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baixa quanto maior o numero de vasos de nível baixo. E incoerencia da forma (que o sr. Caillois atribui a ignorancia
tanto mais violentamente 1quanto maior a margem entre os e á má fé) quanto a incoerencia de nossa propria civilização.
uiveis superior e inferior Por isso tratemos de elevar ra- O sr. Roger Caillois não quer entretanto que a literatura
pidamente o nosso. exprima o. presente, considCr~ndo que essa preocupação
"nova" já por si assinala a renuncia á qualidade e á duração.
Novembro, 29 - Roger Caillois, que esteve entre nós ;Mas eu indago: quando abandonou a literatura a ambição de
de uma feita e de quem conhecemos varios estudos de so- -ser: o espelho de seu tempo? E se carece agora de duração
ciologia e de estetica, vem de publicar um novo e curioso não será por ter refletido a epoca e sim por ser esta de transi-
volume: Babel (N. R. F. - Paris 1949). Esse escritor de ção? E' certo que não desejamos mal o "tecido inalteravel
sabor classico, que lembra La Bruyere pela sua concisão e ao uso" nem a joia "que se transmite de geraçã'o a !!eração".
al!,udeza, insurge-se contra o relaxamento da literatura mo- Isso porem não depõe contra a literatura que espélha tais
derna. argumentando com uma logica apaixonada, que im· tendencias, depõe contra as p1•oprias tendencias, e mais ainda:
pressiona. Como sociologo o sr. Roger Caillois não encara contra a nossa civilização. A literatura1 que não o rel!istrasse,
esRe fenomeno .de um imgulo exclusivamente estetico. Ele porqu.e atenta ao ~terno, á duração, seria uma literatura
vê mais longe e mais fundo, encontrando como razão remo· morta, convencional.
ta da atual bagunça liteT~ri a (que não é sem encantos) a re· Igualmente errado me parece dizer do escritor de hoie
volta do individuo contra a sua sociedade. Desajustamentó que persegue apenas a ori,!Zinalidade e não a excelencia. E'
cultural? Sem duvida, e não falta quem o tenha estuda.do possível qtte a obra literaria de nosso tempo não alcance essa
em todos os porrmenores. Já se tornou um truismo a frase -excelencia (tão dificil e tão rara mesmo no passado), mas
"epoca de transição". Ora a transii;ão implica no abandono não acredito qíle não a procurem os artistas contem.poraneos.
do~ valores aceitos e na hesitação em escolher outros. Ro- O que ocorre na falsa logica do s11. :caillois é identico ao que
ger Caillois entretanto não se restringe a apontar as causas se verifica no ,iulgamento dos leigos: comparam ambos coisas
do mal: to~a partido contra os que, refletindo a epoca in· heterogeneaE, um punhado de obras definitivas, filtradas
·decisa, fazem eles proprios uma literatura 'perturbada. Roger pela critica das. ,gerações sucessivas, com a massa atual da pro-
Caillois os condena e defende com energia os antil!OS valores. dução, ainda não peneirada pelo tempo. Entretanto, se ta]
Com essa atitude diz muitas verdades, sobretudo quando simu;J~ismo é ·perdoavel num lei~o, em Roger Caillois a obser-
analisa, mas tãmhem exari:era injustamente quando, através vação se toma demonstrativa ·de má fé tão somente.
de um raciocínio brilhante facil, leva ás ultimzs consequen- Onde seu livvo se me afigura mais solido e pensado é na
cias, isto é ao alJsurdo, suas observações sutis. se!!1-mda parte, que versa os problemas de estilo, vocabulario
Eis umfJ. primeira afirma~ão iniusta: "Assim se zcostu- e sintaxe. Concordo inteiramente com ele quando sublinha
maram a dizer coisas obscuras e incoerentes em aue nada que as palavras têm um sentido, o qual não pode deixar de
punham de compreensível. Mas nesse ponto de desordem ser levado em conta. Dai a diferença essencia] entre a lite-
em que se achavam não era muito importante que se com- ratura e a pintura, por exemplo. Enquanto o jorro de cores
preendessem". Não é hem o que acontece, nem descia lite· pode ser até cerito ponto arbitrario, porque não ar.:e sobre as
;rnto algum ( á execeção de uns no11cos mafanrhos facilmente idéias, mas uni.camente sobre a sensibilidade, e não influi na
desmascaraveis) n:ão ser entendido. O que houve foi, em ordem moral, o jogo das ·palavras inevitavelmente a atinge.
especial, um esforço para exprimir melhor os sentimentos, as "A linguagem, ma:teria prima ·do escritor, não serve a·penas ao
sensações e as emoções que a fase atual de nossa cu1tur:a pôs escritor. Serve a todos, e para multiplos fins". Compreende-
.em evidencia e que não dispunham, nas formas convencio- se, portanto que a sociedade tente limitar o uso das palavras
nais, de instrumento para sua expressão. O que torna in· ou subordina-las a seus interesses. Assim olharam o problema
compreensível por vezes a literatura moderna não é tanto a os ditadores de todos os credos e mais de uma obra prima

L
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não foi senão o instrumento de uma propaganda politica ou ções, marcha a pintura, ·paralelamente á ascensão da burguesia
religiosa. A concepçãO! da arte livre, da arte pela arte é tola, para o naturalismo do seculo XIX, e para o realismo que a;
sem sentido mesmo. Nunca houve arte pela arte e os que a descobertas cientificas, sobretudo no campo da otica, incen-·
defendem. e 8e extasiam sobre uma estatueta negn. ou um tivariam.
vaso etrusco esquecem terem sido tais objetos criados coon Caberia ·aqui u:ma distinção preliminar, entre naturalis-
um objeto ·definido e util. A's qualidades esteticas que fazem mo, realismo e academismo, pois tudo isso se confunde aos
dessas obras verdadeiras obras de arte, junta-se sempre uma olhos dos leigos em oposição ao moderno. Mas naturalismo
qualidade anestetica, sociologica, que lhe justifica. a presença em pintura significa a repI10dução fiel do aspecto exterior
embora não lhe determine a. duração. dos objetos. Realismo quer dizer a tentativa de apreender a
O ensaio do sr. Roger. Caillois, muito agradavel e inteli-- verdade das coisas. E academismo é apenas a aplicação con-
gente, ganharia em valor elucidativo se o autor houvesie exa· vencional de certas receitas. Assim, para exemplificar, po-
minado o tema dos dois pontos de vista, e não estabelecendo demos escolher entre as telas que pululam na rua Barão de
uma confusão entre ambos, a meu ver denotadora de uma es.-· Itapetininga dezenas de obras academicas; temos em Courhet
perteza digna de um causidico em defesa de má eausa, nunca, , ou em Monet ohrias realistas em que o pintor atentou para
porem, de um sociologo honesto. a verdade do escorço ou o instantaneo luminoso. E no·
Dezembro, 7 - O maior ohstaculo á compreensão da "oitocentos" italiano centenas de naturali,stas.
pintura está na concepção de ter ela por objetivo a copia da. Esses seculos de ignorancia do papel preponderante dos
natureza. Se na verdade o homem sempre aspirou a tfixar elementos esteticos, esses seculos de "desvio burguês", tinham
na tela ou no muro certos aspeetos transitorios do ambiente fatalmente que criar tabus, tanto mais solidos 1quanto mai&
em que vive, nunca, antes da Renascença:, tal concepção, teve difundidos na grande massa, graças á tecnica hodierna da di-
força de lei. Mesmo na Grecia ou em Roma, os momentos- vulgação. Ao mesmo tempo que aumentava a importancia
de pesquisa naturalistica não se impôem imperativamente, dos elementos anesteticos e que as artes plasticas se atolavam
ou não duram. Ao lado do retrato tem-se a composição.. na procuria do parecido, perdia-se a noção do alcance expres·
gratuita. sivo· ,das linhas em si, da c-0mp-0sição, da sensibilid,ade. E. pa-
Com a decadencia do Imperio Romano e o desenvolvi· radoxalmente, enquanto se adquiram formulas, a preços de
mento do Ci•istianismo, volta a pintura á concepção dos equi· "dumpmg · " , esquecia-se
· · ·r·ICad o pro f undo da forma. A
-0 s1gm
lihrios de linhas e ritmos e á procura de uma forma que arte, que é forma e contendo, tornava-se formula sem con•
exprima com justeza a mensagem evangelica, á qual, por não teudo. Iniciava-se o periodo aureo do academismo.
ser deste mundo, repugna a reprodução da realidad~. Não ~or certo na Renascença não se ignoram as grandes leis·
tem a arte desses primeiros seculos nenhuma intenção realis- estehcas. Da Vinci, Boticelli, Miguel Ângelo as conhecem
ta e muito menos naturalista. Ela evita, cuidadosamente, sair e a.s aplicam, ainda que se sujeitando aparentemente ás im·
de determinadas convenções, não visando uma ilusão otica posições da concepção artística vencedora. Só aparentemen·
e sim a expressão e a comunicação de emoções. E' com Cima- te entretanto, pois basta olhar com atenção uma personagem
hue, Giotto, o Beato Angelico que de fato se abre o novo ca- qu~lquer da Capela . Sistina, por exemplo, para perceber
minho, que os santos assumem atitudes humanas, que os quao longe se acha da copia, a que ponto se apresenta como
objetos e as paisagens começam a ser mais ou menos fielmen· uma admiravel euritmia, um jo.go exn:ressivo de movimen·
te copiadas .d'a natureza. Lembre-se aproposito a frase muito tos, ritmos, equilíbrios de planos e volumes.
significativa daquele padre de Anatole France diante dos pri- Mas a comprieensão -O.e ordem estetica se apaga aos pou-·
mitivos italianos. Dizia ele com tristeza ante o sacrilegio na·· cos e, com o ajutorio da fotografia, abandona-se afinal a
furalista: "essa gente ainda acaba fazendo santo com cara essencia pela aparencia. Caberia aos modernos (em especial
de homem". Entre aivanços e recuos, estilizações e deforma- a partir de Seurat e Cezanne}~ pôr em duvida a verdade
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<los ensinamentos recebidos nas academias, voltar á analise rem os deuses .gregos reproduções realistas mas sim figuras
das obras-primas do passado, revalorizar os elementos este-
de proporções convencionais perfeitas: ainda que se demons-
ticos, ainda que em detrimento da comunicação com o pu- we nada terem de objetivo as linhas elegantes de Boticelli
blico. O entusiasmo pela descoberta das "invariantes" leva-
("A Primavera", por exemplo), os menos informados con-
ria mesmo os descobridores ás ultimas consequencias do
tinuam a pensar em termos de naturalismo.
achado. Se a arte não estava no tema, se o que importava Um curso sobre arte ·deve, portanto, inicialmente, des-
eram as linhas, as cores, os valores, µpr que não abandonar truir esse tahu. Só quando o aluno compreende que a ques- ;1
por completo o assunto, por que não se evadir de uma tão tão do parecido é uma questão á margem do problema es- n
;I
absurda prisão? Acontece 1que o conhecimento das realiza- tetico, é. possível começar, a falar serio. Só então se deve
;I
cões artísticas do Oriente e dos povos primitivos confirmava entrar no estudo das escolas, filiando-as ás manifestações ar·
"q,
~s princípios descobertos. Etnografia e antropologia ajuda-
i'
tl

tisticas do passado, apontando a mensagem de cada uma e :1


vam e compreender a arte e impeliam a encara-la pelo novo sua expressão característica.
prisma. Um sabio como Ernst Grosse, depois de assinalar1 a Ha aue lizar, nesse momento, a arte á cultura (no sentido 1rll
influencia social na origem e na finalidade das ohras de arte antropol~gico) e mostrar como espelha a pintura, em suas !
dos povos pré-letrados, concluía pela afirmz.ção de que, exterioridades mai~ acessíveis ao lein;o. o padrão •cultural da li
quaisquer que fossem essa origem e essa finalidade, em toda
obra ·de arte se o]Jservavam equilibrios impressionantes, rit-
sociedade em ·que sm•ge, sem nada abdicar de seus elementos
esteticos invariaveis. Ha que analisar a expressão particu·
li
mos, hm•monias de cores. Eram denominadores comuns que li
- '1 ~ ..
nao se aeviam ignorar.
lar de cada um desses elementos e ·esclarecer a sua função liI•
na expressão do pensamento ·coletivo, bem como explicar de q
Outros pesquisadores vão mais lon,,:e. Medem plantas qbe modo o artista. atr2,vés desses mesmos elementos, con- !1
e aniniais, estudam o cristal, a molecula, o atomo e verifi- ~ilia as diretrizes recebidas do p:rupo com as suas tendencias
cam a admirave1 constancia das proporções, a provocar uma proprías, como t1\ansforma, assim, na Renascença, o misti- 1·1:
euforia favoravel á recepção e· á assimilação das emoções. cismo da Virgem com o Menino Jesus (tema imposto) em 11
Quando se nota que tanto as proporções dos brotos de uma uma expressá·~ de intensa sensu:oolidade . (Boticelli ou Ra-
planta quanto as do cor:po humano são, nos mais lJelos es-
pecimes, de 8: 5 a 13 :8., isto é, 1,6 a 1,62, e que se saber
fael) ; como nega ou modifica, pela forma, o conteudo a ser li
comunicado. E como, dessa maneira, reflete, não raro o sen-
ser o corte de ouro (excelencia da divisão assimetrica) 1,618, tir de uma maioria intimidada e talvez inconsciente ainda 'li
novo horizonte descortina-se. As analises do espectro solar de seu inconformismo. 1

revelam e explicam os segredos da cor. A etnografia mostra Ha que tornar claro o verdadeiro sentido ,das palavras 11
como a sensibilidade negra ou polinesia exprime n esoteris- classico e romantico, separando o classico do. antigo e pro-
mo i 1 eligioso dentro das mesmas proporções e das mesmas vando ser ele apenas a manifestai;ão artística mais fiel do !1
gamas cromaticas ideais. O folclore esclarece o mecanismo padrão cultural em dado momento, o que não será difícil iif
da criação popular, tamhem obediente a essas leis. E o projetando reproduções de pinturas de varias epocas e de ld
artista, gue tão importantes revelações incentivam, lança-se
q1
culturas diferentes, egípcia, chinesa, gotica, etc. Paralela-
ao trabalho com uma nova fé. De uma coisa tem ele cer- mente, ha que mostrar a expressão romantica na revolta in- 111
teza agora, de haver-se deslocado o problema, do sociologico dividual contra os valores socia.is admitidos, na tentativa de
para o estetico. Entretanto, as elites e o grande publico só solucões híbridas nas deformações, no devaneio formal, tudo il
1
muito lentamente poderão compPeender esses fatos transcen-
dentes. O tabu da imitação da natureza permanece de pé.
a refletir um p;ocesso de aculturação ou de mudança cul- 'I
tural. 1,
Ainda que se exibam pinturas chinesas, produtos de uma Só então se .iustificará a anali.se das diversas concepções h
civilização varias vezes milenaria, ou que se prove não se· sociologicas ou filosoficas da ar'1:e depois do que estará o es- li
li
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administração - educada no rigor da divisão do trabalho e


tudioso preparado para a leitura da historia da arte, a qual,
dentro dos compartimentos estanques da esp~cialização, suas
antes dessa iniciação, não passaria de uma relação cronolo-
palavras assumem um tom profeÍico, apontando a possihili·
gica de fatos e datas.
dade da catastrofe ao mesmo tempo 1que os _remedios reco·
mendaveis. O tecnico desprovido de cultura geral e guin·
Dezembro, 8 - Eni conferencia pronunciada em Cam·
dado á chefia dos setores vitais da sociedade age sempre
pinas, discutiu o dr. Benno Daniel Silberschmidt o problema
sem atentar para o interesse ·coletivo e sem se preocupai.
relevante da orientação do ensino especializado e da cultura
com os contra-golpes possíveis de sua ação, nos demais cam·
geral. A questão vem preocupando seriamente os meios
pos das realizáções humanas. Pouco se lhe dá, ao inventor,
universitarios do mun'do inteiro e em particular norte- ame·
provoque sua invenção um cataclismo economico ou social.
ricano, pois é nos Estados Unidos, onde o ensino tecnico foi
A outros a tar:efa de resolver esses problemas. Já aos econo-
mais aprimorado, qu.e seus inconvenientes se evidenciaram
mistas nenhum interesse ha de apresentar o fato de um
com maior agudez. Inqueritos e estudos or1ganizados pela
equilíbrio orçamentario ou uma restrição cambial prejudi-
"Integrated Liberal Studies", pela "Foundation for integra· car seriamente a impressão de livros ou o desenvolvimento
ted education" e pela revista "Science", assinalam o erro da
das artes plasticas. Não vêem a ecologia social, não enten-
especialização intensiva, inclusive para a propria eficiencia dem o metabolismo de sociedade, não lhes pa;sa pela cabeça
das realizações praticas, sendo de opinião osi pedagogos norte·
que sem livros a cultura ger1al decai, e que decaindo esta os
americanos que tais realizações se11iam superiores se os tec·
estudos desinteressados são atingidos, e atingidos estes a cien-
nicos se beneficiassem de conhecimentos gerais mais amplos.
cia aplicada sofre, e sofrendo esta a industria perece, e o
A educação moderna, pensam eles, contribui para a de·
desemprego surge, e uma situação de crise social se verifica.
sintegração da civilização. Já sustentara tese identica o filo·
· E' preciso portanto qne as elites, embora se especiali·
sofo Ortega Y Gasset em sua "Rebelião das Massas" e uma
zando, a fim de penetrar mais fundamente o conhecimento
observação antropologica atenta o houvera demonstrado fa.
de suas tarefas, não pei1cam de vista o papel do conjunto,
cilmente, pois o .que se verifica na realidade na cultura de
saibam, e sintam, ser em parte de um todo que não deve
nossos dias é a perda de U!fla di11etriz geral, de um padrão
desintegrar-se ante a predominancia ·da parcela.
norteador pelo qual se selecionariam os traços culturais uteis
e se rejeitariam os nocivos. Anexados sem o de-rido cuida· A critica do ensino atual não sofre contestação. Onde .
do, os novos traços perturbam as concepções eticas e desi- a harmonia se desfaz é no programa de ação positiva. Está
quilibram o conjunto. Corrigir () erro seria entregar a di- tudo errado, e é preciso corrigir o erro. Mas como? Voltar
reção da socieda·de a individuos que tivessem uma visão de á cultura geral basica? Sem d~vida. Mas será essa cultura
conjunto e esta somente a outorgaria uma exata compreen- geral basica a mesma dos seculos XVI ou XVII? Uma cul-
são da ·complexidade dos problemas tanto quanto da reper· tura humanistica, com grego, latim, filosofia, literatura, his·
cussão das soluções. Fôra preciso poder contemplar com toria antiga, etc.? Ou será preciso adaptá-la ás exigencias
cerrto recuo as tarefas dos tecnicos e apreender-lhes a inter- de nosso tempo? E como adaptá-la?
relação, para obviar á desarmonia reinante, á incoerencia Apesar de variarem as respostas e serem mesmo, por
nefasta das atividades. vezes, antagonicas, um denominador comum subsiste em
Isso que a Universidade percebe afinal, já o haviam todas elas. Um ponto essenciaf re impõe: não são tanto as
percebido e criticado as artes, a literatura e a filosofia. disciplinas o que importa; e que se insista na manutenção
Quan.do Charlie Cha.plin produz "Luzes da cidade" não faz do grego e do latim é coisa de alcanee secundario. · O alvo
outra coisa senão caricatmiar a estupidez da ·concepção atual visado é mais o espírito do que a forma. Cumpre criar a
de eficiencia e suas desastrosas conseqnencias para o indivi· consciencia da unidade, ou melhor, ·da inter-relação das cien-
duo. Quando Ortega Y Gasset adverte do perigo de uma
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cias, mediante a qual terá o tecnico sempre presente o in- pois já disse mais de uma vez que nós nos tornamos aos·
teresse da civilização, e terá o homem de cultura geral poucos impenetraveis ás belezas novas, porque para che~a­
diante dos olhos equilibrando-lhe os excessos do intelectua- :rem á nossa alni~a precisam atravessar uma crosta criada p~lo
lismo, a idéia da eficiencia imprescindível da tecnica e 1'de tempo. A poesia t~m sua comunicação facilitada pela ino·
sua utilidade para o wupo. cencia do leitor. Nós já somos "experientes" demais e te--
Entretanto, ainda que concordassem os pedagogos acerca roemos as novidades. Creio mesmo que, em ·dado momento
do programa ideal, ·dificuldades grandes restariam por ven- se verifica em nós uma cristalização da faculdade ieceptora'
cer. Em primeiro luga1\ como diz o dr. Silherschmidt: "a em virtude d~ :proprio acumulo de experiencia. Sim, por:
de formar professores ~a.pazes de compreender os defeitos que esta class1f1ca e cataloga, e exclui o que não cabe nas·
dos sistemas atuais e de combatê-los ativamente em obedien· categorias estabelecidas.
eia ao programa traçado". São os professores, indiscutivel- Contudo "sinto" inumeros versos de Adelaide Petters. I!
mente, os principais obstaculos á renovação do emino, já por- Lessa e_ não .raro um poema inteiro. Diante da sua poesia li
que lhes custaria, por falta de tempo, de curiosidade e meios li
(mas nao vai na observação nenhum intuito de paralelismo,. !~
economicos, mvisar por inteiro o sistema a que se habitua-
ram, já porque, nele acreditam piamente ás mais das vezes.
n~m sequer um juízo de valores) minha emoção brota como !i
Os professores, em sua maioáa, são tradicionalistas ferre-
diante de certos poemas de Mallarmé, cujo sentido me es-
capa e qu~ 1.1~ entanto .me comovem. Aliás essa. questão da
li
'}
nhos, e por outro lado sofrem o mes~no "handicap" dos tec- compr~en~1b1hd.ade log1ca é secundaria em poesia, como se·
!1
H
nicos, isto é, acham-se encerrados dentro de sua espefializa-· cund:no e o. assunto_em pintura. Há uma diferença porem:
ção, incapazes portanto de abarcar com simpatia o aspecto
geral do ·problema.
as cores e linhas nao encerram conceitos precisos, apenas. li
sugerem vagas sensações. E a palavra é uma prisão que não
O proprio aluno lambem se apresenta ·como uma difi- podemos considera11 inexistente. Ela limita as possibilidades
culdade a ser supe1:ada. !?ela educação que recebeu de seus de interpretação ao mesmo tempo que orienta o espírito li
pais e de seu grupo, ele já entra para a e@cola com con- il
vicções e preconceitos. Ele "sabe" o que deve aprender e -
para determinadas representações mentais. Se digo rosa
.
nao posso ouvir unicamente os sons das silabas, vejo uma flor
,. il
li
de que modo. E por isso resiste igualmente a quais,quer com sua forma e seu perfume, quando muito, na melhor das. li:1
modificações dos metodos pedagogicos. hipoteses, sou capaz de descobrir nela um símbolo, de ti1,ar il
Pensa o dr. Silberschmidt que essas dificuldades têm
solução, embora lenta. Será imprescindível multiplicar as
de suas qualidades uma sugestão. . A palavra rosa evoca uma !Iil
coisa concreta, ao passo que a côr vermelha ou a linha curva
pesquisas, aJlrir am1pl·o debate sobre o assunto e aproveitar s?mente criam dimas emotivos. O hermetismo no poema li
as primeiras experiencias para em seguida, pouco a pouco,
chegar a um programa pratico e util. Haverá portanto,
constitui portanto, muito mais do que a abstração na pin-· lili
tura, um obstaculo á comunicação das emoções expressas. 'I
creio, gerações mais ou menos sacrificadas que não se bene- O poeta, em: relação ao pintor (já não falo do musico!) leva 1

ficiarão ainda da solução melhor nem terão as vantagens dos il


uma consideravel desvantagem. Não pode evitari, ainda que 1
metodos abandonados. Que fazer? Os m_ales da tr:ansição arrevezando a sintaxe, soltando os vocabulos ao acaso, em '
são o preço do progresso. ohediencia tão apenas ao som, que as palavras se apresentem "
)i
:i
il
cada qual com seu conteudo proprio e muito pouco elastico. :1
Dezembro, 10 - Eis um livro diferente. Leio e releio
esses poucos poemas quase nunca acessíveis á primeira lei- Adelaide Petters escreve versos difíceis, que são por ve.- 'I
tura. l\/Ias sinto amiude, num verso ou numa estrofe, a in· ~e~ pura musica, melancolica e serena, e que, não fosse a !

discutível presença da poesia. Que o leitor não os entenda Injunção das palavras, nos penetraria a alma docemente e
inteiramente de chofre, a meu veri nã-O depõe contra o poeta, a deixaria cheia de vaga tl'Ísteza.

L
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Faminta ovelha bem rumo, tàmhem um obstaculo .á transmissão das emo~ões. E' sem·
lenha irmã, sem labaredas, pre, essa solução poetica, uma solução hihrida e periigosa em
que faço de minha seda virtude ·de nosso condicionamento filologico. Não se ima·
se ·o pastor é' novilunio?
gine entretanto que fôra preferivel a abstração total obtida
A síntese muito densa das imagens desnorteia, enquanto pelo afastamento das sugestões possiveis e pela criação de
certas palavras forçam a procura de um sentido iogico. vocabulos não registrados nos dicionarios, pela criação de
Para sentir esses versos (que não se alcançam pela ati· palavras virgens. Tais tentativas já foram feitas, sem resul-
vidade da inteligencia) há que ·despir-se, através ·de varias tados. O letrismo, de ·que falei há tempos foi uma delas, e
leituras, da vontade de "compreender". Só então, depois de não vingou. Nossa sensibilidade é muito complexa: só per·
uma prepamção espiritual, de uma como que limpeza inte· cebe o que é capaz de associar; recusa o que não desperta
rior, de uma abdicação, de UIIla raspagem da crosta de con- recordações, o que nã'.o slJ.gere, o que não remexe os resíduos
ceitos e preconceitos criada pela familiaridade com as pa· do subconsciente. E a tarefa poetica, ante todos esses es·
lavras, ·é que os versos ficam cantando dentro da gente, os colhos, reduz-se a uma pesca milagrosa ·com iscas suscetíveis
sons se valorizam, os ritmos vibram e acordam em nós uma de atrair as emoções mais profundas, menos V1llgares, as que
emoção há muito anúosa por extravasar. não morderiiam o anzol do pesca,dor comum. Jogue-se um
Doutras vezes a poesia de Adelaide Petters Lessa parec{l camarão ao mar e ter-se-á na ponta da linha um robalo ou
mais acessível e nada perde com isso. Assim em "Sereia": uma pescada. Nunca uma sereia ou um hipocampo. O
poeta não pesca robalos, mas tão somente os estranhos ani·
Estrêla de si mesma mais das profundezas. Ou não é poeta.
ela emergia ardente Adelaide Petters Lessa é poeta. Ouça-se "A Vingança
como se o rosto houvesse do .feio", arisca presa arrancada de uma profundidade ina-
de transformar·se em beijo
·cessivel ao pescador vulgar:
Há uma sensualidade mística perturbadora e que se afir·
Entrou em jejum de estrelas,
ma nos versos seguintes: em jejum de espaço,
em jejum de tempo.
Voltados para o céu, Não quiz mais viver em nectar
Todos os barcos eram labios de rosas e cataventos.
Todos os homens eram s<>nho. Conralesceu de navios,
Só um pensou na ancora, de nuvens " de arvoredos.
Só um ouviu gemer, Bebeu um copo de areia,
no vai e vem das ondas, foi um passara deserto,
o vai e vem da espu.ma curtiu o sangue dos homens,
o vai e vem da cauda. fez. púmtação de cicuta.
De costas para o céu, Renasceu em cada estrela
com os ollws nas escamas, de seus olhos moribundos.
o homem soluçou
como o refrão submarino. Evidentemente eu seria incapaz de explicar com clareza
essa sensação confusa que me invade. Eu não poderia ja-
Sem querer corrigiir o adjetivo, p'ois o poeta escreveu mais dizer "didaticamente" do significado logico desses ver-
"submarinhon, criando um neologismo mais eufonioo e tal· sos. Aliás poesia não é ciencia que se prove, não é geome-
vez mais "marinho" ... tria que se demonstre com esquemas. Poesia é curto-circuito.
Essa tendencia dos poetas para inventar palavras e dar E' faisca que põe fogo nas folhas mortas que a vida deposita
ás existentes sentidos pessoais, é uma força expressiva mas dentro de nós. Não é idéia, conceito, silogismo, é emoção.
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O poema citado tem versos que apesar da ausencia de ção de 3.000 exemplares data de 1920, deve ser atribuído a
sentido preciso se assemelham a certos versos das esponta- meu ver, antes á ansia de assunto nacional do publico "ado·
neas quadrinhas populares, que o .povo gosta e sente sem lescente" do Brasil de então, do que á qualidade dos versos.
saber explicar. Mesmo porque não têm explicação. Já não diria o mesmo de outro livro de poemas sobrte a
alma cabocla e que alcançou exito maior ainda: "Juca "Mu•
Bebeu um copo de areia
foi um passaro deserto lato", pois neste o lirismo singelo se une á forma e á :ri·
curtiu o sangue dos homens, queza inventiva. Ora, os versos de Paulo Setubal caracte•
fez plantações de cicuta. :rizam-se. exatamente pela pobreza de invenção, poder-se-ia
Eis desses versos que estariam em seu lugar em certas até dizer pela au.sencia dela. O que neles sobra é. u:m sen·
toadas do nordeste, como veria muito bem entre os versos timentaHsmo "chauvinista", muito acessivel porque expresi;o
de Adelaide Lessa estes de um samba carioca: em um estilo todo feito de lugares-comuns.
Eu vim de muito longe Paulo Setubal foi um homem simpatico e um romancista
e não conheço ninguem agradavel. Não se sentiu jamais um poeta e a prova temo·
Eu vim colher a rosa la em não ter ele continuado a "tanger a lira", apesar do
que na roseira tem. resultado do primeiro livro. Mas não foi o poeta que me
Tais soluções não nos atingem pelo conceito, nulo ou interessou descobrir nesta releitura de seus poemas. Foi o
ingenuo, mas ·pelo clima poetico que criam, pela sua miste- vestígio, na sua expressão poetica, da 'doença que o matou.
riosa e sugestiva vagueza, pelos sons e ritmos, e a margem Bem apagado é. ele entrtetanto, apenas mna ou outra ima·
que abrem á nossa expressão propria. Botamos neles tudo gem brotando, sÚbterranea,. de um poema que nunca se :re·
o que se contem em nós e que, sem essa solicitação, conti- vela penetrante, de uma sensibilidáde que se satisfaz com a.
nmuia dormindo em nosso subconsciente. exterioridade facil ·do mundo. Dir-se-ia que Paulo Setubal
não tomou conhecimento da moles-iia, ou pelo menos, não a
O livro de Adelaide Petters Lessa., modesto pelo numero
"sentiu" realmente. Só muito mais· tarde, em "Coniiteor",
de poemas mas denso de valores, tem ainda o merito de sus-
a ela se refere com angustia, jií. ás vesperas de morrer, e de.:
citar novo ·debate sobre a essencia poetica. O problema
pois de sua volta ao catolicismo. Mas os comentarios -assinl
jamais resolvido e constantemente abandonado, volta a preo-
feitos á distancia não nos informam sobre o estado de es·
cupar-nos cada vez que a novidade de uma obra no's obriga
pirito da adolescencia.
a duvidar de nossas convicções, validas quanto ás obras do
Algumas imagens, disse, e por certo curiosas por.que vi·
passado porem insuficientes para explicar< as qualidades da
sivelmente espontaneas. Em "Férias de junho", nota-se esta
que surge. Há que rever permanentemente as leis esteticas,
descrição do crepusculo que seria muito mais certa em de·
invariaveis em verdade na sua essencia, mais sujeitas a uma
zembro. . . Os poentes de julho não são bruscos e violentos,
tão grande escala de combinações eficazes 1que a todo ins-
porem m.atizados, suaves, o que se explica 'Pela atmosfera
tante nos encontra·mos diante de novos problemas.
menos carregada de umidade e os ceus sem nu.vens. E' em:
. E lembrn-me agora do velho Cezanne que exigia do dezembro que o crepusculo queima subitamente o horizonle,
pintor se colocasse diante do objeto como se nunca o houvesse abrasa tudo antes que a noite caia. Que o pôr-do-sol no
visto. Só assim poderia compreende:l' que uma "maçã não inverno é lento, não o ignora o poeta que escreve:
e, "a maç""
a e no ent ano
t " a m.aça.,, esta' em to d as as maças
- ..•
Agosto, Pôr-de.sol. Paisagem süenciosa.
A natureza inteira aos poucos adormece
Dezembro, 14 - Divulgando a obua completa de Paulo
Setubal, a Livraria Saraiva acaba de reeditar "Alma Cabo-
No entanto, Paulo Setubal diz estranhamente do ere-
cla". O exito espantoso dessa coletanea, c~ja primeira edi-
puscúlo de julho:
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DIÁRIO CRÍTICO 157
O sol expira entre golfões sangrentos
De sangue que espadana. traz de renovação e ·de promessas. Abandonando, afinal, a
facilidade e o convencionalismo, e principalmente aquele
E' a terrível assooiação de idéias entre um crepusculo
falso lirismo por demais acessível de tantos romances seus
de outra epooa, de um momento angustiado sem duvida e
(estou pensando em especial em "Olhai os lírios do cam·
a hemoptise ameaçadora. No bucolismo do poema a i~a­
po"), Erico Veríssimo põe seu talento, evidente, a serviço
gem choca e fixa de imediato a nossa atenção.
de uma grande ambição !iteraria. E pela amostra tende a
?utrias referenc~as á · tuberculose são mais claras, mais
realizar sua melhor obra.
conscientes, e por isso mesmo mais vulgares. Um rosto
saudavel divisado na cidadezinha arranca-lhe um:a confissão Eis a historia de uma familia gaucha a que se junta a
amargurada: historia de uma cidade da fronteira, das lutas políticas, das
guerras, da Revolução Farroupilha, da formação do senti·
E eu, que vivia a padecer nesse êrmo
A definhar.me, torturada e enfêrmo, ' mento brasileiro no Sul. O afresco exige composição e cui·
Nas 11ostalgias dessa vila odiosa" . dado nos pormenores. E' preciso que as cenas vivam e que
vivam as personagens. Ora, é o que consegue Erico Veris·
Dessa vila que é uma lembrança e uma advertencia . simo com uma verdadeira galeria de homens e mulheres de
. Ha tamhem as arvores. As arvores que o doente vê carne e osso, com uma consciencia aguda da realidade local
tristes,. co~o o chorão de Musset, as arvores que recordam e historica. Este p11imeiro volume a gente lê de um folego,
o cem1terio, a morte, que acenam com um destino: com interesse crescente. Participa do romance epico por
Talvez nessas folhagens, nesses ramos vezes, pelo enredo e pelas .atitudes dos heróis. Mas com·
porta igualmente uma observação prudente e segura dos ho-
~ão temos _as datas dos poemas e não sabemos, portanto,
mens que vão deitar raizes na terra e se assimilam lenta·
s~ tais ;:e:~os sao ante~i?,res ou pos~eriores a estes a que in· mente através de nostalgias e miseuias. O maior esforço de
~1tulou V ~da Campoma e nos quais parece não dar grande
Erico Verissimo foi, porem, a reforma total de seu estilo.
1mportancia ao seu estado físico, tão somente, a seu ver re·
Vêmo-lo agora sobrio, atento ás expressões essenciais, cuid·a·
sultante de estroinices: '
doso de não dar expansão demasiada ao sentimentalismo.
Soluce a alma de um poeta morto. Mesmo a língua regional é usada com parcimonia e na me·
Como um caboclo bem rude, dida apenas em que acentua a personalidade dos heróis.
Eu vivo aqui nesta paz,
Recuperando a saude, Evita o autor a caricatura e, sobretudo, o hermetisµio em
Que eu esbanjei, quanto pude, que jogaria o leitor se insistisse nesse colorido. Sobram
Nas tonteiras de rapaz. ainda alguns cacoetes, algumas displicencias, que hem .pouco
. Dc~em ser mais ou menos da mesma epoca. E essa dis- representam, na verdade, ante o vulto ·da realização. Aguar·
phcenc1a, que caracteriza aliás o livro todo, demonstra uma do com impaciencia o segundo volume.
estra~l~a falta de se.nsibilidade. A menos que marque 0
cond1c10namento do Jovem poeta ás convenções de seu tem- Dezembro, 16 - "A arte é alegria para ,quem pode
po. A crise moral, ele só a viveria de fato nos ultimos anos compreende-la", diz Sheldon Cheney nessa excelente Histo•
de vida. ria ·da Arte que acaba de editar a Livraria Martins (2 vols.
S. Paulo, 1949). Entretanto, acrescenta o autor, o public.o
. Dezembro, 15 - Ainda é cedo para escrever sobre o idesconfia "de que· essa a'.legria e os caminhos que a ell!a
ultimo romance de Erico V erissimo. O primeiro e alentado levam se acham dificultados pelos comenta.dores e em par·
volume já me parece, porem, muito importante pelo que ticular pelos que lhe escrevem a historia". Com efeito o
que mais perturba a percepção sadia· da arte é a literatura
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que se faz em torno dela. Em geral os historiadores de arte tor chinês e o impressionista, e admitirá ,que, quanto á: fa-
são gente que coleta dados e datas, classifica e cataloga. Ou euldade de transmissão ,de emoções, o segundo não ultrapas·
então, como é o caso de Elie Faure, por exemplo, homens sou 0 primeiro, apesar dos muitos seculo~ de paulatino de-
que pressupõem no leitor uma enorme soma de conhecimen- senvolvimento da civilização industrial que orgulhosamente
tos e uma extremada sensibilidade, não descendo por isso a desejamos preservar. . . com bombas atomrcas.
certas verdades essenciais {que lhes parecem adquiridas) Será então oportuno lembrar a significação da arte como
mas desenvolvendo teorias interpretativas muito ricas de su· reflexo de uma cultura, mostrar como, nas suas exteriorizia·
,gestões porem raramente acessíveis aos leigos. Não apren- ções, ela espelha o modo ,de sentir geral, as certezas, as an·
dem os primeiros o "espirito" daquilo que ensinam e os se· gustias e as aspirtações do momento.
gundos pairam ,demasiado acima do estudioso, do àspirante Assim ao contemplar o templo grei!º ouvirá o leiiro, de
.á "graça" estetica. Ha ainda a: confundir o leitor os comen· seu historiador, estas sabias palavras: "A logica e a ordem
tarios secamente tecnicos, de algum interesse para os artistas constituem a essencia da expressão grega. Os Helenos pro·
mas evidentemente reharhativos para o publico comum. jetavam seus templos em obediencia a um codigo esquema·
Foi pensando nesses escolhos que Sheldon Cheney escre· tico das partes, que atendia em primeiro lugar á função, e
veu sua Historia da Arte. Como alvo visou demonstrar que: depois a um sistema racional de enriquecimento eEtetico. A
«A estatua greg·a, o idolo africano, o crucifixo bizantino - matematica determinava a simetria, a harmonia, o prazer
qualquer expressão artística pode ser compreendida, se ex· dos olhos. Nunca houvera uma arquitetura neste sentido.
plicada ,de acordo com a formação e as intenções do artista; As piramides tinham sido um primeiro e desnudado pro-
mas tamhem poderá ser acentuado o denominador comum duto rlo mesmo espírito. Mas na arte amadurecida e refle·
que liga uma expressão a outra." tida da con"strução, a arquitetura grega é a primeirra exnres-
Ora, nesse ,denominador comum é que se acha o "espi· sã~ forte e dara e quase invariavel de um credo nacional
rito" da arte, e é esse espírito qu.e cabe ao historiador, como racional. E' o exemrilo sunremo da inteli!!encia. airindo lo·
ao critico, comunicar a seus leitores. Quando, através não vi,..nmente. friamente, a fim de criar um efeito artístico.
só de uma exemplificação adequada, ma!? ainda ·de uma ex~ Não se observa nunca qualquer concessão ao instinto. á ima·
plicação clara da unidade espiritual da arte, os leigos s~ ginação. ao capricho. A propria matematica ~stabelece li-
compenetrarem de que "com o valor do assunto, do sentido mites alem dos quais nã:o é possivel ir. Dentro desses
e da tecnica, existe valor maior e significação mais .profun· limites, entretanto, é essa arte uma das expressões mais atra·
da", no amago da obra, "numa especie de estrutura ou or· entes e mesmo magnificas da necessidade que o homem tem
questração essencial", somente encontravel "nos elementos 1le construir".
basicos da pintura, da escultura e da arquitetura", quando Ao deparar com a pintura chinesa ficar:> informado de
entenderem que existem valores-chave, terão os interessados que: "Os chineses dão -pouco valor á renrodução ou imita•
no conhecimento da arte pel'corrido boa parle do caminho ção .dos fenomenos da nature:..a. A finalida,de T\rimordial é
que leva ,á alegria da .comunhão com um quadro, uma cs· antes dotar o trabalho de elementos vitais de movimento,
tatua, uma solução arquitetonica. de inspiração, de poder de comunicação - ein vez de re-
Nesse ponto de sua cultura artistice, o leigo ,descobrirá fletir ou interpretar. Que outra. coisa pode significar a criap
por si não haver "progresso" em arte e ·perceberá que tanto ção? ner~nntam."
pode comover-nos uma pintura chinesa, imprecisa nos con· Em outras palavras, o artista identificando-se com o
t?rnos e fantasista no tema, quanto uma tela de Ticiano pre- espirito, entra no ritmo criador da vida. Partindo da fonte
cisa e brilhante, ou um quadro impressionista nebuloso e cosmica da criação ele leva, com grande energia, movimento
quente. E verá ao mesmo 1:empo a semelhança entre o pin· ordenado em linhas, volume e côr, a inspiração espiritual
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ao seu trabalho arrtistico, material, dotando-o de vida. Se pouso. Pela amplitude volumosa e maciça de suas obras
tem alma forte, sensivel, serena e nobre, o seu trabalho re- ·ele rivaliza c.om os mestres universais, os egipdos e chineses.
fletirá algumas dessas qualidades. Será uma extensão do seu As quatro figuras conhecidas como Dia, Noite, Aurora
modo de vida. Mas o primeiro requisito exigido é possuir e Tarde são figuras imensas, com uma aparencia extraordi-
vida ritmica e espiritual". naria de movimento e retenção. Sua nudez é cheia de digni·
E ao admirar uma catedral gotica verificará o leitor dade e grandeza, e em seu corpo p'alpita o sentimento de uma
que: "O símbolo medieval é a linha ascensional inteiriça, força majestosa. Elas não são naturais, pelo contrario, são
sem apoio para atingir gloriosamente o céu. concepções sobre-humanas, dramatizadas e soberbamente "ar-
O idioma basico é constituído pelos arcos agudos e fle- tificiais".
chas. Quando a construção se ergue, um milhão de dedos Pelos trechos citados tem-se uma ideia do metodo em
apontam para Deus. Disse Victor Hugo: "A horizontal é que se baseia a Histor,ia da Arte de Cheney e do espirito
a linha da razão, a Vertical é da prece". que a anima. Cabe assinalar ainda a escolha inteligente
A liçfo das torres pontudas e altas das flechas era, a das ilustrações e os apendices cronologicos e bibliograficos
mais eficiente porque o edificio era dominador e sempre 1que completam a obra.
·presente na _Comunidade medieval. A massa da catedral,
ou igreja sobressai na cidade e na paisagem. E' a coroa da Dezembro, 19 - Machado de Assis àinda permanece,
cidade, o símbolo do reinado de Deus. após tantas paginas agudas de seus melhores críticos, um
tema riquíssimo. Assim são os grandes, aliás, sempre novos
Por varios modos - alem da atual pintura em vitrais·
e sempre a dar-nos oportunidade ·rle descobertas e ilações.
e escultura - as idéias da fé cristã encarnavam-se na arqui-
Sr. Eugenio Gomes (Espelho contra espelho - Ipê, ed. São
tetura. · O plano cruciforme de construção é fundamental.
Paulo, 1949) volta a Machado de Assis, estudando-lhe a obra
Indo á igreja, o crente sempre se está voltando para a Cruz.
minuciosamente e com muita inteligencía, 11.o ponto de vista
A nave da igreja é o navio que leva os fieis a um céu de
das influencias recebidas, em especial dos escritores ingle~es.
segurança e deseanso final." O assunto já foi objeto de inumeros ·comentarios e só inte-
Eis esclarecidos os elementos sociologicos, anesteticos,. ressa hoje pela margem que· abre á expressão dos proprios
da arte, em conjunção, entretanto, com uma clara analise da ensaístas. O autor de "E'spelho contra espelho" assim o uti-
expressão linear, dos ritmos, da composição, elementos es- liza e não nos decepciona.
teticos invariaveis. Entretanto desejaria esclarecer com ele o emprego da
·Creio, porem, que mais util ainda serão para o leigo os. palavra humor, de que se vale .par·a caracterizar não só os
comentarios de Sheldon Gheney á obra de Miguel Angelo escritores ingleses da predileção de Macha.do mas ainda a
ou de Giorgione. Nenhuma inutil literatura, nenhum ex- obra do proprio Machado. Eis uma frase ·que me parece
cesso ·de tecnicismo. Entretanto, como realça, como coloca espelhar exatamente a concepçio de humor do sr. Eugenio
em primeiro plano os valores abstratos da arte, que fazem Gomes: "não tendo conseguido isola.T·se deste modo da hu-
da pintura e da escultura ·do poderoso genio da Renascença manidade, pôde ele (Machado) encontrar no humorismo
italiana um dos maiores artistas do mundo e de todas as. anglo-saxonico um .derivativo expressional de primeira or-
epocas: "Se toda composição escultural é uma organização dem á sua ·pungente insatisfação .do mundo". Isso sugere
de volumes no espaço, em relação com determinado campo ser o humor U:m revide do individuo contra o grupo, com-
ou moldura, Michelangelo é o mestre supremo do Ocidente, portando portanto boa dose de ressentimento e amargura.
que11 na indicação da moldura como na manipulação auda- Mas será isso humor? E não estará sendo confundido com
ciosa dos volumes contidos, cheios de vigor plastico e re- ironia ou sarcasmo?

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