Você está na página 1de 347

Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia


sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S326r Scherer, Amanda Eloina (org.) et al.

Restos de horror / Organizadores: Amanda Eloina Scherer,


Dantielli Assumpção Garcia, Fábio Ramos Barbosa Filho, Lauro
Baldini e Lucília Maria Abrahão e Sousa.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.
figs.; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-430-7.

1. Análise do Discurso. 2. Luto. 3. Psicanálise.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Índices para catálogo sistemático:


1. Análise do discurso. 401.41
2. Sistemas psicoanalíticos / Psicoanálise. 150.195
3. Linguística. 410
Amanda Eloina Scherer
Dantielli Assumpção Garcia
Fábio Ramos Barbosa Filho
Lauro Baldini
Lucília Maria Abrahão e Sousa
(Organizadores)
Copyright © 2022 –Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Dos organizadores
Editoração: Vinnie Graciano
Capa e créditos das colagens: Cristina Rios Leme

CONSELHO EDITORIAL:

Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas – SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

Impresso no Brasil – 2022


Colando nossos cacos, no intervalo significante de nosso
experienciar e bordejar o horror, Cris (Cristina Rios Leme)
nos coloca no pendular da vida com a sua poesia-colagem,
nos configurando nos restos do ainda sempre lá.
SUMÁRIO

O QUE RESTA DO HORROR? 11


Lauro Baldini, Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia, Amanda
Eloina Scherer e Fabio Ramos Barbosa Filho

PARTE 1

ARTICULAÇÕES ENTRE A PSICANÁLISE E O DISCURSO: AS MARGENS


DO INOMINÁVEL 21
Lauro Baldini, Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia, Amanda
Eloina Scherer e Fabio Ramos Barbosa Filho
MELANCOLIZAR PARA GOVERNAR: O COLAPSO FUNERÁRIO
BRASILEIRO COMO DISPOSITIVO NECROGOVERNAMENTAL 39
Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco
ESCREVER, AINDA? 57
Paulo Miranda
A QUAL RAZÃO RECORRER QUANDO SE TRATA DO HORROR? 67
Maria Maia Brasil
LUTORATURA 87
Thales de Medeiros Ribeiro
EL ODIO INTRAZABLE EN EL CIBERESPACIO: RESTOS DE UN HORROR
PRETECNOLÓGICO 103
Juan Manuel López-Muñoz e Paola Capponi

PARTE 2

LUTO-DENÚNCIA E A MATERIALIDADE FOTOGRÁFICA 135


Rogério Modesto
NO RISCO DO TESTEMUNHO: ENTRE O TRAUMA E A INCOMPLETUDE 151
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi
ENTRE GRITOS E SUSSURROS: UMA INQUIETAÇÃO SOBRE OS MODOS
DE CONTROLE E DOMINAÇÃO 163
Marilda Aparecida Lachovski
LUTO E LAMENTO: LEVANTAR A VOZ; CANTAR AOS MORTOS 179
Marcos Barbai e Pedro de Souza

PARTE 3

NÓS E ELES 197


Fábio Ramos Barbosa Filho e Valdemir de Souza Vicente
RESTOS DE CENSURA E TORTURA: CLOROQUINA OU A MORTE? 221
Andréia da Silva Daltoé
FAHRENHEIT BRASIL – PSICANÁLISE, ARTE E UTOPIA 239
Edson Luiz André de Sousa
O LUTO E AS FOLHAGENS VERMELHAS: O GRITO EM DISCURSO 251
Lucília Maria Abrahão e Sousa

PARTE 4

O MUSEU DO ISOLAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEMPO


PRESENTE 275
Verli Petri e Maria Cleci Venturini
EFEITOS DA LUTA E DO POLÍTICO NA ARTE: O ESPETÁCULO SOM E LUZ
EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES/RIO GRANDE DO SUL 293
Mirela Schröpfer Klein
O INOMINÁVEL DE UMA PANDEMIA: O TRAUMA DO SÉCULO? 309
Dantielli Assumpção Garcia
PEÇAS DE UM ARQUIVO NAS CONJECTURAS DE UM ESTUDO EM
SUSPENSO 325
Amanda E. Scherer

NOTAS SOBRE OS AUTORES 339


O QUE RESTA DO HORROR?

A história de qualquer formação social é a história de horrores per-


petrados. Reivindicados pela memória, são condenados ou celebrados,
mas raramente se dissipam porque cumprem um expediente fundamen-
tal na produção do imaginário social: fundam posições, lugares de iden-
tificação, sustentam discursividades que organizam as formas de vida
e morte. Comparecem como objetos preponderantes dos usos políticos
do esquecimento e do memorável. É justamente por isso que os arqui-
vos, traços intervalares desses acontecimentos, não são provas que re-
presentam o acontecido, mas objetos em disputa na elaboração conflitu-
osa do passado, presente e futuro.
Pensemos no Brasil, cujo horror nos toca mais de perto. Não seria
exagero dizer que este país foi erigido no horror da violência colonial,
do assassinato e da conversão dos povos originários; do tráfico transa-
tlântico de africanos, vidas transformadas em insumos do modo de pro-
dução escravista; da ditadura civil-militar; da violência de Estado contra
negros, mulheres, transexuais, indígenas e demais minorias. Elemento
constitutivo da composição de uma formação social, o horror ocupa,
no entanto, as frestas de um imaginário nacional marcado cinicamente
pela sua negação: unidade, mistura harmônica de raças, cordialidade.
Face a esse Brasil idílico, pintado em fantasia antes mesmo de sua
existência, Tom Zé denunciava em 1968, na contracapa do disco A gran-
de liquidação: “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade”.

11
RESTOS DE HORROR

Ora, a felicidade também impõe horror silenciando e, pior, domesticando


a revolta contra o horror. Talvez não seja por acaso que certa imposição
à felicidade seja a tônica das diferentes sociologias da conciliação que di-
luem a política no jurídico, mas também do mercado editorial da au-
toajuda e das psicoterapias da adaptação/aceitação que atuam na linha
de frente da reprodução do modo de produção capitalista e seus dispo-
sitivos necropolíticos. É contra essa tendência que nos posicionamos. 
Propusemos, neste volume, nem desviar, nem romantizar o hor-
ror: aceitamos escutá-lo. Como diz Arlette Farge, face ao horror é preciso
construir um caminho que desloque tanto o miserabilismo maniqueísta,
piedoso, quanto o voyeurismo insensível que com sua estética da cruel-
dade debocha e faz pouco caso dos efeitos materiais do horror. Os tex-
tos que compõem este volume tentam, cada qual a seu modo, trabalhar
as suas diferentes feições. 
O livro inicia com uma discussão sobre a gestão da morte e dos
mortos no Brasil. Em Melancolizar para governar: o colapso fune-
rário brasileiro como dispositivo necrogovernamental, Fábio Luís
Ferreira Nóbrega Franco sustenta que os serviços funerários não são de-
talhes da vida social, mas práticas políticas que compõem os “dispositi-
vos necrogovernamentais” e dão sentido à morte e à vida. Em meio à pan-
demia, a previsão de um “colapso funerário” intervém como um alerta,
ao mesmo tempo em que silencia a conjuntura de colapso permanen-
te ou constitutivo. Ao mesmo tempo, a agudização da pandemia serve
de mote a uma série de instrumentos de controle da população pobre
no Brasil. A gestão da morte marca a relação dos governos com alguns
corpos, mas não apenas. Institui-se uma política da comoção que cir-
cunscreve os corpos que merecem ser pranteados, enquanto outros pas-
sam como espectros, como se já estivessem sempre mortos. É nesse sen-
tido que a necrogovernamentalidade atua como um dispositivo político
de melancolização. Trata-se de um conjunto de instituições, ritos e prá-
ticas que produzem uma subjetividade melancolizada, circunscrevendo
a dimensão social e psíquica do luto a um estado de permanente derrota.

12
RESTOS DE HORROR

Em Escrever, ainda?, Paulo Miranda busca, num texto poético-te-


órico, escancarar as vísceras da escrita e também da história do Brasil,
numa aposta na inscrição como projeto semântico: “Num país como
o Brasil, cujo esquecimento é política de governo, talvez inscrever algo
da memória no laço, recolher os restos, as ruínas, e fazer delas um con-
junto de atos de significação, seja uma forma de tomar parte no im-
possível da civilização. E, nesse gesto, ir em direção a uma dinâmica,
talvez, menos implosiva e mais solidária”. Também em busca de fres-
tas ou saídas, é na potência derrisiva do humor que Maria Maia Brasil
vai tecer a sua reflexão sobre a conjuntura sanitária e política do Brasil.
Em A qual razão recorrer quando se trata do horror?, a autora afirma
que há uma “língua perversa” em funcionamento. Essa língua sustenta
uma política nova, amparada no pressuposto cínico ou absurdo do eu
sei que não posso dizer tudo, mas mesmo assim... eu não desisto e digo
o tudo, incluindo o seu oposto também. Essa linguagem, embora suponha
um efeito paradoxal, não tem a estrutura de uma linguagem dialética.
“Ela divide o outro em um não saber que o paralisa e mortifica. Uma lín-
gua paradoxalmente funcionando fora do laço social”. Ela não intima
o outro a comparecer como interlocutor, antes o anula enquanto outro.
Uma língua sem alteridade. A autora nos diz, então, que o riso, o debo-
che, o chiste e os jogos de palavras seriam pontos de fratura possíveis
a essa língua que a despeito de sua aparente heterogeneidade, impõe
a monossemia como condição de funcionamento.
“A privação ao luto nos obriga a fazer um luto do luto”: é o que nos
diz Thales de Medeiros Ribeiro em Lutoratura. Explorando as relações
entre o poético e o luto, o autor tensiona a desaparição, a impossibili-
dade de simbolizar a dor e as perdas, interrogando uma obra que encar-
na o horror da ditadura civil-militar brasileira: Inventário de cicatrizes,
de Alex Polari. Em poemas feitos em diferentes cárceres da ditadura ci-
vil-militar brasileira, a lutoratura de Polari “derrama na poesia a tin-
ta fria e cinzenta dos espaços confinados” reborda o luto como um rito
fúnebre. 

13
RESTOS DE HORROR

Juan Manuel López-Muñoz e Paola Capponi propõem uma refle-


xão teórica a respeito do discurso de ódio. Em El odio intrazable en el
ciberespacio: restos de un horror pretecnológico, os autores identi-
ficam dois tipos de discurso de ódio: um dotado de uma gramática pró-
pria e outro não gramatizável. Este, irrastreável, supõe uma compreensão
distinta da circulação do discurso no ciberespaço. Para os autores, é pre-
ciso romper com certo purismo moral relativo à língua e à linguagem
que desemboque em uma espécie de normatização do dizer ou, como
dizem os autores, em um “tribunal linguístico”. Interrogando o estado
atual da investigação linguística face ao discurso de ódio, o texto provo-
ca as tradições que buscam construir uma gramática universal da lingua-
gem delituosa e que descambam, no entanto, em tipologias que deixam
escapar o próprio funcionamento do discurso. 
Interrogando o luto a partir de uma relação com a denúncia,
Rogério Modesto propõe uma reflexão sobre a imagem. Em Luto-
denúncia e a materialidade fotográfica o autor assume a existência
de um luto coletivo que emerge nas margens do dizer. Tomando o luto
como um acontecimento que convoca o sujeito a (d)enunciar, o autor
explora as relações entre dor, revolta e luta. A questão da denúncia arti-
culada à questão do luto leva o autor a “considerar o luto como uma ex-
periência com o trauma e com a ausência que, contraditoriamente, im-
põe a materialidade da presença e do dizer” e, em sua análise neste
volume, a pensar a fotografia como uma materialidade do “luto denún-
cia”. Por essa via, sua análise permite compreender “em funcionamento
a relação entre histórias que se repetem produzindo uma nossa história,
um luto nosso. O particular e o coletivo se mostram. Cada sujeito-vivo
textualiza, pela retomada da foto de seu familiar ausente, um repetível
que se atualiza na memória discursiva, pondo em pauta um eu também”.
Nessa trama, são engendrados contraditoriamente processos de signifi-
cação para além e por causa do sofrimento, que apontam para um luto
que tenha fim.
“Ninguém testemunha pelas testemunhas”, diz o poeta Paul
Celan. É nessa direção que Aline Fernandes de Azevedo Bocchi pro-

14
RESTOS DE HORROR

duz uma reflexão sobre o documentário “Soldados do Araguaia” em No


risco do testemunho: entre o trauma e a incompletude. A autora,
que transita entre Análise de Discurso, o campo do testemunho e as
considerações da Psicanálise sobre o trauma, efetua uma análise do do-
cumentário “Soldados do Araguaia”. Nele, “as testemunhas assumem
o risco e riscam elas mesmas uma história maldita ao narrá-la frente
a uma câmera. Contra o desmentido, no risco de serem desacreditadas,
empenham corpos e palavras, assinam seus nomes próprios e, nesse ges-
to, suas próprias subjetividades”. Com esse gesto, fica salientado aquilo
que Shoshana Felman chama de “o fardo da testemunha”, isto é, a soli-
dão e singularidade que todo ato testemunhal convoca.
Marilda Aparecida Lachovski, em Entre gritos e sussurros:
uma inquietação sobre os modos de controle e dominação, percorre
uma via que passa por Althusser, Agamben, Butler e Debord, buscan-
do compreender “um mal da sociedade brasileira, ferida ainda aberta
e latente–a naturalização das práticas de violência como um sintoma”.
Nessa abordagem, a escravidão é tomada em sua contemporaneidade:
nesse sentido, “todo modo de ajuste social é também um modo con-
trole do outro”. Esse outro, significado como despossuído (de direitos,
de bens, de voz), é o lugar material em que se reproduz a naturalização
das práticas violentas e banalização da vida. 
Marcos Barbai e Pedro de Souza, autores de Luto e lamento: le-
vantar a voz; cantar aos mortos, abordam o lamento como questão
ética: “O lamento é a resposta ética e subjetiva de um corpo social com-
prometido com a responsabilidade para com o outrem, no corpo da ci-
dade”. Do lamento de Antígona à canção brasileira, são pensadas a voz
e o lamento. De maneira surpreendente, no corpo cantante brasileiro
os autores escutam o trabalho significante e discursivo do luto. 
Desconfiando do excesso de circulação da palavra “polarização”,
Fábio Ramos Barbosa Filho e Valdemir de Souza Vicente, no texto Nós e
eles, mostram como a polarização pode ser compreendida como “um
efeito de saturação das contradições numa relação binômica”. Como con-

15
RESTOS DE HORROR

sequência, a multiplicidade das contradições e das relações de força


que dão feição ao político numa conjuntura dada são apagadas a par-
tir de um efeito de evidência que sustenta o imaginário político-social
como fissurado e dividido em dois. Desse modo, produz-se um esque-
cimento a respeito de outras determinações e contradições que consti-
tuem o arranjo das relações sociais e se estabelecem espaços de memó-
ria que estabilizam e ordenam as posições a serem ocupadas por nós
e eles no discurso. Interrogando também o dicurso político, Andréia
da Silva Daltoé, com seu Restos de censura e tortura: Cloroquina ou a
morte?, busca “refletir sobre as formas de esgarçamento do laço social
que fazem pensar que só nos resta a morte”. Trabalhando com a atuali-
zação da memória da ditadura em seus efeitos contemporâneos, a autora
permite ver como censura e tortura se revestem, hoje, de formas sofisti-
cadas. Voltando-se para enunciados recentes, sua análise dá visibilidade
a modos de regulação do dizer que apelam às totalidades, às unidades,
à letra da lei, etc., numa forma apurada e fina de censura.
Fahrenheit Brasil – psicanálise, arte e utopia, de Edson Luiz
André de Sousa, nos mostra que “para que possamos dar algum con-
torno ao trauma, precisamos fazer registro, escrever, narrar, comparti-
lhar”. Seria esta a elaboração que permitiria o deslocamento em relação
à compulsão de repetição, permitindo sair do impasse entre o impossível
de lembrar e o impossível de esquecer. Abordando diversas materialida-
des, como uma exposição do Museu de Língua Portuguesa e o projeto
Inventário de Sonhos, o texto nos indica a arte como campo possível
para o testemunho, bem como para a abertura ao novo.
Também apostando no possível, Lucília Maria Abrahão e Sousa,
autora de O luto e as folhagens vermelhas: o grito em discurso,
nos convida a contornar o vazio e driblar o real, de modo a fazer traba-
lhar os efeitos do luto. Voltando-se para o trabalho do artista plástico
Fernando Piola, seu texto nos mostra como é preciso repetir, e ainda
repetir de novo e mais uma vez, (é o que o luto reclama). Convocando os
“gritos orgânicos” que o artista produz em sua intervenção na cidade,
a autora aponta para um modo de discursivizar o espaço a partir do que

16
RESTOS DE HORROR

ocorreu dentro das sessões de tortura, violência física, assassinato e de-


saparecimento de sujeitos considerados presos políticos nos anos 70. 
Verli Petri e Maria Cleci Venturini, em O Museu do Isolamento:
algumas reflexões sobre o tempo presente, perguntam-se sobre o mo-
mento em que se pode considerar a necessidade de um museu. Olhando
analiticamente para o “Museu do Isolamento”, as autoras se propõem
a pensá-lo “como um modo de discursivização da pandemia, de produ-
ção de uma prática social de tipo novo, de construção de uma memória
do tempo presente. É preciso desconstruir a ideia do que significa di-
zer isolamento quando isolamento é proposto no plural: isolamentos”.
Assim, não só o museu escapa ao que tradicionalmente se entende como
museu, como faz irromper um espaço museológico que não “guarda”:
bem ao contrário, o museu rompe com a história e a convoca. É tam-
bém na escuta desses lugares de elaboração do luto que Mirela Schröpfer
Klein, com Efeitos da luta e do político na arte: o espetáculo Som e
Luz em São Miguel das Missões/Rio Grande do Sul, busca refletir so-
bre o espetáculo Som e Luz, indicando seu funcionamento como “ope-
rador de uma memória social e coletiva institucionalizada, evocando,
assim, um efeito simbólico”. Por essa via, a autora compreende como
a obra enseja uma espetacularização do luto e da luta dos indígenas.
Juntamente e para além do efeito simbólico, se produziria um efei-
to do capital, em que o luto e a resistência indígena assumem a forma
de uma mercadoria”.
O inominável de uma pandemia: o trauma do século?,
de Dantielli Assumpção Garcia, busca “compreender como algo de um
luto/trauma tem sido simbolizado em manifestações contra o modo como
o governo bolsonarista no Brasil enfrenta a pandemia de Coronavírus,
materializando algo de um horror de viver-se em uma pandemia”. A au-
tora nos conduz, então, a pensar as projeções na cidade como um “tra-
tamento” do traumático causado não só pela pandemia, mas principal-
mente pelo modo genocida com que o Governo Federal a geriu. Nessa
direção, as projeções são formas de contorno, traços de luz que convo-
cam a vida diante do horror e do inominável. 

17
RESTOS DE HORROR

Por fim, Amanda Eloina Scherer, autora de Peças de um arquivo


nas conjecturas de um estudo em suspenso, nos faz uma pergunta
que desconcerta: o que significa estar no jogo do arquivo? É a partir des-
se questionamento que ela nos chama a compreender as relações sutis
e complexas entre arquivar, esquecer, escrever, lembrar. Se no arquivar
temos “uma espera sem horizonte de espera, em uma impaciência ab-
soluta de um desejo de memória, um sintoma quiçá de um sofrimento,
de uma paixão”, o escrever e o lembrar são testemunhos de um proces-
so que dá corpo às nossas “desavenças com a história”. Em um texto
pessoal que busca traçar os (des)caminhos da pesquisa universitária,
a autora nos convida também a pensar a dimensão histórica e política
da escritura.
Esperamos que este volume faça sentido e encontre nos leitores
os espaços de incômodo necessários para que não sejamos apenas anes-
tesiados pelo horror, mas que haja, sempre, espaço para o possível.
Boa leitura.
Os organizadores.

18
PARTE 1
ARTICULAÇÕES ENTRE A PSICANÁLISE E O
DISCURSO: AS MARGENS DO INOMINÁVEL

Lauro Baldini
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Dantielli Assumpção Garcia
Amanda Eloina Scherer
Fabio Ramos Barbosa Filho

Em Análise de Discurso, um primeiro momento de teoriza-


ção do conceito de arquivo aparece em Pêcheux (1982). Ali, o arquivo
é definido como “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre
uma questão”1. Mas não apenas. O conceito de arquivo é submetido
ao que Pêcheux denomina a “materialidade da língua na discursividade
do arquivo”2. E é justamente a consideração da materialidade da língua
o que permite romper com um viés que ousamos chamar de arquivismo:
uma concepção de arquivo que destitui, precisamente, a sua materialida-
de, compreendida como as múltiplas determinações linguístico-históri-
cas que compõem o arquivo em seu efeito de unidade. Ou seja, para con-
ceber o conceito de arquivo a partir de uma posição discursiva, não basta
considerá-lo como um conjunto pertinente e disponível de documentos,
mas interrogá-lo a respeito das condições de sua emergência e, sobretu-

1 Pêcheux, 1982, p. 59.


2 Pêcheux, 1982, p. 59

21
RESTOS DE HORROR

do, sobre as condições materiais–isto é, linguístico-históricas – de sua


pertinência e de sua disponibilidade. Assim rompemos com o protocolo
instrumentalista das “gestões documentais” insistindo na incontornável
Política de arquivo.
Pêcheux insiste numa posição radicalmente discursiva, afirmando
que “o fato da língua foi, e permanece, consideravelmente subestima-
do em todos os projetos de leitura de arquivo”3. Nesse mesmo sentido,
Robin (1973) toma partido por uma crítica do arquivismo conteudista,
afirmando que “a ‘leitura’ de um texto e de um conjunto de textos traz
à baila problemas tais como a produção do sentido”, ou seja, que é preci-
so romper com o olhar empírico que produz o arquivo enquanto reposi-
tório de um conteúdo ou testemunho de um fato. Reafirma-se, portanto,
a necessidade de um projeto de leitura, que coloque o próprio conceito
de leitura em jogo e que permite relacionar, de um lado, a língua como
sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade
como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história: isso consti-
tui o nó central de um trabalho de leitura de arquivo4.
A partir disso, diremos que o arquivo não é um suporte de informa-
ções, mas um intervalo entre a textualização, compreendida como “um
processo linguístico-histórico de formulação do dizer”5 e o acontecimen-
to, compreendido em sua opacidade constitutiva, irredutível ao “fato”.
Intervalo, pois, na medida em que há, no arquivo, esse limiar entre o dito
e o não-dito, entre o escrito e o inscrito. Cabe, portanto, compreender
de que modo é formulada a trama textual6 que o constitui enquanto
ponto de inflexão de uma miríade de discursividades. Uma perspectiva
discursiva permite o deslocamento de uma leitura pautada no conteúdo
para outra que toma como base a própria materialidade da língua, to-
mada como constitutivamente equívoca. Considerando-se essa materia-
lidade específica como ponto de partida para a análise de documentos,

3 Pêcheux, 1982, p. 58.


4 Pêcheux, 1982, p. 85.
5 Barbosa Filho, 2018, p. 12.
6 Robin, 1977.

22
RESTOS DE HORROR

aparentes contradições, ambiguidades e elipses não são tomadas como


defeitos de um texto, mas como algo que produz efeitos.
Segundo Farge (1989), o arquivo “é permanentemente uma fal-
ta” e utilizá-lo hoje “é traduzir esta falta em questão”7. Dessa forma,
o trabalho de pesquisa e leitura de arquivos numa perspectiva discursiva
não pretende o esgotamento da grande quantidade de documentos exis-
tentes sobre a ditadura, visto a inviabilidade empírica de tal tarefa e da
impossibilidade de apreensão de uma verdade inteira (já que a própria
relação entre verdade e arquivo não se dá através de uma relação uní-
voca, e sim de disputa pelo sentido no âmbito do político), mas antes
a fabricação de um novo objeto a partir da escrita de um novo arquivo.
Para Derrida (1995), a psicanálise permite reformular o próprio
conceito de arquivo e de arquivamento a partir de sua dimensão con-
traditória. Nesse âmbito, tem-se um questionamento acerca dos limites
entre interioridade e exterioridade, marcas e impressões sobre determi-
nado suporte, além de ensejo de preservação do passado e antecipação
de um futuro sempre por vir, questões que se refletem no próprio fun-
cionamento do aparelho psíquico. O arquivo, não mais detentor de uma
verdade incontestável, passa a ser tomado como algo que exprime um
“desejo de memória”, mas ao mesmo tempo é colocado “em lugar da fal-
ta originária e estrutural”8 dessa mesma memória. Do mesmo modo
que faz lembrar, o arquivo não está isento da ameaça de sua própria des-
truição e apagamento, a qual constitui o próprio mal de arquivo.
Ao mesmo tempo, há os “arquivos do mal”, entendidos aqui como
marcas de violência dirigidas ao corpo, como lugares em que se encon-
tram textualizadas formas de sofrimento, pois uma aparente ausên-
cia de memória e, consequentemente também uma aparente ausência
de arquivo, no entanto, não impedem que haja “sintomas, sinais, figuras,
metáforas e metonímias que atestam, ao menos virtualmente, uma do-
cumentação arquivística onde o ‘historiador comum’ não identifica na-

7 Farge, 1989, p. 58.


8 Derrida, 1995, p. 22.

23
RESTOS DE HORROR

da”9. Dessa forma, colocam-se também questões acerca da legibilida-


de e daquilo que se escreve e daquilo que não se escreve. O interesse
da Psicanálise reside nessas outras marcas deixadas na memória, que não
são legíveis aos olhos da historiografia e que implicam confrontar com a
heterogeneidade irredutível das materialidades discursivas (PÊCHEUX,
1999), ou seja, testemunhos, fotografias, escritos, vídeos, performan-
ces, arquitetura, objetos, monumentos, folders etc, fragmentos de um
arquivo que, muitas vezes, se constrói nas margens, nas bordas, nas zo-
nas litorâneas. Tais materiais consistem em uma espécie de profusão
que coloca, por um lado, a questão da memória como central e incontor-
nável e, por outro, expõe problemas a qualquer pretensão de uma leitura
totalizante da história.
Seligmann-Silva (2003) argumenta que a historiografia do século
XX prolongou o sonho do historicismo oitocentista de que seria possível
conhecer o passado “tal como ele de fato ocorreu”. Contra o historicis-
mo positivista que pensa a história como uma acumulação dos “rastros”
e das “marcas” deixadas no tempo, Friedrich Nietzsche destacou que “é
totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”:

Assim como devemos nos “lembrar de esquecer”,


do mesmo modo não nos devemos esquecer de lembrar.
Esse mandamento da memória – na sua versão judaica
(Zakhor) ou secularizada via psicanálise – vale também
para a História. No que tange à dicotomia História e me-
mória, creio que um registro não deve apagar o outro10

Em outro quadro teórico, Ansart (2004) mostra que os concei-


tos de história, memória e ressentimento levantam o problema central
da relação entre a política e os afetos, entre os sujeitos singulares e as
práticas sociais e políticas. Esse olhar sobre a relação entre o político
e os afetos nos coloca diante de um impasse entre a história e a psi-

9 Derrida, 1995, p. 84. Pensamos aqui, por exemplo, nos modos em que presença do período
da ditadura civil-militar se dá a ver e se esconde, nos modos como são tornados (in)visíveis
os rastros (longínquos e ao mesmo tempo atuais) do genocídio dos povos originários e da
população negra, lgbtqia+ etc.
10 Seligmann-Silva, 2003, p. 61–62.

24
RESTOS DE HORROR

canálise. O historiador De Certeau (2011) afirma que os dois campos


se constituem a partir de uma diferença fundamental em relação à pro-
blemática do tempo. A psicanálise articularia o passado e o presente
sob as formas do esquecimento e do vestígio mnésico. A historiografia
moderna, por sua vez, seria marcada por uma vontade de objetividade
e se desenvolveria a partir de um corte entre passado e presente. Tal cor-
te é o resultado das relações de saber e poder que atravessam o traba-
lho do historiador e os lugares (museus, arquivos, bibliotecas etc.) onde
são “conservados” os materiais que possibilitam a análise dos sistemas
ou acontecimentos do passado11. Acrescentaríamos que o conjunto com-
plexo de questões ligadas ao campo teórico, político e poético do tes-
temunho tem se constituído como uma questão de importância crucial
para os dois campos, sobretudo quando há, por parte dos historiadores,
o reconhecimento das contribuições freudianas para o campo da his-
toriografia. Nesse aspecto, Robin (2003) escreve um percurso histórico
e crítico sobre a convocação ao não esquecimento que se estabelece
na tradição inaugurada pelos julgamentos dos crimes da Segunda Guerra
que pode nos servir de orientação, na medida em que a Psicanálise é uma
de suas figuras. Como seu escopo é amplo, sua pesquisa traz um quadro,
ainda que não seja esse o objetivo do livro, que nos permite identificar
o lugar incontornável da Psicanálise nas políticas da memória e do tes-
temunho em momentos e espaços diversos do século XX e início do XXI.
Essas questões–pensadas aqui a partir dos campos da filosofia,
da psicanálise, da história e da análise de discurso–se relacionam for-
temente com as políticas de rememoração em torno das ditaduras, so-
bretudo no que tange aos espaços institucionalizados tais como museus
e memoriais. Como se constitui, então, um inventário dessas ditaduras,
tendo em vista que as políticas de rememoração se compõem também
daquilo que “está em ausência”, daquilo que “não pode ser lembrado”
e daquilo que “não pode circular”? Robin afirma que os esquecimentos
sistemáticos em forma de perdões ou de anistias são uma tentativa de re-
alizar o apagamento do passado das sociedades, por mais que essa polí-
tica do esquecimento não apague efetivamente a história. Para a histo-

11 Robin, 1973.

25
RESTOS DE HORROR

riadora, “o passado ‘nulo e não ocorrido’ é, então, o que as leis da anistia


procuram fazer, a fim de acelerar os processos de reconciliação nacional,
evitar novas guerras civis, garantir a continuidade do Estado”12.
Gagnebin (2010) afirma que a anistia deveria configurar, no máxi-
mo, uma política de sobrevivência imediata e não uma política definitiva
de regulamento da memória histórica. Essa imposição ao esquecimento
instaurado como gesto forçado de fazer como se não houvesse havido
tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do passado vai na direção contrá-
ria às “funções positivas do esquecer para a vida. Impor um esquecimen-
to significa, paradoxalmente, impor uma única maneira de lembrar–por-
tanto um não lembrar, uma ‘memória impedida’”13.
Assim, às questões relativas à anistia, somam-se outras políticas
e processos do esquecimento descritos por Robin (2003) como a “demo-
lição”, a “substituição” e o “apagamento”. Em relação ao último, refe-
rente aos silêncios e tabus do e no arquivo, fazemos uma aproximação
com os estudos de Orlandi (1999) e Orlandi (1992) sobre o silêncio. Para
a autora, a tortura, a censura e a agressão das ditaduras à sociedade e à
cidadania têm por efeito tornar impossíveis uma série de sentidos an-
tes viáveis: “há, assim, ‘furos’, ‘buracos’ na memória, que são lugares,
não em que o sentido se ‘cava’ mas, ao contrário, em que ‘falta’ por in-
terdição. Desaparece. [...] Como a memória é, ela mesma, condição do di-
zível, esses sentidos não podem ser lidos” (ORLANDI, 1999, p. 65-66).
Esse processo de dessignificação dos sentidos afeta, portanto, o trabalho
da memória, fato perceptível nos testemunhos pela falta de palavras,
pela “dificuldade de dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar)
sentidos [...], na tensão dos gestos, dos olhares e do silêncio constrangi-
do” (ORLANDI, 1999, p. 71).
Nesse sentido, na contramão da “amnésia histórica” produzida
pelas políticas de esquecimento, Kehl (2010) argumenta que as vítimas
dos abusos da ditadura civil-militar brasileira não se recusaram a “ela-
borar publicamente o trauma” e lembra que um ano antes do governo

12 Robin, 2003, p. 83.


13 Gagnebin, 2010, p. 179.

26
RESTOS DE HORROR

instituir uma política de “reparação” às famílias dos desparecidos da di-


tatura, a professora Maria Lígia Quartim de Moraes, viúva de um mili-
tante desaparecido, organizou na universidade um debate sobre a tortu-
ra e os assassinatos políticos da ditadura (projeto “Brasil: Nunca Mais”).
No evento, a autora participou da mesa-redonda sobre testemunhos
de mulheres torturadas e observou, posteriormente, que “o ato de tornar
públicos o sofrimento e os agravos infligidos ao corpo (privado) de cada
uma daquelas mulheres poderia pôr fim à impossibilidade de esquecer
o trauma”14.
Para Pêcheux (1999), falar sobre o papel da memória a partir
de seus pontos de regularização e desestruturação implica compreendê-
-la não no sentido de uma “memória individual” ou “orgânica”, mas na
direção de um “entrecruzamento” da memória social inscrita em práti-
cas e da memória construída pelo historiador. No confronto da memó-
ria constituída pelo esquecimento e da memória que não esquece (ou
institucionalizada), há espaço de interpretação (ORLANDI, 2014). Se as
políticas do esquecimento produzem uma espécie de “memória impedi-
da”, as diversas políticas que tentam organizar e administrar a memória
histórica–como a criação e gestão de mausoléus, memoriais e museus
dedicados às ditaduras–podem também, eventualmente, impor uma
“única maneira de lembrar”: “Entre os aspectos que podem bloquear
a emergência de uma memória crítica, em primeiro lugar, estão o ‘pe-
dagogismo’ e uma vontade vertiginosa de transmitir, sem que se saiba
exatamente o que se quer transmitir”15. Por fim, gostaríamos de concluir
essa reflexão sobre a memória e o esquecimento a partir do escrito de um
ex-preso político um ano após a promulgação da lei da anistia no Brasil:

Existe uma prisão onde já estivemos e que é ao mesmo


tempo um patrimônio artístico da cidade. Nela, alguns
de nós foram torturados, levaram surra de corrente, dor-
miram em solitárias onde foram jogadas bombas de gás
lacrimogênio e passaram dias em celas medievais onde
o teto não chegava a um metro de altura. Pois bem, nesse

14 Kehl, 2010, p. 127.


15 Robin, 2003, p. 329.

27
RESTOS DE HORROR

local onde coexistiu durante muito tempo turismo e tor-


tura, paisagem oficial de cartão postal e subterrâneos
secretos, enfim, nesse local tão ‘Brasil’, tem um lugar (e
inclusive uma foto dele nesse livro) onde se lê em enor-
mes letreiros: ‘Cova da Onça’ e ‘Salas de Tortura do pas-
sado’. Lá se torturava e depois se jogava o corpo na cova,
que vinha a ser um túnel que dava pro mar. Taí o nó dos
tempos que virão. Hoje em dia, ao se procurar orientar
os turistas num determinado monumento histórico,
tem que se ter o cuidado de escrever junto à ‘sala de tor-
tura’, o complemento ‘do passado’. Prá não confundir
com ‘as do presente’, é claro. E o pior de tudo: nada indica
até agora, que as atuais ‘mudanças democráticas’ ora em
curso sejam por si só suficientes para erradicar as salas
do presente. Apenas deixaram de atirar gente nas vá-
rias covas da onça que haviam por aí. Porque não tava
mais dando pé, a maré baixou e os corpos começaram
a aparecer. E só teremos caminhado para alguma coisa
verdadeiramente justa e humana quando pudermos es-
crever simplesmente ‘sala de tortura’, isso porque esta-
remos absolutamente certos que ninguém pensará numa
sala de tortura que não seja do passado, coisa de museu.
Mas até esse tempo, pelo qual falta muito o que fazer,
que os DOI CODIS e as delegacias policiais sejam tomba-
dos pelo patrimônio histórico, com letreiros e legendas
isentas de culpa. Até lá, algo me diz que muitas águas
rolarão. Quem tá pensando que esse processo é o mesmo
que se vive hoje, cairá na certa do cavalo. Até lá, por que
não também escrever poemas?16

Luto e melancolia apresentam em comum o corpo sulcado por uma


falta. Que não é qualquer falta, mas àquela cujo objeto havia sido inves-
tido de amor: se o objeto não tiver para o ego um significado tão grande,
reforçado por milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar
um luto ou uma melancolia. Essa característica da execução minuciosa

16 Polari, 1980, p. 12.

28
RESTOS DE HORROR

do desligamento da libido deve ser, portanto, atribuída, do mesmo modo,


tanto à melancolia quanto ao luto, e provavelmente se apoia nas mes-
mas relações econômicas e serve às mesmas tendências17. Dizemos isso
porque não é óbvia, em uma análise mais detida, a dissociação, especial-
mente em um momento de intensa dor, daquilo que funde o eu ao outro.
No caso do melancólico, o objeto da perda não é tão claro e pode se es-
conder nas camadas de seu entristecimento. Apesar de algo o denunciar.
Freud nos diz que para o melancólico “queixar-se é dar queixa.” Isso por-
que, um traço típico da melancolia, inclusive o que o diferencia do luto,
é a falta de estima por si, as autoacusações infligidas: a melancolia se ca-
racteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão
do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibi-
ção de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima,
que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a
expectativa delirante de punição (FREUD, 1917).
 Ao serem investigados por Freud o rebaixamento da autoestima
e a expectativa de punição, notou-se que as palavras acabavam não por
denunciar uma ideia sobre si mesmo, mas uma mágoa que incidia, in-
diretamente, sobre o objeto de amor perdido, denunciando por uma
queixa aquilo que lhe ferira e esperando uma punição para o objeto
que o inconsciente deslocou para si. Também contribui para a dificulda-
de de dissociação, o fato do “eu” não ser o senhor em sua própria casa–A
terceira ferida narcísica da humanidade infligida por Freud na desco-
berta do inconsciente, ou seja, ao Eu acontece de se dispensar, muitas
vezes, o tratamento de objeto, já que apenas a consciência não dá conta
da totalidade de seus atos.

O eu trata a si mesmo como um objeto, e é isso que lhe


permite matar a si mesmo, fazendo talvez de todo sui-
cídio um autoassassinato (Selbstmord, em alemão,
traz esse significado literal). Na melancolia mostra-se
em toda a sua radicalidade algo estrutural, mas habitu-
almente encoberto: o eu se toma como objeto de crítica
e mortificação, graças a uma identificação com o objeto

17 Freud, 1917, p. 45.

29
RESTOS DE HORROR

perdido, e assim, ao queixar-se de si mesmo, “queixa”


do objeto “queixar-se é dar queixa”.18

O que desejamos dizer é que o “eu” não é uma unidade homogê-


nea e coesa e que, muitas vezes, acaba por se amalgamar aos objetos
de seu interesse ou amor. O “eu” é tanto mais um mosaico de histórias,
cores, linguagens e presenças do que uma constituição de corpo em uma
ordem imóvel. O reconhecimento disso é que torna tão dolorido tanto
a perda–por vezes insondável–na melancolia quanto à perda mais de-
lineada e “concreta” no caso do luto. Para Rivera (2012), longe de con-
sistir em uma unidade narcísica irredutível e capaz de assegurar alguma
identidade, o “eu não é mais do que (...) traços de objetos perdidos, como
uma mulher na qual seria possível reconhecer as características dos ho-
mens com os quais já se relacionou na curiosa observação de Freud”19.
Tributário da perda do objeto, o eu se constitui apartado de si mesmo,
e pode mais ou menos facilmente voltar a se “situar” no outro, exerci-
tando suas identificações plurais. Na melancolia, o eu se revolta contra
a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa
a ela se con-formar, identifica-se maciçamente ao objeto perdido, a pon-
to de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia
e pode se instalar como uma “ferida aberta” que suga a libido e doloro-
samente empobrece o eu. Se essa atitude se opõe ao trabalho de luto,
ela não deixa, porém, de consistir também em um “trabalho” que “con-
some” o eu, nos termos de Freud (RIVERA, 2012). Observamos aqui que a
melancolia produz o efeito de deixar o sujeito absolutamente submerso
na impotência de tocar, alcançar e lutar por seu objeto: algo inalienável
se dá a viver e até a língua se afunda na impossibilidade e ineficácia
de ser pronunciada. Por isso, Hassoun (2002) afirma que:

O melancólico é o coveiro da sua história, o arqueólogo


surpreso que não para de exumar os ossos alvacentos,
testemunhos de uma vida inimaginável e petrificada.
Ele percorre Pompéias em que os corpos, surpreendidos

18 Rivera, 2012, p. 45.


19 Rivera, 2012, p. 235.

30
RESTOS DE HORROR

pela lava, estão em toda parte, desprovidos de quaisquer


traços que permitissem identificá-los20.

No luto, fica claro que o eu não se faz sozinho no mundo, é sem-


pre uma experiência de co-existência e de con-vivência em que histórias
entrelaçadas produzem possibilidades de identificações, idealizações,
queda de ideais, etc. É como, portanto, a sensação de ter sido arrancado
de uma porção de coisas sem sair do lugar. A perda de um ser amado
não é apenas perda do objeto, é também a perda do lugar que o sobre-
vivente ocupava junto ao morto. Lugar de amado, de amigo, de filho,
de irmão (KEHL, 2011). Não raro encontramos na música e na poesia
a dilacerante sensação de perda do outro como se fosse parte de uma
própria constituição biológica do eu. Allouch (1995) nos dirá: “O enlu-
tado está às voltas com um morto que está indo embora levando consi-
go um pedaço de si”21.
Falamos um pouco da falta e como diferem nos dois casos. Mas nos-
so objeto, o luto, o que o caracteriza em sua singularidade? O luto é a
sensação dolorosa da perda que se acredita definitiva, por morte, en-
cerramento, ou outros motivos finalísticos de uma relação ou situação
investida de amor. O estado de ânimo pungente faz o enlutado se desin-
teressar pelo mundo externo já que este não lhe faz mais lembrar o mor-
to, há uma resistência a quaisquer novas atividades que não têm relação
com a memória do morto, não se tem vontade de investir de imediato
novos objetos de amor ou criar ligações profundas no ambiente externo
que possam ancorar o empobrecimento do ego e estreitamento de seu
mundo. Há um momento de dedicação exclusiva a vivência de tudo o que
a perda rememora. Freud afirma, em “Luto e Melancolia”, que apenas
por ser possível explicá-lo tão bem é que esse comportamento não nos
parecerá patológico (FREUD, 1917). Há algo interessante na fala de Freud.
Não é possível determinar em psicanálise tão facilmente esta-
dos patológicos ou vivências naturais e doloridas considerando que a
vida submete a experiências intensas as quais um sujeito pode mani-

20 Hassoun, 2002, p. 91-92.


21 Allouch, 1995, p. 30.

31
RESTOS DE HORROR

festar e reagir temporariamente de maneira muito similar ao que seria


um adoecimento, um surto, um enlouquecimento sem que isso seja pa-
tológico. O luto nos dá essa dimensão ao ser considerado pelo psicana-
lista um momento “natural” de trabalho elaborativo. Mas natural apenas
porque lhe é sondável as fases frente a algo tão inerente quanto à morte.

A psique, como um cristal, só mostra suas linhas de es-


trutura quando se quebra. Não existe, portanto, uma cla-
ra oposição entre normal e patológico. Enquanto não se
quebrar, o cristal parecerá “normal”–entretanto, ele é
composto de fraturas que, no momento em que alguma
circunstância desencadeadora o fizer “cair”, guiarão
o modo como ele se partirá22.

Ao enlutado é importante que empreenda um trabalho psíquico


que, mesmo fazendo-o lembrar incessantemente de sua perda e empo-
brecendo seu ego em um primeiro momento, poderá, com o tempo, aju-
dá-lo a ressignificar sua vivência traumática atribuindo-lhe cores menos
mortíferas e também promoverá um paulatino desligamento libidinal
em relação aquele objeto de satisfação narcísica que o ego perdeu aquém
de seu controle. O investimento libidinal, aos poucos então, poderá re-
tornar sua atenção ao mundo externo e a possibilidade de novos laços
e novos objetos de satisfação. Mas é normal, escreve Freud, que o apego
do enlutado ao seu morto diminua aos poucos, e que a “psicose alucina-
tória de desejo” (...) ceda lugar à aceitação da realidade. Embora a libido
tenha enorme resistência em abandonar posições prazerosas já experi-
mentadas, aos poucos a ausência do objeto impõe o doloroso desliga-
mento, até que o ego se veja “novamente livre e desinibido”, pronto para
novos investimentos. Pronto para voltar a viver. É válido lembrar que os
efeitos do trabalho do luto, ou seja, o desinvestimento emocional do ob-
jeto, ocorre (bem como na melancolia) de maneira inconsciente para
o sujeito, mas sem resistência para chegar à consciência, sendo possível
a verificação de algum desapego paulatino por parte do enlutado. E ape-
sar da tendência a uma superação “natural”, isso não quer dizer que não

22 Rivera, 2012, p. 234.

32
RESTOS DE HORROR

demande um esforço hercúleo e nem sempre bem-sucedido. É possível


que se desenvolva um estado de luto patológico em que a libido fica apri-
sionada no objeto de amor perdido. Isso porque a ocasião de uma perda
é uma oportunidade para que algo do sujeito enlutado possa emergir.
Como é o caso de ambivalências amorosas em relação ao objeto perdido,
bem como naqueles que possuem uma tendência à neurose obsessiva,
o conflito de ambivalência poderá conferir ao luto uma conformação
patológica e levar o sujeito a se expressar na forma de autorrecrimina-
ções, sentindo se culpado pela perda do objeto do amor, isto é, de tê-lo
desejado. 

Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto?


Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte manei-
ra: a prova de realidade mostrou que o objeto amado
já não existe mais e agora exige que toda a libido seja
retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso
se levanta uma compreensível oposição; em geral se ob-
serva que o homem não abandona de bom grado uma po-
sição da libido, nem mesmo quando um substituto já se
lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocor-
re um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto
por meio de uma psicose alucinatória de desejo. O nor-
mal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incum-
bência não pode ser imediatamente atendida. Ela será
cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo
e de energia de investimento, e enquanto isso a existên-
cia do objeto de investimento é psiquicamente prolonga-
da. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais
a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinves-
tidas e nelas se realiza o desligamento da libido. Por que
essa operação de compromisso que consiste em executar
uma por uma a ordem da realidade, é tão extraordinaria-
mente dolorosa, é algo que não fica facilmente indicado
em uma fundamentação econômica. E o notável é que
esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato,

33
RESTOS DE HORROR

uma vez concluído o trabalho de luto, o ego fica nova-


mente livre e desinibido23.

Objetivamente quais poderiam ser os mecanismos empreendidos


nesse árduo processo de elaboração do luto? Que às vezes expõe o cerne
do trauma como uma ferida exposta? Berlinck (2008) indica uma possi-
bilidade de resposta ao afirmar que: “o vínculo da libido ao objeto se efe-
tua por meio de lembranças e expectativas. O trabalho do luto consis-
te em evocá-las e investi-las fortemente uma a uma, de maneira a que,
paulatinamente, a libido se desligue”24. É possível pensar em algumas
possibilidades como ressignificação de vivências, celebrações e ritu-
ais mortuários ou que marquem a despedida do morto e ainda, em um
plano mais coletivo, tendendo a elaborar e reservar um lugar especial
de reconhecimento, pertencimento e compartilhamento de memórias
e traumas coletivos, os memoriais, os museus. Vamos trabalhar breve-
mente com cada hipótese: a ressignificação é uma ação atualizante para
uma memória. Um flash, que se cristalizou traumático, em um deter-
minado tempo e circunstâncias passadas que, muitas vezes, se trazidas
para as circunstâncias atuais da vida de um paciente, não tivesse mais
a mesma intensidade ou eco. No caso do luto que se desenvolve patoló-
gico, pode ser um bom exercício no sentido de contornar as autorrecri-
minações e a culpa sentida pelo sujeito, usando uma nova interpretação
para a relação vivida que não a de amálgama, por exemplo.
Lacan, no documentário “Um encontro com Lacan”, tem uma
de suas belas histórias contadas. Suzanne Hommel havia sido sua pa-
ciente e, alemã, na época da segunda guerra, havia vivido os horrores,
as angústias, a fome que aquele período tenebroso poderia oferecer.
Um dia, Suzanne teve um sonho e relatou que acordava todos os dias às 5h
da manhã, pois era o horário que os oficiais da GESTAPO vinham pro-
curar os judeus em suas casas. Lacan, prontamente lhe acariciou na face
em um “Geste à peau”. Sugerindo, em sua generosidade de analista,
um novo caminho para a lembrança. Era sua sugestão de ressignificação.

23 Freud, 1917, p. 34.


24 Berlinck, 2008, p. 88.

34
RESTOS DE HORROR

Allouch (1995) critica a máxima do “Trabalho de luto”, propon-


do uma visão mais articulada à noção de ato. Para o que nos interessa
aqui, talvez o mais importante seja seguir a prudência de Allouch (1995)
quando este afirma que “conviria primeiramente admitir que não sabe-
mos o que é um luto, tampouco se há um ou vários. O problema do luto
seria então colocado como uma incógnita, como um x, de que se espe-
raria de cada caso que ele lhe desse seu valor. Com certeza, heuristica-
mente, tal política analítica em relação ao luto como clínica seria a mais
pertinente”25.
A escrita foi seu ritual de expurgar-lhe a dor. Uma das principais
ideias no livro é a da “Morte seca”, uma perda silenciada e sem com-
pensação. A falta de celebração e de rituais no contemporâneo não tra-
ria um desamparo maior ao enlutado? No horizonte de uma perda seca,
segundo Allouch, lidamos com uma tripla ausência: não há mais mor-
te no grupo, não há mais morte de si e, como consequência, não há
mais luto. Dito em outras palavras, a morte deixa de ser um fato social
e não há mais o seu reconhecimento público no grupo; ela deixa de ser
um acontecimento esperado e experienciado pelo sujeito e passa a se
realizar escondida nos ambientes hospitalares, amenizada e marcada
de pudor; por fim, em decorrência desses outros fatores, o próprio luto
é tornado indecente e declarado como não sendo mais. A elaboração cô-
mica é oposta a frieza, é espécie de celebração às avessas, mas ainda
assim celebração.

O exercício masoquista, aliás, com o qual a libido analy-


sandi tem muita coisa em comum (todas, dizia Lacan, ex-
ceto o domínio), usa e abusa dessa possibilidade segun-
do a qual o sofrimento se nutre de afetação. Ver também
o tango, ou a mãe judia. Ao evocar de imediato esse cômi-
co do luto, essa afetação do falar da morte, esse ridículo
no sobrevivente, estaria eu pretendendo a isso escapar?26

25 Allouch, 1995, p. 172.


26 Allouch, 1995, p. 27.

35
RESTOS DE HORROR

É importante também considerarmos as memórias coletivas em re-


lação ao luto. E acolhê-las como algo que se inscreve na história e faz som-
bra à própria temporalidade da morte. O que pode significar, inclusive,
para nós, um espaço de resistência à indesejada das gentes. Onde se con-
ta nossa história, lá estamos, permanentemente. Esse tipo de “segurança
existencial” de que as vivências e convivências não serão aniquiladas
talvez assegurem um retrato de se ter existido. Ao olharmos para do jogo
da constituição de memoriais e museus dedicados à memória dos com-
bates contra os regimes ditatoriais, devemos nos atentar à observação
da maneira como o luto daqueles que vivenciaram e sofreram com estes
regimes ou de seus entes queridos se inscreve ou não nessas instalações.
Se pensamos, com Allouch, a questão do luto é a questão da constituição
do desejo, passar para uma posição desejante implica um ato sacrificial
que inaugura essa posição subjetiva. Em outras palavras, a constituição
do sujeito está toda atravessada pelo tema do luto. O que significaria
se perguntar, por exemplo, das relações do luto com o assujeitamento?
Fazer isso não abriria uma via para se pensar numa mesma via a questão
da constituição do sujeito, do sentido, do desejo, do discurso? Não seria
importante para nós levar em conta como se constituem, se formulam
e circulam discursos de e sobre o luto?
Além disso, poderíamos pensar o luto como um acontecimento,
um acontecimento que convoca o sujeito para um ato, um ato que pro-
porciona uma abertura para que algo se encerre, “pois um luto, como
uma psicanálise, por essência, tem um fim”27. Em uma versão freudia-
na do luto, o objeto perdido é perfeitamente substituível, pois, ao final
de um longo trabalho de desinvestimento e reinvestimento libidinal,
um objeto substituto apresentará a mesma carga pulsional que aquele
anteriormente perdido. Em contrapartida, na versão lacaniana (segundo
Allouch), há uma disparidade profunda entre a situação de antes e de-
pois do luto, já que o ato de luto instaura uma posição subjetiva até en-
tão inédita. O objeto perdido, na leitura de Allouch, é tido aqui como
insubstituível e o luto consiste em passar da experiência de um desapa-
recimento do ser amado para o reconhecimento, tomado em ato, de sua

27 Allouch, 1995, p. 12.

36
RESTOS DE HORROR

inexistência28. Assim, a relação de uma sociedade com seus mortos per-


passa também uma relação de elaboração a posteriori, principalmente
ao se relacionar com os símbolos dessa perda. Nossa sociedade ocidental
utiliza-se de rituais e ambientes que acabam concentrando os símbolos
de perda, dor e lembrança, como no caso dos cemitérios e seus túmulos.
Ao se construir um memorial aos combatentes de regimes ditatoriais
podemos perceber tal atitude como um ato de recordar de modo ativo
o passado, de não permitir seu esquecimento e de não deixar de levar
em conta as dores do luto. No entanto, seria possível simbolizar uma me-
mória total do fato ou de sua dor? Nossa aposta é de que simbolizar
o inominável é a única possibilidade de dar um tratamento ao horror.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLOUCH, J. (1995) Erótica do luto: no tempo da morte seca. Rio de Janeiro:


Companhia de Freud, 2004.
ANSART, P. (2004) História e memória dos ressentimentos. In: NAXARA, M.;
BRESCIANI, S. (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. Campinas: Editora UNICAMP, 2004. p. 15–36.
BARBOSA FILHO, F. R. (2018) O discurso antiafricano na Bahia do século
XIX. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
BERLINCK, L. C. (2008) Melancolia rastros de dor e de perda. São Paulo:
Humanitas, 2008.
DE CERTEAU, M. (1987) História e Psicanálise – Entre ciência e ficção. São
Paulo: Autêntica, 2011.
DERRIDA, J. (1995) Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
FARGE, A. (1989) O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
FREUD, S. (1917) Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

28 Allouch, 1995, p. 126.

37
RESTOS DE HORROR

GAGNEBIN, J. M. (2010) O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELES, E.;


SAFATLE, V. (orgs.).. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Coleção
Estado de sítio. 1a ed ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 177–186.
HASSOUN, J. (1995) A crueldade melancólica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
KEHL, M. R. (2010) Tortura e sintoma social. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (orgs.)..
O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Coleção Estado de sítio. 1a ed
ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 123–132.
KEHL, M. R. (2011) Melancolia e criação. In: Luto e melancolia. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.
ORLANDI, E. P. (1992) As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3.
reimpr ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
ORLANDI, E. P. (1999) Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, P. et
al. (orgs.). Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999, p. 59–71.
ORLANDI, E. P. (2014) Discursos e museus: da memória e do esquecimento.
Entremeios: revista de estudos do discurso, v. 9, jul. 2014.
PÊCHEUX, M. (1982) Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (Ed.).. Gestos de
leitura: da história no discurso. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010,
p. 49–59.
PÊCHEUX, M. (1983) Papel da Memória. In: ACHARD, P. et al. (orgs.). Papel da
Memória. Campinas: Pontes, 1999, p. 49–58.
POLARI, A. (1980) Camarim de prisioneiro. São Paulo: Global, 1980.
RIVERA, T. (2012) Luto e melancolia, de Freud, Sigmund. Novos Estudos–
CEBRAP, n. 94, p. 231–237, nov. 2012.
ROBIN, R. (1973) História e Linguística. Campinas: Cultrix, 1977.
ROBIN, R. (2003) A memória saturada. Campinas: Editora da UNICAMP, 2019.
SELIGMANN-SILVA, M. (2003) Reflexões sobre a memória, a história e o
esquecimento. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 59–88.

38
MELANCOLIZAR PARA GOVERNAR: O
COLAPSO FUNERÁRIO BRASILEIRO COMO
DISPOSITIVO NECROGOVERNAMENTAL

Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco

(...) o desmentido social, o rito público faltante e a im-


punidade obrigaram-nas a converter sua própria exis-
tência, seus corpos, em lugar de residência, em criptas
dos que não estão, como se fossem a substituição viven-
te, testemunhal, de uma tragédia sem solução (PIZARRO;
WITTEBROODT, 2002, p. 116).

No Brasil, o agravamento da crise política, social, econômica e sa-


nitária decorrente da pandemia do novo coranavírus fomentou a preo-
cupação com um iminente “colapso funerário” (ALVES, 2021; ROCHA,
2021). Porém, ao se projetarem para o futuro, ainda que muito próximo,
essas previsões encobrem o fato de que tal “colapso funerário” já ocorre,
e não vem de hoje. Com isso, não se trata de ignorar que as coisas podem
piorar ainda mais, mas de explicitar, primeiramente, que, nos cemité-
rios públicos do Brasil, o colapso se agudizou desde o início da pande-
mia, produzindo o descumprimento sistemático de protocolos funerá-
rios, o aprofundamento do processo de precarização dos trabalhadores
no serviço funerário, o desrespeito aos direitos dos mortos e dos seus

39
RESTOS DE HORROR

familiares. Em segundo lugar, trata-se de afirmar que, no Brasil, as forças


de poder hegemônicas vêm se valendo da crise funerária como estraté-
gia fundamental de governo das populações pobres e periféricas desde,
ao menos, o Estado Novo (1937 – 1946)1. Em outras palavras, o servi-
ço funerário não é um mero apêndice, normalmente esquecido, da vida
social; ao contrário, ele participa ativamente do que designamos como
dispositivos necrogovernamentais (FRANCO, 2018), entendido como
o conjunto de práticas, saberes, instituições, discursos, tecnologias, re-
gulamentações que se encarregam de gerir os cadáveres por meio de di-
versos processos, tais como o recolhimento, a perícia, a identificação
civil, o reconhecimento social, a documentação, a preparação, o trans-
porte, o armazenamento, a distribuição, a inumação, a exumação.
Assim, se a governamentalidade, de acordo com a abordagem
de Foucault, produz formas de subjetivação como resultado da internali-
zação de parâmetros de conduta, de critérios de escolha, de balizas para
o exercício da liberdade, tudo isso visando a determinar as condições
em que a vida pode ser possível, a necrogovernamentalidade, por sua
vez, define as condições de possibilidade e de reconhecimento da mor-
te, governando as condutas dos vivos a partir da administração dos cor-
pos mortos.
O emprego de palavras como gestão e administração podem le-
var à ideia de fluxos bem estruturados de procedimentos, verificados
a cada etapa por funcionários responsáveis por garantir na ponta o que
foi planejado por outras instâncias, mesmo que, para isso, seja preci-
so frequentemente encontrar novas soluções para problemas eventu-
ais. No entanto, no caso do serviço funerário brasileiro, nada poderia
ser mais equivocado do que essa compreensão do que significa gerir.
Se as instituições funerárias cumprem um papel essencial nos disposi-
tivos necrogovernamentais é precisamente porque se alimentam de um
1 A data foi definida com base na minuciosa pesquisa da antropóloga Letícia Ferreira (2009)
envolvendo 62 fichas de cadáveres não-identificados produzidas no Instituto Médico
Legal do Rio de Janeiro, entre 1942 e 1960. Isso indica que, na antiga Capital Federal,
encontrava-se em funcionamento o que estamos identificando como o uso governamental
do colapso funerário. Porém, não despropositado inferir que a existência de dispositivos
necrogovernamentais desta natureza recue para momentos mais pretéritos da história
brasileira. Tal hipótese, no entanto, exige outras pesquisas para ser afirmada.

40
RESTOS DE HORROR

estado permanente de colapso na gestão dos cadáveres, sem o qual


não seria possível alcançar dois efeitos aproveitados em benefício do go-
verno das populações: a desrealização da perda e a distribuição desigual
do luto público.

Desrealizar os mortos

Também no mundo dos mortos, o estado de exceção se tornou


paradigma. Aos cadáveres se estende mesma topologia do abandono
que Agamben (2002) extrai da análise das relações entre os viventes e a
biopolítica moderna2.
No âmbito da filosofia agambentiana, o abandono resulta da sus-
pensão do ordenamento jurídico, que perde sua efetividade em relação
ao mundo se convertendo em lei sem força. A norma, assim, não é apa-
gada, nem desativada, mas continua a existir como pura essência formal
desconectada da realidade. Como efeito da suspensão, cria-se o estado
de exceção como uma zona anômica, na qual a lei goza da pretensão
de aplicabilidade ilimitada e absoluta sobre a vida. Abandonar é, assim,
uma exclusão inclusiva, que retira a vida do campo da lei, da linguagem
e da política, apenas para mais eficazmente a capturar. A vida desampa-
rada, reduzida a sua própria irrelatez, é a vida nua, exposta a uma pura
potência normativa, presente em todos os lugares e, simultaneamente,
em lugar algum, e da qual se pode esperar tudo e nada.
O colapso permanente da gestão dos mortos no Brasil se articu-
la com essa topologia do abandono. As leis e regulações sobre a ges-
tão dos cadáveres não impedem que se abra uma zona anômica em que
os corpos mortos são abandonados ao dispor de um poder absoluto,
que assume a forma de um poder improvisador [improvisatory power]
(CATON 2010, p. 173), impulsionado pela normalização das contingên-
cias e dos imprevistos que, por conseguinte, ele próprio produz. Exceção
e improvisação se encontram quando é preciso decidir sobre certos ca-

2 “A relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência
insuperável do nómos, a sua originária ‘força de lei’, é que ele mantém a vida em seu bando
abandonando-a” (AGAMBEN, 2002, p. 36).

41
RESTOS DE HORROR

sos que ou não estão previstos nas regulações ou a respeito dos quais
se presume que as normativas podem ser deixadas de lado sem qualquer
controle externo. Nessas situações, os agentes se sentem autorizados
a definir novos fluxos burocráticos, escolher como e quais papéis serão
preenchidos, omitir ou adulterar dados, negligenciar rotinas periciais
ou cemiteriais.
As pesquisas de Ferreira (2009), Medeiros (2012) e Hattori et al.
(2016) revelam que, a depender do corpo, importa menos o cumprimen-
to das burocracias do que as improvisações dos agentes e instituições
que participam das diversas etapas da “construção institucional do mor-
to” (MEDEIROS, 2012) e da morte. A atribuição de nomes genéricos a ca-
dáveres, o mau preenchimento ou a ausência de informações em do-
cumentos, a desorganização dos arquivos, a perda de dados, tudo isso
não apenas produz e atesta o anonimato de um corpo, mas, ao mesmo
tempo, afirma Hattori et al., induz ao desaparecimento administrativo
(HATTORI et al., 2016), isto é, a uma forma de desaparecimento decor-
rente das próprias rotinas burocráticas que envolvem o morto, as insti-
tuições que administram a morte e os seus funcionários:

Bastava, portanto, não copiar um número, passar a limpo


de um outro modo, perder um papel, para que o caminho
do corpo se desfizesse, para que as identidades individu-
ais fossem suprimidas, para que a pessoa perdesse as evi-
dências que permitiam sua rastreabilidade e localização,
negando-se a possibilidade de ligar as informações obti-
das a partir do corpo ou esqueleto à memória e à história
de alguém (HATTORI et al., 2016, p. 5).

Esses cadáveres, que tiveram suas identidades civis suprimi-


das, que existem em condição atópica, pois não podem ser localizados,
que foram desligados da sua história e memória, são “corpos situados
num lugar social de pessoas quaisquer porque envoltas numa existência
registrada como imprecisa, anônima, solitária e constituída de escassez
e ausência: ausência de nome próprio e ausência de laço” (FERREIRA,
2009, p. 166). Em um dos documentos encontrados pela pesquisa

42
RESTOS DE HORROR

de Ferreira, no lugar do nome se lê a frase: “um homem completamente


desconhecido”, como se a condição de estar desconhecido o identificas-
se inequivocamente. Chama a atenção, porém, que em muitos desses
casos havia a possibilidade de as equipes funerárias buscarem, no pró-
prio local de recolhimento do corpo, informações que pudessem am-
pliar as chances de identificação cadavérica. Um dos exemplos desta-
cados pela pesquisadora é o cadáver de uma mulher, removido do leito
de uma estrada de ferro no começo da noite de 04 de julho de 1948.
Para além das incompatibilidades nas informações constantes nos docu-
mentos oficiais produzidos desde o momento da remoção desse corpo,
o que merece destaque é o fato de que os policiais que o encontraram
sabiam que se tratava de “uma emprega doméstica de cerca de 23 anos
de idade, moradora do bairro do Bonsucesso” (FERREIRA, 2009, p. 131).
Ora, por qual razão o conhecimento dessas informações não possibilitou
a identificação do cadáver? Essa questão se torna ainda mais premente
nas situações em que, por meio do exame datiloscópico ou do reconheci-
mento por terceiros, o nome próprio do morto é conhecido, o que não é
suficiente alterar a sua classificação como não-identificado, que se man-
tém dos documentos.
As urgências funerárias suscitadas pela pandemia agravaram o co-
lapso histórico dos dispositivos necrogovernamentais brasileiros im-
pulsionando, dentre outras coisas, a publicação de novos instrumentos
normativos que, sob pretexto de estabelecer procedimentos adequados
para o manejo de cadáveres suspeitos de óbito por COVID-19, nutriram
ainda mais o poder improvisador. Araújo, Medeiros e Mallar (2020), ana-
lisando um desses instrumentos, a portaria conjunta no 1 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Saúde, que criava medidas
excepcionais para a inumação e cremação de corpos em razão de exigên-
cia da saúde pública, observam que

Para além de pautar procedimentos visando a acelerar


o enterro de cadáveres, novamente o referido documen-
to abre um vácuo em relação à gestão das mortes, pois
não trata de mortes ocorridas fora dos estabelecimentos
de saúde e nem da realização de autópsias nos casos pas-

43
RESTOS DE HORROR

síveis de outras causas ou suspeitas de violência. A porta-


ria tampouco incluía um período de vigência, o que apre-
sentou a possibilidade de prolongamento das medidas,
apesar de ter sido prevista no contexto da situação ex-
cepcional causada pela pandemia. Ademais, por não es-
pecificar como deveria ser feito esse procedimento, abria
precedente para que as mortes ocorridas em prisões não
fossem objeto de autópsias por parte do Instituto Médico
Legal dos estados, medida essa que deveria ser compul-
sória, segundo as normativas internacionais das quais
o Brasil é signatário (ARAÚJO, MEDEIROS, MALLAR,
2020, p. 4).

Tal como originalmente publicada, essa portaria normalizava


a produção massiva de corpos “não-identificados”, uma vez que au-
torizava o sepultamento ou cremação de cadáveres apenas com apre-
sentação da declaração de óbito fornecida pelo médico, sem necessida-
de do registro civil em cartório. Mais uma vez, seriam principalmente
os corpos das vidas negras periféricas os principais afetados pelas dis-
posições emergenciais sobre a gestão cadavérica, uma vez que são eles
também as principais vítimas letais na pandemia (DA CONCEIÇÃO
SILVA; MORAIS; SANTOS, 2020). Sob forte pressão de diferentes entida-
des, uma nova portaria foi publicada no início de maio de 2020, na qual
foram incluídos procedimentos para amenizar os problemas denuncia-
dos no documento anterior. Porém, ao mesmo tempo que o Executivo
Federal buscava responder às urgências pandêmicas, outras esferas
do poder, em nível estadual e municipal, também assinavam regulações
dispondo sobre a gestão funerária. Com isso, abria-se a possibilidade
para a emergência de conflitos legais em diferentes âmbitos, aos quais
se somavam as tensões geradas no contato entre as normativas e as prá-
ticas locais já estabelecidas no dia a dia dos sepultadores, cemitérios
e agências funerárias.
Diante de tal cenário, caem por terra certas soluções simplórias,
bem ao gosto do neoliberalismo do nosso tempo, que sustentariam tra-
tar o colapso funerário brasileiro apenas com regulações mais exaustivas

44
RESTOS DE HORROR

ou com melhores gestores. Ainda que seja inegável que contribuições


pontuais poderiam advir daí, essas propostas não tocam no fato de que,
mesmo identificados e reconhecidos, alguns cadáveres continuam in-
determinadamente desconhecidos. O que explicaria a inalterabilidade
dessa condição a qual parecem estar destinados alguns mortos?
Esses alguns não perfazem uma categoria abstrata de cadáveres.
Eles são numeráveis, concretos, justamente porque a única existência
de que podem gozar e que interessa aos poderes é na forma de estatís-
ticas. A despeito das subnotificações e dos erros de contagem derivados
das condições sobre as quais falamos anteriormente, os números indi-
cam que, entre os meses de janeiro e dezembro de 2018, 160 corpos des-
conhecidos foram encaminhados pelo IML e pelo Serviço de Verificação
de Óbitos da Capital (SVOC) para o Serviço Funerário do Município
de São Paulo (SFMSP) proceder com os sepultamentos nos cemitérios
públicos da capital paulista3. No mesmo período de 2019, foram regis-
trados pelo SFMSP 164 cadáveres nestas mesmas condições. Em 2020,
entre janeiro e julho, 71 cadáveres desconhecidos foram sepultados
nos cemitérios Dom Bosco e Vila Formosa. Analisando os dados forne-
cidos pelo SFMSP, constata-se de imediato que a maioria destes mortos
desconhecidos apresentam um perfil bastante específico: são homens,
negros e pobres, que jazem nas mesmas sepulturas individuais e cole-
tivas dos cemitérios públicos com os corpos de outras formas de vida
desrealizadas, cujas mortes não entraram nos dados oficiais do Estado.
Ferreira sugere que se deveria reconhecer nesses mortos “(…) algo
preexistente que os fariam, orgânica e ontologicamente, homens desco-

3 Esses números foram obtidos a partir de informações encontradas na página “Falecidos


IML/SVO”, disponibilizada pelo SFM do município de São Paulo. Segundo o site: “O Serviço
Funerário do Município de São Paulo (SFMSP), publica, desde abril de 2014, todas as sextas-
feiras no site e, aos sábados, no Diário Oficial, a lista de pessoas falecidas, enviada pelo
Instituto Médico Legal (IML) e Serviço de Verificação de Óbitos da capital (SVOC), que
passaram por necropsia nestes órgãos estaduais, para que este serviço funerário realize o
sepultamento gratuito.
A publicação visa divulgar o nome e/ou as características destas pessoas, em colaboração
ao Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos. As informações publicadas
são retiradas dos registros do IML e SVO, enviados às agências funerárias municipais”.
Para mais informações, acessar: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/obras/
servico_funerario/falecidos/index.php?p=172214. Acessado em 31 de março de 2021.

45
RESTOS DE HORROR

nhecidos (2009, p. 52). Ou seja, haveria um nexo entre o estatuto social


de alguns desconhecidos e a sua condição ontológica. O interesse dessa
sugestão está em explicitar que as causas e efeitos da não-identificação
alcançam outro nível, afetando o que tomamos como um ser real dotado
de atributos que assim nos permitem categorizá-lo. A morte nua, cor-
porificada no cadáver desconhecido ou não-identificado, é uma morte
irreal, que tanto sofreu a violência da desrealização quanto a reproduz
sobre alguns viventes. Afirmar a irrealidade da morte não é somente rei-
terar a cruel obviedade que determinadas mortes são mais valorizadas
do que outras, mas é principalmente explicitar o fato de que algumas
mortes não podem sequer ser chamadas de mortes (AGAMBEN, 2008, p.
77). Como essas mortes não são reconhecidas publicamente, como, para
a sociedade, elas nunca ocorreram, as vidas que foram nunca existiram:
“São vidas para as quais não cabe nenhum luto porque já estavam perdi-
das para sempre ou porque, melhor dizendo, não ‘foram’ (…). A desrea-
lização do ‘Outro’ quer dizer que não está nem vivo nem morto, mas em
uma interminável condição de espectro” (BUTLER, 2006, p. 60). Assim,
continua Butler, “a condição de ser enlutado precede a torna possível
a apreensão do ser vivo como algo que vive, exposto a não vida desde
o princípio” (BUTLER, 2015, p. 33).
Gerir os mortos para controlar a distribuição social do luto como
meio de governo dos vivos, assim poderia ser resumida em uma frase
a lógica necrogovernamental que atravessa o colapso funerário perma-
nente no Brasil.

Foraclusão social do luto e generalização da melancolia

Por que se tornou tão premente para os poderes incidir sobre


os modos de realização social do luto? Por quais motivos os governos
investem tantos esforços para limitar ou, até mesmo, impossibilitar
que certos mortos sejam pranteados?
Só se conseguirá avançar no tratamento dessas perguntas se se
explicitar o caráter político inerente ao luto, que foi ocultado, sobretudo
a partir do século XX, como efeito do desaparecimento da morte dos es-

46
RESTOS DE HORROR

paços sociais de circulação (ARIÈS, 1988, p. 55). Nesse momento, o luto


se torna uma doença; ele “é patológico e suas lágrimas são acolhidas
como secreções tão nauseabundas quanto as outras secreções do cor-
po (…)” (ALLOUCH, 2004, p. 150). O enlutado absorve do morto, quiçá
por efeito de contiguidade, a mesma essência contaminante, repugnante,
infecciosa que impunha a exclusão do cadáver dos espaços de circulação
social. Patologizado, o luto e a sua forma mais extrema, a melancolia, fo-
ram expulsos da comunidade, confinados nos interiores das casas ou dos
hospitais, pois eles ativavam afetos antissociais e, por isso, perigosos,
tais como o isolamento, a perda do sentimento de pudor, a irritabilidade.
Consolidava-se, assim, a percepção largamente difundida na literatura
de que o luto e a melancolia se opõem à vida política da sociedade.
Nesse contexto, Luto e Melancolia, de Freud, ocupou uma posição
ambígua: por um lado, o texto procurou restituir ao luto, vivenciado
de acordo com certas condições, o caráter de normalidade que lhe estava
sendo negado; por outro lado, reabilitar parcialmente o luto como fenô-
meno psíquico nada contribuiu para que Freud advogasse explicitamen-
te por seus direitos sociais e políticos (ALLOUCH, 2004, p. 153).
Contra essa leitura de Luto e melancolia que insiste no caráter es-
tritamente psicogênico do luto, como se esse trabalho implicasse tão so-
mente o indivíduo por ele afetado, a filósofa norte-americana Judith
Butler sustenta que “o luto permite elaborar de forma complexa o sen-
tido de uma comunidade política (…). Se meu destino não é nem ori-
ginal, nem finalmente separável do teu, então o ‘nós’ está atravessado
por uma correlatividade a que não podemos nos opor com facilidade (…)
(BUTLER, 2006, p. 48-49).
O luto aponta, assim, para uma outra normatividade dentro
do campo político4, radicalmente diferente da compreensão de que o in-

4 Vale ressaltar que, para Butler, essa nova normatividade também se manifesta no domínio do
desejo e da sexualidade: “Isso que parece estar tão claro no caso do luto já está funcionando
no caso do desejo. (…) Assim, quando falamos sobre ‘minha sexualidade’ ou ‘meu gênero’
tal como geralmente devemos fazê-lo, estamos referindo-nos, todavia, a algo complexo que
o uso parcialmente esconde. Como modo de relação, nem o gênero, nem a sexualidade, são
algo que possuímos, porém um modo de despossessão, um modo de ser para outro e por
causa do outro” (BUTLER, 2006, p.50).

47
RESTOS DE HORROR

divíduo juridicamente definido é a unidade mínima das relações sociais.


Ora, o luto é capaz de revelar o quanto essa individualidade é problemá-
tica, pois atravessada constantemente por outros que a desestabilizam
nas suas expectativas de autonomia.

Em tais condições, somos algo mais que “autônomos”,


mas isso não significa fusão nem falta de limites. Mais
propriamente, quer dizer que, quando pensamos no que
“somos” e buscamos nos representar, não podemos
nos representar como simples seres individuais, por que
os outros que originalmente passarão por mim não ape-
nas caem assimilados ao limite que me contém (um
dos sentidos de ‘incorporar’), mas, também, rondam
o modo em que periodicamente, por assim dizer, me de-
sintegro e me abro a um devir ilimitado (BUTLER, 2006,
p. 54).

Dito de outro modo, o luto expõe a precariedade dos sujeitos como


o “desfundamento5” que habita o centro da vida política, não somente
no sentido de que há a morte, a doença e a finitude, mas, fundamental-
mente, porque a vida depende de diferentes modos de relação com ou-
tros para que exista e continue existindo.
Ao impedir que certas vidas sejam enlutáveis, tornando suas perdas
irreais, os dispositivos necrogovernamentais as suprimem do conjunto
daquelas existências às quais nos consideramos ligados e cuja morte
é capaz de nos transformar de maneira imprevisível. Se não posso chorar
uma perda, se, para mim, ela não existe, também não sou capaz de re-
conhecer os laços que me colocam em relação com aquele que morreu.
Em outras palavras, essas vidas são indignas de serem vividas, sua ex-
tinção pouco ou nada afeta a mim e a minha comunidade. Ao contrário,
o que me afeta é a existência dessas vidas, na medida em que elas são o

5 A expressão é da própria Butler: “A precariedade fundamenta essas obrigações sociais


positivas (paradoxalmente, porque a precariedade é uma espécie de ‘desfundamentação’
que constitui uma condição generalizada para o animal humano), ao mesmo tempo que
o propósito dessas obrigações é minimizar a precariedade e sua distribuição desigual”
(BUTLER, 2015, p. 41, grifos nossos).

48
RESTOS DE HORROR

radicalmente Outro, uma vida indeterminada na qual se reúnem as po-


tências ameaçadoras da sociedade.
Sabemos como o discurso securitário soube se valer dessa figura
do estranho, da vida desconhecida, para mobilizar o medo como afeto or-
ganizador da vida social. Nos territórios coloniais, que se situavam para
além da racionalidade política do mundo Europeu, os selvagens, na vi-
são dos colonizadores, eram vidas entregues às necessidades e às deter-
minações que a natureza lhes impunha e, por isso, estrangeiras [aliens],
nos muitos sentidos que essa palavra comporta: estranhas e, ao mes-
mo tempo, ameaçadoras (MBEMBE, 2003). Mais contemporaneamente,
no Brasil dos anos 1930, o surgimento dos protocolos de identificação
civil dos cidadãos respondia à necessidade de garantir a transparência
social resultante da particularização dos seus indivíduos, com o que se
objetivava banir as duas figuras que aterrorizam a sociedade com a ame-
aça da sua dissolução: o homem desmemoriado e o homem desconhecido,
que, no limite, carregava em si o primeiro, na medida em que ele “não
se conhece a si e nem se dá a conhecer aos outros” (CARRARA, 1984, 24).
Desrealizar essas figuras do desconhecido implica, também, a ir-
realização da violência dirigida contra elas. Afinal, o que impede que se
mate, torture, prenda em condições subumanas existências às quais
não se pode atribuir propriamente a condição de viventes e cujas perdas
ninguém pode sofrer? Como observa mais uma vez Butler,

temos que analisar o modo como esses atos de luto pu-


blicamente autorizados estabelecem e produzem a nor-
ma que regula quais mortes valem a pena, o modo como
essa norma opera junto com a proibição do luto público
de outras vidas e o modo como essa distribuição diferen-
cial do luto serve para desrealizar os efeitos da violência
militar (2006, p. 64).

E serve, igualmente, para desrealizar os efeitos da ação estatal


necropolítica de “deixar contaminar” com o novo Coronavírus setores
pobres e periféricos da população brasileira, abandonados pelo sistema

49
RESTOS DE HORROR

de saúde e de assistência cada vez mais subordinados aos interesses pri-


vados das corporações que os administram.
Com a desrealização de alguns mortos, desaparecem, também,
os laços que os enodariam a uma comunidade política, cuja identidade
autorreferente se estabelece a partir do que Butler designa como a fora-
clusão social do luto. Essa operação, para a filósofa, é definida por uma
dupla negação, um never-never: o primeiro never incidiria sobre o víncu-
lo de amor com o outro, recusando-o, enquanto o segundo never exporia
as consequências propriamente ontológicas que a foraclusão envolve,
na medida em que a negação se endereçaria ao reconhecimento da per-
da do objeto e, no limite, como vimos, à existência do próprio objeto.
No caso dos mortos, à negação do vínculo de amor com o morto, segue-
-se uma segunda negação, que recai sobre a sua existência, e vice-versa.
Ao tomar de empréstimo da psicanálise o conceito de foraclusão,
Butler diz mais do que explicita6. Lacan interpreta o que Freud chama-
va de Verwerfung utilizando o termo francês forclusion (traduzido como
foraclusão), originário do campo do direito. Diz-se que um crime está
forclos quando, após transcorrido um certo tempo definido nos códigos
jurídicos, ele prescreveu, deixando de existir para a lei, que não lhe pode
mais ser aplicada. Referida ao campo da psicanálise, a foraclusão é com-
preendida em certo momento do ensino de Lacan como a condição es-
trutural da psicose. O psicótico é aquele para quem o significante re-
presentante da Lei simbólica está prescrito do Outro, que aparece como
um Outro onipotente, não barrado, uno e idêntico a si mesmo, indiferen-
te a qualquer coisa que pretenda separá-lo do seu gozo.

6 Se a inspiração butleriana para usar o conceito de forclusão é claramente psicanalítica,


o desenvolvimento do conceito passa, certamente, pelas remodelagens que lhe imprime
Butler. Sobre isso, sublinha Macherrey, “Butler decide sustentar sua interpretação da
melancolia no conceito de ‘foraclusão’ de Lacan, um termo que traduz Verwerfung e só
aparece de passagem no texto de Freud. Despreocupada com a ortodoxia, ela usa esse termo
livremente e o retraduz–estes são seus termos–no discurso do ‘nunca-nunca’ [jamais-
jamais]: existe uma foraclusão a partir do momento em que há um reconhecimento do fato
de que a coisa está perdida para sempre [pour jamais], mas sobreposta a esse reconhecimento
está a afirmação de que a perda nunca [jamais] ocorreu. Ela também explica em detalhes
como tal exclusão funda a constituição da identidade sexual em suas chamadas formas
normais.” (MACHERREY, P. Out of melancholia: notes on Judith Butler’s The Psychic Life of
Power: Theories in Subjection. Rethinking Marxism, 16:1, 7-17, 2004).

50
RESTOS DE HORROR

É verdade que Butler não trata da foraclusão deste significante


da Lei, mas da foraclusão social do luto. Dessa operação, resulta, por um
lado, a fantasia da Nação como Um indiviso, não barrado, onipotente
e imutável, e do sujeito como indivíduo autônomo que buscaria realizar
as expectativas totalizantes própria às formações narcísicas. Isso porque
a unidade da Nação e do seu Povo se manteria às custas da desrealiza-
ção das existências que lhe são diferentes, infamiliares, as quais para-
noicamente retornam na forma aterrorizante de um outro devastador.
Tão importante quanto os mausoléus suntuosos erigidos em homena-
gem aos heróis nacionais são as sepulturas anônimas ou os desapareci-
mentos que rasuram aqueles mortos para supostamente sustentar a co-
erência e a consistência da história oficial. Que o digam os assassinados
pelos genocídios coloniais, pelas forças de segurança, pela exploração
do mercado, pela desigualdade de acesso à assistência social e de saúde.
Mas, há um outro efeito da foraclusão social do luto que resta
ser analisado. Para todos os que se identificam com algum traço des-
ses mortos desrealizados — sua raça, gênero, condição social, ideais po-
líticos etc —, a impossibilidade de fazer reconhecer essas mortes pode
ser acompanhada de silêncio, vergonha, medo de ser tratado do mesmo
jeito que o falecido fora tratado, dúvidas suscitadas pelo que se ouve
a respeito do morto, raiva dirigida a ele e a sua morte. Afinal, se a minha
morte, assim como a daqueles outros mortos, não poderá ser chorada,
se meus funerais não existirão, se meu cadáver será identificado como
desconhecido, enfim, se a minha perda não encontrará espaço de inscri-
ção social, então qual valor possui a minha vida?
Por isso, a foraclusão social do luto é condição para que o poder
administre os sujeitos políticos por meio da generalização de respostas

51
RESTOS DE HORROR

melancolizadas7 a situações de perda (BUTLER, 2006, p. 64-65). O morto


cujo luto foi prescrito cai como um dejeto abandonado pela totalidade
social que se apresenta como um Outro absoluto, auto-idêntico, corres-
pondendo analogicamente ao Outro do psicótico, no qual não se ins-
crevia a lei simbólica. Como se fossem melancólicos, as subjetividades
melancolizadas constituem em si um dispositivo de vigilância e autodes-
truição que se endereça ao que nelas se identifica com o morto ou com
o que ele representa. Tais subjetividades, a fim de preservar a identidade
social e as autoridades que a suportam, fazem de si mesmas dejetos, ob-
jetos esvaziados que não encontram têm o direito de habitar o Social.

Na melancolia, o Eu contraio algo da perda ou do abando-


no que agora marca o objeto, um abandono que é recusado
e, justamente por ser recusado, é incorporado. Nesse sen-
tido, recusar uma perda é se tornar a perda. Se o Eu não
aceita a perda do outro, a perda que o outro passa a repre-
sentar torna-se a perda que agora caracteriza o Eu: o Eu
torna-se pobre e miserável. Uma perda sofrida no mundo
se torna a falta que agora caracteriza o Eu (uma cisão im-
portada, por assim dizer, pelo necessário trabalho de in-
ternalização). (…) Na melancolia, eu contraio a ausência
do outro (BUTLER, 2017, p. 194-195).

Se o destino do objeto perdido é ser incorporado pelo Eu, o destino


do Outro social é ser internalizado na forma das vociferações do Super-

7 Se optamos por empregar a expressão “subjetividades melancolizadas” no lugar de


“subjetividades melancólicas”, que seria a formulação mais óbvia na língua portuguesa,
é para explicitar duas coisas: primeiramente, que a necrogovernamentalidade não apenas
produz a melancolia como uma estrutura psíquica estável, mas, principalmente, formas de
subjetivação que, em alguns momentos mais do que em outros, são marcadas por esse afeto;
em segundo lugar, que, entre o luto e a melancolia, há uma série de outros agenciamentos
afetivos possíveis de que nos dão mostra os movimentos de familiares, particularmente
de mães de desaparecidos. De maneiras diversas, esses sujeitos buscam inventar meios de
resistir à onda melancolizante agitada pelos dispositivos necrogovernamentais. Para tanto,
os arsenais mobilizados vão da disputa pela tipificação de certos casos de desaparecimento
como desaparecimento forçado até a criação de outras gramáticas do sofrimento, nas quais
a perda procura ser reconhecida e re-inscrita no laço social, tais como a composição de
músicas, a escrita de poesias e peças literárias, os sonhos, a participação em comunidades
religiosas etc. Devo esta precisão política e terminológica às cruciais sugestões da Profa.
Adriana Vianna.

52
RESTOS DE HORROR

eu tirânico. Assim, o próprio poder desaparece como agente externo


de coerção. É a este soberano terrível e gozador que o melancolizado
se entrega como seu objeto, deixando-se destruir pela série interminável
de acusações e pelas exigências de punição contra uma culpa inexpug-
nável. Tal como os condenados nos rituais soberanos do Antigo Regime,
o corpo melancolizado é trespassado pelos significantes que procedem
do Outro superegóico, desmembrado pelas suas críticas e, no limi-
te, morto.
A agressividade internalizada e revertida contra o Eu é uma vio-
lência não apenas domesticada, mas gerida de forma a transformá-la
de ameaça em cúmplice do governo social. Na formulação cabal de Butler:

A melancolia é uma rebelião que foi suprimida, esma-


gada. (…). O poder do Estado para evitar a fúria insur-
recional faz parte das operações da psique. A “instância
crítica”do melancólico é um instrumento social e psí-
quico. Essa consciência superegoica não é simplesmen-
te análoga ao poder militar do Estado em relação a seus
cidadãos: o Estado cultiva a melancolia entre os cida-
dãos precisamente como forma de dissimular e deslocar
a sua própria autoridade ideal. Isso não equivale a dizer
que a própria consciência seja uma simples instanciação
do Estado, ao contrário: ela é o ponto de fuga da autori-
dade do Estado, sua idealização psíquica, e, nesse senti-
do, seu desaparecimento como objeto externo. O proces-
so de formação do sujeito é o processo de torna invisível
— e efetivo — o poder aterrorizante do Estado como
a idealidade da consciência (BUTLER, 2017, p. 198-199).

Se, como constata Freud, nos melancólicos é possível perceber


uma insistente comunicabilidade, é porque eles conseguem mais forte-
mente se expor e se depreciar. Aquilo que não podem endereçar ao so-
cial, a agressividade que fora internalizada juntamente com a perda e em
razão da perda, expõe-se, disfarçado, na rota sinuosa pela qual o Eu acu-
sa a si mesmo. Novamente Freud resume essa interpretação em outro

53
RESTOS DE HORROR

aforismo conhecido: “Para eles [melancólicos], queixar-se é dar queixa


no velho sentido do termo; eles não se envergonham nem se escondem,
porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos no fundo dizem
de outrem” (FREUD, 2011, p.59). Denunciar suas próprias misérias e cri-
mes face aos Ideais sociais segundo os quais é julgado pelo Super-eu
é, assim, a forma melancólica de refratar a violência que endereçaria
a estes mesmos Ideais que foracluíram a perda com a qual se identifica.
Porém, o resultado dessa reflexão da agressividade para o Eu é justa-
mente o de fortalecer a fantasia da totalidade do Outro social.
A necrogovernamentalidade opera desde nossas auto-vociferações
nos fazendo sustentar que o Outro social é imutável, de que toda trans-
formação que se possa querer operar nele é vã, de que não temos forças
para fazer face a sua crueldade, de que as formas de vida encarnadas
pelos que morreram são realmente nocivas, de que já fomos derrotados,
já estamos mortos. Como sintetiza Safatle:

É possível dizer que o poder nos melancoliza e é dessa


forma que eles nos submete. Essa é sua verdadeira
violência, muito mais do que os mecanismos clássicos
de coerção e dominação pela força, pois trata-se aqui
de violência de uma regulação social que leva o Eu
a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a
paralisar sua capacidade de ação (SAFATLE, 2015, p. 83).

A manutenção dos processos funerários no Brasil em permanente


estado de colapso cumpre, portanto, uma função central para o governo
das populações, na medida em que faz entrar em cena formas de domi-
nação que operam a partir de “dentro”, isto é, invertem a direção da po-
tência subjetivante do poder tornando-a potência atuada pelo sujeito.
Como vimos ao longo desse texto, a desrealização dos mortos, última
etapa do processo de dessubjetivação das vidas, não pode ser dissociada
dos seus efeitos subjetivos sobre os viventes. Os dispositivos necrogo-
vernamentais, ao gerir os corpos, gerem os indivíduos, definindo tanto
quais mortes poderão ser pranteadas na sociedade, veladas nos cemité-
rios, cultuadas em mausoléus, quanto as que desaparecerão sem deixar

54
RESTOS DE HORROR

qualquer rastro. Mas, a distribuição diferencial do luto tem ainda outra


função: induzir entre aqueles se identificam com estas mortes desre-
alizadas ou com o que elas simbolizam a produção de formas melan-
colizadas de subjetividade. Convertidos em subjetividades identificadas
com uma perda que não podem publicamente reconhecer, nem criticar,
nem denunciar, eles internalizam na forma da agressividade superegoi-
ca as injunções que os fazem paralisar e, no limite, assumirem-se como
já mortos.

Referências

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Tradução de


Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
ARAÚJO, F.; MEDEIROS, F.; MALLAR, F. As valas comuns: imagens e políticas
da morte. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de
Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-12
ALLOUCH, J. A erótica do luto no tempo da morte seca. Tradução de Procópio
Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
ALVES, J. “’colapso funerário é o passo seguinte’, diz Nicolelis sobre
pandemia no Brasil”. CNN Brasil, 23 de março de 2021. Disponível
(online) em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/23/
colapso-funerario-e-o-passo-seguinte-diz-nicolelis-sobre-pandemia-no-brasil
ARIÈS, P. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média.
Tradução de Pedro Jorão. Lisboa: Teorema, 1988.
BUTLER, J. The psychic life of power: theories in subjectivation. Stanford:
Stanford University Press, 2006.
_________. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução de Rogério
Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
CARRARA, S. A “Sciência e Doutrina da Identificação no Brasil” ou Do Controle
do Eu no Templo da Técnica. Boletim do Museu Nacional, n. 50, 10 de
dezembro de 1984.
DA CONCEIÇÃO SILVA, L. I.; MORAIS, E. S. de; SANTOS, M. S. dos. COVID-19
e população negra: desigualdades acirradas no contexto da pandemia. Revista

55
RESTOS DE HORROR

Thema, [S. l.], v. 18, n. ESPECIAL, p. 301-318, 2020. DOI: 10.15536/thema.V18.


Especial.2020.301-318.1814. Disponível em: http://periodicos.ifsul.edu.br/
index.php/thema/article/view/1814. Acesso em: 7 abr. 2021.
FERREIRA, L. C. de M. Dos autos da cova rasa: identificação de corpos não-
identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de
Janeiro: E-papers: Laced/Museu Nacional, 2009.
FRANCO, F. L. F. N. Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo
sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil. 2018. Tese (Doutorado em
Filosofia)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2018.
FREUD, S. Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo:
CosacNaify, 2011.
HATTORI, M. L. et al. O caminho burocrático da morte e a máquina de fazer
desaparecer: propostas de análise da documentação do Instituto Médico Legal-
SP para antropologia forense. Revista do Arquivo: Uma publicação online do
Arquivo Público do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 2, p.1-21, 2016. Disponível
em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/02/artigo_03.
php>. Acesso em: 05 fev. 2018.
MEDEIROS, Flavia. “Matar o morto”: A construção institucional de mortos
no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado),
Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia (ICFH), Universidade Federal Fluminense (UFF).
MBEMBE, A. Necropolitics. Public Culture, 15(1):11-40. [s.l.]: Duke University
Press, 2003.
ROCHA, C. “Como a pandemia sobrecarrega o setor funerário
no Brasil”. Nexo, Expresso, 20 de março de 2021. Disponível
(online) em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/03/19/
Como-a-pandemia-sobrecarrega-o-setor-funer%C3%A1rio-no-Brasil
PIZARRO, A; WITTEBROODT, I. “La impunidad: Efectos en la elaboración del
duelo en madres de detenidos desaparecidos”, Revista Castalia, 1(3), 2002. pp.
115-135.
SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do
indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

56
ESCREVER, AINDA?

Paulo Miranda

“Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez


em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que
antes.”1.

Estava aqui, em algum lugar. Você viu onde foi que os deixei?
Sim, não estavam exatamente organizados, mas estavam juntos. Nossa
que recordação, há anos não anoto segredos nas vigas do alpendre.
Me deu saudade. Inventário êxtimo de palavras. Em qual canto será
que os coloquei? Sei que pareciam algo descartável. Banalidade, mesmo.
Seu filho até me perguntou se poderia jogá-los fora, que pareciam lixo.
Gerações. Ele guardou, estou segura, embora não se lembre da situação.
Este lagartinho de plástico, vivia levando susto com ele. Pensava ser um
jacaré quando a sombra projetava distorções. Efeitos de luz. Onde será
que estão, ein? Preciso deles para amanhã, há uma certa urgência nis-
so. Você sabe ao que me refiro. Sim, já conferi na escrivaninha ao lado
da muda de antúrio. Ali só estão os recibos e manuais de instrução. É,
na antiga estante de livros também não estão. Tampouco os encontro
na gaveta onde ficam guardados os laços bordados por mamãe. Poxa, fico
tão feliz que você esteja aqui comigo, me ajudando nesta busca. Chuva?

1 FREUD (1916/2010, p. 252).

57
RESTOS DE HORROR

Claro que descartamos depois da enchente, estavam podres, ilegíveis,


mas aqueles eu tenho certeza que guardei. Nas caixas de sapato em cima
do armário, você olhou? Também não!? Esses objetos perdidos. Parece
que quanto mais ordem na casa menos se encontram as coisas. Quanta
sujeira aqui nesses arquivos. Deveria acessá-los com mais frequência.
Tirar o pó. Sob o balcão, não. Amanhã. Ah, esse livro foi aquela amiga
que me deu. Capa dura, bonita a edição. Agora ela anda toda empolgada
com Freud. Mal-estar na civilização. Aqui.
Pantanal em chamas. Monocultura-carvão. Uma área mais extensa
que o Estado do Sergipe pegando fogo. Árvores e arquivos de Glauber
Rocha estalando enquanto se contorcem. Há um excesso de fuligem
no ar, respiração apneica. Cinemateca em chamas. O ciciar do cinza con-
tornando o silêncio. Às vésperas do futuro, uma torneira danificada go-
teja uma temporalidade em soluços. Museu Nacional. Chamas. No Brasil,
mas não só, milhares de olhos crepitam diante da fábrica de imagens.
Estados absortos. Enquanto isso, um ecossistema inteiro de palavras
se dissipa todos os dias em brasas ufanistas. Intempérie consequência
do inferno verde nas representações literárias jesuíticas. Há um resíduo
que queima, até agora, incessante. Hemoglobinas elididas de um sangue
em ebulição, músculos contraídos. Percebe, como são vermelhas as cor-
tinas das mansões coloniais?
Todas as garrafas lançadas ao mar encontram a miséria do próprio
destino. Foi em referência ao Romain Rolland que o sentimento oceâni-
co se espraiou à discussão Freudiana sobre a civilização2. Empuxo à to-
talidade, infinitização do Eu, acoplamento imediato à pele do planeta. E,
no entanto, as ruínas de Roma seguem espalhadas por todas as calçadas
da cidade. Nos vãos inquietos das pedras portuguesas, há um passado
que se enrosca em cada passo cidadão. Tropeços. Una mirada que co-
jea. A cegueira pode ser um modo muito específico de ver sem olhar3.
Visão desavisada da divisão, positivação pelo excesso de luminosidade.
Cegueira branca4. Talvez este tenha sido o maior equívoco do iluminis-

2 FREUD (1930/2010).
3 LACAN (1964/2008).
4 SARAMAGO (1995).

58
RESTOS DE HORROR

mo racionalista: lançar luz nos objetos do mundo para não ter que es-
cutá-los. Dissolução da alquimia entre imagem e som. E Freud ali, sen-
tado à meia-luz, pensando: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”?
Que amor é esse? Amparado no outro sem diferenciação? Sem implicar
em uma escolha? Em uma perda? Amor dado de partida, acachapante,
fusão sem fissura, adágio? Não, o amor é sob condições 一 condições
de identificação 一 e a fruição se dá pelo contraste. O amor talvez seja
um outro jeito de haver-se com o desamparo. Outro jeito em relação
às religiões judaico-cristãs e suas promessas de bem, de paz, de harmo-
nia. Sentimento oceânico. O amor supostamente irrestrito da religião-
-toda evidencia seus limites de intolerância e crueldade diante daqueles
que não aderem aos seus princípios.5 Foi em nome de um sentimen-
to oceânico que as caravelas portuguesas atracaram aqui? Guernica
do Egeu de Jovcho Savov.
Tem algo do laço que comporta uma agressividade inalienável.
Agressividade que não está fora, lá, embora pareça. Sob o nobre lustro
dos costumes, há uma tensão conflitiva constante. Uma lavoura arcaica
onde desejo e lei se enovelam em permanente desacordo6. O corpo epi-
léptico ante ao zumbido inconsciente. Uma colmeia às avessas em toda
carne que faz de si linguagem. Talvez a agressividade seja a resposta
mais imediata a um corpo que não pode voltar a despedaçar-se7. Imagos
arcaicas. Não é possível, o sentimento oceânico deveria comportar,
se fosse pra valer, nossas zonas abissais que, paradoxalmente, estão
na superfície, à flor-da-pele. A agressividade talvez seja o mais próprio
do humano, mais do que o amor. Unbewusste.
Parece que a civilização ocupa esse duplo, às vezes está aí para
por limites aos instintos agressivos, instigar os sujeitos a estabelecer
identificações e relações amorosas inibidas em sua meta, mas às ve-
zes também está aí para avalizar a guerra em nome de deus, da pátria,
da família, do bem, do cidadão de bem. Retornos do recalcado. Políticas
do ressentimento. Milhares de vidas interrompidas por uma doen-

5 FREUD (1921/2011).
6 NASSAR (1989).
7 LACAN (1948/1998).

59
RESTOS DE HORROR

ça controlável no Brasil. “E daí?”, “vocês querem que eu faça o quê?”,


“eu não sou coveiro”, “gripezinha’’. Enterrar também é responsabilizar.
Ato de significação. Em cada vala comum há o selo eterno de glându-
las ressecadas, imbróglios. Ainda, quantas mortes não serão choradas?
Mortes impassíveis de luto8. Mortes essas (outras) que retornam. Voltam
os passados sem contorno. Voltam os passados que, em cinzas, insistem
por uma significação coletiva. Há que se dar outro destino ao fogo: velas
acesas. Cortejo fúnebre em marcha ré. Parece que Freud em 1930 já nota-
va algo dessa barbárie encarnada na civilização, tão atual. Alternativas?
O socialismo, nossas esquerdas, tantas, também falharam aí nesse ponto
cego que faz sujeito, nesse terreno escorregadio que não se dá assim gra-
tuito à intuição. Quantos velórios serão necessários para que um novo
circuito dos afetos possa emergir diante do atual Estado suicidário9?
Palavra desordem.
Um sinal. Saliva. Máquina caça-níquel sob o véu do entretenimen-
to. Espelho acoplado ao corpo. O neoliberalismo pós-2008 como inter-
face plataformizada10. Nos latifúndios de um Brasil colônia: subjetivida-
des commodities. Há uma economia da atenção11 em jogo cuja finalidade
é a de produzir uma alteridade especular. Excesso de personalização12
e autoafirmação. Capilarização e desejo de totalidade, luzes. Gadgets.
É preciso capturar o olhar para que ele apenas veja13. Imagens inteiras,
assim: sem furo ou mancha. É necessário sustentar uma comunicação
como ausência de opacidade, transparência pura. Preencher questões
de relevância social com aforismos. Responder. Mãos-à-obra, é urgente
trabalhar a linguagem ao mínimo, reduzir a atenção a uma fina cama-
da. Engajamentos. Performatividade algorítmica e compartilhamentos
sem enunciação. A paixão pela ignorância elevada ao limite. Nas engre-
nagens de um sistema de pirâmides, indústrias de fazer odiar carboni-

8 BUTLER (2015).
9 SAFATLE (s/d).
10 SRNICEK (2016).
11 FRANCK (2019).
12 VAN ZOONEN (2012).
13 BETTS (2007).

60
RESTOS DE HORROR

zam zonas produtivas de indeterminação para produzir uma agressivi-


dade primária. Derivacivilização.
Estrelas são luzes que testemunham a própria morte. Fusão nucle-
ar de um vazio em convulsão. A velocidade da luz é a forma privilegia-
da de mensurar grandes distâncias. Quando foi a última vez que nossas
mãos se tocaram? A cultura aceleracionista14 do Capital neoliberal pla-
taformizado quer gerir uma modalidade de entropia subjetiva. Colapso
de contexto, certezas do sentido, rebaixamento do sistema de peritos
como forma de mediação social15. É necessária a manutenção de um am-
biente de crise permanente como forma de justificar tacitamente a repar-
tição da escassez. Subtrair as bordas entre o público e o privado até que
uma união não mediada com o outro especular dê suas provas de impos-
sibilidade. Há uma melancolia nisso tudo16. Perda permanente de obje-
to. Sujeito empresário de si destituído do silêncio inventado pela noite,
do tempo absoluto dos caramujos alcoolistas e improdutivos, da solidão
torpe de um fóssil extinto sob os novos empreendimentos imobiliários.
Não, não há margem para o acidente. Há uma pretensa vida em linha
reta, há planners e há camisas de força vestindo sujeitos-empresa.
No estuário entre memória e atualidade sempre pode haver um di-
zer meio-dito esboçando futuros17. A ruína é este lugar: limiar trans-
temporal daquilo que não foi o que seria e daquilo que não é o que já
foi18. Talvez o isolamento social não tenha começado com a pandemia
da Sars-Cov-2. Talvez uma película de impermeabilidade 一 liberdade
一 já recobrisse todos corpos imunizados por manhãs-funcionárias19.
No centro, índices das bolsas de valores monetizam uma relação especí-
fica com o tempo. O Brasil não pode parar. Não pode reparar. Qualquer
pausa evidenciaria o absurdo de um país fundado na guerra ininterrupta
contra sua própria população. Uma população. Meio-fio branco man-

14 PINTO NETO (2017).


15 CESARINO (2021).
16 DUNKER (2021).
17 SOUSA et al. (2020).
18 OLIVEIRA (2012).
19 SILVA et al. (2021).

61
RESTOS DE HORROR

chado de sangue, de novo. Nas avenidas cardinais, vespas enfileiradas


aceleram motocicletas em nome de uma generalidade ultrajante. Rodas,
motores e semblantes íngremes. Há um conjunto de significantes va-
zios20 delineando equivalências ali onde havia apenas o desejo por reco-
nhecimento. Talvez uma aposta última na promessa de transcendência
encarnada pelo líder. Talvez um desdobramento do sofrimento de inde-
terminação21. Banda de Möbius em espasmos.
Nonada: uma forte neblina. Borba gato em chamas. Estado onírico
cujo conteúdo manifesto são papiros vazios. Aves em revoada abafam
os sons dos sinos das catedrais. Milhares de raízes inervam antigas pa-
redes sem tinta. Mesmo os muros já não repartem mais espaço algum.
São oásis de bromélias. Nem fábricas, nem celulares. Barris de petró-
leo escorrem a madrugada por todos os telhados. Um poema é decla-
mado na fachada do banco mundial. Pai, não vês que estou queimando?
Diante da escassez crônica, um choro coletivo se concentra nas praças
de todas as cidades. Chorar junto, aos milhares. Lugares, alhures. De re-
pente, somente de repente, o futuro prometido e forjado pelo mercado
aparece destituído de sentido. Nulificado. A revelia do excesso de luzes,
fogos e memes: a falta da falta faz emergir o dorso côncavo da angús-
tia. Buraco a contrapelo do empuxo ao mais-de-gozar. Os tons pastéis,
as marcas de sapato, os ponteiros do relógio: objetos decaídos. A con-
figuração estética do sensível já não distribui mais os mesmos lugares
e funções em seus regimes de dizibilidade e inteligibilidade policiais22.
Há um punhado de dizeres sendo colhidos em todos pomares. Dizeres
a partir da própria ausência, nascentes de todas as lágrimas. Glândulas,
águas, enchentes. Subjetivação política como modo de produção de uma
instância e de uma capacidade de enunciação que antes não eram iden-
tificáveis em um dado campo da experiência23. Cílios em dissolução, lá-
bios que se abrem balbuciando um querer não-todo e um cão andaluz
desenterrando os ossos dos desaparecidos. Nomes.

20 LACLAU (2011).
21 HONNET (2007).
22 RANCIÈRE (2009).
23 RANCIÈRE (1996).

62
RESTOS DE HORROR

Quem sabe a consideração de Freud sobre o gramofone e a máqui-


na fotográfica ainda comporte um gesto de generosidade com o futuro24.
Freud neste trecho aponta que essas duas invenções técnicas da civili-
zação guardariam uma relação especial com a memória. Num país como
o Brasil, cujo esquecimento é política de governo, talvez inscrever algo
da memória no laço, recolher os restos, as ruínas, e fazer delas um con-
junto de atos de significação, seja uma forma de tomar parte no impos-
sível da civilização. E, nesse gesto, ir em direção a uma dinâmica, talvez,
menos implosiva e mais solidária.
Diante do horror que se escancara no Outro e em nós, é preciso
operar com agulhas precisas para desativar bombas25. É preciso explodir
uma língua nacional, através dela. Há que se dizer disso tudo de ou-
tra forma. Resgatar palavras esquecidas nos dicionários e conjugá-las
com outras. É preciso uma política de reaproximação não induzida
por algoritmos e sistemas de dados. É preciso reduzir a distância entre
as hierarquias. Inventar proporções, posições. Insistir na palavra como
modo de ousar traçar um dizer sobre o absurdo que é atravessar a mor-
te em vida. Fazer do texto um convite à insaciedade. Um convite como
franco reconhecimento de que o que iguala qualquer um a qualquer ou-
tro é o nosso destino em comum, na diferença. Há que se velar a morte,
mesmo a mais cotidiana. Bordeja-la com significantes em seus mínimos
eventos: a partida de um grande amor ou a perda de um instante preciso
e raro. É preciso tentar dizer. Esboçar uma ideia apesar de sua insufici-
ência axiomática. Há que se encarar o borrão estranho ante ao espelho:
opacidade íntima. Em cada estômago retraído pelos últimos eventos
nacionais: um turbilhão de palavras, imagens e sons desejam ser cria-
dos. É preciso reinscrever a filiação como a disposição de vozes e textos
ao longo da história. Corpo palavreado por uma musicalidade errante.
Escrever, talvez, como modo privilegiado de decantar palavras e esboçar
uma convocação singular para habitar lacunas. Escrever, ainda. Escrever
como exercício trágico e em perda26 de arriscar dizer o impossível.

24 FREUD (1930/2010).
25 ANDRÉ DE SOUZA (2013).
26 VORSATZ (2013).

63
RESTOS DE HORROR

Escrever, para que os rascunhos de um futuro por vir sejam esses objetos
perdidos que nos colocam em causa por um outro laço social.

Referências

ANDRÉ DE SOUZA, E. L.. Agulhas para desativar bombas. POLÊM!CA, [S.l.], v.


12, n. 3, p. 385-396, 2013.
BETTS, J. A pulsão escópica na contemporaneidade. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, (32), p. 49-65, 2007.
BUTLER, J. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
CESARINO, L. Pós-Verdade e a Crise do Sistema de Peritos: uma explicação
cibernética. Ilha–Revista de Antropologia, 23(1), p. 73-96, 2021.
DUNKER, C. I. L. A hipótese depressiva. In: SAFATLE, V.; SILVA JR., N. d.;
DUNKER, C. I. L. (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento
psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, p. 177-212, 2021.
FRANCK, G. The economy of attention. Journal of sociology, 55(1), p. 8-19,
2019.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ___. Psicologia das
massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia
das Letras, p. 13-113, 2011.
______. O mal-estar na civilização (1930). In: ___. O mal-estar na civilização,
novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936). São Paulo:
Companhia das Letras, (versão e-book), 2010.
______. A transitoriedade (1916). In: ___. Introdução ao narcisismo, ensaios
de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das
Letras, p.247-252, 2010.
HONNETH, A. Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da
filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007.
LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

64
RESTOS DE HORROR

______. A agressividade em psicanálise (1948). Em Escritos. Rio de Janeiro:


Zahar, 1998.
LACLAU, E. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
NASSAR, R. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
OLIVEIRA, E. A. de. A ruína e a força histórico-destrutiva dos fragmentos em
Walter Benjamin. Cadernos Walter Benjamin, 9(), 28-39, 2012.
PINTO NETO, M. Derivacivilização: o corpo na era da aceleração. Lugar
Comum, (1), pp. 112-131, 2017.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo:
Editora 34, 2009.
______. O desentendimento–política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das letras,
1995.
SAFATLE, V. Bem Vindo ao Estado Suicidário [internet]. [acesso em 2021 Set
14]. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/23, s/d.
SILVA, D. P. da; PESTANA, H.; ANDREONI, L.; FERRETI, M.; FOGAÇA, M.;
SENHORINI, M.; SILVA JR., N. da; BEER, P.; AMBRA, P. Matrizes psicológicas
da episteme neoliberal: análise do conceito de liberdade. In: SAFATLE, V.;
SILVA JR., N. d.; DUNKER, C. I. L. (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do
sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, p. 77-124, 2021.
SOUSA, L. M. A. e; RUIZ, M. A. A.; ALMEIDA, J. F. de; BASTOS, G. G. Memória
em funcionamento no discurso: o futuro em exposição. Cadernos de Estudos
Linguísticos, Campinas, SP, v. 62, n. 00, p. e020002, 2020.
SRNICEK, N. Platform capitalism. Malden: Polity Press, 2016.
VAN ZOONEN, L. I-Pistemology: Changing truth claims in popular and political
culture. European Journal of Communication, 27(1), p. 56-67, 2012
VORSATZ, I. Antígona e a ética trágica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
2013.

65
RESTOS DE HORROR

A QUAL RAZÃO RECORRER QUANDO SE


TRATA DO HORROR?

Maria Maia Brasil

“pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.”


Roland Barthes

Mote

“O trabalho da palavra, da memória e do esquecimento é um


dos pontos centrais dos estudos discursivos de Pêcheux e psicanalíti-
cos de Freud e Lacan. Em nosso momento histórico, o real, o inominá-
vel, o luto, as diversas formas de ruptura, o trauma e o mortífero pedem
que o campo da palavra possa circunscrever, delimitar e marcar o horror.
Como dizia Moustapha Safouan, ‘entre dois sujeitos, não há senão a pa-
lavra ou a morte, a salvação ou a lápide. Colocar a violência no princípio
disso que chamamos de ‘condição humana’, sem levar em conta o que
ela comporta de destruição da palavra, não leva a lugar algum’. O mo-
mento em que vivemos parece esgarçar as formas de laço social e de
constituição, formulação e circulação dos discursos. Alarga-se, assim
o campo da morte.”

67
RESTOS DE HORROR

Como me situo

Ao pensar sobre este texto, me coloco de início uma questão: como


dizer o horror? Ele me paralisa no desconforto que causa e ao mesmo
tempo me coloca para pensar. Escrever sobre ele impõe a construção
de uma borda como forma de inscrevê-lo em alguma referência, em al-
guma lógica. Por outro lado, quando faço esse movimento, acabo tam-
bém criando um conforto que ocupa um lugar ambíguo. Um conforto
porque acomoda o indizível em algum lugar que, ao confortar, também
impede alguma outra ação possível e urgente. Eis o paradoxo: diante
da angústia, devo criar um ato; ao criar, no ato de escrever e de elaborar,
inscrevo e pacifico o que estava fora de lugar. Estabilizo o horror?
Deve-se nomear o horror na medida em que, ao nomeá-lo, possi-
bilito sua repetição? “Ao denunciá-lo, eu o reforço – por normatizá-lo,
ou seja, aperfeiçoá-lo” (LACAN, 2003, p. 517). Ou é pela repetição e ela-
boração da repetição que ele perde força? Talvez o mais importante seja
permanecer ativo diante desse não saber.
Aposto então que é na elaboração do que se apresenta como
o indizível de um horror que posso avançar simbolicamente naquilo
que costumamos chamar de real. O encontro com o real é o confronto
com a impotência. Impotência que, então, me inspira a escrever, dese-
jando expandir um micromilímetro que seja esse universo de represen-
tações e não representações que nos rodeia e que atualmente nos mal-
trata com sua lógica perversa.

O discurso capitalista: uma lógica perversa?

A qual lógica perversa me refiro? Refiro-me à perversão do dis-


curso capitalista e seus efeitos na cultura e no laço social. E é o próprio
Lacan quem opera uma outra versão do discurso do mestre que desem-
boca na excrecência que é o discurso capitalista. Lacan subverte a ordem
na série de letras e índices (S1 – S2 – a – $) que usa para identificar seus
quatro discursos – mestre, universitário, histérico e do analista –, pas-

68
RESTOS DE HORROR

sando o sujeito barrado para o lugar de agente e o S1, significante mestre


ou Um, para o lugar da verdade a partir da matriz do discurso do mestre.
Nessa inversão ele propõe a existência de um quinto discurso, cha-
mado a partir daí de discurso capitalista, que serializa os elementos
de outra forma: $ – S2 – a – S1, além de modificar a direção dos vetores
na relação entre elementos e lugares fixos (agente, Outro, produto e ver-
dade). A leitura de cada discurso começa sempre pelo elemento acima
à direita (o agente).

O discurso é aquilo que faz função de laço social, nos diz Lacan.
Se os vetores indicam o movimento dos elementos pelos lugares fixos,
na fórmula do quinto discurso, os vetores indicativos do movimento
são eliminados e reforçam a ideia de não relação entre as razões.
Então me surge a seguinte pergunta: o discurso capitalista faz laço
social? Diz Lacan (2011, p. 88): “O que distingue o discurso do capitalis-
mo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do sim-
bólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê? Da castra-
ção.” Se há uma rejeição (ou forclusão, significante normalmente usado
por Lacan para traduzir Verwerfung) em todos os campos do simbóli-
co, como pensar a função do laço social desarticulado desse simbólico?
Estaria esse discurso num lugar a mais em relação aos outros quatro e,
ao ser matemizado, mostra seu funcionamento como o avesso de um
recalcado? Ou seria um arremedo de discurso, vacilando entre uma po-

69
RESTOS DE HORROR

sição perversa, psicótica ou de poder, na medida em que o sujeito toma


para si o significante? A pergunta se impõe na medida em que Lacan
fala de forclusão (tipo de negação fundamental identificada no funcio-
namento da estrutura de linguagem da psicose), mas também aponta-
rá para uma posição perversa de um mais gozar como um saber sobre
o outro.
Lacan sugere, em suas meias palavras, que o discurso capitalis-
ta preencheu sua falta com o sujeito criado por Marx: o proletário.
1

Exatamente aquele sujeito que produz a mais valia ou o excedente, para


o gozo a mais do patrão. E uma vez que a castração não se faz presente
nesse discurso, não há barreira ao impossível, o gozo tende a ser desen-
freado e não há relação com o Outro barrado.
Do discurso do mestre, além de Lacan identificá-lo como o avesso
do discurso do analista, ele trabalha a posição de S1 como comandando
S2; e o S2 deve obedecer a esse comando, mas para que isso aconte-
ça é preciso que esse S2 saiba alguma coisa: eis a dialética do senhor
(S1) e do escravo (S2). “O próprio do escravo, como exprimia Hegel, é o
de saber alguma coisa” (LACAN, 1972, p. 9). Essa relação entre esse S1 e
S2 faz a linguagem; sem ela, a linguagem, não haveria discurso do mes-
tre. Somos, portanto, escravos do Simbólico.
Essa linguagem se constitui numa cadeia assim: “(...) eu designo
o S2 não por ser o segundo no tempo, mas por ter um duplo sentido para
que o S1 ocupe seu lugar corretamente. O peso dessa duplicidade de sen-
tido é comum a todo significante.” (LACAN, 1979, p.8). Por aqui temos
o significante no jogo simbólico representando um sujeito para outro
significante. E esse significante é o elemento que estrutura o saber sobre
o mundo de um sujeito falante.
E como fica a questão da linguagem no discurso capitalista que re-
jeita a castração? De que língua se trata?

1 Lacan, em seu texto “Estou falando com as paredes”, indica en passant que o discurso
capitalista não circula exclusivamente nos países reconhecidos por se organizarem sob tal
estrutura socioeconômica...

70
RESTOS DE HORROR

Será preciso retornar um pouco. Escolhi seguir o caminho da fun-


ção do supereu que, por ser o herdeiro do Complexo de Édipo, é também
o efeito da inscrição do sujeito num discurso, numa forma de se apro-
priar de uma língua, numa subjetivação da castração. O que isso quer
dizer? Quer dizer que o sujeito falante toma para si a potência de di-
zer, mas uma potência que esconde o horror do saber sobre a castração;
não se pode dizer tudo porque ao Simbólico falta Um. Resta saber o que
fazer com esse Um que falta.
Esse Um que falta é o fundador da cultura em um contrapon-
to não binário em relação à natureza – não binário no sentido de não
serem complementares. A cultura se funda no laço social, organizando
um modo de gozo entre os seres falantes. Essa organização simbólica
aciona por sua própria constituição aquilo que Freud chamou de mal-
-estar na civilização, isto é, o mal-estar da sexualidade inerente a qual-
quer sujeito falante porque, para falar e viver em comunidade, o humano
precisou abrir mão de um determinado gozo implicado na lei universal
da proibição do incesto.
A constituição do supereu, então, é a prova de que o sujeito pre-
cisou ceder em seu ‘desejo’ por um gozo pleno, ganhando a possibili-
dade da vida entre pares e introjetando duas vertentes dessa instância
reguladora: a da censura crítica e a do imperativo do gozo, isto é, a da
evitação de dor e a da busca pelo gozo, em termos freudianos. A cultura,
pois, para Freud segue essa via de mão dupla, temperada pelo mal-estar
de sua impotência. O supereu exige a satisfação pulsional proibida e ao
mesmo tempo a proíbe de novo como memória. Quanto mais o sujeito
abre mão da sua satisfação pulsional mais libido retorna para o supereu,
exigindo a satisfação e a renúncia da satisfação num movimento de re-
troalimentação. É a junção de Kant com Sade: vontade moral e vontade
de gozo simultaneamente.
Mas se o gozo está proibido, por outro lado a introdução por Lacan
do objeto a, objeto que ele chama de mais gozar, está diretamente rela-
cionado com a barra de interdição do Outro, aquele S1 que, uma vez per-
dido, descompleta o Simbólico, faz do sujeito o falante dividido ($) na in-
completude do Outro e que acede a uma língua metafórica, constituída

71
RESTOS DE HORROR

por uma cadeia de significantes (S2) que não assegura uma significação,
que está sempre derrapando. Fundamos assim um sujeito que balança
(e/ou) entre um lado significante e um lado objeto, um lado que extrai
o gozo na construção de um saber (significante) e um lado que goza
do que o saber não alcança (objeto). Eis aqui apresentados os 4 elemen-
tos que constituem o discurso: S1, S2, a, $. É preciso que um significante
primeiro seja recalcado para fundar a cadeia significante que represen-
tará um sujeito constituído pela queda ou extração do objeto a.
A renúncia ao gozo, esse gozo a mais trazido pelo objeto a, não fica
desalojado ou vagando pelo mundo. Ele alimenta o supereu a pon-
to de Lacan chamá-lo de guloso: “a gulodice do supereu é estrutural”
(LACAN, 2003, p. 528). E para entender esse a mais, Lacan estabeleceu
a analogia com a mais valia de Marx, o excedente apropriado pelo dono
dos meios de produção ou, no caso do sujeito, pela instância do supereu.
A perversão maior que caracteriza o sistema capitalista.
Mas essa perversão está mesmo no fundamento da cultura uma vez
que ela se institui a partir de um assassinato original. Para fugir de uma
lei imperativa e sem freio de um gozar de todos, mata-se o Um para
torná-lo um pai introjetado que passa a regular o gozo. Assim “a subje-
tividade humana é um tipo de inversão perversa da natureza” (ZIZEK,
2016), que será regulada por um supereu, representante da lei, que não
existia na natureza.
Deslocando essa lógica para o discurso do mestre, esse discur-
so enquadra o circuito do supereu na medida em que há uma barreira
de contato entre o sujeito barrado (verdade recalcada do S1) e o objeto a
(produto de um saber). Dá para pensar que essa é uma relação que alicer-
ça a cultura ou a civilização. Outra forma de pensar é que essa barreira
é o que sustenta a ideia da completude estar ligada a um objeto perdido,
portanto impossível. Objeto perdido que molda a fantasia inconsciente
do sujeito, que se desloca buscando uma totalidade impossível.
Na inversão que Lacan faz do discurso do mestre ao capitalista,
a barreira da castração sai de cena e é ativada uma relação antes im-
pedida no discurso do mestre. Qual? A relação entre a e $. E o que isso

72
RESTOS DE HORROR

quer dizer? Se no discurso do mestre essa relação entre a e $ sustenta


uma realidade que é fantasística, no discurso capitalista ela é a própria
realidade sem a intermediação da fantasia. É o negativo da neurose sen-
do positivado. Estamos aqui no circuito da perversão.
O sujeito neoliberal produto desse discurso capitalista surge, en-
tão, de posse do objeto a. Se o mestre pode funcionar como uma bar-
reira, no discurso do capitalista o Capital é um Outro que não possui
a vertente da vontade moral. Ele se relaciona com o outro pela vontade
de gozo, de acúmulo, de um capital financeiro que se multiplica por um
jogo de rentabilidade a mais (um gozo a mais nas bolsas de valores e nos
infinitos tipos de investimento do mercado financeiro) em detrimento
da própria produção tradicional. A vertente moral do capitalismo pas-
sa a ser responsabilidade das igrejas, de preferência neopentecostais,
que reproduzem a lógica do capital: o gozo não pode ser adiado, deve
ser aqui e agora; em todos os cultos a maquininha de cartão é um dado
fundamental: eu te passo a palavra de deus e você me passa o dinheiro,
o a mais.
Um outro braço de sustentação desse discurso capitalista é ofere-
cido pela ciência. Não à toa a busca pela negação da morte é sem limites.
É sem castração. O futuro é o presente porque o que vale é a manuten-
ção artificial desse presente. O envelhecimento deve ser interrompido
ou disfarçado, porque estamos presos no tempo imediato do imperativo:
Goze! E para isso, todas as versões fictícias possíveis do objeto a são ofe-
recidas no mercado. A questão é consumir e ser consumado o jogo.
Para que leis trabalhistas que regulamentem as relações entre pa-
trões e empregados? Torno-me autônomo (ou autômato?), empreende-
dor, sem dar conta que o lugar do patrão está lá, mas de um modo dissi-
mulado, manejando a vontade de gozo.
Ao manipular a presença do objeto a, tapando a falta que move,
a tendência é pensar que o desejo tende a acabar e a nos calar. Como
lidar com os algoritmos que funcionam como um simulacro de língua/
linguagem? Robôs que escrevem e que falam...

73
RESTOS DE HORROR

Placebo de língua: uma língua perversa?

É comum ouvir, seguindo a ideologia de políticos liberais repre-


sentantes daquilo que seria a res pública, que não há saída fora do ca-
pitalismo (FISHER, 2016, p.10). Na garantia de que só há uma opção
para o encaminhamento dos conflitos e convivência entre os homens,
mesmo que esse caminho não seja o melhor (o capitalismo), é preciso
o suporte de uma língua quase literal, montada num binarismo mani-
queísta: ou é isso ou é aquilo. Uma língua infantiloide. É bom lembrar
como atualmente se faz um diagnóstico psiquiátrico: basta preencher
um formulário, ticando os sintomas com que o paciente se identifica.
A partir daí faz-se uma contagem dos elementos assinalados para atingir
um diagnóstico. O sujeito falante e desejante foi tirado de cena porque
sua capacidade de e para a linguagem não importa. Basta assinalar isto
ou aquilo. Como chegamos a esse ponto?
Alain Badiou (2016) tenta explicar essa dinâmica, numa confe-
rência, realizada após a vitória de d. trump nas eleições presidenciais
dos E.U.A. do Norte, em 2016. Para ele a vitória do capitalismo globali-
zado é histórica e é um fato. Isso se deve ao fracasso das experiências
socialistas de Estado e, também, por causa do fracasso da visão coletiva
da economia e das leis sociais. Esses dois pontos estão inversamente
ligados às ideias liberais quanto à propriedade privada e todas as suas
consequências; e às jovens ideias comunistas, que põem em jogo o fim
das desigualdades.
Badiou afirma que essa dicotomia durou ativa entre o século
XIX até os anos 80, quando aparentemente a escolha se desfez. Cito
(BADIOU, 2016): “penso que o que define nosso tempo é a tentativa
de impor à humanidade (e isso à escala do próprio mundo) a convicção
de que só há um caminho excelente, mas apenas dizendo que não há ou-
tra solução, não há outro caminho.” Essa ideia religiosa cria, como efeito
de discurso, um sujeito que circula antes de tudo como um consumidor
e/ou um negociante. Mas nem todos tem direito ao consumo. No século
XXI chegamos ao absurdo de concentrar nas mãos de 264 pessoas a ri-
queza equivalente à de 3 bilhões de outras pessoas.

74
RESTOS DE HORROR

Em termos de horizonte de linguagem, ela (a linguagem) estrutura


uma língua submetida a essa lógica e onde as diferenças são imaginárias
no sentido de que servem apenas para criar uma falsa oposição, uma vez
que se mantém em um mesmo horizonte político e socioeconômico.
Qual a diferença entre um democrata e um republicano norte-ameri-
canos, por exemplo? Pouca ou quase nenhuma em termos de propostas
para intervenção nos problemas fundamentais e estruturais da socie-
dade. Eles são completamente diferentes desde que mantenham tudo
como está.
Concordando com Badiou, ele pontua com precisão sobre esse
horizonte em que as diferenças se colocam de modo imaginário para
não se correr o risco de uma ruptura, para não se correr o risco do sur-
gimento de um significante novo: “E o resultado tem sido a escolha
legal de uma nova forma de vulgaridade política e algo subjetivamente
violento nas propostas políticas.” (BADIOU, 2016).
Essa versão de língua perversa, então, sustenta uma ‘nova’ política
a partir de um pressuposto: eu sei que não posso dizer tudo, mas mesmo
assim... eu não desisto e digo o tudo, incluindo o seu oposto também.
Essa linguagem não tem a estrutura de uma linguagem dialética. Ela di-
vide o outro em um não saber que o paralisa e mortifica. Uma língua
paradoxalmente funcionando fora do laço social.
Esse funcionamento paradoxal mostra a posição ambígua de al-
gumas figuras políticas que representam pelo menos uma faceta desse
discurso capitalista: trump é um, bolsonaro pode ser outro. São figuras
que encarnam, presentificam um paradoxo ou uma contradição básicos:
a princípio se colocam dentro do jogo democrático porque eleitos de-
mocraticamente, mas funcionam ao estilo fascista totalitário, escanca-
rando um recalcado da democracia. E esse paradoxo está na construção
da língua deles que acaba por nos incluir também. Talvez essa seja a pos-
sibilidade de uma saída: trabalhar o resto como possibilidade de laço.
Esses dois citados são figuras que propagam mensagens racis-
tas, preconceituosas, violentas e desagregadoras, alegando a liberdade
de expressão, além de se apresentarem como portadores de uma certa

75
RESTOS DE HORROR

novidade, mesmo sendo aquilo que há de mais antigo e nefasto no do-


mínio humano.
Qual a tolerância possível com a intolerância? A intolerância?
Bérengère Viennot, uma tradutora francesa, lançou um livro in-
titulado “A língua de trump”. Ela conta que precisou rever seus parâ-
metros e referências como tradutora de textos e discursos de políticos
depois do advento trump. Diz ela (2020, p.12): “A língua de trump, maté-
ria-prima do meu trabalho, revelou-se pertencer a um universo à parte,
ao mesmo tempo causa e efeito do advento de uma nova América”.
É interessante perceber que uma língua aparentemente simples
e pobre traz questões sobre como interpretá-la, como inseri-la num certo
discurso que ressoe algum efeito de sentido, que convoque o outro a al-
gum trabalho de subjetivação e não apenas ressoe afetos, como quando
disse em relação a Carly Fiorina, republicana que tentou disputar a vaga
para eleição presidencial: “Olhem a cara dela. Quem é que votaria a fa-
vor disso? Dá para imaginar um negócio desses, a cara do nosso próximo
presidente?” (VIENNOT, 2020, p. 19). Não muito distante, já ouvimos
pelas bandas de cá: “Não estupro porque é feia”.
A autora insiste num ponto: a repetição. Repetição de infinitas pa-
lavras, de preferência as mais genéricas, até que se esvaziem para que se-
jam preenchidas garantindo um sentido unívoco. Tanto lá nos E.U.A.
do Norte como no Brasil, ouvimos, por exemplo, a repetição do signi-
ficante ‘comunista’ e seus derivados – ameaça comunista, invasão co-
munista – até que esse significante se congele sem dialetização numa
significação que abarque todos os inimigos dessa língua literal montada
em reflexões binárias básicas e brutais. Eis a base da língua placebo.
Na Alemanha nazista, era preciso não só eleger o inimigo da vez
como também insistir numa grandiosidade que justificasse a disparida-
de subjetiva entre alemães e judeus alemães. O significante ‘histórico’
– o mesmo usado por Badiou – passa a circular como um significante de-
terminante da posição dos alemães diante do outro excluído da narrati-
va. Victor Klemplerer, filólogo judeu alemão que viveu o horror do nazis-
mo, nos conta a histórica história sobre a linguagem do Terceiro Reich:

76
RESTOS DE HORROR

Aqui aparece a palavra que o nacional-socialismo usou


do início ao fim da maneira mais pródiga. Ele se consi-
derava tão importante, sentia-se tão seguro da pereni-
dade de suas instituições – ou melhor, desejava mostrar
aos outros que estava tão seguro – que qualquer insigni-
ficância que servisse aos propósitos do regime passava
a ser um ato ‘histórico’. Qualquer discurso que o Führer
proferisse tornava-se ‘histórico’, mesmo que ele repetisse
cem vezes a mesma coisa. Qualquer encontro do Führer
com o Duce era ‘histórico’, mesmo que não mudasse
nada. Eram ‘históricas’ a vitória de um automóvel de cor-
rida e a inauguração de uma estrada. ‘Histórica’ era a fes-
ta de ação de graças por cada colheita, era cada reunião
do Parlamento ou do partido. ‘Histórico’ era cada feria-
do, fosse qual fosse o motivo. E, como o Terceiro Reich
só conhecia feriados – pois ele sofria de uma letal falta
de um cotidiano normal, da mesma forma que o corpo
pode ficar mortalmente doente pelo pouco uso de sal –,
ele considerava ‘históricos todos os dias.” (KLEMPERER,
2009, posição 1375).

Interessante notar o curto-circuito na palavra ‘histórico’, na me-


dida em que essa palavra aponta justamente para todo um movimento
dialético que inclui uma memória e as contradições inerentes à relação
entre o Imaginário, o Simbólico e o Real. Vide o uso feito por Badiou
para explicar o acontecimento Trump. No uso acima citado o que se lê
é justamente o aprisionamento desse movimento pela repetição numa
tentativa de rejeitar a contradição: história ou farsa?
O agora ex-presidente trump, num determinado momento em que
gritava sobre muros etc., se referiu aos latinos como insetos pestilentos,
temendo (será?) que eles infestassem seu país. Por que esse sentido e os
outros aqui citados colam mesmo causando o horror em quem ouve?
Porque ele explicita um sentido que deveria estar recalcado, mostrando
o de que se trata: a força de um gozo sobre o outro que não se apresenta,
para ele, trump, como um sujeito humano, mas como um corpo a ser
tiranizado por ser um espelho que reflete uma diferença na (in)comple-

77
RESTOS DE HORROR

tude narcísica. A imagem especular com o latino equivoca o que deveria


se apresentar como igual; introduz alguma diferença, introduz um não
saber insuportável que, por isso, deve ser eliminado uma vez que o per-
verso sabe e o psicótico tem a certeza.
A fala de trump aponta para um desejo de morte ao outro, por-
que esse outro retorna, para ele, como imagem de um fracasso do ideal
do eu, como lugar de castração. Como assim um latino poderia compar-
tilhar uma humanidade branca? Ou há um engano na humanidade ou há
um engano no latino ou há um engano no espelho! Certamente o enga-
no não é dele... O engano de que se trata é que a própria materialização
de uma língua se dá por uma contradição interna a ela; eleger um duplo
antagônico, um outro externo para identificar essa contradição no lado
‘de fora’ e não precisar se deparar com ela é uma forma de defesa contra
o instável e inefável.
“E daí? Quer que eu faça o quê?”. Esse foi o comentário de bolso-
naro, em 20 de abril de 2020, a partir da informação de que havia mais
de cinco mil mortos no país pela covid. “Não sou coveiro” foi sua respos-
ta diante da mesma indagação sobre os mortos, mas quando ainda eram
‘apenas’ aproximadamente 2.500. Qual o tipo de subjetividade em jogo
que consegue formular essas falas? Essas frases são a expressão de um
sujeito que literaliza a vida como uma mera oposição à morte. Num certo
sentido é disso mesmo que se trata. Por outro lado, fica revelado que bol-
sonaro não se divide ou se subjetiva diante da ameaça da finitude. A cas-
tração está na outro, não nele. E a insistência do outro em revelar que a
falta existe e insiste o irrita demasiadamente. Ele divide o outro assusta-
do que, além de ter que lidar com os dados de morte de uma pandemia,
tem que superar a não inscrição discursiva do presidente.
Mas em última instância não cabe ao presidente de uma república
o gerenciamento de uma política de saúde no meio de uma pandemia?
Não necessariamente, se o presidente se chamar bolsonaro, pois a forma
de enfrentamento de um vírus deve ser feita pela via da macheza: “va-
mos ter que enfrentá-lo, mas como homem, porra. Não como um mole-
que”, continua ele. Ele não tem nada a fazer porque ele não tem nenhu-
ma implicação, subjetiva ou do próprio cargo, na questão das mortes.

78
RESTOS DE HORROR

A pobreza dessa fala não aponta só para uma suposta dificuldade cogni-
tiva no trato com o complexo chamado linguagem. Aponta também para
a posição de um sujeito não dialético que se aproxima da lógica de fun-
cionamento da horda primeva. Sua concretude tem o disfarce de uma
fra(n)queza que angaria seguidores identificados com esse suposto tra-
ço de humanidade. A questão é que pensar em franqueza como oposto
de mentira após a invenção do inconsciente fica complicado... Não há
‘não’ no inconsciente. Há ‘não’ no simbólico. Falar ou escrever signifi-
ca ajeitar essa impossibilidade de transferência e transcrição imediata
de um registro para o outro. “Não se pode falar de uma língua senão
em outra língua” (LACAN, 1979, p.20). De um ao outro, surge o enga-
no do significante. Engano rechaçado no placebo de língua pela crença
na existência de uma única franqueza, de uma única verdade. Uma lín-
gua que tenta nomear a totalidade do real.
O líder não mente porque suas palavras não têm avesso. Elas são.
E se a realidade mostrar outra coisa é porque a realidade está errada.
O real que se acomode à realidade. “O que o presidente diz é cem por
cento verdadeiro”, disse o chefe de gabinete de trump. E diz Klemperer:

Em abril de 1945 o mais cego dos cegos sabia que tudo


estava perdido. Na aldeia na Baviera, para onde tínhamos
conseguido fugir, todos rogavam pragas contra Hitler, e a
corrente desordenada dos soldados em fuga não tinha
fim. Porém, sempre aparecia alguém entre essas pes-
soas cansadas de guerra, decepcionadas e amarguradas
que, mesmo assim, com os olhos arregalados e os lábios
cheios de fé, assegurava que em 20 de abril, aniversário
de Hitler, aconteceria ‘a grande virada’, a grande ofensiva
da vitória alemã. O Führer tinha dito, e o Führer não men-
tia. Acreditava-se mais nele do que em propostas ajuiza-
das. Como se pode explicar esse milagre? (KLEMPERER,
2009, posição 1591)

A língua de bolsonaro e de trump não é exterior a eles. É a língua


possível a eles e que valida suas respectivas posições discursivas através

79
RESTOS DE HORROR

de um Outro cuja barra é um fetiche: está lá como um véu a camuflar


a diferença e, por extensão, a falta. Uma língua que mostra o fracasso
do laço social no discurso capitalista.

“É mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capita-


lismo”: humor, ironia e chiste

O real é onde a simbolização falha. E o acontecimento como um real


que irrompe diante de um não saber demanda uma resposta, uma res-
posta criativa, quiçá inédita, original. Já nos dizia Godard que a cultura
é a norma, a arte é a exceção. O caminho a se tomar, então, parece ser o
da criação; em direção a um significante novo, já nos orientava Lacan.
Simbolicamente não estamos dando conta do Real; no horror
do tempo presente, estamos precisando inventar, colocar a língua para
funcionar em toda sua (im)potência. Fala Lacan:

Por que não inventaríamos um significante novo?


Um significante, por exemplo, que não tivesse, como
o real, nenhuma espécie de sentido? Não se sabe, se-
ria talvez fecundo. Seria, talvez, um meio de sideração
em todo caso. Não é que não se tente. É mesmo nisso
que consiste o chiste. Consiste em servir-se de uma pala-
vra para outro uso que não aquele para o qual ela é feita;
dobramo-la um pouco, e é nessa dobradura que reside
seu efeito operatório. (LACAN, 1979, p.21)

Algo inédito é possível. O chiste como esse significante novo


precisa do reconhecimento do Outro, do código, ao mesmo tempo
que o desestabiliza. Não precisa funcionar como um neologismo no ní-
vel do significante linguístico, podendo apenas brincar com sua homo-
fonia ou homonímia. O importante é que o chiste alarga o código e põe
às claras e em jogo a estrutura da linguagem. “O pouco sentido da tira-
da espirituosa deve ser acolhido como um passo-de-sentido” (LACAN,
1999, p. 104).

80
RESTOS DE HORROR

“É tanto militar roubando como nunca civil”2 foi um meme que cir-
culou nas redes sociais e que brinca com os significantes militar e civil
no contexto da CPI da Covid. Diante das suspeitas de desvio de dinheiro
para o gerenciamento da pandemia, muitos militares estão sendo inves-
tigados, gerando inclusive a reação do alto comando das forças armadas
através de um comunicado ameaçador. Essa partição militar x civil é re-
forçada pela posição dos militares se referindo como um grupo à par-
te, com direito, por exemplo, a leis exclusivas. O meme joga com essa
oposição, falando do lugar do civil que vê (se viu) aquilo que normal-
mente se esconde por trás dos muros proibidos aos não militares. Joga
ainda com os valores da honestidade, da anticorrupção, que são sentidos
divulgados pelos militares como um traço distintivo deles em relação
aos políticos e governantes do período democrático.
Terry Eagleton, em seu livro “Humor”, trabalha algumas teorias
do humor, entre elas a teoria do alívio. Esse alívio faz par com a pró-
pria definição de chiste dada por Freud: jogos chistosos que se utilizam
dos próprios recursos da linguagem, suscitando uma satisfação particu-
lar na vida psíquica do sujeito. O inconsciente brinca com as palavras
e na formação de uma palavra chistosa, engana a censura e libera um de-
sejo recalcado, promovendo uma sensação de prazer.
“E daí? Não sou escultor”, diz brasileiro sobre incêndio na estátua
de Borba Gato”, publicou o site de humor Sensacionalista. A fala original
(a de bolsonaro) que causa horror e provoca anestesia como defesa ga-
nha a possibilidade de ser repensada quando transformada numa piada,
num enunciado palatável que chega ao emissor remodelada, mas ainda
com força de verdade.
Do “E daí? Não sou coveiro” a ‘E daí? Não sou escultor” desvela-se
o absurdo contido na frase original; o tal brasileiro não tem nada a ver
com o símbolo do Borba Gato que ocupa um lugar paradigmático com os
5 mil mortos por covid à época do comentário esdrúxulo. Os mortos ci-
tados por bolsonaro são mesmo o equivalente a uma estátua de pedra,
vivos ou incendiados fazem pouca diferença. O coveiro cava a terra en-
2 Há outra versão desse chiste que mantém a mesma estrutura: “Dúvida do dia: é possível
generalizar a corrupção dos militares?”.

81
RESTOS DE HORROR

quanto o escultor cava a pedra (ou outro material qualquer). No caso


chistoso, bolsonaro faz par com o lugar de um escultor que cava buraco
na terra. As relações de similitude e de diferença são postas em confron-
to para a paródia espelhar um lado oculto de uma fala desastrada, para
explicitar a enunciação de um desejo recalcado contido no enunciado
original.
É preciso ficar claro que essa é uma interpretação que só faz sen-
tido para quem trabalha no campo da linguagem dialética, pois, para
os falantes da língua placebo, não há nada oculto por trás de uma sim-
ples fra(n)queza. O poder do chiste aqui é justamente conseguir criar
uma dobra dialetizável onde só há, a princípio, pedra. O chiste esculpe
a pedra bruta.
“Brasil se surpreende ao saber que bolsonaro está com dificulda-
de para fazer merda”, também postado pelo site Sensacionalista. O jogo
de dupla mensagem do significante ‘merda’ causa o riso e publiciza
um determinado estado de saúde de ordem fisiológica que é confronta-
do com a expressão metafórica ‘fazer merda’, significando fazer besteira,
bobagem. O chiste cria a tal dobradura do sentido, desarmando o inter-
locutor – e o Outro –, fazendo aparecer uma dupla versão que autoriza
o riso daquilo que deveria suscitar uma posição de seriedade, nos liber-
tando das determinações do sentido previsto e comum ao quebrar a ex-
pectativa do ouvinte porque está contida no Código.
A riqueza desse jogo é o funcionamento a três: o sujeito que dirige
uma piada a um outro, piada que só surtirá efeito se for chancelada pelo
Outro. O Outro como instância de reconhecimento de uma meia verdade
embutida nas relações significantes. O caminho do jogo da linguagem
é complexo e se estrutura a partir de deslocamentos e condensações,
ultrapassando a relação especular da língua imaginária e consistente
que chamei de placebo de língua.
Na língua placebo, por exemplo, a condensação funcionará de ou-
tro modo nada cômico. Segue um exemplo tirado do campo semântico
nazista:

82
RESTOS DE HORROR

SA significava Sturmabteilung [divisão de assalto] e SS


– Schutzstaffel [esqudrão de proteção], a guarda de eli-
te ou guarda pretoriana de Hitler – tornaram-se abre-
viaturas impregnadas de tanta prepotência que dei-
xaram de representar siglas. Passaram a ser palavras
com sentido próprio. Seu significado original desapare-
ceu (KLEPERER, 2009, posição 1862)

No texto sobre o humor, Freud afirma que “o humor não é resigna-


do, mas rebelde. Significa não apenas o triunfo do eu, mas também o do
princípio do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das cir-
cunstâncias reais” (FREUD, p. 191). No diálogo de uma tirinha, lemos:
“Tem visto alguma série?, pergunta um personagem; ao que o outro res-
ponde: Uma série de desgraças”. Diferentemente do chiste, Freud diz que
o humor funciona como uma forma de marcar a invulnerabilidade do eu,
recusando-se a se sentir atacado pelas circunstâncias negativas impos-
tas pela realidade. Como modo de resistir, o sujeito aproveita o contexto
para extrair dele graça ou prazer, demonstrando uma superioridade.
No caso da série de desgraças, o gatilho é o deslocamento do sig-
nificante ‘série’ para restabelecer a ligação com as desgraças do mundo.
Ao mesmo tempo em que aproxima as supostas séries de ficção à ficção
que chamamos de realidade. Essa junção oferece uma outra perspecti-
va da realidade vivida, inserindo-a num absurdo a princípio destinado
exclusivamente às tramas novelescas. Essa manobra coloca o persona-
gem que está testemunhando a série de desgraças num patamar acima
dos mortais que se limitam à serie de canais televisivos.
Assim, para Freud “um chiste é, portanto, a contribuição feita
ao cômico pelo inconsciente. Exatamente do mesmo modo, o humor seria
a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu.” E acrescen-
ta: “(n)a atitude humorística, o supereu está realmente repudiando a re-
alidade e servindo a uma ilusão, (...) e sentimos que ele é especialmente
liberador e enobrecedor” (FREUD, 1927, p. 194). Podemos ver a distinção
entre a possibilidade de gozar de uma situação dramática, abrindo es-
paço para o sujeito redimensionar aquilo que se apresenta a princípio

83
RESTOS DE HORROR

como sem sentido e uma mesma situação lida sem a intervenção de um


supereu condescendente com o eu em relação a uma pequena que seja
produção de prazer:

No domingo aconteceu uma cena horrorosa aqui em casa


com o casal K, que tivemos que convidar para um café.
(...) Entretanto, no domingo ele vem e começa a dizer
que votaria ‘sim’ no plebiscito, com ‘dor no coração’,
assim como a Associação Central dos Cidadãos Judeus.
Sua mulher acrescenta que o sistema de Weimar se re-
velou impossível, de modo que era necessário ‘manter
o realismo’. Perdi o controle. (...) A Sra. K ainda reforçou
que o Führer – ela disse efetivamente ‘o Führer – era uma
personalidade genial, que era impossível não reconhecer
sua enorme eficiência...” (KLEMPERER, 2009, posição
1202).

Importante esclarecer que o plebiscito citado era para referendar


a política do Führer e da Einheitsliste [lista única] para o Reischstag [par-
lamento]. O amigo de Victor Klemperer também judeu podia escolher o
‘não’, mas preferiu o ‘sim’ ao Führer com dor no coração... Essa passa-
gem remete a cenas atuais expostas nas redes sociais com argumentos
racionais desse tipo: “muito preocupante essa polarização, serei obriga-
do a optar pelo...” fascismo. O quadrinho abaixo é autoexplicativo.

84
RESTOS DE HORROR

Para finalizar

A potência do riso e do humor é uma saída para restabelecer ou re-


dimensionar a relação entre palavra e silêncio ou palavra e violência
imperativas no discurso capitalista. O real não é um obstáculo exter-
no, sendo assim é na e pela linguagem que podemos sair desse impasse,
para provavelmente cair em outro. Humor e chiste são acontecimentos
da linguagem que podem fazer aparecer novos modos de usar e de pen-
sar a vida. É preciso manter a fidelidade ao desejo e não ceder para o hor-
ror do sentido único. A ética de que se trata aqui é a do desejo dialetizá-
vel em oposição ao imperativo do gozo: “como não sou um débil mental
senão relativamente – quer dizer que eu sou como todo mundo – é talvez
porque uma pequena luz me terá ocorrido” (LACAN, 1979, p.23).

Referências

BADIOU, A. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Ed. Relume-Dumará,


1995.
_____. “Foi durante o horror de uma profunda noite”. Conferência dadana
UCLA e publicada pela Revista Punkto, em 15/11/2016, www.revistapunkto.
com/2016/11/foi-durante-o-horror-de-uma-profunda.html
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Ed. Cultrix, s/ data.
EAGLETON, T. Humor. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2020.
FISHER, M. Realismo capitalista. Buenos Aires: Caja Negra Ed., 2018.
FREUD, S. “O chiste e sua relação com o inconsciente” (1905). In: ___. ESB, vol.
VIII. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1977.
_____. “O humor” (1927). In: ___. ESB, vol. XXI. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1977.
KLEMPERER, V. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Ed.
Contraponto, 2009.
LACAN, J. Du discours psychanalytique. Discurso de Jacques Lacan na
Universidade de Milão, em 12 de maio de 1972. Disponível em https://ecole-
lacanienne.net

85
RESTOS DE HORROR

_____. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2011.
_____. O Seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1999.
_____. “Televisão”. In:___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
_____. “Vers um signifiant nouveau”. In: Ornicar?, Paris: Edité par Lyse, nº
17/18, 1979.
VIENNOT, B. A língua de Trump. Belo Horizonte, Veneza: Ed. Âyiné, 2020.
ZIZEK, S. “Zizek critica o Real de Jacques-Alain Miller”, 2016, vídeo
disponível no YouTube.

86
LUTORATURA

Thales de Medeiros Ribeiro

Ensaio fotográfico Ausências, de Gustavo Germano (2012).

O luto impossível convoca um ato de poesia.


Desde a modernidade, assistimos à escalada vertiginosa de uma
nova postura em relação à morte. Seu traço mais característico é a de-
saparição radical dos rituais e dos signos do luto. O psicanalista Jean

87
RESTOS DE HORROR

Allouch chamou de morte seca o caráter de perda total que reveste a re-
cente figura da morte e do luto. Diante dela, só um ato pode encetar
a subjetivação de uma perda; só esse ato parece suplementar a disso-
lução dos antigos rituais e do grito coletivo contra a morte (ALLOUCH,
[1995] 2004, 2007).
Sobrevoando as experiências de exceção brasileiras, a colonização,
a escravidão, a ditadura e a era das chacinas formam a trágica e arcaica
genealogia de um processo que se amplia na contemporaneidade: o im-
pedimento de enterrar nossos mortos, a impossibilidade de transmitir
qualquer traço que marque a perda. A privação real ao mínimo luto atu-
aliza a catástrofe e os acontecimentos traumáticos na temporalidade
indefinida do presente, lançando-nos no abismo de um tempo vazio,
melancólico.
Se essas experiências históricas barram o trabalho de simboliza-
ção da perda, a escrita poética parece historicizar, em ato, a zona de in-
distinção entre luto e melancolia. Trata-se de um luto, contanto que se
releve seu traço inelaborável: um luto interminável, infinito, impossí-
vel... eterno redobrar do luto como suplemento do luto.

Talvez não sem sepultura, mas sem tumba, sem lugar


determinado, sem monumento, sem lugar de luto loca-
lizável e circunscrito, sem paragem. Sem lugar parado,
sem topos determinável, um luto é recusado. Ou, o que
dá na mesma, ele está prometido sem haver lugar, um lu-
gar determinável, então prometido como um luto inter-
minável, um luto infinito no desafio a todo trabalho, para
além de todo trabalho de luto possível. O único luto pos-
sível é o luto impossível. [...]
Como chorar um luto? Como chorar por não poder fazer
seu luto? Como fazer seu luto do luto? Mas como fazer
diferentemente, já que o luto deve ser finito? E que o luto
do luto se dá por ser infinito? Impossível em sua possibi-
lidade mesma? (DERRIDA, [1997] 2003, p. 97-99).

88
RESTOS DE HORROR

Sem um lugar de circunscrição, não há um momento de concluir:


a privação ao luto nos obriga a fazer um luto do luto. Dentro do cár-
cere, em plena ditadura, o preso político Alex Polari escreveu o poema
“Cemitério de desaparecidos”:

CEMITÉRIO DE DESAPARECIDOS
Fala-se à boca miúda
nos corredores do Cisa,
Cenimar e Doi
que a Vanguarda Popular Celestial
(como eles denominam o local que os
guerrilheiros vão depois de mortos)
está sediada em algum ponto da Restinga de Marambaia.
É lá que os corpos dos militantes presos
são jogados à noite de helicóptero:
descrevem uma parábola no ar
abrem uma fenda branca na espuma
se aprofundam e adormecem
sem vingança possível.
(POLARI, 1978, p. 50)

Entre o silêncio dos corredores murados dos órgãos de informa-


ção do exército e o canto sufocado no cemitério marinho, os corpos
dos guerrilheiros em queda riscam uma parábola no ar, abrindo uma vala
num ponto indefinido da Restinga da Marambaia.
O poema dá forma a uma figura paradigmática do luto na moderni-
dade: o desaparecido. Tal figura parece encarnar os impasses entre luto,
memória, esquecimento e transmissão. A morte é uma forma de desapa-
recimento, que pode trazer consigo a reaparição fantasmática do morto
(JORGE, 2019). Se o morto já tem o estatuto de desaparecido, o sumi-
ço duplicaria a morte. “Viver o desaparecimento torna-se, muitas vezes
[...] pior do que reconhecer a morte e o morto; pior que velar, enterrar
e prantear seu morto; pior do que pôr termo a ausência. Desejo que com-

89
RESTOS DE HORROR

pete e colide com o desejo de ver o desaparecido vivo” (ENDO, 2016, p.


13). Sem um corpo a velar, um luto é recusado: o desaparecido torna-se
inexistente para um corpo social que preferiu desterrar e esquecer seus
mortos, e o esperante, um acorde dissonante à música do mundo.
A fenda branca na espuma – rasgo poético no tecido da língua – é o
rastro dos cadáveres da ditadura que perduram sem luto ou vingança
possíveis. Por isso, a escrita confere o estatuto de mortos-vivos aos afo-
gados, designados pelo poeta como adormecidos. Há, portanto, um fan-
tasma, enigma do luto e convite à interpretação:

[O]s fantasmas são um convite à interpretação que per-


manecerá no indecidível: o fantasma é um morto-vivo,
aquilo que deveria ter permanecido enterrado, mas vol-
tou à luz. Na ausência de uma sepultura simbólica, o mor-
to-vivo é um furo real. E a questão não reside no que
a história significa (a resolução do enigma), mas sim
na construção do enigma. (LEITE; TROCOLI, 2014, p. 11).

Não se situando no puro domínio de uma escrita branca, cada


verso derrama na poesia a tinta fria e cinzenta dos espaços confinados:
lutoratura.
“Cemitério de desaparecidos” integra o livro Inventário de cicatri-
zes, escrito por Alex Polari (1978).1 O pequeno livro reúne poemas feitos
em diferentes cárceres da ditadura civil-militar brasileira. Alguns deles
evadiram clandestinamente os muros da prisão política e circularam
em meios diversos durante a década de 1970, como em manifestações
estudantis e jornais de resistência no Brasil e no exterior.
A matéria do livro é o horror, uma travessia sombria pelas práticas
de violência associadas à repressão. Sua poética testamenta uma dimen-

1 Esse livro de poesia foi lançado pelo Comitê Brasileiro pela Anistia (RJ) em parceria com o
Teatro Ruth Escobar (SP), contando uma possível colaboração da Global Editora. Sua pu-
blicação foi fortemente impulsionada pelas greves de fome pela anistia que ocorriam na-
quela época em diversos presídios do Brasil. Ainda na prisão, o autor escreveu Camarim de
Prisioneiro. O livro foi lançado pela Global Editora logo após a sua libertação, em março de
1980. Já em liberdade, ele escreveu seu terceiro livro: Em busca do tesouro: uma ficção polí-
tica vivida. Essa autobiografia em prosa foi editada pela Codecri em 1982.

90
RESTOS DE HORROR

são invivível da perda, traçando o destino de vidas marcadas, transfor-


madas em cinzas. No curto espaço de 58 páginas, o autor condensa certas
experiências históricas de exceção, como a tortura e o desaparecimento.
Num cenário onde as perdas se acumulam e se precipitam, o traumático
põe em cena a escrita possível de um luto infinito.
Desde a epígrafe, o poeta tece sua dedicatória e todo seu inven-
tário de perdas, nomeando alguns de seus companheiros assassinados.

A todos os companheiros, livres, na clandestinidade,


nas prisões e no exílio.
Especialmente em homenagem de:
Stuart Edgard Angel Jones, assassinado na tortura.
Eduardo Leite, assassinado na tortura.
Juarez Guimarães de Brito, por suicídio, depois de ferido.
Carlos Lamarca, fuzilado, depois de preso.
Yara Iavelberg, morta? assassinada? suicídio?
A TODOS OS NOSSOS MORTOS,
À MORTE
A MEU FILHO THIAGO,
À VIDA
(Entre esses dois extremos
e compromissos
eu vou seguindo)

Como ponto de cessação da impossibilidade de nomear a perda,


Alex Polari constrói um inventário-mausoléu, posicionando-se no liame
entre a vida e a morte. Se a morte inominável transborda em poemas
como “Canção do Pentotal”, “Ossos do ofício” e “Cemitério de desapa-
recidos”, os nomes dos inumados também povoam Inventário de cica-
trizes, constituindo uma dimensão crucial do seu testemunho poéti-
co. Num desses casos, o 15º fragmento de “Recordações do Paraíso”,
por exemplo, o poeta se depara com um nome familiar riscado nas pa-
redes da cela:

91
RESTOS DE HORROR

15
Andar após as refeições
dá esperanças
olhar para os dizeres das paredes
me angustia:
“Celso” “Injustiça” “Desamor”.
Por coincidência esse cara eu conheci
caiu com uma Kombi
morreu aqui em dezembro de 70
durante o sequestro.
(POLARI, 1978, p. 14)

Em outros, os nomes dos mortos são inscritos nos títulos: “Poemas


de 22 de março (Para Gerson e Maurício)”, “A Mario Roberto Santucho” e
“Réquiem para uma Aurora de carne e osso”, caso onde o nome da mili-
tante transita entre o figural e o literal.
Nessa série, encontra-se um de seus poemas mais conhecidos:
“Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)”. Nele, o poeta alude ao episódio
de captura, tortura, execução e ocultação do corpo desse militante polí-
tico. Tendo sido torturado ao seu lado, o autor foi também uma testemu-
nha ocular/auditiva do suplício.
Amarrado à traseira de um carro, o desaparecido foi arrastado
no pátio da Base Aérea do Galeão e forçado a respirar os gases do esca-
pamento, fato que o levou à morte. Uma das suspeitas em torno de seu
desaparecimento é a de que seu corpo teria sido lançado de helicóptero
na escuridão do mar, num ponto indefinido da Restinga da Marambaia.2
Face a um horror que transvaza os cercos de sua vivência particular, o es-
critor cria uma forma (cantável) ao luto impossível:

2 O “Caso Stuart Angel” compôs o 7º dos 8 relatórios preliminares de pesquisa da Comissão


Nacional da Verdade (CNV). Alex Polari prestou depoimento para a CNV no dia 12 de se-
tembro de 2014. Cf. também a carta enviada para a estilista Zuzu Angel em 1972 na qual ele
denuncia o assassinato de Stuart Angel.

92
RESTOS DE HORROR

CANÇÃO PARA “PAULO” (A STUART ANGEL)


Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gazes,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
(POLARI, 1978, p. 36)

93
RESTOS DE HORROR

O título remete a um gênero lírico (a canção), apresentando dois


nomes próprios: “Paulo” (codinome de militância) e Stuart Angel.
Antes do poema, o nome do desaparecido já tinha sido explici-
tamente referido em dois outros momentos: na epígrafe e no 12º frag-
mento de “Recordações do Paraíso”. Neste caso, incapaz de reconhecer
de quem é o grito que escutou à noite, ele faz uma lista dos capturados
e ausentes. O morto fulgura como traço, reaparecendo num ínfimo ins-
tante do presente: “à minha direita/ Stuart já morreu”.

12
Hoje à noite
os gritos foram mais altos
À minha esquerda está o Gaúcho
depois o cara que assobia
Ângela foi retirada ontem
à minha direita
Stuart já morreu
Ronaldo e Juca
estão mais no fim
e no fundo do corredor
o motorista da CTC
que eles quebraram a mão
chora.
De quem serão os gritos de hoje?
(POLARI, 1978, p. 13)

Uma cena de perseguição regula a relação do sujeito com a mor-


te. Essa reaparição espectral não dura mais que o instante de um lapso,
sendo tão exterior quanto uma alucinação. Ao mesmo tempo, esse en-

94
RESTOS DE HORROR

contro deixa entrever que a inexistência do objeto na realidade não tem


uma relação necessária com a experiência do luto.3
À primeira vista, dada a presença desses nomes, os poemas portam
um “efeito de real”. Não por acaso, “Canção para ‘Paulo’” já foi mencio-
nado como uma fonte de informação no Dossiê de mortos e desaparecidos
políticos do Comitê Brasileiro pela Anistia, ao lado de notícias e boletins.
Contrastando à atmosfera enevoada de outros escritos, esse poe-
ma nos expõe a uma claridade insuportável, sufocante. Por seu efeito de
“hiper-realidade angustiante”, por sua nitidez e faceta realista, o escrito
poético é comparável a certos sonhos coloridos, onde o sonhador enun-
cia (mesmo dentro dos sonhos): “‘mas isso não é um sonho, isso está
acontecendo, isso é real, isso é realidade’” (DUNKER, 2019, p. 31).
Em “Canção para ‘Paulo’”, ao invés de enfatizar a forma melódica
e cantável sugerida pelo gênero canção, o silêncio é dominante, sobre-
tudo na descrição inicial da tortura. Nas duas primeiras estrofes, ele é
cantado em diferentes variações: “costuraram tua boca”, “cobriram teus
gritos”, “os sentimentos não tinham eco”, “os sentimentos e as baione-
tas se calaram”. O descompasso entre o canto e o silêncio abre espaço
para múltiplos rumores: murmúrios, tilintares e passos. Considerando
que o traço característico da figura da morte seca é o radical desapareci-
mento dos rituais e dos signos do luto, não é trivial que esse canto-grito
seja permeado pelo espaço do silêncio.
Algumas palavras são escritas para demarcar a inseparabilidade
entre o luto e a melancolia, como ocorre na homologia entre sala e vala:

3 “Do ponto de vista da realidade, o morto, longe de ter esse estatuto de um inexistente cuja
inexistência mesma seria adquirida até permitir basear-se nela para lá fundar decisivamen-
te seu luto, o morto é, como aliás, é nomeado, um desaparecido. É o que a realidade, se ou-
samos dizer, pode propor de melhor a seu respeito; de melhor e... de pior. Ora, um desapa-
recido, por definição, é algo que pode reaparecer, reaparecer em qualquer lugar, a qualquer
hora, na próxima esquina. Somos, assim, levados a conceber que não haveria precisamente
prova de realidade para o enlutado. Se há, para ele, uma realidade, longe de ser o lugar de
uma prova possível, no sentido em que uma prova se conclui, seria essa fatia da experiência
subjetiva onde, justamente, não é possível fazer a prova da morte daquele que perdemos. A
verdadeira prova de realidade, o que a torna assim tão assustadora [épouvante] e tão rica de
experiência [éprouvante] é quando percebemos que ela não permite nenhuma prova. O luto
põe o enlutado ao pé do muro desse estatuto da realidade.” (ALLOUCH, [1995] 2004, p. 72).

95
RESTOS DE HORROR

Um sentido totalmente diferente de existir


se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
(POLARI, 1978, p. 36)

A dêixis aparece, no poema, como um invólucro do vazio, ape-


lo para que o significante dê conta do furo (no) real aberto pela morte
que enluta. Esse “envelope vazio” (nos termos do poeta)4 permite que ele
se situe num espaço paradoxal entre a vida e a morte, entre aquela sala
e aquela vala.

Mais do que pôr o destinatário provisório da poesia (o leitor)


na posição do torturado, a segunda pessoa irrompe como uma repetição
do suplício no corpo do texto, lugar onde o morto é exumado e torturado
pela segunda vez. O escrito amarra fragmentos da violência, sendo de-
dicada e endereçada ao desaparecido. Nos versos 1-8, o poeta se destina
diretamente ao supliciado:

Eles costuraram tua boca


com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.

4 Retiro essa expressão de “As cartas”: “Há certo encantamento nas cartas/ mesmo nos enve-
lopes vazios que me povoam/ com a sua letra morta e insubstituível” (POLARI, 1978, p. 21).

96
RESTOS DE HORROR

Eles te arrastaram em um carro


e te encheram de gazes,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.

A segunda pessoa é quase restrita à primeira estrofe, se não fosse


o verso 24.

Eles queimaram nossa carne com os fios


e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.

Esse “nós” indistinto, que une o desparecido ao sobrevivente


(“nossa carne”, “nosso destino”, “nossos rostos invertidos”), abre espaço
para o aparecimento de outra coisa: a segunda pessoa ressurge repenti-
namente como parte extraída de si, levada envolta num tapete. Na leitu-
ra de Allouch, um enlutado efetua sua perda a partir de um gracioso sa-
crifício de luto, suplementando-a com “um ‘pequeno pedaço de si’; eis,
propriamente falando, o objeto desse sacrifício de luto, esse pequeno
pedaço nem de ti nem de mim, de si; e, portanto: de ti e de mim, mas na
medida em que tu e eu permanecem, em si, não distintos” (ALLOUCH,
[1995] 2004, p. 12).
Para o psicanalista, a versão kleiniana da saída do luto comporta
uma separação nítida entre a incorporação do bom objeto parcial (a’)
e a rejeição do mau objeto parcial (a’’), contribuindo para “a unidade
do ‘Ego’”. A operação de fecho do luto (confundido com a saída da posi-
ção depressiva) se escreve: Ego ≅ (1 + a’) – a’’. Nesse caso, o parêntese
não serve para trancar numa negatividade o 1 e o pequeno a, podendo
até, “matematicamente falando, saltar fora; ele [o parêntese] está aqui
apenas para indicar a incorporação do bom objeto no eu e essa passa-
gem do parcial ao total (1 + a’ = 1), que, segundo Klein, assinalam o fim
do luto” (ALLOUCH, [1995] 2004, p. 291).

97
RESTOS DE HORROR

A lição de Alex Polari, pelo contrário, mostra que o “eu” (lírico)


só aparece quando o pedaço de si é roubado, envolto-velado no tapete.
O “eu” não é uma unidade, mas o corpo despedaçado que suplemen-
ta a perda com mais essa parte. Aqui, o dêitico torna-se lâmina, ponto
de extração do “eu” desse outro corpo, seu duplo e avesso.

v. 24-25 – e eu testemunhei quando levaram teu corpo/


envolto em um tapete
v. 32-34 – Entregue a perplexidades como estas,/ meus
cabelos foram se embranquecendo/ e os dias foram pas-
sando.

O luto dispõe de três protagonistas isoláveis e passíveis de ins-


crição numa estrutura regrada: o enlutado (érastès [ἐραστής]), o morto
(érôménos [ἐρώμενος]) e a perda (ágalma [άγαλμα]). Não raro, o objeto
perdido se metamorfoseia, assumindo a consistência de individus, ou 1.
A quarta personagem, obscena, é a Morte.
Mirando esses três elementos (mais a Morte), o psicanalista pro-
põe um roteiro para o luto. Tal roteiro não serve como guia para todos
os casos, mas permite jogar com o que está em cena num luto. Allouch
discorre sobre o tempo do luto e a subjetivação da perda formulados
por meio de uma modalização e de uma escrita. Na sua versão, o luto
só ganharia um destino quando é capaz de efetuar, no sujeito, a subjeti-
vação de uma perda. Em sua forma básica, isso se escreve:

$ ≅ – (1 + a)

Aqui, o parêntese cifraria a solidariedade entre o 1 e o objeto per-


dido (a).

Nada de subjetivação da perda de luto sem perda des-


se suplemento [a]; só estando ele mesmo perdido, gra-
ciosamente sacrificado, é que esse suplemento satis-
faz sua função de possibilitar a perda desse alguém [1]
que foi perdido. Assim, de desaparecido esse alguém ad-
quire o estatuto de inexistente. Assim, ele cessa de possi-

98
RESTOS DE HORROR

velmente aparecer, tal um fantasma ou uma alucinação.


(ALLOUCH, [1995] 2004, p. 389).

O seu fechamento é passível de ressalvas, já que a passagem vio-


lenta ao ato pressupõe que só a morte do enlutado poderia suplementar
o “roubo” do pequeno pedaço de si. Para grafar a subjetivação da perda,
que perpassa as modalizações lógico-temporais do luto, o psicanalista
parte de um conjunto de constatações:
– [a] “a morte chama a morte” ou, se preferirmos, “– (1 + 1)”. A fór-
mula não é dual, mas indefinida. Pensando os episódios de suicídio cole-
tivo, ele escreve, de forma mais extensa, “– (1 + (1 + (1 + (...))))”.
– [b] esse “– (1 + 1)” só é possível pois existe uma tendência do ob-
jeto perdido com a morte de alguém em se metamorfosear em 1, em to-
mar a consistência de 1;
– [c] o enlutado pode ir ao túmulo com o morto, por suicídio
de luto ou doença, por exemplo. Grosso modo, isso poderia ser escrito
como “– (1 + 1) → – (1 + a)”, pois o enlutado entra em cena assumindo
o papel de uma “libra de carne” (um pedaço de si), sacrificando-se (como
“substituto” do objeto perdido) para o morto.
Uma morte que enluta é suscetível de se duplicar com a morte
do enlutado.
Se essa condição tem o estatuto de paradigma, há uma dupla via
(um impasse de formalização) para a fórmula “– (1 + a)”: ou o sujeito
(per)segue o objeto perdido e reúne-se ao morto no túmulo, realizan-
do-se como pedaço de si; ou a vida do morto torna-se cumprida a partir
de um sacrifício público do objeto.
Eis aí o ponto em que o luto assume sua função, não sendo mais
um “afeto normal”, como ocorre na versão freudiana, mas o enigma
da subjetivação de uma perda.
– (1 + (1 + (1 +...))) → – (1 + a) ≅ $

99
RESTOS DE HORROR

O sujeito ($) aparecerá no final dessa longa travessia pelos labirín-


ticos abismos impostos por uma perda seca-total. Como a análise, todo
luto deve ter um fim.
No caso singular de Alex Polari, o processo de subjetivação da per-
da não marca necessariamente o desfecho de um luto, pois, em sua
literatura, há um impasse causado pelo desaparecimento: a experiên-
cia perdida se transforma no avesso de existir, sem que haja, contudo,
uma morte possível. O horror transforma todo o sentido da experiência:

Para configurar uma mudança inexorável (“o percurso


sem volta”) – [Alex Polari] constrói oxímoros em princí-
pio muito simples, baseados na mera negação do objeto
(“o tempo que não era tempo/ o amor que não era mais
amor [etc.]”), porém essa negação dessubstancializa o re-
ferente, de modo que o sentido metafórico que poderia
resultar da contradição não se perfaz, ou seja, as experi-
ências da chuva, da noite, do tempo, da vida e da morte
não significam. Sabe-se apenas que há “um sentido to-
talmente diferente” para tudo, o que parece indicar não a
“nadidade”, mas a dificuldade da representação, não um
abismo niilista, mas a instauração da mais plena perple-
xidade. (VIEIRA, 2013, p. 52, grifo da autora).

A perplexidade é o paradoxo: a passagem e a destruição do tem-


po. Se o poema fornece as condições para falarmos de um ato de luto,
a posição de morto-vivo e o ponto de não separação entre o sujeito e o
desaparecido atestam um estatuto melancólico como resto da operação
de subjetivação da perda. O poeta se (con)funde com o objeto perdi-
do, a não ser por uma diferença formal mínima. O poeta é morto (vala)
e enlutado (sala). A única coisa que separa a morte e a vida é, portanto,
um traço: “s/v”.
O gesto de nomeação e designação da perda permite traçar uma ho-
mologia entre o ato de poesia e o ato de luto. Com esse ato, seu luto
não se desfaz, mas se reborda.

100
RESTOS DE HORROR

No fim da linha, vala e sala são o pequeno círculo fechado onde


o poeta canta a impossibilidade de cantar. A poesia de Alex Polari dese-
nha uma borda para o real indizível da violência a que o poeta foi subme-
tido e ao calvário de horror que conseguiu espiar por um buraco no muro
do cárcere. A segunda morte assume uma forma literária.
À primeira vista, a função de sua escrita poética realiza, como os ri-
tos fúnebres, “uma mediação em relação ao que o luto abre como buraco.
Mais exatamente, sua operação consiste em fazer coincidir com o buraco
aberto pelo luto o buraco maior, o ponto x, a falta simbólica” (LACAN,
[1959] 1986, p. 77). No entanto, há algo a mais que ultrapassa a dimen-
são do significante e da falta simbólica.
O poeta opera no registro de um ato que ata as experiências da vida
e da história, metamorfoseando a literatura num mar de cinzas.

Referências

ALLOUCH, J. [1995]. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro:


Companhia de Freud, 2004.
______. Le deuil, aujourd’hui. Cliniques méditerranéennes, n. 76, p. 7-17, 2007.
Disponível em: <http://www.jeanallouch.com/document/190/2007-le-deuil-
aujourd-hui.html>. Acesso 13 abr. 2021.
DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da
Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
DUNKER, C. Teoria do luto em psicanálise. Pluralidades em Saúde Mental,
Curitiba, v. 8, n. 2, p. 28-42, jul./dez. 2019.
ENDO, P. Sonhar o desaparecimento forçado de pessoas: impossibilidade de
presença e perenidade de ausência como efeito do legado da ditadura civil-
militar no Brasil. Psicol. USP, v. 27, n. 1, p. 8-15, 2016.
GERMANO, G. Ausências Brasil. (2012). Disponível em: <https://www.
gustavogermano.com/portfolio/ausencias-brasil-2012/>. Acesso em 13 abr.
2021.
JORGE, M. A. C. Cronologia do horror. Psicanálise e barroco, v. 17, n. 2, p. 39-
63, 2019.

101
RESTOS DE HORROR

LACAN, J. O seminário: livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio


de Janeiro: Zahar, 2016.
LEITE, N.; TROCOLI, F. Giros da interpretação: o enigma na literatura e na
psicanálise. Campinas: Mercado de Letras, 2015. p. 17-25.
POLARI, A. Inventário de cicatrizes. Rio de Janeiro/São Paulo: Comitê
Brasileiro pela Anistia/Teatro Ruth Escobar, 1978.
RIBEIRO, T. Literatura cinza: uma (sub)versão do luto em Inventário de
cicatrizes. Tese (Doutorado em Linguística). Campinas: Unicamp, 2020.
VIEIRA, B. de M. (Des)Memória de perplexidades: Brasil, década de 1970.
Confluenze, v. 5, n. 1, p. 48-65, 2013.

102
EL ODIO INTRAZABLE EN EL CIBERESPACIO:
RESTOS DE UN HORROR PRETECNOLÓGICO

Juan Manuel López-Muñoz


Paola Capponi1

La hipótesis defendida en el punto de partida de este texto sería


que existen dos tipos de discursos de odio, uno no gramaticalizable (y
por consiguiente intrazable) y otro odio, el que es generalmente estu-
diado, caracterizado por su gramática propia, con sus estructuras pro-
fundas y sus manifestaciones superficiales posibles y predecibles. Estos
últimos, etiquetados comúnmente con el término inglés de hate speech2,
son más o menos fácilmente trazables, sobre todo en el ciberespacio
con ayuda de programas informáticos de tratamiento automático de tex-
tos. Su trazabilidad permite implementar políticas de rarefacción, de vi-
gilancia y castigo (Foucault 1971), con la finalidad de construir un nuevo
orden más seguro e higiénico en el ciberespacio.
Tal finalidad, que se manifiesta en forma de diferentes campañas
globales bajo lemas como Stop Hate For Profit o Fighting Hate for Good
y en los abundantes titulares de prensa y otros medios que dan cuenta

1 Juan Manuel López Muñoz pp. 1-9; Paola Capponi pp. 10-18.
2 El término hate speech fue introducido por juristas a principios de los 80 en el marco
de la Critical Race Theory, para referirse a formas de expresión escrita o hablada contra
individuos o grupos marginalizados por razones de raza, etnia, nacionalidad, religión,
género, orientación sexual, discapacidad, etc. Cfr. Bianchi 2021, 4-5.

103
RESTOS DE HORROR

cotidiana de la inacabable lucha jurídica contra el odio, nos lleva a pen-


sar que los estudios sobre los discursos de odio hasta ahora han estado
probablemente mal enfocados, en el sentido en que, por un lado, sus ob-
jetivos parecen escapar a los objetivos de las ciencias del lenguaje y ce-
der ante lo que podría considerarse una dictadura del Derecho que debe
asegurar “la separación entre lo lícito y lo criminal, lo legítimo y lo ile-
gítimo, lo válido y lo inválido, lo verificado y lo falso o lo inverificable”
(Gadet et Pêcheux, 198: 39). Por otro lado, ese problema de enfoque
de los estudios sobre los discursos de odio puede ser la causa de que és-
tos aún no han conseguido su buen propósito de borrar en el ciberespa-
cio todo resto del horror del odio que caracteriza las relaciones humanas
en el mundo offline.
Dicho de otro modo, creemos que los estudios sobre los discur-
sos de odio, basados principalmente en metodologías computacionales
con el fin de apoyar a traductores y juristas en la tarea de identifica-
ción de locutores delincuentes y de discursos criminales, parecen estar
contribuyendo a la materialización de una especie de tribunal lingüís-
tico dispuesto a pronunciarse sobre la aceptabilidad de las expresio-
nes, tal vez con el fin de limpiar, fijar y dar esplendor al lenguaje digital,
al tiempo que mejora la imagen pública de las plataformas sociales regu-
lando la convivencia en el ciberespacio y promoviendo “buenos sujetos”
(Pêcheux 1975: 198), en lugar de simplemente concentrarse en los obje-
tivos de toda ciencia, que es el conocimiento en sí mismo y por sí mismo,
pensamos.
Lo cierto, además, es que tales tentativas de castigo y regulación
resultan sobre todo ineficaces frente a ese odio que hemos calificado
como intrazable, por no ser gramaticalizable, y que resiste tanto a la
lógica como al empirismo. El odio intrazable no se manifiesta en dis-
curso como tal, sino que se reproduce aprovechando el carácter equí-
voco del lenguaje, lo inconsciente de los discursos y, principalmente,
aprovechando la existencia de una injusticia discursiva, basada en la
rarefacción de la voz de determinados sujetos (grupos discriminados)

104
RESTOS DE HORROR

relacionada, a su vez, con la noción de injusticia epistémica3. La injus-


ticia epistémica se refiere al hecho de que nuestras sociedades no han
desarrollado aún los instrumentos para conocer e interpretar las expe-
riencias de grupos discriminados. (Bianchi 2021: 18 y n. 3). La injusticia
discursiva, por su parte, reside en el hecho que las palabras de un grupo
social tengan un poder mayor que las palabras de otro grupo de menor
prestigio social o que incluso éstos últimos carezcan del mero derecho
a hablar hasta el punto de verse reducidos al silencio (Bianchi 2021: 11).
El odio intrazable sobrevive así, en el ciberespacio, como restos
de un horror anterior al desarrollo de las nuevas tecnologías de la co-
municación: el horror de los estereotipos, de los olvidos4 institucionali-
zados, de la violencia y la intolerancia que marcan el orden del discur-
so del mundo offline, gobernado por políticas que definen las estéticas,
promoviendo un visible y un audible compartido (Rancière 2000) y des-
cartando lo que debe permanecer inaudible e invisible.
Sirva lo anterior para destacar que existen unas formas del odio
que no son analizables lingüísticamente pero que requieren una re-
flexión desde las ciencias del lenguaje y en particular desde el análi-
sis del Discurso, pues responden a unos comportamientos discursivos
que remiten al tema de la autoridad del sujeto. La credibilidad de este
y su legitimidad para hablar, o una total ausencia de las mismas, no se
deben a la identidad del sujeto en sí (del individuo) sino a su identidad
social (con sus prejuicios y estereotipos; cfr. Charaudeau 2006). Sin legi-
timación, los sujetos no pueden ejercer el poder de dañar con sus pala-
bras a una potencial víctima ni tampoco esta puede dar a conocer sus ex-
periencias como parte de un grupo martirizado por el odio.
Tales son los propósitos de este trabajo: presentar una reflexión
discursiva sobre el odio intrazable, compartiendo además los frutos

3 Fricker, Miranda, Epistemic Injustice. Power & the Ethics of Knowing, Oxford, Oxford
University Press, 2007.
4 El término olvido, según lo entendemos aquí, siguiendo a Fuchs & Pêcheux (1975:13), no se
refiere a lo contrario de un recuerdo, sino que designa lo que se da por no conocido, porque
escapa a la voluntad de saber (Foucault 2011) y al sensible compartido (Rancière 2000).

105
RESTOS DE HORROR

de algunas lecturas que hemos realizado5. Los párrafos que siguen abun-
dan en la idea de restos de una responsabilidad compartida, de histo-
ria y circulación de unas palabras dañinas y sufridas, que nos hablan
y definen; palabras de odio en un lenguaje al que con euforia queremos
cargar o descargar de la responsabilidad de lo que pensamos y hacemos,
según convenga. La pregunta que guía nuestro trabajo y las lecturas rea-
lizadas para ello puede resumirse en los siguientes cuestionamientos:
¿Liberando el lenguaje en el ciberespacio de los restos de una “enferme-
dad” del lenguaje del mundo offline, “sanaremos” las plataformas so-
ciales y también la sociedad? ¿La complejidad de los discursos de odio
se deja reducir a una visión síncrona del lenguaje, en un corpus exclu-
sivamente digital? El carácter generalmente poco teórico de la mayoría
de los trabajos publicados sobre el odio en discurso nos obliga a concen-
trarnos aquí ahora en tratar de compensar esa carencia.
En su estudio sobre el poder de las palabras, Butler (2005) defiende
la idea de que las palabras no tienen poder en sí mismas a menos que es-
tén respaldadas por una autoridad o legitimidad que dé valor de conduc-
ta a algo que no es otra cosa sino un simple acto de repetición o de cita
en el marco de ciertos rituales o hábitos establecidos convencionalmen-
te, anteriormente al acto de habla, y que preceden y exceden al sujeto
particular que habla.
A esta misma idea parece que apunta Bianchi (2021: 114-115,
120) cuando habla de las palabras de odio y, en concreto, de los epí-
tetos denigratorios. Esta filósofa del lenguaje insiste en que el epíteto
denigratorio, en sí, igual que una formula performativa explícita, es una
señal, para quien nos escucha, que indica la fuerza ilocutoria de nues-
tro acto de subordinación6. Es decir, el epíteto denigratorio tiene algo

5 Pues la investigación en cualquier disciplina debe consistir no sólo en producir artículos y


libros, pensamos, sino también en leer lo producido en esa disciplina (y en otras, aceptando
la idea de dialogismo defendida por el círculo de Bakhtine) y en fin compartirlo.
6 Hablamos de “subordinación”, siguiendo a Bianchi (2021) cuando las palabras de odio
permiten a quien las usa construir, reforzar y legitimar jerarquías y prácticas sociales
inicuas. Los actos de subordinación pueden ser institucionales (suelen tener naturaleza
explícitamente normativa), de agresión (suelen emplear el tú) o de propaganda (suelen
emplear la tercera persona y así invitar al interlocutor y al público a compartir, contribuyendo
a normalizar y legitimar el mensaje) (Bianchi 2021: 115-118).

106
RESTOS DE HORROR

de impuesto, estable, autónomo, más allá de quien lo pronuncie o del


contexto: mantiene su fuerza más allá de las intenciones del hablante,
de sus creencias. (Bianchi 2021: 120). El hablante que usa un epíteto
denigratorio en un contexto standard acude, siempre según Bianchi,
a un procedimiento convencional, que lo precede, histórico, que puede
no tener nada que ver con sus creencias, actitudes o intenciones. De ahí
que ciertas palabras, ciertos epítetos que de por sí mantienen esa fuerza
denigratoria puedan incluso llegar a convertirse en tabúes de manera
que se establezcan límites sociales a su uso. Eso hace posible también,
sin embargo, en casos puntuales, usar epítetos denigratorios de modo
no denigratorio sin escapar no obstante de estos dispositivos conven-
cionales de subordinación.
Bianchi (2021), insistiendo en la importancia de las estrate-
gias sociales y pragmáticas para entender la dimensión performativa
del hate speech, cita a Nurberg: “I razzisti non usano gli epiteti perché
sono denigratori; gli epiteti sono denigratori perché sono le parole
che i razzisti usano” (Nurberg 2018: 244 cit. in Bianchi 2021: 114). Dicho
de otro modo, al usar palabras convencionalmente, históricamente usa-
das por un grupo definido para denigrar a otro grupo, “nos afiliamos”
a ese grupo. Es decir, el uso de esas palabras es una forma de afiliación,
como si un grupo detuviera un cierto dominio, una cierta exclusividad
o propiedad sobre las palabras. (Bianchi 2021: 114). Esta premisa lle-
va a Nurberg a hablar de implicaciones ventrílocuas: al usar palabras
de otros, damos voz a un personaje que nos habita, como, por ejemplo,
si un racista hablara a través de nosotros. Lo que nos remite a la idea
de restos intrazables del odio, a la circulación de un discurso antiguo y a
la consideración de los individuos como meros instrumentos de perpe-
tración y actualización de divisiones sociales antiguas, de viejas discri-
minaciones anteriores al advenimiento de las nuevas tecnologías de la
comunicación.
El sujeto que odia, volviendo a nuestra lectura de Butler, no es
responsable del sentido de las palabras de odio ni tiene capacidad para
“hacer” algo con ellas por sí mismo: su única responsabilidad es la de re-
petir palabras que, en determinadas circunstancias, con el debido sostén

107
RESTOS DE HORROR

institucional. Esa responsabilidad, compartida pues, implica silencios,


presuposiciones y una complicidad más o menos inconsciente. El silen-
cio del espectador, de quien asiste a la violencia o acto de subordina-
ción a los discursos de odio, se puede entender como corresponsabilidad
o complicidad (Bianchi 2021: 105). Más en concreto, si trabajamos con el
concepto de presuposición, el silencio hace que lo supuesto/presupuesto
se convierta en saber compartido: la discriminación se acomoda en ese
espacio compartido de un implícito que no encuentra obstáculos7 y es
aceptado dentro del marco del principio universal de cooperación que rige
las interacciones lingüísticas (Grice 1979).
El poder está fuera de las palabras, continuando con la tesis defen-
dida por Butler. Ese poder está en manos de un Estado diseminado, dis-
perso, representado por diferentes actores (organismos, instituciones,
personas con determinados cargos, como, por ejemplo, un juez al esta-
blecer un veredicto de culpabilidad).
Los actos de odio, para tener el efecto deseado, parecen necesi-
tar la autoridad del hablante. Si el hablante tiene carácter institucio-
nal obviamente posee esa autoridad. En los demás casos no siempre
la tiene (agresiones verbales en la calle, en sitios públicos, en Twitter
o Facebook). Las palabras de odio pueden causar daño, pero no tienen
de por sí la capacidad de restar derechos o de legitimar comportamien-
tos discriminatorios.
Ante este tema crucial, es decir, la autoridad en los actos de odio,
Bianchi 2021 hace hincapié en dos posturas principales. Se puede con-
siderar que el individuo que participa en un acto comunicativo, al parti-
cipar efectivamente en tal acto, tiene automáticamente autoridad sobre
esa conversación, igual que todos sus interlocutores por el mero hecho
de participar en él. Desde este punto de vista, cada uno de sus movi-
mientos dentro de esa conversación define lo que se puede y lo que no
se puede decir (tanto a través de lo que se dice como a través de lo que no

7 “El odio es pálido, encogido, cobarde, pestífero, encierra vapores de cerveza que pueden
ser muy explosivos” comenta Ernst Bloch (Häsler 1973: 16) y Benjamin R. Epstein: “El odio
no suele darse a conocer en sus formas más virulentas porque, sencillamente, la gente se
avergüenza de manifestar odio descarado” (Häsler 1973: 25).

108
RESTOS DE HORROR

se dice, del implícito y del presupuesto). Es decir, al decir algo se presu-


pone algo que se acomoda dentro del espacio de saber compartido y a
partir de ahí se desarrolla la conversación que seguirá en la dirección
permitida. Dentro de este marco, en realidad no es necesaria ninguna
forma de autoridad. Según la segunda postura, se puede distinguir en-
tre el hecho de poseer autoridad informal (de facto) y autoridad formal,
oficial (de jure). Si uno de los interlocutores toma decisiones, sin te-
ner ninguna autoridad oficial, y los demás no se oponen, se establece
una autoridad informal que puede otorgar a las palabras dichas el po-
der de hacer lo que dicen. Pero su legitimación deriva de la complicidad
de los interlocutores.
Cuando Bianchi 2021 habla de “palabras de odio”, concretamente
de “epítetos denigratorios”, insiste en que se caracterizan por ser epíte-
tos que atacan al individuo como parte de un grupo. Son epítetos negati-
vos que presuponen un positivo o neutro; se caracterizan por tener gran
difusión, gran variedad léxica y por involucrar desde el punto de vista
emocional y psicológico (pues se reconocen como tales desde la prime-
ra edad y se recuerdan con gran facilidad). Ese potencial denigratorio,
no obstante, varía en el tiempo, y puede atenuarse cuando se insertan
en citas o se encuentran en contextos pedagógicos, en contextos ficti-
cios, o cuando el mismo grupo discriminado se empodera, apropiándose
y resignificando los epítetos denigratorios.
Así, la probabilidad de fracaso de que la fuerza ilocutoria (la inten-
ción con que se dice algo) se traduzca en fuerza perlocutoria (y tengan
un efecto o produzcan un determinado daño en el mundo real) es enor-
me. Las palabras dañan cuando el Estado dictamina que dañan, y por
tanto el daño no está en las palabras, sino en los dictámenes del Estado
que decide qué secuencias de palabras en qué contextos deben enten-
derse como conductas y no como actos de habla. Es el estado el que re-
gula lo que es dañino en un discurso y lo que no, regula lo decible y cas-
tiga o impide lo indecible, a través de mecanismos de censura explícitos
e implícitos respectivamente.
“Discriminare fra dimensione illocutoria e dimensione perlocu-
toria sarà centrale per la nostra analisi dell’ingiustizia discorsiva e del

109
RESTOS DE HORROR

linguaggio d’odio, in quanto fondamento della distinzione tra costituire


discriminazione e causare discriminazione” explica Bianchi (2021: 22).
Esta investigadora distingue, por un lado, los efectos normativos en el
mundo social (efectos ilocutorios, que se dan por hecho inevitablemente
en cada acto de habla), que son convencionales y se pueden anular (en
algunos casos, por ejemplo, cuando se anula una condena por supues-
to delito de odio) y, por otro lado, los efectos reales, materiales, en el
mundo natural (efectos perlocutorios) que no se pueden anular. Así,
los actos ilocutorios determinan el espacio normativo, porque asignan
obligaciones, deberes, derechos etc. (Bianchi 2021: 23). Un acto lingüís-
tico que se realiza puede cambiar la distribución de los roles deónticos
entre los participantes en una situación discursiva, estableciendo nue-
vas condiciones respecto lo que se puede o se debe hacer (Sbisà 1989 cit.
in Bianchi 2021: 23).
Entonces, reconocer la fuerza ilocutoria se torna algo fundamen-
tal. Pues quien habla recurre a un sistema complejo de convenciones
discursivas (fórmulas, glosas performativas, indicadores sintácticos,
prosodia, indicadores paralingüísticos...). Es decir, acude a un patrimo-
nio de prácticas sociales reconocibles y, a veces, prácticas instituciona-
les (Bianchi 2021: 27).
Continuando con este argumento, del libro de Butler citado
más arriba, se puede deducir, resumidamente, la afirmación de que
el insulto, las palabras que “hieren”, tienen una historia, y seguramente
participaron en una de las primeras formas de organización de las hege-
monías de los grupos dentro de las sociedades. O sea, esas palabras da-
ñinas motivaron tal vez las primeras estrategias de orden de los discur-
sos, y contribuyeron tal vez a fijar los primeros “comunes compartidos”
y los primeros descartes. Ahora bien, matiza Butler, recibir un nombre,
aunque sea insultante o despectivo, “est aussi l’une des conditions de la
constitution du sujet dans le langage” (Butler 2005: 22) o, dicho de otro
modo, entendemos que las palabras despectivas participan necesaria-
mente en la constitución de categorías de sujetos (buenos vs malos su-
jetos; cfr. Pêcheux 1975:198).

110
RESTOS DE HORROR

Si, pongamos por caso, un cura o un obispo, desde su púlpito, pro-


duce un discurso homofóbico: ¿el obispo es el mal sujeto por interpelar
negativamente a los homosexuales, o los malos sujetos son los homo-
sexuales? ¿Es mal sujeto aquél que repite expresiones convencionales,
con sentidos convencionales, ajustados a una determinada formación
discursiva? ¿Es comportarse mal hablar mal de alguien, a pesar de que
uno se comporte bien discursivamente como sujeto “sujetado”8?
El problema de los discursos ofensivos se ha enfocado principal-
mente hasta ahora en tratar de identificar qué palabras explícitamente
hieren y qué representaciones son ofensivas, sin tener en cuenta que la
herida que estas palabras provocan pueden no ser un efecto de las pa-
labras en sí mismas, sino en cómo se usan para dirigirse a determina-
das personas (Butler 2005 :22). Es decir, el efecto dañino está causado
por algo que está más allá de las palabras mismas, en determinadas ma-
neras9 y actitudes convencionalizadas.
Sobre qué tipo de autoridad necesitan los actos de odio para efec-
tivamente odiar y, si acaso la necesitasen, Bianchi se refiere principal-
mente a la autoridad informal, es decir a la autoridad otorgada simple-
mente por el silencio de los demás. Al no encontrar crítica o alguna forma
de oposición, el hablante consigue que sus palabras de odio efectiva-
mente dañen10. Sin embargo, matiza Bianchi 2021, ese acto no se realiza
solo porque los demás guarden silencio sino porque ese acto se apo-
ya en una base que es histórica e ideológica: hay un fondo ideológico,
toda una tradición de discriminación que hace que ese acto se cumpla.
El uso de un epíteto discriminatorio en contra de un grupo que nunca

8 En condiciones de “assujettissement du sujet” en palabras de Pêcheux et Fuchs 1975 : 15.


9 Con “maneras” entendemos a algo que excede a las propias palabras y a los sujetos:
condiciones de producción y formaciones discursivas (Pêcheux et Fuchs 1975), pacto de
alianza (Charaudeau 2006:349), escenas enunciativas: englobante y genérica (Maingueneau
2002), etc.
10 Bianchi 2021 habla de dos formas de daño del hate speech: el daño al individuo o al grupo
y la “propaganda”. La idea de “propaganda” remite a la circulación de un discurso anterior
que sigue y se lanza adelante: “Le espressioni d’odio sono strumenti con cui credenze,
atteggiamenti e comportamenti discriminatori vengono presentati come diffusi, normali
o razionali; individui e gruppi vengono posizionati in un’ingiusta scala sociale [...] il
linguaggio d’odio [...] svolge opera di proselitismo di quel disprezzo e quella ostilità, incita
alla discriminazione, all’odio e alla violenza” (Bianchi 2021: 10).

111
RESTOS DE HORROR

ha sido discriminado no tendría, siguiendo tal razonamiento, el mismo


efecto, pues carecería de la correspondiente pesada historia de hosti-
lidad, como afirma Bianchi 121: 130-131: “Il linguaggio d’odio riposa
su pesanti storie di discriminazione, ostilità e anche violenza”. En este
sentido, podemos concluir que el acto ilocutorio refuerza algo que ya
existe previamente. Es por ello que una persona que pertenece a un gru-
po minoritario discriminado no puede materializar un discurso de odio
contra el grupo dominante.
«Merecer» (digámoslo así) un discurso de odio es, entonces,
ser digno (digna) de una etiqueta como miembro de un grupo “prote-
gido” 11. En resumen, ser víctima “reconocida como tal” de un discurso
de odio es en cierto modo una manera (o más exactamente, la única
manera, al parecer, posible) de merecer la posibilidad de existir social-
mente, en los dos mundos offline y online, para determinadas perso-
nas pertenecientes a determinados grupos vulnerables. En este sentido,
cuando el discurso es explícitamente ofensivo y consigue ejercer su vio-
lencia sobre la persona a la que efectivamente ese discurso hace daño,
Butler no persigue tanto el objetivo de identificar tal discurso y tales
situaciones, sino que más bien se pregunta cuál es esa violencia y cómo
podríamos entender sus grietas, sus deficiencias (cfr. Butler 2005: 23)
para contrarrestarla.
Sabemos que los actos ilocutorios son actos que, al decir algo, ha-
cen lo que dicen; los actos perlocutorios, en cambio, son actos que pue-
den (o no) producir ciertos efectos en el interlocutor. Sabemos tam-
bién, desde los trabajos de Austin y Searle, que no basta con determinar
el contexto adecuado de un acto de habla para poder evaluar la eficacia
de sus efectos con precisión, pues la situación del habla no es un con-
texto simple que pueda ser fácilmente definido por límites espaciales
y temporales. Entonces, cuando uno “hiere” es justamente porque pone
de relieve la falta de contexto de la víctima, porque hace comprender
a la víctima que “no sabe dónde está” (cfr. Butler 2005:24) o, peor aún,

11 “Protegido” es el eufemismo empleado por las plataformas sociales en internet como


Twitter y Facebook para designar los colectivos reconocibles como potenciales víctimas de
discursos de odio penalizables por la ley. Ya hablamos de estas listas y sus efectos en una
publicación anterior (di Fanti, M. da G. C., & López-Muñoz, J. M., 2020: 3).

112
RESTOS DE HORROR

no tiene dónde estar. Lo que manifiesta un discurso de odio: «c’est pré-


cisément la fugacité de notre place au sein de la communauté des locu-
teurs; nous pouvons être remis à notre place par un tel discours, mais
cette place peut être une absence de place» (ibidem). O, dicho con otras
palabras: el lugar de la víctima del discurso de odio puede ser un lugar
invisible o estar situado en un espacio invisible porque “no compartido”
(Rancière 2000).
Cuando Bianchi (2021: 108) habla de las distintas teorías sobre
epítetos se interesa por las estrategias semánticas, pragmáticas y so-
ciales. En las estrategias semánticas, esta filósofa del lenguaje hace re-
ferencia al discurso referido e insiste en que un epíteto denigratorio re-
petido, referido dentro de un discurso indirecto que se refiere al pasado,
de alguna forma se actualiza, es decir, no pierde su fuerza denigratoria:
“un uso presente di un epiteto non può essere utilizzato per discutere
una valutazione passata senza incorrere in un’offesa presente” (Bianchi
2021: 108). Es más, el potencial ofensivo del epíteto denigratorio so-
breviviría incluso si negásemos tal contenido (Bianchi 2021: 108-109).
Deducimos entonces que existe un poder de herir que se desarrolla en el
tiempo y en la historia y que sigue circulando y actualizándose y, en fin,
que, al pronunciarse, ubica en el espacio institucional no solo a la vícti-
ma sino también a quien pronuncia el discurso y a quien asiste al discur-
so. El acto ilocutorio define normativamente los roles y las consecuen-
cias mientras que el plano performativo está definido por toda una serie
de factores solo parcialmente previsibles. Todo apunta entonces a la
existencia de una responsabilidad discursiva colectiva y compartida.
En el ámbito de las redes sociales, es decir, en el ciberespacio,
los discursos de odio funcionan como una especie de resto, en el sentido
de Baudrillard (1981), entendido como algo que se te da por añadidura,
es decir, como una forma de “supervivencia lingüística” (Butler, 2005: 24)
de un horror previo a las nuevas tecnologías de la comunicación: el ho-
rror de un mundo offline donde varios grupos humanos sufren la ausen-
cia de tiempo y espacio histórico en la sociedad. Las víctimas del discurso
de odio existen cuando uno se dirige a ellos de manera insultante; o sea,
podríamos entender que las víctimas del discurso de odio existen única-
mente (y gracias a) ese contexto fugaz de los discursos de odio. Si acep-

113
RESTOS DE HORROR

tamos tal idea, entonces la lesión que producen los discursos de odio
sería instantánea, “como una bofetada” (Butler 2005 :25) que te hace
tomar (o recuperar) la consciencia de tu existencia. O, dicho con otras
palabras, si aceptamos la idea de que, para que alguien nos hable, pri-
mero debemos ser reconocidos (cfr. Charaudeau 2006: 340), el discurso
de odio parece funcionar como el único circuito posible de reconoci-
miento de ciertas personas o grupos de personas.

Ainsi, faire l’objet d’une adresse ce n’est pas simplement


être reconnu pour ce que l’on est déjà, c’est aussi se voir
conférer le terme même par lequel la reconnaissance
de l’existence devient possible (Butler 2005, p. 26).

La lesión, sea instantánea o no, se refiere generalmente a daños fí-


sicos y psicológicos, pero conlleva también un cierto “alivio” (en los que
se sitúan out-group por no formar parte de los grupos protegidos objeto
de denigración) y también, por parte de los que asisten, oyen o de algu-
na forma “presencian” el discurso de odio, ciertas experiencias emoti-
vas negativas e incluso cambios en la percepción de sí mismo y del otro
denigrado. Se confirma así la idea de un lenguaje del odio concebido
no solo como síntoma de un estado de cosas (la existencia de grupos
“protegidos”) sino como refuerzo y perpetuación de ese estado de cosas
(Bianchi 2021: 104).
Así, las víctimas del discurso de odio existen no solo porque son re-
conocidas, sino fundamentalmente porque son reconocibles, tal como
sugieren las normas de uso de las plataformas sociales en internet res-
pecto a los discursos de odio. Esos términos empleados para distinguir
a los “grupos protegidos”12 por las plataformas de Facebook o de Twitter,
que facilitan el reconocimiento, son parte de “un ritual social “ (Butler
2005: 26) que decide quiénes se encuentran en el área de exclusión so-
cial y que son susceptibles de violencia verbal.
Los estudios actuales de detección del discurso de odio suponen
que el odio se borra cuando se borran los discursos de odio, al presuponer

12 Ver nota al pie nº 7.

114
RESTOS DE HORROR

que lo que hacemos cuando hablamos es el acto mismo de hablar y sus


consecuencias. Pero lo que hacemos al hablar es el lenguaje. El poder
de lo que decimos, la eficiencia de nuestras intervenciones en las redes
sociales depende de mecanismos de repartos de poder que exceden a las
palabras. Es por esta razón que dedicamos este trabajo a redirigir la aten-
ción hacia los instrumentos por los cuales los discursos de odio ejercen
el poder de dañar. Son los restos de la historicidad de ciertas palabras
hirientes, el recuerdo de sus usos por sujetos legitimados por los ins-
trumentos del poder los que atribuyen a las palabras un poder de dañar
que estas “no tienen por sí mismas” (Butler 2005: 27).
En resumidas cuentas, sostenemos la idea de que es necesario con-
cebir el poder de actuar de los discursos de odio investigando en adelante
los instrumentos por los cuales ese poder se ejerce. La fuerza, la violen-
cia del discurso de odio, su éxito, vienen de su relación con lo indecible
(Butler 2005: 31). Lo que estamos afirmando, en definitiva, es que la vio-
lencia de los discursos de odio es posible debido a la existencia de ciertas
categorías de personas o de grupos que no tienen espacio, ni tiempo ni voz
en el orden de los discursos. Si volvemos a leer las entrevistas recopiladas
por Alfred A. Häsler en El odio en el mundo actual publicado en 1969 (tra-
ducción española de 1973, de Federico Latorre) y volvemos a ese contexto
histórico marcado por la guerra en Vietnam, la guerra fría, la amenaza
global nuclear etc. nuestra reflexión redescubre categorías de análisis
que se han quedado fuera del debate contemporáneo o que, por lo menos,
no están tan presentes como entonces. En el trabajo de Häsler no se abor-
da al tema desde una perspectiva discursiva, como la que aquí nos ocupa,
sin embargo, creemos que las citas de ese volumen que iremos incor-
porando pueden servir como ejemplo, entre los muchos que se podrían
aportar, de cómo el debate se ha ido enfocando de forma distinta a lo lar-
go del tiempo, según la época y la tipología de antagonismos dominan-
tes, pero siempre dentro de un marco que podríamos considerar común,
es decir, dentro de la continuidad. En efecto, en nuestra opinión, sigue
tratándose de la reflexión desarrollada por una sociedad que se interroga
sobre sus pulsiones violentas, sus posibles causas y consecuencias, su je-
rarquía de poderes, su centro y su periferia, en definitiva, sobre su fu-

115
RESTOS DE HORROR

turo. Más en concreto, en Häsler 1973 se reflexiona sobre “odio justo” y


“odio injusto”, el odio de los opresores, arma de los privilegiados para
mantener sus privilegios, y el odio de los oprimidos; se debate igualmen-
te sobre “lucha de clase” y “odio de clase”, etc13. Comenta Ernst Fischer,
entrevistado por Häsler: “En ocasiones hay un odio justificado, un odio
que nace de la ira provocada por la injusticia, la crueldad, el abuso de po-
der. Detrás de ese odio se encuentra el amor dolorido del prójimo. Pero
también hay un odio que es ajeno al amor. Este odio puramente negativo
sólo puede producir el mal” (Häsler 1973: 32). Por un lado, las reflexiones
recopiladas en el libro remiten con contundencia a esa conexión entre
odio y violencia física que consideramos oportuno no subestimar y seguir
teniendo muy presente en cualquier debate sobre hate speech.
Por otro lado, el anhelo pacifista que subyace al coro de voces
que Häsler reúne apunta a una superación del odio (y de la violencia
que acarrea) a través del reparto de poderes dentro de una visión global,
que supere las fronteras locales. La solución, insisten muchos de los en-
trevistados, radica en lo humano, en ver en el otro el yo que no he sido,
lo que yo podría ser, el otro como posible versión del yo: “quizá el otro
soy yo mismo en mi distinta manera de ser…” (Carlo Schmid en Häsler
1973: 176). También aquí se puede encontrar una dimensión utópica,
una proyección positiva, aunque no en todos los entrevistados, en algu-
nos prevalece más bien una visión que podríamos calificar de distópica.
Escribe el mismo Häsler en el Prefacio:

El odio no es solamente odio. Existe un odio por dignidad


humana y existe el odio de Calibán, del animal que habi-
ta en nosotros, que escupe sus vapores venenosos desde
los “basureros de nuestra alma” (Carlo Schmid). Todo

13 Nótese que las primeras leyes para regular los discursos de odio habrían surgido en
regímenes despóticos a la caza de enemigos, para criminalizar a la oposición: «Le prime
leggi per tentare di contrastare l’hate speech non sarebbero figlie di democrazie in cerca di
tutele ma- secondo lo storico dei diritti umani e fondatore di «Justicia» Jacobo Mchangama
– di dispotismi a caccia di nemici. Paradossalmente, infatti, le prime sanzioni penali di
contrasto all’incitamento all’odio sarebbero nate per proteggere non le minoranze vittime
di odio, ma il gruppo maggioritario e dominante. Per zittire le opposizioni, insomma, e per
tentare di criminalizzare il dissenso» Faloppa 2020: 50.

116
RESTOS DE HORROR

esto constituye una diferencia fundamental a la hora


de valorar y juzgar.
Y, sin embargo, el odio y la violencia en la edad de la
bomba de hidrógeno y de la conquista del cielo no son
medios adecuados para construir una sociedad más hu-
mana en los Estados industrializados y desarrollados
(Häsler 1973: 9)14

Todo discurso de odio es susceptible de fracasar, como de hecho


cualquier acto de lenguaje, “et c’est cette vulnérabilité qui doit etre ex-
ploitée pour contrer la menace” (Butler 2005:34) que representa el dis-
curso de odio. El daño que ejercen los discursos de odio necesita, para
realizarse, la existencia de un espacio de poder y de una jerarquía en la
distribución de este dentro de tal espacio (ibidem).
Podemos concluir entonces provisionalmente que el análisis de las
condiciones institucionales del discurso de odio es necesario para iden-
tificar las circunstancias en las que ciertas palabras hacen realmente
daño. Teniendo en cuenta que cualquier palabra es susceptible de ser
ofensiva, todo depende de la forma en que esta se actualiza, “no pudien-
do reducirse el uso que se haga de las palabras a las únicas circunstancias
de su enunciación” (Butler 2005: 35; la traducción al español es nues-
tra). Por otro lado, afirmar que determinadas declaraciones son siempre
(automáticamente) ofensivas, independientemente del contexto, puede
conducir a ignorar hasta qué punto el poder de su violencia está en el
hecho de que reproducen hasta el infinito los restos de un determinado
contexto de desigualdades sociales. Lo que nos lleva en fin a preguntar-
nos cómo podemos, en tanto que investigadores, llegar a distinguir el
“uso” efectivo de un discurso de odio de la simple (y reiterada) “men-
ción” de un discurso de odio.

14 Más adelante, refiriéndose a “los oprimidos” y a la “inquieta juventud que pide la


desarticulación de las estructuras de autoridad” señala que es importante avisar del riesgo
de la “institucionalización de una nueva superstición, es decir, de la creencia en que una
doctrina redentora o la aniquilación de un enemigo real o imaginario podrá llevar a una
solución definitiva de genuinos problemas humanos o sociales” (Häsler 1973: 9). Aquí
Häsler parece tildar de anacrónico, en los años Setenta, un tema, el recurso al odio y a la
violencia, que hoy en día es de apremiante actualidad.

117
RESTOS DE HORROR

Por esta razón, no podemos considerar automáticamente al pro-


ductor de un discurso de odio como un sujeto delincuente, plenamente
soberano de sus actos de habla. Ahora bien, los estudios de lingüísti-
ca forense hacen precisamente eso: partir de la consideración de que
los haters son sujetos hablantes plenipotenciarios, ignorando la parte
de determinación o subordinación del sujeto respecto a unas condicio-
nes de producción (Pêcheux et Fuchs 1975: 10)15, es decir, ignorando
la parte de sujeto que es hablado por el discurso de odio.
Además, paradójicamente, señala Bianchi (2021: 11), a menudo
el primer destinatario de un ataque verbal no es la víctima del ataque,
el individuo denigrado o la categoría social a la que este pertenece, sino
el propio grupo al que pertenece el individuo que profiere el discurso
de odio: el lenguaje del odio dice algo sobre quien odia más que sobre
la víctima de su odio “La homofobia, el racismo y la misoginia son for-
mas de odio en la manada; son, según una expresión muy eficaz, formas
de odio en primera persona del plural” (ibidem; la traducción al español
es nuestra)16.
15 PECHEUX, M., FUCHS, C. (1975). «Mises au point et perspectives à propos de l’analyse
automatique du discours». Langages, 37, 7-81
16 La expresión traducida es de Donald Moss, On Hating in the First Person Plural: Thinking
Psychoannalytically About Racism, Homophobia, and Misogyny (Moss 2001) cit. en Bianchi
2021: 11. Creemos que las nuevas formas de odio mediadas por ordenador se presentan
como muy individualizadas en el sentido de que suelen surgir come enfrentamiento entre
dos individuos (víctima y odiador) y luego, dentro de la dinámica del mensaje de odio, el
objeto del ataque se convierte en miembro de un grupo (odiado por pertenecer a un grupo,
encasillado en un grupo atacado por otro grupo, ambos definiéndose en el enfrentamiento).
El repertorio al que se acude para expresar ese odio es, por lo general, un repertorio
antiguo, de palabras que son ‘restos’ de la historia y que, como tales, siguen trazando
viejos esquemas binarios (in-group/out-group), a veces actualizados (se producen cambios
obviamente también en este sector de la lengua; Faloppa 2020: 153-160). En el momento
en el que la víctima se convierte en miembro de un grupo y, como tal, en blanco en la red
parece progresivamente perder su estatus de individuo, con su propia historia personal, y
sobrevivir solo en tanto en cuanto objeto de ese ataque sin límites de tiempo y de espacio,
en un infinito presente, que es el espacio virtual. “L’hate speech offline studiato fino agli
anni novanta – ha argomentato lo storico Giovanni De Luna – riguardava ‘una dimensione
collettiva del rancore’, una dimensione ideologica, condizionata più dalle pressioni e dalle
rivendicazioni dei gruppi (sociali, politici, ‘etnici’) che dall’iniziativa dei singoli. Anche
quando sorgeva spontaneo, dal basso – come nel caso dell’odio verso i ‘terroni’ in molte
città del Nord, per esempio, o verso i rom e migranti nelle periferie – il linguaggio d’odio
era spesso circoscritto, e mediato dall’azione e dalla presenza di soggetti plurali e collettivi
(i partiti, i sindacati, gli amministratori locali, la chiesa), che ne limitavano il travaso
massiccio ed esplicito nel discorso pubblico o nei mezzi di comunicazione di massa. Negli
ultimi anni, invece, sembra essersi imposta sulla scena un’aggressività verbale individuale
individualizzata: veloce, priva di sovrastrutture, meno incanalabile (e incasellabile) e,
quindi, più difficile da prevedere e mediare.” (Faloppa 2020: 122-123).

118
RESTOS DE HORROR

La lingüística forense, en cambio, parte de la premisa de que quien


produce un discurso de odio posee un poder real, “imagina que este
dice lo que dice cuando lo dice” (Butler 2005: P39). Pero ya hemos visto
más arriba que, en ausencia de legitimación por parte de una institu-
ción, el acto de odio no puede hacer lo que dice, no puede ser eficaz, sino
normalmente “infeliz” (en sentido pragmático).
El discurso de odio y el delito de discurso de odio tiene dos se-
cuencias temporales distintas: la del decir, y la del juzgar. El presupues-
to implícito es que el discurso de odio y el delito de discurso de odio
son idénticos, que producen efectos idénticos e inmediatos: pero mien-
tras el primero no es necesariamente eficaz o, en caso de serlo, puede
tener un efecto posterior sobre la víctima; el segundo es necesariamen-
te eficaz (porque lo dicta un juez) y tiene efecto inmediato tanto sobre
el odiador como principalmente sobre la víctima, al dictaminar el juez
que la víctima es efectivamente una víctima – es decir, que esta ocupa
una determinada posición social como miembro de un grupo vulnerable
y que la víctima asume tal posición- y que las palabras empleadas contra
ella tienen poder efectivamente de dañar.
Por su parte, el sujeto hater se verá instantáneamente cataloga-
do como criminal (soberano de un acto consciente y voluntario) y reci-
bir el consiguiente castigo, a pesar de que muy probablemente carezca
del poder necesario para que su odio tenga efectos sobre el mundo real,
quedando el problema colectivo a la escala de enfrentamiento entre
dos individuos mientras que las instituciones que participan en el poder
del odio permanecen al margen del problema. (Butler 2005: 41).
Bianchi (2021:134), citando a Tirrell (2012: 206), da un ejemplo
que puede servirnos para representarnos de una manera más clara este
hecho que acabamos de resaltar. El ejemplo plantea el caso hipotéti-
co (pero bastante común, desgraciadamente) en que un niño llame (ya
sea en la escuela o fuera de esta, en las redes sociales) a uno de sus
compañeros “maricón”. Ese niño probablemente no piense, y ni siquiera
lo pueda intuir, el contexto social más amplio de la homofobia y los crí-
menes de odio contra los homosexuales que se reproduce en su insulto.
En cualquier caso, ese niño al etiquetar de ese modo a su compañero,

119
RESTOS DE HORROR

hace recaer sobre las espaldas de este el peso insufrible de una injusticia
histórica y de un poderoso aparato opresivo. Igual que ese niño, muchos
de nosotros, adultos, a menudo hablamos con límites epistémicos si-
milares, sin que nos preguntemos qué tipo violencia convencionalizada
invocamos cuando nos dirigimos con malas intenciones a los demás.
Dicho esto, se hace necesario volver a la pregunta lanzada
por Butler, que hemos mencionado más arriba ¿Existiría, entonces, al-
guna especie de grieta en ese sistema de constitución del poder de dañar
de las palabras que pudiera hacer menos “felices” (en sentido pragmá-
tico) a los discursos de odio de lo que se supone que son? Y, en fin, pre-
guntándonos lo mismo, pero de otra forma: ¿Qué es lo que da al dis-
curso de odio el poder de asignar al otro una posición subordinada? ¿Y
qué hace que el otro admita esa posición subordinada17? ¿Habría algún
tipo de fórmula -no punitivo-jurídica- para interrumpir esta estructu-
ra de dominación que se consolida en cada repetición de un discurso
de odio, sin tener que recurrir a esas estrategias de “depuración” lingüís-
tica que planteábamos como hipótesis de partida al inicio del presente
texto? La pregunta no es trivial, porque apunta precisamente a las con-
diciones institucionales que están en el origen del poder de los discursos
de odio para efectivamente dañar, y que llevan a juristas y lingüistas
forenses a considerar como conducta individual lo que tal vez no sea
más que un discurso citado, un horror circulante o lo que hemos conve-
nido en llamar restos de un horror pretecnológico.
Es el odio de un grupo hacia otro grupo lo que se cristaliza en cada
discurso de odio; es de esa forma tan poco sutil que “el uso de ciertas
palabras transforma a individuos insignificantes en una manada intimi-
dante” (Numberg 2018: 286 citado en Bianchi 2021: 153; la traducción
es nuestra).

Celui qui a recours au discours de haine est responsable


de la répétition de ce discours, de son renforcement et de
l’établissement de nouveaux contextes de haine et d’in-
jure. La responsabilité du locuteur ne consiste pas à re-

17 Ver nota al pie nº 5.

120
RESTOS DE HORROR

faire le langage ex nihilo, mais bien plutôt à renégocier


les usages hérités qui contraignent et autorisent son dis-
cours (Butler 2005 : 54)

Es esa idea de “usos heredados” que leemos en la cita de Butler


destacada aquí arriba, cuando se repiten no solo en el mundo offline
sino también en el mundo sin fronteras ni tiempos del ciberespacio,
la que nos hace considerar los discursos de odio en las redes sociales
como restos de un horror que pervive en la memoria de los internautas
y que excede ampliamente la memoria de estos, ya sea de los internautas
que odian o de las víctimas del odio de estos.
Por otra parte, aunque muchas formas del discurso de odio se re-
conocen por el uso de ciertas palabras de odio, hay otras muchas que se
basan no en palabras sino en silencios (Butler, 2005: 55), es decir, en el
silencio impuesto en el acto de asignación arbitraria y de aceptación re-
signada de una posición subordinada, en el reparto de turnos de pala-
bras, de espacios y de tiempos de habla.
Dicho lo anterior, es preciso insistir en que los discursos de odio
no deben concebirse cada uno como un hecho aislado, sino que están
conectados entre todos, tanto si usan palabras como si se manifiestan
en los silencios. Además, como hemos destacado más arriba, el proble-
ma no parece estar finalmente en el discurso de odio en sí mismo, sino
en el tipo de destinatario del odio. Así, el hecho de penalizar, jurídica-
mente, solo determinados discursos de odio, aquellos que tienen como
destinatario ciertos grupos de personas “protegidas”, lejos de resolver
el viejo conflicto, lo que conlleva es la perpetuación de un sistema de ca-
tegorización de los grupos humanos en conjuntos antagónicos y “la ex-
tensión de una subordinación estructural”:

Dans la mesure où certains groupes ont été « historique-


ment subordonnés », les discours de haine dirigés contre
eux entérinent et étendent cette « subordination struc-
turelle » (Butler parafraseando a Mari J. Matsuda ; Butler
2005 : 122)

121
RESTOS DE HORROR

Así pues, dado que, en principio, todo discurso de odio es una cita,
no es “uso” sino mención del resto de un odio anterior, normalmente
no puede tener “efectos” sobre la realidad (offline u online) a menos
que haya un poder legitimador detrás. Teniendo en cuenta esto, las pla-
taformas en internet, al censar mediante listas a las potenciales vícti-
mas, las señalan y, al calificarlas como miembros de “grupos protegidos”,
obtienen el efecto contrario dando legitimidad en el ciberespacio a una
dinámica de subordinación del mundo offline y acreditando los discur-
sos de odio como usos efectivos y no como menciones.
Estamos de acuerdo con Butler en que no por todo lo anterior-
mente dicho debamos entender que el sujeto que produce un discurso
de odio quede enteramente eximido de responsabilidad, sino que esta
responsabilidad no concierne tanto al hecho de expresar el odio como
al hecho de invocar la condiciones que lo hacen posible, otorgándole
la fuerza de su historicidad y asegurando la continuidad de antagonis-
mos inaceptables e insostenibles

[…]. Si nous comprenons la force du noms injurieux


comme un effet de son historicité, alors cette force n’est
pas le simple effet causal d’un coup infligé, mais elle
fonctionne en partie grâce à une mémoire chiffrée ou à
un trauma, qui vit dans le langage et est véhiculé par lui.
(Butler, 2005: 64)

Siendo así, impedir por la fuerza de la ley que los discursos de odio
se produzcan puede contribuir contradictoriamente a garantizar su pos-
teridad, fijando ese “trauma que vive en el lenguaje y es vehiculado
por este”, según las palabras citadas en el fragmento aquí arriba. Lo más
conveniente sería, a nuestro entender, trabajar en la posibilidad de cam-
biar su contexto y sus propósitos. “No es posible purificar el lenguaje
de su residuo traumático; tampoco es posible trabajar sobre el trauma
si no es mediante un laborioso esfuerzo por orientar el curso de su repe-
tición” (Butler 2005: 66; la traducción al español es nuestra).

122
RESTOS DE HORROR

No pretendemos la despenalización de los discursos de odio, sino


la comprensión de qué se está penalizando en realidad, con el fin de lle-
var ese proceso de penalización hasta el final del todo, hasta las razones
mismas del antagonismo que está en la base de los discursos de odio.
Como analistas de discurso no deberíamos asumir la simple misión
de detección, persecución y castigo de los discursos de odio sino la de
contrarrestar esos discursos con otros discursos con el fin de restituir
a los discursos de odio su historicidad, en el marco de unas prácticas
discursivas fuertemente ritualizadas e impedir su retorno. Es preciso,
entendemos, descargar al sujeto común que odia de la parte de respon-
sabilidad de la capacidad de efecto de su odio que corresponde a las ins-
tituciones y al Estado (Butler 2005: 86-87).
Y no podemos olvidar, además, la importancia de considerar
la parte de responsabilidad de quien escucha o asiste como tercera per-
sona a un intercambio de palabras de odio, dado que “los espectadores
pueden influir en el poder performativo de los hablantes, su capacidad
para hacer cosas con el lenguaje” (Bianchi 2021: 13). Se trata de una
responsabilidad a la vez negativa, si el espectador apoya el discurso dis-
criminatorio, guarda un silencio cómplice, sonríe etc. y positiva, si par-
ticipa en la tarea de contrarrestar el odio, mediante distintas formas
de resistencia conceptual, según Bianchi 2021: 136-183:

• manifestar discrepancia, lo que implica un coste cognitivo y social,


pues tal discrepancia tiene que provenir de un miembro de un gru-
po de prestigio, o bien apelando a la “intersezionalità” (se pueden
cruzar condiciones de privilegio y de discriminación en la misma
persona o grupo: persona blanca y mujer, por ejemplo). De lo con-
trario, si la discrepancia proviniese de un miembro de un “grupo
protegido” no sería eficaz.
• hacer que se explicite lo que se da por supuesto intentando evitar
no obstante el llamado “efecto Streisand”, es decir, el efecto con-
trario: dar más visibilidad a la estigmatización;
• recurrir a la ironía y al humor, como forma de neutralización de
la fuerza ofensiva de ciertas palabras, resignificándolas para abrir

123
RESTOS DE HORROR

“nuevos contextos” (ver cita de Butler aquí abajo), crear “nuevas


formas de legitimación”, produciendo además un efecto de eman-
cipación18, de solidaridad y cohesión entre miembros del grupo
“protegido”:

La resignification du discours requiert que l’on ouvre


de nouveaux contextes, que l’on parle sur des modes
qui n’ont jamais encore été légitimés, et que l’on produi-
se par conséquent des formes nouvelles et futures de lé-
gitimation (Butler 2005: 70).

Al tratar al locutor como culpable y dar al discurso de odio una fuer-


za (unos efectos) que por sí mismo no tiene, “la possibilité de désamorcer
la force de ce discours par un contre-discours est éliminée”. (Butler 2005:
68). Pues el discurso de odio no está solamente definido por su contex-
to social, sino también por unas determinadas “condiciones de produc-
ción” (Pêcheux et Fuchs 1975: 15) y unos determinados procedimientos
de exclusión y de rarefacción, por una determinada voluntad de ver-
dad en un determinado “real” (Foucault 1971). En lugar de la censura
por parte de las instituciones o del estado, una lucha lingüística, discur-
siva y socio-económica y cultural debería ser puesta en marcha y desa-
rrollarse con el objetivo principal de contrarrestar los discursos de odio,
poniendo fin a las injusticias discursivas y epistémicas que los originan
y los sostienen.
En resumen, nuestra propuesta es que, si aceptamos que se pue-
den hacer cosas con las palabras, entonces también deberíamos acep-
tar que se puedan deshacer esas mismas cosas también con palabras,
sin necesidad de tener que recurrir a “la violencia propia de los discursos

18 La idea del lenguaje no solo como instrumento de opresión sino también como instrumento
de emancipación se debe, en el fondo, a dos grandes cambios de principios del siglo XX: se
deja de concebir el lenguaje come algo neutro, descriptivo y se descubren, por una lado,
la performatividad (Wittgenstein/Austin), es decir, el poder creador del lenguaje y, por
otro, con el feminismo, se hace hincapié en el contexto concreto en el que se produce la
comunicación entre sujetos (en este caso se hace referencia al género, pero piénsese no
solo en los Gender Studies, sino también en los Queer, Critical Race, Disability Studies).
(Bianchi 2021: 7).

124
RESTOS DE HORROR

de los tribunales de justicia (Butler 2005:93). Los estudios de lingüística


forense parecen generalmente estar guiados, al contrario, por una ten-
tativa global de devolver al sujeto hablante una soberanía ideal y por
una pretensión de “automatizar” los discursos (depurándolos de su na-
tural ambigüedad y de sus equívocos) defendiendo la idea de una espe-
cie de “universalité anti-Babel” (Butler 2005: pp. 142-143)19. Ello explica
quizá que la investigación sobre el discurso del odio, a pesar su abun-
dancia y su relativamente fácil acceso a la financiación pública y priva-
da, no haya todavía desaparecido definitivamente del debate científico.
Pues el discurso de odio se entiende como una “irregularidad”
o una “anomalía discursiva” que rompe el aparente equilibrio del diá-
logo en las redes sociales. Esta parece ser la razón principal que mueve
a las instituciones y las plataformas de las redes sociales a apoyarse en la
lingüística forense y en el análisis del discurso digital para conseguir
“corregir” tal anomalía. Se trata de imponer un nuevo “orden” del dis-
curso en el ciberespacio (más allá -o más acá- de lo ideológico, de lo
moral o de lo ético) basándose en nuevas normas y leyes (las que dictan
el Derecho) que regulan básicamente hechos lingüísticos (pero no los
discursivos). Se asocia así la ley a la regla lingüística, lo que permite cas-
tigar a los “malos” hablantes por la vía jurídica (previa denuncia por la
víctima) o a silenciarlos, mediante la supresión de sus cuentas en las re-
des sociales, siguiendo una lógica, “que es la de la dictadura del Derecho
que asegura la disyunción entre lo lícito y lo criminal, lo legítimo y lo

19 “Se requerirá un cierto tiempo antes de que la inteligencia artificial pueda gestionar por sí
misma las ambigüedades del discurso del odio [...] Es por eso que Facebook ha invertido en
la formación de miles de moderadores humanos en todo el mundo, listos para intervenir
ante los avisos de los propios usuarios, eliminando contenidos que no cumplan con sus
directrices” (Faloppa 2020: 113; la traducción es nuestra). Muchas son las preguntas que
se formula este investigador tras la citada afirmación: “Quanto la pubblicazione […] di
un profilo che contiene non messaggi d’odio, ma il rinvio a pagine contenenti messaggi
d’odio, comporterebbe da parte del provider una corresponsabilità nella loro diffusione?
Qual è la posizione giuridica della piattaforma, e quando le sue policy interne possono
sostituire il quadro normativo, o sopperire alle sue carenze? Quanto l’organizzazione
incriminata deve ritenersi responsabile per le condotte dei suoi membri? Se sul piano della
responsabilità penale atteggiamenti di odio sono da ascriversi solo a coloro che li adottano,
quanto questi atteggiamenti sono davvero scollegabili dall’ideologia e dall’azione
politica dell’associazione, alla cui diffusione contribuisce masscicciamente la presenza su
Facebook? (Faloppa 2020: 120).

125
RESTOS DE HORROR

ilegítimo, lo válido y lo inválido, lo verificado y lo falso o lo inverificable”


(Gadet y Pêcheux 1981: 39; la traducción es nuestra)
Tales estrategias de castigo se complementan con la consideración
de las “buenas maneras” como obligaciones, el “orden” de los discursos
como mandatos, las reglas lingüísticas como reglamentos y el código
de la lengua como código de la ley. Así es cómo la investigación sobre
los discursos de odio se encamina a contribuir con las instituciones en la
consecución del objetivo de prohibir lo que, en la comunicación mediada
por ordenador aparece como un “trouble” (Gadet et Pêcheux 1981: 26)
o una anomalía del discurso, en vez de a intentar “remediar” ese trouble.
El resultado es que el orden del discurso se convierte en un orden jurídi-
co, conllevando una incesante vigilancia (en los medios y en el ciberes-
pacio) de todo lo que pone en riesgo el aparente equilibrio de un estado
de cosas que, injustamente, está fundado en políticas de invisibilización
de ciertos reales existentes en el mundo offline para evitar bloquear on-
line lo que tal vez parezca imposible de hacer offline.
Por todo lo anterior, y a modo de conclusión del presente texto,
pensamos que la investigación en ciencias del lenguaje sobre los dis-
cursos de odio no debería seguir contribuyendo a la materialización
de un tribunal lingüístico dispuesto a pronunciarse sobre la validez
de ciertas expresiones. No podemos admitir la posibilidad de la imple-
mentación paulatina de una “limpieza” internacional de los discursos
digitales que pueda garantizar un día que la identificación automáti-
ca de los discursos de odio funcione correctamente, inequívocamente,
“sanitariamente”.
Según entendemos desde una perspectiva deflacionaria, las pala-
bras en sí no son buenas ni malas, positivas ni negativas. Un epíteto
es denigratorio en la medida en que es tratado como palabra prohibida
por una decisión tomada por parte de individuos, grupos, autoridades
o instituciones relevantes, es decir: “una volta che gli individui dichiara-
no che una parola è un epiteto denigratorio, essa lo diventa” (Anderson,
Lepore 2013: 39, citado por Bianchi 2021: 113)

126
RESTOS DE HORROR

Esto sirve, creemos, de premisa para una postura “silenciadora”


que propone eliminar del lenguaje las palabras ofensivas con la ilusión
de diluir así su poder de dañar, conminando los hablantes a abstenerse
de utilizarlos en cualquier contexto” (Anderson, Lepore 2013: 39, citado
por Bianchi 2021: 113).
Ahora bien, el discurso no está suturado en sus bordes, contraria-
mente a la Lengua: el discurso es incluso un lugar en el que se manifies-
ta lo negado por la Lengua (Gadet et Pêcheux, 1981: 51).
La detección de discursos de odio allana el camino para la investi-
gación materialista (basada en el significante y la sintaxis) de palabras
percibidas como peligrosas para el orden del ciberespacio. Lo que parece
que se pretende es hacer una especie de cribado, acupuntura u opera-
ción quirúrgica que permita mantener el discurso de las redes sociales
dentro de los límites de lo decible, constituyendo un nuevo lenguaje
digital artificial depurado, higienizado, limpio, en definitiva, un nuevo
estándar (universal) que marcaría una nueva relación entre los mun-
dos online / offline para que el primero sirva como modelo de orden,
sensatez y progreso frente al segundo donde continúan predominando
el equívoco, el disparate y la barbarie (Gadet et Pêcheux 1981, 63, p104).
Esto nos lleva a rescatar unas reflexiones de Ernst Bloch sobre las po-
sibilidades de erradicar el odio de la sociedad (offline). A la pregunta
de Häsler: “¿Cree usted que en la sociedad en que ha puesto sus esperan-
zas – sociedad que todavía no existe, pero que parece que tendrá rasgos
humanos -, podría superarse el odio?”, aquél responde que muchas cosas
han cambiado, no porque hayan sido condenadas -el hombre no mejora-
sino porque hay cosas que se consumen, como son ciertas motivaciones
que en un tiempo fueron valiosas y auténticas pero que después pierden
simplemente su valor; y sigue:

“Y entonces, cuando el sistema de producción tecnocrá-


tico nos coloque en una situación en la que cada uno pro-
duzca según su capacidad y consuma según sus necesi-
dades […], entonces podrían extinguirse la violencia y la
malicia de la competencia, porque no valdrían la pena.

127
RESTOS DE HORROR

El instinto de agresión quizá quedase desplazado a otros


campos, a los delitos de celos, sexuales, a las reacciones
sin control carentes de razón y de sentido. Quedará todo
lo que es psicopático y neurótico, pero será sólo un frag-
mento. Aparte de esto, todo nuestro código penal irá a
parar al museo donde han ido a parar los legajos de los
procesos por brujería. Cuando los señores son super-
fluos por razones económicas y tampoco son necesarios
los siervos, cuando no se necesita, ni compensa, la explo-
tación económica de los más débiles, ni el que las perso-
nas de la misma clase compitan en una lucha de conquis-
tas imposibles, el odio mutuo entre los hombres pierde
sus motivaciones y objetivos. Y no porque «el hombre»
se haya transformado desde dentro, respondiendo
a amonestaciones y estímulos que hasta ahora no han
producido fruto alguno, sino porque una sociedad que ya
no está basada en antagonismos no necesita recompen-
sar el instinto de agresión para «seguir progresando»
(Häsler 1973: 22-23)20.

Ahora es tecnológicamente posible rastrear el discurso del odio


mediante la realización de un inventario de significantes prohibidos21
(en particular, los insultos y el léxico del odio) o las sintaxis prohibi-
das (una gramática prohibida) de ciertos significantes, al tiempo que se
establece un conjunto de reglas de “buenas prácticas” de las interac-
ciones en línea que condenan las ambigüedades, los dobles sentidos y,
finalmente, cualquier tipo de redacción engañosa que pueda contener

20 El resaltado en negrita es nuestro.


21 La idea del lenguaje no solo como instrumento de opresión sino también como instrumento
de emancipación se debe, en el fondo, a dos grandes cambios de principios del siglo XX: se
deja de concebir el lenguaje come algo neutro, descriptivo y se descubren, por una lado,
la performatividad (Wittgenstein/Austin), es decir, el poder creador del lenguaje y, por
otro, con el feminismo, se hace hincapié en el contexto concreto en el que se produce la
comunicación entre sujetos (en este caso se hace referencia al género, pero piénsese no
solo en los Gender, sino también en los Queer, Critical Race, Disability Studies). (Bianchi
2021: 7).

128
RESTOS DE HORROR

incitación22 al odio. Tal pretensión de una nueva gramática digital y la


selección de un cierto positivo en el ciberespacio podrían conducir como
de rebote, sospechamos, a la revisión de la gramática del lenguaje natu-
ral y a un nuevo positivo offline que no solo perseguiría mejorar la co-
municación (idealmente liberada del odio y de los malentendidos) entre
humanos sino también, (¿y sobre todo?) tal vez mejorar la comunicación
entre humanos y máquinas. (Gadet et Pêcheux 1981: 128)
No podemos aceptar el diseño de un código deontológico para
el internauta, entrelazando la lógica del lenguaje y la lógica del Derecho,
con el fin de deshacerse de oraciones mal construidas y equívocas y de
construir un habla digital universal limpia de palabras y de secuencias
sintácticas supuestamente dañinas, que no son sino restos de la con-
dición humana en el lenguaje natural. En Lógica (del lenguaje y del
Derecho) es la estructura formal la que decide todo, para poder final-
mente someter los enunciados en línea a una semántica de juicio legal
(Gadet et Pêcheux 1981: 148).
El delito lingüístico se interpreta como la capacidad de un enuncia-
do caracterizado gramaticalmente para ser discursivamente inaceptable
y por consiguiente punible, pero ¿dónde establecer la línea que separa
lo que, siendo correcto lingüísticamente, deja de ser correcto discursi-
vamente? Ronat, en La langue manifeste (citado por Gadet et Pêcheux
1981 : 164) distingue tres posibles órdenes en el lenguaje: lo legalmente
posible, lo científicamente posible, lo lúdicamente posible. De ahí, de-
ducimos que la detección del discurso de odio no puede producirse sino
partiendo de la premisa de que todo enunciado (por muy “malo” o “su-
cio” que sea) es caracterizable lingüísticamente; es decir, que la detec-
ción del discurso de odio no puede producirse, según tal premisa, sino

22 Algunos epítetos se consideran action-engendering, es decir, que incitan a la acción,


que legitiman cierto tipo de acción, abriendo la puerta a acciones contra individuos de
grupos “protegidos”. Ahora bien, para entender el paso de la palabra a la acción hay que
contextualizar el uso de la palabra y verlo en el contexto institucional: si lo que alguien
dice tiene algún tipo de relación con redes institucionales de discriminación o, más
simplemente, si remite a una historia de opresión y censura social entonces la dirección
es la de la legitimación, aunque no sea de modo consciente: “si può prendere parte a una
feroce pratica di subordinazione in modo superficiale, semplicemnte usando con leggerezza
le parole” (Bianchi 121: 134).

129
RESTOS DE HORROR

de forma estrictamente formal, sin considerar un exterior al lenguaje


definido por el sistema de conocimientos y creencias de una comunidad
determinada en un momento y lugar determinados.
Tal tarea de detección de delitos de odio en la red se hace habitual-
mente como si los internautas fueran hablantes ideales (unos “buenos”,
otros “malos”), en definitiva, como si los usuarios de las redes socia-
les no tuvieran historia (con sus restos de horror) ni inconsciente, sino
que fuesen individuos dotados de tiempo presente únicamente, singu-
lares, plenamente conscientes y responsables de sus palabras, o como
si no hubiera matices grises entre lo “bueno” y lo “malo”.
Terminamos nuestro texto destacando entonces la necesidad
de que la investigación para la detección del discurso del odio contem-
ple además una investigación preliminar sobre las condiciones de pro-
ducción de los mismos (en sentido de Pêcheux & Fuchs 1975), en suma:
sobre las omisiones, los dos olvidos (Pêcheux & Fuchs 1975: 13, 20) y las
ambigüedades que caracterizan todo lo que no pertenece al lenguaje sino
al discurso. La consideración de este “exterior” permitiría, eso creemos,
desplazar la cuestión del sujeto y la de los datos tratables automática-
mente y a la vez reemplazar la interpretación lógico-jurídica del discur-
so de odio “par une pratique d’interrogation des énoncés référés à leur
position dans un champ historique. (Gadet et Pêcheux 1981: 170)
La problemática de la desviación23 asociada a los discursos de odio,
tal como se ha investigado hasta ahora, implica la premisa de la existen-
cia de un discurso ideal adecuado (correcto, higiénico), concebido como
una totalidad completa y resultante de un proceso de (auto-) censura y
(auto-) exclusión. Esto es lo que provoca, según estimamos, que el es-
tudio de los discursos de odio pueda conducir a cuestionar los límites
de la libertad de expresión, evitando el problema fundamental de la atri-
bución asimétrica de legitimidad que condena a la distorsión ilocutoria
a los internautas, tanto como al silencio a los invisibles del sistema.
La cuestión de la responsabilidad por un delito lingüístico (el
discurso de odio) puede ser una cuestión política. No podemos ignorar

23 Entendida respecto a lo cor-recto.

130
RESTOS DE HORROR

que el lenguaje se ve afectado por la lucha de géneros, edades, clases,


razas, creencias religiosas, lo que se manifiesta en la producción de eti-
quetas, de cierta fraseología y de ciertas estructuras sintácticas.
Y, después de todo, el discurso de odio no se está concibiendo nor-
malmente como una simple desviación, sino como realmente un delito.
Pero ¿el discurso de odio es semejante a un crimen o un asesinato, o más
bien podría clasificarse, en palabras de Gadet et Pêcheux (1981: 172)
como “quelque chose de l’ordre du gaspillage24”?
La separación de tareas entre el trabajo de la lengua y el de la
Ley disminuye paulatinamente hasta el punto de borrarse en esta em-
presa encaminada a limitar la infinidad de enunciados teóricamente
aceptables decantándolos del « mauvais infini » (Gadet y Pêcheux, 1981:
175) ¿deberíamos entonces temer el fin de la lingüística (ibidem, p. 187)
y del análisis del discurso digital, diluidos en el ámbito de las leyes y del
derecho?
La filosofía que parece predominar en la lingüística aplicada a la
ciencia forense implica la construcción de una especie de gramática uni-
versal del lenguaje delictivo (concretamente, una gramática universal
del discurso del odio), dotada de una potencialidad expresiva muy limi-
tada (apenas un conjunto limitado de sustantivos, adjetivos y verbos),
organizados en un número limitado de fórmulas y giros sintácticos
que pueden usarse (al ser gramaticalmente correctos) pero que no de-
ben usarse (por ser discursivamente incorrectos y legalmente punibles).

Bibliografía

BAUDRILLARD, J. Simulacres et simulations. París: Gallilée, 1981.


BIANCHI, C. Hate speech. Il lato oscuro del linguaggio. Bari-Roma: Editori
Laterza, 2021.
BUTLER, J. Le pouvoir des mots, Paris : Ed. Amsterdam / (trad del inglés por
Charlotte Normann y Jerôme Vidal, 2005.

24 Derroche, despilfarro, desperdicio.

131
RESTOS DE HORROR

CHARAUDEAU, P. Identité sociale et identité discursive, le fondement de la


compétence communicationnelle, Gragoatá, 21/2, p. 339-354, 2006.
DI FANTI, M. da G. C.; LÓPEZ-MUÑOZ, J. M. “Tonos intolerantes en discursos de
grandes medios de comunicación brasileños: un estudio dialógico”. Letrônica,
13(2), 2020. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-4301.2020.2.37411
FALOPPA, F. #odio. Manuale di resistenza alla violenza delle parole, Torino:
UTET, 2020.
FOUCAULT, M. L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971.
FOUCAULT, M. Leçons sur la Volonté de Savoir. Cours au Collège de France.
1970-1971, Paris: Gallimard-Seuil, 2011.
FRICKER, M. Epistemic Injustice. Power & the Ethics of Knowing, Oxford,
Oxford University Press, 2007.
GADET, F.  ; PECHEUX, M. La langue introuvable. Paris: François Maspero,
1981.
GRICE H. Paul, Logique et conversation. Communications, 30, 1979. pp. 57-72.
MAINGUENEAU, D. Situation d’énonciation, situation de communication, dans
C. Figuerola et al. (eds.). La lingüística francesa en el nuevo milenio. Lleida,
2002.
PECHEUX, M. Les vérités de La Palice. Paris: F. Maspero, 1975.
PECHEUX, M.; FUCHS, C. Mises au point et perspectives à propos de l’analyse
automatique du discours, Langages, 37, 7-81, 1975.
RANCIERE, J. Le partage du sensible  : esthétique et politique. Paris: La
fabrique éditions, 2000.
SBISÀ, M. Linguaggio, ragione, interazione. Per una pragmatica degli atti
linguistici. Bologna: il Mulino, 1989.

132
PARTE 2
LUTO-DENÚNCIA E A MATERIALIDADE
FOTOGRÁFICA1

Rogério Modesto

Introdução

As relações entre luto e revolta não são estranhas. Ao considerar


o luto como acontecimento, Baldini (2018, p. 33) nos diz que este é “um
acontecimento que convoca o sujeito para um ato, um ato que proporcio-
na abertura para que algo se encerre”. Tomar o luto como algo que con-
voca o sujeito parece estar no cerne do binômio luto-luta, amplamente
posto em circulação em nossa formação social, e que compõe uma im-
bricação que não deve ser tomada num sentido dicotômico, mas numa
relação estabelecida entre continuidades e descontinuidades.
Tomado por essas questões, quero, neste texto, pensar a expres-
são do luto a partir da demanda da revolta social e da denúncia. Luto
que convoca o sujeito para uma tomada de posição sobredeterminada
pela necessidade de dizer, de agir e de resistir. Considero, para isso, a es-

1 Este texto traz um recorte amplamente revisto e modificado de uma questão trabalhada
em minha tese de doutorado, intitulado Você matou meu filho e outros gritos: um estudo
das formas da denúncia, defendia em 2018 no Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas.

135
RESTOS DE HORROR

pecificidade de um luto coletivo, um acontecimento que toma sujeitos


marcados socialmente pelas margens que, em muitos casos, é também
uma margem do dizer e é daí que se coloca a demanda por um luto cole-
tivo. Recupero, assim, o luto-denúncia de mães, mulheres negras de pe-
riferia, que tiveram seus filhos mortos em ações policiais. Um luto que se
imbrica contraditoriamente com a (in)justiça social e que coloca como
questão a construção de uma articulação coletiva, um movimento de ex-
pressão do luto e que é simultâneo e constitutivo de uma forma de de-
núncia (MODESTO, 2018).
Nessa tomada de posição teórica e analítica, é possível considerar
o luto como uma experiência com o trauma e com a ausência que, contra-
ditoriamente, impõe a materialidade da presença e do dizer. Tem-se aí,
uma experiência com a ausência que produz uma revolta materializada,
muitas vezes, na “necessidade de contar aos outros, de tornar os outros
participantes [...] caráter de impulso imediato e violento, até o ponto
de competir com outras necessidades elementares” (LEVI, 1988, p. 08).
Luto coletivo, ausência e presença. Essa composição significante
evoca, como efeito de sentido possível, a continuidade da vida na vi-
vência da morte ou a irrupção de uma vida possível apesar da morte.
Quando da vivência social e coletiva do luto, a luta se coloca como
uma forma de fazer presente os que já foram reverberando e corporifi-
cando suas vozes.
O estranhamento provocado pelo alinhamento “estar morto” e “ter
voz” fala-nos, desse modo, de uma morte presente, de uma morte ainda
sem paz, da impossibilidade de que haja silêncio no sepulcro. No luto
coletivo-denúncia, é preciso falar dos mortos, falar pelos mortos, ser a
voz dos mortos, ser o corpo dos mortos, trazê-los à vista, à vida.
Essa voz-corpo-presença revive a vida e a morte daqueles que já
foram. Ela deixa as feridas abertas. Uma forma de denúncia que funciona
“como ferida aberta esperando outros modos de cicatrização e que deixa
o sangue fluir por precisão e não porque se gosta da dor” (MODESTO,

136
RESTOS DE HORROR

2019, p. 143). Ser a voz dos mortos, a presença deles entre nós, mobiliza
a dor, o luto, a tristeza, a desesperança e a quebra dos sonhos, mas tam-
bém, em alguma medida, a felicidade, o soerguimento, a luta. Tudo isso
em favor de uma militância que (re)significa o(s) afeto(s) colocando-o(s)
na tensão entre o social e o político.
Nas páginas que seguem, desse modo, faço uma análise que toma
o corpo daqueles que já se foram na relação com o corpo dos que aqui
fazem memória em vida, na vida de um luto-denúncia. Trabalho, as-
sim, o efeito de presença-ausência que se materializa em fotografias.
São fotografias que compõem os livros-testemunho-denúncia: Relatório
da Anistia Internacional do Brasil de 2015, intitulado Você matou meu fi-
lho: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro,
e o livro de relatos Auto de resistência: relato de familiares de vítimas
da violência armada. Em ambos, o luto coletivo de mulheres negras e de
periferia dá a tônica da resistência.

A fotografia: uma materialidade para o luto-denúncia

“Desde que as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia


flertou com a morte”. Esse é o ponto de entrada de Sontag (2003, p. 24),
em seu livro Diante da dor dos outros, na defesa da ideia de que a socie-
dade norte-americana passou a ter uma nova intimidade com a morte
e com a destruição, enfocando, nessa narrativa, a produção tecnológica
da fotografia como fundamental para essa nova experiência. Ao traçar
um histórico dessa questão, a ensaísta americana pontua a evolução tec-
nológica dos aparelhos fotográficos como fundamentais no desenvol-
vimento da atividade fotojornalismo que toma as guerras como objeto.
Apesar de não ceder à ideia do senso comum para a qual uma ima-
gem vale mais do que mil palavras, Sontag trabalha a partir da premis-
sa de que a fotografia fala por si mesma. Ela prega, então, a autono-
mia da imagem, precisamente da fotografia que, nesse caso, constitui
uma tecnologia fundamentalmente única e, em certa medida, mais
abrangente.

137
RESTOS DE HORROR

Tanto em relação ao signo verbal, a escrita, quanto em relação


a outras imagens, a autora defende que a fotografia produz certas for-
mas de compreensão que lhe são únicas, mais eficientes ou acessíveis.
Em primeiro lugar, em comparação com o escrito, a fotografia apre-
sentaria um menor grau de complexidade de codificação porque teria
apenas uma língua. Assim, de acordo com a autora, “ao contrário de um
relato escrito, – que, conforme sua complexidade de pensamento, de re-
ferências e de vocabulário, é oferecido a um número maior ou menor
de leitores – uma foto só tem uma língua e se destina potencialmen-
te a todos” (SONTAG, 2003, p. 21). Em segundo lugar, em comparação
com as imagens em movimento, a fotografia seria mais eficiente em ser
lembrada e em marcar a memória dos sujeitos. Nesses termos, a autora
sustenta que:

O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema)


constitui o nosso meio circundante, mas, quando se tra-
ta de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória
congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isola-
da. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia
oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma
compacta de memoriza-lo. A foto é como uma citação
ou uma máxima ou um provérbio (SONTAG, 2003, p. 23).

Em terceiro lugar, em comparação com a pintura, a autora argu-


menta que a fotografia seria mais bem compreendida como uma forma
de documentação. Nesse sentido, o horror provocado por uma foto se-
ria diferente do que é provocado por uma tela. Para Sontag, a foto goza
de um prestígio positivista em virtude de ser a captura de um momento
testemunhado por um fotógrafo. O horror capturado por ela seria o hor-
ror ele mesmo tal como se deu. A pintura, por seu turno, marcaria menos
essa relação entre verdade-horror, tendo, muitas vezes, o foco de com-
preensão relacionado ao talento ou estilo do pintor. Se, por um lado,
a tecnologia envolvida na fotografia daria a ela status de objetividade (e
consequentemente legitimidade), por outro lado, as técnicas da pintura,

138
RESTOS DE HORROR

sendo a priori consideradas artísticas, associadas ao tempo de produção


de uma obra, colocariam a tela como um discurso meramente artístico.
De uma perspectiva propriamente discursiva, é impossível en-
dossar toda essa forma de compreensão da fotografia empreendida
por Sontag. É preciso lembrar das palavras de Pêcheux (2006, p. 29) para
quem “não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de
encontro com ele, o encontra”. Para ser consequente com uma perspec-
tiva materialista, é importante pensar a fotografia como um material
disposto à interpretação e, por isso mesmo, equívoco.
Não há algo que fale por si mesmo, antes do olhar do sujeito que,
na relação contraditória com as formações discursivas, atribui senti-
do. Não há um sentido fixo, congelado junto com o clique que captura
a imagem, tornando-a estática. Não há um conteúdo a priori, evidente,
que deve ser apreendido por aquele que vê.
Há de se considerar, contudo, que a vertente conceitual em torno
da fotografia que sustenta a obra de Sontag constitui um forte discurso
sobre a imagem. Apesar de enfocar aqui a fotografia, faço um paralelo
com o que nos diz o teórico do cinema e do documentário, Jean-Louis
Comolli. Para Comolli (2008), o documentário, imagem do real em mo-
vimento, é um espaço próprio para a circulação de sentidos não domi-
nantes, o que produz como efeito a ligação entre o fazer documentário
e a implicação política.
De acordo com o autor, o espectador de uma representação inter-
pretada por atores é levado a crer na unidade de uma cena ficcional,
(uma composição entre corpo, texto e narrativa). Em outra direção, o es-
pectador do documentário não precisa ser levado a dar unidade e coe-
rência a uma cena (um fato real), já que, pelas “regras do jogo”, sabe-se
que “aqueles que ali estão, ali estão mesmo, são eles próprios, e não ‘re-
presentados’ por atores profissionais” (COMOLLI, 2008, p. 29).
Comolli afirma, nesse sentido, que os espectadores de documen-
tários estão sob o invólucro de uma inocência ou ingenuidade que os
fazem como que virgens de qualquer dimensão espetacular, virgens
do fato de que o espetáculo está por toda parte. E tal invólucro signifi-

139
RESTOS DE HORROR

caria a “ilusão da não-ilusão” (COMOLLI, 2008, p. 29). Ao afirmar que a


espetacularização é um sintoma da sociedade contemporânea, o autor
aproxima e distingue documentário e ficção: por um lado, ambos estão
submersos na cultura do espetáculo, fato que os remete a uma nunca
apreensão do real; por outro lado, se a ficção é declaradamente ficção,
o documentário silencia este seu aspecto, dando a si o poder de fa-
zer ver uma verdade, pois os corpos ali filmados são garantidos como
verdadeiros.
Se Comolli, ao tematizar um imaginário em torno do documen-
tário como forma material específica para denunciar (porque revelaria
a verdade), apresenta um discurso sobre (MARIANI, 1989) a imagem,
Sontag, por sua vez, deixa ver a eficácia de um discurso sobre a fotogra-
fia que respalda uma leitura idealista para a qual uma foto, uma ima-
gem, é a prova cabal de algo a se relatar. A fotografia atua nas lacunas
da língua, nessa forma de entendimento, porque, se os textos podem
ser postos em xeque, a evidência da imagem interrompe qualquer desvio
de interpretação. É dessa posição que seria possível dizer que a imagem
complementa o signo verbal, é a prova do que é narrado.
Retomar o trabalho de Sontag é já um gesto analítico de compreen-
são do que quero aqui trazer à tona. Nos materiais de análise, o recurso
da fotografia é fundamental. Tanto no Relatório da Anistia Internacional
quanto no livro Auto de resistência, cada relato vem acompanhado de fo-
tos que presentificam o luto, a dor, a ausência e a revolta. Os sujeitos
mortos pela ação policial, ausentes na vida (de suas famílias), passam
a constituir presença pela saudade e a recorrência de suas imagens
se torna forma de ficar, mas também de denúncia e resistência.

Descrição e gesto de análise

Neste gesto de análise, volto minha atenção para um arquivo


composto por duas materialidades específicas: o Relatório da Anistia
Internacional do Brasil de 2015, intitulado Você matou meu filho: homicí-
dios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro (referencia-
do nas imagens como RAI), e o livro de relatos Auto de resistência: relato

140
RESTOS DE HORROR

de familiares de vítimas da violência armada. Esses dois materiais dizem


respeito às condições de produção da violência policial direcionada
à população de periferia no contexto do Rio de Janeiro. Esses materiais
são formulados e postos em circulação a partir de movimentos do so-
cial que espelham certa solidariedade em torno das causas denunciadas:
o genocídio da população negra e de periferia e a atuação do Estado nes-
se processo.
Como mencionado, o relatório é produzido pela Anistia
Internacional do Brasil, já o livro Auto de resistência, organizado
por Bárbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso e publica-
do em 2009 pela editora 7Letras, é fruto do Projeto de Apoio a Familiares
de Vítimas de Chacinas que é uma colaboração entre a Universidade
Cândido Mendes e a Universidade de Coimbra com apoio da Fundação
Ford. Tanto no relatório quanto no livro, há uma coletânea de teste-
munhos de histórias particulares de famílias que perderam seus filhos
para a violência policial. O luto é ponto estruturador dos materiais.
Testemunhos, fotos, intervenção de especialistas, mapas e gráficos
são elementos presentes nos dois textos.
Contudo, se o livro apresenta uma vertente focada na superação
dos traumas, como se funcionasse mesmo como um tipo de autoaju-
da, por vezes, inclusive, minimizando seu efeito denúncia, o relatório,
por sua vez, grita essa sua vertente, afirmando-se como um documen-
to que pretende funcionar como uma denúncia social. Uma manifesta-
ção da sociedade civil organizada. Nesses materiais, o batimento entre
a individualidade de histórias particulares e a construção de um coleti-
vo está em pauta. Tem-se aí o fato de que “os já diversos movimentos
sociais surgidos em decorrência da violência não são idênticos: oriun-
dos de diferentes segmentos sociais, significam diferentemente” (MAIA,
MEDEIROS, 2009, p. 119). É a dor funcionando como traço textualiza-
do que não pode coincidir com outras dores, mesmo que elas estejam
em referência e retomada.
Apresento, a seguir, dois blocos de imagens e, a partir delas, pro-
duzo um gesto analítico.

141
RESTOS DE HORROR

Presença e ausência: corpo no corpo

Ao constituir as sequências a partir dos recortes que seguem, bus-


co, pela deslinearização das imagens (LAGAZZI, 2013), confrontar o in-
tradiscurso e o interdiscurso nas materialidades das fotografias. Esse
procedimento teórico-analítico expõe à opacidade aquilo que é tomado
na evidência, focando, assim, no funcionamento discursivo. Afasto-me,
desse modo, de duas direções que poderiam ser reclamadas numa visada
conteudista. Em primeiro lugar, é impossível considerar a imagem como
a captura exata do real; aquilo que se apreende pela possibilidade de con-
gelamento do tempo que está em funcionamento no clique da máqui-
na. Em segundo lugar, aqui não cabe ler a imagem como complementar
ao texto escrito, mas em “composição contraditória” (LAGAZZI, 2011, p.
402) com esses significantes.
É justamente o entendimento da composição que permite consi-
derar que a própria unidade da imagem é imaginária e não real. Em ou-
tras palavras, o efeito de todo e de real que é produzido por uma imagem
é, na verdade, já o funcionamento da formulação que apaga seu proces-
so de constituição, isto é, o batimento entre os elementos significantes
de cada imagem – intradiscurso – e a memória em que aquela composi-
ção se insere para poder fazer sentido – interdiscurso.
Se a imagem produz efeitos de evidência, é importante considerar
que esses são efeitos, ou seja, podem sofrer rupturas e deslizamentos
(PÊCHEUX, 2010). Deslinearizar a imagem seria, então, proceder anali-
ticamente para, trabalhando a formulação, compreender os elementos
discursivos de sua constituição. Lanço mão desse procedimento analíti-
co atentando para algumas regularidades discursivas. Vejamos:

142
RESTOS DE HORROR

Maria José, mãe de Carlos André.

Filho de Ana Cláudia Patrícia, irmã de Marcus Vinícius

Mãe segura a foto de seu filho, João Ana Paula, mãe de Johnathan Oliveira
Carlos Martins. Lima.

Dona Helena, mãe de Pedro Ivo. Fonte: RAI (p. 43)

143
RESTOS DE HORROR

Recorto essa sequência de fotografias atento para uma regularida-


de específica: a metalinguagem em pauta; a foto da foto. A câmera foto-
gráfica que materializa o olhar do Relatório e do livro Auto de resistência
textualiza a ausência que é presença nas fotos capturadas. Não bas-
ta, contudo, reproduzir a foto daqueles que já se foram, mas, ao con-
trário, é preciso confrontar essa presença-ausência na relação com os
que ficaram. No intradiscurso, assim, tem-se o corpo do sujeito-familiar,
do que está vivo, em composição com as diferentes formas de fotografia
do sujeito-morto/desaparecido.
Uma composição que marca a contradição entre ser ausente,
mas estar presente e ser presente e sentir a ausência. Um luto textualizado
e posto em circulação para fazer doer no outro. Um discurso que diz este
que está presente nesta foto não vive mais. Esse ponto da formulação
visual é atravessado pelo interdiscurso produzindo um efeito de falta.
Um efeito que é derivado dessa composição visual entre vivos e mor-
tos/desaparecidos, porque o elemento significante da ausência (o corpo
na foto – aquele que é trazido como materialidade) somente se constitui
ausência e falta pelo confronto com o elemento significante da presen-
ça (o corpo da foto – o sujeito que pousa para a foto trazendo consigo
o outro).
Essa é uma forma de denúncia que atesta, pela falta, um tipo
de perda que se repete de história em história. Vejo, então, em funciona-
mento a relação entre histórias que se repetem produzindo uma nossa
história, um luto nosso. O particular e o coletivo se mostram. Cada sujei-
to-vivo textualiza, pela retomada da foto de seu familiar ausente, um re-
petível que se atualiza na memória discursiva, pondo em pauta um eu
também. Tem-se, assim, numa leitura em conjunto que os materiais
em pauta oferecem, o particular (eu) e o coletivo (também) denunciando
não só a arbitrariedade das mortes que materializam ausências, mas a
frequência dessa ação, pela repetição. A falta como forma da denúncia,
porque é a falta, materializada por uma fotografia que retoma uma outra
fotografia, que metaforiza a morte, a perda, a chacina, o luto, a covardia,
a impunidade e a violência.

144
RESTOS DE HORROR

Luto e luta: é preciso gritar

Outra regularidade notada nos materiais de análise é a necessida-


de de um porvir, de um dia seguinte, este, por sua vez, marcado pela luta.
Tem-se, assim, um luto que é luta, um luto na luta.

Vera Lúcia, mãe de Cristiane Leite Luciene, mãe de Raphael Couto

Nessas imagens, a configuração da militância é também a configu-


ração de que não se espera o outro para agir. O luto-denúncia está posto
de diferentes modos. A produção de uma subjetividade engajada e a ra-
tificação dessa posição militante reverbera como forma de luto e denún-
cia. O nós produzido aí não se excluí da ação política, sendo ele mesmo,
de diferentes modos, também textualização do conflito – denúncia. Essa
subjetividade engajada encontra como “forma histórica de enunciação
política” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 4), na imagem, a textualização
da tomada de posição.
Aqui, faço um paralelo com o que Mónica Zoppi-Fontana discute
em termos de lugar de fala. Tratando justamente do atravessamento en-
tre posições subjetivas de resistência e enfretamento e os modos como
tais posições são verificadas em formas históricas de enunciação que via-
bilizam esse lugar de fala, Zoppi-Fontana tensiona o conceito de lugar
de enunciação, buscando compreender o discurso, a prática política e a
constituição de sujeitos e movimentos sociais. Para a autora,

145
RESTOS DE HORROR

Enunciados como: “Eu  sou X”; “somos todos X”; “X


não me representa”; “X me representa”, que circulam
amplamente nas redes sociais e nas ruas, trazem na sua
materialidade linguística as marcas de uma contradi-
ção  que afeta a (im)possibilidade de uma  enunciação
política que não esteja ancorada nas determinações sub-
jetivas que constituem um eu/nós que forneceria o fun-
damento último da legitimidade ética e epistemológica
de um dizer. Do ponto de vista teórico trata-se da rela-
ção entre acontecimento  discursivo, memória discursi-
va e enunciação na sua reflexividade performativa. Se é
a posição-sujeito que determina os sentidos dos enun-
ciados  a partir do funcionamento da memória discur-
siva,  é na enunciação de um sujeito em determinadas
condições de produção que esse dizer poderá ser reco-
nhecido como legítimo relativamente a um determinado
lugar enunciativo (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 4).

Nas fotografias em pauta na está em funcionamento a atestação


dessa não representação, porque ela seria incapaz de produzir lugar
de resistência e lugar de fala. A fotografia busca capturar um momento
em que não se fala pelas mulheres, mas as mulheres ocupando aquilo
que se poderia chamar de seu lugar. Se os enunciados permitem que se
diga X não me representa, na formulação visual mostra-se essa não repre-
sentação pela atuação capturada na imagem.
Essa impossibilidade de representação política por um terceiro
como instituição de um lugar de fala é construída pelo atravessamento
do intradiscurso – corpo, microfone, gesto indicativo de avançar, boca
aberta que grita palavras de ordem – pelo interdiscurso – a memória
da resistência, do protesto, do enfretamento. Como todo dizer, a imagem
se produz no encontro da formulação visual com a memória discursiva.
É importante ressaltar, no entanto, que esse protagonismo dado
a ver pela imagem está à disposição daquele que está na posição de ob-
servador. Embora o eu se marque no protagonismo, a cena que se mostra

146
RESTOS DE HORROR

pela fotografia demanda também o olhar do outro e, nesse sentido, ins-


creve discursivamente um nós.
Pensar a fotografia como forma da denúncia é ratificar a posição
de que a denúncia não se produz apenas como acusação, como conteúdo.
O gesto dá corpo ao sentido. O corpo nas fotografias fala de diferentes
conflitos, por se materializa como a tentativa de encerramento de um
luto, e por isso trabalha, através do funcionamento de uma memória dis-
cursiva, a discursividade da denúncia que se engendra por um juridismo
em pleno funcionamento no social.
Na fotografia, especificamente no modo como ela foi tomada aqui,
há falta, excesso e estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009) produzindo
denúncia. A ausência do corpo do sujeito ausente vira uma elipse (fal-
ta) que passa a ser preenchida por uma incisa (excesso-estranhamento)
que é a própria retomada de uma sua fotografia. O jogo ausência-pre-
sença produzindo esse estranhamento “que produz o conflito” (ERNST-
PEREIRA, 2009, p. 05). A falta de um outro materializada na não inter-
locução do olhar é também estranhamento que se desdobra na projeção
de outros lugares de identificação. Por fim, a não promoção de uma re-
presentação – a sua falta – como possibilidade de uma enunciação visual
em que o porta-voz negocie sua aparição com a subjetivação dos sujeitos.

Considerações finais

Se, de uma perspectiva discursiva, podemos dizer que o tudo não se


diz, é preciso também dizer que o tudo não se fotografa. Haverá sempre
algo, especialmente na relação com o luto, o trauma, a dor e o sofrimen-
to, que não pode ser sequer nomeado. De qualquer modo, malgrado este
impossível, elaborar o luto e tensioná-lo pela luta torna-se um gesto
incessante. Uma marca das infindáveis tentativas de inscrição subjetiva
no simbólico, que toma como objeto possível um sem fim de materiali-
dades significantes disponíveis para o sujeito em suas condições reais
de existência.

147
RESTOS DE HORROR

Tomando a fotografia como objeto, foi possível refletir aqui acerca


do modo pelo qual o sofrimento que singulariza o sujeito, quando res-
tituído seu caráter histórico (FARGE, 2015), inscreve sempre o político
ao se inscrever simultaneamente num social estilhaçado em nossas con-
dições de produção brasileiras.
Há muito a notar: uma dimensão da dor que, provando-se coletiva,
admite sua dimensão social e histórica; um luto-denúncia que engendra
processos de significação para além do sofrimento, e contraditoriamen-
te, por causa do sofrimento; uma materialidade significante imagina-
da como fonte ideal para captura da dor, da revolta, da denúncia e da
resistência; a luta que é luto e o luto que é luta. Formas de produção
de sentido que, dispostos no social, colocam em pauta a inaceitável po-
lítica genocida do Estado que, por sua vez, tem gestado as sociabilidades
negras e de periferia. Na contradição que produz resistência sob e con-
tra a dominação, que haja espaço para um exercício digno de um luto
que tenha um fim.

Referências

BALDINI, L. Luto, discurso, história. In: GRIGOLETTO, Evandra; DE NARDI,


Fabiele Stockmans; SILVA SOBRINHO, Helson Flávio (Orgs). Imaginário,
sujeito, representações. Recife: EdUFPE, 2018, p.26-34.
COMOLLI, J-L. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção,
documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ERNST-PEREIRA, A. A falta, o excesso e o estranhamento na constituição/
interpretação do corpus discursivo. In: Anais do IV SEAD: seminário de
estudos em análise do discurso. Porto Alegre: UFRGS, 2009, p. 01-05.
FARGE, A. Lugares para a história. Tradução: Fernando Scheibe. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
LAGAZZI, S. O recorte e o entremeio: condições para a materialidade significante.
In: RODRIGUES, E. et al. (orgs.). Análise de Discurso no Brasil: pensando o
impensado sempre. Uma homenagem a Eni. Campinas: RG Editores, 2011, p.
401-410.

148
RESTOS DE HORROR

______. Delimitações, inversões, deslocamentos em torno do Anexo 3. In:


LAGAZZI, S. et al (orgs.). Estudos do texto e do discurso: o discurso em
contrapontos – Foucault, Maingueneau, Pêcheux: São Carlos: Pedro&João
Editores, 2013, p. 311-331.
LEVI, P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
MAIA, M. C.; MEDEIROS, V. A lei do desejo: o caso das antígonas cariocas. In:
MARIANI, B.; ROMÃO, L.; MEDEIROS, V. (orgs.). Dois caminhos em (des)
elençaces: discursos em Pêcheux e Lacan. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p.
116-130.
MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais
(1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
MODESTO, R. “Você matou meu filho” e outros gritos: um estudo das
formas da denúncia. Tese (Doutorado em Linguística), Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.
_____. Não esquecer, não aceitar: a denúncia “quando se exige silêncio” e a
construção discursiva do antagonismo. In: GRIGOLETTO, E.; DE NARDI, F. S.;
SILVA SOBRINHO, H. F. (orgs). Sujeito, sentido, resistência: entre a arte e o
digital. Campinas: Pontes Editores, 2019, p.127-144.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes,
2006.
______. O papel da memória. In: ACHARD, Pierry. (org.). O papel da memória.
Campinas: Pontes Editores, 2010, p. 49-58.
RELATÓRIO DA ANISTIA INTERNACIONAL DO BRASIL. Você matou meu
filho: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015.
SOARES, B.; MOURA, T.; AFONSO, C. (orgs.). Auto de resistência: relato de
familiares de vítimas da violência armada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras: 2003.
ZOPPI-FONTANA, M. “Lugar de fala”: enunciação, subjetivação, resistência. In:
Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 e 13th Women’s
Worlds Congress. Florianópolis, 2017, p. 01-10.

149
NO RISCO DO TESTEMUNHO: ENTRE O
TRAUMA E A INCOMPLETUDE

Aline Fernandes de Azevedo Bocchi

As questões muitas vezes paradoxais que envolvem o testemunho


me inquietam já há algum tempo. Ao assistir o documentário Soldados
do Araguaia, dirigido por Belisario Franca e lançado em 2017, a contra-
dição que habita o funcionamento dos testemunhos que o estruturam,
e pode ser apreendida entre o que é dito e o que inevitavelmente es-
capa, deflagrou em mim estranhamentos. Na tentativa de narrar o que
há de mais marcante e específico na experiência traumática de solda-
dos que vivenciaram o episódio sangrento e amplamente silenciado
da Guerrilha do Araguaia, o documentário oferece uma interpretação
desse evento histórico e impressiona por diversos motivos, a começar
pelo fato de os sobreviventes serem ex-soldados do Exército Brasileiro,
militares de baixas patentes submetidos a torturas durante treinamen-
tos e instruções preparatórias, e que presenciaram posteriormente todo
tipo de violência e extermínio, seja contra prisioneiros políticos captu-
rados, seja contra moradores locais.
Os fatos históricos falham em dar conta da natureza do testemu-
nho, já que aqueles que testemunham não são historiadores (ou mes-
mo opositores políticos), mas militares que empregam corpo e palavra
para narrar suas experiências pessoais e históricas de Terror de Estado.

151
RESTOS DE HORROR

Somos surpreendidos, portanto, por uma versão da história de exceção


que foi a Ditadura Militar, a qual transformou em testemunhas os sol-
dados de seu próprio batalhão. Em meio a tensões, esses testemunhos
possibilitam uma inflexão no sentido do que é ser vítima de violência
de Estado no Brasil. Também permite reflexões sobre as questões es-
truturais das Forças armadas e das Policias Militares brasileiras, violen-
tas em sua própria constituição, cujos efeitos se estendem à democracia
atual. Acolhidos pelo projeto Clínicas do Testemunho, política pública
pioneira na reparação psíquica aos afetados pela violência nos anos
de chumbo da Ditadura e que incorreram em sofrimento psíquico e so-
cial de sujeitos até sua terceira geração, conforme Indursky e Kveller
(2018), esses militares narram os acontecimentos a partir de uma po-
sição particular e cujo ato envolve uma qualidade curativa, conforme
considera Felman (2000).
Segundo Indursky e Kveller, ao longo da existência do Clínicas
do Testemunho inúmeros militares procuraram atendimento. Para mui-
tos deles, era a primeira vez que poderiam falar entre seus pares sobre
as violências testemunhadas e cometidas. De acordo com o relatório
da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014, p. 19), esses milita-
res não se identificavam com o campo da esquerda e guardavam ide-
ais nacionalistas de amor à pátria. Entretanto, foram expulsos de suas
corporações e destituídos de direitos, presos em condições aviltantes,
torturados, humilhados. O trabalho clínico realizado revelava os custos
subjetivos de terem vivenciado uma dupla violência e a dimensão do re-
conhecimento das injustiças sofridas:

Inicialmente orientados por seus advogados, eles nu-


triam a ideia de que seu engajamento traria efeitos po-
sitivos na apreciação de seus requerimentos de anis-
tia. Uma vez envolvidos nos grupos de testemunho,
todavia, descobrimos que estes sujeitos já haviam tido
seus processos indeferidos pela Comissão de Anistia,
ou até mesmo cassados pela Advocacia Geral da União,
encontrando-se na inquietante posição de um duplo
não reconhecimento: por um lado, haviam sido expulsos

152
RESTOS DE HORROR

das Forças Armadas por terem testemunhado ou reali-


zado diretamente crimes de lesa-humanidade em nome
destas; por outro, viviam como párias em suas comunida-
des, pois eram considerados torturadores. (INDURSKY;
KVELLER, 2018, p. 71-72)

Não vou me estender sobre a questão do reconhecimento, embo-


ra seja uma dimensão constitutiva do testemunho, aqui compreendido
consoante Felman (2000, p. 18), como uma prática discursiva, um ato
de fala performático que produz seu próprio discurso como evidência
material da verdade: “o testemunho volta-se para aquilo que, na histó-
ria, é ação que excede qualquer significado substancializado, para o que,
no acontecer, é impacto que explode dinamicamente qualquer reifica-
ção conceitual e delimitação constativa” (grifo da autora). A definição
de Felman nos importa porque carregada de uma dimensão que conside-
ra o político no funcionamento do testemunho; ela recusa o viés positi-
vista que busca nele a verdade histórica, uma vez que enfatiza os efeitos
materiais implicados no ato de testemunhar. Como sabemos, o político
diz respeito ao fato de que o sentido é dividido, ou seja, ao fato de que
a elaboração simbólica toca o litígio dos sentidos. Assim, face a “fatos”
históricos traumáticos, os testemunhos tecem interpretações:

É verdade que é ilusório colocar para a história uma ques-


tão de origem, e esperar dela uma explicação do que
existe. Ao contrário, não há “fato” ou “evento” histó-
rico que não faça sentido, que não peça interpretação,
que não reclame que lhe achemos causas e consequên-
cias. É nisso que consiste para nós a história, nesse fazer
sentido, mesmo que possamos divergir sobre seu sentido
em cada caso. Isso vale para nossa história pessoal, assim
como para a outra, a grande história (HENRY, 2010, p.
47).

Assim, ao tornar uma experiência de horror compreensível,


o testemunho está exposto ao risco de perder a especificidade daquilo
que foi vivenciado; ele não nos proporciona, afinal, “um discurso com-

153
RESTOS DE HORROR

pleto, um relato totalizador [...]”, conforme notou Felman (2000, p. 18),


uma vez que não se oferece como “constatação de um veredicto ou como
saber em si transparente” (p. 18), mas ainda assim diz da dimensão po-
lítica da opressão e da dimensão ética da resistência, as quais procedem
da ocorrência histórica inscrita no testemunho. Ainda segundo Felman
(2000, p. 18), o testemunho se compõe “de pequenas partes de memó-
ria que foram oprimidas pelas ocorrências que não tinham se assenta-
do como compreensão ou lembrança, atos que não podem ser construí-
dos como saber nem assimilados à plena cognição, eventos em excesso
em relação aos nossos quadros referenciais”.
Isso quer dizer que estamos no âmbito do trauma, palavra que de-
riva, conforme Nestrovski e Seligmann-Silva (2000), de uma raiz in-
do-europeia filiada a dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”,
mas também “suplantar, passar através”. Assim, podemos considerar
que a experiência traumática é estruturante justamente porque perfura,
tritura sentidos estabelecidos e, ao mesmo tempo, demanda do sujeito
um gesto para suplantá-la, atravessá-la. É nessa travessia, nesse atra-
vessamento do processo de sobredeterminação do sujeito provocado
pela violência de Estado que situo o testemunho. Ao falar dessas ex-
periências radicais de horror, abre-se uma possibilidade para articular
palavras em torno do buraco cavado pelo real traumático, possibilitando
à testemunha, pela via de uma implicação subjetiva, alguma atividade
sobre o real que produziu o trauma.

***

No campo da Psicanálise, o trauma não é o acontecimento em si,


mas o modo como ele incide sobre o psiquismo. Segundo Rudge (2009),
a palavra trauma se mantém a mesma em quase todos os idiomas
do Ocidente, qualidade que geralmente caracteriza os nomes próprios.
Trata-se de um nome derivado do grego, τραῦμα, e nessa língua traz
em sua significação os sentido de “ferida”. Rudge (2009, p. 8) esclarece
que, em psicopatologia, trauma designa os “acontecimentos que rom-
pem radicalmente com um estado de coisas do psiquismo”; eles provo-

154
RESTOS DE HORROR

cam um “desarranjo em nossas formas habituais de funcionar e compre-


ender as coisas”, impondo-nos “o árduo trabalho de construção de uma
nova ordenação do mundo”. Entre os acontecimentos e seus efeitos
traumáticos se insere a tela da memória e das fantasias.
Encontramos em Freud as bases de elaboração da noção de trau-
ma. O trauma sexual fora percebido por ele desde a época de sua es-
tadia em Salpêtrière e, embora tenha sido objeto de reconstruções (o
abandono da ideia do trauma sexual da sedução, por exemplo), ainda
assim as reflexões em torno dele contribuíram para o reconhecimento
do papel dos desejos e fantasias. Além disso, muito precocemente Freud
pôde reconhecer a característica do trauma de produzir-se “a posterio-
ri”, dando-lhe um lugar estrutural, como equivalente ao recalque origi-
nário fundador do inconsciente. Para Rudge, a ideia da temporalidade “a
posteriori” representa uma concepção específica da causalidade, diversa
da tradicional, que é aquela que prevê uma ação linear do passado so-
bre o presente. “Ela indica que, a cada momento, o presente se associa
ao passado e transforma a sua significação” (RUDGE, 2009, p. 21).
Especificamente em suas articulações sobre a neurose traumá-
tica de guerra, Freud estabelece uma caracterização do trauma como
um evento que transcende os limites de nossa percepção, um even-
to transbordante cuja vivência leva à compulsão à repetição da cena
traumática. Segundo Rudge, os acontecimentos históricos recolocaram
o trauma como tema fundamental aos psicanalistas; em consequência
à Primeira Guerra Mundial, as neuroses de guerra oriundas do campo
de batalha passam a ser estudadas. Essas neuroses, segundo a autora,
“resultam de uma fixação do momento do acidente traumático, que pas-
sará a ser reeditado nos sonhos e a ressurgir na forma de ataques que pa-
recem transportar repetidamente o sujeito para a situação do trauma”
(RUDGE, 2009, p. 40). Freud estabelece diferenças entre neurose trau-
mática e neurose de transferência, assim esclarecida por Rudge (2009,
p. 43):

O trauma é, pois, o impacto de um acontecimento so-


bre um psiquismo singular, e o solo constituído pela

155
RESTOS DE HORROR

história passada do sujeito na determinação do signifi-


cado que esse acontecimento assume para ele não pode
ser desconsiderado, seu mundo de fantasias deve ser le-
vado em conta. Entretanto, são as experiências traumá-
ticas recentes, que não se consegue assimilar nem esque-
cer, que são determinantes na constituição de sintomas,
até mesmo na forma que assumem de um reviver inces-
sante.

As reflexões em torno da neurose traumática foram importantes


para as modificações estabelecidas na segunda tópica freudiana, espe-
cialmente em relação ao princípio do prazer. Afinal, enquanto fenômeno
clínico, a rememoração do trauma mostra-se intensa, vívida e inespera-
da. Subitamente o traumatizado é assaltado por ela; “o reviver da situa-
ção traumática, nessa neurose, se estabelece de forma súbita e invasiva,
quando menos se espera, interrompendo os pensamentos e as atividades
a que estava entregue e causando forte angústia” (RUDGE, 2009, p. 47).
A repetição, que empurra para a repetida atualização das mesmas vi-
vências dolorosas, é introduzida no seio da teoria pulsional. Entretanto,
a repetição é também o lugar da linguagem e, portanto, da possibilidade
de bordejar com palavras a experiência perfurante.
Não foi à toa que Lacan, na terceira parte de “Tiquê e Autômaton”,
se volta para o texto em que Freud discute a repetição traumática na ob-
servação da criança e seu jogo de dizer, o fort da, vivenciado por ela
como repetição da partida da mãe. “O trauma da partida dos pais, su-
gere Lacan, é, portanto, revivido na experiência traumática da criança”
(CARUTH, 2000, p. 133). Assim, é justamente na relação com a lingua-
gem que Lacan situa o trauma humano, no nascimento para um meio
que é o da linguagem. “O impacto da estrutura simbólica é o trauma
que constitui o sujeito como dividido” (RUDGE, 2009, p. 64). O sujeito
emerge a partir do mergulho na rede significante, em uma linguagem
que lhe preexiste e demarca os lugares e posições que se poderá ocupar.
Conforme Rudge, “O significante determina o sujeito, e é em posição
de sujeição que ele será constituído pelo universo simbólico” (p. 63).

156
RESTOS DE HORROR

Entretanto, nem tudo pode ser assimilado simbolicamente; há o


real, aquilo que não cessa de não se inscrever. Assim, o trauma pode
ser compreendido a partir do encontro com o real, como aquilo que ex-
clui o sujeito e não se articula ao seu desejo: “O impacto do real é um
encontro com algo que não tem correspondência no simbólico, que sur-
ge fora das coordenadas de toda e qualquer antecipação e se apresen-
ta tanto nos maus encontros que atingem alguém em especial quanto
nos grandes traumas coletivos” (RUDGE, 2009, p. 66).
Segundo Kehl (2000, p. 138), a dimensão traumática da experi-
ência humana escapa à representação. Ainda assim, a tarefa que nos
cabe, enquanto seres de linguagem, é “ampliar continuamente os limi-
tes do simbólico, mesmo sabendo que ele nunca recobrirá o real todo”.
Ao situar três dimensões que ficam fora da representação para todos
os sujeitos–a mãe, a morte e o sexo–Kehl esclarece que “tudo é passível
de representação, mas não há objeto ou fragmento do real que se deixe
representar todo” (p. 140). Localizo aqui um primeiro risco do testemu-
nho: entre a experiência traumática e sua enunciação, seu testemunho,
intervém uma impossibilidade; toda representação porta uma falta,
o que quer dizer que não é possível dizer o todo da experiência vivencia-
da. Arriscada tarefa, portanto, daquele que se põe a narrar o acontecido
e riscar em palavras as bordas do real. Sabendo jamais poder dar conta
daquilo que viu, ouviu e sentiu, resta-lhe apenas palavras para, talvez,
reinventar um porvir.

***

Todo testemunho comporta um risco.


O risco das testemunhas em Soldados do Araguaia é patente. Eles
têm medo: “Minha mulher diz que eu falo demais e um dia vou sumir.
Se um dia eu sumir você já sabe quem foi” (Soldado Góes), relata um de-
les. Sabe-se que o Exército buscou incessantemente apagar as marcas
Guerrilha sucedida às margens do Araguaia, na mata fechada que ain-
da hoje guarda gritos e corpos dos que lá pereceram. No documentá-
rio Soldados do Araguaia, testemunhos do Terror de Estado são postos

157
RESTOS DE HORROR

em cena para narrar a tortura, a humilhação e a violência de sobreviven-


tes dessa sangrenta Guerrilha. As histórias relatadas beiram o inacredi-
tável e desafiam a compreensão humana, posto a radicalidade das vio-
lências praticadas.

O que eu vi durante seis anos, o que a gente praticou du-


rante seis anos, o que a gente passou, cê não consegue
se libertar. Parece que tem um sargento gritando no seu
ouvido, um oficial gritando no seu ouvido, um doutor da-
queles gritando. A gente se espanta, se urina, tudo isso
acontece. Não é fácil não. Eu digo pra vocês, a nossa alma
não está liberta daqueles maus tratos. Não, porque a gen-
te sente do mesmo jeito. Sente, e tem hora que dá vonta-
de de fazer besteira com a gente mesmo. (Soldado Guido)

“Ninguém testemunha pelas testemunhas”, escreve o poeta Paul


Celan. Segundo Felman, não há substituto possível; o testemunho
não pode ser repetido ou relatado por outrem sem perder sua função
como testemunho. “O fardo da testemunha–apesar de seu alinhamen-
to a outras testemunhas – é radicalmente único, não intercambiável
e um fardo solitário” (FELMAN, 2000, p. 16) com o qual cada um deve
lidar. Contudo, a designação para testemunhar infringi os limites do iso-
lamento, pela via do endereçamento, marcando-se linguisticamente
nos dizeres acima pela passagem do eu (“eu vi”) ao interlocutor você (“cê
não consegue se libertar”), passando pela coletividade, o nós (“a gente
praticou”). “Pelo fato do testemunho ser dirigido a outros, a testemunha,
de dentro da solidão de sua própria posição, é o veículo de uma ocorrên-
cia, de uma realidade, de uma posição ou de uma dimensão para além
dele mesmo” (p. 16–grifos da autora).
Na tentativa de oferecer uma narrativa para o horror inenarrável,
a linguagem cinematográfica mobiliza testemunhos silenciados durante
quase quatro décadas, entremeadas a fotografias documentais e mesmo
cenas ficcionais que dão suporte imagético às histórias relatadas. A casa
azul, lugar onde se realizavam torturas as quais as testemunhas eram
obrigadas a praticar ou presenciar, o medo, a morte, a violência impe-

158
RESTOS DE HORROR

trada ao outro, a desumanização do outro e de si mesmo são elementos


rememorados durante os relatos e visíveis em vozes embargadas, na fala
que não comparece, nas lágrimas a riscarem rostos já envelhecidos, lá-
grimas que rolam à despeito da vontade do sujeito. São testemunhos
que trazem à tona traumas singulares que dizem do extermínio de cor-
pos e subjetividades e do horror constitutivos de um momento histórico
de exceção, particularmente de uma guerrilha instalada em uma região
periférica onde qualquer tipo da atrocidade era possível.
Tais práticas dessubjetivantes acabaram por fazer consequên-
cias nefastas para a vida desses sobreviventes, conforme vemos no tre-
cho abaixo:

Nós recrutas ficávamos mais desguarnecidos, mas enter-


rei, sepultei com João Batista e o Peri, enterramos todos
ali ao lado da enfermaria numa só cova. A gente ouvia,
via o sacrifício deles torturando pessoas, muita gente
torturada extremamente que você achava que a pessoa
não ia resistir àquilo ali. E é terrível, é triste, e aquilo
ali é grave e a gente sente que é com a gente. Não tinha
como ajudar. Não, não tinha como ajudar. Tinha só que
ver e sentir. E isso ficou gravado e tá gravado e martiri-
za a gente, sem dúvida nenhuma. Pegue esse saco daqui,
e você pegava o saco como se fosse um saco de coco, coco
da praia, e quando você pegava tava esse tanto de san-
gue e era cabeça de gente ali dentro, cabeça de mulher,
cabeça de homem. Pega esse saco, você pega e é cheio
de mão. Você se melava de sangue pra ir pra lá. Aquilo
ficava fedido no corpo, mesmo se você tomasse banho,
mas aquilo você não conseguia, se tava dormindo e se
espantava que aquele saco de cabeça tava perto da gente,
parecia que aquele saco de mão ia cair em cima da gente,
então, meu deus do céu. Então a gente ficou vendo fan-
tasma. (Soldado Guido)

Estes dizeres testemunham uma experiência absoluta de passivi-


dade diante de um real que invade e reduz o sujeito à condição de coisa.

159
RESTOS DE HORROR

Há um poder de um outro absolutamente poderoso. O testemunho re-


quer, portanto, uma implicação subjetiva da vítima, mesmo em condi-
ções em que a passividade seria a única resposta possível. “Não tinha
como ajudar. Não, não tinha como ajudar. Tinha só que ver e sentir.”
A quem essas palavras se endereçam? A um outro que imaginariamen-
te não reconhece aquele sujeito como vítima do Terror de Estado, pos-
to tratar-se de um ex-militar, um torturador? À própria consciência?
Seriam essas palavras uma tentativa de justificar a passividade diante
de uma situação em que não havia escolhas? Primo Levi, tanto em É
isto um homem? como em Os afogados e os sobreviventes, sugere que até
no Lager se apresentam escolhas éticas, embora seja difícil aos sujeitos
sustentá-las. Segundo ele, as vítimas saem do Lager com vergonha de te-
rem sobrevivido, pois essa sobrevivência se fez à custa da morte de mui-
tos. “Não tinha como ajudar. Não, não tinha como ajudar. Tinha só que
ver e sentir.” São palavras que confessam?
***
As testemunhas estão mortas. Mortas, elas assombram os sonhos
desses homens que não dormem: “eu durmo uma hora por noite só,
uma hora de relógio” (Cabo Elias).

Nós tamos passando como mentirosos, porque o Governo


Federal afirma que não houve essa ação de, de, de guerri-
lha. Mas porra, cara, se eu tive lá, como é que não houve?
Ou será que foi de brincadeira aquilo ali? Eu não fui pra
lá pra brincar. Eu fui pra defender a Nação, eu fui, eu fui
pra defender a Nação (risos) porque os cara manda-
ram que eu fosse lá. Eu não pedi pra ir pra lá. (Soldado
Ribamar)

Sem passado, sem uma narrativa oficial que reconheça a guerrilha


que perfurou suas vidas em rastros de horror, são eles também fantasmas,
espectros de si mesmo. “O comandante lá falou: cê é louco, não existe,
de onde você já ouviu falar em Guerrilha do Araguaia? Cê tá ficando lou-
co”. Desacreditados, testemunham por reconhecimento de suas histórias
mas, sobretudo, como forma de reivindicar suas próprias existências:

160
RESTOS DE HORROR

eu não sou um fantasma! O risco, aqui, é o limite da própria sanidade,


de terem sido colocados pela narrativa oficial, durante mais de quarenta
anos, para fora da linha que demarca a fronteira entre acontecimento
e delírio. São loucos, fantasmas, esses homens que não dormem. Seus
testemunhos são, precisamente, suas próprias existências enquanto su-
jeitos, uma existência que só se sabe no testemunho, através dele. Esse
saber não é, como bem apontou Felman (2000, p. 64), um conhecimento
disposto como dado anterior e que pode perdurar ao testemunho; “ele
pode apenas acontecer através do testemunho, não pode ser separado
dele”. Acerca desse “processo performático”, Felman argumenta que o
testemunho pode ser pensado como um tipo de assinatura:

Sugerirei agora que esse valor de assinatura do testemunho


é um engajamento no sentido absolutamente contrário
àquele do processo nazista – e sua tentativa -, de padro-
nização das pessoas enviadas para a morte. Aquilo em que
consiste a violência do Holocausto – a própria essência
do apagar e do aniquilar – não é tanto a morte em si, mas o
fato ainda mais obsceno de que a própria morte não faz
diferença, o fato da morte ser radicalmente indiferente:
todos são colocados num mesmo plano, pessoas morrem
como números, não como nomes próprios. Em oposição
a esse nivelamento, testemunhar é, precisamente, engajar-
-se no processo de reencontrar seu nome próprio, sua assi-
natura. (FELMAN, 2000, p. 64)

Arriscar assinar. Riscar uma assinatura. As testemunhas assumem


o risco e riscam elas mesmas uma história maldita ao narrá-la frente
a uma câmera. Contra o desmentido, no risco de serem desacreditadas,
empenham corpos e palavras, assinam seus nomes próprios e, nesse
gesto, suas próprias subjetividades. Soldado Ribamar, Soldado Góes,
Soldado Josean, Cabo Elias, Soldado Fonseca, Soldado Djair, Soldado
Guido, Soldado Pereira de Melo. Reencontram, assim, um uso da lín-
gua que lhe fora embargado durante quarenta anos de emudecimento.
Lembrando Derrida em Força da Lei, “O que a ordem da representação

161
RESTOS DE HORROR

tentou exterminar não foi somente milhões de vidas humanas, mas [...]
a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar nomes”.

Referências

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos – volume


II. Brasília: CNV, 2014.
CARUTH, C. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da
memória). In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs. Catástrofe e
representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p. 111-136.
FELMAN, S. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. In: NESTROVSKI,
A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São
Paulo: Escuta, 2000, p. 13-72.
HENRY, P. A história não existe? In: ORLANDI, E. (org.). Gestos de leitura: da
história no discurso. Trad. Bethânia S. Mariani [et al.]. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1994, p. 29-54.
INDURSKY, A. C.; KVELLER, D. B. Anistia, testemunho e reconhecimento. In:
Por que uma clínica do testemunho? Porto Alegre: Instituto APPOA, 2018.
KEHL, M. R. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-
SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta,
2000, p. 137-148.
NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação:
ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.
RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

162
ENTRE GRITOS E SUSSURROS: UMA
INQUIETAÇÃO SOBRE OS MODOS DE
CONTROLE E DOMINAÇÃO

Marilda Aparecida Lachovski

Os ossos de nossos antepassados


colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.

Os olhos de nossos antepassados,


negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.

A terra está coberta de valas


e a qualquer descuido da vida a morte
é certa. A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
Conceição Evaristo

163
RESTOS DE HORROR

Certidão de óbito. Este é o título do poema acima, tecido por mãos


femininas e negras. Evaristo, segundo as normas que estruturam a es-
crita acadêmica, mas sim, também Conceição. Sujeito empírico, sujeito
em sua posição de autoria. Nome que se tornou conhecido pelo seu tecer,
pela narrativa, pela poesia. Poesia denúncia, poesia grito. Grito de vozes
caladas, interditadas. Vozes que apesar da passagem do tempo, perma-
necem como restos, paragens. Permanências. É por esse olhar que me
conduzo aqui, no presente texto: agregar alguns restos, ajuntar algumas
perturbações teóricas e nelas, num esforço possível, dar espaço àqueles
que, por muitos motivos, não têm seus nomes vistos, lembrados, home-
nageados. São restos de uma sociedade que tem sua formação basea-
da na exclusão, na marginalização. Esses restos, sujeitos despossuídos
de seus direitos civis, políticos e jurídicos são os mesmos que acrescem
os números de crimes, de páginas de jornais, de posts nas redes sociais,
das notícias espetacularizadas. É com eles que nos encontramos assim,
num atropelo. São os sem nome, sem direitos, sem nada. Sim, é um en-
contro intempestivo, que sempre me causou dores, anseios, e por que não
dizer, uma espécie de nó na garganta: me propus a tratar de problemas
vivos, de dores humanas também, dores que me afetam enquanto sujeito
costurado (e dividido) pelo político. Me propus, desde quando vi a ima-
gem daquele menino na capa da revista Veja, 2014, preso por uma trava
de bicicleta a um poste no aterro do Flamengo, a refletir sobre as de-
sigualdades sociais, sobre os motivos (se é que existem de fato), para
que a população (e o Estado, no uso das forças policiais), exerça um di-
reito de punir, de prender, de fazer justiça sobre qualquer sujeito, como
suspeito, acusado, bandido – julgado de antemão, sem direto à defesa,
à fala, ao direito que, na forma jurídica em tese, lhe é garantido.
Mas aquela não foi a única imagem, nem o único acontecimento,
quem dera fosse. Outros já haviam ocorrido, outros estavam ocorren-
do, na verdade, ao menos um linchamento por dia, no Brasil, de acordo
com Martins (2015), e outros muitos casos de abuso, de uso de força des-
necessária e ao avesso da lei, em sua lógica organizada. Não sabia disso.
Quanto aos primeiros, nem todos estavam ou estão na tv, na internet.
Uma grande parte deles acontece e passa, como desapercebido, não sa-

164
RESTOS DE HORROR

bido, não dado a ler, a ver. Outros, são expostos, veiculados à exaustão,
gravados e colocados à mostra, fotografados, comentados, colocados
no “face”. Os sujeitos, vítimas, sim, vítimas, desses “atos de justiça”,
não têm nome na mídia, em sua maioria são colocados enquanto núme-
ros, índices, gráficos. Quanto aos segundos, prevalece um certo acordo
tácito – nada se cobra, tudo se aceita – já que esses abusos estão atraves-
sados e constituídos no e pelo funcionamento do Aparelho Repressivo
de Estado (e Aparelhos Ideológicos), e por isso, apontam para um efeito
de legitimidade, produzindo um evidência de que tudo está bem, e de
que a lei, pela força policial, funciona. Neste sentido, segundo Althusser
(1985), toda formação social produz e reproduz ao mesmo tempo as con-
dições de produção, e nesse processo de reprodução, o Estado como
aparelho repressivo tem sua existência e necessidade atrelada à prá-
tica jurídica (polícia, tribunais, prisões e exército) e à ideologia. Logo,
é pelo Estado que se dão as forças de execução e intervenção repressiva,
na junção com a burguesia e, aliados assim, contra o proletariado.
No entanto, se não há um aparelho puramente repressivo,
de acordo com Althusser (1985), o Estado conjuga em si, tanto o apa-
relho repressivo (público), quanto o ideológico (privado). Por essa lei-
tura, há no Estado um duplo funcionamento – age por leis e decretos
do Aparelho Repressivo, mas por intermédio da ideologia (dominante)
(cf. ALTHUSSER, 1985). A harmonia entre os Aparelhos Ideológicos e os
Repressivos se faz justamente pelo funcionamento da ideologia, através
da sujeição dos indivíduos a essa mesma ideologia, mas numa estreita
relação com os aparelhos de informação que, produz, por esse movimen-
to, a ilusão de ser democrática, ou numa “relação imaginária dos indiví-
duos com as suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1985, p.
77).
Condições reais e ilusão de existência. Por isso, no presente texto,
as vítimas são nomeadas – é pelo nome, sua subjetivação que as identifi-
ca não só a uma família, a um sobrenome, mas a um lugar, a uma história

165
RESTOS DE HORROR

de vida que se cruza com muitas outras histórias. De outras vidas, talvez
dos mesmos espaços. É sobre elas que escrevemos antes1, e agora.
Por esse trajeto, consideramos as permanências/ repetições como
partes de um passado que não se esquece, mas que retorna e atravessa
o presente, na reprodução dos modos de dominação e exclusão dados
como “naturais”, e que legitimam ainda, a divisão social baseada na cor
da pele e na renda. Desse modo, a violência exercida contra esses sujei-
tos nos remete às medidas punitivas inscritas no Brasil colonial e que
apontam para um modo de controle e disciplina, ainda em funciona-
mento. A escravidão, como constitutiva da história nacional, amparada
numa lógica capitalista, ainda está em funcionamento e por isso, todo
modo de ajuste social é também um modo controle do outro. Esse outro,
é sob uma falsa tutela do Estado, repetido na e pela mídia como despos-
suído de seus direitos, de seus bens, de sua voz. Dito por outros, é posto
como um sempre sujeito predisposto ao crime, ao delito, logo, sempre
suspeito. Por isso, apagam-se determinadas vozes e outras são dadas
a ver, reproduzindo a naturalização das práticas violentas e banalizando
a vida.
Como despossuídos, compõem uma parte – negros, pobres. Para
esses, a justiça, em tese igualitária, legitima, na prática, as formas de ex-
clusão e dominação, reproduzindo um efeito de legalidade, justificado
na e pela mídia, reforçando e justificando as formas de controle, de exclu-
são. Como predisposto ao crime, o sujeito considerado “acusado”, “sus-
peito” ou “bandido”, compõe a parcela da sociedade que tem como lugar
de sua visibilidade, a marginalização. É por esse funcionamento que se
(re)produz a convocação e a incitação ao ódio e violência, contra esses
grupos sociais. Convocação, generalização. Repetição, permanências.
Diante disso, nos remetemos a um mal da sociedade brasileira,
ferida ainda aberta e latente–a naturalização das práticas de violência
como um sintoma. Esse sintoma ao qual nos referimos aponta para a or-
ganização e funcionamento de uma estrutura, que tem na lógica de con-

1 Faço referência ao texto de tese intitulado Violência e dominação: o Estado, a mídia e a


(reprodução) dos “despossuídos”, defendido em março deste ano, sob orientação da Profª
Amanda E. Scherer, a quem agradeço, imensamente.

166
RESTOS DE HORROR

sumo (de bens e de pessoas) sua eficácia proeminente. Entre mudanças


e permanências, os modos de dominação, subjugação e marginaliza-
ção se constituem, acrescem-se as justificativas com dados e números
que produzem um efeito de necessidade de contenção, de afastamento,
reatualizando a divisão social.
Acrescemos ao que foi dito, uma reflexão advinda das leituras
de Agamben (2003), e que infelizmente está, mais uma vez em circu-
lação nas práticas sociais e na mídia brasileira – na ação da polícia
do Rio de Janeiro, Jacarezinho, com 28 pessoas mortas, veiculada na mí-
dia como a operação/ação mais letal na história do Rio de Janeiro, ga-
nhando destaque não só no país, como na imprensa mundial. Uma entre
tantas outras ações, entre tantas outras contenções, e que reproduziu
a condição de vida matável. Nos embasamos na definição postulada
por Agamben (2003), Homo sacer, que compreende a existência de cor-
pos/vidas matáveis – o homo sacer, segundo o autor, remonta ao direito
romano – era aquele indivíduo que tendo cometido um determinado de-
lito, não poderia ser oferecido como sacrifício, não servia como oferen-
da; e por isso, sendo encontrado por outros, poderia ser morto, sem que
seu algoz tivesse a imputação por homicídio. São, os corpos ou vidas
matáveis. São esses indivíduos que, em condição de “vida nua”, são re-
duzidos à mera existência biológica e sobre o soberano cumpre o direito
de decidir sobre a vida ou a morte, ou seja, decide quem tem o direito
ou não de viver, decide qual vida merece ser vivida. Uma vida insacrifi-
cável, porém, matável, como afirma Slavoj Zizek:

“[…] a distinção entre os que se incluem na ordem legal


e o Homo sacer não é apenas horizontal, uma distinção
entre dois grupos de pessoas, mas, cada vez mais, tam-
bém uma distinção vertical entre as suas formas (super-
postas) como se pode tratar as mesmas pessoas – resumi-
damente: perante a Lei, somos tratados como cidadãos,
sujeitos legais, enquanto no plano do obsceno supereu
complementar dessa lei incondicional vazia, somos tra-
tados como Homo sacer” (ZIZEK, 2003. p. 47).

167
RESTOS DE HORROR

Segundo a constituição federal, de 1988, artigo 5º, a vida é direito


fundamental, constituído só pelo fato de ser atribuído a uma pessoa,
logo, é um ordenamento jurídico que estabelece seu início e seu térmi-
no. De acordo com o código civil, lei 10.406, de 10/01/2002, artigo 2º, “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com a vida, cujos
direitos a lei põe a salvo”. Mas o que, ou quanto vale a vida desses sujei-
tos assim considerados, como vidas matáveis? E, em que medida se torna
justificável a ação/força policial no uso da violência institucional, da for-
ça letal nos espaços nos quais esses sujeitos se inscrevem? São esses
espaços historicamente (e ideologicamente) definidos como aqueles
que o Estado resiste ou se nega a ocupar, aos quais não são destinadas
ou viabilizadas políticas públicas eficientes, são, portanto, as favelas,
comunidades, morros, e demais agrupamentos. Neles, como regularida-
de, o Estado atua pela via da exceção, do uso da força, e da força letal,
em condições mais especificas. São, portanto, espaços majoritariamente
negros e pobres, parcela sobre a qual atua uma única política pública –
a militarizada.
Neles, ideologicamente, (e historicamente), habita o sujeito “sem-
pre suspeito em atitudes sempre suspeitas” (faço aqui uma alusão à crô-
nica de Luis Fernando Verissimo, (1999), intitulada “Atitude suspeita”),
que tem em sua constituição a forma do racismo estrutural e institucio-
nal. Segundo Almeida (2020, p. 115-116), é nesse sentido que o racismo
tem duas funções ligadas ao poder do estado: “a primeira é a da frag-
mentação, de divisão no contínuo biológico da espécie humana, intro-
duzindo hierarquias, distinções, classificações de raça”, logo, nas pala-
vras do autor: “o racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores
e inferiores, entre bons e maus, entre os grupos que merecem viver e os
que merecem morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que se-
rão deixados para a morte, entre os que devem permanecer vivos e os
que serão mortos”. Para o autor, a morte aqui, não se restringe à morte
biológica, mas também a exposição aos riscos de morte, a morte política,
a expulsão, a rejeição.
A outra função do racismo, nas palavras de Almeida (2020), é “per-
mitir que se estabeleça uma relação positiva com a morte do outro”. É,

168
RESTOS DE HORROR

portanto, “a tecnologia do poder que torna possível o exercício da sobe-


rania”. Logo, se há, como dissemos, de modo geral, a construção de um
sujeito suspeito padrão – negro, pobre e que mora no morro, na fave-
la ou comunidade como espaços de criminalização, o uso deliberado
da força se constitui como um modus operandi de controle. Como parte
desse processo de estigmatização, acrescenta-se ainda, a ressonância
dessas práticas de controle na e pela mídia – o suspeito padrão é sem-
pre dito como aquele que “tem passagem”, e se é morto ou agredido,
é porque “resistiu”, “reagiu”. Ter passagem aponta para uma repetição
dos possíveis delitos/crimes e por isso, se reproduz as justificativas para
a gestão da vida e da morte, do uso da força e da intolerância, como par-
te de um circuito perverso que predetermina quem deve viver e quem
deve morrer.
Portanto, há uma tênue e degradante relação entre a violência
institucionalizada e a vida nua, como define Agamben (2003), – por um
lado, tomando a violência como instrumento para a eficiência e visibi-
lidade de sua autonomia, o Estado escancara a urgente falha inerente
ao seu funcionamento, e expõe, por outro lado, o que define de fato,
o direito ou não à vida, estrutura portanto, de acordo com Agamben
(2008, p. 155), uma nova sentença: “já não fazer morrer, nem fazer viver,
mas fazer sobreviver”. Esses sujeitos, ou vidas matáveis, pelas condições
impostas pelo próprio Estado em suas atribuições, têm retirados seus
direitos elementares, como saúde, moradia, alimentação entre outros,
mas também, lhes é negada a defesa contra as arbitrariedades utilizadas
nesses modos de atuação estatal, institucional.
São direitos retirados ou denegados, e entre eles, acresce-se
o direito ao testemunho. Como homo sacer (Agamben, 2008), não po-
dem testemunhar, e são expurgados das práticas políticas e jurídicas.
Podemos dizer, numa leitura de Arendt (2007), que nessas condições,
o sujeito não é agasalhado por nenhum poder ou direito, e logo, nem pe-
los direitos humanos. Assim, por não poder falar em sua defesa, ou não
sendo representado por nenhuma instância legal, institucional ou jurí-
dica, produz, por uma contradição, uma re (existência) – é testemunho
da exclusão inclusiva à qual é submetido.

169
RESTOS DE HORROR

Prevalece, neste sentido, a decisão daqueles aos quais é dado o di-


reito de definir quem são e por quanto tempo, as vidas que podem ser ti-
radas, primeiro socialmente, em suas experiências restritas ao espaço
marginal (izado) da cidade, do foco, do centro, do olhar e das políticas
públicas. Depois, mortos pela ação do mesmo Estado, mortos em suas
vidas nuas. Predomina a suspensão da legitimidade das ordens jurídi-
cas e prevalece a decisão, organizada por e pelo poder puro e simples,
mesmo sendo esse poder estruturado fora das mesmas normas que o
fundamentam, teoricamente.
É esse dentro/fora, que mapeamos uma concepção de justi-
ça e fazer justiça2 que esbarra não só nas normas, mas como viabili-
za a crescente incitação ao uso da força, do ódio e de todas as formas
de intolerância possíveis, atestando para um abalo na democracia, para
seu esfacelamento. Entre o ser ou não institucional, os índices que apon-
tam para a desigualdade só crescem e reafirmam, reatualizam a domina-
ção, a marginalização. Referindo-se à violência institucional, segundo
a Rede de Observatórios3 de Segurança, “as operações policiais aumen-
taram 51% no Rio de Janeiro nos quatro primeiros meses deste ano em
comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 351 ações,
ante 232 de janeiro a abril de 2020”.
Ainda de acordo com o relatório, o número de mortes durante es-
sas operações também cresceu no primeiro trimestre: “saiu de 75 vítimas
no ano passado para 95 de janeiro a março de 2021 — uma alta de 26,6%.
Esses dados ainda não contabilizavam as 28 mortes no Jacarezinho”.
Como evento, fato ou mote para a retroalimentação da mídia, essa “ação
policial” como foi oficialmente nomeada, (também chamada de chaci-
na), nos inquieta pelos motivos expostos anteriormente. Das 28 pessoas
mortas, é preciso dizer, um terço delas não tinha antecedentes criminais,
(não que isso justifique, mas é um dos artifícios de defesa do uso da for-

2 Mais uma vez me refiro ao texto de tese, tendo em vista que nele, refletimos sobre o
funcionamento do “fazer justiça”, considerando que nesse, a justiça é exercida/aplicada
em paralelo às normas jurídicas, atestando para a legitimidade dos “tribunais de rua”, e
rompendo com a estrutura normativa da prática, de fato, jurídica.
3 Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/produtos/relatorios/. Acesso em
09/07/2021.

170
RESTOS DE HORROR

ça), sobre os quais não havia nenhuma acusação. Se isso não justificasse
o uso da força letal, e se por essa força não fossem mortos, estariam
na condição de réus primários.
Se assim fossem considerados – réus (primários) – teriam, juridi-
camente um processo aberto, com direito à defesa, e acusação. Seria fei-
to o julgamento, e se “culpados”, teriam uma pena atribuída de acordo
com o delito, ou crime. Mas não foi assim. Ser sempre suspeito já é a con-
dição necessária e que viabiliza o uso de forças letais, desde a humilha-
ção, tortura, até a morte desses sujeitos. Despossuídos de sua dignida-
de, de sua humanidade. São esses sujeitos, objetos e instrumentos para
um poder, que condecoram as façanhas policiais, as grandes “ações”. É a
partir dessa desumanização que outros são eleitos, comemorados.
No dia 06/05/21, a “grande ação” policial fez 27 mortos civis e um
militar, um dos policiais da operação. Logo que se tornou pública, au-
toridades saíram em defesa daquilo que se justificaria como um “modo
de controle do aliciamento de menores para o tráfico, coordenada pelo
Comado Vermelho”. Outras apontaram para o cenário de horror, para
as falhas da ação e do governo, bem como para a necessidade de se pen-
sar sobre a crescente violência nas favelas e morros. O atual presidente,
como autoridade também manifestou deliberadamente seu apoio à ação,
saiu em defesa dos policiais, e como é sabido, reiterando sua posição
como forte apoiador da política pública militarizada quando se refere
a uma parcela da população.
No Twitter, afirmou que “ao tratar como vítimas traficantes
que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala
ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo”. E conti-
nuou: “É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminali-
dade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!”4. Já o vice-presidente,
Hamilton Mourão, no dia 07/05, afirmou: “Tudo bandido! Entra um po-
licial numa operação normal e leva um tiro na cabeça de cima de uma
laje. Lamentavelmente, essas quadrilhas do narcotráfico são verdadeiras

4 Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1391539553765310469. Acesso


em 09/07/2021.

171
RESTOS DE HORROR

narcoguerrilhas têm controle sobre determinadas áreas e é um problema


da cidade do Rio de Janeiro”5.
De acordo com a jornalista Flávia Oliveira6, da Globo News, definir
igualmente como ‘tudo bandido’, como o fez Mourão, é produzir a retó-
rica para o julgamento instantâneo, uma vez que, segundo ela é a bana-
lização do termo nas execuções e ações policiais, considerando que por
não constar no vernáculo jurídico e legislativo, “bandido é um termo,
palavra imprecisa que nivela todos esses corpos predominantemente
negros, masculinos e negros. Nivela essas pessoas, os crimes que possam
ter cometido e evoca a execução sumária, o justiçamento instantâneo”.
Ela continua: “Se são criminosos, quais são seus crimes e quais as penas,
mas certamente para nenhuma delas é a execução sumária, o que acon-
teceu no Jacarezinho”.
Nessas ações, podemos dizer, não há, sob nenhuma forma, o re-
conhecimento da alteridade, do outro como sujeito ameaçado em sua
humanidade, em sua vida nua. De acordo com Butler (2011, p. 18-19),
no ensaio intitulado Vida precária, a alteridade é ao mesmo tempo
o meio para humanizar e desumanizar, logo, entender o seu significado
“quer dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, an-
tes, àquilo que é precário à vida em si mesma”, portanto, não é apenas
reconhecer o outro, mas afetar-se dele, extrapolar para o entendimen-
to da sua alteridade. Butler (2011), nos conduz à reflexão sobre o rosto
como condição para a humanização. Entre muitos exemplos, a autora
refere-se aos rostos enquadrados na mídia – pois, apesar de serem mos-
trados, não lhe é conferida uma nomeação, uma subjetivação ou qual-
quer outra forma de reconhecimento – servem, como “manobras”, logo,
não é reconhecida neles, a precariedade da vida. Dessa vida moldurada,
exposta, enquadrada.

5 Disponível em: https://noticias.r7.com/mourao-sobre-mortos-por-policiais-no-rio-tudo-


bandido-07052021. Acesso em 09/07/2021.
6 Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/globonews-em-pauta/video/flavia-
oliveira-bandido-e-retorica-para-julgamento-instantaneo-9498501.ghtml. acesso em
22/05/20121. Os trechos foram transcritos no texto.

172
RESTOS DE HORROR

Nesse enquadramento, como parte do processo de esvaziamento


do humano, que se faz por “esquemas normativos que fazem diferença
entre aqueles que são mais e os que são menos humanos”. (BUTLER,
2011, p. 28), o “menos humano”, é aquele que se disfarça e ameaça en-
ganar os demais que o reconhecem como tal; por outro lado, é também
aquele que não tem nome, não tem nenhuma imagem. Não tem vida
reconhecida, tampouco a morte. Esvazia-se, portanto, a sua existência.
Por isso é preciso nomear, lamentar, indignar-se, emocionar-se pelo
reconhecimento das condições dessa vida precária, como fragilidade,
como limite do fazer sentidos. Por isso é preciso também desnaturalizar
as permanências, as repetições. Matar, desejar ou comemorar a morte
do outro, não é natural. Neste sentido, a morte faz parte de um proces-
so de naturalização da violência contra determinados sujeitos inscritos
em determinadas parcelas da sociedade. A mídia, como lugar de visibili-
dade, e também entendida como produto, considerando a lógica capita-
lista ou de mercado, acaba por tratar a violência (e a morte do “sempre
suspeito”), como espetáculo, dando a ver e reafirmando pela repetição
da exposição dessas punições, o seu poder de controle, sua parte na mar-
ginalização (e criminalização) desses sujeitos, suas vidas nuas expostas
e dadas a ver, como sempre matáveis.
Quando nos referimos à violência como espetáculo, o fazemos
a partir da leitura de Debord (2003, p. 13, itálico do autor), na obra
A sociedade do espetáculo, na qual o autor aponta para a organização
da sociedade que tem suas condições de produção como uma “imensa
acumulação de espetáculos”. Para o autor, essa mesma sociedade con-
centra “todo o olhar e toda a consciência”, é também “o foco do olhar
iludido e da falsa consciência”, por outro lado, produz a unificação que
“não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada”,
e por isso, define-se, entre outras coisas, como o resultado e o projeto
do modo de produção existente. (DEBORD, (2003, p. 13-14). Como algo
“grandioso, positivo, indiscutível e inacessível”, nas palavras de Debord
(2003, p. 17- 18), o espetáculo traz uma única mensagem: “o que aparece
é bom, o que é bom aparece”, exigindo da mesma sociedade uma acei-
tação passiva, mesmo que já a possua, uma vez que não permite nenhu-

173
RESTOS DE HORROR

ma réplica, modelando uma “multidão crescente de imagens-objetos”,


sob um comportamento hipnótico. Assim, a sociedade do espetáculo
tem sua tendência no fazer ver a partir de diferentes mediações espe-
cializadas, porém, não é identificável ao olhar, e por isso se pauta nos
“meios de comunicação de massa”. Para ao autor, esses meios de comu-
nicação não sendo neutros, são convenientes a esse modo de produção
– unilateral e instantâneo (DEBORD, 2003, p. 22).
A mídia, a partir dessa leitura, não apenas faz parte da organização
da sociedade do espetáculo/do consumo, mas tem papel fundamental,
produzindo “a alienação do espectador em proveito do objeto contem-
plado” ao mesmo tempo retirando-lhe a compreensão de sua existência
e de seus desejos, e por isso, afirma o autor: “o homem alienado daquilo
que produz, mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado
dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa
dela” (DEBORD, 2003, p. 27).
Para nós, a sociedade do espetáculo, tal como define o autor, li-
gada à lógica de produção capitalista, tem na mídia um lugar para fa-
zer ver através da repetição exaustiva de determinados fatos ou eventos,
nos quais são expostos determinados sujeitos e seus respectivos grupos
sociais. Essa mesma exaustão é parte da distribuição de poderes, hierar-
quizando não só a economia, mas todas as práticas que podem ser socia-
lizadas, reforçando a divisão sob a aparência de unificação. Recorrendo
à espetacularização como um “modo de arranjar sentidos”, segundo
Medeiros (2013, p. 107), a mídia produz esse efeito de naturalidade –
o que é bom deve ser visto, repetido, reforçado e exposto, naturalizando,
portanto, as punições e a morte de determinados sujeitos, construindo
uma ideia de justiça amparada em unidade e neutralidade, como efeitos.
Por esse viés, se nos referimos à morte como pena máxima, ou como
medida utilizada pelas forças policiais/institucionais, ela é parte desse
processo de repetição – dada a ver como triunfo dos “bons”, daqueles
que estão inscritos nessa mesma pretensa unidade. O sujeito sempre
suspeito, é exposto na sua morte social, mas também biológica.
E, sendo mau ou criminoso, “bandido”, sua existência deve
ser extirpada, e, se necessária, se faz de modo exemplar, apontando

174
RESTOS DE HORROR

para os aparatos de punição e vigilância da sociedade junto ao Estado.


Assim, a morte como medida punitiva exemplar, funciona nos lincha-
mentos (como um modo do “fazer justiça com as próprias mãos”), como
justificativa para alcançar o “bem comum”, mesmo que este se limite
a uma parte da sociedade, aquela que apoia e participa de alguma for-
ma das medidas punitivas. Já nas ações policiais, a morte do “bandido”,
muitas vezes é entendida como conquista, como vitória. Como suspeito,
acusado ou bandido, o sujeito é despossuído de sua humanidade, mais
uma vez, e se torna objeto de comemoração. Como objeto, todos seus
direitos são retirados – os civis, os sociais e os jurídicos. Sua exclusão,
punição e morte são dadas como naturais, legitimando os modos de do-
minação e de marginalização. Mas não é natural, não pode ser.
Não pode ser natural prender um “suspeito” a um poste, nem por
trava de bicicleta (no aterro do Flamengo), nem por cordas (Cleidenilson
Pereira, no Maranhão). Não é normal matar Fabiane de Jesus quan-
do ia comprar pão para o café. Não é natural encenar o enforcamento
de um negro, como ocorreu em Porto Alegre, no dia 21 de abril deste
ano. Não é natural George Floyd pedir por algum tempo que não podia
respirar por ter o joelho de um policial apertando seu pescoço, e mes-
mo assim ser morto, sem nenhum impedimento de outros para a “ação
policial”. Assim como não é natural João Alberto Freitas, depois de suas
compras, ter sido preso e asfixiado por seguranças no mercado, mes-
mo pedindo por mais de quatro minutos que não podia respirar, e mui-
tas pessoas assistiam, não houve intervenção, nenhum impedimento.
Não é natural precisarmos de um Memorial do Linchamento, no museu
do Alabama, nos Estados Unidos, com de cerca de 4000 nomes de negros
vítimas de linchamentos entre os anos de 1877 e 1950. Não é natural
amarrar negros escravizados em troncos e pelourinhos, nem em postes.
Não pode ser.
Não é normal, nem natural, a morte de Manoel Moreira, em 1964,
morto com mais de cem tiros pela polícia. Não é. Assim como não é natural
a morte de Cleyton da Silva Freitas de Lima, Natan Oliveira de Almeida,
Ray Barreiros de Araújo, Luiz Augusto Oliveira de Farias, Marlon
Santana de Araújo, John Jefferson Mendes Rufino da Silva, Wagner Luiz

175
RESTOS DE HORROR

Magalhães Fagundes, Caio da Silva Figueiredo e Diogo Barbosa Gomes –


que não tinham nenhuma “passagem” e foram mortos em Jacarezinho.
E nem é natural aos outros que cometeram delitos ou crimes, nem antes,
nem depois da ação. A morte causada pelo não reconhecimento da alte-
ridade, da vida precária, não é natural.
A execução sumária não é normal, não pode ser. Não é natural
e não é necessário, depois de vinte dias de mais uma “ação policial”,
o “criminoso” ter seu corpo atravessado, furado, por mais de quarenta
tiros. Desnaturalizar essas práticas não é como se repete, “defender ban-
dido”, mas entender que há medidas mais eficazes, mais jurídicas e de-
mocráticas, ancoradas nos princípios de humanidade e respeito aos di-
reitos humanos.
Tempos difíceis, intragáveis... não é natural assistirmos ao espe-
táculo do horror e comemoração da morte de uns em detrimento da ir-
responsabilidade de outros. Ainda é tempo, e há tempo, para a desnatu-
ralização dessas práticas. É preciso haver tempo. Nosso grito, tem sido
gemido, sussurro. E assim não conseguimos respirar...

Referências

AGAMBEN, G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Tradução de


Henrique Burigo. Minas Gerais, Belo Horizonte, editora UFMG, 2003.
________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer
III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p.
ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. Feminismos plurais. São Paulo: Sueli
Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre
os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). 2ª ed. Tradução de Walter José
Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10ª edição. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BUTLER, J. Vida precária. Tradução de Angelo Marcelo Vasco. Contemporânea.
n. 1 p. 13-33. Jan.–Jun. 2011.

176
RESTOS DE HORROR

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Coletivo Periferia, 2003.


MARTINS, J. de S. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2015.
MEDEIROS, C. S. de. Sociedade da imagem. A (re)produção de sentidos da
mídia do espetáculo. Santa Maria: UFSM, PPGL Editores, 2013.
VERÍSSIMO, L. F. A Grande Mulher Nua. 2. ed. São Paulo: Círculo do Livro,1999.
ZIZEK, S.  Bem-vindo ao Deserto do Real!, Tradução de Paulo Cezar
Castanheira, São Paulo: Boitempo, 2003.

177
LUTO E LAMENTO: LEVANTAR A VOZ;
CANTAR AOS MORTOS

Marcos Barbai
Pedro de Souza

“Auxilia esta mão a erguer o morto”


Antígone, Sófocles, verso 43

Um minuto de silêncio

Hoje, nesse nosso tempo, é necessário mais que braços; é neces-


sário erguer a voz para levantar os mortos. Aos que nos leem, fazemos
ecoar, aqui e agora, em enunciação ampliada, a morte de mais de meio
milhão de brasileiros, muitos deles assassinados pelo Estado, na pan-
demia do novo coronavírus Sars-COV-19, que sacudiu o planeta Terra,
no ano 2020. Estamos em luto pelo perecimento de muitos entes queri-
dos. O risco reduziu-se ao medo de, em curto espaço de tempo, morrer
atingido por uma doença infecciosa. Este temor escancarou a desigual-
dade em todo mundo. A população já empobrecida passou a ser dizi-
mada pela fome. Aos que pereceram, cabe aos ainda vivos, o lamento:
um canto trabalha-dor.

179
RESTOS DE HORROR

Pretendemos no que discorreremos a seguir trazer a descrição


nua de uma história que poderia ser outra na diferença do presente trá-
gico da pandemia. Nossa pretensão não é de dizer a verdade histórica
do que agora se passa. Por isso o lamento sempre será dito em nosso
texto não só como o conteúdo de nossa proposição, mas também à gui-
sa da materialidade discursiva (cf. Orlandi, 2001) que se textualiza e se
constitui pela forma enunciativa do lamento. Aludimos ao grito sufoca-
do no limiar das vozes buscando frestas de respiro nas canções.

O primeiro ato é o lamento

No ano de 1977 o historiador francês Philippe Ariès publicou a im-


portante obra “História da morte no ocidente: da idade média aos nossos
dias”, em que os leitores podem ter acesso, em um dado recorte históri-
co, filosófico, literário, político e geográfico, da problemática da morte.
Segundo o autor, a primeira, a mais antiga, a mais longa e a mais comum
atitude diante da morte é a da resignação, que se marca no destino co-
letivo da espécie humana e que pode ser resumida, na seguinte fórmula:
Et moriemur – morreremos todos (cf. Ariès, 2012, p. 66).
O trabalho deste autor tem o grande mérito de traçar uma retórica
da morte que localiza o inédito e o perturbador que é o morrer, assim
como as reinvenções dos rituais de luto. Da morte de si mesmo à morte
do outro, do culto dos túmulos e cemitérios, a morte afastou-se do mun-
do das coisas familiares, tendo sido transformada em uma cerimonia pú-
blica e organizada. A nossa sociedade moderna, com sua tecnologia e ci-
ências privou, roubou do homem a sua morte, pois proíbe-se aos vivos
de parecerem comovidos com a morte dos outros, impedindo de chorar
os que se vão ou ainda de fingir chorá-los. Para Ariès (idem, p. 212)

É surpreendente que as ciências do homem, tão loqua-


zes quando se trata da família, do trabalho, da política,
dos lazeres, da religião, da sexualidade, tenham sido
tão discretas sobre a morte. Os cientistas calaram-se,
como homens que eram e como homens que estudavam.
Seu silêncio é apenas uma parte desse grande silêncio
que se estabeleceu no decorrer do século XX.” É preciso

180
RESTOS DE HORROR

ainda dizer, com o autor, que se a “literatura continuou


seu discurso sobre a morte [...] os homens tornaram-se
mudos, comportando-se como se a morte não existisse.

A sociologia da morte nos apontou, em seus estudos e reflexões,


o recuo da morte, ou seja, ela deixa os nossos lares, casas e quartos fa-
miliares e adentra finalmente no hospital, nas enfermarias, para não a
vermos tão de perto e com frequência. A morte se tornou, assim, selva-
gem “e apesar de todo o aparato científico e tecnológico que a reves-
te, perturba mais o hospital, lugar da razão e da técnica, que o aparato
da casa, lugar dos hábitos cotidianos” (idem, p. 269). Entretanto, o sécu-
lo XXI abalou todo esse aparato tecnológico e científico em que a morte,
o morrer, fora revestido.
A pandemia do COVID-19, decretada em 11 de março de 2020 pela
OMS (Organização Mundial da Saúde) trouxe a morte para a nossa casa
e para o nosso convívio. Nunca fomos tão invadidos pela morte. E isso
em tempo real: do smartphone, ao computador, passando pela tela
das Tvs e jornais impressos, a morte de milhares de pessoas, por todo
o globo terrestre, é uma narrativa sem fim. Vimos, calados, no Brasil,
uma imagem de muita dor:

31 de março – Vista aérea de funcionários cavando túmulos no cemitério da


Vila Formosa, em São Paulo — Foto: Nelson Almeida/AFP

181
RESTOS DE HORROR

O luto, sabemos, é um afeto do sujeito. Ele mostra na carne huma-


na, no corpo humano, a dor lancinante da perda. Freud (1915), num tex-
to fundante sobre o luto, aponta a exigência do trabalho psíquico. O luto
é assim compreendido como uma reação diante da perda de um objeto
amado. Jean Allouch (2004), psicanalista francês, destacou com muita
propriedade a erótica que envolve o luto, já que é necessário o emprego
de muita energia para lidar com a perda, com a abstração desse objeto
perdido.
Outro ponto importante a se destacar no luto é “o dever de bem di-
zer” (cf. Lacan, 2003, p. 524) ou de se referenciar a algo ou alguém, inves-
tido em nosso desejo. Isso implica a cada um de nós, que no século XXI,
tem sustentado pela ética, a função de contar a história, de enunciar fa-
tos que reclamam sentidos e demandam interpretação (cf. Henry, 1997),
cavando túmulos para aqueles que sofreram nas enfermarias dos hospi-
tais e que por medidas sanitárias, não puderam ser honradas e honrados
com os ritos de sepultamento.
Diante da realidade incontornável da morte, Allouch (idem, p. 1)
nos recorda “que já não se tem mais tempo para vociferar coletivamente
a morte”. Então, é aqui, nesse silêncio, que reivindicamos politicamen-
te o lamento, definindo-o por conta e risco como um ato de bem dizer.
Um bem dizer para além da retórica do bem-dito. O lamento é resposta
ética e subjetiva de um corpo social comprometido com a responsabili-
dade para com o outrem, no corpo da cidade. É preciso a memória e jus-
tiça para com os mortos da pandemia no Brasil. O lamento é assim “o
primeiro ato da vida, uma evocação triste, mas muito discreta, dos seres
e das coisas amadas” (cf. Ariès, 2012, p. 37).

Elogio e lamento: os vivos diante da morte

Não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas


para os seres humanos, diz Elias (2001), em a Solidão dos Moribundos.
Frente ao aniquilamento da vida, o que resta é a resposta social, afetiva
e discursiva aos falecidos. Os túmulos nos cemitérios, o nome na lápide,

182
RESTOS DE HORROR

é o que mantém a memória do morto um pouco viva. Entretanto, como


agregar o morto no corpo social?
O corpo morto é um corpo que se silencia. São os rituais funerá-
rios que o fazem falar. Assim, o elogio e o lamento são as formas dis-
cursivas que transformam a ausência do desaparecido. Os rituais fune-
rários têm um funcionamento importante: eles portam um dispositivo
pedagógico (o que organiza a conduta dos homens e mulheres), assim
como determinam a institucionalização do fim da vida. Os ritos fúnebres
têm espessura semântica e memória.
O elogio é a forma enunciativa materializada no louvor e no jul-
gamento favorável do morto. O papel do elogio é o de honrar, prestigiar,
afirmar hierarquias, ostentar a riqueza, imprimir solidariedade entre
parentes, destacando assim o orgulho familiar. No elogio temos a pas-
sagem do visível ao nomeado, inscrevendo a morte e o morto no espaço
da memória (cf. Pêcheux, 1999, p. 50). Essa passagem do visível ao no-
meável produz o reconhecimento da imagem do morto. Ao se elogiar
tem-se a marca do renome, fazendo com que o corpo que desparece
no vácuo do sentido, se inscreva na memória de cada um.
A dimensão do lamento porta peculiaridades interessantes. No fio
da história antiga, particularmente os gregos, havia a dimensão heroica
e trágica da morte. Antígone, de Sófocles, texto escrito há 25 séculos, é o
traço fundamental da morte enquanto ensaio poético inescapável da ex-
periência humana. É sabido que os filhos de Édipo, os irmãos Eteócles
e Polinices, príncipes de Tebas, se entrematam. Creonte, tio desses ra-
pazes e soberano da cidade, decreta a Eteócles o funeral mais suntuoso
da cidade, as mais altas honras fúnebres. A Polinices, considerado pelo
tirano o traidor da cidade, uma condenação: permanecer insepulto e pe-
recer como carniça no corpo cidade. E, uma advertência: quem sepultar
o corpo será enterrado vivo.
É aqui que entra em cena Antígone. Ela, princesa de Tebas, pro-
metida em casamento a Hemon, filho de Creonte, desobedece às ordens
do soberano e se dirige ao corpo que apodrece na cidade. E o que faz
ela diante do cadáver? A resposta é simples: uma libação, um lamento.

183
RESTOS DE HORROR

O lamento de Antígone dá corpo, dá nome à carne que apodrece. Ao la-


mentar a morte do irmão, lhe sepultando, a personagem produz um ato
radical: a presença da linguagem num corpo morto. Esta peça de Sófocles
nos coloca diante da voz do sangue, pois ao ousar dizer a morte do ir-
mão, Antígone cava com suas próprias mãos a sua sepultura.
O lamento é, portanto, o ato humano, em voz e gesto, que produz
a passagem do vivo para o mundo dos mortos. Os heróis são cantados
em seus feitos; e o cadáver insepulto, a carniça em estado de putrefação,
com sua imagem repugnante e brutal, são os sons do corpo, em gemi-
dos, sussurros, choro silencioso, que lhe trazem o reconhecimento como
um corpo conhecido e amado. Nesse tratamento do mal-estar que é
a morte, a peça nos faz rememorar o canto que levanta os mortos.
Há, todavia, elementos que organizam, em nossos tempos, o la-
mento. O primeiro deles é que não se deve transformar a morte em espe-
táculo, questão que muitas vezes é imprimida às mulheres, já que o cho-
ro feminino é, por deveras vezes, repreendido e sufocado nos funerais.
O único choro muitas vezes permitido é o das mães. O dito popular diz:
as dores da mãe. Essa dimensão do lamento é importante, pois nos ritu-
ais fúnebres, tem-se a discursivização da dor da perda: a morte imprime
um vazio discursivo no corpo; diante do silêncio é necessário se comu-
nicar a dor da perda. Privados da presença de quem se foi; condenados
ao silêncio que aí se impõe, o chorar e o deplorar se reveste muitas vezes
de cantar.
Na tradição literária, bíblica e cultural nós temos a carpideira:
a profissional feminina que é contratada para chorar o defunto no ve-
lório. Nas celebrações cristãs, muitas vezes, a comunidade entoa cantos
e hinos, diante daquele que se foi. Além disso, muitas canções populares
brasileiras estão presentes nas cerimonias fúnebres para libar, honrar
os mortos. O lamento se materializa, assim, no luto exposto: ele mostra
que a morte não pode ser sofrida em silêncio. Lamentar implica em se
derramar as lágrimas, marcar no corpo a dor, através do choro, gritos,
urros, cantos de clamor.

184
RESTOS DE HORROR

Entretanto, partimos do pressuposto de que uma das dimensões


enunciativas mais importantes do lamento tem a ver com o fato de que
somos instados a ouvir a tristeza pela morte, mas das mortes mais am-
plas a que estamos expostos, ou seja, as perdas a que sofremos na vida:
dos amores que se encerram, passando pela arrumação do quarto do fi-
lho que morreu, às lutas de um povo. É nesse caminho que vamos lamen-
tar, cantar os mortos brasileiros.

O lamento é um trabalha-dor

Marca discursiva da cumplicidade, na cena pública e privada, o que


tece o lamento é uma voz que trabalha sentidos, na sonoridade do corpo.
A canção brasileira é um campo importante que permite pensar com a
voz, em cena, o lamento. É no corpo cantante brasileiro que propomos
escutar o trabalho significante e discursivo do luto. Como abrir enuncia-
ções urdidas, num sistema de linguagem, e referi-las à história de vidas?
Entendemos que o lamento é ato a nível simbólico (cf. Pêcheux,
1990), o que implica gestos de interpretação (cf. Orlandi, 2001) de so-
ciedades, diante das perdas e da realidade da melancolia e da tristeza.
Pensando-se o lamento numa dimensão coletiva, política e social pode-
mos observar, no corpo das canções, a inconformidade diante da perda.
Isso faz com que o lamento assuma o estatuto discursivo de um trabalho
significante. Isso é o que nos dá a pensar a voz, em algumas canções,
da Música Popular Brasileira, que recortamos para breve análise.
Comecemos pela célebre canção de Milton Nascimento e Fernando
Brant, cuja linguagem, feita de notas e sílabas tônicas alongadas (como
o que se percebe no entoar da palavra looonge, looonge) faz a voz articu-
lar, de modo singular, a ladainha de lamentação no ato de velar o ente
querido. Referimo-nos à composição Sentinela, que Milton Nascimento
gravou em coro vocal com a cantora Nana Caymmi. A linguagem do la-
mento fúnebre se impõe à articulação vocal produzindo na voz que canta
o efeito de presença do guardião vivo sendo sentinela do corpo do irmão.
Recortemos duas passagens desta canção:

185
RESTOS DE HORROR

Longe, longe, ouço essa voz


Que o tempo não vai levar
Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão
que já se vai
(...)
Longe, longe, ouço essa voz
Que o tempo não lavará
Precisa gritar sua força ê irmão, sobreviver
A morte inda não vai chegar, se a gente na hora de unir
Os caminhos num só, não fugir e nem se desviar

No trecho que recortamos, vale ressaltar três níveis de referên-


cia discursiva ligadas as condições de produção da letra e da melodia.
No primeiro destacamos o modo de o letrista, Fernando Brant, produ-
zir sua homenagem a um amigo. Neste nível tratou-se de buscar pala-
vras para dizer a dor de um e de ninguém mais. No segundo nível, o ato
de enunciação que dá origem a esta música, situa-se e se deixa atraves-
sar pelos gritos de lamento pela perda dos que foram mortalmente viti-
mados nos tempos que se sucederam ao AI-5 e a instalação da ditadura
no Brasil.
No terceiro nível de referência, sempre relativo ao enunciado com-
postos por cada um dos versos de Sentinela, nos deparamos com a reali-
dade política e trágica do tempo agora da pandemia. Neste ponto é que
a voz se ergueu num lamento lá nos anos de chumbo da ditadura é a
mesma que se articula dentro das mesmas palavras e melodia enuncian-
do-se na forma simultaneamente de lamentação e de protesto. Porque,
mesmo na cena da ruína causada pelo coronavírus, é possível agora cada
um “gritar sua força ê irmão, sobreviver/A morte inda não vai chegar, se a
gente na hora de unir/ Os caminhos num só, não fugir e nem se desviar”
Na mesma ordem serial do tempo, vale ainda destacar a análise
de Souza (2011), no artigo “Gritos e sussurros: rasgos vocais em discur-
so”, da composição de Ary Barroso Terra Seca, na voz de Angela Maria.
Gravada na década de 1950, tem-se o exemplo de uma voz que conduz

186
RESTOS DE HORROR

“o lamento gritante de uma multidão”. O vozear agudo da cantora acen-


tua o tom de denuncia da composição, comparando-se, particularmen-
te com a gravação da mesma canção, na voz de Orlando Silva, com sua
voz aveludada. A canção diz:

O nêgo tá, moiado de suó/ Trabáia, trabáia, nêgo /Trábaia,


trabáia nêgo/ As mãos do nêgo tá que é calo só/ Trabáia,
trabáia nêgo/ Trabáia, trabáia, nêgo/ Ai “meu sinhô”nêgo
tá véio /Não agüenta !/ Essa terra tão dura, tão seca, po-
eirenta.../ Trabáia, trabáia nêgo/ Trabáia, trabáia, nêgo/
O nêgo pede licença prá fala/ Trabáia, trabáia, nêgo/
O nêgo não pode mais trabaiá/ Quando o nêgo chegou
por aqui/ Era mais vivo e ligeiro que o saci/ Varava estes
rios, estas matas, estes campos sem fim/ Nêgo era moço,
e a vida, um brinquedo prá mim/ Mas o tempo passou/
Essa terra secou...ô ô/ A velhice chegou e o brinquedo
quebrou..../ Sinhô, nêgo véio tem pena de têr-se acaba-
do/ Sinhô, nêgo véio carrega este corpo cansado

Se compararmos a vocalização dessa mesma letra e melodia, na voz


de outros cantores, é possível observar na voz, não o conteúdo cantado,
mas “como a voz age ao cantar” (cf. Souza, 2011, p. 98). A ressonância
vocal da cantora Angela Maria, diz Souza, faz aparecer “o sentido de re-
volta que inscreve essa enunciação no discurso que repercute o drama
do escravo negro” (idem). Há aqui, tal como ressaltamos na performan-
ce vocal de Milton Nascimento e Nana Cymmi interpretando Sentinela,
uma voz em ato, em subjetivação, que atualiza a memória da dor, da re-
volta e do protesto.
Seguindo essas indicações é válido destacar também uma impor-
tante canção no Brasil: “O canto das três raças”, composta em 1974,
por Mauro Duarte de Oliveira e Paulo Cesar Pinheiro, interpretada
na voz de Clara Nunes.

Ninguém ouviu/ Um soluçar de dor/ No canto


do Brasil/ Um lamento triste/ Sempre ecoou/ Desde
que o índio guerreiro/ Foi pro cativeiro/ E de

187
RESTOS DE HORROR

lá cantou/ Negro entoou/ Um canto de revolta pelos ares/


No Quilombo dos Palmares/ Onde se refugiou/ Fora
a luta dos Inconfidentes/ Pela quebra das correntes/ Nada
adiantou/ E de guerra em paz/ De paz em guerra/ Todo
o povo dessa terra/ Quando pode cantar/ Canta de dor/
E ecoa noite e dia/ É ensurdecedor/ Ai, mas que agonia/
O canto do trabalhador/ Esse canto que devia/ Ser um
canto de alegria/ Soa apenas/ Como um soluçar de dor

Presente na memória do movimento negro e sindicalista brasilei-


ro, esta composição, na voz cantante de Clara Nunes, é a grande invo-
cação de um lamento: ela faz ouvir múltiplas e indistintas vozes. Essa
composição é interessante porque há todo o trabalho da homonímia,
que a voz cantante sussurra: canto, pode ser a ação de cantar ou um
lugar do Brasil? Quem decide os sentidos? Além disso, todo um jogo
de aliteração das palavras, jogando com o sentido de dor: ensurdecedor,
trabalhador.
A isso se acrescenta a voz que é puro vocalize: o soluço. Contudo,
nem por isso deixa de ser um ato de enunciação em que as palavras
são substituídas pelo que de emoção a partir das cordas vocais inva-
de voz. Nela o que se articula são os gemidos, um o,o,o,o,o,o, grave,
que na voz cantante de Clara Nunes, faz-se ouvir o ranger das correntes,
num lamento dos escravizados, dos dominados, dos explorados. Vê-se
aqui porque o lamento é um trabalha-dor. No inaudível da perda é a
boca quem trabalha sonoridades, dando assim condições para subjetivar
a existência.
Num dos momentos mais trágicos da pandemia no Brasil, a can-
ção de Criolo e Milton Nascimento fez ecoar em imagens de silêncio
a lamentação espraiada nos muros e nos meios fios das ruas da cidade
de São Paulo. Daí que nada mais adequado que juntar imagens e sons
vocais para fazer ressoar o lamento do amor em falta. “Não existe amor
em SP”1 soa como grito de dor e urgente súplica atravessando soltas
no mais alto tom das vozes dos cantores.

1 https://www.youtube.com/watch?v=-oFFAqWKIh8

188
RESTOS DE HORROR

Não existe amor em SP


Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo, feito pra você
Não existe amor em SP
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra
Afogada em seu próprio mar de féu
Aqui ninguém vai pro céu
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens
Em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus

Pulemos o procedimento analítico cujo protocolo é destrinchar


palavra por palavra ou verso por verso a formulação enunciativa de um
discurso. Basta que no conjunto das três estrofes que compõem a le-
tra, atentemos para o que faz a primeira, na cadeia enunciativa de letra
e melodia. Em relação às outras duas subsequentes, a primeira estrofe
vem para sustentar o argumento de que “não existe amor em SP”. Para
tanto os cantores descrevem, seguindo a harmonia dos acordes do pia-
no e em tom vocal melancólico, o retrato que não condiz à existência

189
RESTOS DE HORROR

de uma São Paulo sem amor. Não dá para descrever/ Numa linda frase/
De um postal tão doce/ Cuidado com doce/ São Paulo é um buquê.
Já as outras as duas últimas sequências de versos mostram e des-
crevem os lugares, os espaços, as pessoas e as coisas. São cenários de uma
cidade desamorosa. O ato vocal cantado como enunciação faz ver e ouvir
“bares (...) cheios de almas tão vazias; a ganância enquanto vibra e a
vaidade enquanto excita e ao que se demanda trazer de volta a vida e de-
pois morrer: “Devolva minha vida e morra”. Todo este efeito de presença
na letra e melodia vem por uma voz que, em tom ao mesmo tempo con-
templativo e lamentoso, descreve e constitui o estado urbano de amor
em falta.
A voz é a contrapartida do sujeito asfixiado nesta pandemia, não só
pelo precário da saúde coletiva, mas por toda sorte de precariedade. E é
pela voz que o precário apareça como acontecimento de grito e insur-
reição. É preciso escutar aqui a forma material do silêncio (cf. Orlandi,
1992) que vem justamente pelo estatuto de fazer respirar os sentidos
como corpos sem órgãos. O vozeado, no tom do lamento, soa no mes-
mo ritmo e atmosfera por onde passa prolongando o silêncio pelo qual
se faz ressoar. Aludimos à ambiência sombria que o desamparo fez pai-
rar na pandemia.
Nessas condições, o sussurro equivale ao sufocamento vocal,
A emissão do clamor vai do grito ao sussurro, como aquele de George
Floyd clamando, na sua hora final, que não podia respirar. Há no sus-
surro não mais o que se limita na relação com o grito, mas a passagem
ao grito nas difíceis condições de emissão.
Em outros termos, é o caso de fazer ver e ouvir o silenciamen-
to enquanto enuncia através da linguagem, o que a voz tem de sufoco.
No clipe de Criolo e Milton Nascimento, a captura de imagens participa
da prática discursiva do lamento que se faz exercer nele. Acontecendo
como modo de enunciação, no vídeo que promove a canção, a monta-
gem de arquivos de imagem encena o espaço acústico do apelo, a saber,
o grito para que o amor venha preencher o vazio de sua própria falta.
Dizemos da falta de governantes e dos governantes em falta, de que di-

190
RESTOS DE HORROR

zer o nome é desnecessário. O enunciado da inexistência do amor pro-


duz a falta do nome como seu referente.
É bem um funcionamento singular de linguagem que vem aí.
Singular pelo menos na maneira com que repetidas palavras acontecem
tecendo, na e pela enunciação, a partilha sensível de um tempo trágico
Trata-se de afirmar a negação, ou dizer o que se quer afirmar por uma
frase negativa – “Não existe amor em SP”. Marquemos este funciona-
mento no contanto passível de se entrever no processo discursiva re-
metendo este enunciado a certo trecho de um samba lamento Nomes
de favelas, do compositor Paulo César Pinheiro, rastreando, através
de momos indistintos, os arquivos da memória discursiva da vida na pe-
riferia das grandes cidades:

O galo já não canta mais no Cantagalo


A água não corre mais na Cachoeirinha
Menino não pega mais manga na Mangueira
E agora que cidade grande é a Rocinha
Ninguém faz mais jura de amor no juramento
Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus
Prazer se acabou lá no Morro dos Prazeres
E a vida é um inferno na Cidade de Deus

A não coincidência entre as palavras e as coisas, ou entre o nome


e o que ele não é soa como oximoros juntando nomeações que não po-
dem funcionar juntas semanticamente. Este modo de enunciar remete
ao já dito o lamento no que falha, no que se ausenta, no que se emudece.
Como chamar Cantagalo um lugar em que não mais se ouve o canto
do galo? Que sentido tem nomear Cachoeirinha, onde já não corre mais
água? Se o menino não pode apanhar mais manga, por que continuar
nomeando Mangueira este lugar? Como chamar de Cidade de Deus
um lugar em que o inferno se fez presença dominante?
Do mesmo modo que procede Paulo César Pinheiro, em certa posi-
ção de discurso de cidade existindo pela falta, Milton Nascimento e Criolo

191
RESTOS DE HORROR

se deixaram invadir por esta realidade avessa, no esforço enunciativo


de desasfixia das vozes que clamam por mais amor. Da mesma manei-
ra, dizer “Ninguém faz mais jura de amor no juramento” e “Ninguém
vai-se embora do Morro do Adeus”, é referir, em ambos os enunciados,
o lamento, o que tem aqui sua forma de prolongar o apelo constante
de um mesmo silêncio. São vozes que, no sufoco da negação do próprio
existir, contam a história de sua existência na pandemia. São estas vidas
que preferencialmente o coronavírus está consumindo. Digamos que no
tempo de falta em ser governo, se cumpre, às avessas, a palavra de ordem
do discurso da teologia da libertação nos anos de 1970, ou seja, a prática
discursiva que produz uma pandemia, ironicamente regida pela opção
preferencial pelos pobres. Ironia, empregamos aqui, nos termos de Eni
Orlandi (1986), para marcar outro sentido produzido pela mesma pala-
vra de ordem. É no singular de cada brasileiro, que vive um corte pro-
fundo entre um antes e um depois, nesse circuito fechado de mortes,
que levantamos a voz, em lamento. Ela ecoa noite e dia.

Referências

ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Tradução de Procópio


Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
ARIÈS, P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias.
Trad. Priscila Viana Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
ELIAS, N. A solidão dos moribundos Seguido de “Envelhecer e morrer”. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FREUD, S. Luto e melancolia. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HENRY, P. A história não existe? In? ORLANDI, Eni P. (Org.) Gestos de leitura:
da história no discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 1997. p. 29-53.
LACAN, J. Televisão. Outros Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 2003.
ORLANDI, E. Desconstrução e construção do sentido: um estudo da ironia. In:
Série Estudos, Faculdades Integradas de Uberaba, no12, p.66-96, 1986.

192
RESTOS DE HORROR

______. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas:


Editora da Unicamp, 1992.
______. Discurso e texto: a formulação do sentido. Campinas, SP: Pontes,
2001.
PÊCHEUX, M. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória.
Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999, p. 49-58.
______. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma
análise automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Trad. Bethania Mariani... [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
SOUZA, P. de. Gritos e sussurros: rasgos vocais em discurso. In: CASTELO-
BRANCO, L. K. A.; ROGRIGUES, E. A.; SANTOS, G. L. (orgs.). Análise de discurso
no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi.
Campinas, SP: RG Editora, 2011.
SÓFOCLES. Antígone. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2009.

193
PARTE 3
NÓS E ELES

Fábio Ramos Barbosa Filho


Valdemir de Souza Vicente

Introdução

As eleições presidenciais de 2018 foram marcadas por um grande


clima de polarização política que se constituía no país há pelo menos
uma década. Em 2010, por exemplo, o segundo turno entre José Serra
e Dilma Rousseff foi palco de uma série de formulações que deram o tom
não apenas à existência, mas à especificidade dessa polarização. No dia
31 de outubro de 2010, a estudante de direito Mayara Petruso postou
no Twitter:

Figura 1
Fonte: Google imagens

197
RESTOS DE HORROR

Nesse singelo tweet, havia muita coisa. Havia tudo aquilo que o
historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior1 chamou de engenho
anti-moderno, imaginário que marca a invenção do Nordeste no começo
do século XX, amparado, sobretudo, na figura da seca. Nesse sentido,
matar um nordestino afogado seria quase fazer um favor não a São Paulo,
mas ao próprio nordestino, dando-lhe a água que lhe falta. Havia a cons-
trução “Nordestisto”, articulação de “Nordeste” com “isto”, e que satura
lexicalmente a desumanização desse inimigo político.2 Havia também
a metonímia megalomaníaca que indistingue “Sp” e “Brasil” (já que a
eleição escolheu a presidenta e não o governador) e coloca, por sua vez,
uma fronteira interna entre os brasileiros e os outros, no próprio Brasil.
Nesse espaço borrado, “nordestino” e “Nordeste” dividiam não so-
mente os efeitos, mas os afetos do resultado eleitoral. É exemplar que da-
das as condições de produção do espetáculo midiático ao longo da divul-
gação dos resultados por região (e não por características étnicas, raciais,
etárias, religiosas ou quaisquer outras), as declarações discriminatórias
foram dirigidas exclusivamente aos nordestinos. No entanto, Dilma
foi vencedora em Minas Gerais (58,45%), Rio de Janeiro (60,48%) e no
Distrito Federal (52,81%) e, salvo engano, não houve ninguém pedindo
a morte de mineiros, cariocas e candangos. É justamente nesse lugar
que podemos ver que “Nordeste” não mobiliza simplesmente um espaço
geográfico, mas um significante inscrito na trama das relações ideológi-
cas que constitui o imaginário político brasileiro.
Quatro anos depois, as eleições de 2014 deram visibilidade a um
embate que se construiu não a partir da figura do adversário, mas do an-
típoda: uma alteridade inegociável desfilou às ruas para demarcar o es-
paço do intolerável, de uma diferença que não era apenas marcada pela
predileção, mas por uma espécie de ojeriza ideológica que supõe o outro
não como adversário, mas como inimigo. À época, palavras como “cor-
rupção”, “roubalheira”, “Cuba” e “Venezuela” dominavam, de um lado,
a tal ojeriza ideológica por uma posição que parecia afastar o Brasil de sua
1 Albuquerque Júnior, 1994.
2 Optamos por manter entre aspas e itálico apenas ocorrências do corpus. As formulações
entre aspas e sem itálico não ocorrem nos materiais analisados, mas foram por nós evocadas
no movimento da análise.

198
RESTOS DE HORROR

vocação natural ou de sua essência perdida. “Eu odeio o PT mais que tudo
na minha vida”, dizia uma eleitora de Aécio Neves em uma manifestação
nas ruas de São Paulo. “São canalhas. Terroristas. Guerrilheiros”, dizia
outro.3 As relações de hostilidade (marcadas pelo nós contra eles) e hos-
pitalidade (marcadas pelas alianças ideológicas e pelas mais diversas
possibilidades de laço social) parecem, desde então, ganhar corpo e dar
ainda mais consistência à polarização, demarcando as posições em jogo
na formulação dos “nós”, “eu” e “eles” que comparecem nos dizeres.
Esses dois cenários, 2010 e 2014, nos ajudam a pensar a polari-
zação que desenha ou redesenha boa parte das políticas de hospitali-
dade e hostilidade no Brasil contemporâneo. Mas é preciso recuar para
não cairmos no efeito de reconhecimento que impõe a polarização como
um dado político. De nossa parte, gostaríamos de pensar de que maneira
essa polarização se impõe como um efeito específico das contradições
ideológicas no imaginário político nacional.
Definimos aqui a polarização como um efeito de saturação das con-
tradições numa relação binômica. Satura-se em um par opositivo a multi-
plicidade das contradições e das relações de força que dão feição ao po-
lítico numa conjuntura dada. A polarização é, portanto, uma das formas
pelas quais opera a ideologia, condensando os impasses e as contradi-
ções do funcionamento do modo de produção capitalista, a partir de um
efeito de evidência que sustenta o imaginário político-social como fissu-
rado e dividido em dois. Assim, é produzido um esquecimento a respeito
de outras determinações e contradições que constituem o arranjo das re-
lações sociais em uma formação social dada e a polarização funciona
no imaginário político como um efeito de reconhecimento dominante.
No funcionamento do discurso essa polarização se inscreve sobre-
tudo na relação entre o nós e eles. Mas essa relação binômica não é pura-
mente formal, porque as posições que sustentam, no discurso, nós e eles,
são sempre históricas. Ou seja, embora formalmente o pronome pessoal

3 Aqui nos referimos a um vídeo produzido pela Folha de São Paulo em 2014 durante a
realização de uma manifestação política na cidade de São Paulo. O vídeo, que será objeto de
uma investigação mais aprofundada em um estudo posterior, está disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=zb9_4yRJsvY

199
RESTOS DE HORROR

da primeira pessoa do plural nós seja idêntico, ele não evoca os mesmos
processos de significação em condições de produção distintas. Tudo de-
pende, portanto, de uma análise das formulações em jogo.
Não tomaremos, portanto, nós e eles enquanto elementos que se
reportam a “pessoas” ou “agentes políticos”, mas a posições discursi-
vas possíveis de serem ocupadas por diferentes sujeitos em condições
de produção dadas. Embora a relação nós e eles seja constitutiva do ima-
ginário político, o que nos interessa são justamente os processos de sig-
nificação que se inscrevem na ilusão de evidência e homogeneidade
da autodefinição (nós) e da definição do outro que se situa fora do “seu”
campo político (eles). É essa compreensão que nos afasta tanto de uma
tomada de posição psicologista e empirista (que reporta o dizer a um fa-
lante que é fonte e origem dos processos de produção de sentido) quan-
to de uma tomada de posição pragmática (que mobiliza o conceito de
“contexto” ou “situação” para dar conta da exterioridade dos processos
de produção de sentido). Levando a sério fato de que o falante não é
senão um sujeito, pensamos que os processos de significação precisam
ser remetidos ao interdiscurso, ou seja, sustentamos que

a condição essencial da produção e interpretação de uma


sequência não é passível de inscrição na esfera indivi-
dual do sujeito psicológico: ela reside de fato na exis-
tência de um corpo sócio-histórico de traços discursivos
que constitui o espaço de memória da sequência. O ter-
mo interdiscurso caracteriza esse corpo de traços como
materialidade discursiva, exterior e anterior à existência
de uma sequência dada, na medida em que esta materia-
lidade intervém para construir tal sequência (PÊCHEUX,
2011a, pp. 145-146)

Isso quer dizer, em suma, que o interdiscurso funciona como


uma estrutura material de relações que sustenta o dizível. Nessa pers-
pectiva, qualquer formulação está ligada a um já-dito que não é neces-
sariamente um enunciado efetivamente produzido, mas um enunciado
possível em certas condições. É por conta dessa premissa teórica funda-

200
RESTOS DE HORROR

mental que partimos para uma montagem de arquivo que nos permitisse
escutar os processos de produção de sentido em suas condições mate-
riais de emergência e circulação.
O arquivo foi constituído, inicialmente, a partir da regularidade
de um item lexical, qual seja, a palavra “fascista”4, que muito circula
nas mídias sociais, na literatura acadêmica e nas publicações jornalís-
ticas. Para a análise, esperamos lançar mão, dentro das condições que o
corpus permite, do recurso da paráfrase5 entre as sequências discursivas
para dar visibilidade à constituição das redes de sentidos em torno de
“fascista” em postagens do Twitter do ano de 2020 produzidas por perfis
identificados com a atual direita conservadora brasileira. Porém, antes
de partirmos diretamente à questão, faremos uma breve reflexão em tor-
no da formação do outro-hostil6 como elemento constitutivo do imagi-
nário político nacional. Para tanto, voltaremos ao século XIX com o ob-
jetivo de interrogar de que maneira a relação entre nós e eles constitui
uma memória das relações de hostilidade que, de certa maneira, não ces-
sa de delinear os sentidos de brasileiro.

1. Os brasileiros e os outros

Situamos na seção anterior a polarização como um processo


aparentemente ligado às relações políticas e sociais contemporâne-
as. No entanto, gostaríamos de acentuar aqui o fato de que a relação
nós e eles já se atualizou diversas vezes ao longo da história do Brasil.
Especialmente no século XIX ela coloca em cena a tensão entre “brasilei-

4 Na verdade, nos interessam como ponto de entrada no material as palavras “fascista”,


“fascistas”, “fascismo”, “antifascismo”, “antifascista”.
5 De acordo com Michel Pêcheux, o analista de discurso só é capaz de escutar os processos
de produção de efeitos de sentido em seu corpus dispondo-o em sequências discursivas
(sem que isso implique uma determinação quantitativa dada a priori) “por meio das suas
possibilidades de substituição, comutação e paráfrase” (Léon; Pêcheux, 2011b, p.165). É
dessa forma que recortamos o nosso o arquivo em sequências discursivas que constituem o
nosso corpus. Partindo das regularidades do corpus, portanto, nosso movimento de análise
iniciará a partir da palavra “fascismo” e suas variações já mencionadas.
6 Barbosa Filho, 2018.

201
RESTOS DE HORROR

ros” e “africanos libertos” que emerge na maior parte das lutas políticas
nos oitocentos em torno das transformações da sociedade escravista.
Os africanos libertos foram, sem sombra de dúvidas, o setor
da formação social brasileira mais perseguido ao longo do século XIX.7
Não eram nem cidadãos, nem estrangeiros e por isso estavam sujei-
tos às mais diversas arbitrariedades. Após 1830, com o sancionamen-
to do Código Criminal do Império, as arbitrariedades ganharam forma
e lastro jurídico. Mas a escalada do antiafricanismo no Brasil se intensi-
fica a partir de 1835 com a profusão da legislação antiafricana que pre-
via, inclusive, deportações de africanos suspeitos, ainda que sem provas,
de participação na revolta dos malês.8
Justamente em 1835 o presidente da Província da Bahia, em car-
ta ao ministro da justiça do Império, disse que “não sendo os africanos
libertos nascidos no Brasil, e possuindo uma linguagem, costumes e até
religião diferente dos brasileiros, e pelo último acontecimento, declaran-
do-se tão inimigos da nossa existência política, eles não podem jamais
ser considerados cidadãos brasileiros para gozar das garantias afiançadas
pela Constituição”9. Vamos dividir essa passagem em duas sequências
discursivas:

(SD1) Não sendo os africanos libertos nascidos no Brasil


e possuindo uma linguagem, costumes e até religião di-
ferente dos brasileiros e pelo último acontecimento de-
clarando-se tão inimigos da nossa existência política
(SD2) Eles não podem jamais ser considerados cidadãos
brasileiros para gozar das garantias afiançadas pela
Constituição

Sustentamos que SD1 e SD2 organizam, no discurso, dois espaços


de memória distintos: enquanto SD1 produz um inventário de oposições
simétricas entre nós (“brasileiros”) e eles (“africanos libertos”), SD2 mo-

7 Reis, 2003.
8 Ver Brito (2010), Barbosa Filho (2018) e Reis (2003).
9 Carta mencionada por Brito (2010).

202
RESTOS DE HORROR

biliza uma lei (a Constituição de 1824) para prescrever/decretar o fato


de que esse conjunto de diferenças inviabiliza qualquer possibilidade
de obtenção da cidadania. SD2 parece marcar o fato de que os “cidadãos
brasileiros” são aqueles que podem “gozar das garantias afiançadas pela
Constituição”, ou seja, os únicos a possuírem existência jurídico-política.
Define-se, desde já, os “africanos libertos” não apenas como distintos,
mas como uma espécie de antípoda dos “cidadãos brasileiros”.
Deslinearizando SD1 esses efeitos ganham ainda mais corpo:

(SD1.1) Os africanos libertos não são nascidos no Brasil


(SD1.2) Os africanos libertos não possuem uma linguagem
igual à dos brasileiros
(SD1.3) Os africanos libertos não possuem costumes
iguais aos dos brasileiros
(SD1.4) Os africanos libertos até não possuem uma reli-
gião igual à dos brasileiros
(Sd1.5) Os africanos, pelo último acontecido, declararam-
-se tão inimigos da existência política do Brasil
dos brasileiros

Ora, quando se diz em SD1.1 que “os africanos libertos não são nas-
cidos no Brasil” não se diz apenas que “os africanos libertos são nascidos
em outro lugar”. Se diz, sobretudo, que “os africanos libertos não são
cidadãos brasileiros” e que “os africanos libertos não podem jamais
ser cidadãos brasileiros”, pelo menos desde a Constituição de 1824. Aqui
a questão da negação fica ainda mais marcada. Por efeito de negação,
os “cidadãos brasileiros” são aqueles que possuem uma só linguagem,
uma só religião, um só conjunto de costumes e, sobretudo, os brasileiros
são aqueles que não se opõem à existência política do Brasil e dos pró-
prios brasileiros. Define-se o “cidadão brasileiro” como negação do afri-
cano liberto.
No entanto, há não-nascidos no Brasil que podem aceder à cate-
goria de cidadão brasileiro. Vejamos o que diz a Constituição de 1824:

203
RESTOS DE HORROR

TITULO 2º
Dos Cidadãos Brazileiros.
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenu-
os, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez
que este não resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi
Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem es-
tabelecer domicilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz es-
trangeiro em serviço do Imperio, embora elles não ve-
nham estabelecer domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões,
que sendo já residentes no Brazil na época, em que
se proclamou a Independencia nas Provincias, onde ha-
bitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela
continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua
Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para
se obter Carta de naturalisação.

Ou seja, os “nascidos em outro lugar” podem se tornar “cidadãos


brasileiros” mediante uma “carta de naturalisação”. A possibilidade
de naturalização demarca, portanto, um espaço de alteridade e hospita-
lidade possível aos não-nascidos no Brasil. Parece haver uma cisão entre
dois eles: “estrangeiros” (que poderão, sob certas condições, ser conside-
rados “cidadãos brasileiros”) e “africanos libertos” (que jamais poderão
ser considerados “cidadãos brasileiros”).
Passemos a um funcionamento anafórico que demarca, a nosso
ver, uma questão fundamental. Em SD1 o pronome “nossa” retoma tanto
“Brasil” quanto “brasileiros”. Fizemos questão de acentuar essa ambi-
valência em SD1.5 porque seus efeitos nos remetem ao artigo primei-
ro da Constituição de 1824 que define, ao mesmo tempo, “Império” e
“Cidadão Brazileiro”:

204
RESTOS DE HORROR

Art. 1. O IMPERIO do Brazil é a associação Politica de to-


dos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação
livre, e independente, que não admitte com qualquer ou-
tra laço algum de união, ou federação, que se opponha
á sua Independencia.

Definindo o “Imperio do Brazil” como a “associação Politica de to-


dos os Cidadãos Brazileiros”, a Constituição de 1824 define os “africanos
libertos” como seres juridicamente inexistentes. Os “africanos libertos”
não fazem parte do Brasil, não possuem direitos políticos e não gozam
“das garantias afiançadas pela Constituição”, nem mesmo da possibilida-
de de obtenção da cidadania. O único lugar possível é o do outro-hostil.
Se em SD1 os africanos libertos são significados como “inimigos da exis-
tência política do Brasil”, é também contra o próprio “Império” (enquanto
“associação política”) e, consequentemente, contra “todos os Cidadãos
Brazileiros”, que eles são significados. Diferentemente de “cidadão” e
“brasileiro” (que só aparecem na construção determinada “cidadãos
brasileiros”), “Império” e “Brazil” possuem existência autônoma e es-
tabelecem, inclusive, relações correferenciais. É, então, nesse sentido
que o deslizamento “Imperio” = “Brasil” e “Império” = “todos os cidadãos
Brazileiros” permite desdobrar as seguintes paráfrases:

(SD3) Os africanos libertos são inimigos de todos os cida-


dãos brasileiros
(SD4) Os africanos libertos são inimigos do Brasil

É a construção do eles como inimigo que inviabiliza qualquer pos-


sibilidade de aliança. Como vimos, os “estrangeiros” também não com-
põem o nós, mas juridicamente podem aceder à condição de “cidadãos
brasileiros”. Os estrangeiros também possuem uma língua, costumes e
“até” religião diferente dos brasileiros. Mas diferentemente dos “afri-
canos libertos”, a diferença qualitativa que os distingue dos “cidadãos
brasileiros” não impõe polarização. A despeito da preposição “até”, pre-
sente em SD1 e destacado em SD1.4, a Constituição de 1824 sustenta
que os estrangeiros, “qualquer que seja a sua Religião”, podem se natu-

205
RESTOS DE HORROR

ralizar brasileiros.10 A preposição “até” ao mesmo tempo em que assina-


la que a religião é uma formação ideológica dominante na conjuntura
dos oitocentos – afirmando que um dos elementos de significação dos
“cidadãos brasileiros” é a fé cristã – aponta para um descompasso entre
o nível jurídico e o nível político da formação social brasileira oitocen-
tista. Na tensão entre a carta do presidente da Província ao ministro
da justiça do Império e a Constituição de 1824 há, justamente, um espa-
ço para interrogar de que maneira as relações entre o jurídico, o políti-
co e o religioso, que não coincidem, como pudemos observar, produzem
os mecanismos de hostilidade e hospitalidade no Brasil oitocentista.
Sustentamos, portanto, que o outro-hostil é uma posição consti-
tutiva do imaginário político brasileiro. É essa posição que dá condições
de emergência à polarização, que nada mais é do que a possibilidade
de formular as contradições de maneira binômica, recorrendo ao inimi-
go, ao eles como antípoda que pode a qualquer momento colocar não só
o “nós”, mas o “nosso” em risco.

2. O povo e os outros

Para além da diferença entre nós “brasileiros” e eles “africanos”,


há a dicotomia entre o nós “povo”/”patriotas”/“cristãos” e eles, os “co-
munistas”, nós “brasileiros” e eles “indígenas”, e mais uma miríade
de outras relações possíveis na atual conjuntura política. Nos deteremos
a partir de agora em funcionamentos ligados à nossa conjuntura, ou seja,

10 Neste ponto é preciso fazer uma retificação que, a nosso ver, é fundamental. Em Barbosa
Filho (2018), classificamos a preposição “até” como um advérbio por seu caráter “inclusivo”.
Esse ato falho linguístico merece uma explicação, ou melhor, uma retratação. Ele foi possível
por causa da substituição em uma paráfrase de SD1. No discurso jurídico “até” funciona
como “e” ou “também”, ou seja, como conectivo, tal como ele funciona gramaticalmente.
A esse respeito, é suficiente indicar que na Constituição de 1824 a adesão a qualquer outra
religião não inviabiliza a obtenção de cidadania. No discurso político a coisa muda de
forma. No político, esse funcionamento parece apontar para outra substituição: “inclusive”,
ou seja, um advérbio que não apenas acrescenta, mas aponta para um efeito de agravo: é
justamente o “até” que marca, no discurso, tanto a diferença inegociável, quanto a não-
coincidência entre o político e o jurídico. Portanto, essa paráfrase não é linguística, mas
discursiva, porque evoca uma possibilidade de substituição que é da ordem do discurso
e não da língua. Agradecemos imensamente o colega, amigo e camarada Gabriel de Ávila
Othero pela cuidadosa observação.

206
RESTOS DE HORROR

ao conjunto articulado de determinações que caracterizam o momento


atual da cena política brasileira.
De início, assinalamos que as posições que podem ser apontadas
nas postagens do Twitter em 2020 por parte da direita brasileira se an-
coram em uma rede de formulações que tanto evoca quanto reivindica
uma posição ideológica alinhada àquela dominante durante a ditadu-
ra civil-militar. Mas não apenas. Ela também evoca, ainda que à revelia
dos sujeitos engajados nos processos de significação contemporâneos,
uma memória da própria estrutura binária do nós e eles que antecede,
e muito, a feição histórica do conservadorismo nacional contemporâ-
neo. Isso é importante porque para nós a polarização é uma forma es-
pecífica de significar o espaço do político. A relação nós e eles é, como
já dissemos, um funcionamento ideológico que satura, que esquece a di-
nâmica articulada das relações sociais, sustentando o político no jogo
maniqueísta e binômico dos pares opostos. Ou seja, essa é uma forma
ideológica, uma forma que não é apenas o “suporte” que “exprime o con-
teúdo” de uma relação política. Ela é uma forma específica de constitui-
ção das posições em jogo na luta ideológica.11
O passado, que não cessa de ser reivindicado e enunciado nas for-
mulações de hoje, nos permite algumas observações a respeito de um
funcionamento que parece demarcar, no cerne dessa memória da ditadu-
ra civil-militar, a feição da polarização atual, qual seja a palavra “povo”,
que parece ter desempenhado um papel importante no funcionamento
ideológico do discurso militar. Freda Indursky, que desenvolveu um tra-
balho importantíssimo em torno dessa questão, analisando formulações
sustentadas pelos generais da ditadura em que há a ocorrência da pa-
lavra “povo”, encontra diversos efeitos de sentido atribuídos ao longo
do tempo a esse significante. Queremos nos ater a um sentido específico,
que a autora denomina como “Povo 1”:

No discurso sobre o povo, sua configuração em primeiro


nível remete a uma parcela específica da classe média,
11 Diferentemente da luta econômica (ligada à ação dos sindicatos e associações de classe) e
da luta política (ligada à ação dos partidos e movimentos sociais), a luta ideológica é uma
luta na e contra a formação ideológica dominante que objetiva suspender os efeitos de
reconhecimento das “convicções, crenças e representações do mundo” (Althusser, 2017, p.
73,) saturados nessa formação ideológica como naturais, eternos e atemporais.

207
RESTOS DE HORROR

que apoiou o movimento de 31 de março, como o recorte


que segue evidencia.
CB1 – Na verdade, o povo brasileiro, ao se levantar
em armas, procurou restabelecer a autodeterminação
e o ambiente das liberdades fundamentais que vinham
sendo massacradas pelos comunistas em todas as partes
do Governo brasileiro. O povo brasileiro, ao agir como
agiu, procurou (...) contribuir para a paz universal, ar-
rancando do cenário da administração brasileira o co-
munismo divisionista e derrotista. (CB1-8.05.64 – Dia da
Vitória–Ex-Combatentes, p.102)

Nesse trecho, enunciado por Castelo Branco, primeiro presidente


da ditadura, a relação nós e eles se apresenta como uma dicotomia en-
tre o “povo brasileiro”, aquele autodeterminado, agente de sua história,
armado (ao mesmo tempo em que almeja a “paz universal”) de um lado,
e os “comunistas” divisionistas e derrotistas, que ameaçam ou “massa-
cram” a autodeterminação, as liberdades fundamentais e até mesmo a
“paz universal”, de outro. Ou seja, os efeitos de sentido que diferem nós,
uma direita de virtudes cívicas, e eles, o caos social, a esquerda, já se
constrói e se apresenta em 1964.

2.1 Fascistas e patriotas

Passemos, pois, ao exercício de análise que foi o mote da elabora-


ção deste texto. O primeiro tweet com o qual tivemos, por acaso, contato,
foi este:

Figura 2
Fonte: Twitter

208
RESTOS DE HORROR

Este tweet – postado por uma conta que hoje sequer existe – estava
se referindo a um ato em Curitiba (PR) na noite de 1º de junho de 2020.12
Durante o ato, alguns manifestantes rasgaram e queimaram uma ban-
deira do Brasil. Diversas personalidades políticas ligadas ao bolsonaris-
mo, como Bia Kicis, Carlos Jordy e Luiz Lima chegaram a se manifestar
na ocasião, também no Twitter. Vale mencionar que a conta se intitula
“Patriotas” e tem como avatar uma foto em preto e branco do presidente
da república Jair Messias Bolsonaro.
O que nos interessa, no entanto, são as relações de sentido em jogo
na textualização desse acontecimento. Já na Figura 1, logo acima,
o polo indicado como eles é nomeado como “esquerdistas”. Para além do
“Patriotas” que nomeia o perfil, não há nenhuma outra marca que agen-
cie o nós que sustenta o dizer, embora haja uma relação – marcada pelo
“como se” – que nos interessa em termos do funcionamento semântico
desse enunciado. Em outra ocasião13 apontamos que o “como se” fun-
cionava como uma forma de negar e afirmar ao mesmo tempo, evocando
a possibilidade de outras duas sentenças, ambas ausentes no tweet:

(SD5) Esquerdistas combatem o fascismo


(SD6) O PCC combate o tráfico

Diremos que SD5 e SD6 não estão formalmente escritas, mas estão
inscritas no tweet. A locução conjuntiva “como se” não expressa uma com-
paração simétrica do tipo x = y, mas instaura um efeito de paródia sus-
tentado no efeito de absurdo evocado por SD6. Evoca-se um saber la-
teral, que vem um lugar independente, exterior e anterior ao enunciado
efetivamente formulado que supõe tanto

(SD7) Sabe-se que o PCC não combate o tráfico

quanto

(SD8) Sabe-se que esquerdistas não combatem o fascismo

12 https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/06/02/interna_nacional,1153004/ma-
nifestantes-queimam-bandeira-do-brasil-e-vandalizam-curitiba.shtml
13 Abrahão e Sousa; Barbosa Filho, 2019.

209
RESTOS DE HORROR

Esse “sabe-se” funciona como uma espécie de “evocação lateral


daquilo que se sabe a partir de outro lugar” (PÊCHEUX, 2009, p. 101),
um tipo de funcionamento discursivo que Michel Pêcheux chamou de dis-
curso transverso e que se fundamenta numa modalidade específica do in-
terdiscurso de estabelecer relações no intradiscurso (como a de implicação,
por exemplo), um modo “a partir do qual se realiza a articulação com o
que o sujeito enunciador dá coerência ‘ao fio do seu discurso’: o intra-
discurso de uma sequência discursiva aparece nessa perspectiva como
um efeito do interdiscurso sobre si próprio” (COURTINE, 2009, p. 75).
Aparentemente, a relação entre “dizendo combater” em vez de
“combatem” é fundamental para que o efeito de interdição (“esquerdis-
tas não combatem o fascismo”) se imponha nessa posição e que, inclusi-
ve, marque o fato de que “fascismo” está entre aspas no tweet. Em suma,
a formulação ao mesmo tempo em que evoca um enunciado afirmativo,
mas sustentado pelo adversário

(SD9) Esquerdistas combatem o fascismo


retrabalha essa formulação a partir de uma comparação
(SD10) Esquerdistas dizem combater o “fascismo”
(SD11) Esquerdistas não combatem o “fascismo”
(SD12) Esquerdistas não combatem o “fascismo”, e sim o [SN]
(SD13) O PCC não combate o tráfico

É nesse lugar que se produz não apenas um efeito de compara-


ção, mas de equivalência entre “esquerdistas” e “fascistas”, de um lado,
e “PCC” e “tráfico”, de outro:

(SD14) Esquerdistas são fascistas


(SD15) O PCC é o tráfico

No entanto, há uma evocação ao nós, na medida em que é preciso


supor que

(SD16) Nós dizemos que esquerdistas são fascistas


(SD17) Os patriotas dizem que esquerdistas são fascistas

210
RESTOS DE HORROR

E se nós não somos esquerdistas, logo nós não somos fascistas.


Ou seja, “eles são os verdadeiros fascistas” funciona como uma paráfrase
possível nessa posição.
Na Figura 3, logo abaixo, esse efeito de nós e eles, em que “nós” re-
mete a “patriotas” e “brasileiros” e eles a “fascistas”, é reforçado por ou-
tra relação:

Figura 3
Fonte: Twitter

Há aqui inúmeros elementos que reforçam a relação nós e eles e que


nos permitem pensar sobre as posições em jogo nessa relação. Partimos,
pois, do segundo tweet da Figura 3 para colocar em cena a relação entre
os pronomes pessoais “nossos” e “nossa” e os substantivos “valores” e
“liberdade”. Segmentamos o tweet nas seguintes sequências discursivas:

211
RESTOS DE HORROR

os valores
(SD18) Nunca foi tão importante defender
a libedade
dos brasileiros
os valores
(SD19) Nunca foi tão importante defender a libedade
dos patriotas
(SD20) Nunca foi tão importante defender dos
esquerdistas os valores patriotas
fascistas que se dizem anti fascistas a libedade
dos brasileiros

As três sequências discursivas acima, permitem a marcação se-


mântica deste nós, “brasileiros” e “patriotas” contra os “esquerdistas” e
“fascistas que se dizem antifascistas”. É interessante notar que não se tra-
ta de quaisquer “fascistas”. Nesse sentido, “fascistas que se dizem antifas-
cistas” não remete apenas a “fascistas” mas a formulações como “antipa-
trióticos” e “criminosos”. Em seguida, no mesmo tweet, temos:

(SD21) Vamos seguir firmes na nossa luta na defesa


dos nossos valores
da nossa liberdade

Assim como a frase inicial do segundo tweet da Figura 3 (“Nunca


foi tão importante defender nossos valores e nossa liberdade”), a SD21 evo-
ca uma identidade entre “brasileiros” e “patriotas” através do sujeito
oculto do verbo “vamos”. Assim como, a emergência de uma segunda
pessoa elíptica (“vocês” em “Não desistam, não desanimem”) nos permi-
te pensar nos sentidos de nós, “nossa” e “nosso”. Observemos que, dife-
rentemente de “Nunca foi tão importante defender nossos valores e nos-
sa liberdade” e “Vamos seguir firmes na nossa luta”, construídas a partir
da primeira pessoa do plural, “Não desistam, não desanimem”, é constru-
ída a partir de uma segunda pessoa do plural – ainda que esse vocativo
esteja elíptico – que institui o “Patriotas” como porta-voz. É justamente
esse efeito de porta-voz que faz com que “Não desistam, não desanimem”
remeta tanto a “vocês” quanto a “nós”, “nossos” e “nossa”.14
Passemos, pois, à análise do primeiro tweet da Figura 3. Ali há
a emergência do seguinte enunciado:

14 A respeito da figura do porta-voz no discurso, ver Zoppi-Fontana, 2014.

212
RESTOS DE HORROR

(SD22) Fascistas que se dizem antifascistas queimam


a bandeira do Brasil agora a noite em Curitiba.

A nosso ver, o mais fundamental em SD22 é o efeito de evidên-


cia que sustenta a articulação entre “Fascistas se dizem antifascistas” e
“Eles queimam a bandeira do Brasil”. Diremos que não se trata simples-
mente de uma relação aditiva como em

(SD23) Fascistas se dizem antifascistas e queimam ban-


deira do Brasil

mas de uma relação adversativa:

(SD24) Eles se dizem antifascistas, mas queimam a ban-


deira do Brasil

Aqui retomamos uma premissa fundamental numa posição dis-


cursiva: as palavras não têm um sentido que lhes seja próprio. De modo
ainda mais categórico, diremos que as palavras não têm um sentido. Qual
é o sentido da palavra “fascista”? Qual o sentido da palavra “esquerdis-
ta”? Como analistas de discurso, sempre diremos: “depende”. Depende
das posições em jogo, depende das relações entre essa palavra e o con-
junto das formulações num arquivo, depende das condições materiais
de produção em que emergem. Isso quer dizer que de um ponto de vista
discursivo

[...] não há, de início uma estrutura sêmica do objeto,


e em seguida aplicações variadas dessa estrutura nes-
ta ou naquela situação, mas que a referência discursiva
do objeto já é construída em formações discursivas (téc-
nicas, morais, políticas...) que combinam seus efeitos
em efeitos de interdiscurso (PÊCHEUX, 2011c, p. 158)

Assim, pouco importa que no dicionário ou em outra formação


discursiva “fascista” tenha “outros sentidos” porque não é a “convenção
social” ou o “conjunto de usos” de uma sociedade que estabelece o fun-

213
RESTOS DE HORROR

cionamento semântico dos itens lexicais, mas a sua inscrição em uma for-
mação discursiva dada. Em outra posição ideológica a evidência da corre-
lação entre “queimar bandeira do Brasil” e “ser fascista” é praticamente
impossível porque nessa outra posição “ser fascista” implica outro con-
junto de relações de articulação no interdiscurso. Não se trata, portan-
to, de sentidos errados ou “impróprios”, mas de como essas posições,
sempre agenciadas por formações discursivas, traduzem os significantes
em jogo nas diferentes práticas discursivas.
Mas não é apenas por “queimar bandeiras” que o sentido de “fas-
cistas” é determinado na posição que parece se prefigurar no corpus
evocado na nossa ainda incipiente pesquisa. Tanto “Esquerdistas dizen-
do combater o ‘fascismo’ é como se o PCC dissesse que combate o tráfico”
(Figura 2) quanto “Fascistas que se dizem antifascistas queimam a bandei-
ra do Brasil agora à noite em Curitiba” (Figura 3) partem de uma estrutura
em que o sujeito é configurado na terceira pessoa do plural (eles) seguido
de alguma forma do verbo “dizer”. E é interessante que podemos inter-
cambiar os sujeitos das sequências discursivas que o efeito de sentido
aparentemente se mantém:

Fascistas que se dizem antifascistas


(SD 25 ) queimam a bandeira
Esquerdistas

do Brasil agora a noite em Curitiba.

Um dos crimes cometidos pelos “esquerdistas” ou “fascistas que se


dizem antifascistas” é a queima da bandeira nacional, símbolo pátrio.
Outros comentários situam essa ação como “vagabundagem” e mesmo
terrorismo (Figura 4, logo abaixo). Por efeito de oposição, aquele que não
é “esquerdista”, o “patriota”, é o verdadeiro antifascista. Nessa posição,
no discurso transverso é produzida uma implicação: antifascista é aque-
le que respeita os símbolos pátrios, que não faz baderna, que não é va-
gabundo ou mesmo terrorista. É alguém que almeja e promove a ordem.
Nessa posição, portanto, “fascismo” deriva para um desrespeito à or-
dem, crime de lesa-pátria e o “fascista” é correlato a “tumultuador” e
“vagabundo”.

214
RESTOS DE HORROR

Figura 4
Fonte: Twitter

Falaremos, portanto, em uma posição-sujeito patriótica para deli-


mitar o agenciamento das formulações sustentadas em nosso material.
É na dinâmica desse espaço de produção de sentidos que eles (“esquer-
distas” e “fascistas que se dizem antifascistas”) estão imediatamente as-
sociados com alguma forma de crime, seja um vínculo ao PCC ou ao dano
de um símbolo pátrio. Nessa posição, as formulações parecem se estru-
turar da seguinte maneira:

Fascistas combater o fascismo são terroristas e criminosos


(SD26) dizem mas
Esquerdistas ser antifascista são baderneiros e vagabundos

ou

(SD27) Eles se dizem antifascistas, mas são criminosos

Este “dizer” ou “se dizer” não é apenas falar. É se posicionar po-


liticamente, marcar seu território como alguém que defende algo e o
faz explicitamente em um contexto político em que existe algo identi-

215
RESTOS DE HORROR

ficado como “fascismo” que é significado em uma série de enunciados.


Ademais, esse “dizer”/“se dizer” se presenta sempre em terceira pessoa,
eles, que, ao se posicionar, “cai em contradição”, pois na posição patri-
ótica “fascista” é quem comete um crime e “eles/fascistas/esquerdistas”
são criminosos, ao mesmo tempo em que dizem que não o são.
Já havíamos apontado para esse efeito de identidade entre “fascis-
ta” e “desordeiro”/“criminoso” nos tweets anteriores. Nas figuras 5 e 6,
logo abaixo, impõe-se uma correlação ainda mais incisiva:

Figura 5
Fonte: Twitter

Figura 6
Fonte: Twitter

A formulação “Eles são antifas terroristas e criminosos” é interes-


sante, pois o pronome “eles” estabelece uma relação anafórica peculiar
com “torcidas” que parece retomar no interdiscurso, “fascistas que se di-
zem antifascistas” e “esquerdistas” de um modo bastante peculiar. Ora,

216
RESTOS DE HORROR

se eles eram, em todas as formulações anteriores sempre marcados como


agentes de um dizer e de um conjunto de práticas, “Torcidas são cortina
de fumaça” produz uma indicação de que eles não são apenas respon-
sáveis pelas suas ações, mas massa de manobra de outrem. Os verbos
que prevalecem nas sequências discursivas abaixo deixam de ser o “di-
zer” ou “se dizer” e passam ao ser e estar, compartilhando o sujeito ora-
cional “torcidas organizadas” ou alguma variação disso:

(SD28) Torcidas são cortina de fumaça


(SD29) Torcidas são antifas terroristas e criminosos
(SD30) Torcidas estão fazendo baderna nas ruas

Estas sequências discursivas sobre a manifestação aproximam


as torcidas organizadas aos grupos “antifascistas” e “esquerdistas”.
“Torcidas”, por exemplo, aparece como sujeito em terceira pessoa: eles,
aqueles que nós, patriotas, não somos.

Conclusão

Algumas das formações ideológicas que constituíram e consti-


tuem o fazer político no Brasil, ao manifestarem-se no discurso e na
língua, dão forma a uma estrutura de opostos que não são apenas dis-
tintos, mas contraditórios, inegociáveis. Nessa trama de relações de força
se estabelecem espaços de memória que estabilizam e ordenam, conforme
as condições de emergência do discurso sobre o outro, as posições a serem
ocupadas por nós e eles no discurso.
Assim, se na relação com o Nordeste não se trata da menção a uma
região geográfica, mas de uma memória específica das diferenças no Brasil;
se na relação de sentidos em torno de “africano liberto” não evoca-se
aquele que veio de África, mas ao inimigo que ameaça a unidade do nós
e do nosso; se na ditadura civil-militar emerge a contradição entre o “povo
brasileiro”, que é constantemente ressignificado, e o “subversivo”, na con-
juntura atual, entre o “patriota” e o “esquerdista”, se arquiteta uma tensão
entre fascismo e antifascismo, entre ordem e desordem, entre lei e crime,

217
RESTOS DE HORROR

que parece definir as dicotomias que sustentam a formulação do ou-


tro-hostil: não apenas aquele que não é, mas aquele que jamais poderá
ser nós. A polarização, portanto, não é apenas uma diferença qualitativa
entre nós e eles, mas uma diferença que inviabiliza qualquer possibilidade
de aliança ideológica entre os elementos em relação.
O discurso do outro-hostil, entoado por Mayara Petruso em 2010
e por tantos outros em 2014 e 2018, esse discurso do outro perigoso,
do outro que ameaça a unidade do nós e do nosso é constitutivo do imagi-
nário político brasileiro. Isso quer dizer que de um ponto de vista discur-
sivo, o passado não passou porque ainda produz efeitos e deixa inscrições
nas relações de sentido. Sentidos que não se dissipam nem se evanescem,
mas que emergem quando há condições. Finalizaremos com um exemplo
que a nosso ver caracteriza, inclusive, outra possibilidade de pensar o fun-
cionamento da polarização no debate político. Em entrevistas recentes
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele assume que suas campa-
nhas sempre foram planejadas através da polarização como um movimen-
to retórico para definir o lugar que o ex-presidente ocupa, ao mesmo tem-
po em que ressignifica a polarização como uma condição necessária da luta
política.15 Mas isso é conversa para outra hora...
Acreditamos, enfim, que análises sobre esse fenômeno permitem
que possamos compreender tanto alguns efeitos de ruptura entre diver-
sos discursos vinculados ao fazer político no Brasil, quanto os processos
de produção de sentido que reivindicam, na atualidade, formulações ins-
critas em condições de produção distintas. É nessa direção que pensamos
o trabalho do analista de discurso como um gesto teórico-político que se
debruça sobre a opacidade da língua na história.

Referências

ABRAHÃO E SOUSA, L. M.; BARBOSA FILHO, F. R. O que o amanhã guarda? Eis


o enigma. In: GRIGOLETTO, E.; DE NARDI, F. S.; SOBRINHO, H. F. da S. (org.)
Sujeito, sentido, resistência: entre a arte e o digital. Campinas, SP: Pontes,
2019. (p. 37-58).

15 https://pt.org.br/lula-a-polarizacao-no-brasil-e-entre-democracia-e-fascismo/

218
RESTOS DE HORROR

ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. O engenho anti-moderno: a invenção do


Nordeste e outras artes. 1994. Tese de Doutorado apresentada na Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP.
Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280137
ALTHUSSER, L. Teoria, prática teórica e formação teórica. Ideologia e luta
teórica. In: BARISON, T. (org.). Teoria marxista e análise concreta: textos
escolhidos de Louis Althusser e Etienne Balibar. São Paulo: Expressão Popular,
2017. (27-82).
BARBOSA FILHO, F. R. O discurso antiafricano na Bahia do século XIX. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2018.
BRITO, L. da C. “Sem direitos, nem cidadania: condição legal e agência de
mulheres e homens africanos na Bahia do século XIX”. In: História Unisinos,
vol. 14, nº 3, setembro/dezembro de 2010. Disponível em: http://revistas.
unisinos.br/index.php/historia/article/view/4731/1956
COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado
aos cristãos. São Carlos: EDUFSCAR, 2009.
INDURSKY, Freda. “Que povo é esse?” In: Revista de Estudos Linguísticos,
ano 4, v.1, p.101-114, Belo Horizonte, jan./jun. 1995.
LÉON, J.; PÊCHEUX, M. Análise sintática e paráfrase discursiva. In: ______.
Análise de Discurso: Michel Pêcheux – Textos escolhidos por Eni Orlandi.
Campinas, SP: Pontes, 2011b (p. 163-173)
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2009.
______. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ______. Análise de Discurso:
Michel Pêcheux – Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas, SP: Pontes,
2011a (p. 141-150)
______. Metáfora e interdiscurso. In: ______. Análise de Discurso: Michel Pêcheux
– Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2011c. (p. 151-161)
REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
ZOPPI-FONTANA, M. Cidadãos modernos: discurso e representação política.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2014.

219
RESTOS DE CENSURA E TORTURA:
CLOROQUINA OU A MORTE?

Andréia da Silva Daltoé1

Questões introdutórias

[...] Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,


ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
(Cecília Meireles, 1964)

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – PPGCL da


Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Doutora em Letras (2011) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Líder do Grupo de Pesquisa Relações
de Poder, Esquecimento e Memória (GREPEM- CNPq/UNISUL) e do Coletivo Pró-Educação
(Tubarão/SC); Integrante do Grupo de Estudos Pecheutianos (GEP-CNPq/Unipampa);
Email: andreiadaltoe@gmail.com.

221
RESTOS DE HORROR

Neste momento, em que vivemos um singular na história do sécu-


lo XXI, tentando combater um vírus invisível e, ao mesmo tempo, con-
cretamente presente em nossas vidas, encontramos um projeto como
o deste Livro, que nos convida a colocar palavras no lugar do absurdo
e, assim, significar, em alguma medida, o horror que nos assombra e,
em muito, nos paralisa. De nossa parte, aceitamos o desafio e a respon-
sabilidade desta soma, entendendo que precisamos resistir e é pela pa-
lavra que também o fazemos.
Sob o título “Restos de horror: luto, discurso e arte”, este convite,
que nos é tão caro, levou-nos a refletir sobre as formas de esgarçamento
do laço social que fazem pensar que só nos resta a morte. Inevitavelmente,
o tema toca em pesquisas que temos desenvolvido desde 2014 sobre
a ditadura no Brasil (a de 1964 a 1985) e suas ressonâncias e práticas no/
do presente, mostrando-nos que quanto mais investigamos este ontem,
mais nos deparamos com seus “restos de horror” no hoje: desde formas
que passam despercebidas, de tão incorporadas em nosso cotidiano,
a decisões políticas revestidas de um caráter de legalidade.
Assim, entre as várias possibilidades de pensar tais marcas, esco-
lhemos discutir a questão da censura e da tortura como restos deste tem-
po de horror que tem se atualizando em práticas que flertam com a mor-
te e gozam por/com isso no atual contexto da Pandemia do SARS-CoV-2,
causador da Covid-19. Estamos diante de um acontecimento – a maior
crise sanitária mundial de nosso tempo – e, nas palavras de Pêcheux
(2006, p. 19), queremos pensá-lo “em seu contexto de atualidade e no
espaço de memória que ele convoca e que já começa a reorganizar”.
Discutiremos, portanto, a atualização de uma memória, aquela
que nos assombrou durante os 21 anos de ditadura e que continua res-
soando, mas entendemos também um deslocamento necessário a ser
feito no fio do tempo, que não se limita a uma cronologia: se, duran-
te a ditadura, censura e tortura eram práticas institucionalizadas pelos
aparelhos de Estado, hoje acabam se revestindo de formas sofisticadas,
já que vivemos em uma Democracia, ainda que frágil.

222
RESTOS DE HORROR

É este processo de uma espécie de refinamento que pretendemos


problematizar a partir do dilema que tem nos interpelado desde o iní-
cio de 2020 e representado, em grande medida, o modo de lidar com a
Covid-19 no Brasil. Trata-se do enunciado “Cloroquina ou a morte?”,
que, embora não retirado de uma fala em específico, será tomado nesta
pesquisa como enunciado-síntese para representar a política assumida
pelo Governo Federal frente à Pandemia.
Julgamos que, por meio desta textualidade, que materializa
uma forma de governar, seja possível discutir o modo como o vírus ex-
trapola a questão biológica e atinge os registros do político, do social,
do científico, do econômico, do ético, do histórico, do ideológico e, a par-
tir do qual, colocam-se em jogo novas maneiras de funcionar a censura
e a tortura, atualizando todo um horror que resta sempre e nos coloca
em risco permanentemente.

Cloroquina ou a morte?

A cloroquina, droga já existente no mercado para tratar de doenças


como lúpus, artrite remautoide, malária e outras, ganhou popularidade
a partir do momento em que o Presidente do País e seus subordinados
passaram a defender o tratamento precoce da Covid, mesmo com re-
provação da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito. Ao lado
de outros medicamentos, a cloroquina passou a fazer parte do chama-
do kit-covid, prometido como tratamento e cura para a infeção, e logo
se transformou em política pública, atingindo um gasto de quase 90 mi-
lhões2, somando-se a propagandas em lives do Presidente, que passou
a tomar cloroquina diante das câmeras no seu café da manhã. Até che-
garem as vacinas, esta foi a resposta do Governo Federal à Pandemia,
apenas negada pelo Ministério da Saúde quando se inicia a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia no Congresso Nacional
em 27/04/2021.

2 Em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55747043. Acesso em 20/03/2021.

223
RESTOS DE HORROR

Ignorando-se o risco do medicamento, conforme alerta da própria


OMS, a propaganda sobre sua eficácia para Covid-19, inclusive na forma
de nebulização (o que levou à morte 3 pessoas no Rio Grande do Sul),
fez com que grande parte da população esgotasse o remédio nas prate-
leiras das farmácias, deixando desassistidas as pessoas que realmente
dependem da cloroquina para outras doenças.
A partir do entendimento de que a cloroquina, portanto, não de-
veria ser tomada como solução para a Covid, segundo pesquisadores re-
nomados e a própria OMS, como podemos entender o funcionamento
do enunciado “Cloroquina ou a morte?”, que passou a ocupar o imaginá-
rio de grande parte das pessoas como única saída para esta crise sanitá-
ria e justificativa para medidas bastante controversas?
Partindo da língua que engendra este jogo e recuperando Pêcheux
(2011, p. 165), para quem o sentido “só existe em referência a outros
textos, frases ou palavras [...] por meio de suas possibilidades de subs-
tituição, comutação e paráfrase”, iniciamos nossa análise colocando
“Cloroquina ou a morte?” ao lado de outro enunciado que nos vêm à
memória por relação parafrástica: “A bolsa ou a vida?”: enunciado re-
corrente para nos dizer de uma escolha entre entregar o que se tem
ou colocar a própria vida em risco, em várias situações para além de um
assalto propriamente dito. É título do livro de Eric Toussaint (2001);
do Documentário do cineasta Silvio Tendler (2020); Lacan já se utilizou
deste enunciado para explicar o que seria uma escolha forçada, trazido
por Galligaris em “A bolsa ou a vida?”, Folha de SP (maio de 2020)3, para
falar da Pandemia no Brasil; mesmo motivo que levou Birman (2020)
a intitular assim também o Capítulo 5 da obra que será explorada aqui.
Pensando os sentidos que são recuperados neste jogo parafrástico
entre “Cloroquina ou a morte?” e “A bolsa ou a vida?”, queremos des-
tacar que a estrutura sintática organizadora de ambos se dá em torno
do conectivo ou, que produz um efeito de escolha e, portanto, de uma
interpelação que permitiria ao sujeito decidir entre duas possibilida-
des. Todavia, “A bolsa ou a vida?” resgata uma memória sobre a violên-
3 Em: http://aldeianago.com.br/artigos/6-comportamento/23665-a-bolsa-ou-a-vida-por-
contardo-calligaris. Acesso em 18/07/2021.

224
RESTOS DE HORROR

cia que nos ameaça permanentemente e, desse modo, já desfaz a ideia


de escolha, considerando-se que, diante de uma situação de perigo,
em princípio, defenderíamos a vida e não os pertences. Pensando os dois
enunciados em questão, poderíamos ler que bolsa está para morte, assim
como tomar cloroquina estaria para vida, sendo possível “Cloroquina ou a
morte?” receber outra substituição como: “A vida ou a morte?”. Todavia,
conforme vimos anteriormente, cloroquina não oferece nenhuma com-
provação para a Covid-19, portanto, não poderia estar em relação meta-
fórica com vida.
Neste caso, já é possível dizer que a identidade de sentido entre
as duas sequências se desfaz e parece que algo escapa neste tipo de repe-
tição, o que, como diz Pêcheux (2011, p. 171), é justamente o que nos in-
teressa do ponto de vista da produção discursiva do sentido.

1.1 A questão do conectivo ou

Partindo do aspecto formal do conectivo ou, não para situar aí nos-


so estudo, mas para mostrar como o efeito produzido nesta estrutura
sintática ajuda a produzir a ilusão da lógica que a conjunção evoca, visi-
tamos algumas abordagens a respeito:
Para a gramática normativa, ou é conjunção coordenada sindética,
que estabelece relação de alternância, de escolha entre as duas orações
(FARACO & MOURA, 2003, p. 471). De forma aproximada, para a linguís-
tica textual, conforme Marcuschi (2008, p. 118), ou assume o papel de um
operador argumentativo, que, como elemento coesivo conectivo, indica
disjunção; também podendo ser abordado como coesão sequencial pela
via do paralelismo, processo que implica termos ou orações colocados
em relação num enunciado de equivalência sintática e semântica.
Nos estudos da lógica formal, também encontramos ou podendo
ser abordado pelo princípio da contradição: algo não pode ser e não ser
ao mesmo tempo; e o princípio do 3º excluído: entre dois modos de ser,
só um poderia ser verdadeiro, e o outro seria falso – não há meio-ter-
mo. Haveria ainda a questão do falso dilema, falsa dicotomia, em que

225
RESTOS DE HORROR

se apresentam duas opções, mas uma delas já é descartada pelo propo-


nente, restando a que lhe interessa.
Em Tratado da Argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002,
p. 424) tocam na questão pela via do raciocínio por analogia, “como
uma similitude de estruturas, cuja forma mais genérica seria: A está para
B assim como C está para D”. Ou seja, tratam as relações postas em jogo
numa interação como relações de similitude, embora não as tomem
como simples proporção matemática de termos.
Sob tais perspectivas, cloroquina e morte estariam em relação
coordenada de termos, numa estrutura de paralelismo, comportando
constituintes morfológicos de mesmo tipo (GARCIA, 2000, p. 53) = subs-
tantivo + substantivo. Como o paralelismo precisa ser pensado morfo-
logicamente, mas também semanticamente, caberia perguntar se a
equivalência também se daria neste segundo aspecto: teríamos aí duas
possibilidades equivalentemente contrárias? Parece que o efeito que o
Governo tentou produzir foi que cloroquina estaria em relação meta-
fórica com vida, cura, prevenção, o que autorizaria a linearidade entre
a droga e morte, tomadas em alternância. Mas não é disso que se trata.
Os termos não estão em relação de alternância; vão na mesma direção
quando o remédio não cura o que promete e ainda pode matar.
Deslocando-nos para uma leitura materialista do sentido, precisa-
remos fazer intervir as condições de produção em que o discurso se dá,
sua espessura histórica e ideológica, seu efeito de transparência e de
lógica, bem como o sujeito que o assume a partir de determinada filia-
ção de sentidos – o que já nos obrigada a dizer que estamos remetendo
o enunciado “Cloroquina ou a morte?” ao momento político pelo qual
o Brasil passa, liderado por um Presidente que, produzindo-se como
mito, diante de uma grave crise que o expôs em suas limitações, encam-
pa uma saída simplificadora, quase milagrosa, para um problema desta
complexidade.
Embora cloroquina esteja para vida no plano da estrutura do enun-
ciado, esta relação de equivalência se desfaz, pois estamos falando de um
remédio sem comprovação técnica, com possibilidade ainda de pio-

226
RESTOS DE HORROR

rar o estado do paciente, em caso de infecção. Com isso, ao enunciado


em análise cabe outra reformulação parafrástica: O risco de morrer to-
mando cloroquina ou a morte? E daí questionamos: que disjunção o ou
estaria engendrando agora? Que tipo de liberdade de escolha resta mes-
mo ao sujeito? Arriscar-se à morte ou a morte? E então teríamos o ou
funcionando como uma conjunção aditiva e? Como pensar, trazendo
a leitura de Guimarães (2007, p. 102) sobre o conectivo ou, “duas direções
argumentativas diferentes, mas não necessariamente opostas”?
Parece que estamos diante da deriva do sentido, conforme Pêcheux
(2011, p. 171), “entre duas sequências de estrutura sintática fixa e não
mais em termos lógicos”, mostrando, também segundo o autor (1988,
p. 87), que a linguística é “solicitada constantemente para fora de seu
domínio”.

A lógica disjuntiva do ou em Pêcheux

“Cloroquina ou a morte?” coloca em jogo dois significantes como


se equivalentes fossem, numa estrutura que oferece a ilusão de poder
de escolha ao sujeito. Todavia não há escolha, considerando que não
se pretenderia a morte e, muito menos, um remédio sem comprovação
científica. Desfazer a naturalidade desta relação nos impõe então ques-
tionar: é isso que temos como política pública de saúde para enfrentar
a Pandemia?
Para Pêcheux (1988, p. 24), as práticas linguísticas acontecem ins-
critas no funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação
social dada (no caso a formação social capitalista), como efeito da luta
de classe sob a dominação da ideologia burguesa. Podemos dizer que o
enunciado em questão põe este funcionamento em jogo, quando a es-
trutura sintática se constrói como duas possibilidades, mas, na verdade,
a única opção é lançar uma grande parcela da população à própria sorte.
O ou vai engendrar, assim, uma estrutura sintática que sustenta
a escolha oferecida pelo Governo e a ilusão de que é resultado. Porém,
quando fazemos intervir as condições de produção deste discurso,

227
RESTOS DE HORROR

que convoca inúmeras práticas em curso desde o Golpe de 2016, a posi-


ção-sujeito e o lugar que ocupam os que se valem dele para vender a sa-
ída da crise, vemos que esta lógica no plano da língua encobre uma po-
lítica preocupada apenas com a volta da “normalidade” da economia
no País, e não com a vida das pessoas: uma lógica que já excluiu, antes
de qualquer escolha, a grande parcela da população que não contaria
mesmo, os sem parcela nas palavras de Rancière (1996).
“Cloroquina ou a morte?”, filiando-se à mesma rede de sentidos
da Campanha elaborada pela Secretaria de Comunicação do Governo
Federal (SECOM) para as redes sociais: #OBrasilNãoPodeParar, embo-
ra revestido de preocupação com a saúde pública (se é que passa perto
disso), mais servirá, portanto, para colocar as pessoas de volta às ruas,
de volta ao trabalho, de volta ao consumo – algo como: Tome este remé-
dio e vá trabalhar, ou você morre de fome porque a economia pára.
Neste funcionamento do “Todos vão morrer um dia”, proferido
pelo Presidente em março de 2020 como fatalidade inevitável, sabe-
mos que seu todos não são todos, mas somente aqueles que enfrentarão
os trens e ônibus superlotados; que servirão os exaustos do isolamento
social nas festas clandestinas ou particulares; que se empilharão nas fi-
las dos bancos para receber o auxílio emergencial. Lembremos Pêcheux
(1988, p. 27): numa formação social capitalista, para o direito burguês,
“todos os homens são iguais, mas há alguns que o são mais que outros”.
É a ideia de totalidade encobrindo as diferenças, as contradições,
as injustiças, sob a estrutura do que Pêcheux vai chamar de enuncia-
dos performativos: [...] quando dizer equivale a fazer, a política tende
a se tornar uma atividade imaginária que se parece ao sonho acordado”
(2011, p. 89). Assim, sob a ilusão de uma saída que não é saída, enquanto
nos debatemos no duelo entre seguir trabalhando e/ou morrer, apagam-
-se diante de nós outras perguntas, tais como: não haveria uma terceira
possibilidade de resolver ou amenizar o impacto desta crise? A saúde
e, portanto, a vida não são também uma questão de economia? Qual
a responsabilidade dos governantes diante de uma crise sanitária de ta-
manha proporção? Não seria possível enfrentar a Pandemia com saídas
econômicas que não nos colocassem em risco de morte?

228
RESTOS DE HORROR

Tudo isso é silenciado sob a aparência lógica do enunciado


em questão, por isso a importância de, conforme Pêcheux (2006, p. 50),
deslocar a pesquisa linguística de sua “obsessão pela ambiguidade (en-
tendida como lógica do “ou... ou)”, e “abordar o próprio da língua através
do papel do equívoco, da elipse, da falta, etc...”. É o que tentamos aqui
fazer quando interrogamos o papel do conectivo ou, a partir do modo
como Pêcheux (2006, p. 51) chama a pesquisa linguística a construir:

[...] procedimentos (modos de interrogação de dados


e forma de raciocínio) capazes de abordar explicitamente
o fato linguístico do equívoco como fato estrutural im-
plicado pela ordem do simbólico. Isto é, a necessidade
de trabalhar no ponto em que cessa a consistência da re-
presentação lógica inscrita no espaço dos ‘mundos nor-
mais’.

Estamos nos valendo da discussão de Pêcheux sobre a questão


disjuntiva do ou isto ou aquilo enquanto uma evidência lógico-prática,
que vai funcionar como técnica de gestão social dos indivíduos (2006, p.
30), no espaço administrativo, jurídico, econômico e político. Sua refle-
xão encontra inevitavelmente o enunciado de que nos ocupamos, tam-
bém organizado nesta estrutura disjuntiva e tentando gerir nossa vida:
sob o efeito desta evidência do ou a cloroquina/ou a morte, estamos
é diante de uma falta de escolha, uma não saída.
Neste espaço discursivo logicamente estabilizado, ainda segun-
do o autor (2006, p. 31), “supõe-se que todo sujeito falante sabe do que
se fala, porque todo enunciado produzido nesses espaços reflete pro-
priedades estruturais independentes de sua enunciação: essas proprie-
dades se inscrevem, transparentemente, em uma descrição adequada
do universo”. Esta passagem é fundamental e justifica porque qualquer
explicação que se esgote na língua enquanto sistema não daria conta
de explicar seu funcionamento em determinada condição de produção,
no alcance de seus efeitos e nas consequências que provoca e permite.
Diante da fatalidade da Pandemia, a opção dada é da ordem de uma coer-
ção, de uma violência simbólica e física: voltemos ao trabalho e, sob efeito

229
RESTOS DE HORROR

desta transparência lógico-prática, não temos tempo, nem possibilidade


de questionar a (in)governabilidade na gestão da Pandemia.
Sob o efeito da clareza do ou isto ou aquilo, “Cloroquina ou a mor-
te?” justifica tudo em nome da urgência (PÊCHEUX, 2006, p. 36). E é as-
sim que, numa política do “Não sou coveiro e daí?”, vemos se atualizarem
as palavras de Pêcheux (2006, p. 32):

Esta ‘cobertura’ lógica de regiões heterogêneas do real


é um fenômeno bem mais maciço e sistemático para
que possamos aí ver uma simples impostura construída
na sua totalidade por algum Príncipe mistificador: tudo
se passa como se, face a essa falsa-aparência de um real
natural-social-histórico homogêneo coberto por uma
rede de proposições lógicas, nenhuma pessoa tivesse
o poder de escapar totalmente, mesmo, e talvez sobretu-
do, aqueles que acreditam ‘não-simplórios’: como se esta
adesão de conjunto devesse, por imperiosas razões, vir a
se realizar de um modo ou de outro.

A cobertura da lógica disjuntiva do enunciado em questão encon-


trar, desse modo, a eficácia no que Pêcheux apresenta como necessidade
imperiosa do sujeito pragmático: as formas de gestão cotidiana que nos
facilitam a vida ao decidirmos apenas entre uma coisa ou outra; nossa
“necessidade universal de um mundo semanticamente normal” (2006,
p. 34), enquanto “o Estado e as instituições funcionam o mais freqüen-
temente [...] como pólos privilegiados de resposta a esta necessidade
ou a essa demanda” (2006, p. 34). Somando-se a isso, a promessa de cura
da Covid vai encontrar uma outra vontade imperiosa do nosso tempo
– as pílulas milagrosas: pílulas para sair da depressão, pílulas para ema-
grecer, pílulas para ter ereção, pílulas para acalmar as crianças hiperati-
vas, enfim... a pílula salvadora da cloroquina que vai nos devolver à vida
“normal”.
Não acreditamos em pílulas milagrosas, nem em saídas fáceis para
problemas complexos, entendendo, portanto, que a lógica disjuntiva
aqui analisada aponta não para uma escolha, muito menos para uma in-

230
RESTOS DE HORROR

terpelação ao sujeito respeitado em sua vontade, mas para o imperativo


de uma ordem que nos nega o direito de proteger a própria vida. Da evi-
dência lógica produzida como efeito no enunciado em questão, acaba-
mos nos defrontando, voltando a Pêcheux (2011, p. 173), com a opacidade
do sentido, com a “tensão contraditória entre uma lógica da interpre-
tação de formas logicamente estáveis e das estratégias de construções
discursivas pegas na deriva”.
Vendem-nos a ideia de temos escolha, mas não temos...

Algumas reflexões ainda e costuras

Ao refletir aqui sobre práticas discursivas próprias de determi-


nadas práticas políticas, vimos que, pelo enunciado-síntese analisado,
foi possível encontrar, sob outra tintura, marcas de um discurso de cen-
sura e de tortura. “Cloroquina ou a morte?” atualiza formas de censura,
porque impede o questionamento; bem como imprime formas de tortu-
ra, porque não nos resta opção a não ser ter a vida sob ameaça.
Expondo a disjunção à sua contradição, à equivocidade que é pró-
pria da língua, foi possível fazer ver que o funcionamento desta lógica,
conforme Pêcheux (2006, p. 55), nega “o ato de interpretação no próprio
momento em que ele aparece”. Este impedimento funciona em modos
de regulação do dizer, que apelam às totalidades, às unidades, à letra
da lei, etc., numa forma apurada e fina de censura, afinal, quem ques-
tionaria: Somos todos iguais; Brasil acima de todos; A lei é clara; Falamos
uma só língua... Diante do “Cloroquina ou a morte?”, estamos sob o efei-
to de: escolhendo a economia, tudo volta à “normalidade” – como se re-
solvido pela lei da natureza... neste caso, a lei de um darwinismo social.
Lembremos de Temer, que, no curto espaço de tempo na Presidência de-
pois do Golpe de 2016, também veio com um “Não fale em crise, trabalhe”.
É assim que formas de gestão política vão se sustentando pela
censura e pela tortura, impedindo que nos demos conta das contradi-
ções que assolam uma sociedade tão desigual como a nossa: conforme
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2019, ocupamos

231
RESTOS DE HORROR

o 2º lugar no ranking de maior concentração de renda entre 180 países,


quando 1% da população mais rica do Brasil detém quase 1/3 do total
da renda nacional. A Pandemia acabou piorando e escancarando ainda
mais este quadro, como aponta a Agência Senado4: “Durante a primeira
onda do coronavírus, no ano passado, mais de 30% dos 211,8 milhões
de residentes nos 5.570 municípios brasileiros tiveram de ser socorridos
na etapa inicial do auxílio de R$ 600”.
Eis o que não se pode deixar ver e, na dificuldade de, segundo
Pêcheux (2011, p. 161), “suportar a categoria da contradição”, é necessá-
rio impedir o conhecimento sobre a realidade que nos oprime: uma deci-
são política, que passa pela língua de Estado, conceituada pelo autor (cri-
ticando o discurso stalinista) como “uma série de estratégias de discurso
obstinada em evacuar qualquer contradição e a mascarar a existência
das relação de classes: ela usa uma falsa aparência para contornar inde-
finidamente o que todo mundo sabe e que ninguém pode dizer” (2011,
p. 86). Para nós, esta língua não está desenroscada da língua de vento
da propaganda (designação trazida de Debray por Pêcheux) e vai susten-
tar a política do performativo (2011, p. 89).
Neste enrosco, “Cloroquina ou a morte?” materializa no discurso
uma política pública performática e, ao mesmo tempo, funciona como
propaganda de Estado: vende-se uma saída simples para um problema
de tamanha complexidade e abrangência; impede-se qualquer questio-
namento; e, de carona, alimenta-se o discurso negacionista da Ciência,
necessário para garantir a exploração de sujeitos e natureza numa eco-
nomia neoliberal que precisa seguir seu curso.
Neste ponto, para nós, a censura encontra a tortura em práticas
discursivas e sociais que gerem toda uma desigualdade social, neste mo-
mento acirradas pelo avanço das políticas neoliberais no mundo todo,
as quais acabaram se servindo da própria crise sanitária para levar a cabo
uma política de morte como saída para muitos problemas: é necessário
deixa morrer o excedente que a atrapalha.

4 Notícia publicada em 12/3/2021 no site Agência Senado: https://www12.senado.leg.br/


noticias/infomaterias/2021/03/recordista-em-desigualdade-pais-estuda-alternativas-
para-ajudar-os-mais-pobres> Acesso em 21/07/2021.

232
RESTOS DE HORROR

Lembrando a anedota que Pêcheux (2011, p. 88) traz de Henry


Ford, “Nós liberamos ao cliente o carro na cor de sua escolha... com a
condição que ele a queira preta”, nossa escolha está em não deixar a eco-
nomia parar, seguir produzindo e consumindo como se tudo “normal”
estivesse. E mais: como se esta opção fosse ainda o resultado de nossa
liberdade como sujeitos de direito(s). A lógica disjuntiva de que trata-
mos numa perspectiva discursiva nos permitiu ver antes a falta de opção
para um País, que, neste momento, ultrapassa o número de meio milhão
de mortos; a ingovernabilidade e irresponsabilidade do Governo Federal
frente a tudo isso; e, ainda, a própria negação da Ciência levada às úl-
timas consequências quando contribui com a ignorância das pessoas
em não tomar as medidas corretas diante da Covid.
Nas palavras de Birman (2020, p. 69), vemos uma gestão
da Pandemia, em que:

[...] o discurso político norteado pela razão instrumental


economicista, e não pela razão científica crítica, que é
mais ampla, resultava necessariamente numa prática so-
cial eugênica, em que as populações precárias e os ido-
sos seriam eliminados pela morte, numa perspectiva
eminentemente genocida de depuração populacional,
em nome da manutenção da expansão econômica neo-
liberal.

Em julho de 2021, o Ministério Público Federal já investigava a dis-


tribuição de cloroquina a indígenas de Roraima por equipes do Ministério
da Saúde que chegaram às aldeias da Terra Yanomami e Raposa Serra
do Sol sem quarentena prévia. Desde o início da Pandemia, a região
já recebeu 622 mil comprimidos. Poderíamos falar ainda da forte crítica
que muitos governadores fizeram à vacinação da população carcerária.
Enfim, segundo Birman (2020, p. 97), já sabemos que “a maioria de infec-
tados e de mortos no Brasil se concentra nas classes sociais precarizadas
[...] se concentra na periferia das grandes cidades”, contando com um
Sistema de Saúde colapsado, enquanto as outras classes contam com se-
guros-saúde, protegidas do ataque viral.

233
RESTOS DE HORROR

Como adiantamos, Birman se vale do título do Cap. 5, A bolsa ou a


vida? (2020, p. 43), para pensar a “razão dessa disjunção crucial de pers-
pectivas éticas, políticas e científicas” (2020, p. 44), que mais aponta
para a preocupação com a trajetória futura desses governantes, numa
“opção política clara de não perturbar em absoluto o bom andamento
da economia” (2020, p. 45), embora, conforme o autor, os países que res-
peitaram o imperativo da vida e o discurso da ciência recuperaram mais
rápido suas economias.
Em “A bolsa ou a vida?”, o psicanalista vai mostrar como “o discur-
so político de assunção do imperativo da bolsa, no lugar do imperativo
da vida, implica a recusa, pelo sujeito do reconhecimento, de algo que se
impõe no registro perceptivo, isto é, no plano da realidade” (2020, p. 51).
Para o autor, com essa recusa, não se reconhece o imperativo ético fun-
damental da vida, sacrifica-se a todos em nome de cálculos políticos es-
púrios, de forma que o sadismo e a crueldade se impõem efetivamente
na escolha do econômico.
O Psicanalista cita Trump como exemplo, mas o Brasil também
está literalmente atrás, com o Presidente, no ano de 2021, participan-
do de motociatas em várias capitais e cidades brasileiras e promovendo
aglomeração de pessoas sem proteção nenhuma. E sem motivo de co-
memoração, já que enfrentamos hoje o 2º lugar no ranking dos países
com maior número de mortes no mundo, perdendo apenas para os EUA.
Em comum, segundo Birman, frente ao imperativo da vida ou da econo-
mia, ambos os presidentes tomaram a opção pelo segundo.
É desse modo que a Pandemia acabou também escancarando
as práticas asfixiantes de governabilidade do mundo neoliberal já em
curso. De acordo com Birman (2020, p. 59), diferentes governos apro-
veitaram o acontecimento da Pandemia para promover controle social
ostensivo da população e de seus territórios e a prática de desmonte
da ordem democrática: Hungria, por exemplo, tem abolido direitos ci-
vis, lançado políticas totalitárias nas instituições antes democráticas,
cerceando de várias maneiras a liberdade de imprensa, os movimentos
LGBTQIA+, etc.

234
RESTOS DE HORROR

No Brasil, aproveitaram a Pandemia para “passar várias boiadas”,


não só no meio ambiente, como assim proferiu o já não mais Ministro
da Pasta: cortes de bolsas e de fomento às pesquisas em andamento
nas universidades públicas; grileiros e madeireiros avançando em terras
indígenas protegidas; mudanças nas leis trabalhistas (mais ainda) con-
tra direitos do trabalhador, sob a justificativa da crise causada pelo ví-
rus; milhões gastos em kit-covid enquanto há hospitais sem medicação
necessária para intubação.
Silva Junior (2021) explica que, na perspectiva econômica do neoli-
beralismo, o que é considerado quebra do pacto social vira regra do jogo,
usando como exemplo o caso do desemprego como política necessária
para manter salários baixos e oferta de mão de obra; situação que será
explorada também pela saúde, quando o “custo simbólico e moral das do-
enças ligadas ao desemprego pode ser revertido em lucro no negócio
dos seguros saúde e da indústria farmacêutica” (2021, p. 265).
Em meio à CPI da Pandemia, poderíamos também trazer em va-
lores o quanto esta crise sanitária ofereceu espaço não só para a indús-
tria farmacêutica e de insumos hospitalares lucrarem (alguns produ-
tos atingiram o aumento de 1.000%5), como também para a corrupção
na compra de materiais, remédios, equipamentos (em Santa Catarina,
até o momento deste artigo, não se resolveu o caso dos 200 respiradores
que custaram 33 milhões ao Estado e ainda não foram entregues).
Estamos entendendo estas práticas como marca de uma políti-
ca perversa que, daí trazendo novamente Birman (2020), ao optar pelo
imperativo da economia e não da vida, modulou-se pelo imperati-
vo da crueldade, evidenciada de forma chocante nas múltiplas formas
de desprezo do Presidente: “Diante dos milhares de mortos provocados
pela pandemia, sua frieza e ironia se conjugam intimamente com a pro-
dução de enunciados performáticos impróprios a qualquer um diante
da morte do outro” (2020, p. 53).

5 Em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/insumos-hospitalares-
registram-aumentos-acima-de-1000> Acesso em 22/07/2021.

235
RESTOS DE HORROR

É esta política perversa e cruel do deixar morrer e, ainda, do se


aproveitar da condição de calamidade para levar adiante interesses eco-
nômicos e político-pessoais que lemos como resto de tortura, atuali-
zando-se de forma trágica diante de nossos olhos. O risco é nos des-
sensibilizar diante do excesso de maldade, acostumando-nos com os
que ficam pelo caminho, com os que morrem porque tinham mesmo
que morrer. Trabalham a favor disso: a negação sobre o número de mor-
tes; as fake news sugerindo que os caixões enfileirados enterravam ar-
reia; o Presidente incentivando as pessoas a irem aos hospitais checa-
rem se realmente a calamidade explorada pela mídia é verdade... Formas
de gestão de um governo que se esmera, trazendo Pêcheux, na “arte
de anestesiar as resistências, de absorver as revoltas no consenso” (2011,
p. 92).
Da nossa parte, seguimos lutando contra tudo isso em palavras
e nas formas de resistência que temos encontrado na força do coleti-
vo, dos movimentos sociais, na soma como a que resultou neste livro,
tentando desfazer a lógica de um discurso político que nos encarcera,
nos isola, nos limita, nos silencia e nos mata... às vezes na hora, às vezes
aos poucos.
Como analistas de discurso, continuemos, pelo ensinamen-
to de Pêcheux (2006, p. 53), oferecendo lugar à interpretação a partir
dos pontos de deriva possíveis e fazendo ouvir as formas de assujei-
tamento do sujeito, o que, segundo o autor, “faz falta politicamente”
(2011, p. 92).

Referências Bibliográficas

BIRMAN, J. O trauma na pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas,


sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2020.
FARACO; MOURA. Gramática. São Paulo: Editora Ática, 2003.
GARCIA, O. M. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2000.

236
RESTOS DE HORROR

MARCUSCHI, L. A. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão.


São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
ORLANDI, E. P. Eu, tu, ele: discurso e real da história. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2017.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1988.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores,
2006.
______. Foi “Propaganda” Mesmo que Você Disse? In: ORLANDI, Eni. P. Análise
de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
_______. Análise Sintática e Paráfrase Discursiva. In: ORLANDI, Eni. P. Análise
de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da Argumentação: a Nova
Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
SILVA JUNIOR, N. da. O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do
“Pacto edípico e pacto social, de Hélio Pellegrino, ai “E daí?”, de Jair Bolsonaro.
In: SAFATLE, W.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Orgs.). Neoliberalismo como
gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

237
FAHRENHEIT BRASIL – PSICANÁLISE, ARTE
E UTOPIA1

Edson Luiz André de Sousa

“Sem linguagem nova, não há realidade nova”


Glauber Rocha
“Alguém deve deixar alguma coisa para trás quando
morre, dizia o meu avô.
Um filho, ou um livro, ou um quadro, ou uma casa,
ou uma parede construída ou um par de sapatos feitos
à mão. Ou um jardim plantado. Alguma coisa em que
a nossa alma tenha para onde ir quando morremos e,
quando as pessoas olharem para essa árvore ou flor
que plantamos, nós estamos lá”.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451

O Brasil é hoje uma terra em brasa e esta experiência traumáti-


ca que estamos vivendo durante a pandemia pelo coronavirus deixará
muitas marcas para as gerações que virão. Hoje ainda respiramos as fu-

1 Este texto foi construído a partir das anotações que fiz de minha conferência no Fórum do
Campo Lacaniano em São Paulo, nos seminários Diálogos com a Pólis, em maio de 2021.
Uma versão destas ideias foi publicado na Revista Porto Arte em julho de 2021 com o título
"Sonhar juntos para não naufragar". Este é uma versão ampliada e modificada deste artigo.

239
RESTOS DE HORROR

maças dos muitos incêndios produzidos no período da ditadura civil-


-militar no Brasil. Mas a evocação de Ray Bradbury que abre este tex-
to é para nos lembrar também que diante da destruição encontramos
sempre formas inéditas de resistência, de luta e de revolta. Na distopia
de Bradbury os livros eram salvos por um trabalho de memória, um a
um, como monumentos da história, nos mostrando que quando perde-
mos a voz, quando perdemos as palavras, quando perdemos a lingua-
gem, perdemos tudo. O romance Fahrenheit 451 dá estofo a uma ideia
que tenho pensado há algum tempo e que nomeei como memoriais
minimalistas. Em outras palavras, na falta de uma política de Estado
que cuide da memória, somos convocados, um a um, a inventar novas
formas de fazer inscrição dos traumas que vivemos, recolher as cinzas
destas brasas para poder ouvi-las. Só assim teremos uma memória digna
para um futuro efetivamente autêntico e não mera reprodução do vivi-
do. Virar a história em seus avessos, enfrentar os imperativos do sentido,
ativar a imaginação, acionar a deriva significante será sempre uma for-
ma de abrir uma chance para novas narrativas, o que significa dizer,
para novas realidades. Esta é a seiva profunda plantadas tantas vezes
no campo das artes, que capturam as cinzas destes incêndios e nos jo-
gam em nossos olhos para que possamos ver e reagir às feridas de nosso
tempo. Também encontro esta seiva na psicanálise na medida em que
ela está sempre confrontada com a função de arejar a terra desconhecida
que nomeamos de inconsciente, um lugar de incompreensão que temos
sempre que escutar. A arte nos coloca diante de perguntas interpelan-
do sobre qual o texto que lemos quando vemos uma imagem. Coloca
em cena uma espécie de ruído e perturbação na imagem nos mostrando
que o que vemos depende sempre de uma posição discursiva.
O fogo não para. No final de maio de 2021 garimpeiros ilegais inva-
diram uma aldeia indígena nas margens do rio Tapajós no Pará, atacando
a tiros e incendiando a casa da líder indígena Maria Leusa Munduruku.
Ela tem sido ameaçada de morte por lutar pelo direitos de sua comuni-
dade poder viver em paz em suas terras. Inimaginável o tamanho do de-
samparo que ela experimenta nestes tempos em que a destruição é a
moeda corrente na política do governo federal brasileiro. Mas apesar

240
RESTOS DE HORROR

de tudo, Maria Leusa não se cala e assim sua voz, sua força nos trazem
a esperança que precisamos para um trabalho árduo de reconstrução
nestas terras devastadas. Todos que trabalham para fazer algum regis-
tro destas histórias, ocupando assim a importante função de testemu-
nha, abrem algum caminho possível no enfrentamento de todas estas
violências.
Como na novela de Ray Bradbury, também reagimos a estes incên-
dios. Em 5 de maio de 2021, no dia internacional da língua portuguesa,
se reinaugurou em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, recons-
truído depois da destruição por um incêndio no final de 2015. A expo-
sição que reinaugura o museu tem o sugestivo título de “Língua Solta”
com curadoria de Moacir dos Anjos e Fabiana Moraes. Esta mostra reúne
dezenas de artistas brasileiros que utilizam a palavra como suporte para
seus trabalhos. Assim, se reatualiza a pergunta: o que quer e o que pode
esta língua? 2

Figura 1: Elida Tessler. Phósphoros.


Foto: Arquivo pessoal da artista

2 Música de Caetano Veloso, Língua.

241
RESTOS DE HORROR

A língua insiste, geme, sussurra, grita, protesta, canta, provoca


e sonha. Um dos trabalhos presentes nesta exposição e que dialoga com a
novela de Ray Bradbury é Phósphoros da artista Elida Tessler. No roman-
ce distópico Farenheit 451 os livros eram guardados na memória e assim
preservados. Elida Tessler concebeu um trabalho que foi listar todos
os livros queimados na novela de Ray Bradbury, bem como todos os li-
vros que estiveram na mira dos bombeiros no filme de François Truffaut
inspirado no livro. Truffaut incluiu no roteiro do seu filme uma série
de outros livros que não estavam presentes no romance. Com esta lis-
tagem em mãos concebeu um caixinha de fósforos cujos palitos foram
confeccionados especialmente, e onde foram gravados o nome de cada
autor em um dos lados do palito e no outro o título do livro no idioma
original em que foi escrito. São 122 palitos de fósforos invertendo o lu-
gar do fogo. São 122 livros incendiários. O livro não é mais queimado
pois agora é ele que tem o poder de queimar, de acender chamas de vida
que possam nos trazer o calor da vida. Assim, a potência do fogo ressur-
ge não como destruição, mas como uma pulsão criativa e construtiva.
O trauma encontra um lugar possível de abrigo e os escombros tem ago-
ra uma chance de linguagem.
Estamos atravessando uma experiência da peste, para lembrar
aqui a atualidade do texto de Albert Camus, que tem nos tirado o chão.
A contaminação se dá em vários níveis e talvez o vírus da covid não seja
o mais letal. Uma primeira contaminação se dá no campo da linguagem,
infectada por um discurso da estupidez que parece ter tomado conta
do espírito deste país. Estamos assistindo atônitos uma verdadeira he-
morragia dos princípios que regem a linguagem, linguagem que a psi-
canálise desde sempre acolheu no seu trabalho de escuta do sofrimen-
to humano. Vemos ruir nos discursos dos tiranos de plantão a função
do significante cujo valor é justamente suspender os sentidos absolutos,
a força da metáfora, o tensionamento constante entre o dito e o dizer.
Inaugurou-se de forma assustadora uma relação à linguagem que se
dissemina em um espaço de vociferações e discursos de ódio. São falas
que surgem de forma imperativa em que, aquele que fala, tenta impor
ao outro, a forma como deve ser escutado. Neste sentido qualquer coisa

242
RESTOS DE HORROR

pode ser dita já que há uma única mensagem a ser escutada. Em outras
palavras, constatamos um empobrecimento radical da linguagem quan-
do estratégias como estas se instauram no espírito do tempo.
Há um ano atrás escrevi um pequeno texto que nomeei
“Copacabana, praia de memórias”3 onde comento sobre o gesto do ta-
xista Marcio Silva reagindo a um homem ensandecido derrubando cru-
zes de uma manifestação da Ong Rio da Paz em homenagem aos mor-
tos da Covid. Márcio que havia perdido seu filho Hugo de 25 anos dias
antes, enlutado ao ver a cena, põe os pés na areia e vai recolocando
uma a uma as cruzes no lugar. Este gesto que nos lembra tanto a revolta
de Antígona diante de Creonte teve repercussão internacional.
Reencontro Marcio um ano depois. Como o trabalho de taxista está
difícil ele tem feito delivery para um supermercado que fica em frente
ao Cemitério São João Batista em Botafogo, onde seu filho foi enterra-
do. Hugo, ainda tão jovem, deixou também um filho Arthur de 5 anos
de idade que anuncia o Brasil que está por vir. Que narrativas o pequeno
Arthur vai poder nos trazer destes tempos? Marcio perdeu um primo
pela covid que era enfermeiro em um hospital e sua irmã está internada
em estado grave também pelo vírus. São muitos lutos. Ele voltou a cena
pública reagindo às declarações de Bolsonaro, insistindo que é preci-
so respeito pelos enlutados e que cada vez que ouve estas falas a feri-
da se abre novamente. Se refere mais precisamente a uma cena em que
Bolsonaro ironiza uma morte por asfixia. Quando o presidente de um
país chega ao ponto de imitar jocosamente um paciente sem ar na UTI
com sons guturais, como aconteceu em março deste ano, nos deparamos
mais uma vez com o ar destes tempos abomináveis, intoleráveis. Faz esta
cena responsabilizando o próprio paciente pela contaminação por não
ter aderido ao “tratamento inicial” com os medicamentos já comprova-
damente rejeitados pela ciência
Marcio já se vacinou por fazer parte de uma comunidade quilom-
bola mas a vacina que efetivamente precisamos, a que nos proteja destas

3 Publicado no site Psicanalistas pela Democracia, https://psicanalisedemocracia.com.


br/2020/06/copacabana-praia-de-memorias-por-edson-luiz-andre-de-sousa/, acesso em
18 de julho de 2021.

243
RESTOS DE HORROR

violências todas, ainda não encontramos. As palavras de Marcio, um ano


depois da morte do Hugo nos apontam um caminho:
“É uma saga difícil. Nem todos têm estrutura para aguentar.
Quando fui reconhecer o corpo, eu rezei. Não consegui nem olhar direi-
to. No meio do corredor, voltei e fui me despedir. Aquilo ali é doloroso.
Você não pode dar um abraço, um beijo e nem vestir a pessoa. É um mar-
tírio até mesmo para enterrar, com uma fila de quatro horas de espera
e só oito pessoas. É uma dor que as pessoas precisam entender e ter mais
empatia.” 4
São muitas memórias que são queimadas. Sabemos que não é pos-
sível pensar o tema da memória sem pensar na função do esquecimento,
eles sempre estão lado a lado como uma espécie de vaso comunicante.
Não podemos lembrar de tudo sempre, o traumático impõe um limite
a consciência e esta ferida fica ali guardada e soterrada. Aparece de formas
diversas, por alguns disfarces. Freud vai desenvolver uma reflexão impor-
tante sobre este tema evocando a ideia de “Lembranças Encobridoras.”
Poderíamos pensar estas lembranças como espécies de curativos que pa-
radoxalmente velam a ferida mas também a revelam. O curativo não nos
deixa ver a ferida de forma direta mas também não nos deixa esquecer
que ela está ali. Estamos ali neste impasse, neste engasgo entre não po-
der lembrar e o não poder esquecer. É isto que faz com que estejamos
capturados em uma maquinaria de repetição pois o traumático insiste
em cavar seu lugar.
Para que possamos dar algum contorno ao trauma, precisamos fa-
zer registro, escrever, narrar, compartilhar, acionando, assim, esta lem-
brança e se assegurando de sua presença podemos, em parte, nos des-
locar desta compulsão a repetição, deste impasse entre o impossível
de lembrar e o impossível de esquecer. Por vezes precisamos esquecer
desde que o traumático não se perca nesta história coletiva. Como evo-
ca Paul Ricouer ao mostrar que esquecer não necessariamente apaga
o memória, teremos sempre as cinzas: “ O esquecimento pode estar

4 Jornal O Globo de 12 de abril de 2021

244
RESTOS DE HORROR

tão estreitamente confundido com a memória, que pode ser considerado


uma de suas condições “ 5
Aqui estamos tocando o tema da inscrição. Para ler as cinzas é pre-
cisa que elas sejam recolhidas e que possam se desenhar como um texto,
mesmo que tenhamos que reinventar uma gramática para elas. Sem cin-
zas não há texto, sem leitor não há leitura, sem cinzas e leitor não há
história, e sem história não há futuro.
Jean- Louis Déotte, um autor fundamental para este debate, em seu
livro “Catástrofes e Esquecimento – as ruinas, a Europa, o museu” traz
uma contribuição importante ao evocar a questão dos traumas que ele
nomeia como imemorial. Refere-se aqui aos crimes contra a humanida-
de, por exemplo, apontando que são recordações enfermas de inscrição.
“Uma recordação de antes da memória e do esquecimento, em fal-
ta de memória e esquecimento, um corpo, um acontecimento que aspi-
ra a sepultura, a libertação, ao esquecimento, a conquista da memória.
Como esquecer o que não possui memória?” 6
Como este dano é feito a toda uma comunidade, mesmo que en-
carnado por vezes em algum sujeto, ou algum grupo é a comunidade
inteira que não pode esquecer. Déotte vai mais longe ainda dizendo
que o desafio deste furo na memória é uma herança terrivel também
para as gerações que virão. Sabemos bem, que é impossivel abrir novos
futuros sem recolher as cinzas, montar arquivos para abri-los a leitura.
A psicanálise nos abre caminho para adensarmos estes diálogos
interrompidos com a polis.
Mas para nos mantermos na superfície e não naufragar, sonha-
mos. E são estes registros que ativam nossa força de linguagem. Desde
o inicio da pandemia da covid 19 participo de um coletivo de pesquisa

5 RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento, Editora da Unicamp, Campinas,


2007, p. 435.
6 DEOTTE, Jean-Louis. Catástrofe y Olvido: Las ruinas, Europa, El Museo, Editorial Cuarto
Próprio, Santiago do Chile, 1998, p. 241

245
RESTOS DE HORROR

que nomeamos Inventário de Sonhos,7 onde recolhemos sonhos duran-


te a pandemia. Já temos um acervo de cerca de 1200 sonhos, que são
uma espécie de sismógrafo precioso destes tempos traumáticos que vi-
vemos. Muitas destas narrativas ativam imagens que nem sempre quere-
mos ver quando estamos acordados e assim parecem seguir a indicação
de Goethe em suas “Afinidades Eletivas” quando escreve que o sujeito
sonha apenas para não deixar de ver.
Franz Kafka anota em seu diário um sonho que teve em 4 de ju-
lho de 1916. “Acordei encerrado num quadrado formado por uma cerca
de madeira e que não permitia dar mais do que um passo para cada lado.
Há cercados semelhantes para encurralar ovelhas à noite, mas nem esses
são tão estreitos. O sol batia direto em mim, e para proteger a cabeça
baixei-a junto ao peito e ali fiquei encolhido” 8
Os sonhos são produções psíquicas que tentam abrir caminhos
mesmo quando nos mostram espaços confinados como neste sonho
de Kafka. Surgem como uma gramática enigmática que exigem um tra-
balho de leitura, de associação, de imaginação, de memória nos colocan-
do perguntas sobre que texto é este que fala em nós, com tantas imagens
surpreendentes. Temos, portanto uma chance de abrir brechas nos es-
paços confinados que muitas vezes a vida nos joga. Contudo, mais trági-
co que este sonho de Kafka é estar efetivamente neste quadrado e nem
mesmo sonhar. O sonho surge, portanto como um despertar, um sinal,
um alerta, um chamamento, um esforço de linguagem, uma senha,
um registro. Como lembrou Freud o sonho surge como uma formação
do inconsciente colocando em questão os lugares de fala do sujeito, des-
de onde fala, desde onde é falado, deslocando o falante de uma suposta
posição de domínio e de controle pela consciência.
A arte é também uma espécie de sonho ao nos abrir novas ima-
gens, novas palavras, novas leituras sobre o mundo. Escolhi dois rela-
tos de sonhos do acervo que já recolhemos do Inventário que nos aju-
dam a entender a radicalidade da experiência de contato com a morte

7 Fazem parte deste projeto. André Costa, Caroline Mortagua Denise Mamede, Edson Sousa,
Joana Horst, Luciano Bregalanti, Paulo Endo,
8 KAFKA, Franz. Sonhos, Editora Iluminuras, São Paulo, 2008.

246
RESTOS DE HORROR

que estamos tendo durante a pandemia e ao mesmo tempo as estraté-


gias que encontramos de criação para reagir diante deste trauma.

Sonho 19
“Eu sonhei com a morte encarnada. Ela deveria buscar
um ser de cada casa que visitava. Com tanto trabalho,
ela me deixou responsável por embalar e nutrir seu bebê.
Eu estava sentada de frente para aquele ser cujo gêne-
ro eu não pude descobrir. A Morte me entregou o bebê
que parecia ter poucos dias de vida. Junto dele um vi-
dro de uma sinergia de óleos. Com o líquido dourado,
eu deveria ungir a criança que estaria protegida da co-
lheita da sua progenitora. Eu, que nutria o bebê, achei
justo me proteger com o mesmo óleo, mas não comentei
com a Morte minhas intenções. Ela se levantou e deixou
minha casa pela porta. Por alguns segundos, enquanto
a morte fechava a porta, pude ver do lado de fora o caos
alaranjado de casas sobrepostas que lamuriavam a visita
que estava por vir...”
Sonho 210
“Eu estou em outra cidade dentro de um cemitério, está
de dia, existe várias covas abertas no chão, algumas delas
tem caixão com corpos, outras estão vazias, eu vou pas-
sando por todas elas, até chegar em um túmulo que eu
reconheço, o túmulo da minha família, ele também está
aberto, eu olho dentro dele está minha prima, apenas
com a cabeça pra fora e um pouco de terra em cima dela.
E do outro lado na beirada deste mesmo túmulo está mi-
nha vó (ambas pessoas realmente já faleceram), vestida
de preto, mas ela está bem serena e me olha, eu começo
a chorar, abraço ela mas não consigo finalizar o sonho,
pq em seguida já entra outro onde estou em uma multi-
dão de pessoas e isso vai me dando desespero...”

9 Acervo do Inventário de Sonhos


10 Acervo do Inventário de Sonhos

247
RESTOS DE HORROR

Os dois sonhos se aproximam da morte para ainda assim encontrar


a vida lembrando, de certa forma, a tese de Freud de que a experiên-
cia de luto é um trabalho de criação, um esforço para reacender a vida
pois precisamos encontrar espaço na linguagem que possa circunscrever
a experiência da falta. A morte no primeiro sonho tem um bebê e con-
fia o cuidado da criança ao sonhador. É assim que o sonhador encontra
uma forma de sobreviver ao passar o líquido dourado que irá lhe pro-
teger. No outro sonho, dentro do cemitério os mortos ainda podem
nos olhar. A avó incorpora o lugar da memória, que mesmo soterrada,
continua a nos enviar mensagens e nos reorientar em relação às nossas
origens e às histórias que nos constituem.
Vemos nestes dois sonhos uma insistência da vida resistindo ao si-
lenciamento imposto pela lógica da morte. As vozes continuam contan-
do suas histórias mesmo quando apagadas, como no trabalho de Gary
Hill, Mediações (1986). Neste trabalho em vídeo ouvimos uma narração
vinda de um autofalante e pouco a pouco esta voz vai sendo enterrada
com a areia que o artista vai lentamente colocando sobre o autofalan-
te. Mas a força da voz é forte o suficiente para continuar viva mesmo
quando completamente coberta de areia. Este trabalho aciona ao mesmo
tempo um pensamento sobre políticas de memória que fazem justamen-
te o movimento contrário que é desenterrar estas vozes. A arte desenha
assim uma narrativa possível diante do horror do traumático.
Nuno Ramos também dá forma a este pensamento com sua per-
formance em parceria com Paulo Climachauska de 2002 e que intitulou
“Luz Negra”.
Vemos neste trabalho quatro homens enterrarem um enorme cai-
xa de som, como se fosse um grande caixão. Tudo é feito em silêncio
e delicadeza como numa cerimônia fúnebre. O silêncio, contudo é rom-
pido com a música de Nelson Cavaquinho que começa a tocar por baixo
da terra e os versos que ouvimos são precisos.

“Um sol há de brilhar mais uma vez / a luz há de chegar


aos corações /Do mal será queimada a semente / O amor
será eterno novamente / É o juízo final / a história do bem

248
RESTOS DE HORROR

e do mal / Quero ter olhos pra ver / A maldade desapa-


recer” 11

Este trabalho é de uma atualidade impressionante para os tempos


traumáticos em que vivemos no Brasil onde a política incorporou o ódio
como estratégia de dominação.
Mas desta terra repleta de cinzas esperamos que a vida possa nova-
mente brotar como no trabalho da artista colombiana Doris Salcedo inti-
tulado “Plegaria Muda” (2011). Salcedo concebe uma instalação com 162
pares de mesas, sobrepostas uma sobre a outra e entre elas terra com se-
mentes. As mesas retangulares evocam o formato de caixões e assim
a instalação constrói uma atmosfera de memorial. As sementes vão aos
poucos germinando e crescem por entre as frestas da madeira buscando
luz. Este trabalho tenta dar um lugar de representação ao luto de cente-
nas de mães colombianas com as quais a artista entrou em contato para
ouvir suas histórias. Muitas destas mães da região de Soacha buscavam
ainda algum registro dos filhos desaparecidos por ações do exército na-
cional da Colômbia e sofriam tanto pela impossibilidade de realizar este
luto mas também pela indiferença da sociedade colombiana. Espaços
de memória e utopia que reafirmam insistentemente a dignidade de tan-
tas cinzas, que esperam por nosso olhar. Será que podemos imaginar
um mundo onde não seria possível dormir em paz sem antes recolher
da terra estes murmúrios esquecidos, soterrados e que ainda pedem
por um lugar?
Diante de tantos desamparos, fazemos aqui um esforço de pala-
vra para que algum campo de pouso seja possível nestas quedas. A psi-
canálise tem muito a contribuir para pensar uma política que adense
estes registros e monumentos de memória. Quando Paul Celan escreve
o verso “O mundo esta partido, devo carregar-te” indica nosso compro-
misso com esta memória. Derrida em um ensaio que intitulou “Como
não tremer?” lembra que em alemão tragen, (carregar-te) é um termo
usado na gestação, a mãe que carrega um nenê que ainda não tem apoio

11 Juízo Final, canção de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares (1973)

249
RESTOS DE HORROR

no mundo. Assim, carregamos os que não têm ainda apoio ou o perde-


ram, como no luto, ao carregar as histórias que testemunhamos.
Estamos em uma travessia em que muitos já naufragaram. Temos
todos o dever de testemunhar por aqueles que tiveram suas vidas in-
terrompidas violentamente. Precisamos ter força e continuar ativando
esperanças autênticas e nosso direito a viver em um país mais solidário,
mais tolerante, que respeite as diferenças e não destrua o que temos
de mais precioso, nosso direito a imaginar novos futuros.

Referências

DEOTTE, J-L. Catástrofe y Olvido: Las ruinas. Europa: El Museo, Editorial


Cuarto Próprio, Santiago do Chile, 1998.
KAFKA, F. Sonhos. São Paulo: Editora Iluminuras, 2008.
RICOUER, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007.

250
RESTOS DE HORROR

O LUTO E AS FOLHAGENS VERMELHAS:


O GRITO EM DISCURSO1

Lucília Maria Abrahão e Sousa2

“Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne morta.”


Bartolomeu Campos de Queirós in Vermelho amargo.

Figura 1
A localização

1 Projeto Individual de Pesquisa FAPESP (2019/ 13385-4)


2 Bolsa Produtividade CNPQ. FAPESP

251
RESTOS DE HORROR

Pensar teoricamente sobre silenciar, esquecer e lembrar na rela-


ção com o luto freudiano ([1915-1917], 2011) exige considerar a duração
incerta de um tempo. Tempo de palavrar para elaborar a perda e o su-
miço do ser amado, tempo de inscrever algo no lugar do vazio deixado
pela morte ou perda do objeto querido, tempo de deixar-se esburacar
para que essa ausência possa, aos poucos, dar lugar a alguma espécie
de ponto, de costura, de cerzido ou de sutura, tempo de consentir que o
amado seja arrancado do presente da vida para que, no lugar da falta ab-
soluta dele, outro objeto possa ser investido libidinosamente de desejo.
Ou seja, estamos diante do trabalho de esvaziar o sofrimento que ins-
titui o enquanto na duração da dor, processo que Freud (op. cit., p. 83)
definiu nos seguintes termos: “o luto leva o ego a renunciar ao objeto,
declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer vivo”.
Essa oferta dá notícias de um trabalho que passa pelo tempo de dizer
e de contornar o buraco aberto na esfera psíquica por
uma perda muito grande no volume de sua excitação, é possível
que ocorra um retraimento, por assim dizer, para a esfera psíquica (...)
esse retraimento age como uma ferida, de maneira análoga à dor (...)
ocorre um empobrecimento bastante parecido, que se deve) ao escoa-
mento da excitação, por assim dizer, por um buraco. (MASSON, 1986,
104-105)
Esse retraimento – buraco na esfera psíquica – produz o enlace
entre “morte e desilusão” (PERES, 2011, p. 111) que pode se manifestar
nos modos de anotar o trauma, cujo esvaziamento de sentidos da vida
dá lugar ao sadismo, autopunição e autopadecimento.

A morte esvazia o mundo, a desilusão e a tristeza aba-


tem-se sobre o eu (ego) e do mesmo modo o esvaziam.
Seguem juntos luto e melancolia, e o sentimento de va-
zio ganha espaço, exerce sua dominação, tornando o ho-
mem mais consciente da sua solidão. (idem, p. 111)

Mais adiante o autor afirma que “no luto, o mundo se torna vazio,
empobrecido, sem atrativos (...) nada da perda é subtraída da consciên-

252
RESTOS DE HORROR

cia, pois o enlutado sabe o que perdeu” (idem, p. 115). No campo da psi-
canálise, esse modo de compreender os efeitos de uma ruptura implica
considerar a escuta da especificidade de cada dor em seus modos de di-
zer sobre ela, o singular de cada luto. Fora desse âmbito, a arte oferece
singularmente manejos para dar uma volta e mais outra em torno da dor
na produção de arranjos para lidar com o buraco.
Segundo Freud (1915/2010), o luto é um trabalho que deve se ini-
ciar quando o aparelho psíquico se depara com uma perda. O luto, por-
tanto, é uma forma de sofrimento caracterizada por um rearranjo
de nossas relações com o mundo e com nós mesmos diante da subtração
de um objeto ao qual estivemos, em parte significativa de nossa existên-
cia, ligados. Ele diz respeito a um delicado processo de transformação
dos investimentos libidinais que davam um colorido particular a nos-
sas vidas. É uma travessia que implica aceitar o paradoxo de termos
que nos reinventar, mesmo que devamos também permanecer os mes-
mos. (VERZTMAN; ROMÃO-DIAS, 2020, p. 279)
Contornar o vazio, driblar o real, dar uma volta a mais em tor-
no da morte, atravessar o horror do inominável são modos de fazer tra-
balhar os efeitos do luto. Isso tem relação com o comovente trabalho
do artista plástico Fernando Piola (2013) que, ao longo dos últimos anos,
tem desenvolvido projetos de intervenção na cidade de São Paulo, crian-
do jardins em locais onde a violência a e a morte antes se fizeram corpo
e apagamento. Com foco preciso, o artista escolhe lugares que merecem
destaque pela sua história e, apoiado em uma pesquisa em dicionários,
jornais e obras de referência, produz um jardim para ressignificar aque-
le espaço específico, deslocando-o dos sentidos legitimados e naturali-
zados como únicos para o uso e o funcionamento do lugar, invertendo
a caracterização que se faz ali e produzindo um trabalho de cicatrização
da ferida expressa em outro tempo naquele local. Tomada pelo trabalho
de Piola em suas inúmeras intervenções urbanas, destaco aqui um em
especial, Operação Tutóia; a seleção de uma intervenção em particular,
qual seja, o plantio no jardim da Delegacia da Rua Tutóia e a documenta-
ção fotográfica do processo de crescimento das folhagens vermelhas é o
que melhor iconiza o trabalho do luto tal como Freud postulou.

253
RESTOS DE HORROR

O local foi um dos aparelhos da ditadura brasileira responsá-


vel pela prisão e interrogatório de mais de 3 mil pessoas, pela tortura
de inúmeras delas e pela execução de, no mínimo, 30 cidadãos já identi-
ficados pela Comissão da Verdade; fica situado nos limites de dois bair-
ros residenciais paulistanos, Vila Mariana e Paraíso, este último produz
efeitos de uma sinistra ironia. Nesse trabalho, irei percorrer a obra do ar-
tista articulando-a com o espaço de tortura e a noção do luto freudiano.
Considero que, no batimento do jardim de Piola, está em curso o proces-
so de elaboração e cicatrização da violência de Estado e ressoam efeitos
de um silenciar imposto a tantos, de um lembrar necessário e de um re-
sistir das famílias dos desaparecidos.
Nas atuais condições de produção históricas, em que a voz presi-
dencial defende publicamente a ditadura, fazer retornar o luto é mais
do que necessário. O jardim em questão não é apenas um espaço material
em que se plantam mudas de espécies diversas, situado em determina-
da rua e estabelecido dentro de um projeto arquitetônico e paisagístico.
Não. O jardim de Piola (e a leitura que faço dele) inscreve efeitos de rup-
tura dos sentidos atribuídos àquela delegacia situada no bairro conhe-
cido da capital, onde no dia de Finados flores eram colocadas na calçada
sem que muitos compreendessem o porquê. O artista produziu uma ce-
sura no rasgo violento que o Estado brasileiro produziu e apagou nes-
se espaço de tortura, estabelecendo ali uma espécie de poética do luto
(SOUSA, 2021, a sair) na trama social, recuperando pelo efeito do plan-
tio de folhagens vermelhas um lugar de resistência para fazer lembrar
dos desaparecidos políticos, de suas vidas e histórias. Produz, assim,
a confrontação de redes de memórias em curso, i. a da morte sem notí-
cias, juntamente com o desaparecimento dos corpos, e a da vida dos ci-
dadãos também silenciada sob a acusação de “perigosos” e “subversi-
vos”; ii. a das famílias na relação com o direito a notícias de seus entes
assassinados; iii. a do Estado a forçar o esquecimento de que, nos anos
70, ali funcionou um espaço de morte institucionalizada pelas forças ar-
madas; iiii. a dos movimentos organizados por intelectuais, estudiosos,
familiares e sociedade civil a reclamar o tombamento da delegacia para
transformá-lo em um memorial.

254
RESTOS DE HORROR

Junto à obra no jardim e à produção de fotografias do processo


de construí-lo, o artista desenvolve ainda um texto por meio de verbe-
tes numerados que se relacionam e que narrativizam a história daquele
espaço urbano e jardim. O projeto Operação Tutóia3 começou mediante
a oferta do artista como voluntário para cuidar do jardim externo ao pré-
dio, tarefa que foi desempenhada com uma lenta e gradual substituição
das folhagens verdes por outras, vermelhas. Vale destacar que, no local,
nomeado na época como Destacamento de Operações de Informações
do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), a Comissão
da Verdade identificou que foram executados os nomes abaixo relacio-
nados, dentre eles, o mais conhecido de Wladimir Herzog.

Figura 2: A nomeação dos que morreram ali4


Fonte: Site jornalístico

3 Disponível na página do artista no endereço http://fernandopiola.com/2007-12-Operacao-


Tutoia. Acesso em 10 de outubro de 2020.
4 Disponível no endereço https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-07-30/tutoia-921-
a-luta-para-transformar-o-doi-codi-em-um-memorial-de-resistencia.html?Foto8. Acesso
em dezembro de 2020.

255
RESTOS DE HORROR

Na figura acima, os números de presos políticos, de interrogatórios


(a maioria sob tortura) e os nomes dos mortos dão a dimensão do grau
de envolvimento do local como braço policial/militar na perseguição,
prisão e violação de direitos humanos, bem como no assassinato de ci-
dadãos e na tortura de tantos que por ali passaram. Escrever os nomes
próprios sob um fundo vermelho coloca em funcionamento uma iden-
tidade e um traço singular de cada um, nomeia-os como pertencendo
a uma família, atribui a eles um lugar de origem e de afeto do qual fo-
ram arrancados. Isso dá notícias de um luto muito particular já que abre
caminho para as famílias poderem dizer daquele que “foi arrancado
brutalmente” (KEHL, 2011, p.18-19) da ordem da vida e da convivência
com ela. E, assim, elaborarem “a perda de um ser amado” (idem), perda
esta que estabelece “também a perda o lugar que o sobrevivente ocupava
junto ao morto. Lugar de amado, de amigo, de filho, de irmão.” (idem).
Nas condições históricas da ditadura brasileira, a perda desse lugar
implica um complicador ainda maior em face das condições de produ-
ção dessas mortes, quais sejam, sob profunda violência física e psíquica,
sem direito à defesa jurídica, sem conhecimento da forma como a exe-
cução foi cometida, sem nenhuma responsabilização dos agentes públi-
cos e sem o encontro do corpo nomeado apenas como “preso político”
e, depois, “desaparecido político”. Tais formas de dizer não são quais-
quer, já que incluem por sinal uma esteira de sentidos legitimados como
evidentes para significar preso, por exemplo, como alguém responsável
por algum crime ou que foge à lei, e desaparecido como alguém quis
fugir ou sumir.
Ora, é preciso jogar areia na naturalização desses sentidos e ano-
tar que o uso da voz passiva nessas nomeações discursiviza que o Estado
tem responsabilidade criminal nesses casos. A materialidade da língua
em sua injunção com história flagra que, ao fato de alguém ter sido tortu-
rado e desaparecido, corresponde alguém que torturou, matou ou desa-
pareceu com aquele que estava em poder do Estado, mortífero por sinal.
Esse ponto sensível – o sumiço do vivo e do corpo morto–cria condições
para o estabelecimento de um mistério, um enigma e um vazio (a mais)
de explicação ou palavra em torno das condições do sofrimento e morte

256
RESTOS DE HORROR

do ente querido, além do impedimento do ritual fúnebre, da incompleta


ritualização da morte com o velório, o corpo, o enterro, a despedida e a
sepultura. Todos os rastros da morte são destruídos e silenciados, e esse
é dos crimes o mais cruel.
Soma-se a isso um dos desdobramentos possíveis para esse misté-
rio: a suposta possibilidade de o desaparecido ainda estar vivo e reapa-
recer a qualquer momento. A força desse silenciar, infringido em carne
viva e em corpo rendido, deixa o enlutado “ao pé do muro” (ALLOUCH,
2004, p. 72), um muro infinitamente alto que parece nunca ser trans-
posto e que está sempre a mostrar que o horizonte se constitui de um
muro (equivoquei essa palavra duas vezes, primeiro escrevi murro, de-
pois mudo. Incluo esses dois efeitos oportunos). Diante desse murro ins-
tituído na carne humana sem possibilidade de simbolização e do quanto
isso constituiu um estado mudo e proibido de ser dito, há necessidade
de lembrar e dizer. Sim, há presos, torturados, mortos e desaparecidos
políticos pelo Estado brasileiros que foram executados barbaramente,
proibidos de serem encontrados, impedidos de serem velados e desa-
parecidos como se nunca tivessem existido. No entanto, como vimos
na Figura 2, eles têm nome e sobrenome, pertencem a uma família, pos-
suem história e trajetória, vivem na lembrança de seus familiares que lu-
tam por informações e são motivo de saudade. Esses efeitos em curso
sustentaram a voz dos sobreviventes na posição de reivindicar que “a
sucursal do inferno” seja lembrada e tombada como lugar de memória
sensível aberto ao público.

Não havia porões da ditadura, isso é uma lenda que cria-


ram para dizer que era feito às escondidas. Ali era feito
abertamente, como terrorismo de estado, todo mun-
do ouvia e todo mundo tinha medo do Estado brasilei-
ro, do exército brasileiro que estava na mão deles. Eles
não tinham medo, eles podiam tudo, inclusive torturar

257
RESTOS DE HORROR

e matar as pessoas. E a população ouvia, a população to-


dinha”, conta Maurice Politi.5

Ivan e seu pai


Quando eles chegaram comigo e com meu pai, leva-
ram a gente para ser torturado. A gente foi espancado
no pátio. Na rua de trás, o muro era razoavelmente baixo,
a população (que passava pelo bairro Paraíso) foi para
lá e começou a gritar ‘parem com isso’. Eles (agentes
de repressão) deram uma rajada para cima. Diziam: ‘vo-
cês não têm nada a ver com isso’ (...) O espancamento
foi tão violento que minha parte da algema (que o ligava
ao seu pai) se rompeu.6

As formulações acima inscrevem a relação promiscua entre o den-


tro e fora da delegacia, posto que o horror transbordava para a rua pelos
efeitos sonoros dos gritos de dor. Os de dentro, na posição de vítima
de sessões de tortura física, deixavam seus ecos a implicar, a tomar e a
se espalhar pelo bairro, rua, calçada e transeuntes. Esse dentro e fora
DOI-Codi e rua, no caso colocados em extensão, faz abrir “a linha móvel”
(Pêcheux, [1982] 1990) da contradição e da divisão dos sentidos de que
a ditadura agia preferencialmente em porões escondidos e em locais fe-
chados e secretos, invertendo a lógica de um certo recato (entre muitas
aspas) dos torturadores. Os efeitos mortíferos de então se faziam ou-
vir publicamente, atravessavam as vias urbanas, podiam ser escutados,
mensurados e também recusados, “parem com isso”. Por isso, intelec-
tuais, familiares dos desaparecidos e sobreviventes da tortura se uni-
ram em um movimento de reclamação e reivindicação do tombamento
do local, instalando ali onde antes se ouviam os gritos de dor física outra
espécie de escuta, no depois, para se dizer do que foi silenciado.

5 Depoimento disponível no endereço https://acaopopular.net/jornal/tutoia-921-a-luta-


para-transformar-o-doi-codi-em-um-memorial-de-resistencia/ Acesso em setembro de
2020.
6 Depoimento de Ivan Seixas disponível no endereço https://acaopopular.net/jornal/tutoia-
921-a-luta-para-transformar-o-doi-codi-em-um-memorial-de-resistencia/ Acesso em
setembro de 2020.

258
RESTOS DE HORROR

Em “Memórias da Amnésia”, Beiguelman (2019, p. 80-81) aponta


os modos de fazer falar e calar os monumentos e espaços públicos, mar-
cando como a cidade apresenta “depósitos de esquecimento”. O tomba-
mento da Delegacia da Rua Tutóia instala uma discursividade que recusa
o apagamento

dos rastros da movimentação, o que acaba por suprimir


esse monumentos da história (...) O que fica desprovido
de discurso sobre si sai do campo do saber e desaparece
da história, tornando-se invisível. Nada, porém, é mais
invisível que os monumentos condenados ao ostracismo
do espaço público, em depósitos fechados. E essa invi-
sibilidade é, acima de tudo, política. Ela não se esgota
naquilo que deixa de estar ao alcance dos olhos: quando
essas obras são retiradas do espaço público, sua presen-
ça se oculta no tempo, prescrevendo seu esquecimento,
como se nunca houvessem existido.

Contra essa instância do “nunca houvesse existido” e do “vocês


não têm nada a ver com isso”, o espaço da Rua Tutóia se inscreve discur-
sivamente a fazer retornar, de novo e de outro modo, os efeitos dos gritos
de outrora para “que as pessoas possam ver que aquilo existiu e refletir
que aquilo não pode voltar a acontecer”, afirma Ivan Seixas.
Orlandi (2004) propõe que uma cidade é sempre construída na in-
junção do político, ou seja, é sempre atravessada por sentidos de dife-
rença e divisão já que ela não é a mesma para todos os que nela circulam.
O local da referida delegacia marca-se, assim, atravessado pelos efei-
tos legitimados para significar o aparato militar de então, quais sejam,
manutenção da ordem, da segurança nacional, do combate aos denomi-
nados subversivos e de uso da força para impedir que vozes dissonan-
tes pudessem circular. Os efeitos de liberdade, contestação do regime
militar, luta política, sindicalismo, movimento estudantil e democracia,
que poderiam estar em circulação não fosse a censura e a política do si-
lenciamento (ORLANDI, 1997), hoje ecoam e cavam estabelecimento
na cidade. Se a censura, nos anos 70, impediu que tais sentidos fossem

259
RESTOS DE HORROR

partilhados, circulassem e ganhassem lugar na cidade, além de torná-


-los ilegítimos e fora de cogitação, hoje eles retornam ligados à tor-
tura, repressão e violência estatal, deslizam, reinscrevem a Delegacia
da rua Tutóia como patrimônio da cidade, museificando o local de dor
e sofrimento.

Figura 3: Tombamento do prédio da delegacia7


Fonte: Site jornalístico

Tal urgência por dizer “o que existiu” tem relação com o traba-
lho do luto já que a elaboração é sempre um exercício de palavra após
a perda, marcado por não permitir que o esquecimento aniquile o objeto
amado. Dizer da/sobre a delegacia, retomar os fios discursivos a respei-
to do DOI-Codi, ouvir a voz dos sujeitos sobreviventes, escutar o que
foi silenciado nos documentos e instalações físicas do espaço, relembrar
o nome dos que ali estiveram e sumiram, documentar na oficialidade
do Estado o que foi criminoso na atuação dele e rememorar são algumas
formas de elaborar o luto, construindo um pacto coletivo de negação
da morte e de aposta no laço civilizatório. Está aí a

Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimen-


to e a denegação é também lutar contra a repetição
do horror (que infelizmente se reproduz constantemen-
te). Tarefa igualmente ética e, em sentido amplo, espe-

7 Disponível em https://acaopopular.net/jornal/tutoia-921-a-luta-para-transformar-o-doi-
codi-em-um-memorial-de-resistencia/ Acesso em 20 de setembro de 2020.

260
RESTOS DE HORROR

cificamente psíquica: as palavras (...) ajudam a enterrar


os mortos do passado e a cavar o túmulos para aqueles
que foram foram privados. Trabalho de luto que nos deve
ajuda, a nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para
melhor viver hoje. (GAGNEBIN, 2009, p. 47)

Enlutar, guardar o luto e manter a luta: no feixe desses signifi-


cantes são convocados os efeitos de não esquecer e não deixar apagar
os rastros e manter o exercício da rememoração que, conforme a auto-
ra, “(...) salva o passado não somente porque o conserva, mas porque
lhe assinala um lugar preciso de sepultura no chão do presente, possibi-
litando o luto e a continuação da vida.” (GAGNEBIN, 2014, p. 248). A ela-
boração do luto e a continuação da vida ganham espessura no trabalho
de Fernando Piola já que silenciosamente ele deu início a um minucioso
trabalho de arrancar o que ali existia para plantar espécies diferentes,
inscrevendo na paisagem apenas folhagens vermelhas, de tons fechados
e puxados para o vinho.
Na nota de seu catálogo denominado 10 exercícios de aproximação/
representação de sp8, ele retoma um dicionário de simbologia para sus-
tentar a escolha da referida cor. No verbete vermelho, ele coloca que a
cor é “Símbolo de sangue, luta, morte. Vermelho é a cor da revolução
e do comunismo, em que o significado de morte e vida se interpene-
tram.”. Tomar o vermelho como “significado de morte e vida” dá notícias
da cor dos corpos torturados desde o vermelho vivo do esfolamento, cor-
te e perfuração até as variações do vermelho escuro, arroxeado e azulado
dos hematomas como resposta à violência sofrida que, nos dias seguin-
tes, passam a inscrever a dor posterior ao momento da tortura, dor da
humilhação, do desamparo e da revolta. O verbete “vermelho” atualiza
os sentidos postos em funcionamento pelos dois sujeitos sobreviventes
da tortura, algo da dor e do suplício escorria de dentro para fora do pré-

8 Todos os verbetes e as fotografias de Piola foram retiradas do catálogo 10 exercícios de


aproximação/representação de sp, que se encontra disponível na página do artista no
endereço http://fernandopiola.com/2007-12-Operacao-Tutoia. Acesso em 20 de outubro de
2020.

261
RESTOS DE HORROR

dio, ecoando nas ruas e, no caso, no jardim como uma escultura vegetal
de sangue derramado.
No verbete 10, o artista apresenta o nome científico das espécies
escolhidas para sua obra, são folhagens com cores que passeiam pela pa-
lheta do vermelho, produzindo uma tagarelice de tons e sombras confor-
me a incidência da luz. Ao marcar as imagens com nomeações em latim,
o artista inscreve em seu trabalho o efeito cientifico de uma pesquisa,
posto que foi empreendido um esforço por localizar as plantas, seus no-
mes e as famílias vegetais a que pertenciam, ou seja, de estudo. Não se
trata de uma escolha qualquer, mas de um cálculo por inserir ali uma
folhagem pensada, cuidada e planejada para ocupar e significar aquele
espaço público.

Figura 4: As plantas escolhidas


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

Envolver a referida delegacia com essas folhagens, não ape-


nas insere lenta e silenciosamente uma substituição vegetal no jar-

262
RESTOS DE HORROR

dim, mas passa a colocar em funcionamento uma poética do lembrar


que reinstala o prédio em sua inscrição histórica e política, fazendo fa-
lar os efeitos de DOI-Codi e delegacia (agora memorial/monumento).
Os sentidos da arquitetura, do paisagismo e da função administrativa
do espaço institucional no presente passam a ser remexidos por efei-
tos de um vermelho que se impõe a gritar o horror do ontem, a apon-
tar o furo na história, a denunciar o inominável da violência de Estado
que infelizmente não se restringe a outrora, e a promover o real da his-
tória como ensinam Pêcheux e Gadet ([1991], 2004). O artista força que a
terra se rasgue em brotos vermelhos aos poucos de tal modo que isso
passa a compor outra moldura para o prédio, sem despertar qualquer
conotação ameaçadora por meses. Enovelam-se o sangue de antes e o
sangrar vegetal da atualidade em uma floração de lembranças que de-
nunciam o que não pode nem deve ser esquecido (retomando a máxima
de Pêcheux), o que não poderia e nem deveria ter sido silenciado, tortu-
rado, morto e desparecido.

Figura 5: Piola sobre a sua obra


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

Uma “intervenção paisagística” com espécies de “folhagens verme-


lhas” marca o processo manual de o artista trabalhar colocando o corpo
dentro do jardim para arrancar o que está posto, abrir a terra, desenter-

263
RESTOS DE HORROR

rar as raízes presas ali, retirar o verde (“o monocromatismo do paisagis-


mo implantado” que remota e coloca em circulação a cor da bandeira
e do identitário nacionais) e inserir o vermelho que lentamente passa
a crescer e se expandir. A “Operação” se coloca no intervalo do tempo
de deixar cair o que estava estabilizado como uma cor dominante para
aquela fachada e, aos poucos, acompanhar o crescimento do vermelho
e a transformação do entorno do prédio. Durante quase dois anos, o ar-
tista planta mudas pequeninas vermelhas no lugar do que foi arrancado
em verde. Pergunto, que outra metáfora visual mais precisa e delicada
poderia ser mobilizada para representar o luto? Arrancado o que lá esta-
va, é preciso seguir cultivando a terra e investir libido em novas/ outras
folhagens.
Segundo Freud ([1915-1917], 2011), o luto é um trabalho empre-
endido por alguém que perde, perde para sempre e sente dor, perde
sem possibilidade de retorno e precisa de um tempo de fala para elabo-
rar o que se foi com o objeto perdido, não apenas a pessoa em sentido
estrito, mas sobretudo o presente ao lado do objeto amado e o tempo fu-
turo de convivência que desaparece. Essa condição irremediável do sem
volta, sem remédio e sem retorno fica ainda mais insuportável quando
o objeto amado é desaparecido como nas ditaduras; o real parece arrega-
nhar mais seus dentes. Estava em casa, saiu e nunca mais voltou: assim
muitas formulações expressam o último momento das famílias dos de-
saparecidos com seus entes queridos. À impossível volta soma-se outro
assombro, qual seja, o monstro do não saber o que houve, do sem notí-
cias, do impossível identificar o passado e do desconhecimento de onde
o corpo foi parar. Nesses termos, o luto pode ficar interminável. Sobre
isso, Fustinoni e Caniato (2019, p. 3) afirmam:

O sofrimento causado às famílias viola o tempo. Unidos,


presente, passado e futuro se fizeram e ainda se fazem
perceber, em casos não resolvidos, numa angústia in-
transponível. A dor que se manifestara imediatamente
no referido período, motivada pelo ocultamento do fa-
miliar, perdura pelas condições de sua ocultação, pela
negação e desinformação, por não se permitir qualquer

264
RESTOS DE HORROR

certeza e, por consequência, qualquer luto, qualquer tré-


gua. O sofrimento, pois, não se deu apenas com o passar
do tempo, tempo sem respostas, o que inevitavelmente
indicou que o familiar amado não voltaria; deu-se, tam-
bém, com a falta de informação e de conhecimento acer-
ca do destino do desaparecido e, para além dele, com o
sofrimento duradouro, em meio a uma penumbra insu-
perável de sentimentos inomináveis, intraduzíveis.

O vazio dessa ausência estendida ao longo dos dias é mais tortu-


rante ainda quando o corpo do amado desaparece e não se tem a pos-
sibilidade de uma despedida simbolizada, falada e dita como tal. O que
foi arrancado lá está como buraco, nele outros plantios de outros objetos
podem ser colocados aos poucos em um movimento manual de um ar-
tesanato subjetivo delicado; do mesmo modo, o artista coloca as novas
plantas, construindo um modo de elaboração – o labor da ação – do luto
no laçoo social e na trama urbana. Abre no jardim um modo de forçar
a lembrança dos mortos arrancados da vida pela ditadura, desapareci-
dos até hoje de suas famílias, tornados sombras e espectros sem cor-
po, sem velório, sem enterro, sem túmulo. Mas ainda, a cada nova fo-
lha que se abre corresponde um vestígio de dor, um rastro do horror,
um lembrar sobre aquilo que o Estado prefere manter em silêncio, tornar
apagado e sufocar duplamente. Duplamente. Em primeiro lugar por ter
matado e desaparecido com cidadãos, em segundo lugar porque ainda
negar a tortura, não abrir os seus arquivos nem punir os responsáveis.
Talvez essa duplicidade do mortífero seja o mais cruel e abominável
na fala presidencial desde antes das eleições de 2018.
Na imagem da delegacia, antes do início da intervenção urbana,
o jardim funciona a discursivizar o verde como cor que retoma sentidos
estabilizados sobre o identitário nacional, em particular, a flora, a rique-
za das matas e a exuberância natural do país, em seus desdobramentos
tanto na bandeira quanto no hino nacionais. Além disso, vale destacar
que essa é a cor do uniforme do exército. Os vários tons de verde e os
sentidos do político nesse contexto estavam postos a recobrir o prédio

265
RESTOS DE HORROR

e a produzir um jardim tão comumente repetido em tantos prédios pú-


blicos brasileiros.

Figura 6: A delegacia antes da intervenção


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

A sequência de imagens abaixo, dispostas no Catálogo Operação


Tutóia, indica o procedimento de substituição lenta do verde que,
aos poucos, passa a ser a cor menor, já que o vermelho se coloca de forma
dominante. O que se observa é o corpo do artista no trato com a terra,
o que novamente aponta o trabalho do luto. É preciso colocar o corpo
a chorar, a dizer o nome de novo, a contar a mesma história mil vezes,
a relembrar o vivido e o que ficou por viver, a relembrar o significado
dos objetos do ser amado, a tocar as lembranças, a tropeçar nelas, a tro-
car datas, a confundir o vivido com o que seria não fosse a morte. Fazer
tal movimento simbólico inúmeras e diferentes vezes é o que o luto re-
clama, colocando palavras para amortecer o peso do real; fazer e repetir
e fazer novamente até que disso algo possa ser produzido. Entre a pri-
meira fotografia e as seguintes tem um tempo, aquele a que fiz referên-
cia do início do texto.

266
RESTOS DE HORROR

Figura 7: O trabalho do artista


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

Figura 8: Ainda o trabalho do artista


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

267
RESTOS DE HORROR

Figura 9: A delegacia em dezembro de 2008


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

Figura 10: O vermelho inscrito


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

268
RESTOS DE HORROR

A inserção do vermelho toma o entorno do prédio, inscrevendo


outro modo de significar o espaço público, quiçá recuperando os efei-
tos silenciados em outros regimes políticos e estabelecendo um grito
de resistência para incluir ali o que nunca pôde ser falado nem colocado
como outra cor. O vermelho explode em efeitos que, a partir da trama
histórica dos anos 80, passou a ser o clamor por democracia, direitos e li-
berdade, e hoje segue incluindo a pauta do dever de memória, da aber-
tura dos arquivos da ditadura militar e da responsabilização dos culpa-
dos. As plantas crescem lenta e silenciosamente, diferente das sessões
de tortura que podiam ser ouvidas nas ruas; o fato é que crescem até que
ganham o estatuto de obra, escultura, instalação urbana. Nesse ponto
são notadas. O projeto é interrompido e o jardim modificado conforme
figura abaixo.

Figura 11: A delegacia em outubro de 2011 ou O pouco vermelho que restou


Fonte: Catálogo disponível na página do artista

O vermelho foi cortado do jardim tão logo uma autoridade per-


cebeu algo de errado com tantas plantas vermelhas. Restam as foto-
grafias que o artista produziu ao longo da intervenção; elas empreen-
dem um modo de discursivizar o espaço a partir do que ocorreu dentro
das sessões de tortura, violência física, assassinato e desaparecimento

269
RESTOS DE HORROR

de sujeitos considerados presos políticos nos anos 70, atualizando tais


efeitos dentro de um jardim que vivifica o vermelho. São gritos orgâ-
nicos, silenciados e ouvidos, que se espalham no chão da cidade como
as plantas se estendem à procura do sol, dando notas de vermelhos es-
culpidos sob medida para aquele local. Por fim, as fotografias dão pis-
tas de que também as cores podem vir a ser outras, deslocadas de seus
usos costumeiros, fazendo irromper, pelo efeito metafórico, um plantio
que considere o vermelho da rebeldia e da resistência diante do auto-
ritarismo e das ditaduras, o vermelho ardente dos desejos de liberdade
e vida.

Referências

ALLOUCH, J. Erótica do luto – no tempo da morte seca. Rio de Janeiro,


Companhia de Freud, 2004.
BEIGUELMAN, G. Memória da amnésia – políticas do esquecimento. São
Paulo, Edições SESC, 2019.
FREUD, S. [1915-1917]. Luto e melancolia. São Paulo, Cosac Naify, 2011.
FUSTINONI, C. F.; CANIATO, A. O luto dos familiares de desaparecidos
na Ditadura Militar e os movimentos de testemunho. Revista
Psicologia USP, vol. 30, 2019. https://www.scielo.br/j/pusp/a/
cS4JHgWVpWcpTVSyq3rNvFk/?format=pdf&lang=pt
GADET, F.; PÊCHEUX, M; [1991]. A língua inatingível – o discurso na história
da Linguística. Campinas: Pontes Editores, 2004.
GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo, Editora 34. 2009.
______. Limiar, aura e rememoração – Ensaios sobre Walter Benjamim. São
Paulo, Editora 34. 2014.
KEHL, M. R. Melancolia e criação. In: FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo,
Cosac Naify, 2011.
MASSON, J. M. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess–1887 – 1904. Rio de Janeiro, Imago, 1986.
ORLANDI, E. A cidade dos sentidos. Campinas, Pontes, 2004.

270
RESTOS DE HORROR

______.  As formas do silêncio – no movimento dos sentidos.  Unicamp,


Campinas, 1997.
PERES, U. T. Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, S. Luto e melancolia.
São Paulo, Cosac Naify, 2011.
PÊCHEUX, M. [1982]. Delimitações, inversões, deslocamentos. Tradução de José
Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas/SP, n. 19, p. 7-24,
jul./dez. 1990.
PIOLA, F. (org).  10 exercícios de aproximação/representação de SP.
Pinacoteca do Estado de São Paulo. Memorial da Resistência de São Paulo. São
Paulo, 2013.
VERZTMAN, J.; ROMÃO-DIAS, D. Catástrofe, luto e esperança: o trabalho
psicanalítico na pandemia de COVID-19. Revista Latinoamericana
de Psicopatologia Fundamental, n. 23. 2020. https://doi.
org/10.1590/1415-4714.2020v23n2p269.7

271
PARTE 4
O MUSEU DO ISOLAMENTO: ALGUMAS
REFLEXÕES SOBRE O TEMPO PRESENTE

Verli Petri
Maria Cleci Venturini1

[...] é no esquecimento, com o desejo, que se movimen-


tam os sentidos do Museu, e não no já-dito, lembrado
e arquivado, já significado (ORLANDI, 2014, p. 7).

Palavras iniciais ou um pouco sobre o Museu do Isolamento

O questionamento inicial que nos move é o seguinte: Quando


o Museu é uma necessidade? Em nosso entendimento, uma respos-
ta possível para tal pergunta seria: quando ele vai acontecendo e se
constituindo a partir da necessidade/desejo de sujeitos continuarem
se expressando em plena pandemia do novo coronavírus (causada pela

1 Professora associada DELET/PPGL/UNICENTRO. Bolsista de Produtividade em Pesquisa da


Fundação Araucária – PR.

275
RESTOS DE HORROR

proliferação da covid-192), tempo de distanciamento social, de solidão.


É dessa realidade que surge, no Brasil, o “Museu do Isolamento3”, con-
forme apresentamos na figura 1.

Figura 1: Página inicial do Museu do Isolamento


Fonte: Print da tela do computador, realizado pelas autoras

Essa primeira imagem nos coloca diante da proposta do Museu


do Isolamento, convidando-nos a visitar cada uma das abas e saber
um pouco mais sobre ele. Respondendo à questão: o que é o Museu
do Isolamento? A aba “Sobre” nos dá a saber: “O Museu do Isolamento
é o primeiro museu online do Brasil que se propõe a divulgar o trabalho
de artistas que estão produzindo em seus diferentes isolamentos.”4 A de-
finição está posta e nos convoca a refletir sobre a polissemia que a pala-
vra isolamento engendra em tempos pandêmicos, e a proposta do Museu
é também essa: tratar dos “diferentes isolamentos”. Estamos todos vi-

2 “A covid-19 (termo em inglês que significa Corona Virus Disease 2019) é uma doença
infecciosa respiratória causada pelo coronavírus SARS-CoV-2. O quadro clínico pode
variar de infecções assintomáticas a infecções respiratórias graves”, conforme explicita o
Observatório de informações em saúde da UFSM. Disponível em: https://www.ufsm.br/
coronavirus/observatorio. Acesso em: 12 dez. 2020.
3 Disponível em: https://museudoisolamento.com. Acesso em: 13 jun. 2021.
4 Disponível em: https://museudoisolamento.com/o-que-somos/. Acesso em: 13 jun. 2021.

276
RESTOS DE HORROR

vendo a pandemia, mas cada um a seu modo e sob dadas condições ma-
teriais de existência, estabelecendo relações singulares com a ideologia
dominante que nos interpela sem cessar. E complementando a defini-
ção, nos deparamos com o convite à partilha: “Para aqueles que pro-
duzem arte, o nosso Museu se propõe ajudá-los a encontrar um espaço
de visibilidade para que consigam expor seus trabalhos de uma forma
mais democrática. Dessa forma, os artistas podem alcançar novos apre-
ciadores, seguidores até oportunidades de trabalhos.”5
No convite para a escrita deste texto, sentimo-nos especialmen-
te interpeladas a “estabelecer uma rede simbólica para afirmar a vida
que desejamos em movimentos de reparação, em rastros de arte e soli-
dariedade, em testemunhos de resistência e em transmissão; mais ain-
da, é uma forma de fazer trabalhar, na trama singular de cada sujeito,
a invenção de um saber fazer com um real que é implacável”6. Tomamos
como um desafio, uma vez que estamos vivendo o tempo presente (a
pandemia) e tentando compreender o que se passa sem o necessário dis-
tanciamento temporal que nos possibilita avaliar as experiências vividas
e partilhadas. Nossa tomada de posição é a daquele sujeito que se de-
para com o real, e, diante do primeiro impacto, se empenha em simbo-
lizar. Trompamos com o real! E refletir sobre museus é propor uma via
possível. Por tudo isso, justifica-se a escolha do Museu do Isolamento,
acontecendo no tempo presente, visto que a arte tem um papel funda-
mental para que o sujeito continue se reinventando diante de condições
de produção tão adversas, como é o caso da pandemia. Talvez o Museu
do Isolamento tenha nos escolhido, nos interpelado pela sensibilidade
que engendra e nos convocado a torná-lo visível.
Compreendemos, em consonância com Orlandi (2020, p. 512),
que o museu deve ser tomado como prática social da maior importância,
já que nos encanta “observar os museus em seu papel reflexivo, crítico,
questionador”. Estamos diante de uma proposta diferenciada no sen-
tido de abrir espaço para a manifestação do sujeito no tempo presen-

5 Disponível em: https://museudoisolamento.com/o-que-somos/. Acesso em: 13 jun. 2021.


6 Proposta de ementa sensível do presente livro, enviada aos autores convidados pelos
organizadores.

277
RESTOS DE HORROR

te, num espaço possível: o da internet. O museu tem um site próprio,


mas acontece mesmo é nas redes sociais... em nosso entendimento, cons-
trói-se aqui uma noção de museu do tempo presente: nem o passado (de
tantos museus históricos), nem o futuro (como o Museu do Amanhã7),
simplesmente o agora, o que foge, o que escapa, muito embora seja cap-
turado pelo Museu e constitutivo dos artistas, das obras e do público
em tempos de pandemia.
Para nós, em tempos de pandemia, a noção de tempo também
se altera, o presente ganha outra dimensão, talvez seja o único tem-
po possível, já que o dito “normal”, próprio ao passado, não se realiza
da mesma maneira; bem como o futuro não é um tempo possível para
o refúgio do sujeito, considerando que ele também pode ser negado
àquele que agora está tão suscetível ao adoecimento e à morte. O tempo
engendra discursos que se constituem por narratividades, visto que “o
processo discursivo que se engendra a partir do interdiscurso, na verti-
calidade dos saberes” depende “da posição em que o enunciador se co-
loca” (VENTURINI, 2009, p. 80). E a autora reitera que a narratividade
encadeia acontecimentos que se fundam em “outros discursos, mate-
rializando-os, instaurando a repetibilidade, constitutiva de discursos”.
Krümmel (2021, p. 235), estudioso dos museus on-line sobre
o Holocausto, nos indica a noção de “tempos desjuntados”, ao estudar
o funcionamento dos testemunhos e a construção identitária das tes-
temunhas do Holocausto, para explicitar que seriam “tempos desjun-
tados” aqueles que “vão se acumulando, construindo uma narrativida-
de nem sempre aceita, posto que colocam em cena corpos e palavras
que testemunham, que perturbam a ordem, que propõem outras ver-
sões”. De fato, não vamos chegar à complexificação da noção de tem-
po, nesta reflexão, mas, certamente, nos vemos diante da necessidade
de problematizá-la em suas relações com o Museu do Isolamento.
Enfim, há uma série de elementos que podemos discutir, inclusi-
ve pensar no Museu do Isolamento como um modo de discursivização
da pandemia, de produção de uma prática social de tipo novo, de cons-

7 Disponível em: https://museudoamanha.org.br. Acesso em: 13 jun. 2021.

278
RESTOS DE HORROR

trução de uma memória do tempo presente. É preciso desconstruir


a ideia do que significa dizer isolamento quando isolamento é proposto
no plural: isolamentos. Como citamos no início deste texto, a definição
de Museu do Isolamento traz à baila “os diferentes isolamentos”. As obras
circulam, dando visibilidade aos artistas e aos seus trabalhos. A circu-
lação se dá no próprio site e nas redes sociais digitais. No Facebook8,
por exemplo, são mais de 2.500 seguidores, são centenas de curtidas
e de compartilhamentos. O Museu também é divulgado por jornais como
a Gazeta9, que faz uma matéria sobre produções artísticas e sobre proje-
tos que envolvem encontros virtuais e discutem arte e questões sociais,
tais como a luta contra o câncer, práticas racistas, cotas de gênero para
palestrantes e expositores em eventos em instituições como a Ordem
dos Advogados do Brasil. A matéria mostra que o Museu do Isolamento
é um espaço museológico diferenciado, que expõe obras e trabalhos
de artistas durante a pandemia, “produz conteúdos e dá dicas culturais
e artísticas”, destacando a necessidade dos que trabalham com a arte
e precisam divulgar as suas produções.
Nossa proposta, portanto, é colocar em suspenso esse Museu,
que por agora não se vincula à História, a grande, remetendo ao que
nos ensina Henry (2010), mas não prescinde dela e poderá vir a ser um
lugar para se ver/ler/interpretar a história desse tempo, no devir que ain-
da não temos acesso. Importa destacar o deslocamento a que esse Museu
se propõe, já que ele escapa ao que estamos habituados a ver: museus
institucionalizados. O Museu do Isolamento não é um museu institu-
cional. Ele foi criado por Luiza Adas, que trabalha com relações públicas
e é “entusiasta de arte e cultura”10. A proposta de Luiza Adas foi falar
sobre arte de uma forma mais democrática e acessível, e as chamadas
para visitar o “Sobre” destacam a exposição de artes visuais inspiradas/

8 Disponível em: https://www.facebook.com/museudoisolamento/about/?ref=page_internal.


Acesso em: 20 mar. 2021.
9 Disponível em: https://www.agazeta.com.br/colunas/renata-rasseli/museu-do-
isolamento-divulga-arte-produzida-durante-a-pandemia-0720. Acesso em: 13 jun. 2021.
10 Disponível em: https://revistaglamour.globo.com/Lifestyle/Cultura/noticia/2021/05/
museu-do-isolamento-quero-falar-sobre-arte-de-uma-forma-mais-democratica-e-
acessivel-diz-luiza-adas.html. Acesso em: 04 jul. 2021.

279
RESTOS DE HORROR

vivenciadas na pandemia. É sobre isso que queremos refletir um pouco


neste texto.

Sobre o Museu do Isolamento no espaço digital e sobre


temporalidades

A fim de balizarmos um pouco nossas reflexões sobre o museu na e


pela internet, trazemos a reconhecida museóloga brasileira Maria Lucia
de Niemeyer Matheus Loureiro, considerando que ela nos apresenta
as especificidades de museus no espaço digital, conforme segue:

Webmuseus de arte são sítios construídos e mantidos


exclusivamente na Web, destinados a reunir virtual-
mente e a expor obras-de-arte geradas originalmente
por processos de síntese, ou, por meio de cópias digitais,
obras-de-arte que existem (ou existiram) no espaço fí-
sico. As características da Internet lhes conferem confi-
guração hipertextual, propiciando a conectividade e am-
pliando as possibilidades de interação com a obra, cuja(s)
abertura(s) é (são) evidenciada(s) e/ou potencializada(s),
além de condições peculiares de acesso, eliminando
empecilhos espaciais e temporais e impondo, por outro
lado, restrições de ordem cognitiva e tecnológica, assim
como barreiras linguísticas. Diferem dos museus físicos,
ainda, por seu caráter provisório e não necessariamen-
te institucional, bem como pela imaterialidade inerente
à imagem digital. Suas finalidades abrangem e, eventu-
almente, ultrapassam a educação e o lazer, podendo in-
cluir propostas de participação em processos criativos.
Compartilham com os museus de arte construídos no es-
paço físico características e funções que os equiparam
como aparatos informacionais: destinam-se a produzir,
processar e transferir informações e mantêm interface
com a sociedade de modo a propiciar visibilidade/ acesso
a suas coleções e informações (LOUREIRO, 2004, p. 104).

280
RESTOS DE HORROR

Ainda segundo Loureiro (2004), trata-se de um fenômeno


novo, próprio ao início do século XXI, o que dificulta sua nomeação,
uma vez que “as palavras mostram-se insuficientes ou impróprias”. Para
a pesquisadora:

Dentre as denominações mais frequentes, destaca-


mos museu digital, cujo qualificativo ressalta simul-
taneamente sua linguagem e sua natureza imaterial,
mas não dá conta da especificidade da rede; netmu-
seu, cibermuseu ou webmuseu, cujos prefixos remetem
às especificidades da Internet, enfatizando o espaço
desterritorializado das redes, aplicando-se, entretan-
to, indistintamente, aos museus construídos na Web
e aos sítios mantidos por museus físicos; e museu vir-
tual, denominação que parece tender a se consolidar
(LOUREIRO, 2004, p. 104-105).

Já em termos de discurso, compreendemos o museu digital como


a reunião de materialidades distintas que significam de diferentes mo-
dos as relações entre sujeitos e sentidos, vamos tentar especificar isso
no tocante ao Museu do Isolamento pensado para o espaço digital.
Não podemos perder de vista, entretanto, que há um funcionamen-
to do interdiscurso sustentando o que é um Museu, já que pela noção
de pré-construído (PÊCHEUX, [1975] 1997): todos sabem que isso é um
museu, mesmo não sendo físico. Os saberes que o sustentam vêm de
um outro lugar e ressoam como se já estivessem sempre significando
para que os sujeitos possam atribuir sentidos. Nessa direção, Orlandi
(1999) destaca que as palavras, constitutivas do discurso, não são nos-
sas, elas significaram antes em outros lugares e não é diferente com os
espaços museológicos: eles significam por um antes e também por um
agora, tendo em vista ainda um devir. Nesse movimento, há sempre
um componente do repetível, determinando o que é próprio do museu,
bem como há sempre um espaço para a polissemia, o novo que funciona,
independentemente de o museu ser físico ou digital.

281
RESTOS DE HORROR

A diferença se instaura pela narratividade e, apesar do texto de João


Cabral de Mello Neto11, entendemos que não há um “Museu de tudo”,
cada museu se apresenta e, ao apresentar-se, determina o seu trajeto
de leitura, o público que pretende atingir, sinalizando para suas priori-
dades. Desse modo, os museus se contam e dizem de sua organização,
de seus objetivos, significando-se como sendo históricos, institucionais
ou de tipo novo – como o Museu do Isolamento –, por meio de narrati-
vidades museológicas12. A coerência do espaço museológico instaura-se,
portanto, por essa organização que pode ser vista como um planejamen-
to, um modo de antecipação, uma prática, nem sempre bem-sucedida
de controle dos sentidos. Vale destacar que esse espaço como materia-
lidade está disponível para ser interpretado por sujeitos e encaminha,
como discursividade que é, para a polissemia, para a deriva. Com isso,
escapam às pré-determinações, aos planejamentos e às possibilidades
de fechamento de sentidos, instaurando efeitos não-pensados e que
desconstroem a organização pré-determinada.
O planejamento, no nível da antecipação do sujeito, em suas rela-
ções imaginárias com o outro, funciona no âmbito da ilusão necessária
do sujeito curador de uma exposição, nos remetendo à impossibilidade
discursiva de univocidade e à falha constitutiva de todo discurso, como
aponta Pêcheux ([1975] 1997). Tal realidade discursiva nos aproxima
do que nos dizem Romão, Ferreira e Della Silva (2011, p. 12), consideran-
do que “ao arquivo constituído correspondem muitos outros silencia-
dos, destruídos ou apagados” e nos permite significar o espaço do Museu
do Isolamento como aquele que é pleno em arquivos, mas também
se constitui pelos esburacamentos, silenciamentos e apagamentos que o
tempo presente produz. Nesse espaço da internet, “arquivos antes con-
siderados desimportantes passam a circular na malha digital dando

11 “Museu de Tudo” ([1975] 2009), de João Cabral de Melo Neto, é uma obra que apresenta
temáticas variadas, constituindo um efeito de saturação por abordar espaços, homenagear
artistas, pensadores e, também, adentrar em discussões teóricas, tais como a função do
tempo e da poesia, entre outras, constituindo efeitos de acúmulo e de um livro que deposita,
encaminhando para uma definição de museu.
12 Mais detalhes sobre narratividades museológicas podem ser conferidos no trabalho
desenvolvido por Maria Cleci Venturini, no Projeto de Produtividade em Pesquisa, apoiado
pela Fundação Araucária – PR (2019-2021).

282
RESTOS DE HORROR

contorno à voz de sujeitos impedidos de estar na ordem institucional


de arquivos, abrindo campo para discursos antes com circulação restri-
ta” (ROMÃO; FERREIRA; DELA SILVA, 2011, p. 12).
Dessa perspectiva, podemos dizer que há um terreno fértil para
que se instale um Museu do Isolamento e que ele faça circular, no espa-
ço digital, produções diferenciadas e tantas posições-sujeito que antes
não emergiam nas discursividades presenciais. A diversidade de temas
e do que circula como materialidade artística, nesse museu, permi-
te compreendê-lo como um espaço diferenciado, não só por ser digi-
tal, mas por sua proposta voltada/preocupada com os sujeitos artistas
e com a invisibilidade de suas obras, durante a pandemia. Trata-se,
então, não só de um, mas de uma prática social decorrente da preocu-
pação com a sobrevivência da arte e dos sujeitos que vivem dos traba-
lhos artísticos. Tal funcionamento está em consonância com o que nos
diz Rancière ([2000] 2009, p. 11) acerca da “fábrica da sensível”, em que
a arte e a política se constituem junto com a experiência, ressoando re-
flexões das grandes teorias e das experiências de vanguarda que fundem
a arte e a vida, transformando os modos de sentir, induzindo “a novas
formas da subjetividade política”.
Ao considerarmos as discussões acerca da “partilha do sensí-
vel”, propostas por Rancière ([2000] 2009), bem como o que podemos
entender como museu digital, torna-se possível observar o funciona-
mento contraditório do Museu do Isolamento. As contradições emer-
gem, inicialmente, da nomeação de tal museu, tendo em vista, de acordo
com Pêcheux ([1983] 2002, p. 43), que há “um real constitutivamente
estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite não se
aprende, não se ensina e que, no entanto, existe produzindo efeitos”.
Esse real é que possibilita a entrada em jogo de diferentes domínios,
encaminhando para distintas direções de sentido de palavras como iso-
lamento e presença. O que vemos como contrários dentro de uma mes-
ma rede ancora-se no objetivo do museu, que é difundir o isolamento
– que está no seu nome – e dar visibilidade, tornar presença, obras e ar-
tistas impedidos de circular e que produziram obras não só na pande-
mia, mas inspirados nela.

283
RESTOS DE HORROR

Ao mesmo tempo que estar em isolamento é uma demanda social,


a visibilidade de obras de artes e de artistas é uma necessidade inerente
ao sujeito, o que ultrapassa o que diz respeito ao sensível. Essa indis-
pensabilidade ressoa na proposta de Luiza Adas, fundadora do Museu,
quando coloca juntas, em um mesmo eixo, a arte e a acessibilidade, ins-
taurando a contradição constituída pelo ressoar do sensível e do práti-
co. Nesse sentido, o sensível/arte e a sobrevivência funcionam juntas,
instaurando relações e rompimentos, sinalizando que sensível não diz
respeito somente ao belo/ao estético, mas à vida e a sua faceta econômi-
ca e social. Vale destacar que o Museu do Isolamento pode ser compre-
endido a partir da proposta de Rancière ([2000] 2009, p. 16), que discute
as questões da arte, sobretudo quando assevera que:

A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte


do comum em função daquilo que faz, do tempo e do
espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta
ou aquela “ocupação” [...] define competências ou in-
competências para o comum. Define o fato de ser ou não
ser visível num espaço comum, dotado de uma palavra
comum, etc. (destaques do autor).

O Museu do Isolamento, dessa perspectiva, é pleno em contra-


dições, é isolamento e é reunião, é distanciamento e é aglomeração,
constituindo-se como um espaço que não é físico, mas contribui para
que mesmo aqueles interditados de “tomar parte”, sejam parte e parti-
lhem. A própria interdição que funciona no Museu do Isolamento é con-
traditória, visto que o sujeito pode estar interditado em sua circulação
e também interditado por não ser parte, não compartilhar.
Cristiane Dias (2020, p. 616), ao tratar do Louvre como um Museu
que é físico e também digital, nos ensina que “com a internet, foi possível
criar uma experiência museológica online que [...] é mais do que um es-
pelhamento, trata-se, de uma dobra, de um outro do museu.” Então,
se formos estabelecer relações entre o museu que é criado para ser digi-
tal com um museu que tem uma faceta ligada (tardiamente) ao digital,
vamos observar que são sempre materialidades distintas e que distinta-

284
RESTOS DE HORROR

mente produzem sentidos. Ainda que nomeado como Museu do Louvre


nas duas versões, trata-se de um museu que é físico e depois passa a fun-
cionar também no espaço digital, o que nos apresenta duas materialida-
des distintas com funcionamentos que não se recobrem. Dias (2020, p.
621) salienta ainda:

[...] não trabalho com a distinção entre um museu físico


e um museu digital, na medida em que ambos se consti-
tuem por diferentes materialidades, ou seja, trabalham
diferentemente a relação sujeito e sentido, elaborando
de modo específico a relação do imaginário com o real,
em condições de produção determinadas. Sendo assim,
considero que qualquer museu que podemos acessar di-
gitalmente, é um museu digital.

A denominação “Museu Digital”, de Dias (2020), nos interessa


pois, no caso do Museu do Isolamento, estamos tratando de um Museu
que já se constitui nesse espaço digital, marcando suas especificidades,
demarcando o investimento de sujeitos na produção do novo em um
tempo em que a circulação de sujeitos no espaço físico é interditada, fica
em suspenso. Destacamos, nesse sentido, que sendo “de isolamento”,
esse espaço museológico contrapõe-se ao “físico”, pelo qual ressoa apro-
ximação, presença/toque/circulação, espaço bem marcado e gerenciado,
o que ressoa em nós como diferença, instaurando mais uma vez a con-
tradição como constitutiva.
Os museus digitais, assim como os físicos, constituem-se por meio
de uma narratividade, que se faz por um conjunto de saberes que ins-
tauram versões, sinalizando que no espaço museológico, o acervo está
em exposição e dentro de temporalidades, funcionando na constituição
de versões, que marcam a repetição e também as diferenças. No Museu
do Isolamento, conforme já destacado, predomina o tempo presente,
um tempo que se expande (DUNKER, 2017, p. 16-17) em detrimento
do passado e do futuro que existem, ressoam no presente, com menos
visibilidade. Hartog (2019, p. 12) refere-se ao tempo presente destacan-
do-o como aquele tempo que está sempre em funcionamento e presenti-

285
RESTOS DE HORROR

fica “a memória (presente do passado), a atenção (presente do presente)


e a expectativa (presente do futuro)”. Entendemos que esse funciona-
mento do tempo se aproxima do que Krümmel (2021) designa de tem-
pos “desjuntados”, os quais, em sua não-coincidência, instauram mais
de uma versão do mesmo acontecimento ou evento, encaminhando para
a polissemia e para a possibilidade de contradição, conforme já discutido.
O funcionamento dos tempos “desjuntados” constitui-se, espe-
cialmente, em relação aos museus digitais, se considerarmos que os su-
jeitos “fazem/constituem” o trajeto e o tempo da visita com um “clique”,
sem sair do lugar, podendo interrompê-lo, demorar-se em uma peça
ou refazer o mesmo percurso mais de uma vez, “desmanchando” e reor-
ganizando o efeito de sequencialidade que se pratica em visitas a mu-
seus físicos, quando pode haver um guia direcionando a visita. De acordo
com Muñoz, Petri e Branco (2017, p. 27), “o caminho que se percorre
(no museu) também influencia no encontro, na reflexão que ele propi-
cia; bem como no funcionamento que ganha a memória na organiza-
ção da linguagem”. No que tange ao Museu do Isolamento, instaura-se
o efeito de sentido de que o sujeito tem a possibilidade de “escolher”
o percurso que julgar o melhor, deixando de lado “a presença material
da língua” (MUÑOZ; PETRI; BRANCO, 2017, p. 27), evidenciada pelas
“etiquetas”, que indicam caminhos, nomeiam e descrevem objetos, in-
terferindo, conforme os autores, na visita ao espaço museológico, ge-
renciando e até interditando alguns sentidos em detrimento de outros.
Nessa direção, o Museu do Isolamento instaura evidências mais
contundentes de que o sujeito-visitante é responsável por parte da cons-
trução de sentidos do museu, tendo em vista, conforme Venturini (2020),
a existência de evidências de que o modo de ler e de interpretar os mu-
seus estão em consonância com o modo como os sujeitos estão inves-
tidos/constituídos ideologicamente e atravessados pelo inconsciente.
Nesse sentido, o Museu do Isolamento, quando da visitação e também
em relação à exposição, engendra e faz funcionar a polissemia de sua
designação como Museu do Isolamento, que tematiza uma condição e,
ao mesmo tempo, coloca-a em experiência/em vivência, definindo o mu-
seu, determinando-o.

286
RESTOS DE HORROR

A exposição e também a visitação não dão conta nem do passa-


do, como o tempo do vivido, e nem do futuro, como um devir, tocando
de perto os tempos “desjuntados”, tal como desenvolve Krümmel (2021),
referindo não só a temporalidades, mas também a testemunho, já que
o sujeito-visitante do museu digital vivencia/testemunha uma exposi-
ção e uma organização do acervo experienciada “no isolamento”, po-
dendo-se compreender isolamentos que funcionam na reversibilidade
do sujeito-expectador, dos objetos/conteúdos da exposição e das memó-
rias e discursos que ressoam/retornam. Com isso, destacamos o espaço
digital, que dá visibilidade a obras criadas durante a pandemia e sobre
a pandemia, como espaço passível de ser dito/designado “museu”.
Trata-se, como destaca Krümmel (2021), de colocar em cena o cor-
po e a voz que testemunham, exposições, em nosso recorte, do Museu
do Isolamento, realizadas sem a presença do outro, testemunhando/
vivenciado o que está no museu, produzindo, assim, um efeito de par-
tilha, que instaura outra a contradição: posto que há um sujeito sozi-
nho em sua casa, diante da máquina, constituído pela ilusão de ser uno,
de estar só e despedaçado, mas se encontrando investido pelo outro,
pela partilha do sensível que vem pelo digital e que o alcança pela te-
mática da pandemia e de estar, nas palavras de Rancière ([2000] 2009, p.
17), constituído pelas práticas estéticas visíveis “do lugar que ocupam,
do que ‘fazem’ no que diz respeito ao comum”. Sendo esse comum cons-
titutivo da temática da pandemia e do fazer na pandemia, em tempos
de isolamento.
Nesses tempos tão difíceis, em que o sujeito é uno e despedaça-
do ao mesmo tempo, o comum compartilhado adquire mais força, por-
que o isolamento ocorre na contradição entre a presença e a ausência,
considerando-se que ocorre a visitação mediada pela máquina, em que
o sujeito vê o que lhe é dado a ver. Esse gerenciamento parece indicar
a não existência de uma partilha, tendo em vista que “o comum com-
partilhado” (RANCIÈRE, [2000] 2009, p. 15), no momento da visitação,
não decorre de escolhas do sujeito. Em nosso entendimento, instala-
-se um efeito de sentido diferenciado, levando em conta, efetivamen-
te, o que está posto pelos sujeitos que determinam o que pode ou não

287
RESTOS DE HORROR

estar exposto no museu, tendo como contraparte os artistas, os sujeitos


que “organizam” as exposições, os que atualizam o site e compartilham
as obras de arte, determinando “os que tomam parte” (RANCIÈRE, [2000]
2009, p. 16).
A fim de explicitar um pouco mais nosso gesto de leitura selecio-
namos dois recortes presentes no discurso de apresentação do Museu
do Isolamento, conforme segue.
Recorte 01: “O 1º Museu digital do Brasil, sem limites
nem fronteiras.”
Assim está definido esse espaço, ele vem significar por ser o pri-
meiro (sendo posto em número, é aquele que precede todos os outros e é
aquele que se autoqualifica como o que está na primeira posição da clas-
sificação entre outros possíveis) e nos causa estranhamento o “sem li-
mites”, ressoando o alcance do digital, que se constitui pelo efeito de sa-
turação, que apaga a falha e a falta e constitui uma temporalidade ligada
ao instante, mas um instante que perdura, que nunca deixa de ser pre-
sente, por estar sempre em funcionamento. Os enunciados “sem limi-
tes” e “sem fronteiras” constituem, também, um efeito de saturação e,
também, a contradição que institui um “real” “estranho à univocidade”,
que funciona como multiplicador, conforme Pêcheux ([1983] 2002, p. 44)
“das relações entre o que é dito aqui (em tal lugar) e dito assim e não
de outro modo”, a fim de que o sujeito possa se colocar “em posição
de entender a presença de não-ditos no interior do que é dito”.
Recorte 02: “Nosso Museu em tempo real.”
O recorte 02, em sua narratividade, reforça esse alargamento
do tempo presente, Dizer “Nosso Museu em tempo real” constitui efei-
tos de que as exposições se renovam e não param de acontecer, refor-
çando que o tempo é sempre um “presente”, sem passado e sem futuro.
Vemos aí, um deslocamento da noção de tempo e a instauração do equí-
voco que se constitui pelo toque da língua à história (GADET; PÊCHEUX,
[1981], 2004), já que, se a obra está exposta, deveria haver um passado,
em que ressoa a inspiração, a criação e o trabalho do artista e, também,
um futuro, de uma obra gestada antes, exposta em um tempo – presente

288
RESTOS DE HORROR

– que encaminha para um futuro, como compromisso da arte com o so-


cial, com a história que inscreve o sensível em um social inscrito em um
tempo presente. Tal recorte nos diz um pouco mais sobre a suspensão
do tempo tal como o concebemos até a pandemia nos tomar por inteiro.
Certamente, essas questões postas até aqui ainda nos suscitarão muitas
reflexões.

Considerações provisórias e contraditoriamente conclusivas

Assim como o Museu do Isolamento escapa ao que tradicionalmen-


te entendemos como museu, enquanto sujeitos de uma escrita marcada
por esburacamentos inerentes ao discurso, colocamos um ponto final
que não encerra as reflexões, ao contrário, abre espaço para pensarmos
um museu do “tipo novo”. Quando dizemos do “tipo novo”, ressaltamos
a irrupção de um espaço museológico que não “guarda”, ao contrário,
se movimenta num “tempo real”, que rompe com a história e, ao mes-
mo tempo, convoca essa mesma história deixada de lado, à medida
que se pretende “sem limites e sem fronteiras”. Nesse sentido, coloca-
mos em suspenso também o ser digital, que tem os limites das conexões,
das escolhas e que se dão, como nos ensina Dias (2020), pelo clique.
O Museu do Isolamento, de acordo com o site que o divulga, nasceu
digital, mas conta com obras e artistas que produziram suas obras sobre
e em tempos de pandemia fora do digital e se inscrevem em um social
que é físico. As suas necessidades de sobrevivência convocam a existên-
cia e a necessidade decorrentes de um tempo de pandemia, que isola,
mas convoca o outro, o expectador, pelo qual o sensível é lido/compre-
endido/interpretado. Assim, pelo museu que convoca o expectador,
com vistas a instituir a possibilidade de conclusão deste texto, trazemos
Rancière ([2000] 2009), referendando a relação entre o sensível e o polí-
tico. Essa relação é possível e necessária, tendo em vista que a “partilha
do sensível” convoca o outro e é por esse “outro”, expectador, que o ar-
tista alcança/realiza o desejo de que o sensível se efetive e circule em es-
paços comuns, segundo o site, “sem limites e nem fronteiras”, rompendo
com o estabelecimento de lugares marcados, constitutivos dos museus

289
RESTOS DE HORROR

filiados a instituições. De fato, nos deparamos com os efeitos de senti-


dos da pandemia na arte e na vida, nas temporalidades e nas definições
de espaço de circulação de discursos e de sujeitos. Somos sujeitos afeta-
dos e isso constitui nosso texto, deixando em aberto para que possamos
seguir pensando, pensando...

Referências

DIAS, C. “Como navegar”: texto e espaço na ordem do discurso digital


expográfico. RUA [on-line], vol. 26, n. 2, p. 615-630, nov./2020. ISSN 2179-9911.
Disponível em: http://www.labeurb.unicamp.br/rua/. Acesso em: 09 jun. 2021.
DUNKER, C. Subjetividade em tempos da pós-verdade. In: DUNKER. C; TEZZA,
C.; FUKS, J. TIBURI, M.; SAFATLE, V. Ética e pós-verdade. Textos inéditos do
escritor para o Litercultura Festival Literário. Porto Alegre: Editora Dublinense,
2017, p. 03-27.
GADET, F.; PÊCHEUX, M. [1981]. A língua inatingível: o discurso na história
da linguística. Trad. Bethânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello.
Campinas: Pontes Editores, [1981], 2004.
HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. (Coleção História e Historiografia).
HENRY, P. A história existe? In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Gestos de leitura.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
KRÜMMEL, E. A. Da (as)simetria entre o corpo e a palavra: a testemunha e o
testemunho no processo de construção de uma memória do/sobre o Holocausto.
Leitura: Estudos linguísticos e literários, n. 68, jan./abr., p. 223-237, 2021. ISSN
2317-9945. http://https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/
view/11399, acesso em 14 de junho de 2021.
LOUREIRO, M. L. N. M. Webmuseus de arte: aparatos informacionais no
ciberespaço. Ciência da Informação, Brasília, v. 33, n. 2, p. 97-105, ago./2004.
Disponível em:
h t t p : / / w w w. s c i e l o . b r / s c i e l o . p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t ex t & p i d = S 0 1 0 0 -
19652004000200010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 jun. 2021.
MELO NETO, J. C. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Alfaguara, [1975] 2009.

290
RESTOS DE HORROR

MUÑOZ, J. M. L.; PETRI, V.; BRANCO, N. História, memória e gestos de


interpretação: uma experiência linguística e discursiva no interior do Museu
de Cádiz. In: VENTURINI, M.C. (Org.). Museus, arquivos e produção do
conhecimento em (dis)curso. Campinas/S: Pontes Editores, 2017, p. 25-50.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas,
SP: Pontes, 1999.
______. Práticas sociais de fabricação de memória. RUA [on-line], vol. 26, n. 2,
p. 511-527, nov./2020. ISSN 2179-9911. Disponível em: http://www.labeurb.
unicamp.br/rua/. Acesso em: 11 jun. 2021.
______. Discursos e museus: da memória e do esquecimento. Entremeios: revista
de estudos do discurso. v. 9, jul./2014. Disponível em: http://www.entremeios.
inf.br. Acesso em: 11 jun. 2021.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad.
Eni Orlandi et al. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, [1975] 1997.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Orlandi. 3. ed.
Campinas, SP: Pontes, [1983], 2002.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa
Netto. São Paulo: EXO Experimental; Editora 34, [2000], 2009.
ROMÃO, L. M. S.; FERREIRA, M. C. L.; DELA SILVA, S. Arquivo. In: MARIANI, B.;
MEDEIROS, V.; DELA SILVA, S. (Org.) Discurso, arquivo e... Rio de Janeiro: 7
Letras, 2011, p. 11-21.
VENTURINI, M. C. Imaginário urbano: espaço de rememoração/comemoração.
Passo Fundo/RS: Editora da UPF, 2009.
______. O saber urbano por/em museus como lugares de fala. In: DIAS, C. P.
C.; COSTA, G. C.; BARBAI, M. A (Org.). Artefatos de leitura. Livro digital.
Campinas, SP: LABEURB/NUDECRI/Unicamp, 2020, p. 183-203. Disponível em
https://www.labeurb.unicamp.br/site/web/publicacao/12-artefatos-de-leitura

291
EFEITOS DA LUTA E DO POLÍTICO NA ARTE:
O ESPETÁCULO SOM E LUZ EM SÃO MIGUEL
DAS MISSÕES/RIO GRANDE DO SUL1

Mirela Schröpfer Klein

Fonte: Portal das Missões.2

1 O presente artigo foi elaborado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior–Brasil (CAPES)–Código de financiamento 001. Artigo desenvolvido sob
orientação da Professora Doutora Amanda E. Scherer (UFSM).
2 Site para acesso: https://portaldasmissoes.com.br/site/view/id/406/ruinas-de-sao-miguel-
arcanjo-sitio-arqueologico.html. Acesso em: 10/07/2021.

293
RESTOS DE HORROR

Fonte: Portal das Missões.

“E sem dúvida o nosso tempo…


prefere a imagem à coisa, a cópia ao original,
a representação à realidade, a aparência ao ser…”
(Debord, 1997, p. 13)

“Identidade missioneira, jamais se perde pelo tempo.


Dedilhando horizontes, cada um,
enfrenta seus tormentos”
(Emerson Gottardo3)

Som, Luz e a sua representação histórica

A partir da citação de Debord (1997), que abre o presente artigo,


e das representações das fotografias das Ruínas de São Miguel, propo-
mos o desenvolvimento deste texto, pelo viés dos estudos discursivos
e filiando-nos à Análise de Discurso de base materialista, mais especi-

3 Artista tradicionalista missioneiro.

294
RESTOS DE HORROR

ficamente, a que foi desenvolvida na França entre os anos 1960 e 1980


e que, hoje, é trabalhada com fôlego no Brasil. Ao ancorarmos nosso tra-
balho nessa teoria, com este texto, apresentamos parte do que vimos
desenvolvendo durante nosso percurso na Pós-Graduação em Letras,
realizada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Assim, o que
apresentamos a seguir são reflexões acerca do espetáculo Som e Luz,
mobilizando conceitos bastante caros para a Análise de Discurso, tais
como: ideologia, política e história/historicidade.
As imagens que ilustram a abertura deste artigo configuram-se
para além de vieses distintos: na primeira, temos uma vista aérea do que
hoje conhecemos e denominamos como Ruínas de São Miguel; na se-
gunda, carregada de misticismo, uma imagem do espetáculo Som e Luz.
O que isso significa, em nosso entendimento, é o que já propomos quan-
do falamos sobre as Missões: há modos de se dizer e/ou contar a história.
Para a construção deste texto, em especial, traremos para nossas refle-
xões o espetáculo Som e Luz, sua configuração e os efeitos de sentido
que ressoam com base em seu roteiro, carregado de tonicidade em rela-
ção à luta dos indígenas.
O espetáculo Som e Luz, que ocorre no sítio de São Miguel Arcanjo,
localizado na cidade de São Miguel das Missões/RS, foi criado em 1978
pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de nar-
rar a criação, o desenvolvimento e o fim da experiência missioneira
no território que hoje configura-se como o estado gaúcho do Brasil.
A narrativa do espetáculo, que dura cerca de 48 minutos, é desenvol-
vida a partir do que restou no local, a Igreja e a Terra, após a chamada
Guerra Guaranítica, procurando mostrar, de forma que envolva os turis-
tas que estão ali assistindo, um pouco do cotidiano, da política, da arte,
da guerra e da fé que circundavam, nos anos de 1756, aquele espaço
de catequização de parte do povo Guarani. Reproduzido diariamente
ao anoitecer, o espetáculo Som e Luz vem cumprindo o objetivo ao qual
se propõe: relatar um viés da história e rememorar fatos.
Sabemos, através de nossa filiação teórica à Análise de Discurso
(AD), que toda história é contada por determinado viés. E esse viés
que circula, o qual é tomado posteriormente como verdade, constrói-se

295
RESTOS DE HORROR

a partir de efeitos políticos e da ideologia dominante. No contexto es-


pecífico da região das Missões/RS, a ideologia dominante se dá por meio
da Igreja, predominantemente, Católica4. Assim, tal como destacado
por Orlandi (2008), consideramos pertinente refletir sobre qual história
é contada e qual identifica o povo missioneiro.

Que história nos é contada e com a qual nos identifi-


camos enquanto brasileiros? Que silêncios nos acom-
panham ao longo dessa história? Quais são os modos
de constituição e funcionamento dessa historicidade
que podem ser apreendidos (lidos) quando analisamos
sua construção nos processos discursivos? Como o silên-
cio divide, significativamente, o que se conta e o que não
se conta, produzindo assim uma configuração para a bra-
silidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática
da violência simbólica, no confronto das relações de for-
ça, no jogo de poder que sustenta efeitos de sentido: o si-
lenciamento que a acompanha (ORLANDI, 2008, p. 24).

A partir do espetáculo apresentado, o visitante que ali está, atôni-


to na história retratada, história de lutas sangrentas e batalhas perdidas,
vê, através de um show de luzes e projeções, o viés histórico das reduções.
O Som e Luz agrega em seu roteiro a irredutibilidade da decisão da tro-
ca das terras missioneiras pela colônia do Sacramento (atual território
Uruguaio). Sepé Tiarajú será transformado, no discurso sobre as Missões
do RS, em um defensor primordial nas batalhas travadas e nos embates
simbólicos entre as lideranças guarani, espanholas e portuguesas.
Conforme aborda Brum (2006, p. 231), “o espetáculo aprovei-
ta a multiplicidade de representações acerca das Missões e de Sepé
Tiarajú”, trazendo em seu roteiro o acerto de contas do passado mis-
sioneiro, trabalhando com a memória que objetiva construir uma lição,
por meio dessa experiência passada, para os que ali assistem.

4 A predominância da religião católica na região se dá visto a colonização desta pelos


descendentes de europeus. A cultura de imigração é muito forte na região e isso impacta,
negativamente, nos discursos sobre os indígenas. No atual contexto, eles são vistos como
intrusos nessa terra, que antes foi deles… Mas isso já é discussão para outro artigo.

296
RESTOS DE HORROR

Os recortes que apresentaremos, na sequência deste texto, fo-


ram selecionados com base no roteiro disponibilizado no site Portal
das Missões, como também no site oficial da prefeitura de São Miguel
das Missões/RS. A escrita deste artigo se motivou a partir do momen-
to em que assistimos ao espetáculo Som e Luz em Corpos, desenvolvido
em parceria com a UFSM e a prefeitura de São Miguel das Missões/RS,
inquietando-nos e causando o impacto motivacional e analítico para
o desenvolvimento a seguir.

A Terra e a Catedral: construindo um espaço de memória


e resistência

“Terra que circula em nossos corpos,


é teu o nosso trabalho.
Ventos claros, rios prateados,
independência natural,
esposa comum. Liberdade.
É por ti a nossa luta, e toda nossa lealdade.”
(Texto Som e Luz)

Como já mencionado, o espetáculo Som e Luz traz em seu rotei-


ro a narrativa por parte das personagens Terra e Catedral (ou Ruínas)5.
Iniciamos, assim, para que nos façamos entender, apresentando o pri-
meiro recorte destacado, o qual se trata de uma fala atribuída à perso-
nagem “Ruínas”, em que ela “fala” com os visitantes, a fim de saudá-los.

R1: “Permiti que estes estranhos que voltam a passear


aqui, sem a mesma graça, é claro, dos antigos Guaraní,
saibam o que foi feito àquele povo tão belo. Que os es-
tranhos aqui presentes, pelos motivos mais diversos,

5 Para que o espetáculo se torne ainda mais atrativo e turístico ao público visitante, vozes
bastante conhecidas e globais fazem parte do cenário: a atriz Fernanda Montenegro dá
vida a Terra; Maria Fernanda empresta sua voz à Catedral; Sepé Tiarajú, por sua vez, é
representado verbalmente por Lima Duarte.

297
RESTOS DE HORROR

do mais leviano ao mais penetrante, dividam conosco


a mágoa universal de ter assistido a um massacre no qual
o inimigo colonialista, por cobiça, raiva e inveja mora-
lista, matou com tiro e lança o legítimo habitante des-
tes campos, os braços construtores desta igreja.” (Texto
do espetáculo Som e Luz, grifos nossos)

Logo após, ela encerra sua fala com o dizer: “Mas já que vieram
aqui, devem ouvir nos ventos a verdade que encerrais: como foram
arrasados vossos filhos, nossos pais, os tranquilos Guaranis.” (Texto
do espetáculo Som e Luz, grifos nossos). Com isso, os estranhos que ali
estão situam-se diante do que veem, essa proposta de abordar a verdade
e a confrontá-la segue durante o espetáculo. Nessa passagem do texto,
a qual se trata da fala de abertura do espetáculo, destacamos o enuncia-
do “a mágoa universal de ter assistido a um massacre”, que faz referência
ao massacre sofrido pelos guaranis, na Guerra Guaranítica6.
Esse destaque foi feito pois, assim como todo o ambiente cons-
truído para o recebimento de turistas, o Som e Luz foi idealizado pelo
Governo (a figura do Estado). Ao colocar a Guerra Guaranítica como
um massacre, o roteiro traz aos estrangeiros esse viés dos acontecimen-
tos, colaborando para a “transformação” de Sepé Tiarajú em herói. Essa
perspectiva adotada, tomando como ponto de partida a visão indígena/
naturalista, pode ser percebida também no enunciado “matou com tiro

6 A Guerra Guaranítica teve como principal motivação o Tratado de Madri, assinado pelos
impérios Português e Espanhol, na capital espanhola, em 13 de janeiro de 1750. Esse
tratado trazia uma nova representação cartográfica, o Mapa das Cortes, estabelecendo
novos limites para suas colônias na América. Como forma de resistência, alguns padres
jesuítas tentaram produzir outros mapas como uma maneira de rejeitar o tratado, mas
estes não foram aceitos. Em suma, sua única opção de resistência foi a guerra, causando a
morte de milhares de guaranis, como também a perda dos territórios que foram entregues
a Portugal (GOLIN, 2014). Para uma ilustração mais poética da Guerra, trazemos o que
destaca Eduardo Galeano (2012, s.p.) em seu livro Os filhos dos dias, no mês de fevereiro,
dia 10: “Aconteceu ao norte do rio Uruguai. Sete missões dos sacerdotes jesuítas foram
dadas de presente pelo rei da Espanha ao seu sogro, o rei de Portugal. A oferenda incluía os
trinta mil índios guaranis que moravam lá. Os guaranis se negaram a obedecer, e os jesuítas,
acusados de cumplicidade com os índios, foram devolvidos para a Europa. No dia de hoje
de 1756, nas colinas de Caiboaté, foi derrotada a resistência indígena. Triunfou o exército
da Espanha e de Portugal, mais de quatro mil soldados acompanhados por cavalos, canhões
e numerosos ladrões de terra e caçadores de escravos. Saldo final, de acordo com dados
oficiais: Indígenas mortos, 1723. Espanhóis mortos, 3. Portugueses mortos, 1.”.

298
RESTOS DE HORROR

e lança o legítimo habitante destes campos, os braços construtores desta


igreja”. Os legítimos habitantes destes campos serão sempre os indí-
genas7, aqueles que atualmente são marginalizados. Que a não ser por
“feitos heroicos” para defender os interesses dos jesuítas, não lhes cabe
papel principal na História.
Desse modo, vemos o político funcionando para a escolha dos per-
sonagens principais vistos diante da História. Mesmo com essa proposta
de mostrar a verdade aos estrangeiros, o roteiro do espetáculo apresenta
um discurso institucionalizado, reproduzindo sentidos também já esta-
bilizados. Em vista disso, entendemos que os sentidos institucionaliza-
dos são admitidos por todos como naturais, conforme aponta ORLANDI
(1996, p. 72).
Para que ocorra a institucionalização dos sentidos, devemos pen-
sar acerca do funcionamento da memória discursiva, constitutiva de to-
dos os enunciados. Assim, segundo Orlandi (1996, p. 67-68), compreen-
demos a memória enquanto dois funcionamentos:

[...] a) a memória institucionalizada, ou seja, o arquivo,


o trabalho social da interpretação em que se distingue
quem tem e quem não tem direito a ela; e b) a memória
constitutiva, ou seja, o interdiscurso, o trabalho histórico
da constituição da interpretação (o dizível, o repetível,
o saber discursivo).

Destarte, a memória institui no discurso o já-dito, o qual enten-


demos como algo que fala anteriormente. A partir disso, podemos dizer
que todo enunciado é, então, constituído por pontos de deriva que des-
lizam e, por meio desses deslizamentos, constituem outros enunciados.
Isso ocorre através do efeito metafórico, lembrando que, como afirma
Orlandi (2014, p. 3), “a metáfora tem seu sentido não ligado à literatura
e sua noção de ‘figura’, mas sim à psicanálise e a noção de ‘transferên-

7 Como todo discurso é político, ao longo deste artigo adotaremos o uso da terminologia
indígena, visto compreendermos que ao usarmos a terminologia índio adotamos um
discurso colonial.

299
RESTOS DE HORROR

cia’”. Essa constituição de sentidos (e de sujeitos), liga-se ao interdis-


curso (ou memória discursiva). Estaríamos, desse modo, sempre em um
ponto de junção entre a memória e a atualidade.
Refletindo acerca dessas questões de memória, caras e importan-
tes para os trabalhos filiados à AD, passamos ao nosso segundo recor-
te. Neste, as questões do sujeito afloram: o sujeito indígena, o sujeito
guarani; tomando para o texto o enunciado proferido por Sepé Tiarajú:
o dono desta terra. Os estranhos, os outros, assistem a um espetáculo
que, historicamente, representa um massacre. Ao destacarmos o enun-
ciado “o drama antigo que os fez morrer”, rememoramos os sujeitos in-
dígenas que deram suas vidas em prol de uma luta que foi caracterizada
como sua.

R2: “Eram de terra seus corpos, sem desejarem diferen-


tes, de água seus sonhos cantando líquidas elegias, de ar
e formosura de suas vestes do dia a dia, e a vontade de vi-
ver e seus amores, como fogo eram ardentes. Sejamos,
portanto, Terra amiga, apenas palco novamente. Que os
estranhos nesta noite, vindos para nos ver, participem
do drama antigo que os fez morrer.” (Texto do espetáculo
Som e Luz, grifos nossos)

Golin (2014) traz em seus estudos a divergência que levou à guer-


ra: a resistência indígena impulsionada pelos padres jesuítas que não
aceitavam a perda do território. O texto produzido para um espetáculo
turístico traz à baila discursos vigentes e historicamente determinados,
não deixando espaço para que haja reflexão acerca da história. Os dis-
cursos que ficam à margem são silenciados, apagados. O que vemos,
diante de um espetáculo turístico, é o agrado aos olhos do público e do
Estado: o Som e Luz é ideologicamente determinado a partir da história
“confortável”. Portanto, vemos a estabilização de sentidos nos discursos
em circulação.

300
RESTOS DE HORROR

Os efeitos do político, do luto e da luta: a ganância destruiu


as Missões?

Tratamos aqui mais especificamente do efeito do político no tex-


to apresentado durante o espetáculo Som e Luz. O político, entendido
discursivamente, significa que o sentido é sempre dividido, mas essa
divisão tem uma direção que não é indiferente às injunções das rela-
ções de força (ou, da luta de classes). Essas relações de força derivam
da sociedade na história. A AD trabalha com a textualização do político,
ou seja, através de um gesto de interpretação inscrito na materialidade
do texto é que se compreende o político.
Essa compreensão do político, os gestos de leitura e/ou de inter-
pretação se darão a partir da inscrição da língua na história, construindo
sentidos. Assim, segundo Orlandi (1998, p. 75) “não há sentido que não
tenha sido produzido em condições específicas, em uma relação com a
exterioridade, com uma direção histórico-social que se produz em rela-
ções imaginárias que derivam de um trabalho simbólico”.
Desse modo, apresentamos nosso terceiro recorte. Este fala espe-
cialmente dos movimentos políticos e ideológicos que regiam o funcio-
namento das Missões, na época da Guerra Guaranítica. Ao destacarmos
o enunciado “cuidado que há muito perigo em deixar assim tão claras ver-
dades discretas” compreendemos o funcionamento do silêncio, de uma
certa censura, o funcionamento de um discurso outro (que não o tido
como oficial) às margens.

R3: “Cuidado, irmão, cuidado que há muito perigo


em deixar assim tão claras verdades discretas. Certas
atitudes são melhor sucedidas, quando não explicadas,
principalmente em política. A visão crítica, o esclareci-
mento, causam à execução do poder muito aborrecimen-
to.” (Texto do espetáculo Som e Luz, grifos nossos)

O processo ideológico está ligado ao excesso, a ideologia repre-


senta o efeito de completude. Orlandi (1996, p. 31) assegura que “é

301
RESTOS DE HORROR

a ideologia que produz o efeito de evidência, e da unidade, sustentando


sobre o já-dito os sentidos institucionalizados, admitidos como ‘natu-
rais’”. Dessa maneira, o analista de discurso não compreende a ideolo-
gia como sendo/representando x, mas o mecanismo de produção de x.
Todo o exposto nos leva a concluir que é através da ideologia que ocorre
a transposição de certas formas materiais em outras, ou seja – nas pala-
vras de Orlandi (2007, p. 97) – “há simulação (e não ocultação) em que
são construídas transparências para ser interpretadas por determina-
ções históricas que aparecem, no entanto, como evidências empíricas.”.
Diante disso, por meio do recorte 3, vemos como o político funcio-
na, explicitamente, no espetáculo Som e Luz. Cabe lembrarmos que este
é uma produção cultural, mas os efeitos de sentido que seu roteiro res-
soa constituem os discursos em circulação na região, tal como o enun-
ciado de nosso próximo recorte, a saber: esta terra tem dono.

Esta terra teve dono?

Missões sagradas, coração da minha gente,


Cada semente germinada é uma esperança...
Passam os anos mas não seca essa vertente
Porque a fibra missioneira é nossa maior herança

De peito aberto a minha gente sempre grita


Que ainda tem dono esta terra de Sepé
Força guerreira que habita o sangue do povo
Pois em cada missioneiro as catedrais seguem de pé
(Canção de Jorge Freitas, Coração da minha gente)

A partir do recorte 4 – uma fala final do espetáculo, atribuída a Sepé


Tiarajú e bastante recorrente nos discursos sobre a região das Missões
do Rio Grande do Sul, como também atribuída a diversos outros enun-
ciados e discursos de resistência – compreendemos os processos signifi-

302
RESTOS DE HORROR

cantes da ilusão criada pelo Som e Luz e que ressoa nos discursos em cir-
culação. Esse recorte (R4), apresentado a seguir, inicia com o enunciado
“Esta terra já tem dono!”, que é utilizado atualmente em diversos discur-
sos que circulam na região das Missões e relaciona-se sempre a questões
como a garra e a luta permanente atribuída, através de discursos popula-
res, como característica do ser missioneiro8. Vejamos:

R4: “Esta Terra já tem dono! Deus e São Miguel a entre-


garam aos animais que a tem povoado. Portanto, General
assalariado, ajoelha-te tu e beija os cascos do meu cava-
lo.” (Texto do espetáculo Som e Luz, grifos nossos)

É por meio do enunciado destacado que empreendemos alguns


de nossos gestos analíticos, já trabalhados, em caráter de gesto inicial
de interpretação, no texto Esta terra teve dono: Efeitos de sentidos nos dis-
cursos sobre a região das Missões/Rio Grande do Sul (KLEIN, 2019). Aqui,
neste artigo, deixamos destacada a nossa inquietação frente aos dis-
cursos que circulam em São Miguel das Missões/RS e sobre a história
da região das Missões. Discursos que, em nosso entendimento, já estão
cristalizados diante da história tida como oficial9.
O efeito simbólico desse enunciado se dá também em seu efeito
de origem: a Guerra Guaranítica. Em uma batalha de poderes e interes-
ses políticos e de lutas travadas que não eram relacionadas diretamente
aos povos indígenas, vemos a atuação, mais uma vez, de um Aparelho
Ideológico do Estado (AIE), conforme aponta Althusser (1974): a Igreja
Católica.
Compreendemos que os AIEs funcionam como “regentes” quando
destacamos os discursos em circulação. Cabe pontuarmos que enten-
8 De acordo com Brum (2006, p. 15, grifos da autora) "o passado missioneiro se constitui
em um problema antropológico presente, uma vez que a memória do mesmo vem sendo
acionada de diversas formas, produzindo imaginários, pertencimentos e identidades
que têm o missioneiro como referencial histórico construído, cujos olhares importam
em tomadas de posições acerca do passado no presente". Assim, compreendemos o ser
missioneiro como tudo que engloba o imaginário e o simbólico relacionado com a História
da região das Missões, em especial do RS e os 7 povos.
9 Quando nos referimos à história tida como oficial, consideramos o viés histórico adotado
pelo Estado, ou seja, a História. Aquela versão que aprendemos na escola, por exemplo.

303
RESTOS DE HORROR

demos que a circulação de discursos diz respeito ao que coloca Orlandi


(2012, p. 9), em seu livro Discurso e texto: formulação e circulação dos sen-
tidos, acerca do processo de produção do discurso: sua circulação se dá
em certa conjuntura e segundo certas condições. Ou seja, para defi-
nirmos certa conjuntura e certas condições (ou como destaca Pêcheux
(2014) em uma situação dada), vemos o funcionamento da ideologia,
a qual, como determina Orlandi (1996).
Retornando ao efeito do simbólico, propomo-nos a refletir, então,
sobre a ilusão criada, no espetáculo Som e Luz, para a reconstituição
de uma memória através dos elementos ali reunidos e a sua força sim-
bólica, diante do cenário criado para o público presente. Transformar
a Terra e as Ruínas em personagens para recontar essa história e “evo-
car o espírito de Sepé Tiarajú”, criam uma ambientalização e trazem,
para o público que assiste, o que chamaremos de efeito de veracidade.
A imagem (a articulação das luzes com o cenário sócio-histórico) é to-
mada por nós como discurso, uma vez que, de acordo com Schneiders
e Mallmann (2017, p. 60) “produz um efeito de memória, faz ressoar de-
terminada historicidade e produz um recorte do real que se manifesta
conforme o funcionamento ideológico e político ao qual está inserida.”.
Atrelado a essas questões ideológicas, vemos a espetacularização
do luto e da luta dos indígenas: ao mesmo passo em que perdem seu es-
paço cultural e histórico, resistem para que a memória de Sepé ressoe.
Fundamentadas nas palavras de Debord (1997, p. 15), no qual afirma que
“a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é o real”, compreende-
mos que o Som e Luz sofre os efeitos do processo da sociedade do espe-
táculo, onde tudo ganha um status capital: o luto e a luta também geram
o lucro. Ainda conforme o autor:

O mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o


mundo da mercadoria dominando tudo que é vivido. E o
mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois
seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens
entre si e em relação a tudo que produzem. (DEBORD,
1997, p. 28, grifos do autor)

304
RESTOS DE HORROR

Esse efeito de mercadoria, que pode ser observado em relação


aos indígenas e à história das Missões, tratados no Som e Luz, pode
ser visto em diversos momentos, como: a criação do espetáculo que as-
sistimos – Som e Luz em Corpos, que é muito mais que a somente inte-
gração e participação efetiva dos indígenas no espetáculo. O espetáculo,
segundo o que considera Debord (1997, p. 20), “é o discurso ininterrupto
que a ordem atual faz a respeito de si mesma, seu monólogo laudatório”.
Desse modo, entendemos que além dos efeitos históricos e polí-
ticos dentro do texto apresentado no espetáculo, ele funcionaria como
operador de uma memória social e coletiva institucionalizada, evo-
cando, assim, um efeito simbólico (SCHNEIDERS; MALLMANN, 2017)
que ressoa até a atualidade, produzindo discursos outros; como também
funciona como um efeito do capital, visando trazer o luto pelas vidas
perdidas e a resistência indígena, tratando-os enquanto uma mercadoria
contando “sua” história a ser vendida.

Efeitos de encerramento…

“As estrelas continuam no céu, quer se vejam ou não.


Assim continuará a luta do cacique de São Miguel e de
seus irmãos assassinados.
Enquanto sobreviver no coração do homem o desejo infini-
to de ser livre,
de lutar contra a opressão,
há de se ouvir no dia a dia o grito do índio Sepé.”
(Texto do espetáculo Som e Luz)

Em movimentos transitórios e ressonâncias, o espetáculo


Som e Luz já se constitui como parte integrante do simbólico relaciona-
do às Missões do Rio Grande do Sul. Tal como na epígrafe que encerra
este texto, os efeitos de sentido que ressoam acerca dos discursos sobre
a região missioneira continuam ali – quer se vejam ou não. Interpelado

305
RESTOS DE HORROR

pelo discurso institucionalizado, compreendemos que a luta travada


na Guerra Guaranítica faz parte do sujeito missioneiro.
Não só como um efeito político, mas refletir sobre a história
das Missões é um sinal de resistência: histórica e política. Uma luta eter-
na para que seja dito o que é silenciado – institucionalmente. Ao assis-
tirmos ao Som e Luz em Corpos, produção realizada juntamente com a
UFSM, entendemos que o “estar ali” produz muitos efeitos. O não es-
tar, também.
Ao vermos o povo indígena ocupando o seu espaço, sentimos a for-
ça da natureza. Aliadas ao texto que narra as vivências, por cerca de meia
hora, esquecemo-nos dos efeitos ali produzidos. Do que era silenciado.
Fazia parte do real, uma vez que, como destaca Pêcheux (2015, p. 29)
“não descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro
com ele, o encontra”.

Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Lisboa: Editorial


Presença, 1974.
BRUM, C. K. “Esta terra tem dono”: representações do passado missioneiro no
Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. UFSM, 2006.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
GALEANO, E. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM editores (e-book), 2012.
GOLIN, T. A guerra guaranítica: o levante indígena que desafiou Portugal e
Espanha. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.
KLEIN, M. S. Esta terra teve dono: efeitos de sentidos nos discursos sobre a
região das Missões/Rio Grande Do Sul. In.: SEMINÁRIO DE ESTUDOS DA
LINGUAGEM, v. 5 n. 1, 2019, Cascavel. Anais... Cascavel: UNIOESTE, 2019.
Disponível em: <https://midas.unioeste.br/sgev/eventos/SISNEL/anais> Acesso
em: 20 abril. 2020.
ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Petrópolis: Vozes, 1996.

306
RESTOS DE HORROR

_______. Discurso e argumentação: um observatório do político. Fórum


Linguístico, Florianópolis, n.1, p.73-81. jul./dez., 1998.
______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas:
Pontes Editores, 2012.
______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 2007.
______. Terra à vista–Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. 2ª ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
______. Discursos e museus: da memória e do esquecimento. Entremeios, Pouso
Alegre, v. 9, p. 1-8, jul. 2014.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.
PÊCHEUX, M. O Discurso: Estrutura ou acontecimento. 7. ed. Campinas: Pontes
Editores, 2015.
PORTAL DAS MISSÕES. Roteiro e texto Sobre Espetáculo Som e Luz. s/d.
Disponível em: <https://www.portaldasmissoes.com.br/site/view/id/1623/
roteiro-e-texto-sobre-espetaculo-som-e-luz.html>Acesso em: 10/07/2021
SCHNEIDERS, C. M. MALLMANN, B. L. Museu das Missões: entre a memória e a
história. Interfaces, Guarapuava, v. 8, Ed. Especial. p. 58-68, 2017.

307
O INOMINÁVEL DE UMA PANDEMIA: O
TRAUMA DO SÉCULO?

Dantielli Assumpção Garcia

Este texto objetiva, em um gesto analítico/ensaístico, compreen-


der como algo de um luto/trauma tem sido simbolizado em manifes-
tações contra o modo como o governo bolsonarista no Brasil enfrenta
a pandemia de Coronavírus, materializando algo de um horror de viver-
-se em uma pandemia que, somente em nosso país, já retirou, em vir-
tude do péssimo gerenciamento da crise sanitária de Covid-19, a vida
de quase 600 mil brasileiros e brasileiras.
Neste trabalho, um recorte de nossa participação no Projeto
de Pesquisa “Restos de Horror: efeitos de ditadura, memória e luto cá e
lá”, financiado pela FAPESP e coordenado pela Profa. Dra. Lucília Maria
Abrahão e Sousa, aqui não pensando diretamente sobre a ditadura,
mas sim sobre o horror de ter no poder, diante da maior crise sanitária
do jovem século XXI, um presidente que homenageia torturadores, exal-
ta a ditadura militar no Brasil e mata diariamente seu povo com uma
política genocida, mobilizando referenciais teóricos discursivos, preten-
demos fazer uma análise discursiva do que se manifesta em fachadas,
por meio de projeções em prédios no espaço citadino brasileiro e que
passam a circular no espaço digital em users da rede social Instagram,
a respeito da pandemia de Covid-19 e o modo como o Estado (genoci-

309
RESTOS DE HORROR

da) Brasileiro tem enfrentado tal situação. Esse modo político/(po)ético/


resistente de colocar em palavras algo de um luto (individual, coletivo,
histórico, político, (im)possível de ser vivido) aponta para o que defen-
deremos neste trabalho como a dimensão histórica do trauma, ou seja,
a história (recente) de uma pandemia vivida em forma de um luto
não vivido marca de modo traumático a vida dos sujeitos, bem como afe-
ta uma memória sobre as pandemias já vividas pela humanidade. Mesmo
cientes da precariedade da recordação que advém dessas palavras ins-
critas em fachadas de prédios do que o vivenciado na pandemia e que
circulam na fluidez, na velocidade do ciberespaço, espaços de resistência
(na cidade, no digital) e de trabalho do traumático são criados pelos su-
jeitos para lidarem com o inominável de um luto (do século) pandêmi-
co. Dizer do trauma de uma pandemia e sobre isso significa estabelecer
uma rede simbólica para afirmar a vida em movimentos de reparação,
em rastros de arte, ética e solidariedade no espaço da cidade e para além
dele, em testemunhos de dor, resistência, luto e escuta do outro.
A pandemia de Covid-19 ao escancarar um real sem anteparo
em relação à morte, nos impõe refletir sobre o luto. Como as milha-
res de mortes pelo Coronavírus recoloca o luto em outras dimensões?
Como as intervenções urbanas, neste capítulo analisadas, podem ofere-
cer um tratamento ao luto (individual, político, histórico), uma vez que,
conforme afirma Ribeiro (2021, p. 225),

No Brasil, a marcha fúnebre da história não se separa


de um antigo (e persistente) processo de apagamento,
seja das marcas da violência, seja dos traços do luto.
Nesse sentido, a colonização, a escravidão, a ditadura,
a era das chacinas e atual pandemia são também nomes
da história de incessantes interdições dos signos e rituais
de luto.

Para Allouch (2004, p. 30), “o enlutado está às voltas com um mor-


to que está indo embora levando consigo um pedaço de si” e, na pan-
demia, essa experiência de perda é vivida todos os dias, no cotidiano,
em que corpos avolumam-se em portas de hospitais, salas de UTI, câ-

310
RESTOS DE HORROR

meras frigoríficas, em valas comuns. Corpos envoltos em sacos pretos


em que sua subjetividade é apagada e seu direito a ser velado usurpado
por não se saber o que fazer com os mortos de Covid-19.
As tatuagens urbanas fornecem aos enlutados um modo de res-
significar sua vivência da morte de um ente querido no contexto de uma
pandemia e de uma política genocida, atribuindo-lhe cores de resistên-
cia e enfrentamento da dor de uma perda. No luto de uma pandemia,
o enlutado pode encontrar anteparo na oferta que recebe em sua rela-
ção com o laço social de inscrições projetadas nos muros das cidades
que clamam pelo direito à vida e denunciam a política de morte do atu-
al governo. Ao projetar dizeres pelas urbes, um gesto/ato de recordar
os mortos, de não permitir seu esquecimento e de não se deixar levar
pelas dores do luto passa a funcionar. Nas projeções, uma possibilidade
de simbolização. Nas palavras de Baldini e Sousa (2014, p. 69), o luto
pode ser entendido como um

Processo que encerra o efeito de o sujeito ter sido arran-


cado de seu lugar. Há um solavanco de perda que grita e o
objeto de amor deixa de existir, foi embora e não voltará
mais. A trombada com o real da morte (aqui mobilizamos
o conceito de Lacan de real como impossível) dilata-se
no tempo, quer permanecer no sem-fim da dor e esse
efeito torna o enlutado o que resta em solidão e com a li-
bido recolhida.

Nessa solidão, as projeções na cidade surgem como um alen-


to à dor, como um lugar de memória de uma política genocida estatal,
de um trabalho com o luto/trauma de viver em uma pandemia sem o
objeto de amor. Nas projeções, o luto/trauma passa a ser exposto, dito,
simbolizado, em uma tentativa de elaborar algo de um horror de uma
pandemia, não apagando os efeitos traumáticos de que dela advêm.
Nessa prática resistente/artística/política/ética, os rastros de uma prá-
tica genocida governamental são escancarados e escancaram também

311
RESTOS DE HORROR

a obscenidade da morte insepulta e de toda interdi-


ção ao luto público, conjurando espectros e recebendo,
em pleno rosto, o facho de trevas que assombra seu tem-
po. Não raro, a arte [e acrescentaríamos certas interven-
ções urbanas como as aqui analisadas] não recua diante
desse ato de luto: o de erigir – em seu próprio corpo –
uma lápide aos inumados da história (RIBEIRO, 2021, p.
226).

As projeções dizem de um trauma e dizer sobre o trauma hoje


de certa maneira, como ressalta Rudge (2009), é apontar para uma crítica
da sociedade contemporânea, isto é, para os “fatores históricos e socio-
lógicos que podem afetar de modo nocivo a maneira de ser dos sujeitos”
(p. 7). Para o campo da Psicanálise, o trauma não é um acontecimento
em si, mas de que forma esse acontecimento incide sobre o psiquismo
de um sujeito e é por ele processado. Conforme Rudge (2009, p. 8), a pala-
vra “trauma”, como característica de nomes próprios, mantém-se a mes-
ma quase em todos os idiomas do Ocidente. De origem grega, τραῦμα,
nessa língua significa “ferida” e, no plano da psicopatologia, designará
“acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de coisas
do psiquismo, provocando um desarranjo em nossas formas habitu-
ais de funcionar e compreender as coisas e impondo o árduo trabalho
da construção de uma nova ordenação do mundo” (RUDGE, 2009, p. 8).
Consideramos, neste texto, que a pandemia de COVID-19 irrompe
como um acontecimento traumático que desloca o estado de coisa posto
em funcionamento nas sociedades contemporâneas. Há algo na pande-
mia do Coronavírus que desarranja as formas habituais do relacionar-se
entre os sujeitos, impondo um outro modo de estar no espaço urbano.
Em um trabalho de reconstrução do mundo, de um encontro com o real
de uma pandemia, as palavras expostas em projeções urbanas, as quais
analisaremos neste escrito, gritam o luto de um país que tem no po-
der um presidente genocida. Embora como afirma Kehl (2000, p. 138),
a dimensão traumática da experiência humana escapa da representação,

312
RESTOS DE HORROR

como seres de linguagem, intenta-se “ampliar continuamente os limi-


tes do simbólico, mesmo sabendo que ele nunca recobrirá o real todo”.
Em denúncias, em pedidos de impeachment, na divulgação dos números
de mortos, a tentativa de elaborar os efeitos de um trauma se dá em pro-
jeções que surgem nas ruas do Brasil.
Nessa tentativa, uma outra forma de encontro, de resistência (pela
inscrição em prédios de dizeres sobre a pandemia e a política de enfren-
tamento à Covid-19 pelo governo brasileiro) se instaura. Um outro modo
de falar sobre o luto passa a operar no espaço citadino já não tão ocu-
pado pelos sujeitos em virtude de um vírus altamente contagioso. Como
mostramos em Sousa, Garcia e Monteiro (2020), na “pandemia, o mundo
se tornou ameaça-dor, contagioso e mortalmente doente, o que coloca
a precariedade do humano em evidência – ‘não é possível’ – e o vazio
passa a ocupar o centro da experiência humana com ampliação”. O trau-
ma e o luto passam a produzir efeitos.
Nas tatuagens urbanas projetadas pelas cidades sobre a pande-
mia, é posta em funcionamento uma relação entre um trauma privado
e aquele que se presume ser coletivo, um trauma público. As projeções
são um esforço não apenas para dar às vítimas de Covid-19 e da política
genocida estatal uma voz e um palco para romper o silêncio de um trau-
ma, para divulgar e revelar as atrocidades de uma pandemia, mas tam-
bém para transformar esses dizeres em uma história nacional, coletiva,
constituindo, assim, um registro coletivo de um trauma que antes existia
apenas como uma série de histórias privadas e memórias traumáticas
não contadas e fragmentadas.
Como aponta Felman (2014, p. 31), retomando os estudos de Caruth
(1996), o conceito de trauma pode ser resumido em três pontos:

1) Trauma é uma dimensão essencial da experiência


histórica, e sua análise fornece um novo entendimento
da causalidade histórica;

313
RESTOS DE HORROR

2) O resultado da experiência catastrófica é atravessado


por um enigma de sobrevivência; o legado da experiência
traumática impõe uma reflexão sobre e fornece um novo
tipo de percepção da relação entre destruição e sobrevi-
vência;
3) Uma vez que a experiência do trauma dirige-se
ao Outro e demanda a escuta de um outro, isso impli-
ca uma dimensão humana e uma dimensão ética em que
o Outro recebe prioridade sobre o eu. Essa dimensão éti-
ca está fortemente relacionada à questão da justiça.

O trauma em relação à pandemia de Covid-19 aponta para


a dimensão histórica do início do século XXI em que um vírus mostrou
que não há barreiras físicas, geográficas para sua circulação. No mundo,
a Covid-19 já provou quase 5 milhões de mortes e mais de 200 milhões
de casos confirmados de Sars-Cov-2. Cenas como corpos empilhados,
hospitais lotados e colapsados, cemitérios com centenas de valas co-
muns apontam para a experiência catastrófica de uma morte para a qual
não se havia ainda vacinas, nem tratamentos com eficácia comprovada.
No Brasil, houve um agravamento da pandemia em virtude da políti-
ca negacionista do Estado e o modo como o presidente da nação tra-
tou a questão, como uma “gripezinha”, um “resfriado”, uma “histeria”,
um “medinho”, marcando seu pouco caso e apreço pela vida e pelo
luto de seus cidadãos, afinal, como disse: “Não sou coveiro”, “E daí?”.
Formulações que produzem uma percepção da relação entre morte
e vida, destruição e sobrevivência. Como mostramos em Sousa e Garcia
(2020, p. 5):

O uso do diminutivo discursiviza esse processo, desti-


tuindo o tema da esfera de crise sanitária ou de colap-
so do sistema de saúde nacional para algo que é peque-
no e não passa de um “medinho” ou uma “gripezinha”.
Diante da diminuição da gravidade da doença, esse sujei-
to filia-se a dizeres que desautorizam a validade da ciên-
cia, de representantes das organizações médicas e uni-
versitárias e das recomendações da Organização Mundial

314
RESTOS DE HORROR

de Saúde (OMS), funcionamento que tem se constituído


na ordem do repetível em sua trajetória como político
há décadas. A formulação “E daí?”, diante de um ques-
tionamento sobre o crescimento do número de mortos,
marca uma posição de descompromisso, desimplicação
e desresponsabilização diante do que está em curso,
se inscrevendo num distanciamento dos sentidos de so-
lidariedade e empatia, que são esperados de um esta-
dista que vê o povo de seu país em sofrimento. No caso
do Brasil, isso não comparece e o sujeito ocupa a posição
de recusa desse cuidado, inferindo “não sou coveiro”.

Em uma demanda de escuta do outro, a qual não é efetiva se pen-


sarmos o modo como o presidente Jair Bolsonaro tem dito e tratado
a pandemia de Covid-19, a dimensão humana e ética do trauma não é
tratada pelo governo (genocida) brasileiro. Contudo, essa é posta a fun-
cionar, como uma questão de justiça e de luto, pelas inscrições na urbe,
nos prédios das cidades, em projeções. A demanda de escuta é dos en-
lutados direcionados aos enlutados pela Covid-19, porque ninguém está
alheio à pandemia do jovem século XXI.

Figura1: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

315
RESTOS DE HORROR

Figura 2: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Ao gritar o horror de em um único dia morrerem 1910 brasileiras


e brasileiros por causa da Covid-19 e da gestão estatal da pandemia, de-
nuncia-se o insuportável de um luto, de uma dor (traumática) que as-
sola os sujeitos que no Brasil vivem. Tenta-se, ao convocar panelaços
e clamar por “Fora Bolsonaro”, dar tratamento ao inominável de uma
pandemia. Como mostramos em Sousa e Garcia (2020, p. 5), os pane-
laços surgem nas cidades de todo o país para fazer resistência à circu-
lação de dizeres do presidente sobre a pandemia, os quais “horrorizam
o mundo e deixam em suspensão os sentidos de respeito e preservação
da vida. Tal grito de indignação também se endereça ao modo de gover-
nar do atual presidente da República, cujo rastro de genocídio aponta
para um poder do capital em detrimento da vida”.

316
RESTOS DE HORROR

Figura 3: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Figura 4: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

317
RESTOS DE HORROR

Mais uma vez na urbe, pelas projeções, a denúncia da política mor-


tífera do governo bolsonarista, que não enviou, quando solicitado, cilin-
dros de oxigênio a Manaus, deixando seus cidadãos morrerem sem ar,
por falta de leitos e oxigênio nos hospitais. A denúncia aponta para o co-
lapso no sistema de saúde em virtude da não capacidade do atual presi-
dente e de seus apoiadores em gerenciar a crise sanitária pela qual passa
o Brasil e o mundo. Além disso, as projeções recusam sentidos postos,
sustentando a gravidade da pandemia e pedindo aos sujeitos que, apesar
das falas do presidente, “usem máscara”.

Figura 5: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Nessas projeções que ganham circulação na rede social Instagram,


formulações que dizem como se proteger na pandemia (usando másca-
ra, ficando em casa). Seria talvez uma obviedade diante da gravidade
da doença que o mundo já conhece bem, mas em um país como o Brasil
em que seu maior representante já negou a gravidade da pandemia, já in-
centivou aglomerações (e incentiva quase todo mês com as motociatas
de homens ultraconservadores que apoiam o fascismo de seu governo),
além de não usar máscara de proteção (recomendação da OMS como

318
RESTOS DE HORROR

uma forma de prevenir o contágio pelo Coronavírus), falar sobre o uso


de máscara e usá-las é um ato de resistência e de valorização da vida
em um governo da morte.

Figura 6: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Nessa mesma direção de protesto e denúncia, a projeção na cida-


de clama pela proteção do SUS, tão sucateado pela PEC da Morte (PEC
241/2016), a qual enfraqueceu e limitou os investimentos em políticas
públicas/sociais de saúde, fragilizando toda uma rede de proteção so-
cial aos cidadãos brasileiros. Somente no ano de 2019, essa PEC reti-
rou do SUS mais de 9 bilhões de reais. O pedido justifica-se em virtude
de grande parte dos brasileiros ser por esse sistema atendido, ademais
ser graças a ele também que os índices de mortes não são ainda piores
na pandemia. Ademais, a defesa do SUS faz-se importante por ser esse
sistema o responsável pelas campanhas de vacinação pela quais o Brasil
já foi considerado referência mundial.
Nas projeções, pede-se também “vacina já”, uma vez que já está
comprovado cientificamente como essas salvam vidas, embora, no go-
verno Bolsonaro, tenha havido a demora na aquisição dos imunizantes,

319
RESTOS DE HORROR

bem como pedidos de propinas para a compra de determinada vacina.


Exigir vacina aos brasileiros, justifica-se por ter até agora o país vacina-
do completamente (com as duas doses) somente 42% de sua população1,
mesmo já tendo sido considerado um exemplo em Planos Nacionais
de Imunização. A vacinação no Brasil poderia ter sido iniciada em 2020
e esse ato teria evitado inúmeras mortes por Covid-19, sendo, portan-
to, Bolsonaro, considerado por muitos, o que é possível ver nas proje-
ções urbanas, como genocida por negar a seu povo tal acesso à imuni-
zação e ter, de certo modo, provocado a morte de milhares de brasileiras
e brasileiros.

Figura 7: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

1 Disponível em: especiais.g1.globo.com/bem-estar/vacina/2021/mapa-brasil-vacina-covid/.


Acesso em 30 set. 2021.

320
RESTOS DE HORROR

Figura 8: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Na contramão do mundo e de todas as inscrições histórico-dis-


cursivas de horror, perigo, morte, solidariedade, cuidado e ciência que a
pandemia fez circular, como já mostramos em Sousa e Garcia (2020),
o presidente atual do Brasil zombou da gravidade do Coronavírus em de-
clarações estarrecedoras de descrédito da ciência, negou a compra de va-
cinas, superfaturou outras. Isso produziu inúmeras reações, pois, como
afirma Pêcheux (1990), não há dominação sem resistência, nesse caso,
uma dominação pela via da ignorância. Assim, em um primeiro momen-
to da pandemia, o que não pôde ser dito com bandeiras e cartazes de pro-
testo na rua ganhou corpo de palavra na fachada dos prédios urbanos,
onde os sujeitos puderem dizer não aos sentidos bolsonaristas de morte.
A cidade foi vestida de outros modos de significar a pandemia,
o luto, a dor e foi se tornando um imenso corpo tatuado por dizeres
e imagens. Ainda que impedidos de tomar as ruas para andar, trabalhar,
encontrar-se coletivamente, conversar, mobilizar, protestar e organizar
atos políticos, os sujeitos produziram dizeres e panelaços de resistên-
cia e protesto a clamar pelo “Fora Bolsonaro”, pelo “impeachment”, pelo
fim da política genocida legitimada pelo Estado no país.

321
RESTOS DE HORROR

Hoje, o cenário é outro também. O povo protesta em “meio a pan-


demia”, ocupando as ruas, porque “o governo é mais perigoso que o
vírus”.

Figura 9: Pandemia
Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Mas isso é para um próximo escrito... Neste, nosso objetivo foi ana-
lisar como pela via do simbólico, por meio de projeções na cidade, os su-
jeitos deram início a um tratamento ao trauma/luto que está sendo vi-
vido diariamente pelas brasileiras e pelos brasileiros deste país, dizendo
como, em um governo genocida, (sobre)viver é a nossa desobediência,
nosso principal ato para lidar com o horror de uma política de morte
que está tão fortemente presente no Brasil e no (não) enfrentamento
da pandemia de COVID-19. As projeções metaforizam algo do horror,
do inominável, em tentativa de dar contorno à vida.

322
RESTOS DE HORROR

Figura 10: Pandemia


Fonte: https://www.instagram.com/midianinja/

Este texto é uma homenagem para os que não tiveram o direito


de viver por causa de um genocida que está no poder.

Referências

ALLOUCH, J. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro:


Companhia de Freud, 2004.
BALDINI, L. J. S.; ROMÃO, L. M. S. Melancolia (ou traços): dizeres nublados.
In: BALDINI, L. J. S.; ROMÃO, L. M. S. (orgs.). Discurso e sujeito: trama de
significantes. São Carlos: Edufscar, 2014.
FELMAN, S. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no século XX. São
Paulo: EDIPRO, 2014.
KEHL, M. R. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-
SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta,
2000, p. 137-148.
PÊCHEUX, M. Papel da memória In: ACHARD, P. [et al.]. (org.) Papel da
memória. Campinas, Pontes, 1999.

323
RESTOS DE HORROR

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:


Unicamp, 1997.
_______. Delimitações, inversões e deslocamentos. Cadernos de Estudos
Linguísticos. Campinas, n. 19, jul-dez., 7-24, 1990.
SOUSA, L. M. A. e; GARCIA, D. A.; MONTEIRO, B. Luto e rede social: quando o
poético ajuda na cicatrização. In: BAALBAKI, A.; SILVA, L. F. A. Discursos da
pandemia: entre dores e incertezas. Campinas: Editora Pontes, 2020.
RIBEIRO, T. de M. O luto e a Análise de Discurso. In: FLORES, G. B. (org.) et
al. Discurso, Cultura e Mídia: pesquisas em rede. Campinas, SP : Pontes
Editores, 2021.
SOUSA, L. M. A. e.; GARCIA, D. A. Dizeres de uma quarentena: depressa as
fachadas gritam. Revista Linguasagem, São Carlos, v.35, Número Temático
COVID-19. setembro/2020, p. 1-30.
RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

324
PEÇAS DE UM ARQUIVO NAS CONJECTURAS
DE UM ESTUDO EM SUSPENSO

Amanda E. Scherer

Je rêve d’un homme qui aurait désappris les langues de la


terre jusqu’à ce qu’il ne puisse plus comprendre, dans
aucun pays, ce qui s’y dit. Qu’y a-t-il dans la langue  ?
Que cache-t-elle ? Que vous prend-elle ?(CANETTI,
1980, p.32).

Prelúdio n. 1

Desde quando a casa queima? Desde quando está quei-


mada? Certamente, há um século, entre 1914 e 1918, algo
aconteceu na Europa que lançou nas chamas e na loucu-
ra tudo o que parecia restar de íntegro e vivo; depois,
novamente, trinta anos depois, a fogueira se reacen-
deu violentamente por toda a parte e, a partir de então,
não cessa de arder, sem tréguas, soterrada, apenas visível
sob as cinzas. Mas, talvez, o incêndio começou já há mui-

325
RESTOS DE HORROR

to, quando o cego impulso da humanidade em direção


à salvação e ao progresso se uniu à potência do fogo e das
máquinas. Tudo isso é notório e não adianta repetir. Pelo
contrário é preciso se perguntar: como podíamos conti-
nuar a viver e pensar enquanto tudo queimava? O que
resta de algum modo íntegro no centro da fogueira
ou em suas margens? Como conseguimos respirar entre
chamas? O que perdemos? A quais destroços – ou impos-
turas – nos agarramos?
E agora que não há mais chamas, mas apenas números,
cifras e mentiras, certamente estamos mais fracos e so-
zinhos, mas sem compromissos possíveis, lúcidos como
nunca antes (AGAMBEN, 2021, p. 15).

Prelúdio n. 2

Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre


uma folha de papel. Olhei. Olhei julgando que olhar tal-
vez me ajudasse a ler algo jamais escrito. Olhei as três
lascas como as três letras de uma escrita prévia a qual-
quer alfabeto. Ou, talvez, como o início de uma carta a ser
escrita, mas para quem? Percebo que dispus sobre o pa-
pel branco involuntariamente na mesma direção que se-
gue minha língua escrita: toda “carta” começa à esquer-
da, ali onde enfiei minhas unhas no tronco da árvore para
arrancar a casca. Em seguida, desdobra-se para direita,
como uma corrente funesta, um caminho acidentado:
desdobramento estriado, tecido de casca precocemente
rasgado.
Vemos aqui três lascas arrancadas de uma árvore,
há algumas semanas, na Polônia. Três lascas de tempo.
Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória,
essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço do pre-

326
RESTOS DE HORROR

sente, aqui, sob meus olhos, sobre branca página; um pe-


daço de desejo, a carta a ser escrita, mas para quem?
Três lascas cuja superfície é cinza, quase branca. Já ido-
sa. Característica da bétula. Esfiapa-se em volutas, como
os restos de um livro queimado. Na outra face, continua
– no momento em que escrevo – cor-de-rosa feito car-
ne. Aderia perfeitamente ao tronco. Resistiu à agressão
de minhas unhas. As árvores também prezam a própria
pele. Imagino que, com o passar do tempo, as três las-
cas ficarão cinzentas, quase brancas, de ambos os lados.
Conservarei, guardarei, esquecerei? E, em caso afirmati-
vo, em que envelope de minha correspondência? Em que
prateleira de minha estante? Eu morto, o que pensa-
rá meu filho quando topar com esses resíduos? (DIDI-
HUBERMAN, 2019, p. 9-10).

Conjectura 1. O Arquivar...

Minhas primeiras recordações estão imersas no ver-


melho. Saio por uma porta nos braços de uma menina,
o chão a minha frente é vermelho e a minha esquerda
desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente,
à mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem
sorridente que, alegre, vem em minha direção. Ele se
aproxima bem, para e me diz: “Mostre a língua!” Mostro
a língua e ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-
-o e põe a lâmina bem perto de minha língua. Ele diz:
“Agora lhe cortaremos a língua”. Não ouso recolher a lín-
gua; ele se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la
com a lâmina. No último momento, recolhe a faca e diz:
“Hoje ainda não, amanhã”. Ele dobra o canivete e o guar-
da no bolso.
Todas as manhãs saímos pela porta para o pátio ver-
melho, a porta se abre e o homem sorridente aparece.

327
RESTOS DE HORROR

Sei que ele dirá e aguardo sua ordem de mostrar a lín-


gua. Sei que ele a cortará, e cada vez tenho mais medo.
Assim começa o dia e a história se repete muitas vezes.
(CANETTI, 1987; p.11).

Em dezembro de 1999, o Collège international de philosophie1 (CIPh–


Paris, França) e o Institut Mémoires de l’édition contemporaine2 (IMEC–
Abbaye d’Ardenne, França) realizaram o Colóquio “Questions d’archives”.
Colóquio organizado pelas duas instituições que tinha por objetivo refle-
tir sobre as implicações do ato de arquivar3. As questões que nortearam
tal reflexão tinham por eixo fundador a problemática do arquivo em si,
isto é: o que seria um arquivo da Filosofia e o que significaria um depo-
sitário como tal? Ou ainda, o que seria conservar, guardar em Filosofia?
Quais seriam os desafios institucionais, históricos e teóricos do ato mes-
mo de arquivar, sobretudo em alguns fundos documentais – emblemáti-
cos–como o Nietzsche, Althusser, Foucault, Barthes, entre outros?
Lembro, até este momento, quando Jacques Derrida, um dos
conferencistas, comentava sobre o fato (e confessava também) dele
mesmo já estar no jogo do arquivo, arquivo afirmado pela donation,
(o próprio do ato jurídico de alguém que se desfaz ao proveito de um
terceiro) de uma parte de seus documentos à universidade americana
Irvine, na Califórnia (Estados Unidos). Seus comentários versavam so-
bre ele mesmo ser e estar como arquivo, embora estivesse ainda vivo.
Descrevia, com um certo incômodo, que, mesmo os bilhetes deixados
para a senhora que fazia limpeza em seu apartamento, eram numera-
dos, separados e “alojados” naquilo que a referida universidade chama-
ria de uma caixa etiquetada como “diversos”–uma designação redutora,
nos sabemos, – do seu dia a dia e, que, mais tarde, quando de sua morte,
constituiria uma parte do Arquivo Jacques Derrida. A reflexão de então
estava tomada pelo seu caráter complexo, vertiginoso, mesmo “trági-
co” (no dizer de Derrida) do ato arquivar, pois além do território do his-

1 Disponível em: https://www.ciph.org/. Acesso em: 29 set 2021.


2 Disponível em: https://www.imec-archives.com/. Acesso em: 29 set 2021.
3 Em outubro do mesmo ano, o Collège international de philosophie havia confiado seus arqui-
vos ao Institut Mémories de l’édtion contemporaine.

328
RESTOS DE HORROR

toriador ao qual nos oferece o estado bruto de sua matéria cotidiana,


teríamos, igualmente, que considerar as técnicas de convervação e as
modalidades de exploração e de consulta.
No referido colóquio, o grande drama (científico) era colocado
por Olivier Corpet, diretor do IMEC (e um de seus fundadores), qual seja
o de distinguir les archives mortes e les archives vivantes. Já Jean-Claude
Milner, presidente do Collège, naquele momento, insistindo sobre o ca-
ráter privado-público de tal depósito (no sentido de dépot, em francês)
sustentava que os arquivos, embora não viessem compensar ou combater
o desaparecimento decretado pela história, viriam eles, sim, acompanhá-
-la (MILNER, 1999)4. Além disso, trazia Milner, naquela ocasião, que a
última palavra daquela história, de mais a mais, não havia sido escrita.
Ainda sobre o colóquio, Michel Deguy (filósofo e poeta) que havia
legado seu acervo ao IMEC, mapiava três formas de medo em relação
ao ato de arquivar sobre sua pessoa: o inclassificável (l’inclassable), o in-
confessável (l’inavouable) e a superavaliação (la surévaluation). Desse
modo, para ele (Deguy, 1999)5, as questões mais angustiantes seriam:
como antecipar o que vai se ficcionalizar? E o que seria importante
na ficcionalização? E sem hesitação, Jacques Derrida, levantava uma ou-
tra problemática, àquela da ilusão totalizante de qualquer arquivo. Para
ele, conservação implicaria sempre exclusão, visto que o ato de guardar
é muito mais um ato de amnésia, do que de memória (DERRIDA, 1999)6,
uma vez que exclusão, segundo ele, significaria violência, como um fil-
tro que ignoraria o que não brilha, que dá importância, tão somente,
ao que rodeia a luz. E mais, para o filósofo: é o futuro que decide do passa-
do7. Dessa forma, o arquivo constituiria, nas palavras dele, uma espécie
de um futuro anterior (futur antérieur)8.
Já, para nós, o arquivar está sempre lá em uma espera sem hori-
zonte de espera, em uma impaciência absoluta de um desejo de memó-

4 Anotações da autora no referido colóquio.


5 Anotações da autora no referido colóquio.
6 Anotações da autora no referido colóquio.
7 Anotações da autora no referido colóquio.
8 Anotações da autora no referido colóquio.

329
RESTOS DE HORROR

ria, um sintoma quiçá de um sofrimento, de uma paixão – de um incons-


ciente mesmo–apropriando-se de um poder sobre a memória, na sua
impossível detenção, na permanência efêmera de uma retenção pela
interpretação...

Conjectura 2. O escrever...

Oui, ces notes que j’ai prises sont bien réelles  : j’avais
vraiment un cahier, mais elles n’ont pas dépassé vin-
gt lignes. J’avais trop peur, il était extrêmement dan-
geureux d’écrire. Le fait même d’écrire était suspect  ;
ce n’étaient donc pas des notes, mais la volonté de pren-
dre des notes, ayant sous la main un crayon et du pa-
pier, et désirant transmettre à ma mère, à ma soeur,
aux miens, l’expérience inhumaine que je vivais  ; mais
il n’y a pas eu de notes, car je savais que je n’aurais pu les
conserver. C’était matériellement impossible. Où les
garder, dans quelle cachete ? Dans une poche ?... nous
n’avions rien, on changeait nos lits, nos paillasses sans
cesse, on changeait aussi nos vêtements, il n’y avait au-
cun moyen de rien garder sur soi. Je ne disposais que de
ma mémoire. (LEVI, 1995, p. 26).

Escrever não é um ato banal qualquer, por mais que possa parecer,
sobretudo, em nosso dia-a-dia no mundo da escrita. Ao escrevermos dei-
xamos nossas marcas, nossos deslizes, nossas desavenças com a nossa
história e com a escrita. Sabemos igualmente que, quando escrevemos,
muito do que somos vem à baila pelo simples gesto de segurar o lápis,
ou então, pela nossa maneira de se comportar perante à máquina de es-
crever (sim, ainda contamos com ela em momentos de preguiça intelec-
tual) ou até mesmo como nos “filiamos” ao computador. Do gesto de to-
mar o lápis ao jogo de dedos no teclado do computador, muito do que
não gostaríamos de ser nos toma de assalto e nos configura enquanto
prática de um aprendizado da escrita, pela (in) delicadeza do aprendiza-
do (e) terno da escritura. Impossível escrever sem nossa história, subje-

330
RESTOS DE HORROR

tiva enquanto sujeito escrevente, e de tudo o que nos cerca consciente


e inconscientemente. Tanto faz que o processo de escritura tenha a ver
com um artigo científico e ou literário, ou um simples bilhete, como
àquele de Derrida à senhora que o ajudava.
O que tal escritura (pensada aqui no momento de seu processo
em si, de seu ato de escrever) poderia sinalizar de um filósofo na tecitura
de um bilhete a alguém que lhe ajudava (DERRIDA, 1999)? Quando colo-
camos tal exemplo, queremos afirmar que escrever é muito mais do que
uma sinalização sua como arquivo, no sentido de arquivar de uma sim-
ples técnica, escrever é esse ato individual coletivo que diz muito de uma
época, das condições de produção sem cessar e de uma política de dizer.
É importante assinalar, igualmente, que fazemos uma diferença
entre a escrita (o produto) e a escritura (o processo). Para nós, a escritura
faz parte de uma rede de relações e de significação alicerçadas no pro-
cesso em si de escrever... processo não pensado do ponto de vista de sua
construção cognitiva e ou genealógica. Nós diríamos uma espécie de dis-
cursividade do processo e não uma discursividade do produto.
Nossa preocupação e caminho metodológico naquilo que gostarí-
amos de colocar tem a ver com um certo caráter intrínseco que, embo-
ra não seja estabelecido ou convencionado, indica sua inscrição em um
certo tempo e que se inscreve, por sua vez, não em uma continuidade
homogênea e linear, mas no zigue-zague “entre lecture, écriture, re-
lecture, réécriture, hésitations, décisions, bref, toutes sortes de tenta-
tives complexes plus ou moins interrompues, plus au moins continues”
(FENOGLIO, 2002, p.05). Ou seja, o mise-en-acte da língua em um tor-
nar-se texto, deixando marcas, vestígios, que nós analista vamos po-
der “alçar”, ordenar, analisar para abri-las à significação, à significação
do analista, não do sujeito que escreve.
Como nos indica Fenoglio (2002), na textualidade da escritura
podemos identificar os acréscimos, acrescendo; lá onde há digressão,
digressão; onde o ficcional em uma imagem se expõe ou se atravessa.
Ou ainda, por quais trajetos morfo-sintático-lexicais, o enunciador ela-
bora seu texto? Já no trabalho do analista de discurso perdendo o foco

331
RESTOS DE HORROR

da linearidade da leitura – escritura do sujeito que escreve -, a digres-


são serve de suporte para a escritura do sujeito que analisa, indo para
um campo outro, não esperado. Aquele, talvez, do estudo do interdiscur-
so e da formação discursiva para atentar ao ideológico... mas isto é pauta
para um outro artigo.
Nos perguntamos, desse modo, quais seriam aquelas notas
de Primo Levi (1995), mesmo sem a possibilidade de termos in presença
a materialidade de seu caderno, sem podermos presentificar o seu lá-
pis? Seriam, então, àquelas que se atualizam pela memória em sua obra
como um todo?

Conjectura 3. O esquecer no lembrar....

Moi-même, je me suis trouvé en grand danger les pre-


miers jours, en raison d’un fait important pour nous
les Italiens, Juifs italiens  : l’impossibilité de commu-
niquer  ; et là je crois bien avoir été sauvé par l’amitié.
J’ai resenti cette impossibilité comme une brulûre au fer
rouge, comme une torture ; on tombait dans un milieu
où on ne comprenait pas un mot, où la parole ne pouvait
être comprise, où on ne parvenait pas à se faire entendre.
(LEVI, 1995, p. 17).
E...
Nous étions rejetés, nous Juifs sépharades, ou en tous
cas italiens, parce que nous ne parlions pas yiddish, nous
étions étrangers. Étrangers au début pour les Allemands
en tant que Juifs, et étrangers pour les Juifs de l’Est,
car ne faisant pas partir des leurs... (LEVI, 1995, p. 34).

Ao escrever, entre o esquecer e o lembrar, a trama narrativa


vai sendo construída e “preenchida pelos baús da história de cadáveres,
esperando abri-los e reencontrá-los sem reconhecê-los” (ROBIN, 2016,
p. 38). Esquecer, por sua vez, é também mudar e não mudar, assim como
o lembrar tanto pode acontecer pelo reproduzir ou pelo transformar

332
RESTOS DE HORROR

(ORLANDI, 2004). Quando escrevemos, o ato mesmo de escrever, não se


dá em um vazio, estamos sempre costurando uma coisa no lugar de ou-
tra, de um lugar já habitado, obliteramos o tempo passado na exaus-
tão de um presente sem fio. Para nós, esquecer e lembrar fazem parte
de um emaranhado produzido pela escritura, pelo colocar em palavras
um possível (e falso) a priori. Se esquecemos recalcando, lembramos
o que incomoda.
Por outro lado, se o trauma é condição de necessidade do sujeito,
de que forma então o sujeito que escreve coloca-o em pauta na rede sim-
bólica do ato de escrever? De que forma ele constitui um problema teó-
rico e analítico na sua escritura misturando documentos, história oral,
ficção e reflexão meta-ficcional para experimentar uma espécie de bio-
grafia, por exemplo? No ato mesmo do arquivar, já arquivado, a relação
problemática com o seu passado, sob o trágico da opacidade da história,
tanto aquela em que ele vive, quanto aquela em que ele é levado a es-
crever, constitui um embrião de um trabalho sobre o luto, luto de uma
história contada, luto através de uma estética de montagem, de cola-
gem, fragmentado de ruínas, de parcelas, de cascas, de lascas arrancadas
de uma possível memória e que, a partir dela, o sujeito confronta o pas-
sado desmitificando-o.
E, mais, o quanto escrever é fazer falar algo que é impossível dizer.
O quanto escrever é juntar peças de um lembrar, arrancando da própria
pele pistas, resíduos insólitos de um esquecer e dessa forma, os modos
de inscrição histórica de um devir. Devir, não obstante, como sabe-
mos quase sempre com um certo teor de generalidades higienizantes
(Pêcheux, 2016), estruturadas, por sua vez, por uma certa memória his-
tórica que permanece, no entanto, suspensa e que, provocada pelas suas
margens, recorta, extrai, movimenta algo do irredutível, remoendo não o
testemunho em si, mas fazendo falar algo do impossível, do inumano,
nos restos de um horror, migalhas de um sobreviver do e no descontínuo
(KLUGER, 2005).
Por consequência, acaba tornando-se um devir outro, deslineari-
zando aquilo que geralmente nos calamos face ao inconcebível e, em um
impulso corajoso de suportar a escavação da memória para escrever

333
RESTOS DE HORROR

sobre algo que foi também difícil testemunhar. Certo, as feridas aflo-
ram, a experiência do trauma vem à pele, arrancando as cascas, as lascas
do tempo, essa coisa não escrita que tento ler (DIDI-HUBERMAN, 2019, p.
10), mesmo acinzentada pela memória do dizer.

Um tempo em suspenso: a pandemia

É sintomático que a única construção humana que pode


ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande
Muralha foi erguida para proteger a China das guerras
e das invasões. A Muralha não evitou conflitos, nem pa-
rou os invasores. Possivelmente, morreram mais chine-
ses construindo a Muralha do que vítima das invasões
do Norte. Diz-se que alguns dos que morreram foram
emparedados na muralha. Esses corpos convertidos
em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo
nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem
pobres e ricos. Mas não há hoje muro que separe os que
têm medo dos que não têm medo. Sob nuvens cinzentas
domesticamos os nossos sonhos e encolhemos as nossas
esperanças (COUTO, 2011, p.26 e 28).

Entre o arquivar, o escrever e o esquecer no lembrar, fomos traçando


conjecturas em um caminho sem volta, tentando, a toda a prova, cons-
truir e constituir, sob um efeito de um acontecimento, a nossa proble-
mática de pesquisa. Todavia o que seria por alguns dias, foi se intensifi-
cando gradativamente e de forma intensa. Fomos, pelo acontecimento,
engolidos pelo inesperado, pelo inaudível, pelo invisível. Muramos nos-
sas vidas e nosso fazer acadêmico. O medo fez-se cada vez mais forte.
Emparedados em nossos home office, incrustrados pela Covid-19, nosso
projeto foi aos poucos sendo redimensionado. Vale dizer que nosso ob-
jeto de estudo, dentro do Projeto “Restos de Horror: efeitos de ditadura,
memória e luto cá e lá” (FAPESP, 2018 a 2020), tinha como direção in-

334
RESTOS DE HORROR

vestigar os desdobramentos de um arquivo – suspenso – pelo institucio-


nal, em um espaço por demais prosaico em uma cidade conhecida como
universitária. Tal espaço era assaz significado nas redes de relações en-
tre os jovens universitários em uma certa época. Inclusive, naquela épo-
ca, era metaforizado como o lugar da algazarra, da boemia, ou ainda,
o ponto de encontro de "maconheiros e subversivos", sobretudo nos anos
que antecediam à Ditadura Militar. No entanto, a partir de abril de 1964,
ele será interditado em um primeiro e longo momento e, depois, libera-
do ao ensejo do entretenimento, movimentando uma memória de diver-
timento, dando voz a um institucional que não tinha lá essas garantias.
Nós nos propúnhamos realizar um documentário, no cronogra-
ma inicial, a partir de entrevistas escritas sobre a história de tal espaço
em um antes, um durante e um após Ditadura Militar. Também preví-
amos organizar uma exposição sobre o material coletado. Nosso fun-
damento estava alicerçado nos efeitos do testemunho, na trama dessas
entrevistas, para procurar entender o inclassificável, o inconfessável e a
superavaliação de si e do outro, em um nó coletivo enredado pela me-
mória, estudando o efeito de ficcionalização em nosso gesto de análise.
Ao nosso ver, como já assinalamos anteriormente, o lembrar tanto pode
acontecer pelo reproduzir ou pelo transformar já que, na tessitura da es-
critura, projetávamos identificar os acréscimos, as digressões, os mo-
vimentos de sentido nos fatos contados e alimentados pelas paisagens
da memória. Para nós, pelo ficcional, poderia haver um atravessamen-
to narrativo constitutivo do sujeito que lembra, mesmo esquecendo.
Defendemos que a escritura (mesmo pela entrevista na sua materialida-
de escrita) é uma espécie de confissão, uma espécie de exposição volun-
tária de uma interioridade, solidificando, dessa forma, a fronteira entre
o público e o privado (HERMON, 2006), chacoalhando, com toda a força,
o inconsciente, na busca de um real impossível.
Na verdade, nossa vontade era atravessar o quarteirão, percorren-
do ruas, antigos bares nos arredores, paisagens essas sendo os leitmoti-
vs de uma escritura, para tentar desmantelar, pela memória, o esqueci-
mento que procuramos combater quando não lembramos. Este diálogo
permanente, algumas vezes conflitante, mas nunca indiferente, do con-

335
RESTOS DE HORROR

tar e do escrever pelo lembrar, como no dizer de Régine Robin (2019):


Ces lampes qu'on a oublié d'éteindre9. Nesse atravessar o quarteirão, como
em uma gaveta de guardados, a porosidade das fronteiras entre o lem-
brar e o esquecer, ao nosso ver, poderiam desarrumar nossas obsessões
sobre o medo, mas também aquela memória fragmentária, impossível
de apreendê-la, os restos de horror de uma Ditadura Militar no Brasil
do século XX e que retorna sem cessar em nosso imaginário da contem-
poraneidade. Lascas de um tempo passado, mas tão presente. Avessas
ao caderno de anotações, que nos servem de suporte para a escritura
e nos fazem tomar posição. Garimpo de nossos sonhos, fanfarronando
nossas ilusões...

Referências

AGAMBEN, G. Quando a casa queima.Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2021.


CANETTI, E. Les cris des aveugles. In.  : Les voix de Marrakech – journal
d’un voyage. Paris  : Albin Michel (traduction de l’allemand par François
Ponthier),1980.
______. A língua absolvida: história de uma juventude. Tradução de Kurt
Jahn. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1987.
COUTO, M. Murer la peur murar o medo. Paris: Chandeigne, 2011.
DIDI-HUBERMAN, G. Cascas. Tradução de André Telles. São Paulo: Editora 34
Ltda, 2019.
FENOGLIO, I.; BOUCHERON-PETILLON, S. Avant-propos in Langages, n. 147.
Paris: Larousse, 2002.
HEMON, A. Guerre, écriture, littérature. In: ___. De la mémoire du réel, à la
memóire de la langue. Nantes: Editions Cécile Defaut, 2006.
KLUGER, R. Paisagens da memória – autobiografia de uma sobrevivente do
Holocausto- São Paulo: Editora 34, 2005.
LEVI, P. Le devoir de mémoire (entretien avec Anna Bravo et Frederico Cereja),
Paris : Editions Mille et une nuits, numéro 50, 1995.

9 Tradução nossa: Estas lâmpadas que esquecemos de apagar.

336
RESTOS DE HORROR

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho


simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2004.
PECHEUX, M.; Conein, B.; Courtine, J.-J; Gadet, F.; Marandin, J-M.
Materialidades discursivas, Campinas : Editora da UNICAMP, 2016.
ROBIN, R. A memória saturada. Campinas: Editora da UNICAMP, 2016.
_______. Ces lampes qu’on a oublié d’éteindre. Québec, Canadá : Editions du
Boréal, 2019.

337
NOTAS SOBRE OS AUTORES

Amanda E. Scherer
Professora Titular de Linguística do Departamento de Letras Clássicas e
Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora do
Laboratório Corpus (UFSM) e professora do Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFSM. Possui doutorado em Linguística, Semiótica e Comunicação
pela Université de Franche-Comté e pós-doutorado pela Université de Rennes
2, França. Tem experiência na área de Linguística com ênfase em Análise de
Discurso e História das Ideias Linguísticas trabalhando com o tema: sujeito,
língua e memória. Atualmente, é Coordenadora Geral do Espaço Multidisciplinar
de Pesquisa e Extensão da UFSM–Silveira Martins. 

Aline Fernandes de Azevedo Bocchi


Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade de Franca, onde coordena o LabES–Laboratório Escutas do
Social e orienta alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado. Bacharel
em Jornalismo (UNESP), especialista em Psicanálise (UNIFRAN), mestra em
Ciências da Comunicação (USP) e doutora em Linguística (UNICAMP). Realizou
pós-doutoramento no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, sob
supervisão do prof. Dr. Lauro Baldini, e na Université Paris 13, com supervisão
da profa. Dra. Marie-Anne Paveau, ambos com financiamento Capes. Realizou
pós-doutoramento na FFCLRP/USP, sob supervisão da profa. Dra. Lucília Maria
Abrahão e Sousa, com financiamento Fapesp. É vice-líder do GTeDi e participante
das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano/SP. Atua como psicanalista
em clínica particular. É editora assistente da revista Diálogos Pertinentes desde
2020, onde realiza trabalhos de editoração e organização de periódicos.

339
RESTOS DE HORROR

Andréia da Silva Daltoé


Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS;
Mestre em Ciências da Linguagem pelo PPGCL – Universidade do Sul de Santa
Catarina – Unisul; Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua
Portuguesa – Unisul; Graduada em Letras – Unisul. Realizou Estágio de Pós-
Doutorado no IEL–Unicamp e no Professora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem – PPGCL da Unisul; Líder do Grupo de Pesquisa Relações
de Poder, Esquecimento e Memória (GREPEM- CNPq/UNISUL) e do Coletivo
Pró-Educação (Tubarão/SC); Integrante do Grupo de Estudos Pecheutianos
(GEP-CNPq/Unipampa).

Dantielli Assumpção Garcia


Docente da Graduação e da Pós-Graduação em Letras na Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista Produtividade Fundação Araucária/PR.
Pós-Doutora em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (PNPD/
CAPES). Pós-Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto-FFCLRP/USP (FAPESP). Graduada em Letras pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005), mestrado em Estudos Linguísticos (2008)
e doutorado em Estudos Linguísticos também pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (2011).

Edson Luiz André de Sousa


Psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA), Doutorado e Pós-Doutorado na Universidade de Paris VII, Pós-
doutorado na EHEESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales). Professor
titular aposentado do Instituto de Psicologia da UFRGS. Professor visitante na
Deakin University (Melbourne), Instituto de Estudos Críticos (México), De Paul
University (Chicago) e University of Limerick (Irlanda). Autor entre outros:
Imaginar o Amanhã,  em co-autoria com Abrão Slavutzky (Diadorim), Uma
invenção da Utopia ( Lumme editora), Freud: Ciência, Arte e Política em co-
autoria com Paulo Endo (LPM). Coordena com Maira Brum Rieck o Museu das
Memórias (in)possíveis da APPOA.

340
RESTOS DE HORROR

Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco


Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Como pesquisador de
Pós-Doutorado vinculado ao International Research Group on Authoritarianism
and Counter-Strategies (IRGAC), do Rosa-Luxemburg-Stiftung, e ao
Departamento de Psicologia Clínica do IP-USP, investiga necropolítica e a gestão
do sofrimento psíquico no contexto do neoliberalismo no Brasil. Ocupa também
os cargos de Pesquisador-Visitante na Cátedra de “Sociology of the Future of
Work” na Einstein Center Digital Future e na Humboldt-Universität zu Berlin
(Alemanha), e de Professor-Convidado da PUC-SP, onde ministra as disciplinas
de Teoria Psicanalítica. É, ainda, Psicanalista Membro do Fórum do Campo
Lacaniano de São Paulo e Pesquisador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia
e Psicanálise (Latesfip-USP). Atuou como consultor da Unesco entre 2014 e 2015,
junto à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, e, de 2015 a
2016, foi assessor da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria
de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura Municipal de São Paulo.

Fábio Ramos Barbosa Filho


Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É líder
do DARQ–Grupo de Pesquisa Discurso e Arquivo (UFRGS/CNPq). 

Juan Manuel Lopez Muñoz


Licenciado em Filologia Românica, doutor em Filologia francesa, professor
de análise do discurso, semântica e pragmática do Departamento de Francês
da Universidade de Cadiz (Espanha). Foi Oliver Smithies Visiting Fellow na
Universidade de Oxford (Reino Unido) em 2008-2009, professor visitante no Centro
de Investigação Interdisciplinar e Transcultural da Universidade de Franche-
Comté em Besançon (França) em 2011, professor visitante na Universidade
de Gafsa (Tunísia) em 2014, e professor visitante no Laboratório Corpus da
Universidade Federal de Santa Maria (Brasil), em 2016. Ele é membro do grupo de
pesquisa “Estudos franceses” PAI HUM160 da Universidade de Cádiz e membro
do grupo internacional de linguística CI-DIT (Universidade Libre de Bruselas).
Suas publicações estão focadas principalmente nos conceitos de “discurso” e
“identidade” em vários tipos de textos, medievais e contemporâneos. Atualmente
participa do projeto: Sociedade da Informação: memória e tecnologias, CAPES

341
RESTOS DE HORROR

PRINT (Brasil) coordenado por Dr. Cesar de David da Universidade Federal de


Santa Maria (UFSM / RS / Brasil).

Lucília Maria Abrahão e Sousa


Possui Graduação em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá (1990).
Doutorado em Psicologia pela FFCLRP/USP (2002). Livre-docente em Ciência
da Informação e Documentação pela mesma instituição (2010). Coordenadora
do Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito”, cadastrado
junto ao Diretório de Grupos do CNPQ, e do “E-L@DIS, Laboratório Discursivo
– sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos”, financiado pela FAPESP.
Bolsista de produtividade do CNPQ. Membro do Fórum do Campo Lacaniano/ SP.
(FAPESP).

Lauro Baldini
Docente do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) da UNICAMP. É membro fundador do Centro de Pesquisa PoEHMaS (Política,
Enunciação, História, Materialidades, Sexualidades), líder do Grupo de Pesquisa
PsiPoliS (Psicanálise, Política, Significante), e pesquisador do Grupo de Pesquisa
Mulheres em Discurso. É membro fundador e um dos coordenadores do Coletivo
Estação Psicanálise, que oferece atendimento psicanalítico gratuito na Estação
Cultura, em Campinas.

Maria Cleci Venturini


Professora Associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste–UNICENTRO.,
atua na graduação e na pós-graduação na PPGL–UNICENTRO e PPGLET–
UFPR. Líder do Grupo de Pesquisa Interinstitucional UNICENTRO E UFPR “
Estudos do Texto e do Discurso: entrelaçamentos teóricos e analíticos–GPTD”
e coordenadora do Laboratório de Estudos Linguísticos e Literários–LABELL.
Orienta IC, mestrado e doutorado. É coordenadora da área de Linguística, Letras
e Artes da Fundação Araucária/PR.

Maria Cláudia Maia Brasil


Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano–RJ,
Doutora em Estudos de Linguagem pela UFF e Mestre em Literatura pela PUC-
Rio. Pesquisa a constituição da língua/linguagem na criança, articulando a teoria

342
RESTOS DE HORROR

psicanalítica com o aporte da Linguística estrutural, desenvolvendo esse trabalho


de psicanalista de crianças, desde 1996, numa instituição de educação infantil,
no Rio de Janeiro.

Marilda Aparecida Lachovski


Doutora em Letras–Estudos Linguísticos, Programa de Pós-Graduação em
Letras. Universidade Estadual de Santa Maria, UFSM/RS. Mestre em Letras pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste–UNICENTRO/PR, Interfaces entre
Língua e Literatura. Especialista em Educação do Campo, Letras e Diversidade
Escolar. Graduada em Letras e suas Literaturas, e História, (UNICENTRO/PR). É
professora na rede estadual de ensino, SEED/PR. 

Mirela Schröpfer Klein


Doutoranda em Letras, área de concentração em Estudos Linguísticos, pela UFSM,
sob orientação da Profa. Dra. Amanda Scherer, com bolsa da Coordenação de
Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Letras também
pela UFSM (2021). Realiza suas pesquisas filiando-se à Análise de Discurso, com
especial interesse em temas relacionados aos discursos sobre a região das Missões
do Rio Grande do Sul.

Marcos Barbai
Possui mestrado (2004) e doutorado (2008) em Linguística, pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). É pesquisador do Laboratório de Estudos
Urbanos, do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da UNICAMP (desde
2010) e professor do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e
Cultural (IEL/Labjor). Realizou estágio de doutoramento e Pós-doutorado na
Universidade de Paris 3. Tem experiência em Linguística, com ênfase em Análise
de Discurso. É Psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. 

Rogério Modesto
Professor do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa
Cruz (UESC), atuando como docente na graduação em Letras e no Programa de
Pós-graduação em Letras: Linguagens e Representações. Doutor e mestre em
Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É líder do grupo
de pesquisa DTeR–Discurso e Tensões Raciais (DLA/UESC/CNPq) e membro da

343
RESTOS DE HORROR

REPENSE–Rede de Pesquisadores Negres de Estudos da Linguagem. Desenvolve


atualmente o Projeto de Pesquisa “Tensões raciais na discursividade da língua”
(DLA/UESC). Seus interesses de pesquisa giram em torno das seguintes temáticas:
Análise de Discurso, História das Ideias Linguísticas, Saber Urbano e Linguagem,
discurso da/na cidade, discurso e arquivo, denúncia e resistência, discurso e
relações raciais.

Paola Capponi
Profesora titular de lengua española en la Universidad de Turín, ha trabajado en la
Universidad Pablo de Olavide de Sevilla y realizado estancias de investigación en
las universidades de Oxford, Lovaina y Ciudad de México (UNAM). Su investigación
se centra en lexicología, lingüística contrastiva y léxico de la astronomía (I nomi
di Orione. La lingua dell’astronomia tra scienza e tradizione, Venezia, Marsilio 2005;
La stella perduta. Le Pleiadi nella tradizione mitologica e popolare, Alessandria,
Dell’Orso 2010). Más recientemente sus intereses de han dirigido hacia el estudio
de los discursos intimidatorios. Parte de los resultados se ven plasmados en la
edición de un volumen monográfico (J.M. López Muñoz, P. Capponi, Os discursos
de intimidação de onde eles vêm e para onde vão?, «Fragmentum», 50//2017).

Paulo Ricardo de Araújo Miranda


Psicanalista. Psicólogo. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Atualmente participa das Formações Clínicas do Campo
Lacaniano de São Paulo.

Pedro de Souza
Possui mestrado em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (1987) e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de
Campinas (1993). Entre suas principais pesquisas e missões de estudo no exterior,
destaca o estudo, em nível de pós-doutorado, realizado e 2007, na École Normale
Supérieur, Lyon, sobre performance vocal nos ditos e escritos de Michel Foucault.
Dedica-se com maior intensidade aos projetos sobre voz e subjetivação na
palavra cantada, contribuindo para a construção de um arquivo sobre canção e
voz cantante no domínio da música popular brasileira, já contando com dezenas
de publicações sobre esses estudos. Segue sendo um dos principais estudiosos de
Michel Foucault no campo da Linguística e da Literatura. Atualmente é professor
Titular da Universidade Federal de Santa Catarina.

344
RESTOS DE HORROR

Thales de Medeiros Ribeiro


Doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp)
e pós-doutorando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
(FFCLRP/USP), sob a supervisão da Profa. Dra. Lucília Maria Abrahão e Sousa.
É Membro do Laboratório Discursivo El@dis e do grupo de pesquisa “Discurso
e memória: movimentos do sujeito”. Juntamente com o Prof. Dr. Lauro Baldini,
coordena o grupo de pesquisa  PsiPoliS  (Psicanálise, Política, Significante). As
reflexões apresentadas neste ensaio compõem parte da tese  Literatura cinza:
uma (sub)versão do luto em Inventário de cicatrizes (RIBEIRO, 2020), orientada
pelo Prof. Dr. Lauro José Siqueira Baldini

Valdemir de Souza Vicente


Mestrando em Estudos da Linguagem, com ênfase em análises textuais,
discursivas e enunciativas e graduando em Filosofia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Graduado em Licenciatura plena em Língua Portuguesa,
Língua Espanhola e respectivas literaturas pela Pontifícia Universidade do Rio
Grande do Sul. É professor em Língua Portuguesa, Língua Espanhola e Redação
na rede privada de ensino em Cachoeirinha/ RS.

Verli Petri
Professora associada da Universidade Federal de Santa Maria (DLV) e
é orientadora de trabalhos de iniciação científica, mestrado e doutorado (PPGL).
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Análise de Discurso e História
das Ideias Linguísticas. É a líder do Grupo de Estudos Palavra, Língua e Discurso–
PALLIND. É pesquisadora do Laboratório Corpus e do Centro de Documentação e
Memória, na UFSM. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq–PQ2.

345
A história de qualquer formação social é a história de horrores
perpetrados. Reivindicados pela memória, são condenados ou
celebrados, mas raramente se dissipam porque cumprem um expediente
fundamental na produção do imaginário social: fundam posições,
lugares de identificação, sustentam discursividades que organizam as
formas de vida e morte. Comparecem como objetos preponderantes
dos usos políticos do esquecimento e do memorável. É justamente por
isso que os arquivos, traços intervalares desses acontecimentos, não
são provas que representam o acontecido, mas objetos em disputa na
elaboração conflituosa do passado, presente e futuro.
Pensemos no Brasil, cujo horror nos toca mais de perto. Não seria
exagero dizer que este país foi erigido no horror da violência colonial,
do assassinato e da conversão dos povos originários; do tráfico
transatlântico de africanos, vidas transformadas em insumos do
modo de produção escravista; da ditadura civil-militar; da violência
de Estado contra negros, mulheres, transexuais, indígenas e demais
minorias. Elemento constitutivo da composição de uma formação
social, o horror ocupa, no entanto, as frestas de um imaginário nacional
marcado cinicamente pela sua negação: unidade, mistura harmônica
de raças, cordialidade.
A história de qualquer formação
perpetrados. Reivindicados pela
celebrados, mas raramente se dissip
fundamental na produção do im
Lauro Baldini - Docente do Departamen- lugares
Amanda de identifi
E. Scherer cação,Titular
- Professora sustentam
to de Linguística do Instituto de Estudos da formas de vida e morte. Compare
de Linguística do Departamento de Letras
Linguagem (IEL) da UNICAMP. É membro Clássicas
dos eusos
Linguística da Universidade
políticos Fe-
do esquecimento
fundador do Centro de Pesquisa PoEHMaS deral de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora
isso que os arquivos, traços interv
(Política, Enunciação, História, Materia- do Laboratório Corpus (UFSM) e professora
lidades, Sexualidades), líder do Grupo de
são provas que representam o acon
do Programa de Pós-Graduação em Letras
Pesquisa PsiPoliS (Psicanálise, Política, elaboração conflituosa do passado,
da UFSM.
Significante), e pesquisador do Grupo de
Pensemos no Brasil, cujo horror n
Pesquisa Mulheres em Discurso. É membro
fundador e um dos coordenadores do Cole-
exagero dizer que este país foi erig
tivo Estação Psicanálise, que oferece aten- do assassinato e da conversão d
dimento psicanalítico gratuito na Estação transatlântico de africanos, vida
Cultura, em Campinas. modo de produção escravista; da
de Estado contra negros, mulhere
minorias.
Dantielli Elemento
Assumpção Garcia constitutivo
- Docente
da Graduação e da Pós-Graduação
social, o horror ocupa, no ementanto,
Le- a
tras na Universidade Estadual do Oeste do
marcado cinicamente pela sua neg
Paraná (UNIOESTE). Bolsista Produtivida-
de raças, cordialidade.
de Fundação Araucária/PR.

Lucília Maria Abrahão e Sousa - Do-


cente na Graduação e Pós-Graduação da
FFCLRP/USP. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa “Discurso e memória: movimentos
do sujeito”, cadastrado junto ao Diretório de
Grupos do CNPQ, e do “E-L@DIS, Labora-
tório Discursivo – sujeito, rede eletrônica Fábio Ramos Barbosa Filho - Profes-
e sentidos em movimentos”, financiado sor do Departamento de Letras Clássicas e
pela FAPESP. Bolsista de produtividade do Vernáculas e do Programa de Pós-Gradua-
CNPQ. Membro do Fórum do Campo Laca- ção em Letras da Universidade Federal do
niano/ SP. (FAPESP). Rio Grande do Sul. É líder do DARQ - Grupo
de Pesquisa Discurso e Arquivo (UFRGS/
CNPq).

Você também pode gostar