rever-


são necessária dos modos de percepção, o que é o princípio da verdadeira visão.

Uma nova sintaxefigurativaapresentava-se com a descoberta das collages. Suas


primeiras amostras foram "acolhidas como uma revelação" pelos surrealistas, obser-
vou Breton em seu livro de entrevistas sobre o Movimento, Entretiens, de 1952.

Com a explosão da collage projetando dados do inconsciente e revelando um


universo mental ocultado ou inédito, o pintor não é mais que um poeta, diria
Breton, "forçado a ter a inteligência de suas visões", conforme citação de Marguerite
Bonnet (André Breton et Ia Naissance de 1'Aventure Surréaliste, 1975).

Mais de um estudioso da collage já manifestou que seu processo é absolu-


tamente análogo àquele da imagem poética. E sua força decorre assim, direta-
mente, da elaboração plástica e imediata da imagem moderna.
Vínculo explícito, conforme já o fora enunciado pelos poetas e, particular-
mente de modo maravilhoso, nas páginas maldororianas de Lautréamont: "por
meio do acoplamento de duas realidades em aparência não acopláveis, num plano
que aparentemente não lhes convém", segundo Carlos Sala (Les Collages de Max
Ernst et Ia mise en question des apparence, 1968).
Imagem que igualmente já surgia sob forma de "objetos insólitos" em certos
artistas, como Rousseau e De Chirico, ou antes em D. G. Rossetti ou E. Klinger.

Desejamos frisar que o que se chamou mais tarde de objeto já se fazia presen-
te em diversas instâncias, das artes ou outras, sobretudo aquelas não delimitadas
por função ou pelos utilitários. Por exemplo, o "sofá vermelho" pintado por
Rousseau no meio da floresta, com o título Le Rêve. Inclusive enquanto presença
insóhta, o objeto apresentava-se, pois não mais dimensionável (até os anos 10) em
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

termos de escultura, de elemento construtivo. Ainda não fora reduzido tampouco


a elemento da construção de espaço e ambiente(s), como nas montagens que ante-
cediam e já anunciavam a bem posterior conceituação de "instalação".

No entanto, o assim definido objeto é um contexto específico e novo nas


artes, não devendo ser confundido com escultura ou com o modelado que funda
o escultórico. Considerando-se que uma boa parte de objetos não-usuais já tive-
ra sua entrada triunfal nos meios literários modernos (basta citar, por exemplo,
os "objetos" apresentados por Jules Verne, Alfred Jarry e Raymond Roussel)
sua presença, contudo, terá foros de aceitação nas artes só bem mais tarde.
A concepção do objeto remonta às rupturas de Boccioni (1910/1911), as-
sim como as de Baila, Picabia e Duchamp (1913), sendo proposto como catego-
ria artística apenas na década seguinte.
A partir da contribuição singular de autores do movimento surrealista
como Arp, De Chirico, Ernst, Giacometti, Tanguy, Man Ray e Miro, além do
próprio André Breton (com seus poemas-objeto), teremos o surgimento do
objeto nas obras tridimensionais, ampliando consideravelmente o espaço an-
tes reservado à escultura, aos baixos-relevos ou às artes aplicadas, com seus
artesanatos e utilitários.
Objeto que, surgindo enquanto tal circa 1926/27, só iria se afirmar em nova
categoria artística a partir dos meados da década de 30.

Vale insistir que toda a reflexão de André Breton sobre a questão do objeto,
alinhavada em passagens de Nadja e dos Vases Communicants, alimentava-se e
se apoiava de forma incisiva nas questões abertas pela collage e sua radical
intervenção na linguagem plástica convencional nitidamente.

Os autores que citamos foram impressionados pela nova poética do urbano,


provocada por um repertório que inclui precisamente o objeto. Impressiona-
ram-se pelas formas selvagens dos "novos primitivos" da modernidade, como
Gaudí, pelas acumulações na "arte dos alienados", muito difundidas a partir de
meado dos anos 20, a partir dos estudos esclarecedores sobre casos clínicos de
Morgenthaler e Prinzhom. (Entre tais casos poder-se-ia incluir o de Edward
Munch.) Ou mesmo pela "personificação" adquirida por objetos usuais sob a
luz do cinema, ou ainda pelos achados do Palácio Ideal do naifcdiiiúxo Cheval.

Mais recentemente, na década de 30, tivemos os aportes da Antropologia quan-


to à incorporação da mecânica da bricolage propriamente dita, esse tipo de percep-
ção que viria definir o caráter selvagem, o pluralismo do pensamento primitivo e
que originará o posterior Estruturalismo — escola desenvolvida a partir de meados
dos anos 40 ou do pós-II Guerra Mundial. Entretanto, não custa lembrar que a
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

brícolage articula-se inicialmente com o conhecimento via magia, ou seja, via "Ia
pensée sauvage". A irrupção desbragada do objeto já fora convocada por alguns
nomes dos mais significativos das artes e da poesia, como dentre os simbolistas um
Baudelaire ou um Gauguin. Só posteriormente é que o Estruturalismo, enquanto
Ciência social, propiciou-lhe estatus de modelo e método científico.
Vemos assim que a questão do objeto nas artes plásticas surge em estreita
sintonia com a questão da justaposição e da acumulação de materiais, da colagem
e dos papiers collés, do início do séc. XX. E, mais tarde, a partir dos anos 20, com
a collage iniciada por Max Emst (1919). Destacamos que a acumulação aleatória
de material usado por parte dos doentes mentais, uma das fontes do dito "objeto",
terá maior difusão junto ao público só na segunda metade da década de 20, a partir
dos eventos de "arte dos alienados", mais divulgados e discutidos fora do âmbito
clínico. Também posterior, de 1945 em diante, ocorrerá a denominação de "arte
bruta" para as acumulações primitivas ou aquelas dos alienados.
Rupturas essas que acabamos de citar, já famosas e bem conhecidas, que
decorrem de uma perversão do uso da máscara (explorada por Brancusi, Picasso
entre outros), objeto de ocultação que sempre foi e permanece sendo instrumen-
to de transformação, isto é, um elemento altamente significativo (e bem mais
que utilitário) da operação mágica. Elemento do processo de transformação das
coisas, de seus sentidos, seus usos e fins em outros contextos, em simultaneida-
des e escolhas distintas de uma função usual. Elemento plural como seu ímpeto,
seu impulso primeiro estando direcionado para "outras dádivas".

Voltando ao caráter mágico, singular e não-usual, não-funcional da obra de


arte, queremos frisar que o objeto retém tal especificidade e declina contudo
qualquer senso de produção ou reprodução sistemática. Nas artes (e na magia) o
objeto deixa de responder à produção impessoal, à formal sistematização do
mercado, ou à industrialização de seus fins. O objeto nas artes não é objeto
funcional ou o utilitário tout court, pois ele transporta e traz em si mais do que
uma única função, uma única prática. Aquilo que excede ao funcional é expres-
samente sua arte, seu modo ÚQ fazer ver o mundo das coisas de modo diferente,
de uma forma provocantemente nova. Citemos o conhecido axioma do filósofo
inglês Herbert Spencer: "O útil, quando deixa de ser útil, passa a ser belo".
Do mesmo modo que já se externou que a fotografia é o registro de um instante
e a memória de uma ausência, podemos dizer que, por sua vez e a seu modo, o objeto
é a memória de um fazer, e seu o corpo, a dinâmica despertada da sua forma, da
forma desejada que o significa.

As primeiras operações de Mareei Duchamp, visando deslocar o objeto usual


de seu contexto quotidiano, começavam por eliminar seu caráter funcional ou de
uso prático. A partir pois de um seqüestro do objeto de uso (definido até então
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

por seu uso, sua funcionalidade), abriam para o insólito, o estranhamento do


não-uso e do não-habitual.
Note-se que Duchamp não pretendia apresentar seus objetos-já-feitos, os
ready-mades, enquanto obras de arte e muito menos cuidar de sua
reprodutibilidade, fosse produção sistemática ou mesmo "industrialização" no
sentido do mercado da arte. Com seus escritos e anotações, por mais de uma vez
Duchamp frisou, deixando bem claro, que a idéia que presidiu a tais achados foi
simplesmente interferir na cadeia recorrente ou no continuam dos objetos utih-
tários, reduzidos que estavam à banalidade, ao senso unilateral do uso e à perda
do sentido de suas formas.

Fazendo um paralelo com condições básicas da linguagem empregada na


poesia, o artista Jean Louis Bédouin observa:

Como a linguagem verbal, a linguagem dos objetos é polissêmica. A utilidade


prática de um objeto ou coisa não esgota o seu sentido. Se podemos admitir que
existem formas permanentemente funcionais, não há, em contrapartida, qualquer
produto da atividade humana que não seja suscetível de responder afinsdiferentes
daqueles a que era destinado (por utilidade, por seu objetivo usual). Toda e qual
quer coisa contém segredos, outros que seu aspecto ou função oufinalidadepré
determinados, e só a nós cabe os descobrir... Não existe nada que seja inanimado
Quando muito, poderíamos dizer: existem objetos imóveis, ou mais exatamente
objetos imobilizados, do mesmo modo que diríamos do movimento que é imobili
zado pelo instantâneo fotográfico...

Não é suficiente a simples destruição de um objeto, para que ele se torne poé-
tico, pois a verdadeira dissolução do objeto assemelha-se a uma operação
alquímica ... podemos dizer de todo 'resto' que seu estado é vil ou que está
'morto' apenas na aparência; trata-se portanto de fazer, a partir disso, dessa
matéria 'usada', com que apareça, surja uma nova visão marcada pelo selo da
poesia (Bounoure et al., 1976).

O sentido das formas, justamente, é que dá significado às coisas e não o inverso,


como se costuma propagar em geral... As artes, como já observaram certos filósofos,
são sempre uma intensificação, uma ampliação e nunca uma redução das coisas. Além
do que a contemplação inerente à experiência estética é precisamente o contrário do
aspecto linear, unidimensional de utilidade. O objeto, enquanto arte, é o que excede ao
objeto útil. Dito de outro modo, a nova categoria de objeto traz para as artes uma
ampliação do escultórico e das formas no espaço, ao mesmo tempo que joga o senso
de uso para um outro plano, que não o da funcionalidade ou de sua estrita articulação
secundária, na escala de operações do dia-a-dia ou do quotidiano e suas funções regidas
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

pelo hábito. Os fundamentos do acaso que regem a collage também se apresentam na


bricolage e por extensão no objeto. Porém na bricolage não há "tensão para" e nem
existe a intencionalidade, inerente à expressão da arte. O novo objeto passaria a incor-
porar faces pouco exploradas até então, como aspectos de operação mágica, do acaso
e do aleatório, do sensível e do fascinante. Passa a incluir uma contemplação e uma
animação da forma em sua relação primeira com o outro. Sua gestação não é mais
apenas construtiva e nem se destina ao estritamente íuncional. Objeto que se afirma,
pois, em antinomia à emergente comunicação de massa e em pleno meio da mecani-
zação. Além do que, readquirindo o caráter de coisa única e sem reprodutibilidade, é
praticamente o oposto da máquina.

Outra consideração que devemos ter em conta é a convocação veemente


de Vratislav Effenberger (1976), para que se modifique o status do objeto de
uso, como segue:

Salvar o objeto de seu estatuto atual, do seu status, ou seja, restituir-lhe seu
sentido, seu significado essencial, consiste em o re-situar, para começar, em
seu verdadeiro lugar: sobre a linha da fronteira permeável e mutável, na fron-
teira móvel e 'cambiante' onde se avizinham subjefividade e objeUvidade (...)
Os atuais sistemas de comunicação só poderiam ser manfidos como váHdos,
caso consentíssemos em negligenciar o jogo cruzado, de modo constantemen-
te variável, das funções do consciente e dos poderes do inconsciente.

O jogo cruzado e constantemente variável entre as formas sensíveis, essas


constelações que formam o corpo do ser amado, fazem das collages uma espé-
cie de transbordo de eros ou uma "arte da descontinuidade".

Resumo: Retomando as diversas noções de arte e de jogo, suas pro-


ximidades e diferenças, configura-se o terreno em que se apresentou
inicialmente o juntar coisas da bricolage, e, depois, o sentido da
arte enquanto atuação e expressão de um saber/fazer no seu limite,
no seu extremo possível de excesso e transgressão. Arte que veio a
instaurar uma nova concepção expressiva com a collage e seu prin-
cípio de descontinuidade, ou de ruptura advinda da imagem moder-
na na poesia. E, também, arte que veio abrir para uma nova catego-
ria do tridimensional, o objeto, advindo esse, por sua vez, não das
esculturas ou dos utilitários, mas das acumulações e guardados
heteróclitos dos primitivos e dos "doentes mentais Tanto a collage
quanto o objeto, em particular ou dispostos num mesmo trabalho,
em separado ou em conjunto simultâneo, apresentam uma
38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

descontinuidade patente diante do discurso oficial que congrega as


artes plásticas e as propõe enquanto algo útil O jogo de juntar coi-
sas e a arte da descontinuidade, ou o caminho possível

Palavras-chave: arte, bricolage, collage, objeto, eros, transgressão.


Abstract: The article deals with the various notions ofart and games,
theirneamess and diferences thatallowed to build the domain o/biicolage
and afier that, the meaning ofart as act and expression ofa savoir-faire.

Keywords: art, bricolage, collage, object, eros, transgression.

notas

^ Destaquemos as passagens abaixo, em tradução livre, que correspondem às páginas 53 e 54:


"Um segundo erro seria ignorar a parte considerável de acaso nas ocorrências primi-
tivas, ou até imaginar um programa primitiviste por parte dos surrealistas. O interes-
se de Breton não ocorreu a partir da construção metódica, meticulosa, estabelecida
por meio de uma aplicação estudada das lições do modelo arcaico. Seu interesse
apresenta-se como resultado de golpes inesperados, de revelações sucessivas ou si-
multâneas, de encantamentos, de descobrimentos menos determinados que, de re-
pente, tornados possíveis, constituem-se nos frutos de acontecimentos aleatórios
(como podemos constatar ao longo de suas viagens ou no exílio norte-americano).
Nesse campo, e bem mais aí que noutra parte (onde a diversidade das referências
evocam, exatamente, le bric-à-brac. Ia brocante...), temos que levar em conta aquilo
que Jean Schuster chamou de désordre surréaliste.
Profusão e desordem: é precisamente o que caracteriza as muitas instâncias de refe-
rências (dos surrealistas) às culturas primitivas. Caso acrescentássemos um caráter
de análise, teríamos sem esforço o aparecimento de um tipo de atitude na qual o
escritor observa, après coup, certas semelhanças e certas convergências. O primitivismo
faz-se presente, porém sempre aposteríori, sem que ocorra qualquer imitação. (...) O mes-
mo valeu para a escritura automática, primeiro colocada em prática e depois, somente
depois, aproximada do transe do xamãn. Em maio de 1919, nas primeiras Unhas dos Champs
Magnétíques não encontramos débitos do primitivismo. Muito embora isso passará a ocor-
rer sistematicamente em todos os principais textos representativos do Movimento, a partir
do instante que Breton percebe (e se encanta) com essa identidade e suas proximidades.
Um outro tipo de inter-relacionamentos entre os surrealistas e as instâncias primitivas
concerne aos casos de afinidades previsíveis, sublinhadas a posteríori como sempre, e
assim expostas: é o caso de exposições com amostragem estabelecendo paralelos, como as
que associam indistintamente obras de Tanguy, Max Ernst e os objets d'art sauvage —
3 8 lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 26-45, 2000

exposições nas quais os espectadores são convidados a formularem, por si própios, as rela-
ções e aproximações ali presentes."
Seria oportuno lembrar que nas culturas primitivas os objetos de uso não se apresen-
tam divorciados do sacral, impregnados que estão de suas cargas de rituais e acrésci-
mos simbólicos, ou seja de convergências mágicas palpáveis e explícitas. Basta citar a
proposta do Surrealismo, por uma "arte mágica", que permite e dá passagem a toda
uma concepção do fazer plástico, apoiada alquimicamente na operação sobre uma
matéria para situar de vez a questão.
^ Ver capítulo inteiro dedicada ao famoso ensaio de 1954, publicado por Francês A.
Yates, Art of Memory.

referências bibliográficas

AXELOS, K. Vers Ia Pensée Planétaire. Paris: Éditions de Minuit, 1964.

AXELOS, K. Le Jeu du Monde. Paris: Éditions de Minuit, 1969.

BACHELARD, G. IM Métaphysique et Ia Poésie. Messages, Paris, 1939.

BATAILLE, G. La PartMaudit. Paris: Éditions de Minuit, 1949.

BLACHÈRE, J.-C. Les Totems d'André Breton. Surréalisme et primitivisme


littéraire. Paris: UHarmattan, 1996.

BONNET, M. André Breton et Ia Naissance de 1'Aventure Surréaliste. Paris:


JoséCorti, 1975.

BOUNOURE, V. et al. Cycle de TObjet. In: La Civilisation Surréaliste. Paris:


Payot, 1976

mEYO^,k.Entretiens{\9\?>A952\avecAndréParinaud.Vm^ Gallimard, 1952.

CASSIRER, E. Antropologia Filosófica. Trad. V. Felix de Queiroz. São Paulo:


Mestre Jou, 1972.

EFFENBERGER, V. Le Surréalisme est ce qui sera. In: La Civilisation


Surréaliste. Paris: Payot, 1976.

ERNST, M. Beyond Painting. Nova York: Wittenbron & Schults, 1948.


38lima, sérgio. Imaginário - usp, n= 6, pág. 2 6 - 4 5 , 2000

FERREIRA, A. BUARQUE DE HOLANDA. Novo Dicionário da Língua Por-


tuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1971.

KANDINSKY, W. Uberdas Geistige in der Kunst, Munique: R Piper, 1912 (re-


edição fac-similar).

LEGRAND, G. Dicionário de Filosofia. Trad. Armindo José Rodriguez e João


Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.

LIMA, S. O Corpo Significa. São Paulo: Edart, 1976.


. Collage... uma nova superfície. São Paulo: Editora Parma/Raul de
Pace, 1984.

. A Aventura Surrealista. São Paulo/Campinas: Edusp, Editora da


Unicamp e Vozes, 1995.

MATTHEWS, J. H. The Imagery of Surrealism. Nova York: Syracuse University


Press, 1977.

SALA, C. Les Collages de Max Ernst et Ia mise en question des apparences.


Europe, Paris, n.475/476, 1968.

SEITZ, W. C. ArtofAssemblage. Nova York: The Museum of Modem Art, 1961.


46 kaplan, leslie. Imaginário - USP, n= 6, pág. 46-49, 2000

leslie kaplan*

J'ai pensé qu'il serait intéressant de s'arrêter sur ce titre, le lien social. Je
veux dire: ne pas gommer le paradoxe. II peut en eífet sembler paradoxal qu'à des
écrivains on demande d'intervenir dans ce sens. Je ne parle pas bien súr des préjugés,
ou de Ia vision romantique, Técnvain comme individualiste, etc. Ni de Toeuvre
même, qui a évidemment sa place dans Ia société et le monde, comme lien, comme
rupture de lien, et création de nouvellles formes de liens. Mais le travail d'écriture
est un travail solitaire, alors en quoi ce travail peut-il être sollicité par rapport à Ia
question du lien social? Comment penser Texpérience de Técnvain en ce qu'elle
aurait quelque chose à voir avec le lien social? Partager, transmettre quoi? D'autre
part, s'il s'agit de tisser ou de renouer des liens au sein de Ia population, qu'est-ce
à dire sinon que Ton constate à quel point ce tissu est défait, détruit.
Hannah Arendt, dans Les origines du totalitarisme: "Ce qui, dans le
monde non totalitaire, prépare les hommes à Ia domination totalitaire,

* Artigo republicado devido a erros ortográficos em sua primeira publicação na Revista


Imaginário n° 5, 1999.
**Leslie Kaplan é escritora de hngua francesa que acaba de publicar seu 10° livro: Le Psychandiste
(P.O.L., Sept. 1999) a ser lançado no Brasil. Militante de movimentos de 1968 na França foi
"deslocada" para trabalhar como operária em fábricas, experiência que deu origem a UEx^ces-
LUsine (1982), Le Livre des Cieis (1983) e Depuis Maintenant (1996).
47 kaplan, leslie. Imaginário - USP, n= 6, pág. 46-49, 2000

c'est le fait que Ia désolation qui jadis constituait une expérience limite,
subie dans certaines conditions sociales marginales, telles que Ia
vieillesse, est devenue rexpérience quotidienne de masses toujours
croissante de notre siècle".
La désolation, d'après Arendt, le terme anglais est lonelinesss, c'est
risolement. Ia solitude non pas choisie mais subie. II me semble qu'on
peut développer: c'est Taccablement devant Ia lourdeur du monde,
rimpression d'être dépassé par le monde, d'être complètement incapable
de lui faire face. C e s t le malheur, le sentiment d'avoir été abandonné,
petit et abandonné, sentiment tellement fort qu'il peut engendrer Ia perte
des repères. Ia perte de Tidentité, et finalement Taliénation totale, avec Ia
capture par des idéologies de ressentiment. Pour Arendt c'est ce qu'elle
analyse comme Ia société industrielle de masse qui produit Ia désolation,
personnellement je suis d'accord avec elle. Mais ici n'est pas le lieu de Ia
recherche des causes, mais du constat, et de se demander: et alors, quoi, et
quoi de Técrivain par rapport à cette situation.
Les situations sont les plus variées, tous les lieux du monde actuel, ville,
hôpital, prison, maison de retraite, écoles ...
Or, ce qu'il faut remarquer: chaque fois que le lien social est attaqué, c'est
le lien avec le langage qui est aussi attaqué. Dans Ia désolation, ce qui est atteint,
c'est aussi le langage, le lien fondamental humain du langage. Ia confiance dans
les mots, dans Ia parole de Tautre. La parole de Tautre, de n'importe quel autre,
est mise en cause, mise en doute, on n'y croit plus, quel intérêt, c'est pas Ia
peine, à quoi servent les mots, c'est du baratin, du bla bla bla. On laisse tomber,
comme on a été laissé tombé.
D'oíi une violence en miroir à Ia violence qui a été faite, d'oú Tadhésion à
n'importe quoi, religion, superstition, délire politique, drogue...
Je pense donc que pour que le tissu social soit reconstruit, il faut aussi prendre
en considération Ia question du langage.
Ce qui ne veut évidemment pas dire que c'est Ia seule dimension impliquée.
Le réel excéde toujours les mots.
II suffit de penser un instant par exemple à une maison d'arrêt, oú les détenus
sont huit dans une cellule, cellule oú il y a par ailleurs les sanitaires,
ou à un collége de banlieue oú les élèves sont parqués, trop nombreux,
presque réduits à Tanonymat, des enfants presque anonymes, ou à une maison
de retraite qui à quatre de Taprès-midi sent déjà, ou encore, le poisson...
Désolation soft, désolation quand même.
Le réel excède les mots, mais c'est dialectique, s'il n'y a pas confiance dans
les mots, rien ne peut se faire de durable, aucun changement important, qui tienne.
Un lien social, humain, passe par un rapport au langage oú le langage
vit, peut vivre, dans ses deux dimensions fondamentales: comme parole
48 kaplan, leslie. Imaginário - USP, n= 6, pág. 46-49, 2000

adressée, lieu d'accueil pour Tautre, et comme matière polysémique, moyen


d'expérimentation et de jeu avec le monde et les autres.
Le langage permet le je, le sujet, parce qu'il permet le jeu avec le monde,
les autres. Mais cela est possible seulement si le monde, les autres, ont déjà
permis ce rapport-là au langage.
La confiance dans le langage, dans Ia parole adressée, avec ce qu'elle
comporte de promesse, que chacun sente qu'il existe pour Tautre, et,
Taffirmation, qu'elle soit formulée ou non, du caractère polysémique du
langage, de sa dimension fondamentale de jeu et d'expérimentation, c'est Ia
moindre des choses pour un écrivain, parce que c'est ce qui le constitue
comme écrivain.
Pour moi il est évident que les écrivains qui s'intéressent au lien social
peuvent trouver un sens dans des expériences de terrain souvent éprouvantes
parce que ces expériences sont aussi Ia réaffirmation de ce qui fonde leur travail
à eux, écrivains.
Conséquences: ce n'est pas sur tel ou tel artiste-écrivain que se porte le
transfert, le désir de travail, mais sur Ia fonction écrivain.
Donc ce n'est pas comme un écrivain particulier porteur d'une oeuvre
particulière que Ton intervient
mais comme "1 écrivain", transmetteur de Ia fonction même du langage.
Modestie si on veut mais surtout responsabilité par rapport à cette
transmission là.
Cela ne veut nullement dire que Técrivain qui fait des rencontres, des ateliers
d'ecriture, etc, ne doit pas parler de son oeuvre, au contraire.
Mais en tant que son oeuvre, ou 1'oeuvre de ses contemporains, ou de
ses écrivains préférés, etc, sont des moyen de passer ces qualités
fondamentales du langage.
II s'agit d'inventer par rapport à ce qui est au coeur de Ia demande,
même si ce n'est pas formulé: le langage comme construction du sujet
dans son rapport au monde, remise en circulation de ce qui est isolé, figé
dans Ia désolaüon.
Orienter le travail en ce sens.
Pas tant aider les gens à "s'exprimer", ce que pour le moment ici et
maintenant en France ils peuvent faire à peu près, mais à PENSER, avec les
mots, là oú ils sont, leur rapport au monde, aux autres.
Mettre en relation, faire des rapprochements, des ponts, des liens.
Et penser c'est aussi jouer, mettre de Ia légèreté là oú il y a de Ia lourdeur,
de rinertie ...
C e s t quitter Ia solitude inhumaine. Ia désolation, pour tenter
d'instaurer un bon rapport à Ia solitude, c'est-à-dire un bon rapport à soi-
même et autres.
49 kaplan, leslie. Imaginário - USP, n= 6, pág. 46-49, 2000

Resumo: Neste artigo a autora coloca a questão de como o traba-


lho do escritor, que é um trabalho solitário, liga-se à sociedade.
Para ela, é a partir da linguagem, pois é com esta que se pode sair
da solidão humana.

Palavras-chave: linguagem, escritor, ligação social

Abstract: In this paper the author analyses how a writer work can
be tied to social problems. She emphasizes the role oflanguage to be
freedfrom human solitude.

Keywords: language, writer, social


50 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

â. escrita da nerória
elisabeth ceita vera cruz*

1. enquadramento geral

Uma das características da literatura oral é o anonimato ou a anonimidade.


Independentemente da(s) geografia(s), a característica de ser criação colectiva ga-
rante esta anonimidade — isto é verificável através da similitude e pode mesmo
dizer-se do parentesco de muitos dos provérbios, independentemente da sua origem
— apesar de começar por ter um autor (Guerreiro, 1982). Este autor que começa por
ter—sabemo-lo intuitivamente—cedo se anonimiza através da apropriação colectiva
do elemento novo, do que pode também ser chamado "criação". Uma apropriação
por parte das gentes por um lado, por outro por causa desta característica que lhe é
intrínseca e que é o seu carácter eminentemente popular em que a oralidade tem
lugar cimeiro, sendo ou tomando-se por isso ele próprio anônimo'. Estamos assim
perante dois momentos que se plasmam num único, e que o definem, resultando
num taerceiro. Este momento último — fusão dos dois anteriores — é como o ciclo

Docente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa, Portu-


gal. Texto revisto e ampliado, pois uma parte dele foi apresentada no Colóquio da
APELA em Setembro de 1997 em Rénnes (França).
51 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

da vida. Dialecticamente, o anônimo não vive senão como e enquanto anonimato, e


este como o anterior. É neste entrecruzar que se situa a anonimidade, na medida em
que como movimento que é e que se estabelece, só existe porque e enquanto anônimo.
Esta característica geral é no entanto também de cada um, acabando toda a comuni-
dade por ser produtora e simultaneamente criadora. Esta criação (quase) demiúrgica
traduz bem o papel da oralidade em sociedades onde a escrita pouco ou nenhum
impacto tem: socializador numa perspectiva absolutamente abrangente no que tem
de integrador, educativo, formador e lúdico.
Um exemplo que ilustra o que se pretende dizer e demonstrar — exemplo
este que deve ser entendido com as devidas salvaguardas, pois trata-se do que
pode chamar-se manifestações artísticas populares, no presente caso urbanas
— encontramo-lo na permanente (re)criação das danças em Angola, mais
exactamente em Luanda. De um momento para o outro, como se de um passe
de mágica se tratasse, surgiu a dança do cú-duro, entremeada pela do gato
preto e pela dança do jindungó^, Este fenômeno muito peculiar em Angola —
entenda-se em Luanda, espaço por excelência de culturas e linguajares múlti-
plos, onde a língua portuguesa funcionando como língua oficial, de unidade e
de comunicação tem uma riqueza também ela plural, pois encontra-se reche-
ada de línguas outras de Angola, bem como de um acentuado aroma da gíria
em permanente pulsar — que é o da criação e criatividade popular urbana(s),
encontra-se não só na dança, tal como já foi referido, mas também na música.
Associação dir-se-ia natural, por ser necessário haver uma conformidade das
músicas com as danças. Precisar o exacto momento em que a moda começa
não é muito difícil. Mas quanto ao saber-se quem começou e onde, é bastante
mais complicado pois que a sua propagação é quase instantânea. Sendo pro-
vável que este fenômeno tenha o seu despoletar nos bairros limítrofes de Lu-
anda, nos chamados muceques, é no entanto interessante apreciar a rapidez
com que cedo ganha foro de música nacional. Porque é precisamente o encon-
tro da música e da dança que vai permitir igualmente o dos diferentes grupos
sociais. Este é o núcleo da anonimidade e também o da coesão, pois é neste
feliz encontro onde é possível esbaterem-se as agruras e as cisões entre os
vários grupos sociais, e a unidade nacional ganha corpo.
Este foi tão somente um "parêntesis", para já de seguida regressarmos ao
ponto de partida.
Uma criação colectiva como é a literatura oral estabelece os contornos da
sua popularidade. E o que é popular cedo adquire estatuto de cidadania, se por
popular entender-se como cultura popular, cultura do povo. Não o popular versus
erudito, mas popular na acepção de cultura popular, cultura necessária. É uma
criação colectiva como é a literatura oral, é na sua natureza intemporal. Não que
a mesma não se recrie — bem pelo contrário, e parafraseando Viegas Guerreiro,
nem sempre para melhor (Guerreiro, 1982: 5) — , mas a sua estrutura, a sua
52 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

essência, esta mantém-se. Ela (a literatura oral) é moldável, adaptável e ao mes-


mo tempo intemporal, no sentido de (quase) nunca datável. Esta intemporalidade
aliada à anonimidade é que fazem (para lá das outras características) com que se
lhe chame sabedoria popular.

2. tradição popular, memória e identidade -


provérbios e adivinhas do sudoeste de angola

O padre Carlos Estermann, missionário e etnólogo com uma vasta obra


publicada sobre etnografia angolana, no seu livro sobre os Bantos do sudoeste de
Angola (Estermann, 1983), refere quatro grupos principais (Ambo, Humbi,
Nhaneca e Herero)^ a que corresponde o bloco lingüístico Mbundu-Mbangla-
Amboherero, grupo este que é o objecto da nossa análise.
De entre os gêneros literários citados pelo Padre Estermann (1983) — o
conto, os poemetos e cantos, as adivinhas e provérbios"^ — será este último
aquele sobre o qual nos vamos debruçar. Apesar dos comentário paternalistas
do autor que se inscrevem no quadro ideológico e civilizacional da época, a que
não ê alheio o próprio trabalho etnológico empreendido^ obviamente que o
mesmo não deixa de ser válido, e ê segundo esta perspectiva que vamos passar
uma (pequena) amostra dos provérbios e adivinhas dos Bantos do sudoeste.

2.1 provérbios

No que diz respeito aos provérbios, são estes "veículos de uma experiência e de
um saber colectivos, onde se plasmam as representações simbólicas, as verdades
socioculturais e as normas de conduta que alicerçam a vida da comunidade. Anônimos
por definição, os provérbios diferenciam-se, assim, dos aforismos, apotegmas e má-
ximas, textos que possuem sempre um Etemo Retomo" (Lopes, 1992: 269-280).
A par dos provérbios, é possível encontrar-se a interpretação dos mesmos,
a partir da seguinte amostra retirada da obra do padre Estermann (1983: 276):

a) Não se pode nadar com eles, pois abandonam-te na lagoa. — Não se pode
conversar com eles, pois espalham tudo quanto ouviram pela terra fora.
b) Que avezinha és tu que não arranjas asas? — Que rapazelho és tu que não
tomas juízo?
c) Viemos para pisar (moendo grão), não viemos apenas fazer barulho nos
almofarizes. — Viemos para ser mulheres, não viemos para correr com as que
já encontramos em casa.
53 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

d) Onde gostam de ti, faz a tua morada. — Sai donde te odeiam.


e) A cabra deseja ir para o curral rústico, mas ela não tem cauda (comprida)
para enxotar os moscardos. — Com este provérbio censuram quem manifeste
desejos insensatos.^

A leitura destes cinco provérbios sugere de imediato a não acessibilidade


relativamente à compreensão a não ser por parte dos membros da comunidade
respeitante, e ainda, estar-se perante um enigma. No entanto, o que ali está é tão
somente resultado da vida e das vivências de um povo, de um grupo determinado,
razão pela qual a linguagem vai buscar e é resultado do seu cosmos, a sua
enunciação. Mas, há mais. Sendo acessível, compreensível por todos, porque por
todos foram criados, encerram no entanto um enigma. O carácter enigmático im-
prime uma volúpia que traduz uma idiossincracia identitária. Identidade do povo,
do grupo que configura. E não menos interessante é o seu carácter universal(ista),
pois é possível encontrarmos todos estes provérbios em (quase) todas as latitudes
— daí o discurso paternalista do Padre Estermann, porquanto reconhece não so-
mente a humanidade do e no negro, como também e nesta seqüência, a existência
da e de cultura (no sentido de criação) nos negros, questão que como se sabe era
discutível na época.
A anonimidade, esta é evidente. Na senda do "Um por todos, todos
por um" dos Três Mosqueteiros, a anonimidade aqui assume um papel prin-
cipal. "Eu" nomeio em nome de todos, e isto faz de "mim" o representante
de todos - naquele instante. Esta autoridade de que estão todos investidos
é-lhes outorgada como membro(s) da comunidade que são, que comun-
gam de um mesmo sentir.
Através da conjugação do verbo, ora na primeira, ora na segunda pessoa do
singular, na primeira do plural ou ainda pessoalmente, o provérbio "funciona" sem-
pre porque a pessoalização, o "eu", nunca é particular, a conjugação nunca é directa.
O "eu" exerce somente a função de porta-voz. Recorrendo à metáfora, como é o
caso do provérbio "Não se pode nadar com eles, pois abandonam-te na lagoa", o
provérbio satiriza a/uma situação, fazendo apelo à unidade, à boa-vizinhança, à
concórdia, à paz. O estatuto privilegiado do provérbio funciona como lei natural, e a
natureza animal, vegetal e mineral concorrem para essa prorrogativa do provérbio,
fazendo deste um dos elementos estruturantes da/duma comunidade. A anonimidade
também concorre para esta coesão, através da memória. Uma memória que se
revitaliza permanentemente, e que deve essa mesma revitalização à comunidade.
Que seria de um povo sem (a sua) memória? A comunhão de sentires e dizeres apela
ao ditame do ser. O provérbio pode ser dirigido a uma pessoa perfeitamente
identificada ou não, funcionando muitas vezes como charada. O que surge do nada
pode ter igualmente um efeito catártico. Predicativo, conclusivo, sentencioso, o pro-
vérbio encerra a anonimidade da intemporalidade sempre presente.
54 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 5 0 - 5 6 , 2000

2.2 adivinhas

Adivinhas simples (Estermann, 1983: 275)^:

R — Construí um quartinho sem porta?

R. — U m ovo.
P. — Não pode acabar de contar-se?
R. — As estrelas.

Adivinhas compostas:

R — Uma figueira brava, dum lado está com frutos, e do outro está com folhas
a rebentar?
R. — Os homens, uns estão a morrer e outros a nascer.
P. — Queres cortar capim alto, passa primeiro pelo rasteiro?
R. — Queres murmurar de um estranho, começa por um teu parente.

Se a anonimidade não é clara — ou não existe mesmo (?) — também o


tempo não assume o mesmo papel que no provérbio. É evidente que os exem-
plos aqui citados (tanto dos provérbios como das adivinhas) se pecam por
escassez, são no entanto suficientes para o que se pretende demonstrar.
Apesar das similitudes com os provérbios — veja-se o aspecto senten-
cioso das adivinhas compostas — a função das adivinhas é mais abrangente.
O público vai dos 8 aos 80 anos, quer-se dizer que as dizem crianças e adul-
tos, tendo também por isso uma função iniciática. Servem e funcionam como
divertimento; entretem e formam, e o recurso às perguntas e respostas é
disto exemplo, pois instrui. É lúdico, educativo, moralizante. É, tal como os
provérbios, absolutamente primordial para a memórica colectiva.

3. (breve) conclusão

A oralidade, a palavra como escrita da memória, é a guardiã do tempo e do


templo que é a vida. A escrita da memória mais não é do que (a) cultura popular
— anônima, emergente, reificada. "Viemos para pisar (moendo grão), não vie-
mos para fazer barulho nos almofarizes" expressa claramente o cariz popular
desta cultura oral, porque aqui está presente e representada a comunidade, a
cultura, através deste sentir e dizer que congrega o fazer. Em última análise, o
ser. E o ser que a memória é tem o passado como representante, o presente
como bandeira e o futuro como renovação e continuidade.
55 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

Resumo: Este texto aborda a problemática da oralidade a par-


tir de dois casos, a saber os provérbios e adivinhas dos povos
bantos do sudoeste de Angola. A dialéctica oralidade, memó-
ria, sabedoria popular e identidade, são o eixo em torno do
qual o mesmo (texto) se desenvolve.

Palavras-chaves: oralidade, memória, anonimidade, popular.

Abstract: The text revolves around the dialectic oforal tradition,


memory, popular wisdom and identity, based upon the results of
a research among Bantu people of Southwestern Angola.

Keywords: oral, memory, anonimity, popular

notas

' A importância da oralidade concentra em torno de si o facto de ser um patrimônio de


valor incalculável, mas também o perigo do seu desaparecimento. Não sendo um saber
volátil, a sua preservação no que tem de mais precioso é que faz com que esta seja uma
área do saber objecto de um número cada vez maior de estudos.
^ Este é um exemplo — entre tantos outros — das danças e m Luanda, pois que estas
e bem assim as músicas acabam por funcionar c o m o sinaleiros da evolução (ou
não) da sociedade angolana, e mais particularmente da luandense.
^ Este grupo encontra-se na região do Lubango.
^ Segundo este autor, as adivinhas e provérbios classificar-se-ão intermediariamente entre
a prosa e a poesia.
^ Exemplo disso é a referência que o autor faz às adivinhas (às suas soluções) como um
verdadeiro "exercício motécnico", acrescentando: ''Digamos de passagem que muitos
destes ditos são verdadeiras sentenças cheias de bom senso e até de moralidade'". Ou
ainda quando refere "av homens de raça preta têm o sentido de justiça bem afinado,
ou, noutros termos: têm uma noção de justiça muito sensível''. Ibidem, p. 275 e 281 (o
sublinhado é nosso).
^ É importante referir-se que estes provérbios e as adivinhas a quç adiante faremos referência
já são uma tradução para português do padre Estermann. Sabendo das amputa-
ç õ e s a que muitos trabalhos são e estão sujeitos no tocante às imprescindíveis
traduções, não nos foi contudo possível confrontar esta tradução. Encontram-se
por isso os m e s m o s (provérbios e adivinhas) segundo o original do trabalho do
padre Estermann.
56 cruz, elisabeth ceita vera. Imaginário - usp, n= 6, pág. 50-56, 2000

^ Segundo o padre Estermann, existem adivinhas simples e compostas onde, nesta última "a
resposta não consiste numa simples palavra, mas uma frase mais ou menos tão desenvolvida
como a pergunta".

referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Lisboa: Edições 70, s.d.

BUKUKENIA, A; KABIRA, W. M.; OKOMBO, O (eds.). Understanding Oral


Literature. Nairobi, Kenya: Nairobi University Press, 1994.

CANDAU, Joèl. Anthropologie de Ia Mémoire. Paris: Presses Universitaires de


France, 1996.

ESTERMANN, Carlos. Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro) - Colectânea


de Artigos Diversos, vol. II. Lisboa: IICT, 1983.

GUERREIRO, Manuel Viegas. Guia de Recolha de Literatura Popular


Lisboa: Instituto Português do Patrimônio Cultural, Departamento de
Etnologia, 1982.

LOPES, Ana. Provérbios: o eterno retorno. In: GUERREIRO, Manuel


Viegas (coord.). Literatura Popular Portuguesa - Teoria da Literatura Oral,
Tradicional Popular AC ARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 57

p e r c u r s o s d a e t n o g r a f i a ;
l o u c u r a e l a a g i r a r i o d o g o n

denise dias barros*


fotografias: Gianni Puzzo**

Que Amba nos dê a noite boa


Aos ancestrais, masculinos e femininos
Que Amba nos permite levantar em paz
Aos quatro cantos da terra
Que Amba permita que o levantar do dia nos encontra em paz
Que Amba nos mostre o caminho
Amba sagu u Sagu !!!
Antemelu Dara

* Doutora e m sociologia pela FFLCH-USR Professora do Centro de Docência e Pesqui-


sa em Terapia Ocupacional do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Tera-
pia O c u p a c i o n a l da Faculdade de M e d i c i n a - USP. Pesquisadora do N ú c l e o
Interdisciplinar do Imaginário e da Memória (NIME) e do Laboratório de Estudos do
Imaginário (LABI), Instituto de Psicologia - USP.
**Realizou registro imagético (fotografia e vídeo) da pesquisa que forneceu os dados
para este artigo [www.antharesmultimeios.com.br]. Projeto temático Imagem em f o c o
em ciências sociais - FFLGH-USP
58 barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 58

quem são os dogon

Encravada no coração saheliano, a República do Mali corresponde a um


vasto território de 1.240.192 Km^ de superfície, divide seus 6000 Km de fron-
teiras com sete países. Terras antigas onde sociedades negro-africanas têm vivi-
do e construído suas histórias.

A população dogon, estimada em 450 mil pessoas, representa cerca de 95%


da região conhecida como país dogon. Instalados nas montanhas, os dogon pos-
suem origem exógena com migrações distintas. A primeira migração, de acordo
com a tradição oral, partiu do Mandê (região situada no curso inferior do Niger),
teria sido entre 1230 e 1255, sob Sundjata, ou sob Congo Moussa (1307 e 1332),
motivada possivelmente por brigas familiares, fuga de caçadores de escravos,
busca de n(Svos territórios para o plantio. Os dogon, em seus relatos oficiais,
afirmam que ao saírem do Mandê (como outras populações ribeirinhas do Niger
médio) constituíam uma única togu (raça, família).

A ocupação de novos territórios ocorreu através de processos diferencia-


dos. Os diferentes autores parecem concordar que uma consciência de nação
dogon constitui-se entre os séculos XVI e XVIII, período em que seus habitan-
tes sofreram com guerras e pilhagens provocadas pelos Estados centralizados
que se sobrepunham naquele espaço. A presença francesa iniciou-se com um
longá período de exploração a partir de 1796. Entretanto, a ocupação militar
estabeleceu-se a partir da criação do posto militar em Bandiagara em 1893. A
resistência dogon enfrentou os colonizadores até 1920.

Tratâ-se de uma região agro-pastoril com predominância da agricultura.


Dessa forma as atividades econômicas definem-se a partir das duas estações
climáticas: uma de chuva, que cobre os meses de junho a setembro, e outra de
seca, de outubro a maio. A sociedade dogon é patrilinear, viri-patrilocal e orga-
niza-se com base em um sistema de linhagens exogâmicas que se decompõem
em segmentos e grupos domésticos. A família extensa é a primeira unidade
social que encontramos, a gin^na (casa-mãe) é constituída pelo ancestral mas-
culino, seus filhos, filhas e os filhos de seus filhos. A linhagem organiza-se de
forma piramidal pela autoridade do mais velho da geração mais antiga.
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 59

O que significa wede-wede na sociedade dogon^ ? Lou-


cura? Como se organiza e que elementos participam de
sua formulação? Como circula na sociedade o conheci-
mento a respeito do que seja wede-wedel O que ocorre
com a pessoa que, rompendo a barreira do mal-estar em
sua civilização, passa a não ter suas atitudes, gestos, pala-
vras toleradas pelos seus? Quais as possibilidades que se
abrem quando uma pessoa faz uma crise? Foram estas al-
gumas das questões e inquietações que conduziram nossa
busca da palavra dos diferentes atores que contracenam, na
vida cotidiana na sociedade dogon da República do Mali.
A loucura é vista, neste estudo, como uma mani-
festação das formas e das possibilidades do humano
que é sapiens e demens, envolvendo esferas comple-
xas e inseparáveis da pessoa e da sociedade. Revela-se
Fonte: tratamento a par» ti» Huet, 1994, p.6
ao mesmo tempo singular enquanto momento/aconte-
cimento particular na vida de uma pessoa e coletiva pois exige sentidos comparti-
lhados. Não se trata de discutir o que ela é, mas como é compreendida e vivida. O
adoecer é uma das dimensões da manifestação do enlouquecer e a medicina enca-
ra e aceita em si parte da problemática da doença e do adoecer.
Estivemos no Mali, pela primeira vez, em 1993. Naquele ano, foram qua-
tro semanas de permanência no país, uma em Bamaco junto à Unidade Psiqui-
átrica do Hospital Point G e três semanas no planalto dogon. Ali, realizou-se
um Seminário sobre Medicina Tradicional que reuniu notáveis da medicina
originária de várias regiões do país. O trabalho de campo que viríamos a de-
senvolver- entre setembro de 1994 a agosto de 1996 - pode então ser acorda-
do com a Divisão Nacional de Medicina Tradicional.

trilhar

Pela estrada que corta o planalto e une Bandiagara a Mopti, formas capri-
chosas dos paredões rochosos erguem-se aqui e lá como se tivessem desistido
de continuar sua marcha. Entre formas insinuantes de árvores enormes mergu-
lhadas em horizonte aberto, surgem sorrisos em rostos negros. Chegar era, en-
tão, poder participar de uma história milenar onde nada reivindica virgindade
ou inocência mas experiência e força.
No final das águas de 1994, iniciamos nossas atividades a partir da vila
de Bandiagara, período da colheita de uma estação relativamente boa onde
as chuvas não haviam decepcionado.
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 60

Para nós eram dias de adaptação delicada. Um sentimento de estranhamento


profundo, estar no-mundo não-mundo recobria-nos. As paisagens cotidianas
haviam sofrido uma enorme mudança de cores, sabores e odores. Entre
estranhamento e atração, entre ser outro e ser o mesmo fomos construindo um
lugar, uma existência, uma experiência.
Para aprender épreciso esvaziar-se, ensinaTiemo Bokar através de Hampate
Bâ (1980). Este é o primeiro desafio e primeiro postulado do método almejado
mas insistentemente fugidio. O terapeuta precisa sair da sua proteção e condição
de normal absoluto, o pesquisador necessita, do mesmo modo, ativar esse esvazi-
ar-se para se colocar em condição de ouvir. Mas assumir uma postura similar
significa transformação pessoal, júbilo e dor, que não se conquista em horas ou
dias e, quando alcançada, permanece fugaz, sem garantias, exigindo cuidados
permanentes. Daí a importância do tempo, importância de adquirir tempo interno
e dar tempo ao outro para ampliar os sentidos, aguçar e transformar percepções.
A casa que nos havia emprestado Piero Coppoficavaa uns quinhentos metros
da vila de Bandiagara entre dois baobás - na mata segundo nossos amigos dogon.
Avarandada e cheia do verde das árvores que criam um oásis na paisagem seca da
maior parte do ano. Um poço garantia a água e um painel solar com duas lâmpadas
fornecia a luz e energia para o computador. Este foi durante vinte e quatro meses
a base dos trabalhos que se seguiriam. Nós fomos cada vez mais longe (cobrindo
grande parte da região de Bandiagara) e por períodos sempre maiores.
Após um mês de estudo com um jovem dogon, as dificuldades fizeram
fracassar a idéia de aprender a língua de Bandiagara imediatamente.
Compreendemos que os dois projetos (pesquisa com área abrangente e
aprendizado da língua de Bandiagara, donno so) eram naquele momento
concorrentes no emprego do tempo disponível. A decisão de realizar o estudo
na sub-região de Bandiagara onde convivem diferentes falas dogon (trabalhamos
com cinco delas) sacrificava a iniciativa. Assim a dependência de um bom
intérprete acentuou-se. Somine Guindo ficou conosco após tentativas diversas;
mostrou-nos muito. Ele próprio um terapeuta. Filho de Ankonjo Kene, um
reputado especialista em tratar fraturas e luxações.
Depois de algumas visitas (que duravam, às vezes, dias) e com base na leitura
principalmente dos trabalhos de Piero Coppo, pudemos elaborar roteiros de entrevistas
no intuito de apreender as idéias e maneiras de conceber a loucura. Um roteiro para
os adivinhos e binu-kedu-ne, outro para os terapeutas dogon de wede-wede (loucura).
Sem a possibilidade de compreender a bngua, a proposta de uma observação, a
compreensão e participação nas conversas do dia-a-diaficavamprejudicadas ainda
que fosse essa a postura que nos orientasse. Os limites faziam-se impiedosamente
presentes a cada momento. Aprendemos a aguçar os sentidos, gestos, olhares, tom
de voz, tudo era preciso para garantir alguma comunicação. Com o tempo as
saudações diárias, palavras chaves foram sendo incorporadas mas a barreira lingüística
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 61

permaneceu uma importante limitação deste estudo. Optamos, então, por integrar
entrevistas abertas como estratégia complementar que permitiria maior rigor ao
registrar algumas conversações, transcrevê-las e traduzi-las. As entrevistas registradas
foram transcritas inicialmente em dogon (na expressão lingüística do entrevistado),
seguia-se a tradução literal de cada palavra para o francês e uma terceira tradução
que obedecia a estrutura defraseexigida pela línguafrancesa.O mesmo procedimento
foi utilizado para a transcrição dos contos.
O registro das informações foi negociado com cada uma das pessoas que
reagiam diversamente à proposição; todas estas entrevistas, porém, só aconte-
ceram após um período onde nos observávamos mutuamente. Algumas pessoas
demoraram vários encontros até sua permissão para gravar conversações, foto-
grafar ou filmar. A qualidade do vínculo que se estabelecia foi um dos critérios
de definição das áreas de estudo para a segunda fase da pesquisa.
Durante a pesquisa a necessidade de uma reflexão sobre o que deveria ser
registrado e a melhor maneira de fazê-lo foi mostrando a complexidade do pro-
jeto e suas múltiplas implicações. Intenções conscientes e não conscientes com-
binam-se nisto que alia percepção pessoal e necessidade de rigor, transitando
entre ciência e experiência do belo e da emo-
ção na busca de compreensão.
A variedade nas formas de coleta não
garante a apreensão complexa do fenômeno
que se quer compreender. A convivência mais
prolongada insiste em denunciar as
ignorâncias da pesquisadora e insinua a
complexidade do que se quer tocar, ilumina
e constrói sombras e nos transforma.
Os dois anos as atividades foram
permitindo criar espaços de convivência. Os
objetivos traçados quando do projeto de
pesquisa nortearam os primeiros passos mas
foram sendo redesenhados enquanto se
descortinavam os espaços de vida em meio
dogon. No primeiro ano, o eixo fundamental
girou em tomo à compreensão dos sentidos da
loucura e dos destinos individuahzados de quem
entra por estes (des)caminhos. Desta forma
procedimentos diferenciados foram utilizados:
1. Estudo bibliográfico e das pesquisas rea-
lizadas pelo Centro Regional de Medicina Tra-
dicional de Bandiagara.
2. Estudo sobre a terminologia utilizada para
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 62

definir e descrever a doença mental, loucura e fenômenos existenciais vincula-


dos. Para isto, além da consulta aos dados levantados pelos pesquisadores itali-
anos (Coppo, Fiore, Pisani, Lionetti), realizamos entrevistas abertas onde o ro-
teiro definitivo foi sendo elaborado no processo, após compreender as categori-
as básicas para aprofundá-las. Fizemos, sempre em três pessoas (junto com o
intérprete e o responsável pela coleta das imagens que foram captadas sempre
que permitidas) visitas periódicas, que precederam e se seguiram a pelo menos
um período de observação quando buscamos nos introduzir e conhecer as ativi-
dades do especialista em questão.
3. Coleta de contos sobre a loucura e temas correlacionados. As narrativas
populares significam um acesso à percepção do senso comum sobre loucu-
ra e outras problemáficas psíquicas. Acreditamos que é no conjunto dos
fundamentos e de manifestação da cultura que deveremos interpretar o sis-
tema de sentido e as práticas vinculadas aos problemas psíquicos.
4. Entrevistas com doentes, familiares e terapeutas a fim de conhecer os pro-
cessos desencadeados a partir do aparecimento da problemática do sofri-
mento psíquico.
5. Entrevistas com adivinhos e binu-kedu-nc (chefe totêmico), buscando conhe-
cer a terminologia e as problemáticas de natureza psíquica mas que não são
incluídas na classificação local de wede-wede (loucura), ligadas ao momento
de crise e mal-estar que motivam a busca de ajuda fora do âmbito familiar.
6. Documentação visual: fotográfica e videográfica. Fotografia e vídeo são
aqui instrumentos e suportes para apreensão do fenômeno e para sua
compreensão e transmissão. Sendo, desta forma, linguagens que dialogam
e complementam o texto escrito e a palavra apreendida pelo registro
magnético, restituem a vivacidade da experiência e reavivam a memória.
No segundo ano, os procedimentos visavam um aprofundamento de nossa
visão da sociedade dogon e, assim, definimos núcleos habitacionais para a con-
tinuidade das atividades. O ano de 1996 caracterizou-se pelo estudo em situa-
ções localizadas, notadamente, em Songô, Wendegelê, Kundu-Kikini. Entre-
tanto, fizemos entrevistas esporádicas e visitas aos pacientes, familiares,
terapeutas e adivinhos com os quais havíamos trabalhado no ano anterior e,
também, confinuamos a coleta de contos.
Seguindo a orientação de Hampâté Bâ, que enfatiza a necessidade de que a
cultura seja apreendida pela experiência, precisávamos ir além da busca de infor-
mações (enquanto dados objetivados); era fundamental aprender as regras de com-
portamento que guiam as relações e o dia-a-dia das pessoas. As diversas fases dos
trabalhos compõem um conjunto complexo de dados que não se separam das
impressões da vida cotidiana, das emoções e das relações construídas num esfor-
ço de seguir os limites expressos nas máximas dogon: ''todos os dias a orelha vai
à escola'\ palavra não termina em um só dia'' ou ''o saber é muito grande para
barros, denise dias. Imaginário - usp, n= 6, pág. 57-83, 2000 63
.64 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

uma sópessod\ Segundo Hampâté Bâ, no mundo africano, o intermediário, isto é,


a mediação é indispensável. Entre o criador e a humanidade existem intermediários,
da mesma forma, em suas relações o africano passa sempre por um intermediário, o
irmão mais novo para se dirigir a seu pai, solicitará a mediação de seu irmão mais
velho, de sua mãe ou, ainda, de sua tia. Se uma pessoa for a uma reunião, deverá
encontrar alguém para que este exponha, em seu nome, o motivo de sua presença. A
palavra é o melhor dos intermediários mas a palavra não aceita três coisas: ela não
aceita ser pronunciada antes do tempo, ela não aceita não ser pronunciada quando
chega o momento e ela não aceita ser pronunciada após o momento. Assim, diz-se
que o tempo está dentro do segredo de três. Esse pensamento triádico, avesso às
binariedades e às linearidades, constitui, em nossa visão, a base do pensamento
dogon (e talvez negro-africano); suas conseqüências são apreendidas com grande
dificuldade, permanecendo fugazes e escorregadias para a racionalidade ocidental.
Trabalhar em equipe foifiindamentalpois nos constringiu ao confrontação da
observação e a explicitação de objetivos e métodos, facilitando, ainda, uma percepção
mais abrangente. Um grande desafio foi afinar nossa comunicação de forma que
pudéssemos conseguir uma linguagem comum sobre a qual, entretanto, era preciso
discutir continuamente. Assim, as informações e as interpretações são frutos de redes
de interações muMformes. A pesquisa que fornece a sustentação deste trabalho foi
uma destas situações onde a pesquisadora (se é que ela poderia existir) dissolveu-se
parcialmente no jogo de relações mediadas (entre informante, intérprete e pesquisador).

especialistas no tratamento da loucura e adivinhos

As entrevistas tiveram como objetivo central a apreensão das noções


fundamentais que compõem o universo de significação da problemática psíquica.
Ou seja, a terminologia empregada, as expressões, definições e classificação, noção
de pessoa, percepção da doença. Procuramos, sempre que possível, gravar as
entrevistas de forma a poder transcrevê-las e traduzi-las, produzindo um documento
a partir de cada encontro. Trabalhamos a partir de um roteiro de entrevista, propondo
temas e questões iniciais e deixando falar livremente o entrevistado. Em encontros
sucessivos procuramos cobrir os temas previstos.

coleta de narrativas (contos) sobre a loucura e


fenômenos relacionados

O procedimento para a coleta de contos populares foi se desenhando na me-


.65 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

dida em que nossa presença se fazia constante, permitindo uma aproximação maior
com algumas pessoas de cada localidade que visitamos. Pudemos verificar que a
prática de reunir-se e contar estórias mantém-se de forma desigual no planalto
dogon. Em alguns lugares, dedicar-se às narrativas perdeu sua dimensão de ativi-
dade cotidiana, sendo considerada como algo que se fazia em tempos idos. Por
outro lado, tivemos a oportunidade de conhecer lugares onde se mantém viva
como atividade de lazer, momento de vivência coletiva, entre mulheres, reunião
dos camaradas de um mesmo grupo de idade, entre membros de uma família.
Na magia e sugestão de uma reunião noturna os contadores criam e ao
mesmo tempo recriam contos aprendidos desde a infância, contos que percor-
rem temáticas diferenciadas da existência.
Propomos que nos dessem contos onde houvesse personagens considerados
loucos, wede-wede ginc e, também, sobre o início do transe do binu (manifesta-
ção de ancestral clânico) pois trata-se de um momento onde toma-se necessário
fazer a diferença entre o transe provocado pelo binu e manifestações e considera-
das, por eles, como sinais ou sintoma de doença. Selecionamos 90 (noventa) nar-
rativas. Procedemos de duas maneiras, através de roda de contos onde a palavra é
livre e distribuída pelos próprios participantes, e individualmente.
Com base neste extenso material e na bibliografia, procuramos sintetizar a
seguir os elementos mais relevantes que integram, ao nosso ver, os itinerários da
loucura na vida cotidiana e no imaginário dogon.

universo terapêutico dogon

Foram muitas horas percorrendo trilhas que, às vezes, desapareciam trans-


formando-se em espaços entre arbustos, areia e colinas onde as pedras insistiam
em caminhar enquanto passávamos. Parecia-nos inventar caminhos na procura
de retalhos de conhecimento de um velho sábio cuja palavra, sabíamos já, não
"'termina em um único dia". Permanecemos, assim, imersos numa indeterminação
de muitas faces. Tudo no universo dogon é força, existindo zonas privilegiadas
de concentração das forças (lugares sagrados, residências de seres sobrenatu-
rais e lugares clânicos onde se faz os sacrifícios) e, ainda, pessoas que concen-
tram em si potências superiores que, desse modo, não são apenas sacras, mas
também, sacralizadoras. Não apenas modelos de unificação dinâmica, mas tam-
bém unidades dinamizadoras de coesão ou de ordem.
A pessoa deverá crescer, adquirir força e saber num processo que não con-
cebe rupturas mas confirmação entre os percursos pessoais e os da sociedade.
Nesse movimento, eventos específicos podem interferir colocando em risco a
integridade, portanto a saúde, da pessoa em seu equilíbrio dinâmico: acidentes.
.66 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

doenças, enganos, intervenção de outros, transgres-


sões. Por outro lado, um ser pode aumentar ou dimi-
nuir sua força inclusive pela absorção das forças vi-
tais de outros seres. Essa idéia de interferências ou
influências entre os seres consiste em uma caracte-
rística do pensamento negro-afticano, não estando
presente apenas em meio dogon. Ela reconduz a
noção de forças vitais que, segundo Fábio Leite
(1982), é um dos elementos estruturadores de pro-
cessos sociais, ligando-se, num primeiro momento,
à noção de energia fundamental que se estrutura e
organiza o universo cuja fonte é o preexistente. A
noção de forças vitais está nas práticas sociais, não
permanece apenas no domínio da natureza, pode ser
de ordem histórica e é central para a compreensão
dos conceitos de saúde e de adoecimento.

Pode-se dizer, sem temer o paradoxo, que a per-


sonalidade do negro é composta de um corpo,
uma alma, um totem e uma pluralidade de no-
mes. Seria difícil saber qual entre os quatro ele-
mentos possui um papel preponderante. Na re-
alidade, cada um representa à sua maneira um
aspecto do indivíduo: o corpo é a forma
somática, a alma o dado metafísico; o totem, o
elemento cosmológico; o nome - que os une a
todos com força e coesão - o aspecto social
(Thomas, 1973: 397).

O homem negro-afticano (Leite, 1981: 1) cons-


titui a síntese de elementos vitais-naturais e sociais
em processo permanente. Os elementos vitais natu-
rais compõem-se do corpo, princípio vital de
animalidade e espirituahdade, princípio vital de imor-
tahdade. Este último está Ugado à noção de destino
ou de reahzação. É possível aperfeiçoá-lo pela ação
da sociedade, sendo fortemente individualizado e
indestrutível. Os elementos vitais sociais são: nome
(dar nome significa colocar a palavra dentro da pes-
soa), socialização, iniciação e ritos funerários (per-
mitem a transformação da pessoa em ancestral).
.67 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, p á g . 57-83, 2000

O princípio vital de animalidade e espiritualidade é o que organiza a anima-


ção do corpo; pode manifestar-se sob forma de duplo ou sombra, é considerado
imperecível. Uma característica desse princípio é sua capacidade de individuali-
zar-se, elemento dinâmico, podendo ter sua vitalidade aumentada ou diminuída
por fatores de autodomínio e de socialização, com capacidade de transformação.
Quando fragilizado, toma-se atingível pelos agentes especializados na manipula-
ção de duplos, os chamados comedores de almas. Percebe-se, assim, que a noção
de forças vitais constitui pedra basilar para entender a noção de pessoa e as idéias
sobre a doença, tratamento e processos de cura em sociedades negro-africanas.
Desde sua concepção, a criança permanece alvo de inúmeros perigos, sua sobre-
vivência é incerta. A morte de uma criança é preferencialmente lida como um proble-
ma que recai de maneira imediata sobre a mulher mas atinge, de maneira mais ampla,
a família. Uma série de recursos destinada à proteção da criança será utilizada. Desta
forma, diferentesrituaisdestinados à sua proteção e inserção ótima devem ser, segun-
do o sistema dogon, realizados. Atualmente essas medidas de proteção são utilizadas
de forma desigual com diferenças locais relevantes. Elas foram em parte abandona-
das, outras, transformadas ou substituídas por ritos de origem muçulmana ou cristã.
Ouve-se com freqüência dizer que o mundo "estragou-se com a religião", deixando as
pessoas mais expostas aos malefícios e aos infortúnios.
Saúde é percebida pelos dogon como "um estado de equilíbrio entre o indi-
víduo e seu meio (visível e invisível, animado e inanimado), buscando a partici-
pação plena e satisfatória do indivíduo na comunidade presente, passada e futu-
ra do qual ele é membro... ela (saúde) deriva do equilíbrio entre imagem de Eu
e papel social efetivamente assumido" (Coppo, 1993: 67). A noção de saúde
confunde-se com o processo permanente de formação e socialização da pessoa
que se realiza na intercecção de três eixos. Um vertical que liga a pessoa aos
seus ancestrais, um horizontal que a vincula à comunidade e outro existencial
constituído através de percursos e elaborações particulares do Eu (Sow, 1977).
A doença é percebida como perturbação do equibl^rio que é preciso reconstituir.
As pessoas são múltiplas na pessoa e a terapia deve reencontrar uma unidade nesta
multiplicidade pois o adoecer é uma dispersão do todo. Deve-se agir sobre diversos
mveis para recompor a ordem: a purificação do corpo do doente e a reparação da
falta são condições necessárias para que um tratamento possa ser eficaz.
Um sonho ou um acontecimento inesperado são portadores de mensa-
gens a serem decifradas e a adivinhação permite desvelar as marcas deixa-
das pelo medo e a angústia, tecendo interpretações que apaziguam a dor e
possibilitam a cura.
Não um, mas diversos adivinhos são procurados a cada inquietação, desen-
tendimento ou diante de um desejo ou ambição. Em sua busca de sentido a
pessoa permanece envolvida pela incerteza. Adivinhos, têrapeutas e marabus^
acolhem todo tipo de ansiedade e vão contribuindo para sua elaboração.
.68 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

São os códigos de conduta que darão os parâmetros entre normalidade e anor-


malidade, isto é, os sinais que permitem entrever um possível sintoma de crise e
de infortúnio. A desordem pode ser o desrespeito aos códigos de conduta
interpessoais (gritar com mais velho ou interromper sua palavra, vestir-se inade-
quadamente ou ficar nu em lugar público, roubar, agredir sem razão, fazer medo
nas crianças, fiigir para a mata), violação de um pacto ancestral (penetrar em lugar
sagrado, transgressões alimentares), violação dos preceitos que regem a conduta
dos homens com a natureza visível (cortar árvore em lugar sagrado, falta no cum-
primento dos ritos de purificação da mata) e com os seres não visíveis que repre-
sentam um pacto de paz no compartilhar o espaço terrestre (penetrar em locais
onde vivem seres não visíveis como os yebcn, jinnu sem pronunciar as palavras
de proteção). Podem ser, por outro lado definidos por sinais que sugerem a pre-
sença de sintomas psicopatológicos (do ponto de vista da psiquiatria) como inco-
erência verbal, mutismo e inapetência acentuada, negativismo, estereotipias, agi-
tação, insônia, alucinações visuais e auditivas (Coppo, 1988: 63).
É preciso ressaltar, entretanto, que estes sinais deverão ser confrontados
por um lado com a capacidade ou incapacidade da pessoa em manter suas ativi-
dades cotidianas e, por outro, com explicações possíveis, coerentes com a visão
de mundo dogon. Assim o fato isolado de uma pessoa ver coisas ou seres que os
outros não vêm ou não ouvem significa apenas que ela está em contato com os
seres existentes mas não visíveis à maioria dos homens. Deste contato, ela po-
derá tirar uma experiência negativa ou positiva. Se a pessoa tem medo (ne)
repentino poderá perder-se (seu kinde kindu escapa), deixando o caminho aber-
to para que a doença entre; ela poderá conhecer, então, o diagnóstico de wede-
wede (loucura). Outro destino é, entretanto, previsto caso a pessoa consiga fazer
de sua experiência um fator positivo ao interpretar esse encontro ou episódio
dentro dos contornos que o universo cultural permite. Esta é a situação de
Maraetu, reputada adivinha que, após perder nove filhos, começou a se comuni-
car com os seres não visíveis e isto permitiu a ela reencontrar seu lugar na so-
ciedade. No início pensou ser wede-wede, fez diversos tratamentos, rituais de
purificação, mas os próprios seres que a protegem disseram que seu caso não
tinha tratamento pois não se tratava de doença.
A loucura pode ser atribuída a diferentes eventos que não se excluem: ao
destino ou a um encontro com diferentes tipos de seres de sociedades não visí-
veis ao homem mas com quem dividem o espaço terrestre. Muitas vezes, ainda,
a adesão à religião (islâmica ou cristã), a migração, a pobreza e eventos graves
de vida podem, para os dogon, desencadear crises ou desequilíbrio na pessoa.
A manifestação da loucura pode ocorrer de diversas formas, desarticulando
a vida cotidiana e as relações sociais. Diante de uma experiência de crise, as
primeiras reações ocorrem, mais freqüentemente, no seio da grande família -
gin*na. É a partir da gin*na que nascem a solidariedade e a ajuda, mas também.
.69 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

a rejeição e o abandono da pessoa que adoece pois quando uma crise individual
emerge, ela evoca a presença de conflitos nas relações entre os mais próximos.
Os recursos que são postos em ação pela família, amigos, adivinhos, marabus e
terapeutas tomam possível reconduzir a pessoa a si mesma e à sua coletividade.
Se uma pessoa é rejeitada pelo grupo doméstico, ela pode ser acolhida por mem-
bros da família extensa, por amigos ou pelo próprio terapeuta. Em nossa passa-
gem pelas terras dogon, encontramos, também, pessoas deixadas entregues à
errância e à miséria.
Os adivinhos afirmam que devem sugerir um especialista - um jonjoT]-ne-
quando identificam um problema que escapa ao seu conhecimento como nos
casos de loucura (wede-wede). O terapeuta dogon é um especialista por possuir
um saber reconhecido que permite o tratamento de determinadas doenças ou
episódios. Ele conhece a farmacopéia pertinente, as palavras que dinamizam
sua ação terapêutica, ibi so, recorre a sua sensibilidade e pode manejar de algu-
ma técnica de adivinhação ou de comunicação com os seres não visíveis (atra-
vés de sonhos ou vidência). Desta maneira deverá definir os contornos do mal,
atribuindo (ou confirmando) um nome e desvendando sua origem e caminhos
para o tratamento a ser seguido.
Em casos em que a doença (ou mal) seja considerada associada à transgres-
são de proibições {taa\ um primeiro nível de ajuda terapêutica forma-se através
do concurso de parentes. Trata-se, neste momento, de buscar apoio nos conheci-
mentos do patriarca responsável pelos receptáculos de forças vitais famihares.
Muitas vezes, entretanto, faz-se necessário buscar ajuda fora do mundo famihar.

terapeutas

Pode-se dizer que a medicina originária dogon, inserida no processo sócio-


cultural que lhe deu origem, compreende um sistema onde diversos agentes so-
ciais concorrem, começando pelos conhecimentos familiares em geral e, em
particular, pelo patriarca chefe de gin'na.
Cada terapeuta concebe seu saber como um patrimônio a ser cuidadosamente
protegido dentro da linhagem ou do segmento de linhagem. Ofilhomais velho deverá
substituir de maneira plena as responsabilidades do pai seja no tratamento de doentes,
seja nos rituais e cuidados necessários à manutenção das forças vitais de seu gelu
(conjunto de elementos e materiais sagrados e sacralizadores). Nas situações que tive-
mos a possibilidade de conhecer, o saber é transmitido aos diversos filhos (às vezes
mesmo asfilhase netas) que se interessam e se aproximam do pai ou do avô, mas que
poderão exercer seu conhecimento apenas em caso da ausência do mais velho. A apren-
dizagem poderá ser desigual entre osfilhose acontece por fases. A observação é a base
.69 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

do aprendizado, seguida da realização de peque-


nas tarefas pela criança ou jovem, o que o introdu-
zirá lentamente numa esfera de saber que assume
os contomos da experiência. São gestos, seqüênci-
as dos rituais terapêuticos e regras de comporta-
mentos. O reconhecimento e coleta das plantas, o
conhecimento da palavra da cura {ibi so), das
encantações (que fomeceram parte das forças vi-
tais para que o medicamento seja eficaz) cumpri-
rão uma nova etapa do aprendizado. O exercício
do saber exige ser amadurecido e certas práticas
dependem da idade e dos ritos iniciáticos, não podendo ser executadas antes que o
aprendiz tenha se tomado uma pessoa completa, madura {indepai).
Frente ao sofrimento, um primeiro nível de reações ocorre no seio da família de
onde se iniciam, sejam mecanismos de solidariedade e de ajuda, sejam de rejeição da
doença e/ou abandono da pessoa. Pode-se dizer que em toda gin'na encontramos
pessoas reconhecidas como capazes de fomecer in-
terpretações sobre a situação e providenciar as me-
didas consideradas fundamentais, desde a coleta de
plantas, fabricação e modo de administração de me-
dicamentos.
Na sociedade dogon convivem diferentes ma-
neiras de ser terapeuta e as formas das terapias são
diversas com interfaces importantes com valores
e práticas islâmicas principalmente. Podemos dis-
tinguir como agentes da saúde os adivinhos
{almaga^, kundu-ne), os terapeutas (jon-jorju-ne),
os vendedores de plantas medicinais e objetos des-
tinados aos tratamentos e rituais terapêuticos, os
encarregados de cultos e os guardiões de objetos
.71 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

OU lugares-receptáculos de forças (altares) individuais ou de caráter ancestral (per-


tencendo, neste caso, a uma linhagem ou a um segmento de linhagem, ou mesmo, a
uma localidade). Dependendo da natureza do mal ou da doença a tratar (se está
ligada a transgressões) podem intervir, além desses, uma pessoa de casta (artesão de
couro ou ferreiro), os aliados políticos erituaismangu ou dama-gá^, sobretudo para
rituais de purificação do corpo^ e, também, o feiticeiro^ (dugu-ne). Outro persona-
gem que participa do universo terapêutico é o binu-kedu-ne que por sua sensibilida-
de e participação simultânea no mundo dos homens e das sociedades dos seres não
visíveis pode adquirir conhecimentos específicos: vidência, adivinhação e tratamento
de doenças. O binu (enquanto expressão totêmica) não é único e suas qualidades e
força vital variam de maneira importante. Não podemos deixar de mencionar o
marabu que trata, utilizando o Corão, oferecendo à população um recurso terapêutico
e de proteção importantes.
O itinerário de busca da compreensão do mal e de sua reorientação não é
linear, mas, um processo dinâmico que envolve dor e o imponderável dos caminhos
humanos. É neste contexto que a busca de sentido integra o processo terapêutico e o
diagnóstico a terapia. A ordem e os papéis de terapeutas (familiares e não) e adivi-
nhos não devem ser lidos de forma estática, mas, como um conjunto de possibilida-
des que podem ser utilizadas de múltiplas maneiras e em seqüências diversas.
O que caracteriza a ação do terapeuta dogon está no conjunto de sua inter-
venção: ritos, encantamentos, uso de vegetais, minerais e animais, a autoridade
e a qualidade da própria presença. Tudo isso sem cindir as dimensões existen-
ciais da pessoa, os vínculos que estabelecem seu pertencimento a uma família,
aos ancestrais e, portanto, à sociedade e à história dogon.
Especialista por possuir um saber que permite o tratamento de doenças determi-
nadas, o terapeuta conhece, também, a farmacopéia pertinente e a palavra que dinami-
za sua ação terapêutica. Ele é reconhecido como aquele que tem o poder de curar e
recorre à sua sensibilidade, podendo manejar alguma técnica de adivinhação ou de
comunicação com os seres não visíveis. O terapeuta dogon é um conhecedor dos
mistérios da mata. Ele transita entre os espaços incultos e os espaços socializados. A
ele cabe reorganizar os fluxos das forças postas em jogo no adoecer, na manifestação
do mal e na desordem social e ancestral. Sendo assim, é procurado sempre que algum
fenômeno ameaça o desenrolar esperado ou desejado dos acontecimentos.

noções ligadas à loucura

Pudemos constatar, como já haviam descrito Coppo, Tinta e Mounkoro,


que a sociedade dogon possui uma terminologia vinculada à designação e com-
preensão da doença mental (enquanto reconhecimento de um estado patológi-
.72 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

co) e loucura (enquanto fenômeno humano). Adotar categorias nosológicas sig-


nifica, em meio dogon, ''dispor de uma rede feita de laços associativos móveis,
que não se desenvolve verticalmente e hierarquicamente. Entretanto,
estruturando-se por analogia e por implicação mútua, atribui formas e recobre
de sentido, horizontal e transversalmente toda existência e, portanto, a experi-
ência. Atribui continuidade antes que descontinuidade, um sentido de conjunto
antes que uma organização hierárquica'' (Coppo, 1994: 52).
Wede-wede, loucura, é classificada pelos dogon como uma das três grandes
doenças - junto com a epilepsia e a hanseníase (lepra) - segundo pesquisa rea-
lizada em 16 localidades por Bamia (1991). Uma vez que uma pessoa é assim
diagnosticada, significa que se considera estar diante de uma situação grave
onde as possibilidades de recuperação podem diminuir consideravelmente. De-
corre daí o cuidado mesmo na utilização da palavra que designa a doença que
vem denominada, muitas vezes, de maneira metafórica. Para definir uma situa-
ção considerada patológica (lulo), encontra-se terminologia própria em diferen-
tes linguagens dogon, trata-se de wede-wede, wcze (donno so); keke (ter|u kã);
wezic ou wezenin (toro so); nokigu jonno {dogulu so).
Além de wede-wede (donno so), usa-se uma linguagem figurada, seja para
indicar a loucura (compreendida como uma doença grave) seja para indicar a pre-
sença de uma problemática psíquica menos grave ou definitiva. Em outras palavras,
pode-se reconhecer uma situação de crise como nos exemplos a seguir: a) ku kibeli
ou ku kcw wo h (cabeça incompleta); b) ky bilia de (cabeça que se inverte/ revira-
da); c) ku ginna wo (cabeça que se espalha, que se dispersa e se divide).
Como noutras culturas negro-africanas, a doença é uma entidade que se
movimenta, isto é, sobe, desce, passeia, viaja, enfim, que age. Sendo assim,
para dizer que a pessoa ficou doente diz-se: lulo ku wo mora dambe, a doença
montou sobre sua cabeça; lulo won agi, a doença o prendeu; luloku monedarja,
a doença sentou em sua cabeça. Em suas pesquisas sobre representação de do-
enças contagiosas entre os dogon, Roberto Lionetti afirma que esta se constrói
como "imagem espacial da doença (contagiosa ou não) que faz dela uma reali-
dade, móvel e autônoma fortemente inscrita na geografia do espaço vivido"
(1984: 4). A doença má, ainda segundo o mesmo autor, move-se sem repouso
até encontrar uma pessoa vagando inadvertidamente à sua volta para, então,
montá-la. Assim a expressão correntemente utilizada de lulo yalà (doença que
vaga/passeia) revela um campo vasto de representações culturais, pois estar con-
tinuamente em movimento é próprio da doença, do vento, dos seres não visíveis
que dividem com os homens o espaço terrestre, do kindi-kindu (ou kikinu), dos
cães, dos ladrões e malfeitores (bruxos). Além disso a expressão indcyalà (pes-
soa que vaga/passeia) é figura de linguagem utilizada para designar loucos, men-
digos, prostitutas ou homens que correm excessivamente (assim considerados)
atrás das mulheres (Lionetti, 1994: 4).
.73 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

Mas, wede-wede (a loucura) não 'monta' em qualquer pessoa. Os dogon


consideram que as pessoas de cabeça leve inde ku wey (donno so) kunogoro
rfcru (terju kã) dana wei (tommo so), que expressam de forma marcante suas
emoções e têm medo facilmente, estão mais expostas aos perigos da doença
enquanto aquelas consideradas de cabeça pesada ku dogozo (donno so), dana
dogodu (tommo so) estão mais protegidas, menos expostas ao medo, nc, fator
desencadeador da crise. Sendo assim, raramente sofrerão de wede-wede. Essas
informações confirmam os dados colhidos por Lionetti a respeito das condições
propícias para a transmissão de doenças contagiosas.
A doença contamina mais facilmente a pessoa frágil. A resistência ou o con-
tágio explica-se com base em características pessoais ligadas à qualidade do san-
gue, leveza/dureza da cabeça e medo. Em outras palavras, a doença pode pegar
(inde lulo aga) mais facilmente a pessoa que possui sangue doce (ni ellu) que é
leve (ni wei) e cabeça leve (ku wei). O contrário ocorre se a pessoa possui sangue
amargo (ni gallu) que é pesado (ni dogodo) como descreveu Lionetti (1994: 7-8).
Estas condições individuais são consideradas hereditárias, transmitidas de uma
geração à outra, mas existem circunstâncias ou eventos de vida que podem fragilizar
(diminuição da força vital), deixando as pessoas mais expostas às doenças.
Na loucura, momento de rompimento e de perda dos fatores de prote-
ção, a pessoa vê enfraquecida a relação entre seu kinde-kindu e seu corpo,
perde $ama, vê seu nolo (caráter) comprometido, e suas relações (pessoal e
social) dissolvem-se, despedaçam-se.
Às vezes, a designação do problema psíquico respeita preferencialmente o
agente causai suposto ou o mediador da ação deste agente. E o caso dos termos
gezc (vento); gczepazc (vento ruim); ogulum bclcn (seres da mata); ycben gcze
(yebcn que viaja através do vento); ycbcn tebilP ou ycben lagi (apanhar de yeben\
yeben nindimi (que o yeben assustou). O vento, geze (wewe em tommo so), foi
alvo de investigações dos pesquisadores italianos, revelando-se como categoria
complexa com sentidos múltiplos; trata-se de uma mediação (um vetor segundo a
linguagem médica) através da qual se movimentam doenças diversas e os seres
não visíveis que podem transmitir numerosas doenças (incluindo alguns tipos de
loucura) mas constitui, ela mesma, uma categoria independente.
Ainda que convivam, na linguagem corrente, as formas metafóricas de
wede-wede necessitam ser disUnguidas de uma série que designações de
problemas que poderíamos chamar de psíquicos ou psicológicos que não
são considerados como wede-wede (por não possuírem a mesma gravidade)
mas que possuem um estatuto de doença. Servindo-nos das palavras de Piero
Coppo, ""não encontramos classificações hierárquicas reciprocamente
excludentes.... Existe um modo de designar os fenômenos que se baseia na
acumulação progressiva de elementos qualificantes, cada um referindo-se a
um repertório heterogêneo" (1992: 105). Trata-se aqui, principalmente, da
.74 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

nomeação do agente em questão, fazendo alusão à pessoa e não a uma doen-


ça enquanto entidade abstrata.
Encontramos quanto ao comportamento durante a crise, wede-wede ya (mu-
lher considerada como forma fria, kellu), wede-wede ana (wede-wede homem con-
siderado como forma quente, numo). Coppo afirma que esta tipologia está ligada a
idéia de gravidade do evento, sendo a forma ya menos efusiva porém de tratamento
mais difícil e a forma ana menos grave quanto ao prognóstico (Coppo, 1994: 53-4).
O sistema de classificação da doença mental à disposição dos especialistas
dogon, segundo a bibliografia disponível e nossa verificação de campo, permi-
te distinguir quatro principais categorias causais que revelam, em parte, sua
compreensão do problema da loucura. É importante assinalar que a classifica-
ção que utilizamos é uma inferência dos dados recolhidos, não se trata de siste-
matização fornecida diretamente pelos terapeutas. Esses, espontaneamente, ao
mencionar a tipologia dos problemas psíquicos preferem fazer alusão à gravida-
de e ao comportamento do doente que à causa da doença, preferem enumerar as
causas que conhecem sem preocupar-se em agrupá-las ou hierarquizá-las.

terapias

Parece-nos difícil precisar os limites de um processo terapêutico uma vez


que a intenção que anima esta pesquisa tem sido a de apreendê-lo na complexi-
dade e dinâmica que caracterizam o humano e a vida. Onde começa a terapia?
No instante mesmo em que ações de ajuda têm lugar, quando inicia uma ação
especializada ou desde os primeiros sinais de manifestação da doença, quando
inicia uma ação especializada ou desde os primeiros sinais de manifestação da
doença, signo inteligível que deve principiar reações de solidariedade?
Não seria possível desconsiderar os caminhos que levam à busca de sentido,
o diagnóstico global da situação que pode ser dado por um familiar ou, como
ocorre freqüentemente, pela adivinhação. Além de fazer reentrar o mal em um
universo de sentidos conhecido, ele abre as portas para que a eventual busca de
um especialista seja bem sucedida. Dessa forma, acreditamos que todos os pro-
cessos interpretativos pertencem ao mundo do tratamento propriamente dito.
O ação terapêutica parece ser, ela mesma, viva e em movimento permanente.
Trata-se de um projeto de reabilitação psico-social-natural-ancestral que é desenha-
do a partir de diferentesritosatravés dos quais as relações familiares e comunitárias
com a pessoa que sofre e a relação dos elementos que a compõe serão redefinidas. A
pessoa precisa reencontrar seu lugar na sincronia e diacronia de sua existência.
A palavra é dotada de força intrínseca, sendo alvo de conhecimento e
manipulação, através dela os elementos constitutivos do objeto ou lugar sa-
.74 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

grado adquirem um momento dinâmico


propício para a expressão/solução da ne-
cessidade de quem a pronuncia, podem
provocar o aumento ou diminuição das
forças do ser, transformando, por exem-
plo, um conjunto de plantas em medica-
mentos. Sendo assim, ibu ^o - a palavra
que dá a vida - carregada de qualidade
de proteção pode atuar em várias situa-
ções da vida cotidiana (contra inimigos,
mal olhado, para atrair a aceitação quan-
do da chegada numa localidade estran-
geira), contra a ação dos seres não visí-
veis (se são pronunciadas as palavras
corretas eles deixam a pessoa passar sem
problemas caso se cruzem pelo cami-
nho).
O uso de plantas e elementos mi-
nerais e animais compõe também os re-
cursos terapêuticos. Os diferentes ele-
mentos são, ao mesmo tempo, recursos
(enquanto dotados de valor ou proprie-
dades terapêuticas específicas) e medi-
ação (enquanto veiculadores de comu-
nicação e fornecedores de significados
inteligíveis) da ação do especialista que
age, por sua vez, no interior de
parâmetros compartilhados pela socie-
dade. O uso dos vegetais e animais evidencia a qualidade da relação ho-
mem-natureza; da coleta à ingestão devem ser obedecidos cuidados e regras
que viabilizam e dinamizam a absorção das forças dos elementos - vegetais,
animais ou minerais - necessários à pessoa debilitada.
Um conjunto de rituais integram a terapia. De um lado, os rituais
propiciatórios e de purificação e de outro, aqueles ligados à aplicação dos
medicamentos (fumigação, aspiração, ingestão). Após a cura do mal manifes-
to uma série de medidas serão tomadas para que a doença não volte e para
agradecer o restabelecimento almejado: rituais de fixação da doença, rituais
de agradecimento e/ou de proteção.
O setting terapêutico envolve também os espaços da vida quotidiana da
pessoa em tratamento que pode estar aos cuidados do terapeuta e sua família ou
em seu próprio ambiente, alvos de ações de purificação e conselhos.
.76 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

a palavra que se encerra

A dimensão social da doença é um problema fundamental para a socieda-


de humana, envolvendo um desafio prático, pois é preciso encontrar soluções,
e teórico pois necessitamos explicar o que aconteceu, como se originou e qual
é sua história. Provoca, desta forma, uma busca de sentido que deve ser inter-
pretada. Interpretar não significa inventar um explicação, nem reduzir os fe-
nômenos às classificações, mas encontrar uma mediação entre a exigência do
corpo que sofre e as regras, institucionais e sociais, que presidem o processo
da interpretação (Augé, 1986). Significa cumprir um itinerário múltiplo pois
a busca da saúde e de alívio da dor e da angústia não é homogênea, mas,
caracterizada por alternativas diferenciadas.
As interpretações locais da doença necessitam conferir um significado a
tais episódios, correspondendo a um modo específico de pensar a realidade,
satisfazendo, ao mesmo tempo, as exigências do indivíduo. A interpretação
deve permanecer atenta ao adentrando no contexto local e o particular sem
esquecer a universalidade que é sua ânima, movendo-se igualmente entre o
individual e o social (Augé, 1986).
Dessa forma, os conceitos à disposição para a interpretação constitu-
em um mapa através do qual é possível se orientar. Os percursos trilhados
durante a pesquisa de campo e, posteriormente, na trajetória da reflexão e
da escrita, não nos conduzem a conclusões. Eles abrem caminhos e levan-
tam questões, riscam pegadas na densa civilização e visão de mundo dogon.
As concepções vinculadas à loucura e a seu tratamento revelam sua rique-
za e complexidade quando apreendidas no contexto e nas dinâmicas das
práticas históricas das quais se originam. A análise dos dados permite con-
firmar a existência de uma concepção dogon da loucura, com: 1. um léxi-
co significativo e relativamente rico em expressões que necessitam ser ainda
melhor estudadas; 2. um saber organizado, exercido pelos homens, que se
transmite de uma geração a outra dentro da linhagem paterna ou que se
adquire por revelação, cujos processos rituais necessitam ser melhor co-
nhecidos; 3. ainda que se conheçam transformações importantes, valores
ancestrais permanecem na base da busca de equilíbrio pessoal-social, sen-
do vital compreender a maneira pela qual os homens continuam seu diálo-
go com as sociedades dos seres invisíveis.
A compreensão do adoecimento deriva do conjunto das relações e de
características do momento de sua manifestação e reconhecimento social.
As interpretações do mal aparecem através de duas formulações divergen-
tes mas igualmente presentes. A doença como manifestação da vontade de
Amba, que é uma teoria de acobertamento e de pacificação, e a hipótese
que liga a doença à ação nefasta de agentes sociais fazem surgir uma no-
.77 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

ção baseada num conflito que deve ser superado mas cujo caminho a soci-
edade atual não conhece. O que tem sido posto em causa são, sobretudo,
as alianças matrimoniais e o papel dos homens jovens na estrutura de po-
der e de decisão dos destinos pessoais.
Outros fatores ou processos podem redefinir os limites e o sentido do
bem-estar e da saúde. O medo {né) repentino pode levar a pessoa a perder-
se a si mesma (seu kinde hindu escapa) ou poderá tomar-se impura (conta-
to com a morte), deixando o caminho aberto para que a doença entre. É
possível, neste caso, que a pessoa consiga fazer de sua experiência um
fator positivo ao interpretar esse encontro ou episódio dentro de contornos
sociais pertinentes. As transgressões e a quebra dos códigos de conduta
configuram-se, também, como desordem. Trata-se, principalmente, do des-
respeito aos códigos de conduta interpessoais, da violação de um pacto
ancestral, da violação das regras de conduta dos homens nas suas relações
com a natureza visível e, também, com os seres não visíveis com os quais
deve-se compartilhar o espaço terrestre.
A noção de saúde confunde-se com o processo permanente de formação e
sociaUzação da pessoa.
.77 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

Se, por um lado, a constituição da pessoa é trabalhada pela sociedade, por


outro, ela pode a qualquer momento (mesmo sem intenção) constituir-se em
expressão de contradições, antagonismos e transformações.
A loucura não é apreendida como mal de um corpo inerte a ser extirpado.
As proposições enunciadas pelos terapeutas, adivinhos, doentes e narradores
que conhecemos informam um sistema complexo de compreensão da proble-
mática. Nelas os nexos entre manifestação da loucura e sociedade, entre pro-
cessos terapêuticos e práticas ancestrais, entre real e imaginário, entre religi-
osidade e organização social não podem ser separados para serem conheci-
dos. Do mesmo modo, passado e futuro interpenetram-se no presente, pessoa
e grupo permanecem indissociáveis ainda que em relações ao mesmo tempo
complementares, concorrentes e antagônicas. Foi, sobretudo, esta maneira
dialógica de aceitar os desafios e os riscos e de tecer uma trama de interpreta-
ções da loucura que procuramos reconstituir.

Resumo: Com base em pesquisa de campo realizada entre 1994 e 1996


nas terras dogon, sociedade negro-qfricana da República do Mali (África
do Oeste), observa-se que a sociedade dogon possui um léxico significa-
tivo vinculado à designação e à compreensão da loucura. Possui, por
outro lado, um conjunto de saberes organizados, exercido sobretudo por
homens, que se transmite de uma geração a outra dentro da linhagem
paterna ou que se adquire, principalmente, por revelação. Estes saberes
referem-se ao uso de plantas, de minerais, de processos rituais e de
encantações que se articulam segundo as proposições e práticas históri-
cas dogon num processo constante deformação da pessoa-dogon e da
sociedade. A pessoa considerada louca poderá conhecer destinos dife-
renciados: será acolhida, tratada e reinserida nas esferas das relações
sociais, ou será tratada sem conseguir uma reinserção total, permane-
cendo aos cuidados de um parente ou amigo. Ela poderá, ainda, ser apri-
sionada em sua casa ou ser deixada errante, sendo nestes casos encon-
trada nos mercados, nos povoados e nas estradas.

Palavras-chave: etnopsiquiatria, dogon, loucura, etnografia,


África Negra.

Abstract: A research that took place between 1994-96 among Dogon


in Mali Republic Showed the existence ofsignificant lexicon to express
madness and its understanding.
.79 b a r r o s , denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

Keywords: etnopsiquiatry, Dogon, madness, etnography, Black África.

notas

' Nome pelo qual ficou conhecido o complexo cultural negro-africano que ocupa a re-
gião noroeste da República do Mali, oeste da África.
^ Aquele que, entre os muçulmanos, dedica-se à prática e ao ensino da vida religiosa e à
leitura do Alcorão.
^ A etmologia proposta por Calame-Griaule é que almaga derivaria de álu manga, lite-
ralmente ''petri l'indecision'\ ou seja, acabar com a indecisão (1965: 430(3)). Outra
explicação nos foi dada: alu significaria aliança e manga, guardar nas mãos, ou seja,
dar forma, criar.
Aliança de troça.
^ Caso de doenças de OmbOlO após romper com proibições ou negligência para com os
ancestrais, wagun. O ferreiro ou os parentes do doente devem pegar um pouco de
sorgo e algodão e depositar tudo na mata (AnkonjO KEnE).
^ A diferenciação entre feitiçaria e bruxaria proposta por Evans Pritchard não é evidente
em meio dogon, o feiticeiro pode ele mesmo atuar negativa ou positivamente.
^ Além dos yEbEn, outros seres não visíveis podem agir, isto é, assustar, bater. Trata-se
dos ginajijinu, andumbunlun entre outros, sobre os quais apresentamos, neste relató-
rio, uma discussão no item ''ogulun bElEm lulO".
^ Ver a respeito da classificação das doenças em geral Roberto Lionetti, Barbara Fiore e,
especificamente sobre o campo psiquiátrico, ver obras de Piero Coppo nas referências
bibliográficas.

referências bibliográficas

AMSELLE, J. L E M'BOKOLO, E. (org.). Au coeur de Vethnies; ethnies,


tríbalisme et état enAfrique. Paris: Ed. La Decouverte, 1985.

AUGÉ, M. (org.). A construção do mundo: religião, representações, ideologia.


Lisboa: Ed. 70, 1978, Perspectivas do homem.

Ordine biologico, ordine sociale. La malattia, forma elementare


deiravvenimento. In: AUGÉ, M.; HERZLICH C. (org). 11 senso dei male. An-
tropologia, storia e sociologia delia

AUGE, M. Le sens des autres: actualité de l 'anthropologie. Paris: Fayard, 1994.


.80 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

BANNERMAN, R. H.; BURTON, J.; WEN-CHIEH, C. Traditional medicine


and health care coverage: readerfor helth administrators andpractitioners.
Genebra: World Health Organization, 1983.

BASTIEN, C. Folies, mythes et magies d'Áfrique noire. Propos de guérrisseurs


duMali. Paris: UHarmattan, 1988.

CALAME-GRIAULE, G. Ethnologie et langage, Ia prole chez les dogon. Paris:


Gallimard, 1965.

CARVALHO, E. A. Por um conhecimento selvagem. Agora, Universidade Esta-


dual Paulista Júlio Mesquita Filho, 1990.

CORIN E. (org). Regards anthropologiques en psychiatrie. Montréal: Ed. du


Girame, 1987.

COPPO, P. (org.). Medicine tradicionalle, psychiatrie etpsychologie enAfrique.


Roma: II Pensiero Scientifíco, 1988.

. E KEITA, A. (org.). Médecine traditionnelle: acteurs, itinéraires


thérapeutiques. Trieste: Edizione 1990.

. Categorie nosologiche delia medicina tradizionale dogon (Mali).


Parte seconda. I disturbi psichici. La ricerca folklorica, n.26, p. 98-106,
1992.

. (org.). Essai de psychopathologie dogon. Perugia/Badiagara: CRMT/


PSMTM, 1993.

. Interpretation des maladies et leur classification dans Ia médecine


traditionnelle dogon (Mali). II. Les troubles psychiques, Psychopatologie
Africaine, n. 26, v. 1, p. 35-60, 1994.

CNRS. La notion depersonne enAfrique noire. Paris (Colloques Intemationaux,


544), 1973.

DIETERLEN, G. Les ames des dogons. Paris: Institut d'Ethnologie, 1941.

. Uimage du corps et les composantes de Ia personne chez les


dogon. In: CNRS La notion de Ia personne en Afrique noire. Paris: CNRS,
1973. p. 205-229.
.81 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 5 7 - 8 3 , 2000

_. E GRIAULE, M. Le renardpâle. Paris: Institut d'Ethnologie,


1965.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Trad.


Eduardo B. Viveiros de Castro. Rio: Zahar, 1978.

FASSIN, D. Pouvoir et maladie enAfrique. Paris: Puf, 1992.

PIORE, B. Interpretation des maladies e leur calssification dans Ia médecine


traditionnelle dogon (Mali), Psychopatologie Africaine, 26 (1): 9-33, 1994.

GRIAULE, M. Masques dogons. Paris: Institut d'Ethnologie, 1938.

. Dieu d'eau (Entretiens avec Ogotemmêli). Paris: Fayard, 1965.

HAMPÂTÉBÂ,A. Vie et enseignement de Tierno Bokar. Le sage de Bandiagara.


Paris: Le Seuil, 1980.

. Amkoullel, Venfantpeul, Memoires. Paris: Actes Sud, 1991.

KAGAME, A. La philosophie Batu comparée. Paris: Présence Africaine,


1976.

LAPLANTINE, F. Maladies mentales et thérapies traditionelles en Afrique


Noire, Paris: Jean-Pierre Delarge, 1976.

. Antropologia da doença. Trad. Walter Lelis Siqueira. São Paulo:


Martins Fontes, 1976. 1991.

LEITE, F. R. R. A questão ancestral (Notas sobre ancestrais e instituições an-


cestrais em sociedades africanas: loruba, Agni e Senufo). Tese de doutorado,
FFLCH-USP São Paulo, 1982.

. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. África - Re-


vista do Centro de Estudos Africanos. São Paulo, USP, 1984.

. Bruxos e magos. África - Revista do Centro de Estudos Africanos.


São Paulo, USP, 14-15(1): 69-80, 1991/92.

LIONETTI, R. L'etnopsichiatria. La ricerca folklorica. ^Brescià, aprile, n.l7,


p. 3-6, 1988.
.82 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 5 7 - 8 3 , 2000

, ''Bana jugu": Ia malattia cattiva. Rapresetazioni dei contagio percezione


di una malattia nuova fra i guaritori tradizionali dei Mali [comunicação apresentada
no encontro «Ripensare TAIDS», Bolonha, 29/04/1994], 17p. (mimeo)

specchio dei Mali Roma-Bandiagara: Istituto ítalo-Africano, 1991.

. E PISANI, L. Coopération et santé au Mali. Roma: Istituto Italo-


Africano, 1992.

MORIN, E. O problema epistemológico da complexidade. Mira Sintra: Europa-


América, 1983.

MORIN, E. Método IV: As idéias. Mira Sintra: Europa-América, 1992.

NATHAN, T. E STENGER, I. Médicins et sorciers. Paris: Les empêcheurs de


penser en round, 1995.

. E LEWERTOWSKI, C. Soignen le virus et lefétche. Paris: Odile


Jacob, 1998.

NICACIO, F. (org). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990.

ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE SALUD. Promoción y desarrollo de Ia


medicina tradicional. Informe de una reunión de Ia OMS, Genebra, 1978.

RETEL-LAURENTIN, A. (dir.) Etiologie et perception de Ia maladie dans les


sociétés modernes et traditionnelles. Paris: UHarmattan, 1987.

SOW, I. Psychiatrie dynamique africaine. Paris: Payot Paris, 1977.

. Les structures anthropologiques de Ia folie en Afrique Noire. Paris:


Payot, 1978.

STAVENHAGEN, R. Las classes sociales en Ias sociedades agrarias. México:


Siglo XXI, 1970.

TEMPELS, P La philosophie Bantu. 2. ed. Paris: Présence Africaine, 1961.

TINTA, S. e PAIRAULT, C. Enquête socio-sanitaire dans le cercle de


Bandiagara (1989-1990). Bamako: Ministere de Ia Santé Publique et des
Affaires Sociales (Rapport de recherche, 86p.), 1990.
.83 barros, denise dias. Imaginário - usp, n« 6, pág. 57-83, 2000

THOMAS, L. Le pluralisme cohérent de Ia notion de personne en Afrique noire


traditionnelle. In: CNRS, La notion de persone en Afrique noire. Paris, p.387-
420, 1973 (Colloques n.544).

UNESCO. História Geral da África, 2 vols. São Paulo: Ática, 1980.


84 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

cxmsiáeraçôes sobre justiça


e violência
o casiponês mraibano como

marcelo gomes justo*

You have to use fantasy in order to show dijferent sides ofreality, just
how it can blend.
J. Hendrix

Ao estudar o conflito pela terra numa fazenda do município de Conde, vizi-


nho ao sul de João Pessoa, Paraíba, deparei-me com elementos que naquele mo-
mento não propunha tentar decifrar, mas que nem por isso deixaram de provocar
inquietação. A presença do "mágico" naquela comunidade de agricultores da Zona
da Mata paraibana revelou-se quando um morador local contou, de passagem,
que estava com "uma oração forte no bolso" que o protegeu de um capanga que
atirava contra dezenas de agricultores numa manifestação pública. O que era aquilo?
"Uma oraçãozinha que tinha no bolso para me proteger", respondeu Aurélio'.

^ Sociólogo, mestre em Geografia e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário


e da Memória (NIME) e do Laboratório de Estudos do Imaginário (LABI), Instituto de
Psicologia, U S P
85 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

Não me era possível captar e compreender o significado daquilo com mais per-
guntas. Seria preciso mergulhar mais naquele universo cultural; mas, até então,
trabalhara a complexidade do conflito agrário, o problema das relações com a lei
e com o Poder Judiciário e a questão da justiça social sem especialmente atentar
para episódios do "mágico" que se manifestaram. Agora procuro resgatar as rela-
ções entre o pensamento mágico, a Igreja, a violência e a Justiça e, assim, tentar
interpretar o sentido dessas manifestações do pensamento mágico naquela comu-
nidade. O pressuposto neste artigo é que no universo religioso se encontra um
sentido para as mortes que ocorreram no conflito.
O "pensamento mágico" é tomado aqui no sentido que Lévi-Strauss lhe atribui.
Em primeiro lugar é preciso dizer que este autor problematiza a contraposição entre
pensamento "mítico ou mágico" e "conhecimento científico", diferenciando os dois
mas não os colocando como estágios desiguais de desenvolvimento do espírito hu-
mano. As duas formas de pensamento respondem à necessidade de ordenação do
pensamento humano e, nesse sentido, o autor descarta a tese de o pensamento mítico
ser uma forma inicial de ciência e o coloca como uma expressão metafórica da
ciência. Ou melhor, existem dois modos diferentes de pensamento científico não
hierarquizados, como "dois mVeis estratégicos em que a natureza se deixa abordar
pelo conhecimento científico — um aproximadamente ajustado ao da percepção e
ao da imaginação, e outro deslocado (...), dois caminhos diferentes: um muito pró-
ximo da intuição sensível e outro mais distanciado" (Lévi-Strauss, 1989:30). Neste
sentido, o paralelo entre os dois modos de pensamento promove uma quebra na
convencional relação sincronia e diacronia: enquanto o "pensamento mítico elabora
estruturas organizando os fatos ou resíduos de fato", a ciência, com um começo
datado, "marcha" criando meios e resultados de fato através de estruturas baseadas
em hipóteses e teorias. Isto reafirma o argumento de que seria enganoso tratar as
duas estruturas como fases da evolução do saber (Lévi-Strauss, 1989: 37). O pensa-
mento "selvagem" ou "científico" responde à necessidade humana de conhecer,
classificar e criar significações, diria Lévi-Strauss.
Para o antropólogo belga, o mítico aparece como uma forma intelectual de
bricolage, no sentido de que "é peculiar ao pensamento mítico, assim como ao
bricolage no plano prático, a elaboração de conjuntos estruturados não diretamente
com outros conjuntos estruturados mas utilizando resíduos e fragmentos de fatos
(...) testemunhos fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade" (Lévi-
Strauss, 1989:36-7). Assim, o bricoleur trabalha, com um número finito de utensíli-
os e materiais, de modo que na composição do conjunto não há uma relação com
um projeto particular ou do momento, mas há apenas um resultado contingente. Os
meios para o bricoleur não se definem por um projeto, mas pelo seu caráter instru-
mental, são elementos recolhidos porque podem "sempre servir".
O ponto principal ao utilizar o trabalho de Lévi-Strauss é que o grupo de
camponeses estudado, em suas lutas, se aproxima de um bricoleur da justiça;
86 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

pois, se utiliza de fragmentos do sistema de justiça oficial, da religiosidade católi-


ca e de aspectos mágicos para construir uma noção própria de justiça, que deno-
minarei de "justiça camponesa"^ Houve uma interposição da ação do Poder Judi-
ciário com aspectos da religiosidade local. Pode-se dizer que o pensamento mági-
co daqueles camponeses realizou uma bricolage: uma composição por meio de
fragmentos da justiça oficial com fragmentos do universo religioso, uma vez que
o pensamento mítico trabalha também com um repertório de elementos tomados
de empréstimo de outros conjuntos culturais (Cf. Monteiro, 1986: 56).
A presença do mágico abriu a porta para a entrada da Igreja na comunida-
de. Frei Ambrósio^ desde seu tempo da faculdade de teologia, na década de 70,
atuava na região do litoral sul paraibano. Então escolheu ficar na paróquia de
Conde. Ele contou que já havia entre os moradores daquela fazenda a devoção a
São Sebastião quando começou seu trabalho de evangelização no local. Certa-
mente a presença da Igreja Católica na comunidade, por intermédio de Frei
Ambrósio, foi intensa; participando da luta pela desapropriação e colaborando
na organização dos antigos moradores.

versões ou fatos

O conflito pela terra em Conde tem como fatos concretos duas mortes: a de
Zé de Leia e a de D. Bila, ocorridas entre 1988 e 1989. Sobre os fatos, abre-se
um leque de representações elaboradas por aqueles envolvidos no conflito, as-
sim como manifesto nos autos dos processos penais. Conforme demonstrado
por Geertz (1983), a lei é representação e saber local; então, procura-se aqui
trazer à tona as representações que os camponeses de Conde criaram sobre jus-
tiça e aplicação da lei. Vale lembrar que essas duas mortes só podem ser enten-
didas quando inseridas no contexto do conflito pela terra. Isoladas deste contex-
to não há explicação para as mesmas (Cf. Justo, 2000).
Os moradores da fazenda declaram estar no local há cinco gerações e o
conflito aberto com o proprietário teve início por volta de 1980. Na década de
40, a propriedade do imóvel foi registrada oficialmente. Com isso, os sitiantes
passaram a ser moradores de condição (eles tinham que trabalhar um dia por
semana para o proprietário). Essa situação perdurou até final da década de 70,
quando ocorreu uma divisão da fazenda entre os dois herdeiros do proprietário.
No início dos anos 80, o novo dono, absenteísta, ameaçou de expulsão os mora-
dores, com a desculpa de ali criar gado. Porém, ele finha negócios imobiliários
e houve um crescimento urbano do município como pólo turístico. Como en-
controu resistência por parte dos antigos moradores, o proprietário registrou
queixas na delegacia de polícia e promoveu ameaças por meio de capangas.
87 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

Essa situação tensa perdurou até o cume do conflito, no final daquela década.
Entre 1987 e 1989, os camponeses envolvidos na luta pela desapropria-
ção da fazenda organizaram-se numa associação de moradores e em sindica-
to. Em contrapartida, outro grupo de lavradores, que apoiava o principal ca-
panga e cuja presença na fazenda era mais recente, também formou uma asso-
ciação e um outro sindicato.
Em 22 de abril de 1988, os antigos moradores ocuparam a sede da superin-
tendência regional do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e de Reforma
Agrária) em João Pessoa, para pressionar as desapropriações das fazendas em
litígio no município. Ficaram acampados aguardando a desapropriação. No dia
2 de maio de 1988, saiu publicado o decreto de desapropriação da fazenda para
fins de reforma agrária. Porém, o mandado de posse só foi emitido após dois
anos e duas mortes, em 15 de junho de 1990. Com a posse legalizada, a área
ficou definida: 593 hectares. Em novembro de 1990 estava feita a transcrição
imobiliária do imóvel, registrado-o em nome do INCRA.
Na noite de 29 de dezembro de 1988, o agricultor José Francisco Avelino,
conhecido localmente por Zé de Leia, foi assassinado na porta de sua casa
quando conversava com sua mulher. Ele foi um participante ativo da Comuni-
dade Eclesial de Base (CEB) local e da luta pela desapropriação da fazenda.
No local do homicídio foi erguida uma cruz. Nesta cruz há uma placa em
homenagem a Zé de Leia com o seguinte trecho de um hino religioso: "O
dono da terra é Jesus/ Jesus é o meu protetor/ nós somos habitantes da terra de
Jesus que eu sou morador".
Os acusados do homicídio foram Zinho e Florisvaldo, que trabalhavam como
administrador e capanga do proprietário, e eram vizinhos da vítima. Ambos foram
indiciados em inquérito policial e tiveram a prisão preventiva decretada em 12 de
janeiro de 1989. Florisvaldo foi preso em 1990 e o Tribunal do Júri o absolveu em
1993. Zinho ficou foragido por quase dez anos e em dezembro de 1997 voltou para
sua casa com "habeas corpus". Foi condenado à reclusão em junho de 1999, mas
aguarda recurso em liberdade"^.
Ao chegar ao município quando ocorreu o homicídio. Frei Ambrósio teria per-
guntado quem seria o autor da morte e responderam-lhe que não sabiam. No entan-
to, para o frei, só poderia ter sido Zinho, devido à seqüência de fatos que vinham
acontecendo havia tempo. Relatou que Zinho tinha feito pista de corrida dentro da
fazenda, colocando em risco a vida de adultos e crianças e, em razão disto, obrigan-
do a comunidade a colocar lombadas de troncos de coqueiros na referida estrada.
Zinho teria ameaçado os antigos moradores da fazenda e afirmado que iria "morrer
gente". Outra acusação feita contra Zinho foi a de ter invadido com o carro uma
partida de futebol da comunidade, no mesmo ano do homicídio de Zé de Leia. Na
polícia (30 de dezembro de 1988), Frei Ambrósio declarou que Zinho era bastante
temido por todos, tendo criado em tomo de sua pessoa uma situação de intimidação
87 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

para com os demais habitantes da região. Os moradores tinham verdadeiro temor


por ser Zinho um homem "violento e traiçoeiro", enfatizou. Enfim, as declarações
do frei fazem uma associação direta de Zinho com o "mal" e com a "injustiça" e, por
contraste, legitima a luta dos antigos moradores.
Como havia o mandado de prisão e Zinho havia sido visto solto, em 30 de
março de 1989, três meses depois da morte de Zé de Leia, cerca de setenta mora-
dores foram protestar em frente ao Fórum da comarca vizinha, pedindo sua pri-
são. Por volta das 15 horas, Beto, tio de Zinho, saiu do prédio do Fórum acompa-
nhado de uma escrivã, entrou sozinho em sua caminhonete e a dirigiu contra os
manifestantes. Ele os atropelou por três vezes e em seguida atirou contra eles.
Resultado: 23 feridos, sendo morta Severina Rodrigues da Silva, conhecida como
Dona Bila. A polícia chegou somente quando todos já haviam ido.
O morador Aurélio narra da seguinte maneira: ele estava de costas e sentiu a
caminhonete se aproximando e, enquanto se afastava, alertou os demais. Beto
passou por mais de uma vez seu carro sobre algumas pessoas. Então, AuréHo
pegou uma pedra no chão e atirou contra o carro, outros fizeram o mesmo. Estou-
raram o pára-brisa, mas não atingiram o motorista. Este desceu do veículo e co-
meçou a dar tiros de revólver. Aurélio o encarou de frente; disse que foi "muito
astucioso", pois estava com uma "oração forte no bolso" que o protegeu. Não foi
ferido, mas vários outros presentes levaram tiros. D. Bila não sobreviveu.
A "oração forte" de Aurélio o protegeu. Sua oração lhe dá o sentido por não
ter sido ferido ou morto e, por isso, teve essa "eficácia simbólica". Esse homem,
ao fazer a ligação entre Céu e Terra através de sua oração, pôde escapar de outro
com arma de fogo; pois, a Justiça, a Verdade e o Bem estavam do lado dele.
Houve uma troca desigual de violência, tiros contra pedradas, mas ainda assim ele
encontrou defesa na oração.

Passada essa luta de vida e morte ainda há questões candentes para os mora-
dores da fazenda em Conde. Uma delas diz respeito ao assentamento. Apesar de a
fazenda ter sido desapropriada em 1988, os moradores ainda aguardam por parte
do INCRA a demarcação das parcelas familiares, para que cada um tenha seu
título de propriedade. Esse problema da demarcação de parcelas está ligado à não
aceitação pelos antigos moradores em dividir a propriedade com os irmãos de
Zinho. Até 1999, a superintendência do INCRA não tinha chegado a uma posição
em comum com os moradores sobre assentar os irmãos de Zinho ou indenizá-los.
Outra questão é que, em 1997, se reiniciou a luta por justiça devido à presen-
ça do acusado do homicídio de Zé de Leia. Zinho voltou a morar no local com a
revogação de sua prisão preventiva em dezembro de 1997. Os antigos moradores
não aceitaram a presença dele no local e exigiram sua prisão.
Desde a morte de Zé de Leia, em 29 de dezembro 1988, uma missa é reza-
da todo ano, nessa mesma data, no cruzeiro erguido no local do assassinato. A
89 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 8 4 - 9 7 , 2000

missa do nono aniversário dessa morte, em 29 de dezembro de 1997, foi inici-


ada com um hino com a seguinte mensagem: "Não temais os que matam o
corpo. Não temais os que armam ciladas. Não temais os que vos caluniam,
nem aqueles que portam espadas. Não temais os que tudo deturpam pra não
ver a justiça vencer. Tende medo somente do medo, de quem mente pra sobre-
viver (bis)". Após este canto. Frei Ambrósio perguntou aos presentes o que
eles queriam que Deus perdoasse, disse que eles deveriam pedir para Deus
perdoar o que sentem que está errado. Eles, então, reclamaram da falta de
pessoas naquela missa (em comparação aos anos anteriores) e que as mesmas
estariam amedrontadas devido à volta de Zinho. Os presentes protestaram
contra a presença de Zinho pelas redondezas e disseram que não conseguiam
perdoá-lo. O Frei constatou que era preciso começar uma campanha por justi-
ça pela morte de Zé de Leia e enfatizou que deveriam tornar público aquele
anseio de justiça, para que não ficasse só em "cochichos sobre a presença de
Zinho na vizinhança". Conclamou então os moradores a começarem uma cam-
panha pública pela prisão de Zinho, sem medo, conforme o primeiro hino
cantado. Lembrou que já haviam feito esse movimento uma vez e poderiam
realizá-lo de novo. O frei constatou que, para os antigos moradores, era o
momento de retomar o caso de Zé de Leia e fazer pressão junto a jornais e
televisão para que a justiça fosse feita. Por fim. Frei Ambrósio prometeu que
a partir de 1998 eles recomeçariam a luta.
O saldo da missa foi que "o perdão" se metamorfoseou em campanha por
justiça. O medo provocado por Zinho transformou-se numa nova luta em nome
da memória de Zé de Leia. Durante a missa, defronte o cruzeiro, pôde-se invo-
car uma verdade e fazer um julgamento: para a comunidade. Zinho é culpado e
não pode ser perdoado.
No dia 20 de janeiro de 1998, houve uma procissão de São Sebastião,
padroeiro da comunidade, como ocorre todo ano nesta mesma data. A procis-
são, que saiu da igreja, percorreu o povoado vizinho e voltou para a origem,
passou por duas vezes em frente à casa de Zinho com ele no quintal. Na se-
gunda vez, a "puxadora de hinos" comentou pelo alto-falante do carro de som
a morte dos companheiros e a não punição dos acusados. Assim, antes da
sessão do Tribunal do Júri para Zinho, em 1999, ele já havia sido julgado pela
comunidade e por Frei Ambrósio, como foi visto na missa e na procissão. Ele
foi associado ao "mal" e à "injustiça".
Nesses exemplos, percebe-se que, para os antigos moradores, a religiosidade e
noções de justiça se aproximam. Com essa junção a Igreja oficial se fortaleceu
localmente. Através de elementos religiosos (festas para santo, missa e procissão) se
expressa a reivindicação por justiça. A Igreja privilegia as vias institucionais e, por
isso, age como uma espécie de mediadora entre a comunidade e o sistema de justiça
oficial. Porém, como nas manifestações da comunidade por justiça há a vingança.
90 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

então, nota-se que ocorre uma incorporação fragmentária do universo religioso. A


comunidade se apropria do que está em consonância com sua moral.

as concepções locais de justiça

Em contato com a comunidade estudada, era comum ouvir diferentes ma-


nifestações por justiça. Vejamos algumas das noções locais de justiça.
Sobre a volta de Zinho, Leila — na missa de 29 de dezembro de 1997 —
disse que Zé de Leia e Bila só estariam "mortos" quando todos ali [os morado-
res] largassem a luta, enquanto estivessem lutando os dois permaneceriam "vi-
vos". Em outro momento, essa mesma moradora confirmou que não conseguia
perdoar Zinho e que quando rezava o "Pai Nosso"^ pensava em cada uma das
palavras, mas não se sentia convencida; por isso, preferia a reza "Crê em Deus
Pai"^ Para ela, se a comunidade tivesse o mesmo modo de pensar que o seu.
Zinho e Beto estariam "presos" como Zé de Leia e dona Bila estão.
Sua irmã, Leonora, pensa do mesmo modo: "Zinho devia ter o mesmo fim que
tiveram Zé de Leia e Bila". Segundo ela, as pessoas têm medo da "justiça" porque não
há justiça para o "criminoso", só há para o trabalhador que ao lutar por terra é preso.
Aurélio fez os seguintes comentários: "Uma semana após o enterro [de Zé de
Leia] teve um ato público no Conde com oito mil pessoas — toda a região do
Brejo e do Litoral paraibano pedindo para a Justiça prender Zinho. Ou prendesse
o assassino ou a gente ia fazer justiça com as próprias mãos. Ou a Justiça faz
justiça ou a comunidade faz justiça com as próprias mãos. A gente pensava em
fazer era acabar com tudo que ele tivesse, com carro, com a família toda".
Ele contou que assistiu todo o júri de Beto. "Se ele fosse solto, a turma ia linchá-
lo (...). Tinha sido conversado, a gente ia linchá-lo". O Tribunal do Júri da comarca de
Alhandra condenou Beto, em 28 de fevereiro de 1992, a 25 anos de reclusão.
O depoimento de Aurélio sintetiza a luta ao dizer que: "A justiça foi nós".
Outro momento em que os camponeses reivindicaram para si a vontade de
fazer justiça foi num ato público em Conde pela prisão de Zinho e de Beto.
Numa das muitas faixas que carregavam estava grafado que exigiam justiça,
caso contrário iriam fazê-la.
Predomina entre esses membros da comunidade uma visão múltipla em
relação à palavra "justiça". Às vezes, a associam ao padrão de justiça criminal,
por outras, à idéia de tomar a justiça nas próprias mãos e, algumas vezes, a uma
justiça divina. E, principalmente, transitam entre a associação do que é justo
com o que é de direito e também entre uma concepção de que a Justiça privile-
gia os ricos em detrimento dos pobres. A filha de dona Bila é quem coloca outra
dimensão: "não tem justiça nenhuma que dê conta da vida dela".
91 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

violência^ sistema judiciário e justiça camponesa

Como visto, uma das injustiças reclamada pela comunidade foi o assassinato de
seus entes. A violência necessita de uma explicação e, para tal, Girard (1990) argu-
menta que é preciso diferenciá-la. Para o autor, a morte em si já é violência e, portanto,
a vida em qualquer sociedade se assenta na busca de explicação para este dado da
natureza. Há uma violência fundadora que permite a vida em sociedade porque estan-
ca o transbordamento de uma violência sem fim. Ao encontrar no rito sacrificial a
violência que impede a vingança desenfreada, o antropólogo francês mostra que vio-
lência e sagrado são inseparáveis e, por isso, não há sociedade sem religião.
Por meio de análises de conteúdo de textos literários e de mitos e num diálogo
aberto com a obra de Lévi-Strauss, Girard (1990) defende a tese de que o sacrifício
protege a comunidade inteira de sua própria violência, porque a vítima expiatória é
o fundamento de qualquer ordem cultural. A eficácia sacrificial elimina a violência
intestina (desavenças, rivalidades, ciúmes, disputas entre próximos). Assim, o sa-
crifício tem por função impedir a explosão do conflito ou de um de ciclo infindável
de vinganças. A explicação então para a escolha da vítima sacrificial é de que ela
não despertará a vingança. Assim, o autor coloca a relação entre violência e sagrado
como central para o estabelecimento de qualquer ordem social.
Girard aponta um nó do pensamento moderno: entender o mecanismo da
vítima expiatória e, para desatá-lo, o autor opõe sacrifício e Poder Judiciário. A
necessidade de vingar a morte seria ainda uma questão em aberto. Na socieda-
de moderna, o Poder Judiciário põe fim a um ciclo vingativo, afasta a ameaça
da vingança ininterrupta. A vingança passa a ser taxada, pelo Poder Judiciário,
de "vingança pessoal". Logo, deduz o autor, se há vingança pessoal, o Judiciá-
rio é a vingança pública, nunca explicitada mas que não difere do "princípio de
vingança" (Girard, 1990: 29). Com o Judiciário, tem-se a passagem do preven-
tivo para o curativo, pois, este poder representa uma racionalização da vingan-
ça, uma técnica eficaz de cura. A hipótese confirmada pelo autor é que, nas
sociedades sem o Judiciário, o sacrifício é essencial, mas não o substitui.
O mundo moderno, segundo o antropólogo, tem como essência ter-se instala-
do numa crise sacrificial, sem cair num ciclo de vinganças. A crise sacrificial é a
perda da diferença entre a violência impura (ou "má") e a violência purificadora (ou
"boa"). Mas, a violência continua a nos ameaçar como uma questão a ser decifrada
tanto na prática quanto intelectualmente. Por isso, Girard acredita que a chave desta
questão está nos mecanismos da vítima sacrificial.
No caso aqui estudado, que não se insere no contexto de uma sociedade
com ritos sacrificiais, constata-se que há uma convivência entre o moderno e o
costumeiro no âmbito do legal, de modo que não há predomínio da lei em Có-
digo nem de uma lei tradicional oral (Cf. Justo, 2000)^. Poder-se-ia até dizer
que a luta estaria encerrada porque o Judiciário pôs um fim a um possível ciclo
92 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

de vingança, segundo a concepção de Girard (1990); pois, Florisvado, mesmo


absolvido, deixou a comunidade, o acusado pela morte de dona Bila foi preso e
Zinho, ainda solto, obteve uma primeira sentença condenatória. Logo, uma vin-
gança pessoal contra Zinho ficou em estado latente. Mas, o conflito permanece
em aberto porque a luta por justiça não se restringe à prisão desse último réu. E,
como será visto, houve ações com caráter de vingança.
Indo para um quadro nacional de dezenas de mortes anuais decorrentes de
conflitos agrários, constata-se que no Brasil, mesmo havendo um Estado moderno,
os camponeses estão como "vítimas sacrifíciais" da propriedade da terra. A socieda-
de como um todo "paga" o preço da estrutura agrária do país com as mortes de
trabalhadores rurais^ E, na maioria dos casos, o Judiciário não tem calado o desejo
de vingança por parte dos camponeses. Empiricamente, o Judiciário não é a última
vingança como gostaria Girard, pois, apenas uma porcentagem pequena dos casos
de homicídios decorrentes de conflitos fundiários chega a ter uma atuação desta
instituição, e, mesmo quando há processos penais, raramente os proprietários, que
são os responsáveis ou mandantes, chegam a ser réus; portanto, a "vingança públi-
ca" não recai sobre estes'^. Como a atuação do Poder Judiciário é mínima, essas
mortes aparecem como "sacrifíciais", como se não necessitassem de ser vingadas;
lembrando aqui o trabalho de Girard que define a vítima sacrifícial por dispensar a
vingança e que o Judiciário é vingança pública.
A caracterização de bricoleur da justiça propicia a ultrapassagem da situação
dual de rito sacrifícial ou Poder Judiciário. O camponês de Conde faz bricolage da
Justiça ao cobrar das autoridades responsáveis prisão e sentença condenatória atra-
vés de idas ao Fórum e de passeatas e também ao conciliar essa demanda com as
festas e cerimônias religiosas. Além disso, esses moradores agem e sofrem ações
que também se abrigam sob a noção de bricolage da justiça ou "justiça campone-
sa", mas que podem soar para ouvidos outros como violência ou vingança.
Procura-se aqui ampliar o uso da noção de justiça camponesa trabalhada por
Almeida (1997). Ao estudar o linchamento de um pistoleiro por posseiros no
Maranhão ocorrido em 1985, esse autor aponta uma saída para a contraposição
entre o sistema judiciário e outras manifestações de justiça. "Importa (...) romper
com os esquemas interpretativos que consideram este tipo de vingança privada [o
"linchamento"] ora como revivescência, ora como sobrevivência, sempre explicada
por um certo recuo a regras de conduta de um passado remoto e a oposição entre
'primitivo' e 'moderno' ou entre a 'barbárie' ou 'civilização'. A partir daí, é que se
pode asseverar que os atos aqui analisados não estão inseridos num ciclo de vin-
gança ou numa seqüência de represálias, e tampouco podem ser explicados como
uma forma de vingança que substituiria o sistema judiciário inoperante" (Almeida,
1997: 95 — os grifos são meus). Assim, segundo o autor, a execução sumária
cometida pelos posseiros poderia ser classifícada como um ato de "justiça campo-
nesa", mas sem constituir um sistema jurídico completo que se contraponha aos
93 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

códigos da sociedade nacional. Para Almeida, os atos punitivos tratados não têm
regularidade, não constituem um código e os camponeses em foco não possuem
um sistema de direito privado elaborado a partir de costumes; suas práticas de
justiça são contingências (Almeida, 1997: 125).
O fato de ser contingente reforça que a justiça camponesa é bricolage. Essa
noção de justiça camponesa abre uma trilha interpretativa para atos dos morado-
res de Conde. Os camponeses que lutaram pela desapropriação, organizados numa
associação de moradores, rivalizaram com o grupo vizinho formado por alguns
capangas. Nessa contenda, ambos os lados cometeram ações contra o inimigo que
julgaram legítimas. Tais ações descritas a seguir podem ser classificadas em dois
grupos — derrubada de edificações e destruição de roçados — e têm uma lógica
de revide, isto é, os dois lados em disputa cometem:
Zé de Leia teve sua casa derrubada quando estava em construção e ele a
reergueu. A esposa de Zé de Leia disse que acredita ter sido Zinho quem destruíra
sua casa. Não há menção de quando isso ocorreu.
Florisvaldo contou que no dia da morte de Zé de Leia, ele e os familiares de
sua esposa foram em sua caminhonete, de manhã, para a fazenda vizinha. Os
familiares de sua mulher derrubaram as colunas do pavilhão de reunião da Asso-
ciação de Moradores, quebraram e atearam fogo nos bancos. O depoimento de
sua mulher acrescenta mais ao fato: disse que costumava visitar as terras vizinhas,
onde morava sua tia e colher frutas das árvores. Quando foi criada a Associação
de Moradores, ela e seus familiares teriam sido impedidos pelos membros desta
entidade de tirar frutos das árvores. Devido a isso, a informante e seus familiares
começaram a construir uma casa que teria sido derrubada por membros da Asso-
ciação de Moradores. Depois de derrubada tal casa, os membros da associação
iniciaram a construção daquele pavilhão que foi destruído.
Treze dias depois da morte de D. Bila, membros da Associação de Morado-
res derrubaram a casa, quebraram os tijolos, destruíram os móveis e objetos e
ameaçaram a mulher de Zinho. Ela registrou queixa na delegacia de Conde.
Zinho tinha uma namorada que era prima de Aurélio e morava perto deste; a
comunidade dos antigos moradores, alguns dias após a morte de Zé de Leia,
destruiu a casa dela e a expulsou dali.
Parte dos antigos moradores estava tomando conta de um roçado quan-
do houve a morte de Zé de Leia. Esse roçado era resultado de um mutirão
realizado em resposta à destruição do mesmo feita por Zinho com dezenas
de homens armados no dia 26 de dezembro de 1988, quando os antigos mo-
radores tinham plantado pés de inhame. Nesta mesma área. Zinho tinha pre-
parado a terra para plantar, segundo sua declaração.
Em 7 de março de 1989, o presidente da Associação Comunitária dos Tra-
balhadores Rurais — grupo de Zinho - encaminhou um ofício ao Juiz com uma
lista de vinte e duas pessoas de sua associação (inclusive a mãe e o irmão de
94 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

Zinho) que sofreram ameaças ou destruição de seus roçados pela "associação


de Frei Ambrósio". Alguns nomes dessa lista teriam registrado queixa na dele-
gacia de Conde pela destruição de roçado sofrida.
Nas ações descritas acima nota-se um mecanismo de revide: para cada ação
há uma reação. Algumas dessas ações, como a destruição da casa da mulher de
Zinho e a expulsão da namorada dele, foram reação a uma violência maior que foi
o homicídio. Outra ações, como a mútua destruição de roçados, sugerem uma
troca de violência mais equilibrada. Mas, no caso anterior, houve uma troca desi-
gual de violência, só destruir casa não foi suficiente para aplacar o sentimento de
injustiça diante dos assassinatos de companheiros.

justiça como saber local

O sentido para as ações descritas acima é encontrado num "saber local",


conforme trabalhado por Geertz (1983) de que há, em lugares particulares, coisas
particulares com significados particulares. Como um "saber local" (Geertz) é que
se pode interpretar a luta por justiça dos camponeses de Conde.
Conhecendo o que houve localmente, constata-se que a luta por justiça tem
várias faces e, assim, pode-se formular a noção de camponês como bricoleur da
justiça. É uma noção que aglutina elementos do pensamento religioso e, conse-
qüentemente, de uma moral com dados da racionalidade moderna expressa nos
mecanismos da Justiça oficial. Trazendo para o âmbito nacional, nota-se que se os
homicídios decorrentes de conflitos agrários cabem na esfera de atuação do Poder
Judiciário, há outras manifestações que precisamos atentar e que não se encaixam
perfeitamente na lógica da incriminação.
Evidencia-se que o conflito em Conde não acaba, passa por fases. Assim,
há um sentido naquelas mortes: é a luta contínua. Vejamos: primeiro houve uma
luta direta dos antigos moradores com o proprietário e com o Estado pela desa-
propriação. O dono os ameaçava, dizia que criaria gado na fazenda, mandava
capangas e policiais intimidá-los. Num outro momento, quando a fazenda foi
desapropriada, a luta continuou contra os capangas. Os camponeses foram mais
fortes do que as ameaças e conseguiram a posse da fazenda. Então, chegou-se
ao auge do conflito com os homicídios; enquanto isso, o ex-proprietário negoci-
ava com o governo o valor da indenização pelas benfeitorias da área desapropri-
ada. Atualmente os camponeses de Conde pelejam com o Estado para obter e
pagar financiamentos e receber os títulos de propriedade. Olhando para essa
seqüência, pode-se entender a expressão de Aurélio: "a justiça foi nós".
Em nome da memória dos mortos a luta dos moradores continua. Há então
um sentido para continuar as reivindicações que, logicamente, não é o único.
95 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

Mas, lutar, para eles, também é um jeito de "vingar" as mortes, pois continuam
a cobrar a atuação do Poder Judiciário e a realizar missas e festas, quando tam-
bém clamam por justiça.
Mesmo buscando interpretar o sentido daquela "oração forte" não é possí-
vel esgotar todo seu mistério. Resta a magia que permitiu a aquele camponês
sobreviver para contar sua luta por justiça.

Resumo: O artigo trata de um recorte específico num conflito agrá-


rio no município de Conde na Paraíba: a luta por justiça. Focaliza-
se como, ao lutarem pela terra, os camponeses do local constróem
uma concepção própria de justiça numa espécie de bricolage, no
sentido que Lévi-Strauss atribui ao termo. Mostra-se também como
a justiça tem uma dimensão de ''saber local" (Geertz).

Palavras-chaves: camponês, pensamento mágico, justiça, violência,


bricolage.

Abstract: This article analyses an specijic point in a conflict for land


between peasants and landowners in Paraiba, Northeast ofBrazil: afight
for justice. Focusing on how the peasants build their own conception of
justice like a bricolage, as Lévi-Strauss conceptualizes it. It shows that
there is a ''local knowledge (Geertz) dimension when we deal withjustice.

Keyví^ords: peasant, magic thought, justice, violence, bricolage.

notas

' Para preservar a privacidade da comunidade, o nome da fazenda foi omitido e todos os nomes de
pessoas são fictícios, inclusive o batismo religioso do pároco da comunidade. As exceções são os
nomes de Zé de Leia e de Bila em respeito a suas memórias.
^ Tomo de empréstimo a expressão "justiça camponesa" do texto de Almeida (1997), que a
trabalhou de um modo circunscrito a um episódio, para lhe dar mais um sentido.
^ Frei Ambrósio atua em Conde desde a década de 70 e hoje em dia é conhecido na Paraíba pela
sua contribuição à causa camponesa, tendo chegado a ser preso e processado por colaborar na
organização de ocupações de terra. Foi eleito deputado estadual em 1998.
^ Há novo julgamento de Zinho marcado para dezembro de 2000.
96 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

A versão dessa reza na missa da morte de Zé de Leia é a seguinte: "Pai nosso/ que estais no
Céu/ santifícado seja Vosso nome/ venha a nós o Vosso reino/ seja feito os Vossos proje-
tos/ assim na Terra/ antecipando o que será viver no Céu./ O pão nosso de cada dia dai a
nós e ao nosso irmão/ Como fruto de quem trabalha e constrói/ essa nação/ e perdoai
nosso egoísmo/ e prometemos perdoar também a quem nos ofender/ pra não sermos
instrumento de egoísmo e opressão/ libertai nosso coração./ Pois teu é o poder/ livrai-nos
do mal/ Teu pai também trabalha/ livrai-nos do mal./ E nós trabalharemos pra fazer o
mundo mais irmão/ livrai-nos do mal".
"Creio em Deus Pai todo poderoso/ criador do Céu e da Terra e em Jesus Cristo, seu único
filho, Nosso Senhor/ Nasceu da Virgem Maria, padeceu sobre Pôncio Pilatos/ Foi crucifi-
cado, morto e sepultado/ Subiu aos céus, ressuscitou no terceiro dia/ Está sentado à direita
de Deus Pai, todo poderoso/ D'onde há de vir julgar os vivos e os mortos/ Creio no Espírito
Santo, na Santa Igreja Católica, na ressurreição da carne, na união dos santos, na rendição
dos pecados, na vida eterna/Amém".
Para uma análise da relação dialética entre o moderno e o costumeiro no âmbito legal
entre ações de camponeses, ver Moura (1988).
Temos um quadro de concentração fundiária em que, pelo menos desde 1940, menos
de 2% do número de estabelecimentos agrícolas do país ocupam uma área que osci-
la na faixa de 50% da área total de propriedades. Em conseqüência, há um número
imenso de estabelecimentos com menos de 5 0 hectares. Esses números têm pouca
variação até os dias de hoje.
D e acordo com dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) houve, entre
1987 e 1989, 177 casos de conflitos agrários em todo o Brasil que resultaram em homi-
cídios de pessoas envolvidas na luta camponesa. Desse total de 177 casos para o perí-
odo de três anos, 16 tiveram uma sentença final pelo Poder Judiciário, o que representa
9% do total (Justo, 2000: 13).

referências bibliográficas

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Linchamentos: atos de justiça campo-


nesa entre a humanização da penalidade e a desumanização do indígena. In:

ANDRADE, Maristela de Paula (org.). Justiça Privada e Tribunal: camponeses


no banco dos réus?, Gol. Célia Maria Corrêa - Direito e Campesinato, Vol. 2.
São Luís: Mestrado de Políticas Públicas/ UFMA, 1997. p. 85-132.

GEERTZ, Clifford. Local Knowledge: fact and law in comparative perspective.


In: Local Knowledge — further essays in interpretive anthropology. Basic Books,
1983. p. 167-234.
97 justo, marcelo gomes. Imaginário - usp, n® 6, pág. 84-97, 2000

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e


Terra/Ed. Unesp, 1990 [1972].

JUSTO, Marcelo Gomes. Capim na Fresta do Asfalto: conflito pela terra em


Conde, Zona da Mata paraibana. São Paulo, Dissertação de Mestrado apresen-
tada ao Departamento de Geografia/ FFLCH/ USP, 2000.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989


[1962].

MONTEIRO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. São Paulo: Ática, 1986.

MOURA, Margarida Maria. Os Deserdados da Terra -A lógica costumeira e judicial


dos processos de expulsão e invasão da terra no sertão de Minas Gerais. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

igreja católica romaria


no brasil e a igreja
ortodoxa na rússia^^
ralph delia cava**

Este ensaio focaliza problemas atuais enfrentados pela Igreja Católica Ro-
mana no Brasil e pela Igreja Ortodoxa Russa na república pós-soviética e multi-
étnica hoje denominada "Federação Russa". Na medida do possível tratarei com-
parativamente tanto dos problemas quanto das instituições, ainda que de forma
seletiva, em virtude do meu interesse especifico pelas reügiões transnacionais con-
temporâneas, assunto ao qual tenho me dedicado desde meados dos anos 80.
Como prólogo, basta dizer que apesar das diferenças, ambas as igrejas
são organizações rehgiosas dominantes em seus respectivos países, reivindi-

A versão original em inglês encontra-se na revista Sociology ofReligion, vol. 62, n°. 3 (2001).
Este texto sobre Religião e Sociedade no Brasil e Rússia foi originalmente proferido
na Universidade de San Diego (CA) em 30 de novembro de 1999, com uma versão
bastante semelhante a esta aqui apresentada. Sou grato ao Dr. Kenneth Serbin, Profes-
sor de História e Diretor do Transborder Institute na Universidade de San Diego, pelo
convite para a realização da conferência.
A maior parte deste texto é baseada em minhas pesquisas anteriores realizadas no Brasil nas
últimas três décadas, e na Rússia nos últimos cinco anos. Minhas próprias publicações de
apoio a este texto estão especificadas aqui, principalmente como um guia aos leitores que
possam não estar familiarizados, tanto com o caso brasileiro quanto com o caso russo, e/ou
assim possam estar interessados nos caminhos que levaram a esta discussão.
(continuação página 99)
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

cando mais de 80% dos habitantes de cada um deles como "pertencentes" a fé


católica ou ortodoxa — mesmo que menos de cinco por cento de seus fiéis
declarados compareçam efetivamente aos cultos dominicais. Além disso, ape-
sar do que indica essas cifras, a liderança de cada uma está engajada em elabo-
rar novos arranjos com os sistemas estatais e as sociedades civis nas quais ope-
ram. Por uma série de razões os modi operandi anteriores perderam abrupta-
mente sua eficácia (ainda que por razões diversas) devido às mudanças nos regi-
mes políticos na última década. A "redemocratização" no Brasil e o colapso do
comunismo na Rússia significaram, ao contrário do esperado, um fator que pouco
contribuiu para o crescimento de cada uma delas. Como conseqüência, ficaram
com o pesado encargo de "reinventar-se" e de encontrar seus devidos lugares
em ordens sociais significativamente alteradas.
Outro fator a ser destacado, é que essas igrejas reconhecem ter um desafio
comum a ser enfrentado: uma "nova secularização". Incessante no seu avanço,
essa nova secularização caracteriza-se por um processo que transforma tudo em
commodities, em âmbito mundial, numa rapidez antes impensada e fortemente
impulsionada por um sistema de comunicação de massa que se tomou globaP.
Diante disso, as Igrejas se encontram perplexas com problemáticas éticas e
religiosas bem concretas. Exatamente que tipo de mensagem elas podem e devem
elaborar para os seusfiéisnos dias de hoje? Qual a melhor maneira de transmitir tal
mensagem em um mercado de idéias altamente competitivo, dominado pela mass
media sobre a qual nenhuma das duas igrejas tem grande influência e muito menos
controle? Estas são as questões que cada vez mais constituem a ordem do dia de
intelectuais e dirigentes de ambas as instituições, em que pese — no tocante ao
acesso a recursos locais e transnacionais — uma desvantagem maior enfrentada
pela Igreja Ortodoxa russa se comparada com a Católica brasileira.

Para evitar repetições desnecessárias, tais composições Uterárias não estarão segui-
das pelo meu nome.
Quanto às notas de rodapé adicionadas a seguir, elas não são, de forma alguma, planejadas
como uma completa revisão da literatura em ambos os campos, mas, pelo contrário, como
uma referência a trabalhos de outros autores cujos argumentos parecem pertinentes a mim.
Sou muitíssimo grato à Sophia Darmanyan, Irina e Aleksandr Panov, Franco Sebasti e Marco
e Courtney delia Cava pela sua generosa hospitalidade durante todo o preparo destas observa-
ções, e também ao público da Universidade de San Diego por suas perguntas, o que me
possibilitou refinar este texto e levantar algumas propostas.
**Professor Emérito de História - Queens College, City University of New York e Pesqui-
sador Sênior Associado do Institute of Latin American Studies, Columbia University in
the City of New York.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

a igreja católica roiiiana


no brasil e a igreja
ortodoxa na rússia^
ralph delia cava**

Este ensaio focaliza problemas atuais enfrentados pela Igreja Católica Ro-
mana no Brasil e pela Igreja Ortodoxa Russa na república pós-soviética e multi-
étnica hoje denominada "Federação Russa". Na medida do possível tratarei com-
parativamente tanto dos problemas quanto das instituições, ainda que de forma
seletiva, em virtude do meu interesse especifico pelas religiões transnacionais con-
temporâneas, assunto ao qual tenho me dedicado desde meados dos anos 80.
Como prólogo, basta dizer que apesar das diferenças, ambas as igrejas
são organizações religiosas dominantes em seus respectivos países, reivindi-

A versão original em inglês encontra-se na revista Sociology ofReligion, vol. 62, n°. 3 (2001).
Este texto sobre Religião e Sociedade no Brasil e Rússia foi originalmente proferido
na Universidade de San Diego (CA) em 30 de novembro de 1999, com uma versão
bastante semelhante a esta aqui apresentada. Sou grato ao Dr. Kenneth Serbin, Profes-
sor de História e Diretor do Transborder Institute na Universidade de San Diego, pelo
convite para a realização da conferência.
A maior parte deste texto é baseada em minhas pesquisas anteriores realizadas no Brasil nas
últimas três décadas, e na Rússia nos últimos cinco anos. Minhas próprias publicações de
apoio a este texto estão especificadas aqui, principalmente como um guia aos leitores que
possam não estar familiarizados, tanto com o caso brasileiro quanto com o caso russo, e/ou
assim possam estar interessados nos caminhos que levaram a esta discussão.
(continuação página 99)
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

cando mais de 80% dos habitantes de cada um deles como "pertencentes" a fé


católica ou ortodoxa — mesmo que menos de cinco por cento de seus fiéis
declarados compareçam efetivamente aos cultos dominicais. Além disso, ape-
sar do que indica essas cifras, a liderança de cada uma está engajada em elabo-
rar novos arranjos com os sistemas estatais e as sociedades civis nas quais ope-
ram. Por uma série de razões os modi operandi anteriores perderam abrupta-
mente sua eficácia (ainda que por razões diversas) devido às mudanças nos regi-
mes políticos na última década. A "redemocratização" no Brasil e o colapso do
comunismo na Rússia significaram, ao contrário do esperado, um fator que pouco
contribuiu para o crescimento de cada uma delas. Como conseqüência, ficaram
com o pesado encargo de "reinventar-se" e de encontrar seus devidos lugares
em ordens sociais significativamente alteradas.
Outro fator a ser destacado, é que essas igrejas reconhecem ter um desafio
comum a ser enfrentado: uma "nova secularização". Incessante no seu avanço,
essa nova secularização caracteriza-se por um processo que transforma tudo em
commodities, em âmbito mundial, numa rapidez antes impensada e fortemente
impulsionada por um sistema de comunicação de massa que se tomou globaP.
Diante disso, as Igrejas se encontram perplexas com problemáticas éticas e
religiosas bem concretas. Exatamente que tipo de mensagem elas podem e devem
elaborar para os seusfiéisnos dias de hoje? Qual a melhor maneira de transmitir tal
mensagem em um mercado de idéias altamente competitivo, dominado pela mass
media sobre a qual nenhuma das duas igrejas tem grande influência e muito menos
controle? Estas são as questões que cada vez mais constituem a ordem do dia de
intelectuais e dirigentes de ambas as instituições, em que pese — no tocante ao
acesso a recursos locais e transnacionais — uma desvantagem maior enfrentada
pela Igreja Ortodoxa russa se comparada com a Católica brasileira.

Para evitar repetições desnecessárias, tais composições literárias não estarão segui-
das pelo meu nome.
Quanto às notas de rodapé adicionadas a seguir, elas não são, de forma alguma, planejadas
como uma completa revisão da literatura em ambos os campos, mas, pelo contrário, como
uma referência a trabalhos de outros autores cujos argumentos parecem pertinentes a mim.
Sou muitíssimo grato à Sophia Darmanyan, Irina e Aleksandr Panov, Franco Sebasti e Marco
e Courtney delia Cava pela sua generosa hospitalidade durante todo o preparo destas observa-
ções, e também ao público da Universidade de San Diego por suas perguntas, o que me
possibilitou refinar este texto e levantar algumas propostas.
**Professor Emérito de História - Queens College, City University of New York e Pesqui-
sador Sênior Associado do Institute of Latin American Studies, Columbia University in
the City of New York.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

Na verdade, seria melhor iniciar essa discussão considerando o caráter


"transnacional" das duas instituições. Por "transnacional" entendemos as es-
truturas e capacidade das religiões organizadas em movimentar e circular idéias,
recursos humanos e técnicos, e finanças através do sistema-estado e da eco-
nomia-mundo capitalista (conceitos, entre outros, utilizados heuristicamente
neste ensaio, que derivam do quadro analítico de Immanuel Wallerstein)^. Em
certa medida a Igreja Católica Romana pode ser considerada o protótipo de
um organismo transnacional, cujo desenvolvimento histórico já foi tratado
em outros trabalhosl
Freqüentemente, é nos países do centro do sistema mundial que estão situ-
adas as unidades mais dinâmicas e mais ricas de uma igreja mundial. Elas po-
dem até mesmo refletir as políticas e interesses de estados do centro em relação
aos da periferia e semi-periferia, mas não necessariamente. Em geral, essas Igrejas
costuman agir, ora separadamente ora juntas na provisão de recursos para as
igrejas menos favorecidas de outras partes do globo.
A Igreja brasileira, enquanto unidade dentro do catolicismo mundial, tem
obtido recursos externos substanciais, tipicamente providenciados por religiões
transnacionais. Esses recursos são repassados em três formas principais: primei-
ra, um amplo corpo de idéias continuamente gerado e modernizado contemplan-
do um largo espectro de assuntos religiosos e públicos (especialmente dinamiza-
dos por universidades católicas, seminários e centros de pesquisa). Segunda, uma
reserva de recursos humanos altamente móvel e bem treinada constituída por re-
hgiosos, missionários, clérigos e leigos. E, por última, fundos encaminhados por
uma grande variedade de agências de caridade e de apoio, freqüentemente colo-
cados à disposição do que pode ser considerado estritamente como necessidades
"nacionais" e políticas de uma igreja local. Tais necessidades, no entanto, têm que
apresentar alguma afinidade com as diretrizes das igrejas do centro. Ademais, o
Catolicismo está numa posição privilegiada, pois entre todas as outras religiões
mundiais contemporâneas, a sua administração centralizada (o Stato delia Cittá
dei Vaticano) é universalmente reconhecida como parte do atual sistema de esta-
dos. Disto resulta que há possibilidade de tirar proveitos para seus interesses
eclesiais bastando invocar seu papel como um Estado, e vice-versa. Desde o tér-
mino da n Guerra Mundial, a Igreja no Brasil tem sido o beneficiário principal
dessa estrutura transnacional, mesmo que na opinião de seus críticos, isto tenha
um custo — o aumento da sua dependência.

Mesmo que a Igreja russa faça parte da Ortodoxia mundial, esta em seu
sentido mais estrito não pode ser caracterizada como "transnacional". Por um
lado, a confissão Ortodoxa consiste em quinze Igrejas nacionais (ou regionais)
verdadeiramente independentes. Cada uma delas é liderada por seu próprio Pa-
triarca e possui autonomia completa em todos os assuntos pastorais e adminis-
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

trativos. Por outro, existe um Patriarca Ecumênico (de Constantinopla) que, por
razão de precedência histórica, preside todo o mundo ortodoxo"^. Entre os fiéis é
considerado como "patriarca dos patriarcas", mas gozando somente de uma
"primazia de respeito": ao contrario do Patriarca Ocidental (outro título do Papa,
além de Bispo de Roma), ele não é considerado nem infalível nem o principal
chefe executivo de uma comunidade mundial de fé. Na verdade, em assuntos de
fé e de moral, ele é impotente para emitir sua própria opinião. Ele se submete e
atua como o portador das decisões de bispos do mundo Ortodoxo tomadas nos
concílios também chamados "ecumênicos", ainda que raramente estes tenham
se reunido^
Finalmente, o Patriarca Ecumênico não pode contar de forma significa-
tiva com a generosidade das Igrejas irmãs nas áreas centrais, exceto talvez
quando se trata dos fiéis Ortodoxos de comunidades basicamente de emigra-
dos — tais como as gregas, espalhadas pelos Estados ricos do centro. De fato,
as Igrejas Ortodoxas mais numerosas e com maior número de íiéis encon-
tram-se hoje no antigo "bloco comunista" e são, em sua grande maioria, po-
bres e carentes de recursos.

Agora, como no passado, considero que este caráter transnacional das


religiões modernas é também o maior fator, senão o decisivo, que condiciona
o desenvolvimento das igrejas locais. Seria demais afirmar que existe so-
mente uma "religião vinda do alto", porém, insistir na primazia de um
paradigma de uma "religião vinda de baixo" é sem dúvida perder de vista a
característica central de uma religião transnacional organizada: a tendência
inescapável em direção a unidade e universalidade tanto no que se refere à
doutrina quanto à estrutura.
Com tal convicção, vou abordar neste artigo alguns exemplos bem concre-
tos relacionados a eventos recentes nas duas Igrejas em questão.

Vejamos primeiro o que está ocorrendo na Rússia.


Em 1990, A Lei Soviética sobre Liberdade Religiosa e Direito de Consci-
ência, seguida em 1991 pela dissolução da União Soviética e sua transforma-
ção em quinze repúblicas independentes, colocou a Igreja Ortodoxa Russa em
uma situação tumultuada^. Antes de mais nada, ela se encontrou momentane-
amente carente de quadros porque, virtualmente do dia para a noite, mais de
um terço dos cerca de sete mil padres, bispos e seminaristas foram
reincorporados em confissões antes suprimidas. Nas repúblicas recém inde-
pendentes, muitos voltaram para as igrejas Ortodoxas reconstitutidas ou Greco-
Católicas^ quase todas da Ucrânia Ocidental, ou ainda para as Católicas Ro-
manas de Bielo-rússia.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

Como resultado, o Patriarcado de Moscou, que havia presidido as igrejas


Ortodoxas de toda a URSS por várias décadas, como autoridade administrativa
máxima, teve sua hegemonia ameaçada. Ainda que a maior parte das comunida-
des Ortodoxas em muitas das antigas repúbhcas soviéticas tenham continuado
a reconhecer o "Patriarca de Moscou e de toda a Rússia", alguns movimentos
pela "autokephaUa" (i.e., a plena autonomia eclesiástica), que procuram a sua
independência do Patriarcado de Moscou, apareceram na Estônia, Ucrânia, Bielo-
rússia e Moldávia, tomando-se cada vez mais fortes.
Dentro das fileiras da própria Igreja russa também irromperam diversas
facções. Alguns elementos do baixo clero têm acusado duramente membros da
hierarquia de "colaboração" com as agências de informação do antigo Estado
comunista. Muitos outros no entanto são bem abertos para o Ocidente. Ao cul-
tivar contatos ecumênicos com denominações não-Ortodoxas, eles vêm assu-
mindo os riscos implicados quando ultrapassaram os limites formais aceitáveis,
definidos cada vez mais de forma cada vez mais estrita pelo Patriarcado.
Finalmente, a Igreja defrontou-se com a carência de fundos. Isso porque
de um lado vem perdendo numerosos paroquianos contribuintes, residentes nas
antigas repúbhcas soviéticas, especialmente na Ucrânia. E de outro porque, com
o fim do Estado soviético, perdeu abruptamente uma fonte de financiamento
pequena mas constante.
Comparemos essa situação, ainda que brevemente, com o restabelecimento
da Igreja CatóHca Romana na Rússia, com pouco mais de meio milhão de
fiéis^ Um protocolo diplomático entre o Vaticano e o Estado Soviético, acor-
dado antes do fim deste, estabeleceu duas Administrações Apostólicas, uma
em Moscou, para a Rússia Européia e outra em Novosibirsk, para toda a Sibéria.
Em poucos meses dois arcebispos, ambos cidadãos soviéticos, foram nomea-
dos para os postos^. Dentro de um ano, cerca de duzentos padres e uma cente-
na de freiras trazidos de todas as partes do mundo, principalmente da Polônia,
estavam trabalhando em dezenas de novas paróquias ou antigas restauradas.
Em menos de uma década, fundos significativos da Europa Ocidental, princi-
palmente da Alemanha, e depois dos Estados Unidos, foram empregados
para reconstruir várias igrejas históricas, re-estabelecer e manter o seminário
maior, criar um instituto de altos estudos rehgiosos, fundar um jornal sema-
nal e ainda um serviço de notícias bimensal on-line.

Não é que a Igreja Ortodoxa russa não tem ligações transnacionais, mas
elas têm sido pouco numerosas e, num sentido político mais fino, eu diria que
elas têm sido "contraproducentes" ou "inadequadas".
Entre as ligações "contraproducentes" eu destacaria as que foram estabelecidas
com o Conselho Mundial das Igrejas (CMI). Naturalmente, muitas Igrejas Ortodò-
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

xas ja fazem parte há muito tempo do Conselho que é reconhecidamente um conclave


Protestante, estabelecido em 1950 com sede em Genebra. A Igreja Russa é afiliada
desde os anos 60, motivada em parte por uma postura institucional compartilhada
com o Conselho em favor da paz mundial. E também porque naquela época se
tratava de um dos objetivos da política exterior soviética. Argumentou-se que esse
casamento de objetivos foi "o preço" pago pela liderança [da Igreja] para poder
"exercer atividades verdadeiramente pastorais" na ex-URSS"\ E poderia ser acres-
centado, que foi o preço para ser parte atuante em organismos religiosos mundiais.
Desde inícios dos anos 90, o CMI vem mudando suas prioridades: cada vez
mais, assuntos do "Terceiro Mundo" dão lugar aos do "Primeiro Mundo", como
por exemplo ordenação de mulheres, casamento entre homossexuais e o uso de
uma terminologia não sexista na linguagem bíblica e htúrgica. Algumas Igrejas
Ortodoxas, as mais contrárias a estas posições "liberais" ameaçaram repetidas
vezes romper suas ligações com o Conselho e, finalmente, o fizeram. Em 1997
a Igreja Georgiana e a Búlgara foram as primeiras a abandoná-lo. Os russos
reagiram com um plano para reformas amplas. No bojo destas reformas estava o
fim da norma de maioria simples, que favorecia as Igrejas Protestantes, e a pro-
posta de adoção de um acordo de não-comprometímento nas questões teológi-
cas. Se as mudanças não se concretizarem em 2000 ou 2001, a Igreja Ortodoxa
Russa poderá ser compelida de fazer o mesmo: sair do Conselho^^
O que está em jogo não são as questões teológicas somente, mas também a
tolerância religiosa e o pluralismo. A liberdade religiosa e de consciência na Rússia
foi reestabelecida — para todos — por lei específica em 1990, como já foi dito.
Com isso, muitos Protestantes antes aliados às Igrejas russas e pertencentes ao
Conselho, abandonaram essa posição e se tonaram missionários engajados no
"resgate de suas próprias confissões" na Rússia pós-soviética. Passaram portanto
a competir de modo tão contudente que da perspectiva da Igreja Ortodoxa Russa
eles têm apenas "comprado almas" com seus cofres cheios, acusação igualmente
lançada contra os Católicos Romanos^^. Esta competição acirrada entre as igrejas
desencadeou uma verdadeira guerra pela conversão.
Neste contexto a executiva do CMI ficou parcialmente de mãos atadas. Por
um lado, ele conseguiu fazer prevalecer sua posição de que a Rússia já era cristã
e não uma "área para missões" junto a igrejas importantes, tais como as Luterana
e Presbiteriana — ainda que, após de sete décadas de ateísmo imposto pelo
Estado, poucos russos continuassem praticantes. Por outro lado, o CMI não teve
sucesso com os chamados fundamentalistas, atualmente o segmento pentecostal
do Protestantismo que é aquele que mais tem crescido em âmbito mundial. São
eles que possuem os missionários mais empreendedores, militantes e presentes
em quase todas as repúblicas da antiga URSS.
No passado, os fundamentalistas, principalmente os pentecostais, haviam boi-
cotado o CMI. Mas por mais de uma década Genebra entabulou com eles um diálo-
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

go assíduo, o que resultou na participação de vários de seus delegados nas Assem-


bléias recentes. Em fim, a busca institucional por parte do CMI—da universalidade
que sempre reivindicou e que procura manter—contribuiu em grande medida para
desgastar as relações com a Igreja Ortodoxa Russa.
Contribuiu também para a Igreja Russa passar a pressionar a Duma — o
parlamento russo — para anular a Lei Soviética de 1990 sobre liberdade religi-
osa. Com este objetivo cortejou abertamente o Partido Comunista até que, em
1997, após quatro anos de intensos esforços, foi aprovada a "nova lei religiosa,"
altamente controvertida, por restringir severamente as atividades de missionári-
os estrangeiros e de organizações religiosas. Desde então, a chamada nova lei
foi objeto de uma campanha internacional por sua revisão, por parte de organi-
zações de direitos humanos e do governo americano. Entretanto, a nova lei per-
mitiu efetivamente que a Igreja Ortodoxa Russa exercesse — graças à força
legislativa do Estado russo e da cooperação de funcionários locais — um verda-
deiro "monopólio territorial" sobre toda a Federação Russa, em benefício de
seus próprios interesses^l

Agora vamos tratar das outras ligações transnacionais da Igreja Russa Ortodo-
xa que considero "inadequadas". As comunidades Ortodoxas russas da Europa Oci-
dental e dos Estados Unidos, poucas em número e pequenos em tamanho, simples-
mente não podiam levantar recursos de vulto, necessários para reconstruir a Ortodo-
xia na Rússia. Além disso, estavam diametralmente opostas a muitas das atuais
poKticas da Igreja russa. Primeiro, os três maiores seminários ortodoxos fora da
Rússia—em Crestwood nas cercam'as da cidade de Nova Iorque, Paris e Oxford—
são teologicamente liberais, ideologicamente ecumênicos e culturalmente
assimilacionistas e pluralistas. As obras de seus mais respeitados teólogos e pensa-
dores não somente ainda não estão disponíveis na maior parte dos seminários na
Rússia, mas também são, por alguns, vistos como heréticas. Em 1998 vários livros
foram queimados publicamente, sob as ordens do Bispo de Ekaterinemburgo, de-
mitido um ano depois por razões não inteiramente ligadas ao incidente.
Sob muitos aspectos estas comunidades "além fronteiras" (zarubezhnie) têm
muito mais em comum com o baixo clero e seus paroquianos liberais e ecumenistas
de Moscou e São Petersburgo da Igreja russa. Constituindo uma minoria tanto em
número como em posições dentro da Igreja russa, muitos deles eram ateus que
foram convertidos à Ortodoxia nas décadas de forte crescimento religioso de 1970
e 1980, quando a fé era uma marca de oposição política. Mas o Patriarcado reagiu
de modo desconfiado tanto do financiamento estrangeiro desta facção (vindo
parficularmente dos Católicos Romanos bem como dos Protestantes liberais eu-
ropeus), quanto de suas idéias e simpatias "ocidentais". Passou então a disciplinar
sistematicamente alguns desses padres, suspendeu outros das santas ordens e iso-
lou de forma efetiva muitos de seus intelectuais proeminentes.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

A subordinação da Igreja Ortodoxa Russa ao comunismo durante a Guerra


Fria levou a que Igrejas-irmãs na Inglaterra e na França rompessem suas liga-
ções com o Patriarcado de Moscou e se "realinhassem" com o Patriarcado
Ecumênico. Após o colapso da União Soviética, este escutou com benevolência
o apelo das Igrejas ortodoxas nos Estados recém-independentes da Estônia e da
Ucrânia por uma completa autonomia eclesiástica em relação à Igreja Russa.
Criou com isso um grande mal-estar, que ainda permanece, entre Moscou e
Constantinopla. Qualquer influência que as Igrejas Ortodoxas da Europa Oci-
dental pudessem vir a ter, foi diminuída, senão eclipsada.

Mais um importante problema deve ser analisado: a questão das finanças.


Diante das ligações "contraproducentes" e "inadequadas" estabelecidas fora do
"Estado-Nação", é preciso perguntar-se como a Igreja russa conseguiu
reconstitutir sua infra-estrutura física na última década. Atualmente só em Mos-
cou ela abrange cerca de 404 edifícios, nove vezes mais do que em 1988^"^. Ou,
como obteve os estimados trezentos milhões de dólares para reconstruir Cristo
Salvador, a catedral monumental que está rapidamente se tomando símbolo
nacional do triunfo da religião sobre o ateísmo? Projetada em 1813 pelo Czar
Alexander I para comemorar a vitória da Rússia sobre Napoleão, o edifício
original foi demolido por Stalin em 1931, e suas fundações tomaram-se uma
piscina ao ar-livre na margem do Kremlin do Rio Moskva'^ Ou, finalmente,
como pagou pelo treinamento e salários que contribuíram para o eventual au-
mento de pessoal na função eclesiástica — que passou de menos de 7.397
padres e diáconos em 1988 para 17.084 no início de 1998^^?
Na ausência de fontes significativas de recursos externos, a Igreja Orto-
doxa russa fez dois acordos em casa: um com o Estado, outro com os cha-
mados "Novos Russos", a classe emergente capitalista de homens de negó-
cio atentos a todo tipo de opurtunidade. O Estado ofereceu à Igreja conces-
sões de taxas e restituição de impostos, o direito excepcional de importar
"ajuda humanitária" livre de tarifas, o retorno de suas propriedades pré-
revolucionárias (bastante reduzidas e quase sempre restritas a edifícios re-
ligiosos necessitando reparos), e ainda subsídios limitados para a restaura-
ção de igrejas. Os "Novos Russos", sobretudo os banqueiros mais ricos,
gerentes executivos de companhias de petróleo e gás, o atuante Prefeito de
Moscou e muitos financistas de sucesso fizeram doações generosas ao Patri-
arcado para restaurar algumas igrejas da capital.
E o que a Igreja Ortodoxa Russa oferece em troca? Os críticos acusam-na
de fazer vistas grossas à corrupção generalizada em âmbito público e privado.
Ou de apoiar escancaradamente as campanhas eleitorais e as políticas do ex-
Presidente Boris Yeltsin'^. E, finalmente de, sem pudor, aproximar-se por con-
veniência dos deputados comunistas para aprovar a nova lei de 1997 sobre
102 cava, r a l p h d e l i a . Imaginário - usp, n= 6, pág. 9 8 - 1 1 7 , 20.00

religião. Além disso, os mesmo críticos apontam para recentes escândalos fi-
nanceiros envolvendo líderes-chave da Igreja, abafados por esta e não processa-
dos pelas autoridades, para reforçar seus argumentos de que a Igreja, mais uma
vez, tornou-se o defensor cego e subserviente do Estado — não da fé^l
Consideremos agora o Brasil em relação às questões que envolvem financi-
amentos, juntamente com as outras variáveis que acabamos de rever sobre a
recente história da Igreja Ortodoxa na Rússia.
A experiência da Igreja Católica no Brasil sugere que os fundos
transnacionais podem até ser substanciais, mas eles não asseguram maior inde-
pendência do que se as instituições locais estivessem apoiadas em um único
Estado ou no rico setor privado. Dos meados dos anos 70 até a queda do Muro
de Berlim em 1989, a Igreja brasileira foi, provavelmente, o maior beneficiário
da filantropia mundial Católica.
O tamanho do país justifica só em parte este quinhão maior. As dinâmicas
do Catohcismo brasileiro na época também exerciciam uma forte atração sobre
os Catóhcos, especialmente na Europa Ocidental. "Comunidades eclesiais de
base" tentavam reorganizar a Igreja a partir da base. A Teologia da Libertação
colocou a fé como um instrumento para libertar os homens da pobreza e da
injustiça, bem como do pecado. Bispos enfrentaram generais, denunciaram tor-
tura, apoiaram direitos humanos, defenderam pluralismo e tomaram a dianteira
na reorganização e proteção da sociedade civil. Esta "revolução" tanto na ima-
gem quanto na realidade da Igreja brasileira, e, por extensão, de toda a América
Latina, ajudou a manter o fluxo de recursos ano após ano'^
Isto é, até os anos 90. Quando caiu o Muro de Berlim (1989), a Europa
Central inteira, com populações católicas significativas, rapidamente se libera
e tornando-se totalmente acessível. A resposta das Igrejas irmãs da Europa
Ocidental foi imediata. A Alemanha, a nação católica mais rica da região e de
maior força histórica, é o melhor exemplo. Décadas antes seus bispos haviam
criado o Misereor, uma das sete poderosas agências de caridade, sob controle
episcopal que financiava projetos católicos de desenvolvimento através do
mundo e, especialmente, na América Latina. Mas, em abril de 1993, os acor-
dos de ajuda para a Europa Central, até então frágeis, foram formalizados em
uma oitava agência, a Renovabis. Nos últimos seis anos fundos católicos ale-
mães — e também holandeses, suíços, austríacos, italianos e franceses, ainda
que em menor vulto — ajudaram na construção de igrejas, estabelecimento de
seminários, postos de saúde, orfanatos, lares para idosos e centros de ajuda a
refugiados, de Pilsen a Vladivostok^^^
Alguns fundos para a América Latina permaneceram estáveis, enquanto
outros começaram a declinar^^ O financiamento das comunidades de base no
Brasil, especialmente para as assembléias inter-eclesiais periódicas (que venham
correndo desde 1975, sendo que a úldma realizou-se em julho de 2000), parece
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

ter sido mantido. No entanto observa-se uma redução dos projetos significati-
vos da Teologia da Libertação^^. Somente o Movimento Sem Terra, em prol da
reforma agrária, que goza do apoio das hierarquias católicas e luteranas, conti-
nua a receber auxílios. Exatamente que conseqüências essa transferência de
fundos mundiais que antes foram destinadas aos projetos no "Sul", e que agora
foram para os da Europa Central e Oriental podem ter para o trabalho de massa
da Igreja no Brasil, é ainda uma questão a ser vista^l Mas, tais reviravoltas, que
correspondem a mudanças geopolíticas maiores, ilustram o risco da inconstância
política do apoio transnacional.

Naturalmente, a corrida atual da Europa Ocidental para remodelar a "Grande


Europa" — eventualmente incluindo até os países do antigo "Bloco Comunista" e
talvez a própria Rússia — não é o único fator da realocação de recursos^"^. Antes,
está ligada, ou pelo menos coincide, com o despontar atual de uma controvérsia
maior que divide toda a Igreja Católica, particularmente desde o Concilio Vaticano
n (1963-1965). Refiro-me ao debate sobre o compromiso social da Igreja no mun-
do modemo. No curto prazo os progressistas da Igreja pareciam estar vencendo; no
médio, foram duramente abalados, mesmo que não totalmente derrotados^l
De fato, por volta de 1984, vários de seus expoentes foram silenciados,
seus escritos considerados doutrinariamente "incorretos"^^, e seus movimentos
pastorais, especialmente no Brasil, foram atacados como indevidamente políti-
cos. No mesmo período, vários dos chamados "novos movimentos" marcados
por um conservadorismo religioso e social tomaram corpo amplamente na Eu-
ropa Ocidental, graças ao apoio do papado. Esta iniciativa, que estava obvia-
mente em desacordo com a Teologia da Libertação, foi propositalmente
fortelecida para minar as suas bases. No final dos anos 90, uma grande iniciati-
va laica, a Renovação Carismática Católica, passou a gozar de influência signi-
ficativa na maioria das paróquias das quase 300 dioceses^^. Esta maré de mu-
danças ainda precisa ser satisfatoriamente explicada.
Mas para alívio de muitos bispos do Brasil, os Carismáticos pelo menos trou-
xeram de volta quadros da classe média na administração do dia-a-dia da vida eclesial,
especialmente no plano paroquial. Seu apelo também foi responsável por reverter
décadas de declínio de aspirantes ao sacerdócio. Mais ainda, a forma de celebração
dos Carismáticos, tanto festiva quanto participativa, tanto cheia de mistério quanto
miraculosa, pareceu finalmente ter dado ao Catolicismo a chance de competir com
o rápido crescimento do Pentecostalismo Protestante^^
O Vaticano também não se desapontou. Roma, há muito argumentava
que a responsabilidade da diminuição do monopólio religioso do CatoHcis-
mo por toda a América Latina repousava diretamente nos excessos dos pro-
gressistas: eles vinham substituindo a "fé verdadeira" do povo e a reUgião
familiar, pela doutrina Marxista.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

Colocar em cheque o Pentecostalismo e os dissidentes internos da Igreja é


uma coisa, restaurar antigos monopólios religiosos territorialmente estabeleci-
dos é outra. Na verdade, monopólios religiosos — como o ancien régime —
dificilmente retomarão algum dia, seja no Brasil, seja na Rússia, apesar de lobbies
políticos e legislações especiais.
Além do mais, o ramo europeu do Catolicismo está rapidamente se transforman-
do, consciente de sua condição de minoria, não somente dentro da "Igreja universal",
mas dentro da Europa e do mundo^^. O Catolicismo da Europa ocidental, embora não
seja mais a fé hegemônica do continente, está em processo de se tomar o porta-estan-
darte do padrão ético da nova sociedade civil planetária ^ campeão da justiça social
e defensor dos direitos humanos, sem levar em consideração confissão, raça ou naci-
onalidade''^^ Marco Politi, o renomado Vaticanólogo na Itália, considera esta nova
orientação "como um tmnfo que o Catolicismo não pode permitir-se perder...
Isso, em parte, é a razão por que os progressistas da Igreja brasileira ainda
não estão totalmente fora do jogo. Por um lado, ainda permanece parte da sua
influência como definidores da sociedade civil no Brasil. Por outro lado, têm
conseguido manter posições cmciais nas esferas do secretariado permanente da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, derrotando inteiramente as mano-
bras dos conservadores, uma eleição após outra.
Acrescente-se a isso, seus esforços recentes para reestruturar a Igreja
como o "Cão de Guarda" da moral da sociedade brasileira —como Kenneth
Serbin apontou com agudeza — também são inteiramente convergentes com a
transformação ora em curso na Europa^^. Por tanto, é compreensível que esta
"harmonia de interesses" tenha resultado em apoio aos progressistas, tanto
dentro quanto fora do Brasil. A este respeito, suas ligações com a "Igreja Uni-
versal" os fortalece porque eles fazem parte dos debates e das facções pelo
mundo afora que estão discudndo sobre o papel da Igreja na sociedade e de
seu compromisso na aceitação de um mundo pluralista. De fato, eles perma-
necem como os herdeiros diretos da abertura promovida pelo Concilio Vaticano
II e do processo contínuo de "aggiornamento"^\
Mas o que pode ser dito sobre o "aggiomamento" no mundo Ortodoxo? A
este respeito a Igreja mssa pode se encontrar num impasse duplamente difícil.
Antes de mais nada, o mundo ortodoxo, enquanto uma comunidade global,
tem ainda que fazer um esforço coletivo para se "modemizar". Sendo uma igre-
ja sinodal (aquela que é govemada por bispos), se acha doutrinariamente presa
por um sistema no qual todas as decisões sobre questões pertinentes a fé só
podem ser tomadas por um concilio mundial. Ela ainda permanece atada, sob
muitos aspectos, aos cânones dos sete primeiros concíliosos ecumênicos reali-
zados entre 325 e 787 d.C-'^
A intenção de modernização certamente não está ausente. Os notáveis
passos dados pelo Patriarca Ecumênico para utilizar o prestígio da Ortodo-
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

xia para renovar a educação teológica, promover ligações mais estreitas


com Roma e Genebra, e proteger o meio ambiente apontam para algumas
das possíveis direções futuras. Mas tentativas repetidas para unir todas as
Igrejas irmãs num concilio ecumênico mundial no início do Terceiro Milê-
nio Cristão não surtiram efeito.
As razões disso podem ser apenas delineadas aqui. Uma delas é a fraque-
za financeira e institucional de Constantinopla. Outra, é a prioridade que Igre-
jas do antigo "bloco comunista" atribuiram à restauração das propriedades, da
vida religiosa, bem como, das suas instituições. Outra, ainda, é a difundida
resistência ideológica e a freqüente hostilidade aberta de muitas comunidades
monásticas — de singular importância para a espiritualidade Ortodoxa, e ain-
da a fonte primária de recrutamento de futuros bispos — para a maior parte
das mudanças''^ Finalmente, não se pode ignorar a rivalidade entre os patriar-
cados de Constantinopla e Moscou, este último invocando freqüentemente
sua posição como chefe da maior Igreja da Ortodoxia, numa aparente mano-
bra para aumentar sua influência no mundo Ortodoxo^^.
O outro impasse com que se defronta a Ortodoxia russa é que, na maior
parte dos últimos três séculos, ela não elaborou nenhum plano próprio de
modernização em que se apoiar. Pedro, o Grande, transformou
impiedosamente a Igreja, bloqueando a eleição de um Patriarca (desde 1700)
e, em 1721 tornou o Santo Sínodo, até então o corpo executivo principal da
Igreja, num mero braço administrativo do governo. A maior parte de seus
sucessores seguiu o mesmo procedimento.
Somente no século XX, quando o último Czar abdicou e a Revolução
Bolchevique estava a caminho, é que os bispos da Igreja Ortodoxa russa
libertaram-se por um breve período do controle estatal. Nem o
restabelecimento vitorioso da função Patriarcal nem a restauração da autori-
dade eclesiástica do Santo Sínodo mostraram-se duráveis: as diferenças in-
ternas na Igreja irromperam e, logo após, seguiu-se a notória perseguição
religiosa dos Bolcheviques"^^.
De fato, a "união patriótica" de 1943 entre a Igreja e o Estado (por inici-
ativa da Igreja Ortodoxa russa) não pôs fim a sua subjugação política.
Tampouco, a concessão de 1945 pelo estado de um espaço público menos
limitado, em troca de o ativo esforço da Igreja em favor da Pátria durante a
guerra e o seu apoio além-fronteiras à política externa Soviética. Para piorar,
sob a administração de Nikita Krushchev, Secretário-Geral do Partido Comu-
nista, foram iniciadas, nas décadas de 50 e 60, campanhas anti-reUgiosas es-
pecialmente destrutivas.
Esta política não foi essencialmente alterada nem mesmo depois que o últi-
mo sucessor do regime, Mikhail Gorbachov, líder da glasnot, promoveu oficial-
mente, em 1988, a celebração do Milênio da Conversão dos eslavos ao Cristianis-
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

mo. Até mesmo a "eleição" em 1990 do quinto patriarca em tempos modernos,


Sua Santidade Aleksiy n, que preside atualmente a Igreja, é tida como evento que
foi manipulado, sofrendo a interferência direta do Estado.
Será que o colapso subseqüente da União Soviética em 1991 e a inesperada
liberdade religiosa recém-conquistada colocaram à Igreja Ortodoxa russa mais pró-
xima de uma reforma? O agora histórico plano dos bispos de 1917 para reunir um
"Concilio Geral" (ou pomestniy sobor), a assembléia com maior autoridade da
Igreja nacional e o único veículo próprio para "modernizar" doutrina e prática, foi
frustrado pela Revolução de Outubro. Recentemente trazido à tona, ele precaria-
mente responde às realidades correntes da Igreja russa, como tampouco respondem
as conclusões de concílios realizados neste século pelas Igrejas irmãs além-mar.
Desde 1991 a Igreja Ortodoxa russa teve que enfrentar a um número drasticamente
reduzido de fiéis após sete décadas de regime Soviético, escassez econômica sob a
nova Federação Russa e custosos conflitos entre facções internas. Talvez em virtude
de insolubilidade imediata destes problemas, é que os membros do atual Santo Sínodo
tenham decidido em julho de 1999 adiar indefíntivamente a convocação, tão discu-
tida e ansiosamente esperada, de um Concilio GcvaP^.
Como alternativa intermediária, uma comissão especial provisória do Patri-
arcado de Moscou, autorizada pelos bispos em seu encontro de 1994, foi final-
mente constituída em 1997. Sua tarefa foi compilar as posições da Ortodoxia
russa sobre Igreja, Estado e sociedade. Especialistas de vários setores foram rapi-
damente recrutados para esboçar documentos indicativos sobre uma variedade de
temas. Mas o grosso dos trabalhos, conduzido a portas fechadas, recaiu sobre um
pequeno de colaboradores, escolhidos a dedo, pelo Arcebispo Kirill, o prestigiado
Metropolitano de Smolensk e Kaliningrado, membro permanente da direção do
Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa russa e diretor há decênios do poderoso Depar-
tamento de Relações Eclesiásticas Exteriores do Patriarcado de Moscou''^.
Com 53 anos de idade, orador brilhante e já uma proeminente personalidade,
tanto na cena política nacional quanto no circuito religioso internacional, Kirill é
invariavelmente visto por amigos e desafetos como o "poder atrás do trono" e o
"segundo homem de igreja mais poderoso da Rússia". Muitos suspeitam que ele
ambiciona o posto de Patriarca. Esta é parcialmente a razão pela qual seus moti-
vos e feitos têm sido quase sempre anilasado com grande cuidado pela imprensa,
e provocam rumores tanto nos círculos políticos quanto eclesiásticos'"^
Apesar de tudo, com relação à "modemização" a Igreja russa, a estratégia de
Kirill parece ancorar-se em dois objetivos. O primeiro visa neutralizar facções nas
disputas internas da Igreja. O setor ultra-nacionalista e xenófobo provou ser particular-
mente causador de problemas. Na última década, este setor pressionou repetidamente
o Patriarca a atacar os progressistas, levando-o a silêncios constrangedores sobre de-
terminadas questões pohticas e sociais, pelas quais os setores progressistas e modera-
dos buscavam desesperadamente, e sem sucesso, a aprovação da hierarquia.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

O segundo objetivo de Kirill parece ter sido o de evitar a repetição da expe-


riência da Igreja Romana. Nas últimas três décadas ela vem sofrendo de agrava-
das divisões internas decorrentes do Concilio Vaticano II. Para prevenir uma
sorte similar em solo russo, que um Concilio Geral da Igreja ortodoxa poderia
precipitar, o arcebispo parece ter preferido bancar uma "declaração de reforma"
feita por esta comisão especial interna por ele escolhida. De qualquer maneira,
nenhuma data para reunir tal Concilio Geral chegou sequer a ser proposta.
Portanto, até que o documento final desta comissão especial se tome públi-
co, o que provavelmente ocorrerá no encontro da conferência trienal dos bispos
(archiiereiskiy soborf^ em Agosto de 2000, e até que as reações a ele possam
seguir seu curso, a direção e o ritmo do "aggiomamento" da Igreja ortodoxa na
Rússia não devem mudar.

Na melhor das hipóteses, a comparação entre as duas Igrejas mostrou algumas


ligações e contingências típicas de religiões transnacionais. Contudo, o ensaio ne-
gligenciou intencionalmente três dimensões adicionais, em que tais religiões pode-
riam ser examinadas, separada ou simultaneamente. O ambiente societal mais am-
plo é uma das referidas dimensões, bastante óbvia. A outra é a mudança radical de
status das religiões transnacionais não-cristãs, talvez significando até mesmo o
controle gradativo de espaços históricos da Cristandade por parte delas. A este pro-
cesso as duas religiões discutidas aqui têm crescentemente voltado suas atenções.
A terceira é o "novo secularismo" ao qual me referi anteriormente. Este tema
mereceria um artigo especial uma vez que as últimas declarações das igrejas sobre o
assunto exigem una análise mais acurada até porque trata-se de um dos poucos
asuntos em que as opiniões de Católicos e Ortodoxos coincidem em muitos pontos.
Além do mais, não é necessário olhar mais longe para sentir a ameaça que
o novo secularismo coloca para os valores e a vida religiosa na atualidade. Qual-
quer um caminhando pelas ruas de Moscou em setembro de 1999 não poderia
deixar de encarar isto de frente. Nem mesmo os bispos Católicos Romanos da
Europa Ocidental, Central e Oriental. Nos seus encontros decisivos em Roma
no mês de outubro seguinte sobre os desafios de hoje, o otimismo de alguns
cedeu rapidamente ao pessimismo de outros que, clamando terem visto o futu-
ro, chamaram-no de "desespero'

Resumo: Este ensaio focaliza vários problemas atuais enfrentados


pela Igreja Católica Romana no Brasil e pela Igreja Ortodoxa Rus-
sa. As duas instituições e os problemas de cada uma são tratados de
maneira comparativa a partir de uma preocupação do autor por
religiões transnacionais contemporâneas
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

Palavras-chave: Igreja Católica Romana, Brasil, Igreja Ortodoxa


Russa, religiões "transnacionais".

Abstract: This essay takes up current issuesfacing the Rormn Catholic


Church in Brazil and the Russsian Orthodox Church in the post-soviet
republic, the Russian Federation. Issues and institutions are treated
comparatively, even if selectively and almost solely out of a concem
by the Authorfor contemporary "transnational" religions.

Key-words: Roman Catholic Church, Brazil, Russian Orthodox


Church, "transnational" religions.

notas

Veja a edição especial de The Nation em "The Global Media", 29 nov. 1999.
Veja Immanuel Wallerstein, O Sistema Mundial Moderno, vol. 1 (Lisboa: Ed.
Afrontamento, 1990).
Meus pensamentos sobre religiões transnacionais estão explicitados em vários lugares.
U m ponto de partida bem adequado se encontra em "Thinking about Current Vatican
Policy in Central and East Europe and the Utility of the 'Brazilian Paradigm'", Journal
of Latin American Studies, n. 25, p. 2 5 7 - 2 8 1 , 1 9 8 3 ; e "Financing the Faith: the Case of
Roman Catholicism", Journal of Church and State, v 35, n.l, p. 37-59, 1993.
U m enfoque teórico de interesse que recentemente me chamou a atenção é "Religious
Regimes and State Formation: Toward a Research Perspective", Religious Regime and
State Formation: Perspectives from European Ethnology, de Mart Bax, editado por
Eric R. Wolf (Albany, NY: State University of New York, 1991), p. 7-27.
A sede do Patriarca Ecumênico se chama o "Phanar" e está localizada num enclave
numa das vizinhanças urbanas da atual Istambul.
Naturalmente, partidários do Patriarca Ecumênico — geralmente comunidades orto-
doxas de origem grega, sujeitas a um status minoritário — freqüentemente "adornam"
seu poder. Eis como a Igreja Ortodoxa Independente da Albânia os descreve na oca-
sião da visita de Sua Santidade, Bartholomeus, à Albânia, de 1 a 9 de novembro de
1999: "Sua Santidade é o primeiro entre os iguais dentre os Arcebispos Ortodoxos, que
preside sobre todos os encontros das 14 igrejas ortodoxas independentes... Ele coorde-
na também o diálogo com outras Igrejas Cristãs e com várias crenças religiosas (sic)",
Orthodox Christian N e w s Service Inc., v. 1, n. 15, 1 nov. 1999.
Para uma visão geral da Igreja Ortodoxa Russa Contemporânea, veja "Reviving
Orthodoxy in Rússia: an overview of the factions in the Russian Orthodox Church in
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

the spring of 1996", Cahiers du Monde Russe, v. 38, n. 3, p. 387-413, julVset. 1997.
Uma descrição proveitosa sobre os últimos anos é de Nathaniel Davis A Long Walk
to Church: a Contemporary History of Rússian Ortodoxy (Boulder CO & Oxford:
Westview, 1995).
^ As igrejas greco-católicas são também chamadas de "Uniates" por serem 'unidas' ao
papado romano.
^ Veja "The Roman Catholic Church in Rússia, 1991-1996 - The Latin Rite", The Harriman
Review, v 9, n.4, p. 46-57, 1996.
^ Em 1999, um protocolo entre a Federação Vaticana e Russa foi assinado, favorecendo
duas outras jurisdições, uma em Saratov, e outra em Irkutsk, respectivamente para as
partes Européia e Siberiana da Rússia, ambas administradas por Bispos.
Citado na melhor e mais completa narrativa a respeito da Igreja Ortodoxa Russa no
século vinte, The Rússian Church Under the Soviet Regime, 1917-1982 (Crestwood
NY: St. Vladimir's Seminary, 1984), 2 volumes; vol. II, p. 317-318, de Dimitry
Pospielovsky.
" Para a posição dos Ortodoxos favorecendo estreitos laços ecumênicos e a continuidade
da participação ortodoxa no W C C (Conselho Mundial Eclesial), veja a entrevista com
o Metropolitano da Suíça escrita por Edmund Doogue, "Orthodox Leader Urges
Churches to O v e r c o m e Obstacles to D i a l o g u e " , [on-line], E c u m e n i c a l N e w s
International (Geneva), 5 de novembro de 1999. Para a proposta da Igreja Russa de
uma estrutura alterada do W C C e maior representação das Igrejas Ortodoxas partici-
pantes, veja o artigo escrito pelo Metropolitano Kirill de Smolensk e Kaliningrad,
Diretor do Departamento de Relações Eclesiais Exteriores da ROC (Rússian Orthodox
Church — Igreja Ortodoxa Russa), "On a possible structure of the World Council of
Churches — Proposals for Discussion", Ecumenical Review (out. 1999); transmitido
on-line pelo 'Holy Trinity Orthodox N e w s Service' de San Francisco, CA.
Além do propósito deste artigo, encontra-se também toda a discussão das recentes
tensões entre Roma e Moscou a respeito do "expansionismo" do catolicismo na an-
tiga União Soviética desde 1990. É de fundamental importância a defesa do Vaticano
sobre a confissão greco-católica na Ucrânia, Bielo-rússia e em qualquer outro lugar
da Europa Central.
Os 'Uniates', assim chamados pejorativamente pelos Ortodoxos, ou 'Rito Ocidental'
ou 'Católicos de Rito Bizantino', professam obediência ao Papado, ao mesmo tempo
que preservam sua liturgia ortodoxa. Esse assunto foi discutido em "Shall the Twain
ever meet? — On the cancellation of the June 1997 meeting of the Patriarch of Moscow
and the Pope", Religion in Eastern Europe, vol. XVIII, n. 1, p. 15-27, f e v 1998. Sobre
o surgimento e expansão de comunidades semelhantes dentro da Rússia, apesar da
oposição ortodoxa e da censura oficial do Vaticano, veja o artigo do Autor sobre o
Catolicismo russo (citado na nota n. 6) e o esclarecedor artigo "Cathohc and Anti-
Catholic Traditions in Rússia", Religion, State and Society, v.*28, n. 1, p. 63-84, mar.
2000, de Sergei Filatov e Lyudmila Vorontsova.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

^^ Descrições completas a respeito das circunstâncias que levaram à passagem da então


chamada "Nova Lei" e detalhes da sua oposição legal decorrente podem ser encontra-
das em publicação recente de Proselytism and Orthodoxy in Rússia — The N e w War
for Souls, John Witte Jr. e Michael Bourdeau, editores (Maryknoll, NY: Orbis Books,
1999). Coleção Religião e Direitos Humanos.
N o artigo ainda não publicado "The IV World Council of The Rússian People" (mimeo,
1997), p. 30, trato de aspectos do financiamento da Igreja Ortodoxa Russa.
"A $300 million Church", The Moscow Times, 9 jul. 1994, de Dimitry P o p o v
^^ Dados fornecidos pelo Serviço de Comunicações do Departamento de relações eclesiais
exteriores do Patriarcado de Moscou, disponíveis no início de 1997 e 1998. A estima-
tiva para 1990, refletindo o retorno dos Clérigos ortodoxos às dissidentes igrejas greco-
católicas e ortodoxas recentemente legalizadas, especialmente na Ucrânia, é de um
terço a menos que a de 1988.
A recorrente acusação de envolvimento da Igreja no processo eleitoral recentemente
levou a um esclarecimento oficioso do assunto, negando partidarismo, mas reafirman-
do o direito da Igreja em manter conversações com partidos políticos, grupos e indiví-
duos, quando seus interesses estiverem em jogo. Veja o artigo escrito pelo Arcipreste
Vsevolod Chaplin [porta-voz do departamento de relações eclesiais exteriores do Pa-
triarcado de Moscou], "Active Neutrality", Nezavisima Gazeta-Religii, 10 nov. 1999.
(Traduzido para o inglês e divulgado on-line em 10 de novembro de 1999 pelo Fr.
Victor Sokolov da 'Holy Trinity Organization'.)
^^ Sobre os escândalos, veja "The Patriach's Burden", Moskovskiy Komsomolets, 16 jul.
1999, de Sergey Bychkov, transmitido on-line pelo 'Holy Trinity Orthodox News
Service' de San Francisco, CA.
^^ Este período é abordado em "The People's Church, the Vatican and Abertura, 1974-
1985", Democratizing Brazil: problems of transition and consolidation, editado por
Alfred Stepan (Nova York e Londres: Oxford University Press, 1989), p.143-167.
Veja "Religious Resource Networks: Roman Catholic Philanthropy in Central
and East Europe", Transnational Religion & Fading States, editado por Suzanne
Hoeber Rudolph e James Piscatori (Boulder CO and Oxford: Westview Press,
1997), p. 1 7 3 - 2 1 1 .
^^ U m exame superficial da distribuição dos fundos, em 1999, de uma das mais ricas
filantropias privadas do Oeste Europeu, pertencente ao Catolicismo Romano, "Aid to
the Church in Need" [ACN], mais conhecida na Europa pelo seu nome em alemão,
Krrche in Not, comprova tais mudanças. Por exemplo, as duas maiores nações da Amé-
rica Latina, Brasil e México, com uma população somada de mais de 2 0 0 milhões de
habitantes, a grande maioria católica romana, receberam respectivamente um pouco
menos que 3,6 milhões e 867 mil dólares.
Os dois maiores países do Centro Europeu, Ucrânia (com uma população católica de
aproximadamente 5 milhões) e Polônia (com aproximadamente 38.5 milhão) recebe-
ram um pouco mais que 4 milhões de dólares cada um.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

A Rússia, com população Ortodoxa nominalmente formada por 145 milhões e Católi-
ca estimada em entre 150 e 500 mil, recebeu por volta de 3,6 milhões de dólares,
igualmente divididos entre as duas denominações.
A Croácia, República Checa, Hungria, Romênia e Eslováquia receberam cada uma
mais de 1 milhão de dólares.
Anteriormente à queda do Muro de Berlim, os oito países acima citados receberam
quantias bem menores em termos relativos e absolutos. Em 1999, eles foram responsá-
veis por quase 29% dos 58 milhões de dólares de contribuições distribuídas da ACN.
(Fonte: "Aid to the Church in Need", Mirror, newsletter, p. 3, 4 jun. 2000).
^^ Uma descrição da Assembléia e seus Documentos Finais foi fornecida em 17 de julho
de 2000, num boletim oficial on-line por um de seus organizadores, Fr. José Oscar
Beozzo: "X Encontro Intereclesial das CEBs — Ilhéus, 11-15 de julho — Documentos
Finais". Mais de vinte mil pessoas de todas as regiões e formações participaram.
" U m dos líderes intelectuais católicos leigos do Brasil, Luiz Alberto Gomes de Souza,
recentemente afirmou que nem a escassez de fundos ou a crítica externa das comuni-
dades de base diminuiu a sua sobrevivência, importância ou significado. Tal impressão
errônea, argumenta, deveria ser atribuída ao eclipse que estão causando na mídia e à
prontidão dos doutores em repetir — sem fundamento — tais relatos; veja "As CEBs
vão bem, obrigado", documento não publicado, p. 13, 12 nov. 1999, de Luiz Alberto
Gomes de Souza.
A União Européia está atualmente negociando o ingresso de Chipre, Estônia, Hungria,
Polônia e Eslovênia; em outubro de 1999, foi anunciado que no ano 2000 se iniciariam
negociações com a Bulgária, Latvia, Lituânia, Malta e Romênia; conforme U S A Today
(13out. 1999).
Veja "Vatican Policy, 1978-1990: an updated overview", Social Research. Nova York,
V 59, n . l , p . 169-199, 1992.
^^ O caso mais celebre foi o de 1984, em que a Sacra Congregação pela Doutrina da Fé,
do Vaticano, calou o ex-padre franciscano Leonardo Boff; veja "A ofensiva Vaticana",
Religião e Sociedade, v. 12, n.3, p. 34-53, dez. 1985 e "A Teologia em Julgamento",
Comunicações do ISER, v 14, n.4, p. 62-66, maio 1985.
^^ Sobre os Carismáticos Católicos, veja "The Ten Year Crusade Toward the Third Çhristian
Millenium: afi Account of Evangelization 2000 and Lumen 2000", The Right and
Democracy in Latin America, editado por Douglas Chalmers et al. (Westport, CT, Nova
York e Londres: Prager, 1992), p. 202-222.
Conforme o artigo "Festa Católica bate recorde", O Globo on-line [www.oglobo.com.br],
15 out. 1999, mais de 160.000 fiéis, 40% além da capacidade máxima, lotaram o Está-
dio do Maracanã, no Rio de Janeiro, numa celebração da Festa de Nossa Senhora
Aparecida, Padroeira do Brasil, apoiada pela Renovação Carismática Católica. Esta
manifestação é especialmente pronunciada já que, em 1997, um ministro pentecostal
gerou um escândalo nacional ao chutar, em rede nacional, uma estátua de Nossa Se-
nhora Aparecida, profanando-a.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

^^ Em nenhum lugar o reconhecimento do atual status minoritário católico tem sido mais
autoritariamente expresso que nas intervenções dos participantes do Sínodo Europeu
dos Bispos Católicos Romanos, que aconteceu em Roma de 1 a 23 de outubro de 1999.
O serviço on-line do Vaticano, ZENIT, em 13 de outubro de 1999, relatou estas incisi-
vas observações: "Os Padres têm ouvido muito a respeito da 'Apostasia do Silêncio' da
Europa, como descreve o Cardeal Pierre Eyt de Bordeaux sobre a situação atual. Mui-
tos Bispos têm falado sobre os Católicos na Europa Ocidental serem vítimas da domi-
nante cultura materialista, espelhada na falta de interesse na Igreja, na Paróquia, e no
confessionário".
Jesus Carrascosa, membro do [novo movimento]. Comunhão e Libertação, "lamentou
a crescente brecha entre fé e vida: muitos europeus separam a fé da sua vida diária,
levantando uma parede entre a fé e a razão, e reduzindo Cristo a um simples profeta
social ou pregador de moralidade".
Mais notáveis são os comentários do Cardeal Adrianus Simonis de Utrecht, que "ex-
pressou uma amarga verdade: hoje a Igreja é uma minoria. Somente alguns sabem
quem é Cristo e como encontrá-lo. Até mesmo a Igreja é influenciada por essa menta-
lidade dominante, com o risco de reduzir o Evangelho a uma repetição de palavras ou
um apelo moral".
^^ Este argumento é incisivamente feito por José Casanova em "Globalizing Catholicism
and the Return to a 'Universal' Church", Transnational Religion & Fading States, edi-
tado por Suzanne Hoeber Rudolph e James Piscatori (Boulder CO and Oxford: Westview
Press, 1997), p. 121-143.
^^ D e Marco Politi, "La Chiesa alia ricerca di un papa nuovo", La Repubblica (Roma), 14
nov. 1999, p. 14. O propósito de Politi neste texto é afirmar que "em vinte anos, Karol
Wojtyla obteve o milagre de transformar o Pontífice Romano da cabeça do Catolicis-
mo em um líder mundial capaz de falar de valores universais al.ém das fronteiras religi-
osas e nacionais. Esta é uma carta que o Catolicismo não pode se permitir perder...".
^^ D e Kenneth P. Serbin, "The Catholic Church, Religious Pluralism, and Democracy
in Brazil", Working Paper. Kellogg Institute, University of Notre Dame, n. 263, p.
30, fev. 1998.
^^ A edição de 19 de novembro de 1999 de Commonweal (CXXVI: 20) é devotada a uma
discussão sobre "The crisis of Liberal Catholicism" (A crise do Catolicismo Liberal);
o artigo "Reinventing Liberal Catholicism", p. 30-39, de Peter Steinfels, é especial-
mente pertinente a minha discussão.
^^ U m enfoque sintetizado sobre Ortodoxia pode ser encontrado num pequeno volume
escrito pelo teólogo ortodoxo francês Oliver Clement, U É g l i s e Orthodoxe (Paris:
Presse Universitaire de France, 1961), 5® edição corrigida, 1995; Coleção "Que sais-
je", n. 949.
^^ Forças para atualizar a liturgia, doutrina e ensinamentos sociais ortodoxos podem ser en-
contradas em igrejas internacionais, sendo muitas delas comunidades surgidas a partir da
imigração de seus povos, especialmente nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra.
102 cava, ralph delia. Imaginário - usp, n= 6, pág. 98-117, 20.00

Entretanto, os recentes conflitos dentro da igreja ortodoxa grega da América geraram co-
nhecimento das dificuldades em enfrentar esses colaboradores da modernização; isso só se
deu por resolvido no outono de 1999, quando o Patriarca Ecumênico cedeu às exigências
dos greco-americanos em nomear um Arcebispo mais 'americanizado' para comandar a
denominação.
^^ Para a mais recente revisão deste conflito, veja "Historie Church Synod: Eastern
Orthodox leaders tussle as Rússian power ebbs", The Christian Science Monitor (7
jan. 2000), de Ilene R. Prusher.
Veja The Rússian church under the Soviet Regime, 1917-1982, de Dimitry Pospielovsky
(Crestwood, NY: St. Vladimir's Seminary, 1984), 2 volumes; para mais detalhes sobre
este artigo, veja v 1, p. 25-41, p. 193-248 e v 2, p. 301 ss.
^^ Sobre o adiamento, veja Sergei B y c h l o v e m "The Synod against conciliarity",
Moskovskiy Komsomolets, 22 jul. 1999.
^^ Para exibição autorizada das incumbências e metas da comissão especial, agora cha-
mada de grupo de trabalho sinodal de preparação de um documento, veja "Standard of
Faith as Norm of Life: the problem of the relationship between the traditional and
liberal values in individual and social choice", Nezavisimais Gazeta (Moscou), 16-17
fev. 2000, do Metropolitano Kirill (divulgado em uma tradução on-line pela 'Holy
Trinity Orthodox News Service' de San Francisco, CA).
^^ U m breve esboço biográfico do Metropolitano Kirill está incluído em um artigo ainda
não publicado de maio de 1997, entitulado "The IV World Council of the Rússian
People", p. 30. Disponível sob solicitação.
^^ Em reportagens noticiárias anteriores, o documento produzido seria relatadamente "uma
versão ortodoxa ... [da] 'doutrina social da Igreja' no ocidente..., 'elaborada sobre a
base de experiência com o passar de alguns anos...'". Veja "Rússian Orthodox Church
in search of Identity: Patríarch [sic] Kirill at Bose Ecumenical Congress", ZENIT (ser-
viço on-line do Vaticano), 17 set. 1999, via Holy Trinity Orthodox News Service. N o
dia 22 de junho de 2000, o Departamento de Relações Eclesiais exteriores do Patriar-
cado de Moscou divulgou um lançamento entitulado "Symposium on Church and
Society — 2000"; o departamento esboçou os quinze tópicos que serão expostos no
documento final. São eles: provisões teológicas básicas; Igreja e nações; Igreja e Esta-
do; ética cristã e lei secular; Igreja e Política; trabalho e seus frutos; posse; guerra e
paz; crime, punição, reforma; moralidade pessoal, familiar e social; problemas de
bioética; Igreja e problemas ecológicos; ciência secular, cultura, educação; relações
internacionais; problemas de globalização e secularismo. Veja também "Church view
of State", Segodnia (Moscou), 22 jul. 2000.
"Competing Visions: despair or hope", National Catholic Repórter, p. 3-4 , 15 out.
1999, de John L. Allen.
118 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n » 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

espada e a la^jca
duas weTBÔes do fJs^
do munão
Carlos alberto steil*

introdução

Bom Jesus da Lapa é um dos mais importantes santuários do Nordeste bra-


sileiro, disputando em ordem de grandeza com Juazeiro e Canindé. Enquanto
Canindé é mais popular nos estados do norte (Ceará, Piauí e Maranhão) e Juazeiro
atinge as áreas situadas no coração dos estados nordestinos, Bom Jesus da Lapa
atrai peregrinos que vêm especialmente da Bahia e de Minas Gerais. O período
das romarias vai de julho a setembro, com dois momentos de maior ocorrência
de peregrinos, nas festas de Bom Jesus, em 6 de agosto, e de Nossa Senhora da
Soledade, em 15 de setembro.
O santuário está situado no Médio Vale do São Francisco, em meio ao ser-
tão, encravado no coração de uma imensa pedra, onde uma série de grutas ser-
vem como seu espaço sagrado. Foi fundado no final do século XVII (1691) por
um Monge leigo de origem portuguesa, chamado Francisco de Mendonça Mar.

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


119 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

No ciclo do ouro, o santuário ocupou uma posição estratégica na ligação entre o


litoral e o interior do país, quando "grande número de pessoas das Províncias de
beira-mar se transportavam com os seus escravos para Minas" em busca das
minas recém descobertas (Segura, 1937: 99) ^
Passada a febre do ouro, a região viveu um longo período de
pauperização que correspondeu à sua perda de influência, restringindo a
abrangência do santuário ao culto local. Será depois da segunda metade do
século XIX que o santuário readquire sua importância regional, sendo
reassumido pelo catolicismo institucional como um foco de irradiação re-
ligiosa. A partir da segunda metade do século XIX se abre um novo tempo
na trajetória do culto no santuário de Bom Jesus da Lapa. A Igreja Católi-
ca buscará integrar os centros de peregrinação como parte de sua estrutura
institucional, impondo sobre eles um maior controle clerical e uma unifor-
mização do culto. As reformas de Trento que haviam falhado nos primei-
ros tempos, agora parecem alcançar seus objetivos, na medida em que a
instituição passa a contar com um corpo de clérigos que vem da Europa
com o objetivo de reformar o catolicismo no Brasil. Estes buscarão impor-
Ihe o modelo romano, centrado na prática dos sacramentos e no clericalis-
mo. A forma católica devocional centrada no culto aos santos e na figura
dos beatos e rezadores leigos passa a ser combatida e deslegitimada. O
novo clero sente-se portador de uma missão esclarecedora que pretende
tirar da ignorância religiosa a imensa massa de católicos que encontrava
nos santuários a fonte renovadora de sua fé e devoção.
A partir desse momento a Igreja Católica busca uma maior visibilidade
social enquanto instituição, fazendo-se pouco a pouco presente em todo o terri-
tório nacional através de inúmeras dioceses, paróquias, escolas, orfanatos, hos-
pitais, etc. Sobre um catolicismo que estava entranhado na cultura do povo bra-
sileiro se ergue a instituição, canalizando para si as energias de uma tradição
que se constituíra ao longo de vários séculos. Como parte da estratégia de im-
plantação deste modelo estava a ação sobre os santuários com o objetivo de
redefinir os sentidos, rituais, discursos e as práticas dos peregrinos. Foi assim
que as Irmandades, beatos e monges leigos que dirigiam os santuários catóHcos
até então foram substituídos por congregações religiosas que dispunham de um
clero formado em seminários e imbuído da ideologia reformadora.
Essas mudanças alcançam o santuário de Bom Jesus da Lapa no final do
século XIX e início do século XX, desencadeando um conflito intenso entre as
forças locais e a instituição. Em 1902 o santuário passa a ser dirigido pela Ordem
dos Padres Agostinianos Recoletos. Mais tarde é assumido pelos Redentoristas,
que controlam a maioria dos santuários no país. Mas, se a reforma se fez contra as
forças locais da tradição, também permitiu que o santuário readquirisse sua im-
portância ao ser integrado na estrutura institucional da Igreja. Isto nos faz pensar
120 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

que a tensão entre o local e o institucional é o que tomou possível ao santuário de


Bom Jesus da Lapa encontrar um lugar no âmbito de um catolicismo e de uma
sociedade que se moderniza rapidamente a partir do final do século XIX.
O discurso dos reformadores, no entanto, está marcado por uma ambigüi-
dade própria de uma instituição tradicional que busca se ajustar ao mundo
moderno. Ao mesmo tempo que os novos dirigentes do santuário afirmam o
poder extraordinário de um Deus que está acima das leis da natureza e que,
portanto, é capaz de realizar milagres, também buscam comprovar, através da
ciência, que esses fatos fazem sentido dentro de um universo racional e cien-
tífico que domina o pensamento moderno. Estabelece-se, assim, uma tensão
que perdura até hoje nos santuários católicos entre uma visão mítica e mila-
grosa da massa de peregrinos e outra racionalizada e doutrinária que é defen-
dida pelo clero.
No final dos anos 50 a luta da Igreja católica contra a modernidade já
começa a dar lugar a uma atitude de diálogo. O Concilio Vaticano Segundo,
que aconteceu no início dos anos 60, consolidou a abertura da Igreja Católi-
ca aos valores modernos. A instituição, através de seus dirigentes, engaja-se
em campanhas que visavam superar o atraso econômico e social do país,
atribuído a um sistema ideológico e educacional que o reproduzia como
parte de uma estrutura tradicional, onde a religião popular era identificada
como uma de suas forças centrais.
Muitos rehgiosos se imbuíram de uma missão purificadora do catolicismo
popular devocional, abrindo um combate, às vezes aberto, outras velado, ao
culto aos santos através de imagens. Desse modo, procuram mudar a orientação
dos peregrinos, buscando substituir às formas tradicionais de práticas religio-
sas, mais palpáveis e concretas, por uma religião que deveria se expressar nas
consciências e na retidão moral dos fiéis.
Em Bom Jesus da Lapa, após um período de intensa repressão às práticas dos
romeiros, levadas a cabo especialmente pelos padres Redentoristas holandeses, a
situação se distende com a substituição destes pelos Redentoristas poloneses, na
década de 70. Esta mudança dos dirigentes vem acompanhada de um movimento
mais abrangente que se observa na pastoral da Igreja católica que busca repensar a
religiosidade popular, valorizando-a enquanto manifestação cultural e resistência à
dominação ideológica.
Por fim, nos anos 80, com o desenvolvimento da Teologia da Libertação
e o compromisso crescente de setores hegemônicos dentro da Igreja católica
com os movimentos sociais e a construção da cidadania política das classes
populares, um novo discurso e novas práticas rituais são agregadas ao culto.
Ao lado da romaria tradicional de Bom Jesus, a Igreja católica, através de
novos organismos eclesiais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Con-
ferência dos Bispos do Brasil (Nordeste III) e a Diocese de Bom Jesus da
121 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

Lapa, criarão a Romaria da Terra.


Esta nova modalidade de peregrinação vai imprimir e legitimar no âmbito do
santuário uma visão do catolicismo que incorpora, como parte de sua identidade
religiosa, a militância e a participação política nos partidos e movimentos popula-
res. Temas como a reforma agrária, os direitos da mulher, a ecologia etc. passam
a circular nos discursos dos dirigentes e participantes da Romaria da Terra. Novos
rituais e uma nova estética se somam às formas tradicionais e reformadas que até
então eram dominantes na romaria, deixando transparecer a diversidade de dis-
cursos e práticas que comporta um evento como o das peregrinações.

a espada e a lagoa: duas versões do juízo final

Tendo presente estas considerações iniciais de caráter histórico, proponho-


me a apresentar algumas estórias sobre o culto que os romeiros fazem circular
em tomo do santuário de Bom Jesus da Lapa. São estórias que recolhi ao longo
dos três anos de trabalho de campo, a maioria das quais também encontrei cita-
das por outros autores que pesquisaram o culto da romaria de Bom Jesus da
Lapa e na literatura escrita divulgada pelos dirigentes do santuário^. Embora
tenham como referência o santuário e o Bom Jesus, são também estórias que os
romeiros contam sobre eles mesmos e sobre a realidade em que vivem, por isso
mesmo continuamente atualizadas. As contradições e os paradoxos não são evi-
tados, mas ao contrário, constituem a base a partir da qual os romeiros comuni-
cam e compreendem sua experiência, ela mesma contraditória e diferenciada.
Através das estórias reinventam o seu contexto cultural e a rede relacionai dos
sentidos e símbolos da sua tradição.
As estórias são parte da dinâmica de negociação vivida no santuário, possi-
bilitando que as mudanças (e a resistência a elas) sejam sancionadas através da
sua inserção numa continuidade histórica (Hobsbawm & Ranger, 1984: 12).
Com isto não pretendo negar que as mudanças na sociedade e no catolicismo
estejam colocando em xeque os princípios de plausibilidade que sustentaram
até hoje as crenças populares. Ao contrário, as estórias apontam para criação e
desenvolvimento de novas redes de convenções e rotinas religiosas no catohcis-
mo popular tradicional. E neste sentido, o santuário tem sido um espaço privile-
giado de incorporação de inovações que são assimiladas na medida em que
conseguem estabelecer um nexo de continuidade com a tradição.
Em suma, as estórias surgem como um evento com força performativa, elas
mesmas fundadoras do espaço sagrado (Certeau, 1994: 209). Pode-se dizer que
as estórias autorizam o estabelecimento do culto, na medida em que oferecem um
mapa dinâmico do espaço e, para usar uma expressão de Michel de Certeau, trans-
122 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

formam o espaço num lugar, instituindo "a ordem segundo a qual se distribuem
os elementos nas relações de coexistência" (1994: 201). Esta função de autoriza-
ção e de fundação, no entanto, não é jurídica, isto é, relativa a leis e juízos, no
entanto, pertence à ordem da instituição, enquanto estabelece uma base mística
para o culto e um campo de referência para as ações dos romeiros.
Partindo do material que recolhi em campo, pretendo trabalhar uma série de
estórias que apontam para uma configuração particular que os romeiros de Bom
Jesus da Lapa fazem do destino escatológico da humanidade, a partir do qual
situam seu lugar no mundo. Um olhar voltado para o futuro que organiza o pre-
sente e interpreta o passado. Mas, como podemos observar pelas próprias estóri-
as, longe de revelar a certeza ou determinismo, as visões do Juízo Final são múl-
tiplas e plurais. Em meio a esta pluralidade vamos destacar duas concepções que
se justapõem: a apocalíptica milenarista e o universo regenerado como paraísol
A versão milenarista aparece entre os romeiros associada à espada de São
Sebastião, cravada na pedra, na entrada da gruta do Bom Jesus e à figura da ser-
pente alada que habita o interior da gruta. Já a versão regeneradora e paradisíaca,
que descreve como seriam os "novos céus" e a "nova terra", é narrada numa estó-
ria fascinante de uma lagoa localizada no centro da rocha e habitada por peixes
dourados e circundada por todas as espécies de plantas e bichos.

a espada de São Sebastião e o milenarismo *

É freqüente encontrar grupos de romeiros parados diante da Gruta de Bom


Jesus, buscando descobrir, entre os arbustos que crescem teimosamente nas fen-
das da rocha, a espada de São Sebastião. Foi numa ocasiões destas, que ouvi de
José Gomes de Souza, romeiro de Francisco Sá - MG, um longo relato sobre a
origem desta espada. Ele explicava para os companheiros de romaria e para algu-
mas pessoas que se agregaram ao seu grupo, movidas pela curiosidade de desco-
brir o que eles olhavam com tanto interesse, que quando São Sebastião venceu a
guerra, fincou a espada lá. Diz que ela só sai de lá, no dia que a guerra voltar.
Então ele apanha a espada e acaba com os inimigos e vence a guerra. A cada ano
a espada vai penetrando na rocha, até desaparecer (ou vai saindo, segundo outras
versões), quando então será o fim deste mundo. Aí então, a guerra há de ser com-
batida, mas não há de ser vencida.
Essa espada, que evoca uma memória densa de significados messiânicos e
escatológicos para os romeiros, liga a sua experiência presente aos primeiros
tempos do catolicismo no Brasil, quando o milenarismo sebastianista impreg-
nava não apenas a cultura católica popular, mas também a pregação do clero^
Segundo Delumeau, a descoberta da América e de uma humanidade até então
123 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

desconhecida foi interpretada pelos grandes pregadores e missionários do Novo


Mundo como um sinal de que o reino dos santos estava próximo e que o fim dos
tempos já não tardaria (1989: 213).
O próprio Colombo tinha a convicção de ter sido eleito por Deus para levar
o cristianismo aos povos pagãos de além-mar:

Ele escreve em uma carta datada de 1500: "Fui eu que Deus escolheu para seu
mensageiro, mostrando-me de que lado se encontravam o novo céu e a terra
nova de que o Senhor falara pela boca de São João em seu ApocaHpse e a de
que Isaías fizera menção anteriormente" (Delumeau, 1989: 213).

A análise da literatura da época não deixa dúvida de que a espera escatológica


motivava o zelo de muitos missionários e aventureiros desembarcados na Amé-
rica^ Soara a hora da última colheita para uma humanidade que se defrontava
com o desconhecido de um mundo nunca antes imaginado. Esse espírito pene-
trou o santuário e se associou a sua história e sua geografia, prolongando-se até
hoje. As estórias são contadas como um meio de atualizar essa memória
escatológica, marcada, ao mesmo tempo, pelo medo de um juízo implacável e
pela esperança de uma regeneração definitiva desse mundo transitório em que
vivem os que estão em peregrinação para o céu.
A espada de São Sebastião é uma referência ao sebastianismo, que atraves-
sou Portugal no século XVII como uma versão altamente difundida do
milenarismo, que prometia o retomo a uma idade de ouro, imaginada como um
autêntico paraíso. Todos os domínios de Portugal, nesse tempo, estão atravessa-
dos por esta esperança milenarista que tem sua fonte principal nas mensagens
escritas em forma de trovas por um sapateiro do século XVI e que foram difun-
didas pelos monges de Alcobaça. No tempo da ocupação espanhola (1580-1640),
os-portugueses recusavam-se a acreditar na morte do rei D. Sebastião, desapa-
recido na batalha de Alcacer-Quibir (1578)1 Assim, alimentaram a crença que
ele retomaria para restituir glória e liberdade ao seu povo. Com a volta de D.
Sebastião, se estabeleceria o reinado dos santos que deveria durar mil anos,
quando todo sofrimento, doença, miséria, desigualdade, exploração do homem
pelo homem desapareceriam (Delumeau, 1989: 210).
No Brasil, esta crença e esperança foram incansavelmente difundidas por
Vieira (1608-1697), que prediz aos sucessivos reis de seu país um destino extraor-
dinário. Cometas, tempestades e inundações parecem-lhe anunciar a passagem
do millenium, no decorrer do qual o papa e o soberano de Portugal govemarão
juntos um mundo pacificado, que se constituirá num reino que será ao mesmo
tempo espiritual e temporal. Dirigindo-se a D. João FV, assegura-lhe que este
império bem-aventurado será constituído "para o aumento da fé, para a glória da
Igreja, para a honra da nação portuguesa, para o crescimento dos bens da fortuna
124 steil, Carlos a l b e r t o . Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

e para maior abundância dos bens da graça" (Cantei, 1960: 101). Em outro texto,
Vieira admira o desígnio divino que escolheu Lisboa como capital deste reino de
paz e harmonia que deveria durar um milênio.

O céu, a terra e o mar concorrem, nesse admirável sítio, para a grandeza univer-
sal do império e para a harmonia, também universal dos súditos. Lisboa é o sítio
mais proporcionado e mais apto à destinação que lhe escolheu o Supremo Arqui-
teto: a construção desse edifício (o império do mundo) (Cantei, 1960: 146).

Essa versão otimista do Juízo Final fortalecida pela pregação de Vieira, no


entanto, se confrontou com visões bem mais pessimistas das autoridades eclesi-
ásticas, que usavam as representações sobre o Juízo Final como meios pedagó-
gicos eficazes para acentuar o destino eterno das almas, a culpabilidade pessoal,
a moral, a retidão de costumes^.
O santuário de Bom Jesus da Lapa é depositário dessa memória messiânica
carregada de esperança escatólogica mas também de temor. Os símbolos na sua
paisagem e o conteúdo das estórias relacionadas com o santuário apontam como
para um inconsciente coletivo dividido entre a expectativa de um longo período
de paz que se projeta no horizonte milenarista, que marcou a pregação de Vieira,
e uma visão pessimista que enfatiza o tempo bem mais sombrio do julgamento,
quando serão separados os bons e os maus.
O relato de José, que transcrevi acima, expressa, nas imagens da guerra
que será "combatida mas não será vencida" e da espada, esse período de guer-
ras e convulsões sociais que deverá anteceder o millenium. Uma perspectiva
que ganha uma coloração ainda mais dramática quando evoca o mito da ser-
pente alada.

No centro da montanha existe uma gruta muito bela, que tem dentro dela uma
lagoa, onde vive uma serpente de asas. Cada ano ela perde uma de suas penas,
e quando ela perder a última então será aberta a entrada da gruta e ela sairá e
vai espalhar morte e destruição para toda a humanidade

A serpente presa na gruta aponta para o mito apocalíptico de "Satanás


acorrentado" (Ap. 12,7-13) que, na perspectiva milenarista do Juízo Final, ge-
ralmente está associado às visões de Daniel (2 e 7), relacionando os elementos
complexos e mesmo contraditórios do Apocalipse com a promessa do
millenium^K Daniel anunciara as quedas sucessivas de quatro impérios - , dos
persas, dos gregos e dos romanos. Um quinto reino deveria sucedê-los, erguido
pelo Deus do céu - reino que jamais seria destruído. Este, às vezes era identifi-
cado com o millenium anunciado por Vieira, o que levava a crer que o Juízo
Final retardaria para além dos mil anos de paz, durante o qual Satã permanece-
125 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

ria acorrentado. Outras vezes a interpretação da profecia ia no sentido de enten-


der que o milleniumjá se iniciara com o nascimento de Jesus, então a ruína do
mundo aproximava-se a passos largos. Ao que parece, essas duas visões estão
presentes na memória dos romeiros, que navegam de um esquema a outro sem
qualquer definição clara de quando seria o fim do mundo.
Essa crença no millenium tanto pode inspirar práticas piedosas e pacifis-
tas, como pode se constituir em fermento de contestação, ou mesmo de vio-
lência e luta armada, como ocorreu em Canudos, no final do século XIX,
envolvendo a comunidade católica dos devotos de Bom Jesus que se espalha-
va pelo sertão da Bahia'^. Dois testemunhos, citados por Otten em seu traba-
lho sobre a apocalíptica popular e a visão escatológica de Antônio Conselhei-
ro (1994), são bastante ilustrativos para mostrar o potencial de violência que a
crença no millenium despertou nos sertanejos que, no final do século passado,
liderados por Conselheiro, combateram a república.

O satanás trouxe a república, porém em nosso socorro vem o Infante Rei D.


Sebastião. Virá o Bom Jesus separar o joio do trigo, as cabras das ovelhas. B ai
daquele que não se arrepender antes, porque, tarde não adiantará. Jejuai, que
estamos no fim dos tempos. Belo Monte será o campo de Jesus, a face de Jeová.
São estes os últimos sinais desta idade, aos quais é acrescido ainda o sinal das
guerras do Anticristo. Mas o esforço do Anticristo chama ao plano D. Sebastião,
que assume o papel do Arcanjo São Miguel. Neste dia, quando sair D. Sebastião
com seu exército terá a todos no fio da espada (...) e essa guerra se acabará na
Casa Santa de Roma (...) (Otten, 1994:70-71).

Do lado das esperas pacifistas, podemos ver traços de um milenarismo ainda


hoje na pregação dos pastores pentecostais que anunciam a segunda vinda de Cristo
e a proximidade do Juízo Final, quando se estabelecerá um novo tempo de paz para
os eleitos e de condenação dos infiéis. Seria, no entanto, temerário identificar as
duas visões do Juízo Final com o catolicismo e o protestantismo respectivamente. O
que se observa é que ambos participam de uma mesma cultura bíblico-milenarista
que resiste às transformações secularizantes da sociedade moderna.

a Lagoa De Peixes Dourados Ou O Universo Regenerado

O mesmo esquema que serviu para os romeiros guardarem a memória do


milenarismo vai servir para guardar uma outra versão do Juízo Final, que aproxima o
tempo mítico do paraíso perdido ao tempo escatológico. Constrói-se, assim, a espe-
rança de um futuro, através de um retomo ao passado, onde o universo regenerado é
126 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

imaginado com os elementos que serviram para descrever o tempo primordial. Aqui,
a imaginação dos romeiros, mais uma vez, chama em seu auxílio a memória bíblica.
As duas versões que serão transcritas em seguida foram narradas por
Matilde e por Verônica, respectivamente.

No centro da pedra, em cima da gruta do Bom Jesus, tem uma lagoa, e o Bom
Jesus está lá. Nessa lagoa têm peixes dourados, eles são encantados. Tinha
uma escada que levava até esta lagoa. Eu mesma, no tempo em que era "mo-
derna", subi a escada, e vi esta lagoa com uma água muito bonita e todas as
espécies de plantas e animais. Mas depois os padres tiraram a escada porque o
povo subia para caçoar dos peixes.
Depois saíram e tornaram a voltar à gruta, mas quando chegaram no lugar do
Bom Jesus, ele tinha sumido. Disseram que ele estava numa lagoa, dentro do
morro e que esta lagoa está cheia de água, com muita flor, onde tem toda
espécie de bicho e de peixe... A finada Martinha, que é tia de minha mãe, disse
que só quem foi lá, nesta lagoa, foi o padre, o bispo, o arcebispo, os capuchinhos.
Agora, ela morreu há muitos anos. Mas isso aí, ninguém prova. Uma mulher
falou para mim, lá na igreja e acredito que o Bom Jesus faz milagres, mas para
experimentar uma coisa assim, eu não tenho coragem.

Essas estórias remetem de imediato a imaginação dos romeiros para um mundo


regenerado segundo o modelo do mito bíblico da criação. A alusão a todas as espécies
de plantas, animais e peixes, assim como a abundância de água, dentro da rocha árida,
evoca o mito do paraíso perdido e o associa aos "novos céus" e à "nova terra", da
Segunda Carta de Pedro. A citação do texto do Gênesis, quando cotejada com as
estórias acima, permite perceber o processo criativo pelo qual os romeiros associam o
mito da criação ao santuário, mantendo assim a esperança da libertação cósmica.

Javé Deus plantou um jardim no Éden, no oriente, e aí colocou o homem que


modelara. Javé Deus fez crescer do solo toda a espécie de árvores formosas de
ver e boas de comer... Um rio saía do Éden para regar o jardim e de lá se dividia
formando quatro braços (Gn 2,8-10)'l

Esta visão que imaginava o fim do mundo como algo iminente, que seria
seguido por um universo regenerado como uma espécie de paraíso, era comum
também entre os reformadores. Segundo Delumeau, o próprio Lutero associava
o Juízo Final ao paraíso que devia se seguir ao tempo do julgamento

A terra não será nua, árida e desolada após o Juízo Final, pois São Pedro disse
que esperamos uma nova terra e novos céus, ali colocará cãozinhos cuja pele
será de ouro e cujos pêlos serão de pedras preciosas. Não haverá mais animais
127 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

carnívoros, nem bichos venenosos como as serpentes e os sapos, que se torna-


ram maléficos e nocivos por causa dos pecados da terra. Estes animais não só
deixarão de nos ser nocivos como se tornarão amáveis, bonitos e carinhosos, a
fim de que possamos brincar com eles (Luther, M., 1844:176; cit. por Delumeau,
1989: 214).

A naiTativa do fim do mundo foi dominante no Ocidente cristão até o sécu-


lo XVIII, dele partilhando tanto o povo, quanto os intelectuais da época. Os dois
discursos, o dos sinais anunciadores do fim do mundo e da regeneração ecológi-
ca do universo, se correspondiam e se reforçavam mutuamente. O mundo era
velho, tudo ia mal e logo iria ainda pior. Por isso, só restava esperar, ou um
paraíso terrestre que duraria mil anos, ou um paraíso que viria, depois que tudo
tivesse desabado aos pés do Grande Juiz, descido do céu para a suprema presta-
ção de contas. É esta segunda hipótese que apresenta o Peregrino da América,
para os católicos no início do século XVIII, depois de sua longa pregação sobre
os Novíssimos: o Juízo Final, a morte, o purgatório, o inferno e o céu.

Tudo neste venturoso Estado é permanente e sereno dia, eterna primavera,


flores que não murcham, verduras que não secam, fontes de eterna vida, rio
perene de delícias, que alegra com sua vista e luzida corrente a cidade da Gló-
ria: tudo música suavíssima em alternados coros de espíritos angélicos e lou-
vores de Deus (Pereira, 1988: v.II, 303).

Esta crença no Juízo Final era parte de uma cultura onde predominava a
narrativa bíblica, que lhe oferecia o paradigma a parrir do qual os homens
pensavam o mundo. Dentro deste paradigma, a despeito dos pequenos desa-
cordos, ninguém imaginava uma cronologia de longa existência para o mun-
do, como a que se vai elaborar com o advento da modernidade, especial-
mente com as idéias de progresso e evolução que se tornam dominantes a
partir do século XIX.

a questão da oralidade e da escrita

Tendo percorrido este vasto material de campo, gostaria, ainda à guisa de


conclusão, de fazer algumas reflexões sobre a relação entre oralidade e escrita na
tarefa daqueles que se propõem a transpor para o contexto da academia, referida
fundamentalmente à cultura escrita, os relatos e estórias ambientadas no contexto
da tradição oral. Nesse sentido, chamaria a atenção para a observação de ítalo
Calvino de que a adequação do não-escrito ao escrito é sempre problemática,
porque "ao se dar conta da densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia,
128 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

a linguagem escrita se revela lacunosa, fragmentária e diz sempre menos com


respeito à totalidade do que foi experimentado" (Calvino, 1988: 88).
A observação de Calvino se revela bastante familiar a todos aqueles que já
se depararam com a experiência de campo, marcada por uma relação essencial-
mente dialógica e partilhada com uma comunidade de informantes. A solidão
da escrita nos distancia sempre do contexto da fala, de modo que a tendência
dominante é tomar as estórias como documentos escritos na medida em que
passamos a manuseá-las na materialidade dos registros e transcrições que estão
ao nosso alcance. Nesta situação, os múltiplos sentidos que no contexto oral são
sempre flutuantes tendem a se tomar fixos nas páginas de um caderno de cam-
po, às quais temos voltar inúmeras vezes.
Na reprodução e transmissão das estórias, trabalhamos, portanto, com
fragmentos de uma conversação fechada, uma vez que nos vemos impelidos a
dar uma configuração e um sentido ao texto que estamos escrevendo a partir
de um outro contexto discursivo. A escrita, como afirma Goody, "estabelece
uma relação diferente entre a palavra e o seu referente, uma relação mais abs-
trata e menos conectada com as singularidades do lugar e do tempo, que é
própria da comunicação oral" (Goody & Watt, 1968: 44). Desse modo, ao
perdemos a continuidade da fala e a cadeia de interlocutores dentro da qual as
estórias adquirem um sentido particular e relacionai, acabamos estabelecendo
uma outra comunidade, os nossos interlocutores acadêmicos, onde os senti-
dos são ressignificados. Enfim, o acesso às estórias, no ato da escrita, passa
necessariamente pela assimilação do desconhecido no conhecido ou do não-
familiar no familiar a partir das formas de comunicação do nosso próprio mun-
do, referido fundamentalmente à escrita^^.
Acostumados a pensar a partir de uma cultura escrita, diz Ong, a nossa
tendência é ver a palavra falada como a "modificação de algo que normalmente
é ou deveria ser escrito" (1986: 32-33), ao passo que no meio oral a palavra
surge como "algo que acontece, um evento no mundo do som, através do qual a
mente é capaz de relacionar-se consigo" (1986: 32). Nas culturas não-letradas,
a linguagem é desenvolvida em uma associação íntima com seu contexto (Goody
& Watt, 1968: 30). A verdade é sentida em sua imediaticidade e a memória é
sempre temáüca. A aprendizagem é celebrativa. "Apenas com a invenção da
escrita e o isolamento do indivíduo da tribo é que a aprendizagem e a compreen-
são se tomam trabalho, distinto do jogo" (Ong, 1986: 30).
A ênfase de Ong sobre a descontextualização através da escrita é impor-
tante para se compreender os limites que se colocam para a interpretação das
estórias orais. No entanto, é apenas dentro de um horizonte metafísico que se
pode postular uma cultura puramente oral, porque, nos limites do discurso
antropológico, o que se encontra é uma situação onde o contraste entre as
formas orais e a escrita sempre pode ser quesdonado (Chartier, 1992: 231)'^
129 s t e i l , Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

Nas estórias que tomamos como referência neste trabalho a oralidade e a


escrita não apenas se misturam, mas se reforçam mutuamente^'^. É esta interação
entre a oralidade e a escrita que produz um contexto singular que coloca em
movimento a "circulação entre mito e história", segundo a rica sugestão de Lévi-
Strauss (1989: 259).

Resumo: Partindo do contexto cultural e religioso dos peregrinos do


santuário de Bom Jesus da Lapa, BA, o presente trabalho analisa
duas versões sobre o fim do mundo que aparecem nas narrativas dos
romeiros. Essas versões estão centradas em torno de dois signos: o da
espada, encravada na rocha, eoda lagoa com peixes dourados, loca-
lizada no centro da gruta. Esses signos reinterpretam e atualizam a
escatologia biblico-católica em suas vertentes otimista, associada a
um período de mil anos de felicidade, e catastrófica, que remete a
guerras e hecatombes. Sem optar por uma das versões, os romeiros
mantêm a tensão, deixando aberto o futuro. A propósito das narrati-
vas, o artigo discute ainda a relação entre oralidade e escrita como
contextos que, ao mesmo tempo que se opõem, também se reforçam,
na formação do imaginário social dos romeiros do sertão nordestino.

Palavras-chave: peregrinação, catolicismo, oralidade/escrita, cultu-


ra popular

Abstract: Beginning from the Jesus da Lapa's pilgrims' cultural and


religious context, localised in Bahia, the present work analyses two versions
about the end ofworldfounded in the pilgrims 'narratives. These versions
are centred around two signs: the one of the sword imbeded in the rock
and the one ofthe lake with goldfishes which is in the centre ofthe grotto.
These signs are interpreting and actualising the scatology biblical-catholic
in its optimistic and catastrophic slopes. The first one is associated to a
period ofa thousand years of happiness and the second remits to wars
and hecatombs. Not choosing one ofthe versions, the pilgrims keep the
tension, letting an opened future to be. Concerning the narratives, this
article also discusses the relation between the orality and literacy as
contexts that while oppose themselves also reinforce themselves, in the
formation ofthe pilgrims 'social imaginary of the hinterland of Northeast.

Keywords: pilgrimage, Catholicism, oral/writing, popular culture.


130 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

Notas

^ O ciclo do ouro, no século XVIII, teve influxo ponderável sobre o desenvolvimento da


região do Médio São Francisco, onde se localiza Bom Jesus da Lapa. A mineração das
Minas Gerais e do rio das Contas, na Bahia, constituiu um mercado importante, incen-
tivando a produção pecuária e agrícola no vale do São Francisco, que se tornou um
abastecedor daquelas regiões (Cf. Carvalho, 1981).
2 As pesquisas que citam essas estórias são especialmente as de Segura (1937), Pierson
(1972) e Kocik (1988, 1990). Este último reúne uma variedade de documentos e
pesquisas sobre o santuário que fazem referências a diversas estórias que ouvimos
dos romeiros.
Esta mesma justaposição foi destacada por Delumeau em seu livro A história do
medo no Ocidente, mostrando que está presente nos textos bíblicos que alimentaram
a crença no Juízo Final (1989: 213). Para o autor isto refletia as confusões existentes
no espírito daqueles que nos primeiros tempos do cristianismo eram tomados pela
espera escatológica.
Os romeiros referem-se com muito mais freqüência a São Sebastião do que a D. Sebas-
tião, embora este apareça em alguns relatos onde a transição de um ao outro é "natu-
ral". Pode-se ver São Sebastião ou D. Sebastião como "personalização de verdades",
ou como tipos literários, onde o que interessa é a ação e não os traços existenciais do
personagem (Kelber, 1983: 69). Mas, também pode-se pensar na passagem de D. Se-
bastião para São Sebastião como um processo análogo ao que aconteceu com as divin-
dades africanas que foram apresentadas sob a "máscara dos santos católicos". Ainda
mais, se se tem presente que também em relação ao sebastianismo houve uma forte
perseguição tanto da Inquisição quanto da República.
^ Na explicação dos padres e dos moradores da Lapa a espada que os romeiros identifi-
cam sobre a entrada da gruta do Bom Jesus seria apenas um suporte que sustentava
uma lamparina de gás, quando nâo havia eletricidade na cidade. Ao construir uma
explicação racional e desmistificadora para a espada, os padres e os moradores se
colocam na contracorrente de uma tradição milenarista que marcou as origens e a
implantação do catolicismo no Brasil, e que, ainda hoje, permanece viva no contexto
oral dos romeiros, onde a memória parece ter sempre uma longa duração.
^ A respeito dos aspectos escatológicos e das missões na América, cf. R. Richard, La
"Conquête spiritualle" du Mexique, Paris, 1933. M. Bataillon; Nouveau Monde et fin
du monde, Education Nacionale, n. 32, dez. 1952; P. L. Phelan, The millenium kingdom
of the franciscans in the New World, Berkeley, 1956.
^ O corpo do rei D. Sebastião foi encontrado em Rabat em 1957.
^ Para um maior aprofundamento do milenarismo português na obra de Vieira, cf. R.
Cantei, Prophétisme et messianisme dans Voeuvre d'A. Vieira. Paris, Gallimard, 1960.
As principais obras de Vieira que pregam o milenarismo são História do futuro e Clavis
prophetarum.
131 s t e i l , Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

^ A literatura aqui apresentada sobre Vieira conduz a conclusões opostas às que che-
gou o historiador Eduardo Hoonaert sobre o seu papel na implantação do catolicis-
mo brasileiro. Hoonaert afirma que "Vieira e o clero da época com ele, viveu um
tempo em que as convicções eram sólidas, as verdades incontestes, as boas intenções
acima de qualquer suspeita. Havia então uma visão de conjunto que explicava tudo,
que dava sentido à vida humana mesmo nas condições mais deprimentes como fo-
ram as condições humanas no Brasil português. Mas esta visão de conjunto não
possibilitava nenhum diálogo com a religião vivida pelo povo e com as aspirações
populares de libertação: eis a grande tragédia da Igreja no Brasil dos séculos XVI e
XVII, como aliás continua sendo até hoje" (1978: 36). Leituras lineares como esta e
de corte ideológico erradicam as oposições constitutivas do catolicismo que estão
presentes desde sua origem e o perpassam em todo o seu desenvolvimento histórico.
Se Vieira estivesse de fato colado às "convicções sólidas" a que se refere Hoornaert,
não teria tido problemas com o Santo Ofício, que via nas suas pregações otimistas
sobre o Juízo Final suspeitas de heresia.
A mesma estória, com uma grande coincidência de detalhes, foi transcrita no Guia dos
Romeiros e Turistas de Bom Jesus da Lapa (1969). Esta estória é narrada aí como um
exemplo das "crendices" populares dos romeiros. O autor, no entanto, procura encon-
trar uma explicação racional e um possível fundamento "científico" para esta crença,
escrevendo que "a origem dessa lenda é indígena. A ciência, de fato, mostra que a tal
gruta pode e deve ter existido, uma vez que a montanha está em parte submersa pela
erosão em leito de rio de basalto" (Kocik, 1991: 47, v. 3). Tem-se a impressão, às
vezes, que as explicações racionalizadoras do clero são ião fantásticas quanto as estó-
rias dos romeiros.
^^ Satã aparece nesse texto do Apocalipse identificado com o dragão e com a serpente, o
que possivelmente está na origem da estória de José. Esta associação com o dragão
também permite que, em algumas versões, a espada cravada sobre a gruta do Bom
Jesus seja atribuída a São Jorge.
Os estudos sobre Canudos são uma fonte importante para se perceber o espírito e os
valores que estão no centro da cultura sertaneja, da qual as romarias para Bom Jesus da
Lapa fazem parte. E, nesse sentido, além dos trabalhos produzidos no campo das ciên-
cias sociais, crèio que dois romances são fundamentais, na medida em que buscam
introduzir o leitor no clima que se vivia na época: Os Sertões, de Euclides da Cunha e
Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa. Quanto aos trabalhos acadêmicos,
há uma literatura bastante vasta que cobre os campos da história, da sociologia e mes-
mo da teologia. Entre as obras históricas pode-se citar: Queiroz (1965); Carone (1977)
e Nogueira (1978). Dentro da literatura sociológica: Galvão (1977); Monteiro (1977) e
Facó (1978). Mais recentemente, Alexandre Otten escreveu uma tese de doutorado em
teologia, na Gregoriana (Roma), que foi publicada no Brasil (1990).
^^ Há dois relatos da criação no início do livro do Gênesis, o primeiro que é atribuído
à fonte sacerdotal, mais abstrata e mais teológica e o outro pertencente a fonte
132 steil, Carlos a l b e r t o . Imaginário - usp, n» 6, pág. 1 1 8 - 1 3 5 , 2000

javista. São duas narrativas combinadas que utilizam tradições diversas: uma nar-
rativa da criação do homem distinta da criação do mundo e que não é completa
senão pela criação da mulher e pela aparição do primeiro casal humano (Gn 2,4b-
8,18-24) e uma narrativa sobre o paraíso perdido, a queda e o castigo, que começa
em 2,9-17 e continua por 3,1-14.
Segundo Delumeau, "o nascimento da Reforma protestante será mal compreendido se
não o situarmos na atmosfera de fim do mundo que reinava então na Europa. Se Lutero
e seus discípulos houvessem acreditado na sobrevivência da Igreja romana, se não se
tivessem sentido acossados pela iminência do desfecho fmal, sem dúvida teriam sido
menos intransigentes em relação ao papado; mas para eles nenhuma dúvida era possí-
vel: os papas da época eram encarnações do Anticristo" (Delumeau, 1989: 222).
^^ Assumo, aqui, a perspectiva de autores como Goody & Watt (1968); Ong (1986); Kelber
(1983) para os quais a consciência humana é estruturada no pensamento pelas formas de
comunicação e que o pensamento é devedor do meio através do qual o conhecimento é
adquirido, de forma que se pode falar de culturas orais e escritas, ou não-letradas e letradas.
^^ Chartier, ao discutir a relação da oralidade e da escrita na cultura francesa, afirma que
a oposição entre o oral e a escrita não consegue explicar a situação em que estes meios
de comunicação se sobrepõem (1992: 232).
^^ Embora use a oposição entre cultura oral e escrita para demarcar dois campos distin-
tos de práticas e sentidos que são produzidos e veiculados pelos atores religiosos na
romaria de Bom Jesus da Lapa, é preciso ressaltar que, especialmente em relação à
cultura oral, não se trata de uma cultura oral primária, no sentido de culturas que
nunca tiveram conhecimento da escrita.

referências bibliográficas

BATAILLON, M. Nouveau Monde et fin du monde. Education Nacionale,


n. 32, dez. 1952.

CALVINO, ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1988.

CANTEL, R. Prophétisme et messianisme dans Voeuvre d'A. Vieira. Paris: Ed.


Hispano-américaines, 1960.

CARONE, Edgar. A República Velha, evolução política. Rio de Janeiro, 1977.

CARVALHO, Vaílton L. de. História do Rio São Francisco. Salvador:


SEPLANTEC/CPE, 1981.
133 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vo-


zes, 1994.

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova histó-
ria cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.

CRAPANZANO, Vincent. Text, transference and indexicality. Ethos, v. 9, n. 2,


p. 122-148, 1981.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 29. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves/MEC,
1979.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente - 1300-1800. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. A guerra de Canudos nos jor-


nais. São Paulo, 1977.

GAUCHET, Mareei. Le désenchantement du monde. Une histoire politique de


lareligion. Paris: Gallimard, 1985.

GOODY, Jack & WATT, lan. The consequences of literacy. In: GOODY, J. (org).
Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968.

HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1984.

HOONAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. 1550-1800.


Petrópolis: Vozes, 1978.

KELBER, Wemer H. The oral and the written gospel. Philadelphia: Fortess
Press, 1983.

. Narrative as interpretation and interpretation of narrative: hermeneutical


reflections on the Gospels. In: MARANHÃO, TúHo (org.). The interpretation
of dialogue. Chicago/London: University of Chicago Press, 1990.

KOCIK, Lucas. Santuário do Bom Jesus da Lapa. Bom Jesus da Lapa: Gráfica
Bom Jesus, 1988.
134 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

Romaria de Bom Jesus da Lapa. Bom Jesus da Lapa: Gráfica Bom


Jesus, 1990.

Romaria de Bom Jesus da Lapa. Bom Jesus da Lapa: Gráfica Bom


Jesus, 199L

LLOSA, Mario Vargas. A guerra do fim do mundo. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1990.

MARQUES PEREIRA, Nuno. Compêndio narrativo do Peregrino da América


- 1728. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, v. 1 e 2, 1988.

MILBANK, John. Theology and Social Theory. Beyond secular reason. Oxford/
Cambridge: Basil Blackwell, 1990.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Con-


testado. HGCB, n. 2, p. 42-92, 1977.

ONG, Walter J. The presence ofthe word. Some prolegomena for cultural and
religious History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.

OTTEN, Alexandre. Só Deus é grande. A mensagem religiosa de Antônio Con-


selheiro. São Paulo: Loyola, 1990.

PHELAN, P. L. The millenium kingdom ofthe franciscans in the New World.


Berkeley, 1956.
PIERSON, Donald. O homem do vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério
do Interior/Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), v. 1-3,1972.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São


Paulo: Dominps, 1965.

RICHARD, R. La 'Xonquête spiritualle" du Mexique. Paris, 1933.

SAHLINS, Marshall. Historical metaphors and mythical realities. Structure in


the Early History of the Sandwich Islands Kingdom. Michigan: The University
of Michigan Press/Ann Arbor, 1981.

SANCHIS, Pierre. O reptopentecostal à cultura "católico-brasileira". Rio de


Janeiro: ISER, 1992 (mimeo).
135 steil, Carlos alberto. Imaginário - usp, n» 6, pág. 118-135, 2000

SEGURA, Turíbio V. Bom Jesus da Lapa. Resenha histórica. São Paulo: Gráfi-
ca "Ave Maria", 1937.

TURNER, Victor & TURNER, Edith. Irmge andpilgrimage in Christian culture.


Oxford: Basil Blackwell, 1978.

VELHO, Otávio. O Cativeiro da Besta-Fera. Religião & Sociedade. Rio de Ja-


neiro, n. 14/1, p. 4-27, mar. 1987.

. Relativizando o relativismo. Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 120-


130, mar. 1991.

WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: The University of Chicago


Press, 1981.
136 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Ia virgen de l u j á n i El
uai 1 agro de urna identidad
*

eloísa martín**

introducción

La imagen de Ia Virgen de Luján, que llegó a Argentina para ser dedicada al


culto doméstico en Io que hoy es Ia provincia de Santiago dei Estero, tuvo una
devoción popular muy modesta hasta entrado el siglo XX, a partir de cuando,
merced al esfuerzo conjunto de Iglesia y Estado, su devoción comenzó a ser pro-
movida.. Este artículo pretende describir y analizar Ia construcción de Ia Virgen
de Luján como símbolo de identidad nacional, entre 1930 y 1965. Este recorte
temporal y sus subdivisiones responden a Ia necesidad de considerar cómo deter-

= Dos versiones de este trabajo fueron presentadas en noviembre de 1997 y junio de


1998, respectivamente en el VII Congreso Latinoamericano de Religión Popular y
Etnicidad y en Ias VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas en Latinoamérica,
ambos realizados en Buenos Aires. Agradezco al Dr. Alejandro Frigerio por los
ricos comentários y valiosas sugestiones durante Ia elaboración de este trabajo.
* Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
137Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

minados acontecimientos históricos marcaron a Ia Iglesia y al Estado, como con-


texto necesario para entender Ia construcción de una identidad nacional-católica
centrada en Ia devoción a Ia Virgen de Luján. Así, por un lado, 1930 marca Ia jura
dei Patronazgo de Ia Virgen y Ia consolidación dei catolicismo integral en Argen-
tina, y 1965, el final dei Concilio Vaticano II, cuyas consecuencias comenzarán a
verse con mayor fuerza aqui en Ia década siguiente. Por otra parte. Ia necesidad de
dividir en subperíodos responde a los altibajos en Ias relaciones entre el Estado y
Ia Iglesia, especialmente con relación al peronismo.
La inserción de Ia imagen de Ia Virgen de Luján en distintas instancias dei
espacio público y Ia asignación de nuevos patronazgos cumplirán un doble papel:
por una parte. Ia de siginificar el espacio en que es emplazada como católico. Por
otra, reforzará Ia legitimidad de ésta Virgen como símbolo de una nacionalidad,
homologando los términos "argentino" y "católico".
Para ello he analizado sistemáticamente diversas publicaciones catóUcas,
especialmente los números comprendidos entre 1930 y 1965 de Ia Revista La
Perla dei Plata (en adelante PP), órgano oficial de Ia Basílica de Luján. Dado
que se trata de una publicación mensual, he tomado una muestra representativa
dei período'. Como apoyatura, y debido a su importancia a nivel nacional y por
ser también "síntesis dei catolicismo integral argentino" (Cfr. Mallimaci, 1996b:
274), he consultado también Ia Revista Critério (en adelante C) durante el mismo
período. Finalmente, libros de autores católicos han complementado los datos
recogidos en Ias publicaciones periódicas.

identidad nacional

La Nación, cuya principal función política, según Giménez (1993/ 94) es


Ia de convertirse en Ia principal referencia para Ia legitimidad dei Estado, es
un artefacto cultural creado históricamente que genera una adhesión profunda
en los individuos (Cfr. Anderson, 1997). Al hablar de identidad nacional
debemos considerar, siguiendo a Rodrigues Brandão (1988), que Ias identida-
des son estratégias simbólicas que ayudan a Ia comprensión de Ia cultura naci-
onal, en Ia medida en que entendamos cómo ellas mismas son históricamente
construidas y cómo participan dei universo de símbolos y significaciones que
traza Ia historia de Ia cultura de Ia que son parte. Dichas estratégias son, en
este sentido, imaginarios sociales^ por médio de los cuales Ia comunidad de-
signa su propia identidad elaborando una representación de sí misma.
Tal como afirma Oliven (1992), el proceso de unificación nacional que acompafia
Ia formación dei Estado, además de centralizarei poder, se ha mostrado históricamente
opuesto a Ia manutención de diversidades culturales y regionales (Cfr. Garcia Garcia,
1 3 8 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 1 3 6 - 1 5 8 , 2000

1994:177) procurando "demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz


e o que não faz parte de nação". En este sentido, Ia construcción imaginaria de una
identidad nacional hegemônica nos remite inmediatamente al problema dei "Otro".
Toda identidad implica necesariamente diferenciarse de un "Outro": se erige en un
contexto donde están presentes otras identidades, en un juego especular con Ias
identidades vecinas (Lõfgren, 1989; Garcia Garcia, 1994). Pero el "Outro" se
encuentra también al interior de Ias fronteras de Ia Nación, por Io que es imprescindible
considerar Ia estructura peculiar que Ia pluralidad asume en cada caso: existe un
múltiple posibilidad de "nosotros" previa a Ia imposición/elección de un único
nosotros. En este sentido, toda elección/imposición de una identidad nacional es
poKtica, pues su construcción hegemônica descansa en el conflicto entre múltiples
nosostros posibles. Las diferencias son asimiladas por coerción o por negociación,
pero no desaparecen, las tensiones persisten.
La idea moderna de Nación se caracteriza por su recurso al "pueblo" como
expresión de lealtad e identidad, pero también como condición de posibilidad
para su existencia. Gellner plantea, en este sentido, que Ia identidad nacional
resultará de un proceso de homogeneización estatal, de "asimilación" cultural
e institucional desde el Estado de grupos marginales y regiones periféricas
(apud Garcia Garcia, 1994:167 y ss.), esfuerzos orientados a dicha construcción
dei pueblo. La función de legitimación dei Estado, por médio de simbolos,
que posee Ia Nación es central en nuestra investigación. Pero Ia efectividad de
cualquier imaginario - para lograr Ia dominación simbólica - radica principal-
mente en Ia posibilidad de su difusión (Baczko, 1991: 31). La multiplicación
de Ia imagen de Ia Lujanera en el espacio público responde a esta exigencia.
Antes de continuar, es necesario aclarar algunas premisas presentes en Ia
conceptualización de identidad nacional utilizada en este trabajo:
1. Cada identidad es Io que es sólo a través de sus diferencias con todas las
otras (construída por un juego especular, como veiamos antes).
2. Siguiendo a Laclau (1996; 1997), considero que el principio universal
que homogeiniza a los distintos componentes de esta comunidad imaginada e
imaginaria no es algo positivo, sino consecuencia de una amenaza externa.
Cualquier identidad necesita de limites, de un contexto cerrado, para apuntar a
Io que está más allá de ellos: una exterioridad radical que es percibida como un
peligro para Ia existencia de Ia comunidad.
3. Las metáforas, los simbolos que son utilizados para aludir a Ia Nación, para
"alimentar" Ia identidad nacional, no son el sedimento de una corriente única,
homogênea y permanente, sino que son fruto de un proceso por el cual un proyecto
de identidad particular se impone con pretensión de validez universal sobre otros
proyectos particulares, como consecuencia de Ia amenaza de un otro diverso radi-
cal. En este sentido, afirma Laclau, el momento de Ia universalidad, el momento de
Ia homogeneidad total de Ia comunidad sólo es posible en cuanto utopia, "...sólo
139Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

alcanza presencia discursiva a través de un contenido particular que se despoja de su


propia particularidad para representar esa plenitud." (Laclau, 1996: 101). Este
contenido particular que asume Ia función de representar el momento de Ia
totalización, pasa a ocupar un papel hegemônico, donde los valores y principios
particulares pretenden una validez ilimitada y un cierre definitivo en Ia escisión
constitutiva entre singularidad y universalidad: "Ia completitud ausente de Ia estmctura
[de Ia comunidad nacional en este caso] debe ser representada/ tergiversada por uno
de sus contenidos particulares (una fuerza política, una clase o un grupo). Esta relación
por Ia que un elemento particular asume Ia tarea imposible de representación uni-
versal, es Io que llamo relación hegemônica. (Laclau, 1997: 79. Itálicas en el origi-
nal) Es necesario, por Io tanto, identificar a este "Outro" para entender de qué manera
Ia identidad nacional, como resultado impermanente de una relación hegemônica,
se ha construido y por qué ha adoptado ciertos símbolos y no otros.
En el caso argentino, para el imaginario nacional-católico construído a partir
de Ia alianza entre Estado e Iglesia desde 1930, en Ia categoria de "outro" entrarán
todos aquellos que no pertenezcan a Ia tradición hispano/católica, que valoriza Ia
jerarquía como ordenadora de Ia sociedad y privilegia a Ia Iglesia y al Ejército
como pilares de Ia "verdadera argentinidad". El proceso de "asimilación" cultural
e institucional necesario para obtener una homogeneidad cultural que garantice
una base de legitimidad al Estado será encarado a través dei proceso de nation-
building: ferrocarriles, educación generalizada y homogeinización cultural (que
en Argentina fue llevada a cabo por médio dei servicio militar obligatorio prévio
al otorgamiento de Ia ciudadanía, en 1901). Estas medidas fueron llevadas a cabo
en Argentina por Ia Generación dei '80, positivista y liberal. Lo que mostraremos
en éstas páginas es como estos "pilares" de Ia nacionalidad son resignificados al
ligarlos con Ia imagen de Ia Virgen de Luján.
Según lo planteado por Zanatta (1996) y por Malfimaci (1992; 1993;
1996a y b), es a partir de 1930 que se consolida el modelo de Ia Argentina
Católica IntegraP: el catolicismo empieza a jugar como dador de identidad
nacional, desde un proyecto totalizante de sociedad fundada sobre bases
cristianas, y de un orden temporal sometido a Ia regulación divina. Este ca-
tolicismo integralista busca ser Ia gran matriz cultural que dé sostén a Ia
nacionalidad, símbolo de argentinidad y "autêntico" catolicismo, a pardr de
lo cual comienza a jugar como dador de identidad nacional, rescatando su
origen y tradición hispânicos en un intento de conjurar cualquier rastro
aborigen en Ia lectura de Ia nacionalidad. Por otra parte, el ambiente social
crítico a los valores liberales y el temor al "peligro rojo" resultan propicios
para Ia implantación de un proyecto basado en Ia doctrina cristiana.
Es necesario aclarar que, si bien Iglesia y Estado confluyen en un imaginario
de identidad común. Ia relación entre Ias instituciones a lo largo de todo el peri-
odo analizado no es de permanente paz y cooperación, sino que se observa un
140 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

mayor o menor nivel de conflicto o armonía, debido a que ambas compiten por
ocupar espacios en Ia sociedad civil. La existencia de un catolicismo integral,
con pretensiones universalistas choca irremediablemente con los gobiernos de-
mocráticos y con Ia democracia de partidos. Por el contrario, sus relaciones con
Ias dictaduras militares son inmejorables, pues en tanto le sirvan a éstos como
base de legitimación, ganará mayor injerencia en Ia sociedad civil.

surgimiento y consolidación de Ia virgen de luján


en el espacio público

primera etapa: 1930-1942

La devoción a Ia Virgen de Luján se ha extendido tan ampliamente que


casi no hay hogar criollo en que no se encuentre su bendita imagen... jOh!
Preservemos con esta tradiciones y prácticas a nuestras famílias dei veneno
de Ias nuevas ideas que van minando Ia estabilidad de Ia Patria... Reine su
imagen en todas Ias casas y establecimientos argentinos!

(PP n. 11 y 12, Noviembre/Diciembre de 1932, p. 323)

Segun afirman Mallimaci (1992,1993,1996 a y b) y Zanatta (1996), Ia Iglesia,


que desde Ia década dei '20 viene rearmándose, frente a Ia crisis dei Estado libe-
ral, avanza sobre este Estado para penetrar y cristianizar Ia sociedad civil y desde
allí consolidar un modelo de Argentina católica "integral". Se pasa, así, de un
catolicismo a Ia defensiva a uno a Ia ofensiva, que busca disputar cristianizar Ia
sociedad y así implementar el "nuevo orden cristianó".
En Octubre de 1930 se jura a Ia Virgen de Luján como Patrona de Ia Argenti-
na. Este hecho es significativo para entender el nuevo lugar de Ia Iglesia en Ia
sociedad nacional, pues a partir de este acto Ia Iglesia obtiene Ia figura simbólica
para reivindicar Ia "verdadera" representación de Ia Nación, en detrimento tanto
de Ias banderas liberales y socialistas, como de Ias de los "otros" catolicismos.
^Qué significa esta jura dei Patronato? Según un autor católico, es Ia

...formulación verbal: pública y oficial, de toda una colectividad; en nuestro caso


dei pueblo de Ia Nación Argentina, que se obliga con Nuestra Senora a tomaria
como Patrona Jurada de Ia Patria y honraria como tal, en Ia certeza de que Ella
corresponderá con creces..." (Presas, 1993a: 268, y 1993b: 79. Italicas mias.)
141Imartín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Podemos entender los motivos por los que Ia Virgen de Luján es jurada
Patrona en Ia palabras de Monsenor Miguel De Andréa durante dicho acto:

Jurar el Patronato de Ia Virgen de Luján es, desde el punto de vista nacional,


empenar el honor ante Dios y Ia Patria por mantener Ia incolumnidad de Ia
tradición que ella encarna y que es religiosa y patriótica..sin cuyos principios
cardinales perece Ia identidad histórica de Ia Patria, que debe ser indivisible
y única. ^ Y cuáles son esos principios cardinales que a toda costa y no obstante
cualquier evolución debemos mantener? Dios, Patria, Familia y Propiedad\
(italicas mias)

Como aparece claramente en Ia alocución de De Andréa, Ia Lujanera es


Ia encarnación de Ia identidad nacional, que es única e indivisiblemente
religiosa y patriótica, y es también Ia guardiana de los principios cardinales
de una tradición que no es otra que Ia ligada a Ia religión católica.
La jura dei Patronazgo puede ser en el mismo contexto de catolización de
Ia sociedad junto con el Congreso Eucarístico Internacional y el importante
aumento en el número de parroquias^. Sin embargo, Ia jura dei Patronazgo fue
un acto menor en comparación con el Congreso Eucarístico, dei cual Ia imagen
de Ia Lujanera fue también patrona.
El Congreso Eucarístico Internacional, realizado en Buenos Aires en Octubre
de 1934, es el acontecimiento emblemático de éste período. No fue solamente
una celebración religiosa, sino que fue presentada por Ia Iglesia como un suceso
nacional^ y constituyó el mayor logro dei catolicismo integral.
La fusión de patriotismo y catolicidad que se sella con el Congreso
Eucarístico es explicitado en una artículo de Ia época:

Ya no es posible separarlas... |loado sea Dios! La historia y Ia voluntad dei


pueblo argentino ias ha unido para siempre. Es la fórmula de TODO LO
NUESTRO. 1934... es la primera página de un nuevo poema que hemos
iniciado...^

En cuanto a la presencia de la Virgen en espacios más "seculares", vemos que en


1937 se inauguró la bnea "D" de subterrâneos en la ciudad de Buenos Aires. En sus
estaciones pueden verse los murales de Alfredo Guido, representando a "La Argentina
de ayer y de hoy". En uno de ellos, en la estación "9 de Júlio", puede verse

...a la Virgen enmarcada en el follaje de un corpulento ombú y cerca dei


Rio, y... la imponente y esbelta Basílica... Suman millones los pasajeros
que han contemplado estos murales que exaltan los verdaderos valores de
la Nación Argentina^.
142 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

La presencia cada vez mayor de Ia Virgen de Luján en el espacio público,


como he intentado mostrar, va a hacer eclosión en los anos siguientes, especial-
mente durante los primeros anos dei gobierno peronista.

segunda etapa: 1943-1955

No hay momento de Ia vida familiar o social argentina que no esté de un


modo u otro ligado a Ia famosa Virgen, Patrona hoy de tantas entidades.

(Monsenor Serafmi, 5 de Mayo de 1949^)

Durante esta etapa se lleva a cabo Ia catolización dei Estado desde adentro,
pues numerosos funcionários dei gobierno que llega al poder con el golpe de
junio dei '43 son sacerdotes y laicos católicos.
Mallimaci (1992:327) afirma que con el Justicialismo "el monopolio de Io cristiano
y en especial de Io católico, deja de estar en manos de los 'profesionales de Ia fe', de
los 'notables católicos' y se expande por todo el cuerpo de Ia sociedad argentina".
Según algunos a u t o r e s e l elemento principal por el cual Ia Iglesia apoyó
efusivamente al peronismo en un primer momento, fue Ia coincidência entre
éste y Ia Doctrina Social de Ia Iglesia, así como el reconocimiento de ciertas
demandas históricas de ésta^^ Sin embargo, Ia tendencia dei peronismo de
identificarse totalmente con Ia doctrina social de Ia Iglesia provocó roces, espe-
cialmente al momento de determinar cuál - gobierno o Iglesia - monopolizaba
el "verdadero" mensaje cristiano. Si bien el peronismo se definia a sí mismo,
junto al catolicismo, como intrínseco al "ser nacional", hacia mediados de 1952,
cuando el régimen peronista entra en crisis y se vuelve contra Ia Iglesia, declara
'doctrina nacional' por ley dei Congreso a Ia doctrina peronista y ordena su
predicación (Rock, 1993: 184 y ss.; Plotkin, 1994: 46-48). La intención dei
gobierno era convertida en una religión política, en remplazo de la católica,
como verdadera portadora dei mensaje cristiano. Esto nos permitiria entender,
de alguna manera, que Ias fricciones entre ambos que culminaron con el
derrocamiento de Perón en 1955 se deberían, en parte, a un retraimiento de esta
política de concesiones desde el gobierno, y en parte a una competencia entre el
Estado peronista y la Iglesia por espacios dentro de la sociedad civil. La relación
entre la Iglesia católica y el peronismo es demasiado compleja para ser aborda-
da en este trabajo, y seguramente con Io expuesto en estas líneas hesido
groseramente reduccionista. Lo que me interesa aclarar, dentro de Io propuesto
en estas páginas, es que la relación entre Iglesia y Justicialismo tuvo diversas
aristas, y que el continuum que va desde un apoyo (a mi entender, indirecto) con
143Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Ia Carta Pastoral previa a Ias elecciones de 1946, pasando por una "luna de
miei", con Ia respuesta a Ias demandas eclesiales, especialmente Ias referidas a
Ia ensenanza religiosa en Ias escuelas públicas, hasta llegar una fuerte
competencia por el espacio público, cuando desde el gobiemo comenzaron a
recortársele atribuciones a Ia Iglesia^^ al tiempo que se le extendían permisos a
otras religiones, sumados a sucesos como Ia procesión de Corpus Christi el 11
de junio dei '55 (acto político religioso antigubememental) y Ia expulsión pos-
terior de sacerdotes, que culminaron en una favorable acogida por parte de Ia
Iglesia a Ia Revolución Libertadora, no es ni simple ni lineal.
Acorde con el nuevo papel de Ia Iglesia dentro de Ia sociedad nacional. Ia
Virgen de Luján ocupo nuevos lugares y fue jurada Patrona de nuevas
instituciones. Asimismo, en 1945 comenzaron Ias 'Embajadas de Ia Virgen', de
Ia mano de Monsenor Serafini. Las 'Embajadas' consistían en travesías que
realizaba un grupo de sacerdotes, encabezados por el obispo, llevando una imagen
de Ia Lujanera hacia distintos puntos dei país. Su objetivo consistia en difundir
el culto a esta Virgen en todo el territorio nacional. Generalmente se realizaban
en tren, deteniéndose, durante el recorrido, en numerosas estaciones, donde
quedaba entronizada una imagen de Ia Virgen. También se efectuaron Embajadas
en automóvil y a bordo de Patrulleras de Prefectura Naval Argentina.
Vamos a observar, en estos anos, que Ia tendencia que sigue Ia expansión
de los honores y nuevas funciones asignados a Ia Virgen de Luján, así como Ia
que siguen las imágenes distribuidas por el espacio público, es correlativa al
movimiento que realiza Ia Iglesia católica en relación con los gobiernos
peronistas. Si bien esto Io podemos verificar en Ia etapa anterior y en Ia
subsiguiente, es durante el régimen de Perón que se vuelve más evidente. Así,
veremos que aproximadamente entre 1944 y 1950 - con un punto de máxima en
1948 - Ia imagen de Ia Virgen de Luján fue ganando cada vez más espacios y
recibió numerosos honores, consolidando su función de imagen legítima dei
catolicismo oficial y nacional. Luego asistiremos a una retracción de dicha
expansión, derivada de las restricciones que le efectuó el gobierno a Ia Iglesia y
dei avance dei peronismo sobre el espacio simbóhco público.
Las tres celebraciones patriótico-religiosas que se realizaron durante este
período y que tuvieron a Ia Lujanera como Patrona, fueron el 4° Congreso
Eucarístico Nacional (1944), el 1° Congreso Mariano Nacional (1947) y el Con-
ciUo Plenário de Obispos (1953). En los tres se rescata a Ia Virgen de Luján como
símbolo dei catolicismo oficial, pero sólo nos detendremos en el Congreso Mariano,
dada Ia importancia que le dan los distintos historiadores a tal evento.
La importancia para nuestro trabajo dei Primer Congreso Mariano Naci-
onal radica en su carácter "patriótico-religioso", que queda explicitado ya en
Ia Carta Pastoral dei Episcopado en que fundamenta Ia elección de Luján
como sede dei Congreso,
144 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

donde reina Ia Patrona de Ia Patria (pues) ...dejando de lado Ias pequenas ventajas
de Ias ciudades grandes, elegimos Luján para sede dei Primer Congreso Mariano
Nacional, seguros de que el inmenso corazón de Ia augusta Patrona de nuestro
Pueblo es el mejor lugar para aprender a amaria, reafirmar nuestra devoción
para serviria... (Palacios, 1983: 25)

El altar oficial de Mana (con Ia celebración dei Congreso) será reafrimado


tanto en su contenido católico como en su contenido patriótico, a punto tal de
quedar convertido "... en el único solar donde ningún argentino es extrano, por-
que es el hogar por excelencia de Maria"'I Una vez más vemos aqui Ia
homologación de "ser argentino" y "ser católico": son indisociables, y ambos -
que no son sino el mismo - tienen su hogar en Luján.
La opción por Luján por sobre los otros Santuarios y por Ia imagen de su virgen
por entre Ias demás, convierte a Ia de Luján en Ia única y verdadera Maria de Ia Iglesia
oficial. Pero quizá Io más significativo en ésta celebración, más allá de los distintos
actos, sea Ia ratificación que de su carácter de símbolo patriótico religioso hace Ia
cabeza de Ia jerarquía eclesial de ése momento, Pio XII:

Ella [Maria de Luján] quiso quedarse allí y el alma nacional argentina comprendió
que allí tenía su centro natural. Y al entrar en aquella Basílica, ...nos pareció que
habíamos llegado al fondo dei alma dei gran pueblo argentino.

Durante estos anos fueron jurados los Patronazgos de cuatro de los ele-
mentos más significaüvos dei aparato estatal: Ias Rutas Nacionales, Ia Policia
Federal (PFA), los Ferrocarriles y el Consejo Nacional de Educación (CNE).
El significado que tendría el imprimir el sello católico en los caminos y
FF.CC. pareceria obvio: lazos de integración geográfica nacional, ambos
confluyen en un único centro. El kilómetro cero de todas Ias rutas y caminos,
el punto de origen, el centro simbólico dei pais está indisolublemente ligado
a Ia Virgen de Luján. El Decreto 12.665/ 44'^ que Ia declara Patrona se
basa para hacerlo en que una "...tradición irrefutable afirma que los
caminantes... y los ejércitos libertadores, en Ia gesta de Ia Independencia,
invocaron siempre Ia protección de Ia Santisima Virgen". Y que dicha
tradición Ia habria consagrado "de hecho Patrona de Ias Rutas Nacionales..."
Algo parecido pasa con los FF.CC.: el tendido de lineas férreas fue disenado
bajo el imperativo de otro proyecto, el liberal positivista de Ia Generación dei '80,
para confluir en Buenos Aires, el centro político, econômico y social dei país.
Significaba progreso, civilización, modemidad, racionalidad. Y estaba ligado a
los valores e intereses de Gran Bretana. La nacionalización simbólica de los FF.CC.
comienza al rebautizar Ias lineas, durante un acto realizado en Ia Estación Retiro
el r de marzo de 1948, con nombres de "grandes héroes de Ia historia Argentina"
145Imartín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

(Quattrocchi-Woisson, 1995: 302). Es significativo que este honor sea comparti-


do por San Martín, Perón, Sarmiento y Mitre, siendo que éstos dos últimos son
personajes arquetípicos de Ia tradición liberal. Sin embargo, consideramos que
fueron colocados en este lugar debido a su política ferroviaria. La "negativa influ-
encia liberal" que pudieran tener sobre Ia memória colectiva será conjurada al
declarar a Mana de Luján como su Patrona. La apropiación de los ferrocarriles
por el Estado, su repatriación, durante el primer gobiemo de Perón, es así com-
pletada al marcarlos con Ia impronta de un catolicismo peculiar: el integral, y por
médio de una imagen determinada. Ia dei catolicismo oficial: Ia Virgen de Luján.
De esta manera, podemos comprobarlo en el decreto de declaración dei
Patronazgo^^ en el cual se considera

Que Nuestra Senora de Luján es Patrona Jurada de Ia República y Patrona de Ias


Rutas Nacionales...; Que Ia devoción nacional a Nuestra Senora de Luján es tan
amplia como fervorosa...; Que habiendo pasado recientemente el patrimonio
nacional los ferrocarriles dei capital britânico, que integran ahora con los ya
existentes, Ia gran red dei estado, es oportuno acceder a Ia solicitud dei diocesano
recurrente que coincide con los sentimientos cristianos dei Gobierno Nacional y
de una inmensa masa dei pueblo argentino...

El esfuerzo de resignificación católica de los ferrocarriles no se agotó en


santificar el centro, sino que se Io reforzó por médio de entronizaciones en Ias
estaciones y de Ia colocación de medallones con Ia imagen de Ia Virgen de
Luján en todas Ias locomotoras dei país. A partir de este momento, los FF.CC.
cobran otro significado, como podemos comprobar en el bronce alusivo que
se encuentra en Ia Basílica:

El dia 24 de Abril de 1948, en esta Basílica Nacional, Ias Autoridades Nacionales,


Eclesiásticas, Provinciales y el Pueblo todo, proclamaron en solemne acto a Ia
Santísima Virgen de Luján Patrona de los Ferrocarriles Argentinos. Este bronce
es testimonio dei júbilo por Ia recuperación econômica y de Ia perenne oración
por el engrandecimiento de Ia Patria.

Vemos así que el único progreso posible, aquel que "engrandece Ia Patria",
sólo será factible si está ligado al catolicismo. La nacionalización de los FF.CC.
no fue solamente un movimiento de expropiación-reapropiación desde el Esta-
do, sino que para completarse necesitó de Ia bendición - simbólica y material -
de Ia Iglesia Católica. Los FF.CC. nacionalizados significan algo más que Ia
recuperación econômica de los mismos. Y esto se comprueba en el texto dei
bronce cuando alude a Ia "perenne oración por el engrandètimiento de Ia Patria",
como si uno y otro fueran indisociables. Este plus de significado nos remite a Ia
146 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

presencia de un alma nacional, alma católica, alma devota de Mana de Luján,


que es nacional porque es católica y devota de Ia Lujanera.
La jura dei Patronazgo de Ia Policia Federal Argentina (PFA) y dei Consejo
Nacional de Educación (CNE) revisten también una gran significación.
El 3 de junio de 1946 fue declarada Patrona de Ia PFA por el Gral. Velazco a Ia
Virgen de Luján, entronizándose una imagen de Ia misma en Ia División Central. El
Cardenal de Buenos Aires, ve este hecho con agrado, para que de esta manera Ia
Virgen ''bendiga con matemal bendición a cuantos integran dicho Cuerpo Policial
y les dé acierto en el cumplimiento de su delicada misión, para bien de nuestra
República'' (Presas, 1993a: 286. Italicas en el original). Nuevamente encontramos
Ia unión entre Ia cruz y Ia espada, pero esta vez destinada a preservar el orden inter-
no. La preocupación por Ia posible desintegración de Ia comunidad aparece en liga-
da a Ia ausência de una homogeneidad étnica y cultural'^, a Ia presencia de ideologias
extranas, y religiosidades ajenas a Io inherentemente nacional, traídas por aquellos
a quienes había que vigilar: inmigrantes, antes europeos, pero desde ahora princi-
palmente de países limítrofes y "cabecitas negras" dei interior.
El patronazgo dei CNE es de gran importancia, dado el rol que juega Ia
educación pública en Ia construcción de Ia identidad nacional. Ya en 1910, con
el objeto de inculcar a los hijos de inmigrantes sentimientos de patriotismo,
José Maria Ramos Mejía establece un programa de "educación patriótica", basado
tanto en Ia ensenanza de Ia historia como en el establecimiento de rituales patri-
óticos. (Quattrocchi-Woisson, 1995: 16; Plotkin, 1994: 145). Entre fines de Ia
década dei '30 y principios de Ia dei '40, los efectos de Ia crisis dei '30 comienzan
a hacerse sentir en el terreno educativo^^ renovando Ia preocupación de Ias au-
toridades por Ia educación patriótica en Ias escuelas públicas. Durante el gobiemo
de Farrell Ia educación pasa a ser un problema prioritário. Se proponen "corregir...
un sistema educativo 'ateo y cosmopolita'" por médio de Ia revisión y reescritura
de los textos escolares." (Plotkin, 1994:146; Rock, 1993:153). El sistema esco-
lar, afirma Plotkin (1995: 150), estaba cada vez más orientado a convertirse en
"un instrumento de adoctrinamiento para Ia juventud en una ideologia arficula-
da alrededor dei nacionalismo católico": Perón, en 1947, ratifica por ley dei
Congreso el decreto que instaura Ia ensenanza religiosa en Ia escuela pública.
Sin embargo, siguiendo Io propuesto por este autor^^, fue durante Ia gestión
de Ivanisevich (1948/ '50) cuando el CNE se convierte en uno de los organis-
mos más visibles dei estado. La educación, para el secretario, debía inculcar
respeto por Ias tradiciones culturales dei país, dentro de Ias cuales Ia religión
católica era un pilar fundamental. No es extrano entonces, que Ia Virgen de
Luján haya sido entronizada en Ia sede dei CNE.
El número de entronizaciones de imágenes de Ia Virgen de Luján a partir
de esta etapa es significativo. La jura de Patronazgos conlleva Ia expansión de
Marías de Luján en aquellos espacios relacionados con Ia institución en Ia que
147Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

ha sido jurada. Y si bien ha sido erigida en hospitales^" y dependencias públi-


cas^^ es en Ias estaciones de FRCC. donde su imagen se multiplica.
Las numerosas entronizaciones en estaciones de FF.CC. durante el período
pueden comprobarse a partir de Ia revisión bibliográfica. Las notas y crônicas que
aparecen en Ia revista de Ia Basílica subrayan su importancia tanto "para acrecentar
Ia devoción a Ia Patrona de Ia Patria" (Presas, 1993a: 297), como para que los
usuários de los trenes "aprovecharan de esta circunstancia para invocaria cada vez
que pasaren frente a su i m a g e n . . L a s entronizaciones, ya sean dentro o no de
las 'Embajadas' de Seraíini, constituyen ''campanas de propaganda de Ia devoción
de Ia Virgen de Luján''^^ y llevaron Ia imagen de Ia Lujanera por todo el territorio
nacional: desde San Juan (en el '45, durante Ia primera Embajada) hasta las Islãs
Malvinas (fue enviada una imagen en 1957); desde Viedma (segunda Embajada)
hasta Posadas (se erigió una imagen en su estación de FF.CC. en Septiembre de
1961). Sin embargo. Ia mayor parte de las entronizaciones fue efectuada en Ia
zona dei litoral dei país: durante 1954 contamos al menos ^ nuevas imágenes en
distintas estaciones de los FF.CC. San Martín y Sarmiento^"^. La intención de uni-
ficar el culto católico a través de Ia devoción a Ia Lujanera aparece claramente en
esta política de oferta de identificación, en un espacio donde las referencias a
otros imaginarios son silenciados con Ia presencia de Ia imagen de Ia Virgen.
Las 'Embajadas', destinadas a predicar sobre Ia Virgen de Luján en todo el
país, pueden ser encuadradas dentro de esta misma línea. Desde 1945, de Ia
mano dei obispo de Mercedes, Monsenor Anunciado Serafini, se llevan a cabo
giras y Embajadas llevando, además dei mensaje. Ia imagen de Ia Lujanera a las
distintas regiones. Las primeras llegan, en distintas oportunidades, hasta San
Juan, Viedma y Paso de los Libres (Presas, 1993a: 284). En 1948, realizan una
nueva gira por el Norte, llevando imágenes de Ia Lujanera a Chaco, Corrientes,
Santiago dei Estero y La Rioja (Presas, 1993a: 289). En 1952 se realizan las
"Embajadas de Religión y Patria en las Patrulleras de Alta Mar de Prefectura
Naval Marítima" (Presas, 1993a: 292) por los puertos dei río Paraná. En julio de
1954, en automóvil, recorren desde General Roca (Río Negro) hasta Córdoba
en "gira triunfal"(Presas, 1993a: 294).
A pesar de esto, y como ya he adelantado, el conflicto entre Ia Iglesia y el
segundo gobierno peronista abierto por las medidas restrictivas a Ia acción
elcesial, llevaron a las autoridades de Ia Basílicade Luján a cerraria durante Ia
fiesta dei Sagrado Corazón y a ocultar Ia imagen original entre agosto y noviembre
de 1955 (Presas, 1993a: 295). Como se ve, ni Ia Virgen de Luján - con todos sus
atributos - fue Ia excepción de Ia avanzada dei peronismo sobre los âmbitos que
solía ocupar Ia Iglesia, sino que durante todo el período - y como imagen de Ia
Iglesia oficial - corrió su misma suerte. Al final dei segundo gobiemo.de Perón
el "verdadero" cristianismo y el "verdadero" patriotismo estaban, para el
gobierno, ligados a Ia simbología peronista.
148 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 1 3 6 - 1 5 8 , 2000

tercera etapa: 1956-1965

jOh Virgen de Luján! ...que tu presencia encarne en todos los aspec-


tos de nuestra sociedad, que tu imagen venerada siga presidiendo todos
los médios de transporte...jOh Patrona de los caminos de Ia Patria!, sigue
estando en Ias manseras dei arado... al frente de los ejércitos y de
nuestras iniciativas todas.

(PP n. 9, Septiembre '61, p. 312/3)

El gobierno de Ia llamada Revolución Libertadora ("libertadora" dei


peronismo) restableció Ias relaciones con Ia Iglesia Católica. El golpe de 1955
había recibido el apoyo de monsenor Caggiano (al momento presidente de Ia
Conferencia Episcopal Argentina), vários obispos, los católicos conservado-
res y grupos socialcristianos (Cfr. Bresci: 1987, 68; Soneira, 1996: 173). Los
militares se concentraron en evitar el retorno dei peronismo al poder, así como
en combatir Ia "subversión", para Io cual adoptaron Ia doctrina de seguridad
nacional (Cfr. Rock, 1993: 201).
Las relaciones entre Ia Iglesia y el gobierno de Frondizi se desenvolverán
en armoniV^ y algunas medidas gubernamentales respondieron a las expec-
tativas de Ia Iglesia. Así, el conflicto de ensenanza "laica o libre" se resolvió
favorablemente para Ia Iglesia, creándose en 1958 Ia Pontifícia Universidad
Católica Santa Maria de los Buenos Aires (sobre Ia base de los Cursos de
Cultura Católica), y al ano siguiente Ia Universidad dei Salvador. La creación
de nuevas diócesis, Ia elevación de nuevas circunscripciones eclesiásticas y
Ia facilidad en los procedimientos administrativos para el nombramiento de
obispos fue cordialmente recibido por Ia institución eclesial (Cfr. Soneira &
Lumerman, 1986: 47).
En 1956 se juró a Ia Virgen de Luján como Patrona de Gendarmería
Nacional Argentina y se entronizó una imagen en su división Central. A
partir de allí, imágenes de Ia Lujanera comienzan a aparecer en todas las
delegaciones de Gendarmería, especialmente en los pasos fronterizos. La
importancia de este hecho se relaciona con Ia Jura dei Patronazgo que había
realizado Ia PFA anteriormente: a Ia función de mantener el orden se suma
ahora Ia de cuidar las fronteras. Y estas son resignificadas con Ia Virgen. El
adentro-afuera se define, desde ahora más visiblemente, por Ia adhesión a
un tipo de catolicidad representada por Ia Virgen de Luján. La Patria a Ia
que protege Gendarmería es Ia Patria católica devota de Ia Lujanera.
Por otra parte, si bien Ia Patrona dei Ejército Argentino es otra Mana (Ia
Virgen de Ia Merced), Ia creación dei Vicariato Castrense a fines de 1957 dio
una nueva oportunidad a Ia Virgen de Luján de quedar ligada al "otro" pilar de
149Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Ia nacionalidad. En junio de 1958, poços meses después de su creación, se Ia


juro como Patrona dei Vicariato.
Quizás Ia celebración más importante de este período fue Ia Gran Misión
en Buenos Aires, durante Ia segunda semana de septiembre de 1960. La
autêntica imagen de Ia Virgen de Luján presidio todos sus actos, subrayando
Ia importancia de tal acontecimiento, pues fue Ia primera vez que salió de Ia
ciudad y "...entro en Ia Capital y fue imponente el recibimiento que el
pueblo le brindo en Ia Plaza de May o" (Presas, 1993a: 300).
La misma imagen presidio también Ias celebraciones dei Primer
Congreso Mariano Interamericano, donde "...recibió el saludo de todo el
pueblo argentino..." (Presas, 1993a: 301. Italicas en el original). Nuevamente
bailamos aqui Ia homologación entre católicos y argentinos. Y Ia mención
de todo el pueblo tiene aqui una función de exclusión: no se es parte dei
verdadero pueblo argentino si no se ha doblado Ia rodilla frente a Ia Maria
de los argentinos.
El êxito de Ia Gran Misión llevó a uno de los cronistas a poner a Buenos
Aires a nivel de Ia capital Espiritual: "Era Luján en Buenos Aires" (Presas,
1993a: 301). Pero Ia realización de Ia Gran Misión y Ia salida de Ia imagen
original a misionar debe ser entendida dentro dei marco de cambio que vive
en êste momento Ia Iglesia Mundial y tambiên Ia Nacional. El clima conci-
liar de esta etapa pone en tela de juicio muchas de Ias prerrogativas de Ia
jerarquía y abre el campo hacia una mayor tolerancia religiosa y sobre todo
Ia matriz radical progresista dei MSTM, ponen en guardia al catolicismo
integral, quienes ven "en estos momentos tenebrosos que sufre nuestro pueblo
por Ia infiltración de ideologias extranas a nuestra tradicional idiosincracia..."
^^ un peligro para Ia "autêntica" identidad nacional.
La visión catastrofista de los católicos integrales se basa en un proceso de
descristianización que achacan indistintamente a "Ia concentración urbana y
el crecimiento de Ia población industrial [que] implican modificaciones dei
papel... de Ia familia, y... câmbios en Ia escala de valores", al "laicismo", al
"impulso irreligioso dei marxismo"^^ La función de Ia Gran Misión será,
entonces "Ia renovación de Ia vida cristiana; el mejoramiento espiritual de los
católicos, bien seguros que de ello depende tambiên, y en buena parte, el
bienestar social de Ia Nación"^^
Por ello Ia realización de Ia Gran Misión fue sido considerada por el
catolicismo integral como una idea "...muy acertada, pues comenzaban ya
entonces a pulular en el pueblo cristiano y entre los sacerdotes y religiosos
diversas tendencias pastorales" (Presas, 1993b: 96). La preocupación por
"el plan diabólico dei comunismo [para infiltrarse en Ia Iglesia] especial-
mente en Ia de Latinoamêrica" es el "para el Cristianismo el peligro mayor
en su historia..."^'.
1 5 0 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 1 3 6 - 1 5 8 , 2000

Por este mismo motivo son ahora también más necesarias nuevas
entronizaciones de Ia Lujanera en Ias estaciones de FF.CC. pues "su sola
presencia hará recordar constantemente al viajero... su dignidad de argenti-
no y su honestidad de cristiano"^^ así como una mayor presencia de "Ia
imagen de Ia Madre de Dios para prevenirlos y protegerlos contra el espíritu
dei mal que azota al mundo: el comunismo ateo" Durante esta etapa
también encontramos Ia mayor cantidad de entronizaciones en Ia zona dei
litoral y provincia de Buenos Aires: sólo durante 1956 se erigieron 26
imágenes en estaciones dei FF.CC. Sarmiento34.
Durante estos anos, se realizaron nuevas giras. En enero de 1957 se llevó a
cabo el "Cmcero Mariano" por Tigre, llevando imágenes hasta Uruguay. En
agosto dei mismo ano, por el Noreste (desde Ia ciudad de Paraná hasta Puerto
Aguirre, Cataratas dei Iguazú) y el Noroeste, hasta Tucumán.
Como vemos. Ia devoción por Ia Lujanera responderia a un esfuerzo
para su difusión en un contexto donde se percibe a Ia descristianización
como una amenaza no sólo para Ia catolicidad, sino para Ia Nación misma.
En 1962 se inicia el Concilio Vaticano n cuyas resoluciones tuvieron en Ar-
gentina tres posturas diferentes: Ia tradicional-conservadora e integrista, renuente
a aplicar sus ensenanzas; Ia socialcristiana o moderada, tendiente a una renovación
pastoral de matriz europea; Ia progresista o radical-progresista, donde confluían
socialismo y valores cristianos. (Cfr. Soneira: 1996,178; Bresci 1987:76; Moyano:
1992,371). Durante el gobiemo de Illia (1963-1966) nacionalistas catóHcos seguían
ocupando posiciones importantes en Ias FF. AA. y en Ias Universidades (Cfr. Rock,
1993:193). Imágenes de Ia Virgen de Luján continuarán siendo entronizadas en el
espacio público aún después de 1965 y hasta Ia actualidad. En 1969, durante el
gobiemo dei General Onganía, Argentina es consagrada a Ia Virgen de Luján, en
un intento de reforzar el Patronazgo jurado en 1930 y de buscar, nuevamente,
protección en los valores nacional-católicos simboHzados en Ia Virgen de Luján.

consideraciones finales

La Virgen de Luján, cuya aparición data de 1630, empieza a ganar


importancia recién a partir de fines dei siglo XIX y es reconocida oficial-
mente con el Patronazgo en 1930, correspondiéndose con el proyecto dei
catolicismo integral de penetrar Ia sociedad a través dei Estado. El número
de los atributos que van a serie conferidos a partir de ese momento crece
proporcionalmente a una lectura que reconoce Ia amenaza de "ideologias
extranas" y de fuerzas disruptivas en el seno de Ia sociedad. Y cada nuevo
atributo, cada nueva "función" que Ia imagen de Ia Lujanera asumirá.
151Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

reforzará su legitimidad tanto como símbolo dei catolicismo oficial, como


de Ia nacionalidad legítima.
La multiplicación de Ias imágenes de Ia Virgen de Luján en el espacio
simbólico público es un claro ejemplo de Ia intención de penetrar Ia
sociedad dei catolicismo integral. Van a ser situadas en instancias de Ia
esfera pública, espacios ligados a Io urbano y especialmente en el área
geográfica de Capital Federal, Provincia de Buenos Aires y litoral argenti-
no, pues es en estas áreas donde se asentarán los migrantes - internos y
europeos - a los que hay que asimilar, homogeneizando los distintos cato-
licismos en Ia devoción nacional a Ia Virgen de Luján. Por otra parte Ia
entronización imágenes de Ia Lujanera en Ias distintas instancias dei Esta-
do, responde a Ia necesidad de catolizarlas, resignificando su "impuro
origen liberal" y por ello, sumándolas al acervo tradicional dei país. La
supuesta homogeneidad cultural y cultuai que representa Ia Lujanera tiene
una doble función: por un lado legitima el imaginario que Ia convierte en
co fundadora de Ia identidad nacional. Por otro, niega como argentinos a
los imaginados y a los grupos no católicos.
A diferencia de otras devociones marianas y de otras patronas nacionales,
como Nossa Senhora Aparecida, en Brasil y Ia Virgen de Guadalupe, en Mé-
xico (Cfr. Martín 1998; en prensa). Ia Virgen de Luján es una devoción pro-
movida por el Estado y Ia Iglesia, que, según afirma Fogelman (1997) previa-
mente carecia de una devoción popular difundida. La arraigada devoción po-
pular que hoy Ia caracteriza se debe a Ia función que ésta tiene como símbolo
de identidad nacional: el Estado y Ia Iglesia oficial son los principales
responsables de Ia difusión de su devoción.
La eficacia dei imaginario de identidad nacional-católica puede ser
comprobada en Ia equivalência en como se postulan ambos términos.
Actualmente Ia imagen de Ia Virgen de Luján sigue siendo blandida como
estandarte por Ia Iglesia oficial, y Ias referencias a sus atributos patrióti-
co-religiosos siguen vigentes. La intención de un grupo de católicos de
volver a consagrarle el país parece confirmarlo. Pero Ia fusión no ha sido
completa. El momento de Ia universalidad, como afirma Laclau (1996,
1997), sólo es posible en cuanto utopia. El catolicismo, pese a ser religión
de mayoría, no ha logrado imponerse como religión de Estado. Y sin em-
bargo, por Ia eficacia de este imaginario, no ha sido posible una identidad
nacional que sea síntesis de Ias distintas identidades particulares, culturas
y grupos, y compartida por todos. La identidad nacional-católica impone
un dualismo que considera como anti-católico y anti-nacional a todas
aquellos imaginarios que simplemente sean no católicos. Y se los pone
por fuera de los limites de Io "auténticamente nacional", convirtiéndolo
en conflicto nacional/ extranjero, patria/anti-patria.
152 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Resumen: En Argentina, Ia imagen de Ia Virgen de Lujan es el


centro de un culto en el que religión y nacionalidad se interpenetran
y legitiman reciprocamente, de manera que el ser devoto de Ia Virgen
de Lujan implica reconocerse al mismo tiempo como argentino y
como católico. Este articulo analiza el proceso histórico en que
esta implicación se ha desarrollado, atendiendo a una periodización
que surge de Ia tipificación de los modos de relación entre Ia Iglesia
y el Estado en el siglo XX.

Palabras-clave: Identidad nacional, Virgen de Lujàn, Relaciones


Iglesia-Estado, Argentina, Historia.

Abstract: The worship of the Virgin of Lujàn inArgentine combines


religión and nationality in a way that devotion to Lujàn implies both
being catholic and argentine. This articlefocus on the historie process
of relationship between Church and State which has had the Virgin of
Lujàn as major symbolic device.

Keywords: National Identity, Virgin of Lujàn, Church- State


relationships. Argentina. History.

notas

^ Hemos utilizando Ia totalidad de los ejemplares aparecidos en los anos: 1930, '32, '33,
'34; 1948, '49; 1950, '53, '55, '56, '57, '58; 1961, '62, '63, '64.
^ Llamamos imaginarios sociales a aquellas representaciones totalizantes que son domi-
nantes en una sociedad y que funcionan como un esquema colectivo de referencia dei
que participan símbolos, valores, emblemas, ideas-imágenes, mitos, para reproducir
un poder ya establecido.
^ Mallimaci, en sus articulos, define como catolicismo integral a un catolicismo que plantea
una fuerte unidad entre Iglesia y Estado. Orientado al militarismo, condena Ia democra-
cia de partidos como Ia causante de Ia rupturas en Ia sociedad, y considera que Ia
participación de los católicos es necesaria para catolizar Ia vida pública. Es antimoderno,
anticomunista y antiliberal. Nace en sectores de Ias clases médias y altas, y se propone
como pilar de Ia argentinidad y de Ia patria, y fundamento de Ia identidad nacional.
^ La transcripción completa dei discurso Ia tomamos de PP, n. Almanaque para 1931,
Octubre de 1930. p. 219-221. También hay referencias y citas dei mismo en Presas
1993a: 268 y 1993b: 79.
153Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

5 Ver Mallimaci, 1992: 283, y Soneira, 1996: 164, 183.


^ La pastoral de los obispos que Io anunciaba se dirigia al pueblo argentino y no a los
fieles: entre tales conceptos ni había diferencia. Ver: Zanatta, op. cit., p. 158.
^ "Patria Eucarística", en: PR n. 7, ano XLIV, Júlio de 1934, p. 219.
^ Tomado de los Archivos de Ia Corporación de Subtes de Bs. As. por Presas (1993a), p.
277/8. Italicas mias.
^ Extraído de Ia alocución dei Obispo durante Ia entronización de una imagen de Ia
Virgen de Luján en Ia Embajada Argentina en Madrid. Nota aparecida en PP n. 1,
Enero de 1950, p. 26.
Kennedy (1958); Prince (1994: 82) y Soneira & Lumerman (1986: 35 y ss.) proponen
diferentes lecturas para entender Ias principales razones de Ia adhesión de Ia Iglesia al
peronismo y su posterior ruptura.
^ ^ La introducción de Ia ensenanza religiosa en Ias escuelas públicas era una de Ias de-
mandas más fervientes. La creación dei Registro de Cultos no Católicos en 1943 (primer
antecedente dei Registro Nacional de Cultos actual) legitimará el monopolio religioso
de Ia Iglesia, que será legalizado con el reconocimiento de Ia religión Católica, Apos-
tólica y Romana como religión oficial en Ia Constitución dei '49.
Desde Noviembre dei '54 hasta Septiembre dei '55 se suceden una serie de hechos
que marcaron el enfrentamiento entre gobierno e Iglesia: en un discurso ( 1 0 / 1 1 / 54)
Perón identifica a Ia Iglesia como oposición; suprime Ia Dirección General de
Ensenanza Religiosa (2/ 12/ 54); sanción de Ia ley de divorcio y Ia de Profilaxis
(1954); derogación de Ia ley 12.978 y restricción de Ia ensenanza religiosa (1955);
Ia eliminación dei juramento religioso; Ia reducción de feriados nacionales católicos
( 1 0 / 3 / 55); Ia abrogación de Ia ley de ensenanza religiosa y Ia prohibición de actos
públicos religiosos (2/ 6/ 55); Ia ley 14.404 de separación moral, econômica y de
poderes de Ia Iglesia Católica y el Estado Nacional (mayo de 1955). Ver: Prince,
1994: 82; Soneira, 1996: 172.
^^ Carta dei Episcopado con motivo dei Primer Congreso Mariano Nacional. In: Presas,
1993a: 287.
Alocución de Pio XII, transmitida por radio durante los actos dei Primer Congreso
Mariano Nacional, en Ia que hace referencia a su visita al Santuario de Luján durante
el XXXII Congreso Eucarístico Internacional. Citado en Presas, 1993b: 88.
^^ Puede encontrárselo publicado en PP n. 6, Junio '57, p. 163-164.
Decreto No. 9632/ 48, publicado también en PP n. 7, Júlio '57, p. 215-216.
Esto se ve claramente en artículos de José Luis Romero, aparecidos en Ia época: "[La
heterogeneidad de Ia sociedad argentina se debe a Ia] ...formación aluvial de Ia sociedad
argentina. La incorporación masiva de grupos inmigratorios numerosos y muy dife-
rentes en cuanto a su origen sociocultural [genera una sociedad proteica que] parece
exceder los limites de Ia normalidad", en "La crisis argentina. Realidad social y actitudes
políticas", publicado originalmente en 1959 (Cfr. Romero, 1982).
Plotkin (1994:33) explica que este "efecto retardado" de Ia crisis dei '30 en Ia educación
1 5 4 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

se debe a una importante corriente sarmientina de tradición liberal fuertemente enraizada


en Ia burocracia educativa.
^^ En el interesantísimo trabajo de Plotkin (1995), encontramos un apartado especialmen-
te dedicado a Ia gestión de los tres responsables dei CNE durante los dos primeros
gobiernos de Perón. He partido de allí para Ia elaboración de este punto.
Una imagen fue entronizada en el Hospital de Clínicas de Ia ciudad de Buenos Aires en
Noviembre de 1953. En el mismo acto se consagro el hospital a Ia Virgen de Luján.
Debe hacerse notar, además, que este es el Hospital Escuela de Ia Universidad de
Buenos Aires, institución educativa pública, gratuita y, sobre todo, laica.
^^ Durante el período 1943-55, fueron erigidas imágenes de Ia Lujanera en Ia Embajada
Argentina en Madrid (5/ Mayo/ 1949); en el Edifício Palermo, sede de Ia Jefatura dei
Depto. de Vias y Obra y Zona de Tráfíco (23/ Diciembre/ 1952); en Ia Dirección de
Vigilancia de Abastecimiento de Ia PFA (4/ Octubre/ 1953) entre otros.
^^ Monsenor Serafini, durante Ia entronización de una imagen en Ia estación dei FCN
Gral. Belgrano de Marcos Paz, en: PP n. 7, Júlio de 1961, ano XXII, p. 202.
Ibídem, p. 186.
En Marzo de 1954 en el recorrido dei FF.CC. San Martín de Junín hasta Pehuajó se
erigieron imágenes en 16 estaciones; en el mes de Agostos ocurrió Io mismo pero en 18
estaciones dei FF.CC. Sarmiento que cubren el recorrido entre Bragado y Gral. Pico.
En este sentido, no comparto el planteo de Rock (1993:93), quien afirma que Ia postura de
Frondizi fue anticlerical en tomo a Ia cuestión educativa. Si bien Frondizi no fue abiertamente
pro católico, respondió - aunque no sea más que indirectamente - a Ias demandas de Ia
Iglesia dándoles Ia posibilidad de fundar Universidades católicas privadas.
Declaración de Monsenor Bolatti, obispo auxiliar de Buenos Aires. In: C. n. 1363,
Agosto de 1960, p. 675.
Nota dei Ing. Marco Acuna, Presidente de Ia Asociación Católica Ferroviaria, con
motivo de Ia entronización de una imagen de Ia Lujanera en Ia estación de Ia ciudad de
Posadas, In: PP n. 8/ 9, ano LXXIV, Agosto/ Septiembre de 1963, p. 26. Debido a los
conceptos que en sus notas vierte Acuna, podemos considerarlo como un caso repre-
sentativo dei catolicismo integral.
Frias, Pedro (h): "La situación actual dei catolicismo en Argentina". In C. n. 1360,23/
Júlio/ 1960, p. 529.
Alocución radiofônica dei Cardenal Caggiano el 28/Agosto/ 1960. Aparecido en C. n.
1365, 13/ Octubre/ 1960, p. 744. Las mismas ideas se encuentran en Ia editorial dei
mismo número de esta revista: "Una Misión en Bs. As. no puede postergar el análisis
de ese vigente problema. Ia descristianización. (...) La misión para ser efectiva debe: 1)
revitalizar Ia comunidad cristiana y sanear y evangelizar Ia comunidad humana donde
ella existe. 2) llegar al 'âmbito' donde aquella vive diariamente, lugar de habitación,
trabajo y diversión, instituciones familiares y de barrio, culturales, profesionales, cívi-
cas, que encuadran y organizan Ia vida de los fíeles". In: C. n. 1365., 13/ Octubre/
1960, p. 723, 725.
155Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Nota dei Dr. José M. Quinodoz parecida en PP n. 5, Mayo de 1961, p. 173-174.


Editorial de PP n. 11 y 12, Noviembre/ Diciembre de 1961, ano LXXII, p. 359.
Nota dei Ing. Marco Acuna acerca de Ia entronización en Ia estación Matheu, en: PP n.
8/ 9, ano LXXIV, Agosto/ Septiembre de 1963, p. 26.
'''' Palabras dei Ing. Marco Acuna durante Ia entronización en Ia estación de Posadas, nota
en: PP n. 10, Octubre de 1961, ano LXXII, p. 335-337.
En Septiembre se erigieron 14 imágenes en Ias estaciones que cubren el recorrido
entre Pehuajó y Lago Epecuén; se hizo Io propio en Noviembre, en 12 más, entre
Rancul y Villegas (todas en Ia provincia de Buenos Aires). Durante toda esta etapa
bailamos entronizaciones en estaciones de Buenos Aires y el Litoral, por ej.: Baradero
y Etcheverry (1957); Santa Rosa, Plomers, Villars y Marcos Paz (1959); Concepción
dei Uruguay, Hudson, Garín (1961), Va. Angélica, San Antonio de Giles, Carmen de
Areco (1962); etc.

referências bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexiones sobre el orígen


y ia difusion dei nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1997.

BACZKO, Bronislaw. Los Imaginados Sociales. Memórias y esperanzas


colectivas. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1991.

BRESCI, Domingo. Panorama de Ia Iglesia Católica en Argentina: 1958-1984.


Sociedad y Religión. Buenos Aires, n. 5, dic. 1987.

FOGELMAN, Patrícia. Alrededor de una "imagen". Los vecinos dei santuario de


Luján, 1630-1822. Tesis de Licenciatura. Luján:UniversidadNacional de Luján, 1997.

GARCÍA GARCÍA, Juan. Nación, identidad y paradoja: una perspectiva


relacionai para el estúdio dei nacionalismo. Revista Espanola de
Investigaciones, n. 67, Júlio. Septiembre.

GIMENEZ, Gilberto. Apuntes para una teoría de Ia identidad nacional. DOXA.


Buenos Aires, n. 9/10, Primavera/Verano, 1993/ 94.

KENNEDY, John. Catholicism, Nationalism and Democracy in Argentina.


Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 1958.

LACLAU, Ernesto. Emancipación y Diferencia. Buenos Aires: Ariel, 1996.


1 5 6 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

Deconstrucción, pragmatismo y hegemonia. Agora. Cuaderno de


Estúdios Políticos. Buenos Aires, n. 6, Verano 1997.

LÕFGREN, Orvar. The nationaUzation of Culture. Ethnologia Europea. Journal


ofEuropean Ethnology. v. 19, n. 1, p. 5- 24, 1989.

MALLIMACI, Fortunato. El catolicismo argentino desde el liberalismo inte-


gral a Ia hegemonia militar. In: AA. VV.: 500 anos de cristianismo en Argenti-
na. Buenos Aires: CEHILA-Centro NuevaTierra, 1992.

. Catolicismo integral, identidad nacional y nuevos movimientos


religiosos. In: FRIGERIO, Aejandro (compilador). Nuevos Movimientos Re-
ligiosos y Ciências Sociales. T. II. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1993.

. Catolicismo y militarismo en Argentina (1930-1983). De Ia Argentina


liberal a Ia Argentina católica. Revista de Ciências Sociales. Universidad Nacional
de Quilmes, Bemal, n. 4,1996a.

. Iglesia, Estado y Sociedad en Ia argentina: desde Ia caída dei


peronismo hasta Ia caída dei peronismo (1955- 1976). In: SONEIRA,
Abelardo (compilador). Sociologia de Ia Religión. Buenos Aires: Fundación
Hernandarias, 1996b.

MARTÍN, Eloísa. Aparecida, Guadalupe y Luján como símbolos religiosos y


nacionales: un análisis comparativo. Paper presentado en Ias VIU Jornadas
sobre Alternativas Religiosas en América Latina, São Paulo.

. La constmcción de Aparecida y Luján como Patronas nacionales. Apuntes


para un análisis comparativo. Estúdios sobre Religión. Newsletter de laAsociación de
Cientistas Sociales de Ia Religión en el Mercosur. Buenos Aires, 2000. /en prensa/

MOYANO, Mercedes. Organización Popular y Conciencia Cristiana. A A. VV.:


500 anos de cristianismo en Argentina. Buenos Aires: CEHILA-Centro Nueva
Tierra, 1992.

OLIVEN, Ruben. A Parte e o Todo. A Diversidade Cultural no Brasil-Na-


ção. Petrópolis: Vozes, 1992.

PLOTKIN, Mariano. Manana es San Perón. Buenos Aires: Ariel Historia Ar-
gentina, 1994.
157Im a r t í n , eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

PRINCE, Alejandro. Iglesia-Estado. Las relaciones entre Ia Iglesia católica


y el Estado Nacional frente a Ia reforma Constitucional. Buenos Aires:
Ediciones i4, Instituto de Investigaciones Interdisciplinarias, 1994.

QUATTROCCHI-WOISSON, Diana. Los Males de Ia Memória. Historia y po-


lítica en Ia Argentina. Buenos Aires: Emecé, 1995.

ROCK, David. La Argentina Autoritaria. Los nacionalistas, su Historia y su


influencia en Ia vida pública. Buenos Aires: Ariel, 1993.

RODRIGUES BRANDÃO, Carlos. Ser católico: dimensões brasileiras um es-


tudo sobre a atribuição através da religião". In AA.VV.: Brasil & EUA: Religião
e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

ROMERO, José Luis. Las ideologias de Ia cultura nacional y otros ensayos.


Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1982.

SONEIRA, Abelardo. Las estratégias institucionales de Ia Iglesia Católica. 1880-


1976. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1989.

. (compilador). Sociologia de Ia Religión. Buenos Aires: Editorial


Docencia-Fundación Universitária "Hemandarias", 1996.

SONEIRA, Abelardo y LUMERMAN, Juan Pedro. Iglesia y Nación. Aportes


para un estúdio de Ia historia - contemporânea - de Ia Iglesia en Ia comunidad
nacional. Buenos Aires: Editorial Guadalupe, 1986.

ZANATTA, Loris. Del Estado liberal a Ia Nación Católica. Iglesia y Ejército en los
orígenes dei peronismo. 1930-1943. Bemal:Universidad Nacional de Quilmes, 1996.

fuentes consultadas

libros

LAPEYRETTE, Víctor Alberto. Historia de Luján. Sus grandes hombres. Luján.


s.ed., 1961.

PALACIOS, Horacio S. Resena Histórica de Nuestra Senora de Luján y su


Santuario. s.ed., 1983.
158 I martín, eloísa. Imaginário - usp, n= 6, pág. 136-158, 2000

PRESAS, Juan Antonio. LUJÁN. La ciudad mariana dei país. Buenos Aires: Edito-
rial Claretiana, 1982.

. Anales de Nuestra Sefíora de Luján. Trabajo histórico- documental 1630-


1993. Buenos Aires: s.ed., 1993a.

.Historiai dei Luján-Mariano. 1630-1992. Buenos Aires, s.ed., 1993b.


Sacerdote de Ia Congregación de Ia Misión. Pequena Historia de Nuestra Senora
de Luján. Su culto, su Santuario, su pueblo. s.ed, 1925.

UDAONDO, Enrique. Resena histórica de Ia Villa de Luján. Luján, s.ed., 1939.

revistas

CIEN CIUDADES ARGENTINAS. Luján, n. 1, nov. 1926.

CRITÉRIO. 1930-1965. Vários Números.

LA PERLA DEL PLATA. 1930-1965. Vários Números.


contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 159

Ia nue^a er^ an posadas


Viejos escenarios, nuevas

Maria dei Rosário Contepomi'*

La Nueva Era^ es un fenômeno gestado en los países centrales que ha alcanzado


un importante desarrollo en Occidente. Sus creencias, teorías y técnicas orienta-
das a Ia transformación espiritual de Ia humanidad han migrado a Ia "periferia",
originado adhesiones en sujetos pertenecientes a realidades socio-culturales alejadas
de aquéllas que le dieron nacimiento.
En Ias sociedades contemporâneas, Ia influencia de acontecimientos dis-
tantes sobre sucesos próximos se ha paulatinamente convertido en un hecho
habitual, hecho en el que los médios de comunicación escritos, orales y
electrónicos desempenan un papel crucial. Este proceso de universalización
(Giddens, 1997) atane al entrelazamiento de acontecimientos y relaciones
sociales lejanos con los contextos locales, y significa Ia inevitabilidad de Ias
transformaciones generadas por Ia modernidad en cuanto, al menos, algunos
de sus mecanismos de acción. Así, numerosos aspectos de Ias realizaciones

L
' Antropóloga Social, Universidad Nacional de Misiones - Argentina.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 160

modernas, incluso Ias que actúan en pequena escala, también afectan a


personas que viven fuera dei mundo desarrollado en Ias que se han origina-
do.
De este modo, Misiones no ha escapado al "espíritu de nuestro tiempo",
si bien Ias nuevas ideas, creencias y valores permean el tejido social dife-
rencialmente y su ascendiente y significación es mayor en unos sectores
que en otros. Los sectores sociales posadenos que participan de Ias
significaciones culturales y valorativas contemporâneas, son los sectores
médios y medio-altos, capas beneficiadas por el ejercicio de Ias
comunicaciones y el nivel socio-educativo^. Y es en estos sectores donde Ia
Nueva Era ha echado raíces. Los médios masivos de comunicación. Ia difusión
de bibliografia relacionada a Ia temática, Ia afluência de migrantes urbanos
de centros populosos dei país y los nativos-viajeros portadores de
"novedades" impactaron Ia sociedad local con el aporte de estas nuevas
creencias e ideologias que fueron arraigándose progresivamente.
Si bien Ia Nueva Era es un fenômeno planetario que presenta características
generales comunes en Occidente, sus bienes culturales y espirituales globalizados
se insertan en paisajes culturales particulares donde pasan a formar parte de una
configuración previa, esto es, al interior de fronteras sociales y simbólicas locales,
regionales o nacionales (Segato, 1997). El conjunto de cosmovisiones e ideologias
globalizadas se reencama en ideas y creencias semejantes al hombre que Ias recibe;
son apropiadas, transformadas y resigniíicadas en un marco de convenciones y có-
digos socio-culturales definidos de antemano.
Esta conexión entre Io local y Io universal se vincula a câmbios profundos
en Ias cosmovisiones y en Ia vida cotidiana de los agentes sociales. La actual
apertura de Ia vida social. Ia pluralización de âmbitos de acción y Ia diversidad
de autoridades morales, espirituales e ideológicas, tienen una importancia
creciente en Ia constitución de Ias identidades y en Ia práctica social. A medida
que Ia vida diaria se construye en función de Ia interrelación dialéctica entre Io
local y Io universal, surgen cosmovisiones que guardan en su interior Ia impronta
de los dispares orígenes.
Empero, Ia coloración de un fenômeno humano es Ia expresión de sujetos
social e culturalmente situados, de sus saberes y creencias prévios, los cuales,
a su vez, son producto de Ia historia y dei âmbito en los que se ha desarrollado
y de los cuales continua nutriéndose. En este caso, el paisaje y tradiciones
culturales misioneros son Ias fuentes que nutren el imaginario y se convierten
en escenarios sobre los cuales se construyen nuevas miradas, miradas que
develan que los componentes idiosincráticos no han sido olvidados. Las
aguas, los bosques, los antiguos y nuevos hombres dei lugar constituyen el
alimento que sustentan las convicciones, confirman las creencias y dan
carnadura a las ideas y certezas.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 161

ei color local

Los adherentes a Ia Nueva Era sostienen que el cosmos se encuentra


atravesando una etapa de transición, esto es, Ia culminación de Ia Era de Piseis
y el comienzo de Ia Era de Acuado, nombre éste con el que también es designa-
do el movimiento. Mientras Ia Era de Piseis es caracterizada por éstos por el
predominio dei materialismo. Ia dictadura de Ia razón, el alejamiento de Dios, Ia
destrucción dei planeta. Ia Era de Acuario está signada por Ia espiritualidad. Ia
conciencia, Ia unidad. Ia armonía, expresiones todas que ya han comenzado a
manifestarsel Enmarcados en este proceso global de transformación, algunos
lugares dei planeta se convierten en centros privilegiados de expresión de este
fenômeno, conforme a un conjunto de atributos que favorecerían su desarrollo.
Como parte de América dei Sur, Misiones se encuentra afectada por Ia
influencia de energias transformadoras localizadas actualmente en Ia
cordillera de los Andes, tal como aseguraba una simpatizante de
Trigueirinho"^:

A partir de 1988 toda América dei Sur es el puntal de lanza para una
transformación de Ia conciencia planetaria. Trigueirinho, gracias a Ia transmisión
de un ser contacto, tuvo el conocimiento dei cambio energético que se produce
exactamente a partir dei 8/8/88 cuando comienza Ia purificación dei planeta.

Los conocimientos recibidos por Trigueirinho determinan que con anterioridad


al 8 de agosto de 1988 - época masculina dei planeta - Ia energia espiritual era
recibida en Sudamérica desde los montes Himalaya. A partir de esa fecha. Ia energia
de Himalaya entra en receso y se traslada a los Andes - centro femenino - y se
localiza en tres Centros intraterrenos^ de energia: Miz Tli Tlan en Peru, Aurora en
Uruguay y Erks en Ia provincia de Córdoba, Argentina.
El 8/8/88^ es el comienzo de Ia transición de Ia Tierra en los niveles materiales
en cuanto a Ia aplicación de Ia ley de purificación planetaria. En esa fecha se
consumó el traslado de Ias conciencias conductoras de Ia evolución terrestre
partiendo de Shamballa (Nepal) para el cono Sur, proceso por el cual Miz TH
Tlan asumió el papel de Centro regente de Ia Tierra. En este final de ciclo Ias
ayudas están disponibles para el hombre, y tanto los Espejos^ como los Centro
planetarios apoyan los pasos de quienes aspiran a una nueva realidad.
Dentro de este contexto general de profundas transmutaciones, Misiones es
reconocida como un escenario que da cuenta de un conjunto de rasgos propios que
colaborarian con el desarrollo de Ia nueva conciencia. La tierra, el agua. Ia vegetación
y Ia evangelización jesuitica son senalados como promotores dei superior estado de
espiritualidad buscado. La particularidad de Misiones respondera asi a vários factores,
si bien Ia relevancia otorgada por los sujetos a cada cual está vinculada con Ia corriente
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6 , pág. 159-184, 2 0 0 0 162

espiritual o terapêutica a Ia que suscribel Aunque los sujetos destacan uno o vários
de los elementos, cabe senalar que Ia mayoría refiere al conjunto de ellos y reconocen
que Ia sumatoria de partes genera una síntesis que Ias supera.
De este modo, se sostiene que hay "mensajes que nos invaden y nos atacan
por todos los costados" como Ia abundancia mineral, vegetal, animal, de líquidos,
esto es, de aguas, de piedras, de plantas, tal como ilustran los siguientes testimonios:

En cualquier pared brota un helecho, un árbol... Esos mensajes de abundancia,


de crecimiento, de riqueza, de pujanza, esa expresión de vida latente y cons-
tante, marca una impronta en nosotros - jtiene que hacerlo! y es percibida
en el nivel consciente y subconsciente.

Es muy fuerte el color de Ia tierra. Tanta tierra!, una tierra muy fuerte, muy
colorada con el verde tan intenso junto con tanta agua, son emociones muy
fuertes que nos impulsan a acercamos a Io espiritual.

En Misiones hay mucha agua, mucho movimiento de agua. Acá los sentimientos
están muy a flor de piei, muy exaltados. Son como una explosión volcánica,
cosa que no podés tener en un desierto o en una ciudad rodeada de cemento.

Además, una practicante de Reiki aseguraba que esta provincia cuenta con
otro elemento que Ia vivifica y proyecta al mundo, esto es. Ia variedad de grupos
humanos que Ia habitan^, y cuya presencia en esta tierra no seria azarosa:

Este es un lugar que ha sido convocado para alguna tarea, es un ejemplo para
el mundo, fundamentalmente de convivência. Aqui ha venido gente de todo el
mundo y está conviviendo en una armonía que no se puede encontrar en otros
lugares. Eso es Io más notable! Aqui se acepta cualquier forma de pensamiento
en libertad. Se puede establecer en esta tierra todo tipo de cultura, idioma,
religión, y siempre prosperar. Por eso estamos aqui y también por eso vinieron
los jesuitas. Es una tierra promisoria absolutamente, pero esa idea recién está
despertando; no nos damos cuenta muy bien de Ias posibilidades que tiene.

Empero, también es un espacio en el que coexisten fuerzas encontradas,


lucha de términos, disputa entre opuestos. Una fisioterapeuta que abandono su
profesión para dedicarse a Ia Ciência Cristiana, sostem'a que el "nuevo pensamiento"
no solo es antiguo en Misiones sino que continua luchando con creencias que no
son más que "pensamiento mortal o humano":

Esta tierra es mágica completamente en el sentido que está muy avanzada en


el pensamiento en relación a Ia humanidad. Lo que pasa es que están Ias dos
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6 , pág. 159-184, 2000 163

cosas trabajando y disputándose. Acá, así como está esa elevación, está Ia otra
que tira para abajo, entonces hay que sumar para un lado. Misiones tiene un
papel importantísimo en Io que es el nuevo pensamiento que el mundo está
necesitando desesperadamente. Lo necesitamos como el aire.

Desde esa perspectiva, una astróloga senalaba a Misiones como un


campo en el que Ias potências espirituales se enfrentan a sus contrarias
propiciando inevitablemente Ia evolución de espiritualidades positivas:

Acá todo es muy terráqueo, muy terrenal. Ia gente está muy pegada a Ia tierra.
En el caso de Misiones, por Ias condiciones geográficas y de terreno. Ia persona
va más hacia Ia tierra y tiene que trabajar más el espíritu para despegarse un
poco. Es todo muy denso. Y, justamente, donde va a comenzar un movimiento
importante hacia lo espiritual sino en un lugar muy apegado a Ia tierra?

De este modo, Misiones es reconocida como un sitio donde conviven lo


positivo con lo negativo, lo "bueno" con lo "maio", lo evolutivo con lo retrógra-
do, el Cielo con Ia Tierra. Y esta lucha es uno de los disparadores de corrientes
ascendentes que impulsan el desenvolvimiento espiritual, conforme al cambio
universal que conlleva el pasaje de Ia Era de Piseis a Ia de Acuario.
Por una razón u otra, esta provincia es considerada como un núcleo potente
de gestación, recepción y transformación de ideas, creencias y experiencias
espirituales; suelo fértil para Ia adopción de câmbios y el desenvolvimiento de
simientes nuevas y preexistentes. La fuerza que dimana es Ia que explicaria por
qué ciertos adherentes se encuentran en ella, por qué migraron, afmcaron y
permanecen a pesar de Ias adversidades que, en algunos casos, padecieron. La
popular expresión "Ia tierra colorada se pega" es Ia imagen recurrente que sinteti-
za e ilustra Ia naturaleza de esta experiencia. Según testimonios, Ia persona que se
radica en este territorio encuentra otros significados a su vida, descubre su verdadero
rumbo. Mientras antes "era un electrón libre", en él halla su sentido dado que
ingresa a un proceso de síntesis, de purificación, de eliminación de lo denso e
innecesario, para sutilizarse, potenciarse y liberar lo mejor de sí.

I. el escenario natural

El paisaje es una concreta realidad espacial que evoca principalmente Ia


idea de naturaleza. No obstante, está vinculado estrechamente al mundo de va-
lores sociales, morales y religiosos y, por ello, podemos contemplar un juego
plural de perspectivas sobre Ia materialidad dei mismo paisaje. Lo que aparece
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 165

a simple vista unido a Ia belleza por presencia o ausência, remite a otros valores
cuando reconocemos Ias peculiares maneras humanas de relacionarse con el
entorno. Desde el caso que nos ocupa, surge una geografia extraordinariamente
compleja que convierte en portentoso Io que para algunos es trivial o evoca
emociones estéticas. Azules, verdes y rojos, aguas, plantas y tierra, cobran
dimensiones "milagrosas" y se convierten en protagonistas de acontecimientos
místicos y espirituales cuando el hombre encuentra en ellos sentidos nuevos.
Así, ellos pueden hablar dei bien moral, de Ia vida, de Ia muerte, de Ia
perennidad, de Ia esperanza, dei remedio, de Ia bondad divina, dei ansia por
desentranar el mistério y de empenos por otorgar sentido existencial al huma-
no vivir. Asimismo, Ia matéria - que cobra estatura y despierta una multiplicidad
de sentimientos - se convierte en una confirmación práctica de Ias convicciones
y en una expresión simbólica que permite elaborar lenguajes expresivos y
construir narrativas potentes.
En este plano de Ia realidad, se reconocen elementos caros a Ias filosofias,
"suenos e imaginaciones" (Bachelard) de Ia humanidad: el agua. Ia tierra, el
aire y el fuego son realidades cotidianas que transportan al hombre fuera de
Io coridiano a través de vivências y sentimientos. Y desde Ia cosmovisión de
carácter sagrado que guia Ia mirada de los new agers, el paisaje y sus ele-
mentos consritutivos son reconocidos como partes de una totalidad divina.
La sacralidad de Ia vida en todas sus dimensiones - visible e invisible, mate-
rial o inasible - se traduce en creencias e ideas que guían Ias experiencias.
Apoyada en esas convicciones, una Instructora de Rebirthing expresaba:

Hay una verdad absoluta, llamala Dios, llamala geometria sagrada, llamala
naturaleza. Pero hay un patrón que se repite y que hace que Ia vida sea un
mistério y que podamos contemplar Ias estrellas y damos cuenta que algo nos
pasa adentro. Que si te quedás embelezado mirando una flor, algo pasa que va
más allá de tus huesos, que te toca en alguna esencia; algo tuyo muy profundo
que es ese vínculo con Ia vida: Io sagrado. Porque Io sagrado está en Io profa-
no. Generalmente se divide, pero el hombre está relacionado con Io sagrado en
el fuego, en Ia piedra, en Ias plantas.... Prometeo divinizó el ser humano. El
fuego te da el alimento, el calor, Ia protección que son vitales; y el fuego está
relacionado con Io sagrado. Por eso Io sagrado está en Io profano.

Desde igual perspectiva, uno de los mensajes publicitários que difunde el


centro que convoca a Ia mayoría de los adherentes de Posadas, expresa:

Dicen que un Dios-átomo duerme en cada piedra, se despierta en cada planta,


se mueve en cada animal, piensa en cada hombre y ama en cada Angel. De ahí
deducimos: tratar a cada piedra como si fuera un vegetal, cada vegetal como si
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 165

fuera un animal, a cada animal como si fuera un ser humano y a cada ser
humano como si fuera un Angel.

Por otra parte, no solamente ei hombre participa de Ia esencia divina sino que
también está informado por ia misma matéria que ei cosmos al que pertenece: los
cuatro elementos están en su propia constitución física y los cuatro reinos también;
como cualquier manifestación natural está adentro dei hombre, "no hay separación
entre adentro y afuera". En consecuencia, todo es uno y cada uno es el todo; el
hombre es uno con el universo y como éste es creación divina, debe ponerse "en
sintoma" con Ia naturaleza y aprender a nutriria y ser nutrido por ella.

Ias aguas

Misiones es un territorio abrazado por rios y atravesado por arroyos que


surcan Ia provincia formando cascadas y saltos. Derivado de su clima y
relieve, presenta un sistema hidrográfico de extrema densidad: en su perife-
ria pluvial desembocan más de ochocientos cursos permanentes de agua,
desde pequenos arroyos hasta grandes rios. Cuatro de éstos son los que
demarcan Ias fronteras nacionales y provinciales: el Iguazú y el Uruguay
separan politicamente a Misiones de Brasil, el Paraná de Paraguay y el
Itaembé Mini de Ia provincia argentina de Corrientes. Mientras el Paraná
posee aguas mansas y plácidas, el Uruguay es tumultuoso, encajonado, con
rápidos y correderas. Por su parte, el Iguazú contiene en su recorrido Ias
imponentes Cataratas que llevan su nombre.
Este aspecto de Ia geografia provincial despierta en algunos simpati-
zantes de Ia Nueva Era Ia convicción de que en Misiones existe un "excesivo
movimiento y abundancia de aguas". Y como el agua representa el sentimiento
y Ia emoción, éstos entran en una agitación irrefrenable consecuente al
alborotado discurrir de aquéllas. Este desborde de energia liquida produce
un estallido de sendmientos que el ser humano necesita controlar y encauzar
de algún modo. Dado que el movimiento Nueva Era tiene sus raices en dichos
planos existenciales, se convierte en el canal contenedor por excelencia,
produciéndose espontáneamente su nacimiento y desarrollo. Asi, esta
corriente espiritual actuaria equilibrando Ias fuerzas encontradas y
armonizando el campo de energias en lucha:

En Misiones hay mucha agua, mucho movimiento de agua. Acá los sentimientos
están muy a flor de piei, muy exaltados. Son como una explosión volcánica,
cosa que no podés tener en un desierto o en una ciudad rodeada de cemento.
contepomi, m a r í a dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 1 5 9 - 1 8 4 , 2000 166

La sola energia dei ambiente geográfico, físico, produce esta explosión de


sentimientos. Entonces, el ser humano para controlaria necesita encontrar salidas
nuevas y se dirige a Ia Nueva Era.

En este pequeno "continente" de aguas, existen centros privilegiados de


energia: Ias cataratas dei Iguazú y los esteros dei Iberá poseen una fuerza que
promueve en el ser humano el desarrollo de Ia conciencia y espiritualidad. Ellos
propician el reencuentro interior, Ia unidad universal y transmiten corrientes
planetarias de transformación.

1. Ias cataratas dei iguazú

Las cataratas dei Iguazú^" - Agua grande en idioma guarani - se encuentran


ubicadas a 300 km de Posadas y constituyen un enclave natural de singular
belleza. Alimentadas por el rio Iguazú, están conformadas por doscientos seten-
ta y cinco saltos que oscilan entre los cincuenta y ochenta metros de altura.
Entre ellos. Ia Garganta dei Diablo es el de mayor caudal, rasgo que se refleja en
Ia arrogancia de su nombre. Rodeadas dei Parque Nacional, constituyen un polo
de atracción visitado por turistas dei mundo entero.
Sin soslayar la belleza que lo caracteriza, para los simpatizantes de Ia Nueva
Era este conjunto de saltos significa mucho más que un disparador de emociones
estéticas. Iguazú es considerado un centro de energia "de primer nivel", "el centro
coronario dei país", "el gran corazón de América" o "el más importante en el
mundo". Este núcleo energético por excelencia crea un campo vibracional que
afecta el estado de ânimo de sus visitantes y extiende su influjo al nivel planetario.
La explicación de este fenômeno es planteada por los adherentes a través de
una analogia entre el hombre y la Tierra en cuanto seres vivos y conscientes, idea
que se extiende al cosmos en su totalidad. Así como el ser humano posee un
cuerpo con partes que cumplen distintas funciones, de la misma manera la Tierra
como entidad física, como cuerpo - con su propia anatomia, fisiología y química
-, tiene partes que cumplen funciones para el desarrollo y equilíbrio total dei pla-
neta. Empero, hay zonas dei planeta que están expresando determinados princípios,
son más magnéticas que otras, tienen un campo vibratorio más potente. Una de
ellas son las cataratas dei Iguazú que, en tanto Corazón planetario, cumplen la
función de purificación: renueva la sangre vital que circula por las venas de la
tierra, la toma y devuelve al mundo purificada por las artérias dei planeta, según
ilustraba un joven profesor de inglês y apasionado lector de Madame Blavatsky'^:

Las cataratas son el gran Corazón que está absorbiendo ese liquido que viene fer-
tilizando el planeta, le da un nuevo impulso y lo vuelve a enviar para que vuelva a
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 167

feitilizarlo. Lo que hacen Ias cataratas dei Iguazú con Ias aguas es Io mismo que
hace nuestro corazón con Ia sangre.

Asimismo, no es casualidad que una masa selvática'^ envuelva a Ias catara-


tas: "los pulmones están siempre al lado dei corazón!", es enfáticamente remar-
cado por Ia integrante de un grupo de Metafísica. Esta densa formación boscosa
es un gran pulmón que - oxigenando y purificando Ia atmosfera - constituye una
vital fuente de energia, de "energia de cura" a través dei reino vegetal. Al mismo
tiempo, "trabaja a nivel inconsciente" e imprime a los habitantes de Ia región
una vitalidad que los distingue de los residentes en nichos ecológicos áridos
como los desiertos, o artificiales como Ias grandes ciudades.
Tal como el vapor húmedo que envuelve a Ias cataratas se eleva y renueva,
también el ser humano puede regenerarse y elevarse hacia sus propias alturas interi-
ores para exaltar los valores espirituales. Y es en ese escenario - en el que nada se
niega y todo se brinda -, donde el ser humano establece una relación trascendental
con Ia naturaleza. En contacto con ella experimenta una energia que impacta al nivel
interno y personal, tal como destacaba una asidua concurrente:

Cualquier persona dei mundo entero que haya pasado por Iguazú puede corro-
borar que su vida es un antes y un después, marca un hito en Ia vida, hay cosas
que se transforman, se renuevan, y es propio de esa energia que está circulando
en ese lugar. Es una energia natural que es al mismo tiempo espiritual. Esa
fuerza, ese magnetismo que absorve y expulsa no puede pasar desapercibida
por nuestrqs sistemas individuales, por nuestra mente.

Iguazú también es vinculado a otro rasgo idiosincrático de esta provincia:


Ia llegada de inmigrantes de diversas laütudes de Ia Tierra. Su poder de
atracción opera a niveles sutiles e inconscientes generando Ia llegada de
hombres diversos, afirma uno de los entrevistados. Por ello, los verdaderos
morivos dei arribo no deben ser buscados en los niveles explicaüvos histó-
rico o social; Ia lectura de los acontecimientos debe atravesar los planos
aparentes y sumergirse en Ias profundidades donde se encuentran Ias causas
últimas y primeras que afectan Ia vida de los hombres. La segunda guerra
mundial, por ejemplo, es sólo un disparador, una manifestación externa de
realidades más profundas dado que "si no hubiera sido eso hiibiera sido otra
cosa; el canal de comunicación que llega hasta acá los trajo y nos trajo".
Por otra parte, y respondiendo a su función vital, Iguazú es un centro generador
de riqueza, de una abundancia que se va expandiendo, "como si fuera una
respiración", como una onda magnética que se amplia abrazando a Brasil y
Paraguay; es como "un sol, que ilumina hacia los 360 grados". Iguazú es generador
de ideas y de proyectos, hecho que se legiüma con Ia conformación dei
168 contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 168

MERCOSUR (Mercado Común dei Sur) en esta región continental. El impulso


de renovación planetaria que sucede a su alrededor, se irradia generando un centro
de unificación continental que se maniíiesta -en esta etapa- en Ia dimensión
econômica pero que alcanzará en el futuro "a Ias zonas más profundas y espirítuales
dei ser humano". Si bien este proceso de interrelación, compenetración y
uniíicación es planetario, los sujetos y sociedades más próximos a Iguazú, se
encuentran mayormente afectados por Ia fuerza que dimana.
Como fue expresado, los sujetos reconocen que al nivel mundial se experi-
menta una transición espiritual relevante, una búsqueda de valores sustanciales
contra Ia via consumista, los valores materiales, efímeros, descartables. El ser
humano se encuentra en Ia búsqueda de valores imperecederos, "de vida
verdadera" y espiritualidad. Y en este proceso universal, Iguazú cumple un
papel central, aseveraba una participante de un grupo de meditación:

Iguazú está colaborando ha que se desarrollen estos valores por el proceso


de síntesis que logra, esa síntesis cultural, espiritual, física que da sus fru-
tos. Si bien todo el mundo está pasando por esto, a nosotros nos toca una
parte importante dentro de ese proceso, tenemos Ia misión de irradiar eso
desde aqui, desde Misiones!

Así, Iguazú tiene un destino, una misión que cumplir, convicción que es
avalada por el Maestro indio Parvathi Kumar, quien ha visitado Misiones en
diversas oportunidades y coordinado Ias "convivências"'^ desarrolladas en cata-
ratas. Es él quien legitima y ratifica Ias experiencias de sus seguidores conforme
a Ias propias, que Ias senalan como un lugar único, un centro magnético y espi-
ritual planetario que recibe, atrae, expulsa y "abre" a los sujetos de acuerdo al
estado de consciência que posee para poder captar, percibir, decodificar, asimilar
y obrar en consecuencia. Una de Ias asistentes a dichos encuentros sostenía:

En Iguazú hacemos Ias convivências; cruzamos a Ia isla San Martin y armamos


nuestro altar con los grandes Maestros de Ia humanidad. Todos están: Cristo, Ia
Blavatsky, Ia Virgen de Luján. Hay católicos, judios, budistas porque Ia verdad es
una. Va el que quiere porque es una fratemidad universal. El clima de paz que
existe es único; uno se siente poseido por fuerzas maravillosas, de gran pureza; se
siente Ia verdadera grandeza dei universo en un clima de exaltación espiritual.

Todo ser o fenômeno tiene un trayecto que caminar, un camino que recor-
rer, y ese camino está inserto dentro dei camino mayor, universal. En el plano
cósmico, de Ia interacción de Ia luz en el espacio -donde Ia luz es dada por los
astros y el espacio por Ia ubicación que en Ia que éstos se encuentran -, surge Ia
dirección que el universo entero debe recorrer:
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 169

Con ese mismo principio nosotros no podemos escapar dei trayecto que está
haciendo nuestro planeta y nuestro sistema solar, porque estamos ingresando
en Ia Era de Acuario y con todo Io que eso significa: Acuario, Ias aguas de
Acuario, aguas de abundancia como Iguazú!, que sintetizan y purifican!

En consecuencia, ei ser humano se encuentra inexorablemente afectado por


procesos universales que escapan a su control y voluntad. Sólo su apertura de
concienciale permitirá recibirlosmensajes ycomprender que Ia naturaleza hace
su trabajo y que el espíritu hace su trabajo a través de ia naturaleza y que, dentro
de ese juego, el trabajo se realiza no sólo a través suyo sino también a pesar suyo:

Debemos dirigir nuestras personas pero dejar que Ia energia fluya, ser canales.
El sol pasa a través dei vidrio de Ia ventana, pero no es el vidrio el que da Ia
luz; viene dei sol y él toma a su vez de un centro superior y éste de otro centro
superior y así llegamos al padre, el espíritu universal. La creación es el gran
instrumento a través dei cual se transmite esa luz.

El ser humano debe interpretar donde está, de dónde viene, hacia donde va
y cuál es su función dentro dei juego universal. Para ello necesita conocer cuáles
son Ias senales de Ia naturaleza y luego "ponerse en sintonia" porque dentro de
un espacio y tiempo determinados se conjugan todos los tiempos y todos los
espacios.

2. los esteros dei iberá

Si bien los esteros dei Iberá se encuentran ubicados en Ia vecina provincia


de Corrientes, aproximadamente a 150 km de Posadas, Ia interpenetración cul-
tural y fluidez de los intercâmbios con el área los instalan como un elemento
familiar de los hombres misioneros.
Considerado el "humedal más grande dei mundo", es un sistema confor-
mado por "una compleja red de banados, esteros, lagunas y cursos autóctonos
de origen pluvial" (Corrientes Siglo XXI, 1998) que cubren una superfície de
12.300 km2. De Ias centenares de lagunas interconectadas, entre Ias cuales Ia
mayor es Iberá, Ia mayoría contiene islãs e islotes flotantes que se desplazan
guiados por el impulso de Ias corrientes. También calificado como "mar de
hierbas", Iberá es un complejo biológico que presenta alta heterogeneidad de
ambientes y microambientes. En sus pajonales saturados de agua se concentra
Ia mayoría de Ia fauna, constituyendo un ecosistema declarado Reserva Natural
en 1983 por el gobierno provincial.
Dispersos en esta amplia zona, un número reducido de asentamientos humanos
conforman pequenos poblados o aldeas que mantienen contactos esporádicos con Ia
contepomi, m a r í a dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 1 5 9 - 1 8 4 , 2000 170

sociedad global. Iberá conforma un espacio socio-cultural en el que Ias leyendas


populares sonricasen contenidos y formas. Numerosos acontecimientos y fenômenos
informan los relatos: una ciudad sumergida, personajes antropomórficos o
sobrenaturales, luces y vocês, son algunos de los componentes de Ia antigua narra-
tiva fantástica de Ia zona.
Si bien para los misioneros Ia visita a Iberá responde a propósitos vincula-
dos a Ia caza, Ia pesca y al turismo ecológico - contacto que deviene en una
aventura colmada de anécdotas para los centros de invesrigación científicos
nacionales e intemacionales se convierte en un espacio para el desarrollo de
estúdios hidrográficos o biológicos. Sin embargo, otro es el motivo que lleva a
algunos new agers locales a interesarse por el lugar. Aunque Ia atracción por el
área permea diferentes grupos, los adherentes a Ia escuela de transformación
espiritual liderada por Trigueirinho, sostienen un conjunto complejo de creencias
en tomo a este espacio bio-cultural.
Según Trigueirinho, Ia laguna Iberá es Ia contraparte física, un "Espejo"
por médio dei cual actúa el Centro intraterreno Iberah. Sostiene que existen
siete Centros planetarios terrestres que constituyen núcleos de energia a los que
se encuentran coligadas civiHzaciones intraterrenas. Estos Centros custodian el
contacto dei ser humano con verdades eternas y ofrecen condiciones para que Ia
Tierra, en su evolución, se encamine a su destino cósmico. El "trabajo" de los
Centros es de fundamental importancia en nuestros dias: por su intermédio se
irradia Ia energia que activa Ias transformaciones que posibilitarán Ia
manifestación de una Nueva Tierra. Además, impulsan a los seres humanos a
iniciaciones que les permitan superar los limites humanos y terrestres y fundirse
en reahdades sutiles e inmateriales. El proceso iniciático, conforme se da en
esta época de transición, es comprendido sólo por aquellos que se disponen a
caminar los sagrados caminos de Ia vida interior.
Los Centros Iberah, Anu Tea y Erks forman un triângulo energético denomi-
nado Guardián de los Mistérios Sagrados. Componen el conjunto transmisor de
impulsos iniciáticos para Ia humanidad y cada uno actúa directamente sobre ciertos
núcleos de conciencia dei hombre. La irradiación de Iberah, por ejemplo, incide
en la matéria que reviste al ego. Ia impele a desligarse de Ias fuerzas retrógradas y,
en consecuencia, prepara la ascensión dei ego y su fusión en el alma.
El centro intraterreno Iberah está activo desde los comienzos de la Tierra
trabajando para la redención de la matéria, y es el más misterioso y oculto de los
que se revelaron hasta el momento. Dado que el hombre de superfície de la
Tierra no ha comprendido aún la relación primordial entre el espiritu y la matéria
expresada por él, no debe contactarlo directamente. Se espera que alcance la
pureza necesaria para actuar con el poder y la sabiduria por él emanados. No
obstante, Io estimula a manifestar dignidad, eliminando en la matéria Ias fuerzas
que puedan desviarlo de su meta trascendente.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 171

Por trabajar con Ia matéria en sí misma, el trabajo de Iberah repercute en el


subconciente de Ia humanidad. Dado el grado de contaminación psíquica en el
que se encuentra el planeta, es preferible que los hombres permanezcan distan-
ciados de esa energia potente y transformadora. Consecuente con esta
prescripción, una seguidora de Trigueirinho explicaba Ia imposibilidad de visi-
tar el área, a pesar de su cercania a Posadas:

El contacto físico directo de Ia persona con el Centro no es posible porque el


ser humano a nivel vibratorio no Io soportaría. Es un centro dei primer rayo,
que es transformación, es fricción, es cambio, rompe estructuras antiguas,
trabaja a nivel sutil, energético. Por eso el contacto físico no está recomendado
y no hacemos turismo espiritual como en Perú.

Como fue senalado. Ia laguna Iberá es Ia manifestación física dei centro


intraterreno Iberah, un Espejo por médio dei cual ese potente núcleo
intraterreno actúa. Esta laguna es controlada por una civilización suprafísica
y está cercada por un campo de energia ono-zone'"^. Por ello, cuando intentan
navegaria, plantas acuáticas flotantes impiden el trânsito de Ias
embarcaciones. En Erks (1989), Trigueirinho relata una de Ias tantas
experiencias paradigmáticas: cuando un equipo de científicos intento
desplazarse por agua. Ia masa vegetal se Io impidió y Ia energia circulante
bloqueó los instrumentos de navegación. El pedido de auxilio por radio no
llegó a destino y el avión enviado para localizarlos desapareció en el aire.
Las tentativas de contacto con el mundo interior de Iberah son bloqueadas
por el Guardián de los Infiernos, quien advierte que los hombres no deben
aproximarse. En diferentes niveles hay energias que protegen el trabajo de
Iberah, algunas de las cuales se expresan a través de seres con apariencia de
indígenas, seres que son guardianes dei Espejo.
Según los seguidores locales, en Ia laguna existe una isla flotante que cambia
de posición conducida por una energia inteligente. En los niveles sutiles es posible
percibir que sus movimientos'^ desencadenan Ia acción de algunas corrientes
energéticas en el planeta. Una de las funciones de Ia isla es indicar cuándo una
fuerza natural debe salir de su reclusión para iniciar su trabajo en Ia superfície de Ia
Tierra. También en los planos sutiles, su misión es preservar el foco dei Espejo que
dirige la secuencia de los movimientos que deben seguir las fuerzas telúricas y
naturales bajo el control de Mhayhuma'^
Este gran Espejo controla una abertura de entrada y salida de naves extra-
terrestres y actúa como base de operaciones aún ocultas que escapan al control
dei instrumental creado por el hombre. Bajo las aguas de Iberá existe vida
intraterrena y una base de rescate similar a la mundialmente conocida dei
Triângulo de las Bermudas. Desde las civilizaciones o bases intraterrenas hay

L
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 172

comunicación, a través de los Espejos, con los diferentes planetas que forman el
Consejo Interplanetário que está trabajando en Ia Tierra. Así, Iberá es un Espejo
compuesto por seres extraterrestres provenientes de otras galaxias y por una
civilización intraterrena que contribuye a Ia gran misión de transformación de
Ia raza de superfície de Ia Tierra. A diferencia de ésta, Ia intraterrena no solo
puede viajar a los distintos planos habitados dei universo, sino que también está
integrada a Ia Naturaleza, Ia respeta y convive con ella en perfecta armonía.
Debido a Ia calidad de energia circulante en el área dei Espejo, los seres dei
reino animal y vegetal adquieren mayores proporciones físicas y pasan a asumir
el papel de guardianes. En sus planos sutiles, se encuentran algunos seres
guardianes, semejantes a indígenas pero de color claro, que conforman un reino
paralelo al humano. Son seres cuya misión consiste en purificar el planeta y
preservarlo de Ia depredación humana, según testimonio de una adepta:

En ei Iberá hay seres guardianes. En cada lugar hay cuentos, leyendas, pero no
son cuentos. Son entidades que están cuidando y preservando los lugares, al
reino vegetal y animal. Por eso Io de Ia desaparición de personas y objetos y el
movimiento de Ias islãs. Quedan interrogantes; quizás hay una información que
todavia no está siendo develada porque no es tiempo de saber toda Ia información.
La energia conducirá los tiempos en que se podrá saber.

Así como los seguidores de Trigueirinho sostienen creencias e


interpretaciones sobre los fenômenos propios de Ia zona, los oriundos de
Iberá también reproducen un sinnúmero de historias que hablan de Ia
existencia de pueblos y seres pertenecientes a dimensiones sobrenaturales.
Los relatos de los pobladores - según consta en Ia recopilación de Cuentos y
Leyendas Populares de Argentina (1984) -, dan cuenta de acontecimientos
extraordinários que aconteceu en Ia vida diaria. No sólo el viento que sopla
muy fuerte es considerado "como si no fuera de este mundo"; también los
embalsados'"^ que navegan por Ias lagunas respetan un mandato "de otra par-
te", esto es, impedir que los visitantes accedan al conocimiento de los "ha-
bitantes dei centro de Ia laguna", según testimonios. Para ello. Ias tempesta-
des, embalsados y totorales se encargan de desalentar Ia osadía: "La persona
que entra ahí no sale más", "entran y no vuelven más porque se abren y se
cierran" (Vidal de Battini, 1984: 393) sentencian los hombres dei lugar.
Los nativos también hablan de una ciudad sumergida "que antes era una
gran ciudad que se fundió para formar una ciudad abajo dei agua" (Vidal de Battini,
1984: 287). Además, aseguran que en médio de los esteros "habitan personas dei
otro mundo" porque se escuchan vocês y cânticos, tanido de campanas y
resonancias de instrumentos musicales. Uno de los personajes que eventualmente
es divisado es "el indio peticito, negro, que muchas veces se ve" (Vidal de Battini,
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 173

1984: 175) merodeando entre los abras'^ y embalsados dado que "cuando ei
embalsado se inunda salen los negritos" (Vida! de Battini, 1984: 394).
Las "historias que se cuentan no son un cuento" aseveraba una seguidora
de Trigueirinho cuando aludia a las narraciones que desde antano son conocidas
y transmitidas en el litoral argentino. Las leyendas y creencias populares son
asumidas por ésta como una confirmación de sus propias convicciones:
"coinciden en esencia y realidad con las leyendas y mitologias de los indios
transmitidas a través de las generaciones". No obstante, detiene su atención
en las diferencias que los términos explicativos en uno y otro caso expresan:

Para el conocimiento indígena las luces de diferentes tamanos que surcaban


el espacio eran los espíritus de los antepasados que de noche vagaban lumi-
nosos y se aposentaban para acompanarlos. Ahora sabemos que es otra cosa,
pero los hechos están!

Las expresiones "todo es mistério en Ia laguna" o "Ia laguna Iberá es


un gran mistério" recogidas por Vidal de Battini (1984), parecen sintetizar
no solo las experiencias de los parroquianos sino también las de los lectores
dei Maestro brasileno. Asimismo, todos y cada uno de los componentes de
este viejo escenario han sido incorporados al nuevo horizonte de creencias,
si bien traducidos desde el marco de más recientes convenciones. Una
ciudad subacuática, seres no humanos, luces, islãs flotantes que impiden
el paso, esto es, integrantes prévios dei imaginario local reapareceu inter-
pretados bajo fórmulas inéditas.

II. el escenario histórico-cultural

las ruínas jesuíticas

Hasta el arribo de los conquistadores a principios dei S. XVI, Ia actual


provincia de Misiones y regiones que hoy forman parte de las Repúblicas de
Paraguay y Brasil, se encontraban habitadas por el grupo étnico mbya-guaraní.
A mediados de mismo siglo, Ia Companía de Jesus se afinco en estos territorios
en los que fundaron treinta reducciones y desarrollaron su obra evangelizadora.
Cada reducción constituía un complejo arquitectónico construído en piedra en
el que desarrollaba Ia vida cotidiana de guaraníes y sacerdotes. En 1767, los
jesuitas son expulsados de América por Ia Corona Espanola y las reducciones
progresivamente abandonas por Ia población indígena.
Como testimonios materiales de ese pasado, en Misiones sobreviveu once
complejos arquitectónicos - las denominadas Ruinas Jesuíticas^^ -, entre los cuales se
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 174

destaca San Ignacio Mini por el estado de conservación que permite imaginarlo en su
plenitud originaria. Así, el pasado jesuítico - glorioso u ominoso de acuerdo a cada
quien - no es olvidado, al menos, por Ia presencia insoslayable de sus construcciones.
Este pasado ha estimulado Ia creación de historias y relatos que se reproducen y recrean
a través dei tiempo. Mitos y leyendas^^^ nacieron y conservan en Ia zona, fundamental-
mente arraigados en Ias poblaciones asentadas en cercanias de Ias Ruinas.
De acuerdo a Io esperado por sus habitantes, estas localidades crecieron
demográfica y economicamente a un ritmo inferior en comparación con otras
de Ia provincia. Una de Ias razones dei "atraso" sostenida por los lugarenos,
hace referencia a su pasado jesuítico: "los pueblos que tienen origen jesuítico
no adelantan nunca, se quedan", manifiestan con certidumbre. Más precisamente,
es Ia "maldición jesuídca" el origen de los males, Ia responsable de una realidad
indeseada. De modo jocoso o no, algunos intendentes o miembros de los Concejos
Deliberantes aluden a ella cuando su gestión encuentra trabas o se frustran los
proyectos. Su referencia como promotora de disgustos y contratíempos, permea
el discurso de los funcionários y representantes vecinales, según testimonia una
ex responsable dei Programa de restauración de los monumentos.
Empero, esa vieja creencia aparece en un nuevo contexto cuando esta fun-
cionaria dei gobiemo y participante de eventos new agers revisa Ia historia de
los sucesivos intentos de restauración. El espectro se asoma y transita en su
relato cuando senala Ias dificultades que se han suscitado y aún se interponen en
el quehacer cotidiano: desde 1940 - cuando se ponen en marcha los primeros
trabajos - hasta Ia fecha, una sucesión de acontecimientos infaustos serían Ia
prueba de ese influjo. No arriesga su adhesión a Ia explicación popular, no alude
directamente a Ia maldición jesuítica. Aunque el "como si" es Ia via discursiva
de escape en su largo relato, se afirma y se convence de que algo hay:

No sé si es ia maldición jesuítica pero creo que algo pasa, sino no es posible


que sucedan tantas cosas. No sé qué es, pero algo hay. Siempre pasa algo, no
se adelanta, todo se traba. También hay problemas de salud, econômicos o
personales de Ia gente que trabaja en esto. Yo llegué a Ia conclusión de que si
no se puede restaurar es porque el monumento no quiere, está pidiendo que no
se Io toque, se resiste. Hace tiempo me senté a dialogar con él con Ia conciencia
de que está vivo, y asumí ante los muros el compromiso de que de mi mano no
va a salir Ia firma para reconstruir algo que él no quiera. Juré prestar atención
a cualquier signo que surja. Si yo capto de que el monumento no quiere ser
restaurado, de mi mano no va a salir Ia firma que autorice. Así estoy en paz.

A su entender, a Ia creencia popular podría sumarse otra vertiente de los infortúnios,


a Ia cual parece adherir con mayor convicción, esto es, el sufrimiento dei pueblo guarani
que perdura a través de energias que persisten desde antano en el lugar:
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 175

El sufrimiento de los indios también puede estar actuando con peso. La


organización de vida impuesta, Ia imposición de Ia fe católica tiene que haber
provocado sufrimientos. La historia oficial no habla de los azotes, los castigos;
y sino cómo es posible que en Loreto vivieran 7.000 indios y sólo 2 padres?

Otra de ias profesionales responsables de ia restauración y que actualmente


pertenece a un grupo de meditación autodenominado "Comunidad dei Amor" se
reconoce como uno de los sujetos al que ei trabajo directo, cotidiano y prolongado
con Ias Ruinas afectó su vida personal. Su testimonio da cuenta dei deterioro
físico y emocional sufrido a raiz de ia vibraciones energéticas que irradian, im-
pacto que alcanzó a inhibir su capacidad motriz de desplazamiento^^:

Guando uno está metido en el lugar se da cuenta de Ias vibraciones energéticas


que trabajan fuertemente en nuestro campo energético. Yo de ahí salí muy
enferma, de una enfermedad que nadie me podia decir qué es Io que tenía y
hubo un fracaso de todo: psíquico, afectivo, econômico, laborai, se corto todo.

Empero, en este caso, la fuente de ias vibraciones son adjudicadas a los


guaraníes quienes, a través de sus creencias y rituales mágicos, han dejado una
impronta en los muros y en la tierra. Son ellos los celosos custodios que no
autorizarían que manos extranas perturben el sueno de sus obras:

Hay manejos vibracionales que pueden estar ligados a una suerte de ceio de
los custodios de los lugares, que se meten con Ias personas que pueden llegar a
intervenir en el médio. La explicación es el manejo mágico, espiritual dei guarani
que es poderoso. Los chamanes tienen sus principios mágicos muy fuertes,
ellos manejan Io mágico, manejan Ias vibraciones de la naturaleza. Yo creo que
eso que eso ha quedado impregnado. Ellos tienen secretos que no los cuentan
y eso tiene que ver con la magia, tiene que ver con los chamanes. No tiene que
ver más eso que la historia de los jesuitas en sí? Para mí es la maldición
guarani, yo no creo que los jesuitas hayan desarrollado una maldición. Si puede
haber una postura desde la raza guarani, proteger su territorio...

Al igual que su colega, recorrió la historia de los sucesivos fracasos de


restauración, y si bien hizo suya la versión oficial de los sucesos, la descarto
como única explicación de Ias frustraciones:

Está la historia oficial de los conflictos, que es una realidad: el manejo econômico,
politico. Pero por otro lado, qué pasa ahí dentro? Pasa que hay una gran magia y
una gran energia, pasa que si uno está ahí tenés como un encantamiento, una
ensonación, que tiene que ver con Ias vibraciones que están impregnadas en Ias
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 176

piedras, en Ia tierra, en Io construído. Vos tenés afectado tu cuerpo vibracional


con esas vibraciones. Es un gran ceio energético, no me toquen!

Aunque los testimonios difieren en el fundamento de Ias desdichas -


maldiciónes, magia - , no hay dudas respecto a Ia existencia de energias que
embeben Ia tierra y Ias piedras. Cabe destacar que estas energias no son
interpretadas como negativas en sí mismas, sino como el producto de una
enorme concentración de fuerza que debe ser respetada en virtud de los legí-
timos propósitos que defienden. Para todos los adherentes que Ias visitan,
Ias potencialidades energéticas de Ias reducciones son recibidas positiva-
mente. Se entiende que Ia vida espiritual de los guaraníes y Ia obra
evangelizadora de los sacerdotes no pueden perdurar más que a través de un
influjo benéfico que es percibido como "una gran luz que se refleja Ia zona".
Consecuentemente, Ias Ruinas son visitadas con Ia finalidad de conectarse
con ésta y vivir experiencias de paz y armonía, experiencias que confirman
Ia creencia de sus beneficios^l
Estos viejos escenarios también despiertan otras miradas entre los adherentes
a Ia Nueva Era, miradas que provienen de un determinado saber o creencia: Ias
líneas geománticas y los "nuevos pensamientos" son algunos de los ejes que
guían los intereses. Así, los princípios dei Fen Jui^^ sirven para explicar el
emplazamíento de Ias reducciones, Ia forma de sus plantas arquítectónicas y Ia
localización de los espacíos preferenciales destinados al ritual, en tanto áreas
con campos energéticos fuertes. Para algunos entusiastas dei tema, los "pueblos
antiguos" - como los guaraníes - que vivían en contacto con Ia naturaleza habían
desarrollado sensibilidades para percibir en forma natural Ias diferencias de
radiación de los lugares de cruces de energia.
Pero también los jesuítas manejaban estos conocimientos, según un artículo
difundido entre los interesados. Los saberes aprendidos en Oriente facultaban a
los sacerdotes para reconocer Ias energias telúricas y determinar los lugares don-
de fundar los asentamientos. Se afirma que Ias ruinas de San Ignacio Mini fueron
construídas describiendo Ias vetas dei dragón de Ia China y respetando los lugares
de circulación de energia. Por ejemplo, el altar mayor estaria localizado donde se
produce el cruzamiento de los canales energéticos más importantes, de acuerdo a
Io que afirma Ia Revista Sin Limites:

Podemos comprobar al investigar Ias ruinas de Ias iglesias de Ias reducciones


jesuiticas guaraníes, que Ias mismas fueron construídas totalmente basadas en
líneas geománticas. El altar está ubicado en un punto muy especial de fortísíma
radiación que le daba al sacerdote oficiante una enorme exaltacíón y domínio
sobre los feligreses reunidos. Además, los jesuítas sabían canalizar esas energias
y Ias transmítían en forma de bendíciones.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 177

Desde otra perspectiva, para el grupo de practicantes de Ia "Ciência


Cristiana", Ia presencia jesuítica aporto un elemento que es determinante
para el desarrollo actual de Ia espiritualidad en esta provincia: sembró Ia
semilla dei "nuevo pensamiento" que perdura a través de los siglos. Este
aporte dota a Misiones de posibilidades para "hacer el nuevo milênio" y
convertirse en un paraíso en Ia Tierra. Así, Misiones se particulariza y dis-
tingue por Ias simientes espirituales revolucionadas de estos hombres de fe
que pretendieron construir un "mundo nuevo" basado en Ia fraternidad y en
el autêntico pensamiento crístico:

Misiones tiene algo particular porque Ia mentalidad ya estaba. Los jesuitas vinieron
con el pensamiento de hacer el nuevo milênio, querían hacer un paraíso en Ia
Tierra donde Ia pureza, santidad y armonía sean los principios; una comunidad
donde uno se ayude al otro. Vinieron con idea de futuro de armonía y de paz y
por eso no querían que los indios se mezclaran, que no se contaminaran los
pensamientos puros que ellos tenían. Querían edificar el nuevo mundo de armonía
y paz donde nosotros ahora mentalmente estamos entrando en el nuevo milênio.

Pero otro factor enriquece y reftierza el impulso transformador de los sacer-


dotes: el pueblo guaram' que también sustentaba el amor a todos los seres vivientes,
el respeto a Ia creación divina y al trabajo en común. Se considera que ambas
culturas religiosas se entretejieron y fertilizaron Ia tierra misionera otorgándole Ia
gracia de ser un ejemplo para el mundo. Por ello, los fundamentos de Ia nueva era
ya están en Misiones, solo hay que descubrirlos a través de un profundo trabajo
interior que ensanche Ias consciências.
Otra visión es Ia que sostiene un apasionado por Ia teosofía, quien conside-
ra que Ia llegada de Ia Companía de Jesus responderia al llamado que in illo
tempore esta tierra realiza. Su presencia es solo un eslabón, un elemento más
que confirma el destino que Misiones tiene asignado, conforme al particular
proceso de síntesis que esta tierra realiza. La llegada de los sacerdotes jesuitas
es otra manifestación dei proceso de atracción y expulsión generado por Ia fuerza
emanada por Ias cataratas dei Iguazú, en tanto núcleo promotor de energias.

reflexiones finales

Si bien nos encontramos con fuerzas y movimientos sociales de orden glo-


bal que afectan Io local intemacionalizándolo, también observamos que Io in-
ternacional se provincianiza a través de una manera previa de pensar, percibir y
sentir el mundo, informada por Ia matriz cultural dei lugar. Somos herederos de
tradiciones locales que se actualizan y receptores de otras que nos visitan y
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 178

asientan, dinâmica generadora de coexistencias y ligazones que dan cuenta de


una trama de ideas y creencias, de contenidos y significados inéditos.
En este encuentro y entrelazamiento de visiones, se produce el desarrollo de
dos fenômenos simultâneos: el de atribución de diferentes significados a compo-
nentes ya colmados de atributos sobrenaturales - como sucede con los esteros de
Iberá -, y el de incorporación de bienes con propiedades ligadas a una dimensión
trascendente, como ilustra el ejemplo de cataratas dei Iguazú. De este proceso resul-
ta una cosmovisión que transmuta Io conocido convirtiendo en potente Io in-
significante e incorpora aditivos que ensanchan el corpus de rasgos y símbolos locales.
Esta cosmovisión abarcativa no excluye elementos y símbolos caros al
sentimiento de los misioneros. En ella encontramos productos semânticos asociados
con algún sentido de Ia identidad regional por parte de los sujetos que Ia adoptan
y reproducen. No son acaso Ias cataratas de Iguazú, Ias Ruinas y Ia naturaleza los
emblemas por excelencia de Ia "tierra colorada"? En el conjunto de provincias
argentinas, Misiones es reconocida por estos atributos, atributos de una identidad
enfatizada por Ia poesia y el cancionero popular. De este modo, asistimos a un
puesta en escena que da cuenta de Ia perennidad de ciertos símbolos y, al mismo
tiempo, que estos símbolos son capaces de modificar sus valores y enriquecerse
con significaciones que provienen de universos simbólicos distantes.
Como Ias reacciones e interpretaciones dei hombre frente al mundo globalizado
están condicionadas y traslapadas por su cultura, Io parroquial se transfunde en Io
foráneo y Io nuevo se nutre de Io viejo. Así como los mitos, leyendas y anécdotas
regionales relacionadas a personajes y fenômenos que se funden en Ia memória
social son, de algún modo, incorporados a Ia nueva mirada, los bienes culturales
transnacionales son apropiados desde un aqui y un ahora. A partir de este bricolage,
los pensamientos, creencias y experiencias se enriqueceu y articulan diferencial-
mente; se cruza el antiguo imaginario colectivo con los nuevos atributos y
significaciones. Así, en Ias Ruinas jesuítícas "los enanitos muy pequenos y bravos"
que desde siempre custodian los "entierros"^"^, los "fantasmas o aparecidos que salen
por los lugares", "Ias ánimas en pena" que atraviesan los muros (Vidal de Battini,
1984), son vivos personajes parroquianos que se transfiguran y pasan a llamarse
energia o vibraciones. Ahora no sólo residen ánimas en estos espacios misteriosos,
sino también fuerzas que no han resignado Ia misión de aquéllas, esto es. Ia de
custodiarlos y preservarlos. En estefinde Milênio, Ias antiguas creencias misioneras
que continúan animando los lugares y Ias cosas, se complementan o transmutan en
un nuevo universo de sentidos que energiza los elementos.
Dado que toda sociedad es, como dice Geertz (1994: 180), "una tienda en
Ia que los pensamientos se construyen y desconstruyen constantemente", es
posible asistir al montaje de un escenario regional reconstruído y rejuvenecido,
si bien Ia nueva Misiones no abandona sus viejas companías: Ias cataratas. Ias
Ruinas, Ia naturaleza. Las Ruinas jesuíticas son uno de los ejemplos que nos
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 17 9

permiten reconocer que gracias al proceso ideológico de inclusión y bricolage,


estos antiguos monumentos emblemáticos son susceptibles de ser resemantizados
y revalorizados desde otra manera de ver y percibir el mundo.
El creer es Ia fuerza que vertebra este mundo de significados religiosos,
místicos y profanos. En estos tiempos donde el creer constituye una dimensión
que se sustantivisa singularmente, que está abierta y permeable a tradiciones y
movimientos con orígenes espacio-temporales y socio-culturales diversos, este
fenômeno de convivência y renovación de Ias creencias no puede totalmente
sorprendemos. Como senala Hervieu-Léger (1999), el mundo moderno exhibe
"compétences bricoleuses" socialmente diversificadas en el marco de un proceso
de descomposición y recomposición de Ias creencias en el que éstas no
desaparecen sino que se fisuran, muldplican y diversifican.
No obstante, por oposición a Ias creencias que se encuentran avaladas por
tradiciones culturales o cuerpos de creencias institucionalmente legitimadas, es-
tas nuevas formas de creer - de Ias cuales Ia Nueva Era es su expresión paradigmática
- responden a un régimen de autovalidación, operación rigurosamente subjetiva
(Hervieu-Léger 1999). Es en sí mismo, en su certeza subjetiva de poseer Ia verdad,
donde el individuo encuentra Ia confirmación de su creencia. Así, el propio sujeto
produce, de manera autônoma, los dispositivos de sentido que le permite orientar
su propia vida y responder a Ias cuestiones últimas de su existencia. Su experiencia
espiritual se condensa en una relación íntima y puramente privada con aquello
que designa con diferentes nombres: energia, sagrado. Luz.
Desde Ia cultura místico-religiosa de Ia Nueva Era o al interior de esa "nebulosa
místico-esotérica" (Hervieu-Léger 1999), el mundo nunca es exclusivamente mate-
rial, está siempre cargado de valores trascendentes. Puesto que el cosmos es una
creación divina - porque ha salido de Ias manos de Dios -, el mundo está impregna-
do de sacralidad. Los dioses han manifestado Ias diferentes modalidades de Io sa-
grado en su propia estructura y en los fenômenos cósmicos. El mundo se presenta
de tal manera que, al contemplarlo, el hombre descubre Ias múltiples formas de Io
sagrado y, por consiguiente, de Io Absoluto. Vive en un cosmos sagrado y, por Io
tanto participa - junto el mundo animal como vegetal - de Ia sacralidad cósmica.
Empero, estas expresiones no sólo son ideas sino también experiencias vividas.
El hombre siente y percibe que ese mundo al que accede es real, que Ia experiencia
mística de comunicación y comunión con el Ser es real, y que en el plano metafísico
encuentra certezas que trascienden el mundo condicionado y aparentemente real de
los sentidos. Esas convicciones se expresan a través de imágenes y de relatos que Ias
legitiman y vivifican. Son narraciones potentes que justifican Ias creencias y Ias
prácticas y dan sentido a Ia vida. Asistimos a Ia creación de nuevas historias, de
relatos plenos de experiencias, personajes y dimensiones que no reemplazan a los
anteriores sino que conviven con ellos. Misiones es recuperada en sus diversos
planos; su naturaleza, sus culturas y sus hombres aparecen y vinculan al interior de
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 181

una mirada guiada por Ia convicción de que estamos atravesando una Nueva Era.
Desde cada lugar, desde cada perspectiva, el sujeto encuentra particularidades, bus-
ca fuentes efectoras, atribuye relaciones, lee mensajes, encuentra senales y
explicaciones. Las explicáciones encontradas le permiten Ia comprensión dei mun-
do, Ia confirmación de sus creencias y el fundamento de sus experiencias.
Como sostiene Eliade (1998: 114), "para el hombre religioso el cosmos no
es opaco, inerte, mudo, transmite mensajes, es portador de claves". Y Misiones
está llena de mensajes y de claves según puede constatarse. Partiendo de estos
nuevos universos ideológicos y espirituales, el sujeto descubre que su "casa" le
ofrece posibilidades únicas de conectarse con Io sagrado y que, además, es
promisoria y rica en elementos propios, atributos que Ia hacen única y singular.
Un conjunto de características han sido recuperadas e interrelacionadas hasta
convertirla en un escenario que permite distinguirla de otros y que, al mismo
tiempo. Ia ubican en una posición privilegiada.
Asimismo, otro aspecto hasta ahora no develado se hace presente: de su
"roja" matriz se derivaria el fenômeno que despierta gratitudes, esto es,
Misiones como locus que propicia el desarrollo individual de Ia conciencia
y de corrientes espirituales renovadoras, consecuente con Ia Era que se tran-
sita. Se entiende que Misiones tiene un destino senalado y una misión que
cumplir; fue llamada ab initio a converrirse en un lugar de búsqueda y
encuentro, de renovación y elevación espiritual. Hay un mandato que exce-
de las voluntades individuales y que es reconocible sumándose al despertar
de Ia conciencia, creciendo espiritualmente, desprendiéndose de las viejas
estructuras mentales que opacan o impiden Ia llegada a Ia Luz.
Por ello, no deberíamos preguntarnos si nos encontramos asistiendo a Ia
creación de un nuevo "Centro"? Afirma Eliade (1998: 47) que "el Centro dei
mundo es un espacio existencial y sagrado que presenta una estructura radical-
mente distinta, que es susceptible de una iníinidad de rupturas [en Ia homogeneidad
dei espacio] y, por tanto, de comunicaciones con Io trascendente". Desde las cla-
ves de desciframiento dei universo sustentadas por los adherentes, Misiones es un
lugar excepcional conforme al valor de sus atributos. La Tierra sin Mal de los
guaraníes, el centro cardíaco dei planeta, el lugar elegido por los jesuitas, son
manifestaciones destinadas a interpelar espiritualmente al hombre y transportarlo
a planos superiores. Así, no podremos reconocer Ia institución de un nuevo
omphalos, de un espacio que no se priva de significación espiritual sólo visible
para aquellos que participan de esa forma diferente de mirar? Quizás, estos hombres
expresan una vez más Ia "necesidad de vivir siempre en el centro" dado que,
como sostiene Eliade (1998: 126), "el hombre [religioso] ansía situarse en un
centro, allí donde exista Ia posibilidad de entrar en comunicación con los dioses".
Estos individuos, aunados por Ia búsqueda de Io trascendente, atribuyen
sentidos y crean espacios y tiempos no cotidianos en un escenario cotidiano. Un
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 181

encadenamiento de concepciones religiosas y tradiciones filosóficas se articulan


en una cosmovisión que no olvida "Ia aldea", y crea dimensiones "visibles"
para los habilitados. Y así como el hombre se agiganta y "cosmiza" (Eliade,
1997), también Misiones gana altura y universaliza.
Entonces, por qué no considerar que estamos ante Ia refundación dei viejo
y conocido escenario misionero? Misiones está siendo recreada desde otro lu-
gar y a partir de otras autoridades. Las autoridades tradicionales pierden su po-
der frente a liderazgos que provienen de planos hasta ahora soslayados. Es Ia
autoridad espiritual Ia que guia, muestra realidades diferentes y construye
espacios. El territorio misionero, que desde Ia historia oficial es asimilado
geopolítica y culturalmente al "interior", a Ia periferia, al país marginal, está
siendo convertida en un Centro desdenando las concepciones que Ia posicionan
en un lugar que responde a valores de una Era que está terminando, esto es, a los
valores materiales y racionales. Esta mirada espiritual desconoce las claves de
desciframiento e interpretación conocidas, recrea Ia geografia y saberes
tradicionales, reubica a Misiones en el mapa e ignora las explicaciones
acadêmicas, políticas o econômicas de Ia realidad.

Resumo: El propósito de este trabajo es analizar algunos aspectos


dei movimiento Nueva Era en Ia ciudad de Posadas, capital de Ia
província de Misiones, Argentina. El interés se centra en Ia
apropiación particular que los adherentes realizan de los bienes
culturales, ideológicos y espirituales transnacionales que Io
constituyen. Este proceso productorde significados e interpretaciones
se traduce en una nueva visión dei territorio misionero y en peculi-
ares marcos explicativos de Ia realidad local.

Palavras-chave: Nova Era, religião, cultura popular

Abstract: This article analyses some aspects of the New Age


movement in Posadas city, the capital of Missiones province, in
Argentina. It focuses on the follower?s specific appropriation of
the cultural, ideological and spiritual aspects of the New Age
movement. The production ofmeanings and interpretations process
translates a new way to watch the local territory and to explain
and the local reality.

Keywords: New Age, religion, popular culture.


contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 182

notas

^ El movimiento Nueva Era se compone de comentes espirituales, tradiciones religiosas


y esotéricas, teorias y técnicas terapêuticas heterodoxas, artes adivinatorias, culto a
seres sobrenaturales o extraterrestres, con orígenes espacio-temporales y socio-
culturales diversos.
^ Los simpatizantes locales de Ia Nueva Era cuentan con un capital educativo y cultural
que proviene de Ia educación formal recibida - media y universitária - y de Ias facilida-
des de acceso a diferentes vias de información. Sus posibilidades econômicas también
les permiten el consumo de bienes y servidos "alternativos" a través de viajes a impor-
tantes centros urbanos dei país y dei exterior.
^ Para Salvador Pániker (prologuista dei libro La Conspiración de Acuaria), Ia Nueva
Era "se trata dei diseno de una cultura nueva, una manera nueva de pensar viejos pro-
blemas, o sea, y para usar el ya clásico vocablo, un cambio de paradigma".
Trigueirinho es el maestro de una corriente espiritual que tiene su sede en Figueira,
Minas Gerais, Brasil.
^ Núcleos energéticos donde Ia Jerarquía espiritual dei planeta está andada. Esos núcle-
os, representados por una civilización intraterrena, captan el propósito dei Logos y Io
irradian a todo el planeta. Generalmente se encuentran en niveles sutiles y son escasos
los que en Ia actualidad se proyectan a nivel físico en Ia Tierra.
^ Considerando que Ia forma dei guarismo 8 contiene a Ia de todos los demás, se puede
afirmar que los cuatro ocho de esta fecha simbolizan el establecimiento de Ia supremacia
de Ia Energia Única en cuatro niveles de conciencia - físico, etérico, emocional y men-
tal - , al igual que Ia cuarta iniciación hacia Ia cual el planeta se encamina.
^ Es un sistema cósmico de ligazón energética de los universos y de Ias conciencias
coligadas a Ia Jerarquía espiritual y cósmica. En este momento, el trabajo de los Espejos
es básicamente de recepción y transmisión de impulsos vinculados a Ia Operación
Rescate, proceso a través dei cual los seres, principalmente los sutiles, serán rescatados
de Ia Tierra por una operación dirigida por Ias Conciencias Intergalácticas.
^ Semejante con el perfil que el movimiento Nueva Era muestra en otros espacios sociales,
los adherentes posadefios suscriben simultânea o consecutivamente a diferentes
creencias, técnicas terapêuticas, orientaciones espirituales, esto es, eligen su propio
"menú" entre una vasta multiplicidad de bienes simbólicos, místicos y religiosos.
^ La sociedad misionera es el resultado de dos corrientes migratórias fundamentales: Ia
proveniente de países limítrofes - Paraguay y Brasil - que realizó un importante aporte
demográfico, y Ia europea conformada por ciudadanos provenientes de casi todas par-
tes de Europa, esto es, polacos, ucranianos, germanos, escandinavos, suizos, franceses
e ingleses. Posteriormente se radicaron familias japonesas, laosianas y coreanas, di-
versificando aún más el complejo mosaico étnico.
^^^ La UNESCO Ias declaró Patrimonio Natural de Ia Humanidad.
^^ Madame Blavatsky fundó Ia Sociedad Teosófica en 1875.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2000 183

^^ La selva es Ia formación vegetal característica de Misiones y le confiere un perfil


diferente al de Ias otras provincias argentinas. Esta masa boscosa se particulariza por
Ia alta densidad de ejemplares y Ia estratifícación en pisos sucesivos que generan un
sotobosque rico y enmarafiado.
^^ Encuentros en los que se comparten jornadas de meditación.
"Es Ia energia esencial dei cosmos, es vida y conciencia en actividad. N o puede ser
precisado en conceptos: es conocido por el hombre que despierta al mundo interior
y que vive integramente de acuerdo a sus leyes" (Léxico Esotérico, 1995; entrada
ono-zone).
El Centro Anu Tea comanda los movimientos de Ias fuerzas de Ia naturaleza -
sobre todo dei agua y de los vientos- y trabaja triangularmente con otros dos
núcleos: uno ubicado en el Triângulo de Ias Bermudas y otro en el plano etérico
de Ia laguna de Iberá.
^^ Mhayhuma es el representante de laTierra en los Consejos Intergalácticos y Ia Conciencia
que conduce el ingreso de corrientes de energia y de poder provenientes dei centro dei
sistema solar para que actúen en Ia purifícación global de Ia Tierra.
Especie de islãs flotantes formadas por plantas acuáticas, algunas de Ias cuales alcanzan
grandes proporciones.
En este caso, espacio abierto entre árboles.
^^ Cuatro de ellas fueron declaradas por Ia UNESCO Patrimonio Histórico Mundial en
1984: San Ignacio Mini, Santa Ana, Santa Maria Ia Mayor y Nuestra Senora de Loreto.
Por ejemplo, el oro enterrado por los jesuitas y los túneles subterrâneos construidos
por ellos.
^^ Dado que los profesionales médicos no lograban diagnosticar el origen de Ia dolencia,
recurrió a sacerdotes y grupos de oración quienes atribuyeron Ia causa de Ia enfermedad
a su estrecha vinculación con Ias Ruinas.
^^ Si bien el campo energético es común a todos los monumentos, según los adherentes
existen diferencias vibracionales entre ellos: Ias ruinas de San Ignacio son Ias que
poseen menor vibración "porque están muy intervenidas; pero Ias que están más
virgenes como Santa Ana son impresionantes. Yo te diria que un sensible puede llegar
a tener videncias" (adherente).
^^ Se considera que Ias influencias cosmotelúricas o radiaciones terrestres son ori-
ginadas tanto por Ias vetas de agua subterrâneas y fallas geológicas como por un
sistema de franjas de radiación consideradas como lineas de fuerza dei campo
magnético terrestre. Estas franjas cubren toda Ia superfície dei globo en forma
de un reticulado. D e t e r m i n a d o s puntos de cruce de l i n e a s de fuerza en
combinación con vetas y vertientes de aguas subterrâneas - donde se forman
vórtices energéticos especiales -, poseen influencias positivas y exaltantes, con
efecto sobre el sistema psiquico, como ocurre en los santuarios o lugares de
peregrinación.
^^ Tesoros escondidos bajo tierra por los sacerdotes jesuitas.
contepomi, maría dei rosário. Imaginário - usp, n® 6, pág. 159-184, 2 0 0 0 184

referencias bibliográficas

BACHELARD, Gaston. El agua y los suenos. México: Fondo de Cultura


Econômica, 1988.

CORRIENTES SIGLO XXI. Buenos Aires: Gobierno de Ia provincia de


Corrientes, 1997.

ELIADE, Mircea. Lo sagrado y Io profano. Barcelona: Paidós, 1998.

. Ocultismo, brujería y modas culturales. Barcelona: Paidós, 1997.

FERGUSON, Marilyn. La Conspiración deAcuario. Madrid: América Ibérica, 1994.

GEERTZ, Clifford. Conocimiento local. Ensayo sobre Ia interpretación de Ias


culturas. Barcelona: Paidós, 1994.

GIDDENS, Anthony. Modernidad e identidaddelyo. Barcelona: Península, 1997.

HERVIEU-LÉGER, Daniéle. Le Pèlerin et le Converti. Saint-Amand-Montrond:


Flammariaon, 1999.

SEGATO, Laura Rita. Formações de Diversidade: Nação e Opções Religiosas no


Contexto da Globalização. In: Globalização e Religião. Petrópolis: Vozes, 1997.

SIN LIMITES. Buenos Aires: Agedit, ano 1, n. 5, nov. 1991.

TRIGUEIRINHO. Erks. Buenos Aires: Kier, 1989.

. Léxico Esotérico de Ia Obra de Trigueirinho, Buenos Aires: Kier, 1995

. Segredos Desvelados. São Paulo: Pensamento, 1992.

VIDAL DE BATTINI, Bert. Cuentos y Leyendas Populares de Argentina. Tomo


VIL Buenos Aires: Ediciones Culturales Argentinas, 1984.
amalfi, fernanda . Imaginário - usp, n= 6, pág. 185-186, 2000 185

tentativa ãe percorrer
c a M i i i l i o s ?

O macaco
É mais que abençoado
Ele é mágico passado
Na selva
É atalho
Da minha imagem
Margem passada
Na selva

Fernanda Amalfi

"Sobre o alto muro, ele contempla, aos escarranchos, o denso bosque,


coça o traseiro peludo e diz para si mesmo: delícia dos olhos, derrota
do entendimento.
A medida que seus olhos percorrem a mata, inscrevem-se no seu
espírito, com a mesma rapidez e perfeição de uma máquina de escrever,
imprimindo com mãos espertas filas de letras sobre uma folha de papel, o
nome e as características de cada árvore e de cada planta.
O grande Mono fecha os olhos, volta a se coçar.

L
Antes que o sol se ocultasse totalmente, agora corre entre os altos
bambus, como um animal perseguido pela sombra ? consegui reduzir o
amalfi, fernanda . Imaginário - usp, n= 6, p á g .1 8 6 - 1 8 6 ,2 0 0 0 185

bosque a um catálogo.
Uma página de emaranhada caligrafia vegetal. Matagal de signos: como
lê-lo, como abrir caminho por essa espessura?
Caligrafia e vegetação, arvoredo e escritura, leitura e caminho.
Caminhar, ler um trecho do terreno, decifrar um pedaço de mundo. A
leitura considerada como um caminho para ?
O caminho como uma leitura: uma interpretação do mundo natural?"

Octavio Paz,
O Mono Gramático
(p, 46-49)

Agrupamento de imagens múltiplas, sem limites, o espaço poético


rompe fronteiras, a poesia surge então como um fenômeno de liberdade.
Na poética do espaço Bachelard nos introduz para o que ele chama de
Espaço Feliz, são os espaços de posse, espaços defendidos contra forças
adversas? Espaços Amados.
Ao seu valor de proteção que pode ser positivo, ligam-se também
valores im\aginados, e que logo se tornam dominantes. O espaço percebido
pela imaginação, não pode ser o espaço indiferente, entregue a
mensuração e a reflexão do geômetra. É um espaço vivido.
A concha, o ninho, a gaveta, a casa, a imensidão íntima.

Fernanda Amalfi

A porta quem vira bater?


Em uma porta aberta se entra
Numa porta fechada um antro
O mundo bate do outro lado de minha porta.

Pierre Albert-Birot
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 187

resenhas
Livro: Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto
Autor: Luciana Hidalgo
Edição: Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
Por Maria Luisa Sandoval Schmidt*

Reivindico aqui um estado intermediário entre a inabilidade de um bebê e sua


crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade.
Estou, portanto, estudando a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao
bebê e que, na vida adulta, é inerente à arte e à religião, mas que se torna marca
distintiva de loucura quando um adulto exige demais da credulidade dos outros,
forçando-os a compatilharem de uma ilusão que não é própria deles.

D. W. Winnicott

Arthur Bispo do Rosário construiu um inventário do mundo: preparação


para apresentar-se a Deus. Inventário, como sugere David Lapoujade, que é
"toda uma linguagem-mundo", abrigando a desordem e a proliferação de um
mundo esquizofrênico no qual um Deus, igualmente esquizofrênico, pudesse
reconhecer sua criação^

^ Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro do Labo-


ratório de Estudos do Imaginário (LABI).
1,188 resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000

Luciana Hidalgo define o empreendimento desta biografia como "uma tenta-


tiva de seguir passos e pistas", tentativa que acaba por se render ao singular trân-
sito de Bispo "numa região delicada entre a realidade e o delírio, a vida e arte":
perigração através de um labirinto no qual a biógrafa se perde e do qual volta com
um livro que, a seu modo, apresenta Bispo ao leitor.
Ainda, segundo a autora, a biografia de Arthur Bispo do Rosário "mistura ft-ag-
mentos que ora se encaixam ora se estranham" e ela compreende que encontrá-lo
depende muito mais de "mandar às favas a lógica", aceitar a versão sobre seu apareci-
mento no planeta, que apaga as referências sobre infância e juventude, e compartilhar,
no limite do possível, suas verdades e fantasias, seus sonhos e pesadelos: compartilhar
seu "mundo paralelo", ao invés de tentar decifrá-lo ou resgatá-lo.
No livro, o sentido das quase mil obras — mantos, estandartes, assemblages,
faixas, cedros, orfas (objetos recobertos com fio azul), fichários — é indicado pelo
próprio artista, que responde a um imperativo do além e cumpre, sofrendo e temendo,
a missão vital e urgente que lhe cabe: salvar a si e a todos, tomando-se o embaixador
das coisas e das gentes diante de Deus, no juízo final.
Na visão de David Lapoujade, Bispo quer salvar o mundo inteiro e, em con-
seqüência, não haveria seleção do material com o qual trabalha e "tudo é recupe-
rado". Porém, ao encontrar as palavras de Bispo, em conversas reproduzidas no
livro, é possível localizar recortes de matérias que ganham um significado distin-
tivo na obra. Um exemplo são as faixas de misses que representam os concursos
de beleza, nos quais Bispo vê a celebração da pureza da mulher, mas também a
celebração de um congraçamento universal ou uma espécie de expressão modelar
da diplomacia entre as nações. A decadência ou ameaça de desaparecimento des-
ses concursos provoca intensa apreensão em Bispo, que lê aí um sinal da desagre-
gação e do desentendimento dos países.
Importante enfatizar que ao recolher fragmentos de falas e de escritos de Bispo,
Luciana Hidalgo oferece ao leitor a possibilidade de buscar o sentido da obra, guian-
do-se pela trama de pensamentos, valores e sentimentos do artista que uma vez decla-
rou: "eu preciso destas palavras-escrita".
Como um autêntico bricoleur, opera, age, constrói e cria a partir dos restos
e resíduos de matéria e palavras de um mundo tomado sagrado, numa atividade
na qual arte e religiosidade se reconciliam. Ao sentido do obra corresponde o
próprio sentido da vida daquele que se interpreta como designado, fadado, des-
tinado a uma missão.
Mas, há que se perguntar sobre as condições nas quais a obra e a vida de
Bispo se afirmaram. Luciana Hidalgo observa que, depois de concluída a bio-
grafia, achava difícil entender como Bispo fora capaz de criar "um império de
formas e cores amarrado à rotina do asilo".
Essa indagação sustenta a apresentação daquilo que a autora pôde recolher
sobre a vida de relações de Bispo, na Colônia Juliano Moreira e fora dela.
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 189

contextualizando-a através da referência a dados históricos relevantes sobre a


situação sócio-política do país, sobre a cidade do Rio de Janeiro e sobre a psi-
quiatria praticada na Juliano Moreira.
Ao tratar da vida e da obra de um homem diagnosticado como esquizofrênico
crônico, "acometido de dehnos místicos e de grandeza", que esteve intemado durante
50 anos, o livro expõe os horrores e as mazelas do sistema manicomial, bem como
suas transformações e "aberturas" a partir de meados dos anos 70. E, na contrapartida,
dá a conhecer a singularidade da trajetória de Bispo no interior deste sistema, trajetória
feita de uma recusa àquilo que não lhe convinha (eletrochoque, lobotomia,
neurolépticos) e conquista de uma certa autonomia e liberdade impensáveis para os
padrões de repressão, autoritarismo e desrespeito em vigor no manicômio.
Assim como as obras de Bispo se impõem pela verdade e autenticidade de
sua busca, a leitura que Luciana Hidalgo faz de sua vida, especialmente a dos
muitos anos transcorridos na instituição psiquiátrica, leva a pensar que ele foi
capaz de eleger e ser eleito por um conjunto de pessoas com as quais comparti-
lhou a verdade e autenticidade de sua ilusão. Desde a família Leone, passando
por funcionários e internos da Colônia e, depois, jornalistas e artistas interessa-
dos em sua atividade. Bispo angariou protetores, algumas vezes interlocutores,
aos quais ele também protegia, inscrevendo-os no rol dos que seriam salvos.

nota

' LAPOUJADE, David. Bispo ou o estandarte do mundo. Folha de S.Paulo. 2 juL 2000.
Mais!
1,190 resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000

Livro: Amazônia. O povo das águas


Autor: Pedro Martinelli [textos Leão Serva]
Edição: São Paulo: Terra Virgem, 2000.
Por Magali Bueno*

Amazônia. O povo das águas é um livro que se propõe a mostrar, através de


fotografias, o cotidiano do homem que vive na Amazônia. As fotografias são
acompanhadas de extensas legendas exphcativas. Além delas, integram o livro
um mapa, que indica os locais percorridos pelo fotógrafo, e alguns textos, a
maioria deles assinada por Leão Serva.
Leão Serva afirma que nesse livro a Amazônia "aparece viva, não mumifica-
da em seu momento romântico, puro, como se fosse um imenso museu" (p.l7).
Entretanto, se as fotografias condizem com essa afirmação, mostrando o cotidia-
no do pescador, do juteiro, do piabeiro, do cortador de pau-rosa, as legendas que
as acompanham pecam por fornecer às imagens uma visão romantizada. Talvez a
grande falha do livro esteja no descompasso entre imagens e textos; estes não
estão à altura daquelas, chegando, por vezes, a comprometer sua legitimidade.
No texto introdutório fica clara a intenção do fotógrafo, que foi apre-
sentar "uma história inédita da Amazônia", ou seja, mostrá-la numa pers-
pectiva diferente da que tem predominado nas reportagens sobre a região,
nas quais ela é vista através de três temas principais: Anavilhanas - a ima-
gem clássica do tapete verde a partir de tomada aérea a fauna, os indíge-
nas. Mas essa proposta não parece estar plenamente contemplada. O livro
apresenta uma Amazônia dicotômica, contrapondo o contexto ribeirinho -
preservado, onde ainda prevalece o modo de vida considerado típico do ho-
mem amazônico - e a realidade da fronteira, cujo meio ambiente degradado
reflete uma exploração agressiva dos recursos naturais da área.
Ainda que a intenção fosse fugir do lugar comum sob o qual a região
tem sido tratada, na perspectiva adotada prevaleceu o ponto de vista
ambientalista, enfoque que tem sido privilegiado nos meios de comunicação
desde a década de oitenta, quando o assunto é Amazônia.
Não é recente o foco da imprensa sobre a Amazônia. Há várias décadas a
região tem chamado a atenção do público, através de reportagens veiculadas
por grandes revistas, como O Cruzeiro, Realidade, Manchete e Veja.
Na década de 50 predominava uma abordagem que valorizava o exótico
da natureza e das pessoas da Amazônia. Ainda nessa década começam a apa-

= Pesquisadora do NIME-USP
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 191

recer as reportagens que evidenciam a chegada do "progresso" à região, devi-


do à intensificação da ação governamental na área. Essa temática prevaleceu
nas décadas de 60 e 70, embora já possam ser encontradas, a partir dos anos
70, reportagens com enfoque ecológico. A partir daí, o que era símbolo de
progresso em um determinado momento passa a ser símbolo de destruição em
outro. O discurso ambientalista toma totalmente a cena na década de 80, so-
brepondo-se a todos os outros tipos de preocupação sobre a região, e é esta
ênfase que continua prevalecendo atualmente.
Nesse livro, embora o cotidiano do homem comum seja inegavelmente
valorizado, predomina uma ótica ambientalista, que ressalta a relação desse
homem com o ambiente em que vive; ele é mostrado como o autêntico e
legítimo habitante da Amazônia, perfeitamente adaptado às condições de
vida oferecidas pelo meio.
A Amazônia preservada é representada pelo índio, pelo caboclo, pela pure-
za, pelo bom selvagem. A fronteira amazônica está mostrada através dos garim-
pos, de Carajás e das queimadas. Os moradores de cada uma dessas "amazônias"
estão representados, respectivamente, pelo "caboclo" e pelo garimpeiro, este ao
lado do funcionário da Vale do Rio Doce. Os posseiros que ainda resistem ou
que cederam e vivem hoje nas periferias dessas cidades parecem não ser consi-
derados "típicos" e por isso não estão retratados.
O autor dos textos afirma: "O fotógrafo vive no fronte da guerra entre
os batedores marginais do Brasil real e moderno e a pureza cadente do
Brasil arcaico" (p.l2). Essa afirmação demonstra claramente o olhar que é
dirigido à região através das lentes do fotógrafo: a Amazônia como símbo-
lo de um Brasil arcaico e puro. É a visão daquele que vem de fora e encon-
tra naquele homem uma representação equivalente àquela do bon sauvage,
formulada em relação ao índio no século XVIII, e que aqui é deslocada em
direção ao "caboclo": o representante de uma sociedade privada de
tecnologia, mas beneficiada pela boa natureza.
Essa denominação de "caboclo" em relação ao homem comum, aquele
"que mora embaixo do tapete verde", é constante nas legendas do livro. No
glossário, caboclo é definido como "mestiço do branco português com o
índio". Esse uso objetivo do termo é restrito à mídia, à literatura de ficção e
aos discursos políticos, designando a população rural indígena da Amazô-
nia. Trata-se de uma categoria de classificação social empregada pelo "ou-
tro", por quem é de fora, baseada no reconhecimento de que as pessoas da
Amazônia rural compartilham uma série de atributos comuns. Mas esse não
é um termo usado para auto-denominação; esses homens e mulheres têm
uma identidade própria e auto-nomeiam-se pescadores, roceiros, varzeiros,
ribeirinhos. O termo "caboclo", entre eles, é atribuído sempre ao outro; ou
seja, tem um uso relacionai e depende do status relativo entre quem fala e o
1,192 resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000

indivíduo ou população a que ele se refere, sendo geralmente carregado de


uma conotação pejorativa'. Assim, até mesmo a escolha dessa nomeação
reflete o tom ambientalista que permeia o livro, no qual o termo caboclo é
usado como sinônimo do homem em harmonia com a natureza e, por isso, o
único apto a preservá-la.
O autor deixa clara a escolha dos temas para abordar a região - a cada
um foi dedicado um pequeno texto - e justifica-os "por serem típicos da
cultura do homem amazônico", pela urgência, pela perspectiva histórica,
pela curiosidade antropológica ou "por serem exemplares da encruzilhada
em que se encontra o 'inferno verde' na era da globalização", (p.249). Nessa
abordagem, foram explorados temas como a pesca do pirarucu, a cultura da
juta, as queimadas, a exploração ilegal de madeira com diversas finalidades.
Assuntos que não fossem ao encontro dessa abordagem foram
desconsiderados. Manaus, por exemplo, é retratada apenas como ponto de
onde partem navios carregados de madeira nativa da floresta amazônica.
Belém sequer está representada.
Este livro conta a história recente da Amazônia. Trata da expulsão dos
índios de suas terras, da degradação do ambiente e de algumas das transfor-
mações ocorridas nas culturas das sociedades locais. Nisso, que no livro é
chamado perspectiva histórica, está o seu maior valor. O fotógrafo acompa-
nhou a frente de atração, liderada pelos irmãos Villas Boas, para contatar os
"índios gigantes", na virada entre os anos 60 e 70. A inclusão, no livro, das
primeiras imagens capturadas desses índios, em 1973, ao lado de outras,
fotografadas no mesmo local, nos anos de 1995 e 1997, mostra de forma
chocante e ao mesmo tempo didática os resultados da ocupação da chamada
fronteira amazônica. Também é contada a história do processo de tentativa
de contato com este grupo indígena, que chamou a atenção, durante anos, da
mídia do mundo todo. Mas após o contato, a incorporação da novidade e a
desmitificação da figura dos índios tornou-os logo relegados ao esqueci-
mento. Um processo típico da exploração do exótico, do diferente, e que
acontece ainda hoje em relação à Amazônia.
Alguns detalhes nos textos não podem deixar de ser mencionados. Por exem-
plo, chamar de "cruzamento" a miscigenação de diferentes etnias (p. 219), ou
classificar como cUma tropical aquele ao norte do Trópico de Câncer, como foi
feito na página 249, são faltas injustificáveis.
A omissão de temas essenciais e a ausência de personagens importan-
tes podem ser justificadas pelo fato de que este livro faz parte de um gran-
de projeto, o qual está apenas sendo iniciado. É evidente que pela própria
dimensão da região e pela existência de uma multipUcidade de "amazônias",
um só livro seria incapaz de dar conta do assunto. Fica a expectativa de
que, nos próximos volumes, essas lacunas sejam preenchidas e que os pró-
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 193

ximos textos possam contribuir para ampliar a compreensão sobre a re-


gião, ao invés de reforçar os estereótipos já existentes a seu respeito.

nota

' Deborah Lima-Ayres faz uma bela discussão sobre esse assunto em sua tese de
doutoramento The social category caboclo. History, social organization, identity and
outsider's social classification of the rural population of an amazonian region (the
Middle Solimões). Cambridge, Department of Social Anthopology. University of
Cambridge, 1992.
194 resenhas. Imaginário - usp, 6, pág. 187-197, 2000

Livro: A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utiliza-


das por Donald W. Winnicott.
Autor: Jan Abram. Trad. de Marcelo Del Grande da Silva.
Edição: Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
Por Melany Schvartz Copit

Winnicott, como Freud e os demais inovadores na Psicanálise, partiu da


prática clínica.
Contudo, Winnicott, que tinha como verdadeira vocação o exercício da pe-
diatria e da psicoterapia, recriou a tradição psicanalítica de onde se originou,
mudando o sentido e o contexto da cura.
Em seu entender, o que atende a dor humana, mais do que o insight da
pessoa, são os gestos receptivos de alguém, em especial do terapeuta, aos apelos
do ser (do existente) que sofre.
Com sua linguagem característica, situa a presença autêntica, somática e con-
creta do terapeuta no espaço potencial que liga e separa as pessoas, e é constituído
pelas dimensões histórico-culturais e estético-religiosas da realidade humana. Só
assim pode facilitar, através de seu olhar reflexivo, a (re)ocupação daquele espaço
pelo indivíduo, cujo sofrimento lhe impedia de nele assentar a sua singularidade.
Ou, em sua rica linguagem prosaica, dessa vez através da fala de um paciente:
entre a roda do trem e o trilho há o fluido que permite o movimento.
Inglês, o nosso autor atuou e pensou durante a Segunda Grande Guerra e
depois, sofrendo as famosas divergências entre o kleinianos e freudianos, ocor-
ridas na Sociedade Britânica de Psicanálise na década de 40.
É, também uma inglesa, Jan Abram, nesse fmal de século, que nos oferece
um dicionário de palavras e expressões utilizadas por Winnicott.
Já de início, o título não engana, pois a obra não pretende definir conceitos
e sim palavras que têm mobilidade na teoria, ecocando a experiência clínica em
suas caleidoscópicas nuanças. Porém, palavras precisas quando retratam o sen-
tido de uma experiência singular em um determinado espaço-tempo. Aí já po-
demos encontrar o paradoxo característico do enfoque winnicottiano.
Jan Abram recorta os principais temas da proposta winnicottiana e os emol-
dura, ou seja, cria o que encontrou (expressão de Winnicott).
Os temas e sua ordem na sofrível tradução brasileira são:
Agressão, Ambiente, Tendência, Anti-Social, Brincar, Comunicação,
Criatividade, Dependência, Depressão, Ego, Jogo da Espátula, Holding, Mãe, Ódio,
Preocupação Materna Primária, Psique-Soma, Jogo de Rabiscos, Regressão, Self,
A Continuidade do Ser, Capacidade de Estar Só, Fênomenos Transicionais.
O volume contém, além das referências específicas, as referências de fontes
secundárias e a bibliografia de Winnicott elaborada por Harry Kamac. O prefá-
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 195

cio da edição brasileira é de José Outeiral, que também emoldura a obra em


questão com a citação em inglês de Laurence Spurling:

É interessante dividir os pensadores entre aqueles que erigem um sistema fe-


chado de idéias e aqueles cujas conceitualizações são essencialmente abertas.
Winnicott é decididamente da última categoria. No seu melhor, os seus escri-
tos são um convite para o leitor ir além do que escreveu, de brincar com eles.
Algumas de suas formulações mais características são colocadas de uma for-
ma tão comprimida e lacônica que requerem um envolvimento da imaginação
do leitor para serem bem entendidas'

Comentando a seguir que:

Estas considerações tornam necessário que o leitor dos textos de Donald


Winnicott, que não são papers e sim écritures, tenha disposição para "brin-
car", para play (um brincar espontâneo, criativo e prazeroso) e não para game
(uma atividade regrada).

Teria sido uma dessas brincadeiras a alteração na apresentação dos temas


na edição brasileira?
Como ilustração da obra de Abram, que não privilegia a psicopatologia ou
as psicoses, onde para os psicanalistas estão as maiores contribuições do autor,
recorto o tema brincar.
Para tanto fui buscar a sua localização no último item do livro - fenômenos
transicionais^ - que a autora introduz mencionando a dimensão do viver que
se dá no espaço potencial, em que as realidades interna e externa conectam e
separam o dentro e o fora. Desenhando a circularidade da obra de Winnicott,
associa-os ao brincar e à criatividade que "em termos de desenvolvimento exis-
tem desde o início, mesmo antes do nascimento, em relação à díade mãe-bebê.
É aqui que está localizado a cultura, o ser e a criatividade" (p. 253).
A apresentação do tema brincar termina com a constatação de que "consti-
tui-se na definitiva realização da psicoterapia, pois é somente através do brincar
que o Selfé descoberto e fortalecido" (p. 55).
E subdividido em oito itens: a evolução da teoria do brincar; a qualidade do
brincar como um indicador; a agressão; a ansiedade; a experiência do selfQ a
amizade; o brincar e o inconsciente; o brincar em relação a uma seqüência do
desenvolvimento; o brincar e a psicoterapia.
No primeiro item, o brincar - "um aspecto da técnica de Winnicott na clíni-
ca" é situado historicamente em sua obra.
No item seguinte, a importância desse fenômeno no pensamento do autor é
trazida através do brincar como instrumento para o diagnóstico e para a terapia. Nas
1,96 resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000

palavras de Winnicott, "o brincar demonstra que essa criança está apta, dadas as
circunstâncias razoavelmente boas e estáveis, a criar um modo de vida particular,
tomando-se, possivelmente, como se espera, um ser humano inteiro e bem acolhido
pelo mundo... sugiro que devamos ter o brincar como algo evidente tanto na análise
de adultos quanto em nosso trabalho com crianças. Isso evidencia-se, por exemplo,
na escolha das palavras, na inflexão da voz, e é claro, no senso de humor..(p. 57).
Agressão é o próximo item, em que a autora propõe que "o brincar implica
a constituição de sentimentos agressivos em relação ao ambiente - um ambien-
te que deve ser tolerante... e pode ser seguida da... autodescoberta do mundo
externo, que é a elaboração do eu e do não-eu" (p. 58-59).
No item a Ansiedade, embora haja uma citação onde Winnicott afirma que
"a ansiedade é sempre um fator constitutivo do brincar infantil, muitas vezes
um dos mais i m p o r t a n t e s . . a autora conclui que "a relação do brincar com a
ansiedade não é de fato elaborada dentro da obra de Winnicott, quem sabe por
causa da ênfase dada sobre o saudável e criativo processo de brincar" (p. 59).
O item sobre a experiência do selfc a amizade amplia muito a singularidade do
enfoque winnicottiano do homem no mundo humano. Como profunda conhecedora
do assunto, Jan Abram afirma que a criatividade, o estar vivo e o sentir-se real são os
selos de garantia da sanidade do indivíduo, e faz uma citação de Winnicott que ilumi-
na, novamente, a cultura como propiciadora do processo de amadurecimento huma-
no: "É através do brincar onde as outras crianças são colocadas em papéis
preestabelecidos, que a criança começa a admitir que esses outros possuem uma exis-
tência independente. Assim como alguns adultos com bastante facilidade fazem al-
guns amigos e inimigos no trabalho, outros ficam em uma pensão por anos e não
fazem outra coisa a não ser espantar-se com o fato de que ninguém gosta deles, tam-
bém as crianças fazem amigos e inimigos durante o brincar, o .que não acontece facil-
mente fora dele. O brincar proporciona uma organização para que as relações emoci-
onais tenham imcio, e assim facilita o desenvolvimento de contatos sociais" (p. 60).
No item o brincar e o inconsciente, novamente, a autora com uma curta
citação de Winnicott nos alerta para "o inconsciente winnicottiano": "O incons-
ciente reprimido deve permanecer encoberto, mas o restante do inconsciente é
algo sobre o qual todo indivíduo deseja saber: o brincar, assim como os sonhos,
tem a função de uma auto-revelação" (p. 60).
Entre as quatro observações acrescentadas em 1968 por Winnicott ao seu
texto de 1942, que Jan Abram arrola, a última salienta o brincar no espaço po-
tencial, mas agora enfatizando a experiência de separação sem que ocorra sepa-
ração devido à confiança da criança na figura materna.
Com isto, outra vez, nos alerta para a originalidade do recorte do ser huma-
no-no-mundo-com-os-outros, característico de Winnicott.
O penúltimo item, o brincar em relação a uma seqüência do desenvolvimento,
traz todo o processo de amadurecimento, desde o bebê indiferenciado da mãe ao
resenhas. Imaginário - usp, n= 6, pág. 187-197, 2000 197

indivíduo inteiro no mundo, através do brincar. Primeiro é a mãe que brinca com o
bebê, permitindo-lhe a ilusão da criação do objeto, da magia, da qual fala Winnicott
no texto: . .o que gira em tomo do brincar é sempre a precariedade do inteijogo
entre a realidade psíquica pessoal e a experiência do controle dos objetos reais. Esta
é a precariedade da própria magia, magia essa que resulta da intimidade de uma
relação que é descoberta com confiável..." (p. 62). O bebê, então, se tudo correr
bem, passa a brincar só na presença de alguém, que tem a função de testemunha,
para finalmente, duas pessoas poderem brincar em conjunto, o que abre o último e
conclusivo item: o brincar e a psicoterapia.
Aqui temos, como em um teorema bem demonstrado, a conclusão a que as
premissas bem formuladas nos conduzem, através da leitura de Winnicott feita,
com muita propriedade, por Abram: 'Assim Winnicott coloca um nova ênfase
na relação terapêutica na psicanálise, que radicalmente, embora silenciosa-
mente, altera a proposta freudiana. Enquanto a interpretação freudiana enfatiza
o saber do analista sobre algo do inconsciente do paciente, Winnicott considera
o brincar e a capacidade de brincar como mais importantes. Para ele, de fato, a
psicanáhse é uma "forma altamente especializada de brincar":

.. .0 brincar é universal e faz parte da saúde: o brincar facilita o crescimento


e, portanto, a saúde; o brincar origina as relações dentro de um grupo; e, por
último, a psicanálise desenvolveu-se como uma forma altamente especializada
de brincar, que está a serviço da comunicação com si mesmo e com os outros.
O brincar é algo natural. Já a psicanálise constitui-se em um fenômeno alta-
mente sofisticado pertencente ao século XX. É de extrema importância para o
analista sempre ter em mente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas
também o que devemos àquilo que é natural e universal, o brincar" (p. 63).

Em apenas um tema, Jan Abram nos apresenta, com maestria, uma visão
panorâmica das principais contribuições teórico-clínicas de Winnicott. Mas, ela
trata de vinte e dois temas!
Com essa inspiração, concluo com a possibilidade defilósofos,artista e "profissio-
nais psi religiosos" - aqueles que têm como objeto sagrado, de fé e de dogma, a Natu-
reza Humana, como proposta por Wmnicott - recriarem o brincar do século XXI.

notas

^ Winnicott and mother's face. In Winnicott Studies, The Journal of the Squiggle
Foundation, number 6, 1991, p. 60
^ Os negritos são grifos meus.
F u n m a r v

Presentation 9

Rereading Levi-Strauss-Bricolage 12
Fernanda Amalfi

The heaven of History: about some hebrew-benjaminians motives 14


Olgária Chaim Féres Matos

The gathering game and the art of discontinuity 26


Sérgio Lima

The social tie 46


Leslie Kaplan

The orahty: the writing of memory 50


Elizabeth Ceita Vera Cruz

The paths of ethnography: mental áisorder and imaginary dogon 57


Denise Dias Barros

Some considerations on justice and violence - the paraibano peasant as a bricoleur.. 84


M a r c e l o G o m e s Justo

Transnational religions. The Roman Catholic Church in Brazil and the Orthodoxy Church
in Rússia 98
Ralph Delia Cava

The sword and the lagoon: two versions of the end of the world 118
Carlos Alberto Steil

Luján Virgin: the miracle of a national Catholic identity 136


Eloísa Martin

The new age in Posadas. Old sceneries, new glance 159


Maria dei Rosário Contepomi

An attempt of following paths 185


Fernanda Amalfi

Reviews 187
instruções para os autores
1. A comissão executiva se reserva o direito de aceitar, recusar ou reapresentar
o original ao autor com sugestões de mudanças. Os relatores de parecer perma-
necerão em sigilo.
2. Os textos originais deverão ser encaminhados em duas (2) vias digitadas em
espaço 1,5, fonte times new roman, tamanho 12, e uma via em disquete (Word
6.0) para o seguinte endereço:
Instituto de Psicologia - USP
Laboratório de Estudos do Imaginário - LABI
Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, travessa 4, bloco 17, sala 18
CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SP
3. A apresentação dos manuscritos deve seguir a seguinte ordem:
a) Folha de Rosto:
Título em Português e em inglês
Título abreviado para cabeçalho
• Nome de cada um dos autores, seguido por afiliação institucional de cada um.
• Endereço completo do(s) autor(es) para correspondência, incluindo CEP,
telefone, fax e e-mail.
Obs.: Esta deve ser a única página do manuscrito com identificação tendo em
vista que a revisão dos manuscritos é cega quanto à identidade dos autores.
b) Folha de rosto sem identificação
• Título em Português e em inglês
• Título abreviado para cabeçalho
4. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100 palavras, em
português e inglês (abstract), palavras-chave em português e inglês (keywords)
e referências bibUográficas, segundo as normas da Associação Brasileira de
Normas Técnicas - ABNT.
5. A apresentação do texto deve seguir as seguintes recomendações:
a) O texto deve começar em uma nova página, numerada como página três (3)
com o título centrado no topo da mesma, seguido do(s) nome(s) do autor(s).
b) Cada página subseqüente deve estar numerada.
c) Não inicie uma nova página a cada subtítulo. Separe-os usando uma linha
em branco.
d) O texto inteiro deve ser digitado em uma única fonte {Times New Roman).
e) Não utilizar sublinhado ou itálico para títulos e seções.
f) Não utilizar caixa alta (todas as letras em maiúscula) para títulos, seções e
ênfases.
g) Para dar ênfase ou destaque utilize o itálico, nunca sublinhado ou negrito.
h) Assinalar o parágrafo com um único toque de tabulação.
As notas de rodapé devem ser indicadas por algarismos arábicos e Ustadas ao
final do texto, com o título de "Notas".
lioaginario n- b
Diferença

O Ébrio Apaixonado: Perfis de Gênero no Imaginário da MPB - 1930-1950


Maria Izilda Santos de Matos

De Ia Fama y el Exilio: el Cartero de Neruda


Rob Rix

A Iconografia Medieval da natividade transformada em poesia por João Guimarães Rosa


Tereza Aline Pereira de Queiroz

Sobre Alguns Temas em Anselm Kiefer


Liana Cardoso Soares e Maria Luisa Sandoval Schmidt

Paisagem e Cultura
Maria de Lourdes B. de Alcântara e Regina T. Sader

Le Lien Social
Leslie Kaplan

Não Há Lugar Como Nosso Lar: Antropologia, Multiculturalismo e Novas Tecnologias


Aleksandar Boskovic

Identidade, Invisibilidade Social, Alteridade: Esperiência e Teoria Antropológica no Centro


das Práticas Curativas
Francine Sailiant

Cultura Nativa e Globalização: Terena em Campo Grande; (re)significando o real


Paula Caleffi

Espaço Simbólico
Jane Bittencourt

Human Adaptability Research Into the Beginning of the Third Millennium


Michael A. Littie and Ralph M. Garruto
Palavra

A Trajetória Latino-Americana para a Modernidade


Jorge Larraín

Huxley Sobe o Morro e Desce ao Inferno. A Umbanda no Discurso Católico dos Anos 50
Artur César Isaia

Catarina Come-Gente
Sandra Jatahy P e s a v e n t o

Um diálogo com Monteiro Lobato


Margareth Yayo G i m b o M e l e r o e Maria Alice Oliva d e Oliveira

Brasília, Cidade Arcaica


Luís Alberto Brandão S a n t o s

O Silêncio como Motor da Opinião Pública


Delia Crovi Druetta

Um Caso de "Imaginário Coletivo": a Procura do Eldorado no Século XVI


Gilberto M a z z o l e n i

Islamismo, Imigrantes e Estado: Religião e Política Cultural na Austrália


Michael H u m p h r e y
Imaginário a- 3
Natureza

Natureza e Naturalistas
Míriam Lifchitz Moreira Leite

Viajando pelo Mundo dos Museus: Diferentes Olhares no Processo de Institucionalização


das Ciências Naturais nos Museus Brasileiros
Maria Margaret L o p e s

Introdução à Herpetologia do Brasil: O Contexto Científico e Político da Expedição


Bávara ao Brasil de Johann Baptist von Spix & Johann Georg Wagler
RE. Vanzolini

Ecologia Polissêmica
Marilia Coutinho

Indígenas e Camponeses: uma Relação de Conflitos


Regina de Toledo Sader

As Felizes Culpas do Ocidente


Dario Sabbatucci

O Sonho Indiano: uma Metáfora Iniciática na Literatura de Viagem dos Séculos XV e XVI
Adone Agnolin

Matraga seu Pai, seu Filho


Renato da Silva Q u e i r o z

Meditações sobre a Desordem


G o f f r e d o Telles Jr.

Entrevista: Profa. Marlyse Meyer


^ ^ it. •. <

Memória

Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994)


Míriam Lifchitz Moreira Leite

O Objeto, o Colecionador e o Museu


Maria Cristina Castilho Costa

Imagens da Memória: na Prova de Rorschach e na Obra de Proust


Lúcia Maria Salvia Coelho

Travessias, Ausências e Lembranças: Imaginário e Memória de Navegantes


Sheila Maria Doula

O Passado, o Mundo do Outro e o Outro Mundo: Tradição Oral e Memória Coletiva


Maria Luisa Sandoval Schmidt

O Fazer Poético e a Memória para uma Grupo de Velhos Imigrantes Japoneses


Mário Yasuo Kikuchi

Pacoval. Memórias de um Mocambo na Amazônia. História Vivida e História Contada


Eurípedes Antônio Funes

De Magia, Tempo e Memória (De uma aula de Ruy Coelho)


Jerusa Pires Ferreira

Entrevista: Jean Duvignaud


por François Laplantine
Dinâmica do Simbólico

Da Antropologia Simbólica à Antropologia Cognitiva


Ruy C o e l h o

Afinal o que é Cognitismo


Lúcia Maria Salvia Coelho

Um Breve Estudo Sobre Cognição e Simbolização


Maria de Lourdes Beldi de Alcântara et al

Convergência e Conflitos de Interpretação do Real: A festa de Corpus Christi Como


Representação Paradigmática da Diversidade Cultural
Liana Salvia Trindade

As Três Vozes do Imaginário


François Laplantine

A Caminho de Bakororo: Alguns Aspectos das Representações da Vida Pós-Mortem dos


índios Bororo do Brasil Central
Renate Brigitte Viertier
=—

Você também pode gostar