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G RAÇA P AULINO
se acirrou nos anos 80, como alternativa crítica das ciências humanas a outra crise, a do
modelo socialista. Contrapondo-se a uma tradição cultural que podia, após a vitória dos
então, na área de ciências humanas, a focalização prioritária dos negros, das mulheres,
dos miseráveis, dos sexualmente discriminados, dos loucos. A história cultural muda,
Entretanto, logo viria a defesa dos padrões estéticos estabelecidos há séculos pela crítica
literária e pelos próprios escritores. Em meados da década de 80, Italo Calvino escreveu
suas famosas conferências para Harvard, publicadas após sua morte, com o título de Seis
propostas para o próximo milênio, embora a sexta não tivesse chegado a ser escrita.
Acreditando nas “coisas que só a literatura nos pode dar”, Calvino retoma as qualidades
O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas
arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma
linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos
surpreendentes.2
em narrativas como Dom Casmurro ou Grande sertão: veredas, que nos envolvem em
1
CERTEAU, M. de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1985
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leitura bem atenta de toda a argumentação de Calvino pode fazer-nos continuar a seu
lado. Sua rapidez, por exemplo, inclui “o tempo que flui sem outro intento que o de
impaciência e de toda contingência efêmera. ”3 Por outro lado, a exatidão para Calvino
se define como “um projeto de obra bem definido e calculado”, “a evocação de imagens
nítidas, incisivas, memoráveis”, e “uma linguagem que seja a mais precisa possível
Desse modo, não há como negarmos rapidez e precisão aos nossos dois maiores
cânones literários ocidentais. Não há como deixarmos de dialogar, nesse caso, com um
dos mais polêmicos críticos contemporâneos: Harold Bloom. Sua crítica às escolas de
letras e ciências sociais é violenta. Afirma, por exemplo, em seu livro O cânone
ideólogo.”5
2
CALVINO, 1990, p.62
3
CALVINO, 1990, p.66
4
Op cit p. 71-72
5
BLOOM (1995), p. 30
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Por outro lado, o ensaísta faz questão de desmitificar o cânone como processo de
Pater, afirma que toda literatura canônica é apenas “um acréscimo de estranheza à
beleza”.6
Para não ficarmos subordinados a esses teóricos, tentemos pensar a nosso modo o que
define os cânones literários, especialmente no que tange à narrativa. Cremos que eles se
los separadamente.
caráter oral e coletivo não permite preocupações com a fidelidade no modo de contar, o
que torna as versões infinitas, cada uma valendo em sua diferença, em sua recursividade
impossível recontar a história, que tem caráter experimental, muitas vezes voltado para
6
Op cit p. 12
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expectativas dos leitores. Não há como definir cânones apenas pelas instâncias de
produção. Se Italo Calvino parece fazê-lo, devemos atribuir sua atitude à tentativa de
assume que toda grande obra constitui apenas uma desleitura da tradição, desleitura esta
que não passa de uma leitura forte: escrever bem seria desler a tradição.
Voltemos, com novos propósitos, uma vez mais, a esse polêmico pensador americano.
Em certo momento de seu livro, aliás, logo no início do primeiro capítulo, Bloom afirma
ensino”7. Entremos com esse pensamento nas escolas brasileiras de hoje. Tentemos
Sabemos que os cânones são históricos, como a linguagem, mas, assim também como
anos 70 têm clara percepção do que isso significa. Se não chegaram a ler Dom Quixote,
Drummond, Graciliano, e outros aqui esquecidos mas por muitos leitores lembrados.
7
op cit p. 23
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essa formação, aprofundando o estudo dos autores mais importantes de nossa história
literária.
textos, produções culturais de linguagem, foram confundidos com a própria realidade a que
se referiam, diretamente ou não. Entra em cena, com força total nos estudos literários, a
importância das mediações, cujo papel seria relacionar os vários níveis das superestruturas,
quebrando as barreiras das disciplinas, mas estabalecendo conexões com base nas
diferenças, para dar sentido social ao trabalho. Afirma Jameson: ...”devemos repudiar uma
diferenciação”(...)8
catedral: literatura e ensino em debate. Trata-se de uma investigação que propõe uma
terceira via, e ainda mantém sua atualidade. No prefácio, Marilena Chauí destaca a crítica
que Lígia constrói contra o autoritarismo de professores que vêem a literatura como letra
morta e contra a ritualização de uma aula que trabalha os textos literários como saberes
Cerisy de 1969, sob o impacto do movimento estudantil francês de maio de 68, Lígia
ratifica o sentimento do autor com relação às universidades dos EUA: embora interessadas
nos estudos literários, negavam radicalmente a relevância social dessa arte. Assim também
os estudantes franceses queriam uma diferença política nas práticas de leitura literária
8
JAMESON, 1992, p.39
9
Apud CHIAPPINI, 1983, p.38
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criativas e questionadoras dos cânones. Mas ela questiona que tipo de cânones, e que tipo
de trabalho com obras canônicas? Se sua crítica estava voltada para as escolas, Chiappini,
Ora, nesse ponto entramos na questão das relações entre cânones estéticos e cânones
Alcir Pécora, prefaciando o livro Práticas da leitura, o risco que nós, que pesquisamos o
literária dos autores minúsculos, tudo em nome da apropriação heróica que resiste
10
CHARTIER (Org), 1996, p.16
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livros literários que predominam nas escolas brasileiras, sem focalizá-los para “salvar” ou
formação que não desenvolveu a cidadania letrada, consideramos esse processo de escolha
literatura.
mesmo de denúncia social. O caráter esquemático desses gêneros é que já demonstra uma
cânone literário são algumas seleções escolares de Machado de Assis. Se é preciso que o
grande escritor esteja presente na escola, publicam-se antologias que atendam às definições
escolares de gêneros. É o caso de Cinco Histórias do Bruxo do Cosme Velho, que recebeu
da FNLIJ o prêmio de melhor projeto editorial de 1995. São quatro histórias cômicas, que
não estão dentre as melhores do “Bruxo”, mas que são rápidas e engraçadas, acompanhadas
de um poema melodramático que pode ser considerado um dos piores do autor. Tem-se
com essa leitura uma visão distorcida do que escreveu Machado de Assis. Tentou-se
também fazê-lo entrar sem incômodos na escola com uma coletânea intitulada Contos
fantásticos, organizada por Raymundo Magalhães Júnior. Como esse crítico é um dos
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literariamente. Mas, de qualquer modo, trata-se ainda, como demonstra o título, de uma
distorção realizada para atender a uma demanda escolar de gênero, e não de autor.
Outro cânone escolar inegável diz respeito à linearidade da narrativa de acordo com as
preferências do século XIX. Princípio, meio e fim devem estar muito bem definidos e
específicos, o trágico. A novela Tiro no escuro, de Rita Espechit, embora tenha recebido o
prêmio Jabuti, é pouco indicada nas escolas, por inverter a ordem temporal e tratar de um
O poder seletivo da escola é tão grande no caso de leitores adolescentes que se pode indagar
lar. Não havia a possibilidade de escolha pessoal. Indagado sobre o interesse de ler juvenil” não
seria uma produção do contexto escolar. Verificamos, em casas e ambientes com livros, que
osjovens se sentem atraídos por títulos que pouco ou nada têm a ver com essa literatura escolar
livraria, eis os títulos que o atraíram, a ponto de retirar os livros da estante e folheá-los:
Sagarana, Tudos, Bundo e outros poemas, O buraco na parede. Leu, a convite um conto de
Guimarães Rosa e outro de Rubem Fonseca, que não chegaram a entusiasmá-lo. Mas Agosto foi
lido por causa do vestibular. O gosto não passava pelo objetivo de leitura. Indagado sobre o
interesse de ler A viagem do descobrimento, recusou o livro, dizendo que já tinha estudado
11
Aliás, os dois livros que compõem Terra Brasilis, de Eduardo Bueno, são um bom
propositadamente ambígua: pode atender tanto aos padrões de leitura adulta quanto
adolescente. O formato dos dois livros, suas capas, suas ilustrações tentam atender
moda, e aos jovens leitores que, possivelmente guiados por seus professores de História e
Português, deverão produzir trabalhos e atividades variados que exibam um contato com o
tema.
Mas o fato é que os jovens estudantes lêem na escola. E é fato que a literatura sempre passa
por um processo de escolarização de sua leitura. Magda Soares (1999) joga o conceito de
“escolarização da leitura literária” para outra direção: se a leitura literária está na escola,
necessariamente está escolarizada. Só que o sentido pejorativo que se tem dado ao processo
pode, segundo a autora, ser interrogado: não haveria, a par de uma escolarização
inadequada, uma outra possível, que “conduza mais eficazmente às práticas de leitura que
ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor que
se quer formar?”11
Como já foi demonstrado diversas vezes por Regina Zilberman, Vera Aguiar, Glória
escolares de ler literatura nada têm a ver com a experiência estética, mas com objetivos
práticos, que passam da morfologia à ortografia sem qualquer mal-estar. Se for perguntado
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a um incauto mestre que tipo de leitor quer formar, possivelmente a resposta passará por
A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas
leituras, que aprecie construções e significações estéticas, que faça disso parte de seus
fazeres e prazeres. Não é à toa que esse tipo de leitor se restringe a um grupo de elite capaz
de se locomover com desenvoltura num universo textual sofisticado, o tal que une beleza e
estranheza. Mas existe na sociedade esse tipo de prática de leitura, que constitui um capital
sistema: como democratizar gostos e habilidades tão refinadas? Muitos optam por esquecer
poderiam ser chamados de infantis ou juvenis. Como todos são produzidos por adultos, e
legitimados criticamente por adultos, infantis ou juvenis seriam apenas aqueles apropriados,
conquistados pelos jovens leitores. Se foram propositadamente escritos para eles ou não,
isso não viria ao caso: basta que eles se sintam atraídos, capazes de “roubar” o livro para si.
recepção essa literatura, pois então literatura de gaveta deveria constituir também um
11
SOARES, Magda. A escolarização da leitura literária. 1999, p. 25
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gênero, acaba ironizando a questão: em vez das crianças, a posteriori, por que não os
O crítico português nos interessa sobremaneira por aprofundar suas considerações iniciais
num sentido histórico-social que se relaciona à questão dos cânones. A partir da análise de
literatura destinada aos alunos de treze-quatorze anos não seria aquela que os adultos
sucessores –estranhamente, não tão esparsos como cuidaríamos nesta paisagem, é de notar
esvaziadas de boa literatura, tratariam de realizar o que ele denomina “uma biblioterapia”,
Bem notória é a relação estabelecida entre a literatura para adultos do século XIX e essa
padrões românticos e realistas, uma boa quantidade de obras que atendem aos cânones de
construção e significação até hoje válidos para leitores comuns, mas não mais trabalhados
pela crítica acadêmica. Seria um “modelo Balzac” de escrever. Leyla Perrone-Moisés, aliás
outra pesquisadora que trabalha a questão dos cânones, usa uma expressão feliz para
caracterizá-lo: “seus livros não nos caem das mãos, mas nos prendem desde a primeira
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universais.”
Para o povo e as crianças, que os intelectuais tantas vezes unem, como símbolos de
inocência, os padrões do século XIX não foram ultrapassados. É como se não tivessem
existido Marcel Proust, Virginia Woolf, James Joyce, Jorge Luiz Borges, Cortazar,
Guimarães Rosa.
literária no Ocidente dito civilizado. Quem ganhou o Prêmio Hans Christian Andersen de
1998 foi a escritora Katherine Paterson, que assim nos é apresentada por Ana Maria
estudou nos Estados Unidos – onde recebeu por duas vezes o Prêmio Newbery –
12
DIOGO, L. 1994, p.15-16
13
Folha de S. Paulo, 16/05/99
14
PATERSON, 1999, quarta capa
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quatro filhos. Que teria isso a ver com a qualidade de seus textos? Aliás, dessa qualidade
não se fala, como seria normal numa apresentação literária tout court.
Quando lemos um dos livros da autora premiada, Duas vidas, dois destinos, entendemos
escolares. A história parece ter sido escrita no século XIX. Duas irmãs gêmeas, que vivem
numa ilha muito pobre de pescadores, têm seus destinos traçados de modos inteiramente
diversos, a partir das escolhas dos pais e dos destinos que aí se formam. Todo o caráter de
Seria um modo adequado de formar leitores literários? Seria o único modo escolar viável?
contexto escolar de iniciação de leitores. Não se trata de uma novela de mau gosto,
execrável, mal escrita, sem valores significativos. Trata-se de um livro que seria lido e
apreciado por leitores comuns, e não pela elite literária. Eis a grande questão no ensino de
literatura: os cânones literários estão muito distantes do gosto dos jovens estudantes. Se ao
trabalho realmente literário. Mas poucos professores tiveram acesso aos valores literários.
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Há algumas saídas mais dignas: Lígia Bojunga, Bartolomeu Queirós, por exemplo.
Podem constituir uma saída temporária. Atendem aos cânones de construção e significação
deverá, de qualquer modo, haver ainda um desenvolvimento de repertório literário que não
se interrompa nesse ponto. Chegar a ler Bojunga ou Bartolomeu não basta, assim como não
basta ter lido Monteiro Lobato, para penetrar no campo restrito dos leitores contumazes,
ligados em boa literatura, bem informados, capazes de distinguir Feliz ano velho de Feliz
ano novo.
O letramento literário, como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação
pessoal de práticas sociais de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem
por ela. A experiência estética, dentre as quais se inclui a leitura literária, está sendo mais
valorizada agora, como modo de reumanizar as relações enrijecidas pela absolutização das
mercadorias. As artes dão a volta por cima. Importa, como afirma Bourdieu, não assistir
passivamente ao espetáculo dos “enfadonhos tópicos sobre a arte e a vida” dominando, nas
liturgias escolares, a literatura, ainda de acordo com o mesmo autor, uma das “conquistas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Cinco histórias do Bruxo do Cosme Velho. Porto Alegre: Projeto,
1995;
------------------Contos Fantásticos. (sel. e org. Raymundo Magalhães Júnior) 2. ed. Rio de
Janeiro: Bloch, 1998;
15
BOURDIEU, 1996,p. 16
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BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva,
1995;
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário; Trad Maria
Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996;
BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998;
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio Trad Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990;
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Trad Enid Abreu Dobranzky. Campinas:
Papirus, 1995;
CHARTIER, R. (Org). Práticas da leitura. Trad Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996;
CHIAPPINI, Lígia. Invasão da catedral: literatura e ensino em debate. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1983;
EVANGELISTA, Aracy et al. A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte:
Autêntica/ CEALE, 1999;
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico.
Trad Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992;
PATERSON, Katherine. Duas vidas, dois destinos. Trad Ana Maria Machado. São Paulo:
Moderna, 1998;
PERRONE-MOISËS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Cia das Letras, 1998;
LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo:
Ática, 1996.
(Texto terminado em 30/06/99)