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Por Louis Althusser, via Trondheim Academy of Fine Art, traduzido por
Reginaldo Gomes
Enquanto eu estava no salão da Bienal de Veneza onde Cremonini exibia suas telas
admiráveis, dois franceses entraram, deram uma olhada rápida, tomaram a porta, e um
disse ao outro: “Sem interesse: expressionismo!”. Desde então, encontrei a mesma
palavra sob a pena da crítica de arte. Aplicado a Cremonini, o termo “expressionismo” é
o indício surpreendente de um mal-entendido. Afinal, esse é o mal-entendido de todo
julgamento crítico (e, portanto, de toda estética) que é apenas um comentário, mesmo
teórico, do consumo estético: o mal-entendido dominante da crítica de arte
contemporânea que, quando não veste o seu “julgamento” no esoterismo de um
vocabulário onde cúmplices de um desconhecimento apenas comunicam sua
cumplicidade, mas consente em falar uma linguagem nua, revela a todos que não é mais
do que um ramo do gosto, ou seja, da gastronomia.
Para “ver” Cremonini, e sobretudo para falar do que ele torna visível, temos que
abandonar as categorias da estética do consumo: é necessário outro olhar, diferente
daquele da concupiscência ou da degustação dos “objetos”. Toda a sua força de pintor
figurativo reside no fato de que ele não “pinta” “objetos” (essas ovelhas desmembradas;
esses cadáveres torturados; essa pedra; essas plantas; essa poltrona de 1900), nem
“lugares” (o mar, visto da pesada carcaça articulada de uma ilha, visto de uma janela
aberta para o ar; essa varanda pendurada no céu; esses quartos com guarda-roupas e
camas envernizadas; esse compartimento em um trem noturno), nem “horas” ou
momentos (a manhã ao amanhecer; a noite; o meio-dia em um pátio ensolarado, onde as
meninas jogam amarelinha). Cremonini “pinta” as relações, onde são tomados os
objetos, os lugares e as horas. Cremonini é um pintor da abstração. Não um pintor
abstrato, “pintando” uma possibilidade pura, ausente, em uma nova forma ou matéria,
mas um pintor do abstrato real, “pintando”, em um sentido que se deve definir, as
relações reais (como relações que são necessariamente abstratas) entre os “homens” e
suas “coisas”, ou melhor, se quisermos dar a esta palavra seu sentido mais forte, entre as
“coisas” e seus “homens”.
“Ver” essas relações nas telas de Cremonini é ao mesmo tempo entrar em outras
relações: aquelas entre o “artista” e sua “obra”, ou melhor, aquelas entre a obra
e seu artista. Também aqui, muitas vezes, a crítica de arte moderna pensa essas relações
nos mistérios da subjetividade do pintor, que inscreve seu “projeto criativo” na
materialidade ideal de sua “criação”. A estética do consumo e a estética da criação não
são mais do que uma só e mesma coisa: ambas dependem das mesmas categorias
ideológicas de base: (1) a categoria de sujeito, criador ou consumidor (produtor de uma
“obra”, produtor de um julgamento estético), dotado de atributos de subjetividade
(liberdade, projeto, ato de criação e julgamento, necessidade estética etc.); e (2) a
categoria de objeto (os “objetos” representam, retratados na obra, a obra como objeto,
produzido ou consumido). Assim, a subjetividade da criação nada mais é do que o
reflexo no espelho (e esse reflexo é a própria ideologia estética) da subjetividade do
consumo: a “obra” nada mais é do que o fenômeno da subjetividade do artista, seja essa
subjetividade psicológica ou estético-transcendental. Cremonini nos introduz a conceber
que o “mistério” da “interioridade” de um pintor, de seu “projeto criativo”, não é mais
do que sua própria obra, que as relações entre o pintor e sua “obra” nada mais são do
que as “relações” que ele “pinta”. Cremonini nos faz ver as relações entre as coisas e
seus homens. Ao mesmo tempo, ele nos faz ver, não as relações entre o pintor e sua
obra, que não tem existência estética, mas as relações entre uma “obra” e seu pintor, que
são ao mesmo tempo as relações entre essa obra e nós.
Toda a história individual da pintura de Cremonini não é mais do que um comentário
sobre essa necessidade: a refutação da pura subjetividade da produção, o reflexo no
espelho da subjetividade do consumo.
Esta história é interessante, não porque começou com um “objeto”, e continuou com
outro, mas pelos problemas enfrentados, nos quais esta história não é mais do que a
posição, a transformação e a resolução progressivas e tenazes.
De fato, Cremonini “começou” (temos que começar com algo) com o geológico: as
armações, as articulações, embaladas pelo peso e pela história, do corpo passivo de uma
ilha, adormecida no pesado esquecimento das rochas, à beira de um mar vazio, um
horizonte sem matéria. Mas ele já é o oposto de um pintor de “objetos”, um pintor de
paisagens. O que ele “pinta” sobre as rochas é o que elas ignoram: seu peso e memória
(esquecimento), ou seja, sua diferença em relação a algo diferente delas mesmas, do que
as faz o solo para os homens.
É bem provável que esse “projeto” ideológico tenha inspirado, isto é, assombrado,
Cremonini, e que a ilusão que continha fosse parte da disposição dos meios que
acabaram produzindo suas telas e sua própria história: o resultado (só ele existe para
nós: suas telas de que estamos falando) é precisamente algo completamente
diferente desse projeto “ideológico”. E as aproximações (as semelhanças) entre
as formas das quatro ordens (geológica, vegetal, animal, humana) não são de fato o
princípio organizacional dominante: elas mesmas estão sujeitas a outro princípio
organizacional, o das diferenças. Em certo momento, Cremonini pode ter acreditado que
estava pintando apenas as “semelhanças”, os “isomorfismos”, necessários para o
desenvolvimento do seu “projeto” ideológico de filiação das formas (rochas, plantas,
ossos articulados, ferramentas, gestos…): na verdade, essas semelhanças foram
submetidas a uma lógica completamente diferente: a das diferenças, que Cremonini
nunca deixou de pintar, e em primeiro lugar, a diferença com este projeto ideológico de
filiação das formas. Tudo isso pode ser “visto” claramente na última etapa da pintura de
Cremonini: os “homens”.
Os homens: eles tiveram em primeiro lugar, e ainda têm, a forma de suas “coisas”, das
“coisas”. Corpos e aspectos de pedra, traindo em seus objetos e gestos suas “origens”
primordiais: justamente esses ossos transpostos em ferramentas, esses cotovelos magros
articulados em braços de cadeiras, essas mulheres eretas como as barras de ferro de sua
varanda, com seus filhos na altura da cintura. Os homens: seres congelados em sua
essência, em seu passado, em sua origem, ou seja, em sua ausência, que os faz ser o que
são, sem ter pedido para viver, nem por quê. As “coisas”: essas ferramentas, esses
utensílios, muros, paredes que separam o interior do exterior, a sombra do ar, o brilho
do verniz gasto da limpidez áspera do céu. Os “homens”: moldados na matéria de seus
objetos, cercados por eles, tomados, e para sempre definidos; rostos corroídos pelo ar,
carcomidos e amputados (rostos quase demais), gestos e gritos congelados na gravidade
imutável, zombaria do tempo humano reduzido à eternidade, a da matéria.
Então, há poucos anos, começou a aparecer o que, surdamente, falava nessa História:
as relações entre os homens. Não é por acaso que, em Cremonini, esse objeto tomou a
forma de uma exploração de espelhos, sobretudo, de velhos espelhos de casas
populares, dos sórdidos guarda-roupas de 1900: homens que lutam com a sua única
riqueza, este passado miserável onde eles se olham. Onde eles se olham: não, onde
eles são olhados. São seus espelhos, sua miséria, que os fixa, voltando contra si
mesmos, o que quer que façam, seu único bem inalienável: a sua própria imagem.
Não se vê estas mulheres no banheiro, mas sim no espelho, mesmo aquela jovem não se
vê, embora vejamos seu desejo nu nas costas do espelho que ela segura na mão: são
seus espelhos que as veem, e veem o círculo de sua visão, embora seus espelhos sejam
cegos. Os espelhos veem os homens, até no sono e no amor: o implacável reflexo,
indiferente ao seu modelo, vê para nós estes seres de carne, de sono, de desejo e de
vigília, até no céu suspenso de sua vertigem. No entanto, em todas essas telas,
de alturas verticais: portas, janelas, paredes, muros, estão, onde se pinta a lei impiedosa
que governa os homens, mesmo em sua carne cansada: a gravidade da matéria, ou seja,
de suas vidas. Ninguém sustentará que seja por um encontro casual que as
grandes verticais das paredes e muros surjam, em Cremonini, no momento mesmo em
que ele passou a pintar em seus espelhos o círculo inexorável que domina as relações
entre os homens, pelas relações dos objetos com os seus homens. No círculo dos
espelhos está “figurada” uma referência completamente diferente daquela da
semelhança das formas, na ideologia de uma filiação. Os círculos dos espelhos
“figuram” que os objetos e suas formas, mesmo que sejam aparentados entre si, só o são
porque giram no mesmo círculo, porque estão sujeitos à mesma lei, que agora domina
“visivelmente”, as relações dos objetos com os seus homens.
Além disso, este círculo é realmente um círculo: ele “anda em círculos”, perdeu toda a
origem; mas, com a origem, também parece ter perdido toda a “determinação em última
instância”. Os homens e seus objetos nos remetem aos objetos e seus homens, e vice-
versa, interminavelmente. E, no entanto, o sentido deste círculo é fixado, à la
cantonade, pela sua diferença: esta diferença nada mais é do que a presença, ao lado do
círculo, das grandes verticais da gravidade, que “figuram” outra coisa que o reenvio dos
indivíduos-humanos aos indivíduos-objetos, e vice-versa, ao infinito, outra
coisa diferente desse círculo de existência ideológica: a determinação desse círculo por
sua diferença, por uma outra estrutura, não circular, por uma lei de outra natureza, uma
gravidade irredutível a qualquer Gênesis, que agora atormenta, com sua ausência
determinada, todas as telas de Cremonini.
Nas últimas obras, o círculo não precisa, para ser “pintado”, da presença física dos
espelhos. Ele se torna diretamente o círculo do interior e do exterior, o círculo dos
olhares e dos gestos tomados no círculo das coisas: assim, o interior do apartamento dos
vizinhos visto por uma janela, os vizinhos olhando para este outro interior de onde eles
são vistos; assim, os santos açougueiros se confundem com o gigantesco cadáver de boi
aberto que vasculham (círculo do homem e da besta), voltando-se para a janela (círculo
do interior e do exterior) onde a proibição atirou uma garotinha fugindo antes mesmo de
ela olhar para eles (círculo do desejo e da proibição); assim, o jogo “sem regras” das
crianças correndo entre os móveis – sem regras, já que sua regra não é mais do que a lei
da vedação de um espaço fechado, o único corpo de sua “liberdade”. No mundo finito
que os domina, Cremonini “pinta” assim (isto é, “figura” pelo jogo de semelhanças
inscritas nas diferenças) a história dos homens como história marcada, desde os
primeiros jogos da infância, e até mesmo no anonimato dos rostos (das crianças, das
mulheres e dos homens), pela abstração de seus lugares, de seus espaços, de seus
objetos, isto é, “em última instância”, pela abstração real que determina e resume essas
primeiras abstrações: as relações que constituem suas condições de vida.
Não quero dizer – porque não faria nenhum sentido – que possamos pintar as condições
de vida, pintar as relações sociais, pintar as relações de produção ou as formas da luta de
classes em uma dada sociedade. [2] Mas podemos “pintar”, através de seus objetos, as
relações visíveis tais como figuram, por sua disposição, a ausência determinada que as
governa. A estrutura que comanda a existência concreta dos homens, isto é, que informa
a ideologia vivida das relações dos homens com os objetos e com os homens, essa
estrutura nunca pode, como estrutura, ser figurada na presença, em pessoa, em positivo,
em relevo, mas somente, por traços e efeitos, em negativo, por índices de ausência, em
vazio. Este vazio, que “figura” uma ausência determinada, está precisamente inscrita
nas diferenças pertinentes mencionadas acima: no fato de um objeto pintado não se
conformar com sua essência, estar relacionado a outro que não ele mesmo; no fato de
que as relações habituais (por exemplo, as relações homens-objetos) são invertidas e
deslocadas; no fato, enfim, que resume tudo, que Cremonini nunca pode pintar um
círculo sem pintar ao mesmo tempo, à la cantonade, ou seja, ao lado e à distância do
círculo, mas ao mesmo tempo que ele, e perto dele, que desafia sua lei, e “figura” a
eficácia de outra lei, ausente em pessoa: as grandes verticais.
Enfim, o último efeito desta necessidade: o da eficácia das relações abstratas que são o
objeto ausente da pintura de Cremonini: o que acontece aos rostos humanos. Gritaram
expressionismo diante desses rostos deformados, às vezes aparentemente monstruosos,
senão disformes. Assim, se permanece em uma ideologia humanista-religiosa da função
do rosto humano na arte, ao mesmo tempo que em uma ideologia idealista do feio (a
estética do feio é a ideologia do expressionismo), que confunde a deformação com
a deformidade. A função da ideologia humanista-religiosa do rosto humano é ser a sede
da “alma”, da subjetividade e, portanto, a prova visível da existência do sujeito humano,
em toda a força ideológica do conceito de sujeito (centro a partir do qual o “mundo” se
origina, porque o sujeito humano é o centro de seu mundo, como um sujeito perceptivo,
como um sujeito ativo “criador”, como sujeito livre e, portanto, responsável por seus
objetos e seus sentidos). A partir dessas premissas ideológicas, é óbvio que o rosto
humano só pode ser pintado em sua individualidade identificável, portanto,
reconhecível (esses traços individualizantes), e reconhecíveis mesmo nas variações de
sua singularidade (esses sentimentos, que “expressam” a qualidade e a função religiosa
desse sujeito, centro e fonte do seu “mundo”). A estética da deformidade (do feio) não
é, em princípio, a crítica nem a revogação dessas categorias humanistas-ideológicas,
mas uma de suas variações simples. É por isso que os rostos humanos de Cremonini não
são expressionistas, pois não são disformes, mas deformados: sua deformação é apenas
uma ausência determinada de forma, “figuração” de seu anonimato, e é esse anonimato
que constitui a revogação efetiva das categorias da ideologia humanista. Propriamente
falando, a deformação que Cremonini faz sofrer seus rostos é uma
deformação determinada, na medida em que não substitui uma identidade por outra em
um rosto, em que não dá aos rostos tal “expressão” (da alma, do sujeito), em vez de lhe
dar outra: retira-lhes, com toda a expressão, a função ideológica que esta expressão
assegura nas cumplicidades da ideologia humanista da arte. Se os rostos de Cremonini
estão deformados, é porque não possuem a forma de individualidade, ou seja,
de subjetividade, na qual os “homens” reconhecem imediatamente que o homem é o
sujeito, o centro, o autor, o “criador” de seus objetos e de seu mundo. Os rostos
humanos de Cremonini são tais que não podem ser vistos, isto é, identificados como
portadores da função ideológica de expressão de sujeitos. É por isso que são tão mal
representados, apenas esboçados, como se, em vez de serem os atores de seus gestos,
fossem apenas o traço. Eles são assombrados por uma ausência: uma ausência
puramente negativa, a da função humanista que os rejeita, e que é rejeitada por eles; e
uma ausência positiva, determinada, aquela da estrutura do mundo que os determina,
que os faz ser os seres anônimos que são, efeitos estruturais das relações reais que os
governam. Se estes rostos são “inexpressivos”, porque não estão individualizados na
forma ideológica de sujeitos identificáveis, é porque não são a expressão de sua “alma”,
mas a expressão, se você quiser (mas este termo é inadequado: seria melhor dizer efeito
estrutural), de uma ausência, visível neles, das relações estruturais que governam seu
mundo, seus gestos e mesmo sua liberdade vivida. Todo o “homem” está muito presente
na obra de Cremonini, mas justamente porque ele não está, porque sua dupla ausência
(negativa, positiva) é sua existência mesma. É por isso que sua pintura é profundamente
anti-humanista, e materialista. É também por isso que sua pintura interdita ao espectador
as cumplicidades da comunhão na partilha complacente do pão humanista,
cumplicidade pela qual o espectador é confirmado em sua ideologia espontânea pela sua
figuração “pintada”. É porque, enfim, sua pintura o interdita de se reconhecer, como
“criador”, e de se entregar às telas que pinta: pois suas telas são a refutação em ato da
ideologia da criação, mesmo que fosse estética. Este desvio impede Cremonini de
se repetir, isto é, compadecer-se neste reconhecimento, e ele não pode se repetir porque
sua pintura interdita esse reconhecimento. Se ele continua a descobrir e, portanto, a
mudar, não é, como os outros, por gosto ou exercício de virtuosismo, mas pela lógica
mesma do que faz, e desde o início, apesar de seu ponto de partida, e do “projeto
ideológico” do qual ele partiu. Que um indivíduo possa até esse ponto abstrair-se de sua
pintura, isto é, recusar nela todos os benefícios da complacência do reconhecimento de
si, que uma pintura possa a esse ponto fazer abstração de seu pintor (ou seja, recusar a
ser seu próprio espelho ideológico, o reflexo de uma ideologia da “criação estética”), é
aqui o que se vincula profundamente ao significado desta pintura. Se Cremonini “pinta”
as relações “abstratas”, se ele é de fato esse pintor da abstração que tentamos definir, ele
não pode “pintar” esta abstração se não na condição de estar presente em sua pintura na
forma determinada das relações que ele pinta: na forma de sua ausência, isto é, na
forma de sua própria ausência.
Toda obra de arte nasce de um projeto ao mesmo tempo estético e ideológico. Quando
ela existe, como obra de arte, produz, enquanto obra de arte (pelo tipo de crítica e
conhecimento que instaura no aspecto da ideologia que nos mostra), um
efeito ideológico. Se, como bem assinalou Establet [3] em um recente e muito breve
artigo, a “cultura” é o nome comum do conceito marxista do ideológico, a obra de arte,
enquanto objeto estético, não pertence mais à “cultura” do que pertence à “cultura” um
instrumento de produção (uma locomotiva) ou os conhecimentos científicos. Mas, como
qualquer outro objeto, incluindo um instrumento de produção e um conhecimento, ou
mesmo o corpo das ciências, uma obra de arte pode se tornar
um elemento do ideológico, ou seja, inserir-se no sistema de relações que constituem o
ideológico, onde se refletem, em uma relação imaginária, as relações que os “homens”
(isto é, os membros das classes sociais, em nossa sociedade de classes) mantêm com as
relações estruturais que constituem suas “condições de existência”. Talvez até possamos
avançar a seguinte proposição, que a função específica da obra de arte é mostrar, pela
distância que ela instaura com ela, a realidade da ideologia existente (desta ou daquela
de suas formas), a obra de arte não pode não exercer um efeito diretamente ideológico,
que ela mantém com a ideologia uma relação mais próxima do que qualquer
outro objeto, e que não é possível pensar a obra de arte, em sua existência
especificamente estética, sem levar em conta esta relação privilegiada com a ideologia,
isto é, sem levar em conta seu efeito ideológico direto e inevitável. Do mesmo modo
que tanto um grande filósofo como um grande político revolucionário têm em conta em
seu próprio pensamento os efeitos históricos de sua tomada de posição, mesmo dentro
do sistema rigoroso e objetivo de seu próprio pensamento – um grande artista não pode
deixar de levar em conta, em sua própria obra, em sua disposição e economia interior,
os efeitos ideológicos necessariamente produzidos por sua existência. Se é
perfeitamente lúcido ou não, é outra questão. De todo modo, sabemos que a
“consciência” é secundária, mesmo quando ela pensa, no princípio do materialismo, sua
posição derivada e condicionada.
Notas:
[1]. A tradução que agora se publica, é feita a partir dessa segunda versão, não contendo
as notas anexas nos Écrits philosophiques et politiques Vol. II que trazem as
comparações entre essa versão e a versão anterior. As duas notas abaixo são de autoria
do próprio Althusser. (Nota do tradutor)
[2]. Este é, em meu juízo, o erro da encenação de Georges Dandin, de Planchon, pelo
menos tal como eu vi em Avignon em julho de 1966: não se pode encenar em pessoa as
classes sociais, em um texto que não trata mais do que alguns de seus efeitos estruturais.