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Este volume pertence à série Estudos Alemães,

Coordenada por EDUARDO PORTELLA,


EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, GEORGE
MARY, HANS BA.YER, VAMIREH CHA- THEODOR W. ADORNO
CON e WERNER REHFELD.

NOTAS DE LITERATURA
2.ª edição

TEMPO BRASILEIRO
Rio de Janeiro - RJ -1991
meável à esperança - fechando-se em si até a inapelabilidade.
Ela manifesta a nostaigia de poder uma vez sem medo ser tão
sem polimento como o medo que cunhou o fugitivo. De sua
infância contou certa vez que fora tão louco por estórias de
índios que elas deslocavam suas fronteiras para a realidade.
Uma noite acordara do sonho em sobressalto com as palavras:
"Uma tribo estranha me rou1xiu". Aí está registrado seu
enigma, o horror que literalmente existia nas deportações, ao
lado da nostalgia do barbarismo não castigado e mais ingênuo Engagement
dos peles vermelhas invejados. A doutrina de Freud de que
as decisões da gênese individual são tomadas na infância vale
principalmente para o tipo inteligível. As fantasias de criança Desde o ensaio de Sartre Qu' est-ce que la littérature ?, há
moram ainda na vontade vã e compensatória de também tornar- teoricamente menos desentendimentos sobre literatura engajada
se um adulto ao pé da letra. Pois o adulto é justamente o e literatura autônoma. Mas a controvérsia continua tão crucial
:infantil. Quanto mais procedente a tristeza que se lamenta em como hoje só pode ser algo que diga respeito ao espírito, não
mímica, tanto mais reforçadamente o sorriso garante que tudo diretamente à S-Obrevivênci.a do homens. Sartre foi impelí_do ao
está em ordem. Permanecer criança para esse tipo natural é manifesto porque via, certamente não como pioneiro, as obras
o mesmo que suster um momento da essência em que lhe sobre- de arte expostas lado a lado num panteão de constituição arbi-
vieram menos embaraços ; é a espera, ainda que tão trariamente descompromissada, degradadas a bens culturais.
freqüentemente frustrada de que essa confiança inabalável Pela coexistência incbmpatibilizam-se reciprocamente. Se uma ou
venha a ser recompensada. Quão incerto é tudo isS-O, é ainda outra se pretende excepcional, sem que o autor tivesse
:a presença espiritual de Kracauer que expressa. A fixação na tido obrigatoriamente essa intençãv, nenhuma certamente suporta
infância, como no jogo, tem nele a forma de uma fixação na a rivalidade ao seu lado. Tal intolerância sadia valê não somente
bondade das coisas. Provavelmente a prioridade do ótico nele para composições isoladas, mas também para "tipos" como os
não é originária e sim conseqüência desse relacionamento com diversos comportamentos da arte, a que a controvérsia semi-
o mundv-coisa. No acervo temático de seus pensamentos esquecida se referia. São duas "atitudes frente à objetividade":
procurar-se-ia em vão um protesto contra a coisificação. Para elas se combatem mesmo quando a intelectualidade as expõe em
uma consciência que desconfia ter ·sido abandonada pelos ho- paz fictícia. A obra de arte engajada desencanta o que
mens, as coisas são o que há de melhor. Nelas o pensamento só pretende estar aí como fetiche, como jogo ocioso daqueles que
regenera o ultraje dos homens ao ser vivo. O estado :silenciariam de bom grado a avalanche ameaçadora, como um
de inocência seria o das coisas indigentes, mesquinhas, menos- apolítico sabiamente politizado. Diz-se que desvia da luta dos
prezadas, alienadas de seu objetivo último; só elas encarnam interesses reais. Que o conflito dos dois grandes blocos
para a consciência de Kracauer o que seria diverso do contexto não poupa mais ninguém. Que dele depende a própria viabi-
funcivnal universal e desencantá-las de sua vida desfigurada lidade do espírito e tanto que somente cegueira vai bater-se por
seria sua noção de Filosofia. A palavra latina para coisa é res. um direito que amanhã pode ser destruído. Para as obras aútô-
Daí deriva-se realismo. Kracaner deu à sua teoria do cinema nomas, porém, tais considerações e a concepção de arte que as
o subtítulo: "The Redemplion of Physical Reality", cuja tra- sustenta são já a catástrofe contra a qual as obras engajadas
dução fiel seria: "a redenção da realidade física". Assim, estra- advertem o espírito. Se ele desistisse da tarefa e da liberdade
nho é seu realismo. de sua pura objetivação, ele teria renunciado a si mesmo. O que
então ainda se transforma em obra, identifica-se com a simples
Tradução de CELESTE AÍDA GALEÃO existência, que se combate, tão efêmera para os engajados, que

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já no primeiro dia é tema de seminários em que: inevitavelmente duvidar também aquele que não coordena os gêneros da arte
morre. O clímax ameaçador da antítese adverte quão dúbio se incondicionalmente sob aquele cabeçalho genérico. Os rudimentos
apresenta o problema da arte hoje em dia. Cada uma das duas das)ignificações externas nas composições literárias são o ine:
alternativas nega, ao negar a outra, também a si própria: a vitavelmente desartístico da arte. Não é neles que devemos ler
arte engajada porque, como arte necessariamente distinta da rea- sua lei forma~ sim na dialética dos dois momentos. Essa lei
lidade abole essa distinção ; a da arte pela arte porque, pela sua impera ~qmlO em que se transformam as significações. A dis-
:a:bsolutização, nega também aquele relacionamento irrecorrível tinção enfre poeta e literato é tênue, mas o objeto de uma filo-
para com a realidade, que no processo dinâmico de sua indepen- sofia da arte, como Sartre também a intenciona, não é seu
dentizacão do real, entende-se como seu a priori polêmico. Entre aspecto publicístico. Menos ainda o que se consagra em alemão
os dois, polos dilui-se a tensão de que a arte tem vivido até as com o termo A ussage (verdade-mensagem) . Debate-se incomo-
mais novas eras. damente entre o que um artista quer de seu produto, e
A dúvida da onipotência da alternativa, entretanto, é des- o mandamento de um sentido metafísico testemunhando-se obje-
pertada pela própria literatura contemporânea. E esta ainda não tivamente. Por aqui esse é em geral o ser incomumente
praticável. A função social do tema engagement tornou-se até
está tão totalmente subjugada pelo giro da vida que tivesse que
certo ponto confusa. Quem, com espírito cultural conservador,
se lançar ao ''fronte". Os bodes de Sartre, os carneiros de Va-
léry, não se podem separar. Um engagement desses, mesmo exige d:i. obra de arte que ela diga algo, está aliando-se contra
a obra de arte desligada de finalidade, hermética, e com a contra-
quando político, permanece politicamente multi-significativo,
posição política. Economistas do compromisso preferirão consi-
enquanto não se reduza a propaganda, cuja configuração com-
., derar o "Hnis Clos" de Sartre como profundo, do que dedi-
placente escarnece todo engajamento do sujeito. O oposto porém,
carem-se a ouvir pacientemente um texto e:m que a linguagem
que no índex soviético vem relacionado como formalismo, não
:ibala a significação e através de seu distanciamento semântico
é contestado apenas pelos administradores públicos de lá, e nem
rebela-se inventiva e bandeirante contra a categórica submissão
pelo existencialismo libertário : falta de ira, de agressividade do sentido, enquanto para o ateísta Sartre, o sentimento con-
social, são críticas comuns aos chamados textos abstratos feitas ceitua! da "criação poética permanece o pressuposto do
inclusive por alguns "avançados". Ao contrário, pelo quadro
engajamento. Obras contra as quais no Leste o agente policial
Guernica, Sartre nutre a maior admiração; em música e pintura intervém. são ao mesmo tempo denunciadas_ demagogicamente
ele poderia ser acusado facilmente de simpatias formalistas. Seu pelos defensores do testemunho-verdade autêntico, porque pre-
conceito de engagement ele reserva à literatura, por sua essência tensamente testemunham o que absolutamente não testemunham.,
conceitual: "o escritor ... lida com significações".1 Certo, mas O -Odio contra o chamado durante a República de Weimar de
não unicamente. Nenhuma palavra que é inserida numa obra bolchevismo cultural ultrapassou o tempo de Hitler, em que foi
literária desvincula-se completamente das significações que pos- institucionalizado. Hoje ainda, como há 40 anos, ele inflama-se
sui no discurso comunicativo, mas também em obra alguma, nem com produtos da mesma essência, entre os quais também aqueles
mesmo no romance tradicional, essa significação conserva inal· que nesse ínterim, pelo seu aparecimento, estão bem afastados
terada aquela mesma que a palavra tinha fora do texto. Já o sim- no tempo, e cuja comparticipação com aspectos tradicionais é
ples "ivar" ("era"), num relatório de algo que não foi, ganha evidente. Em jornais e revistas radicais de direita brada-se
uma nova qualidade figurativa pelo fato de não ter sido. Isso indignação contra o que é considerado anti-natural, super-
prossegue nos níveis de significação mais elevados de uma com- intelectual. não-sadio, decadente: eles sabem para (juem estão
posição literária, até atingir o que um dia serviu como sua idéia. escrevendo. Isso corresponde às observações da psicologia social
Da posição especial que Sartre concede à literatura terá que quanto ao caráter do afeito à autoridade. Dentre tais comporta-
mentos existenciais contam-se o convencionalismo, o respeito
1. Jean Paul Sa1tre, Was ist Litcralur! Hamburgo, 1960, p. 10. pela fachada coisificada de opinião e socíedade, a defesa contra

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emoções que se descontrolam com isso, ou que encontram no própria possibilidade de opção dependa do que está para ser es-
inconsciente do preso à autoridade algo que lhe é peculiar e que colhido. A forma prescrita da alternativa, com a qual Sartre
este de modo algum se confessa. Com essa atitude ostensiva a que[ provar o não desaparecimento da liberdade, invalida-a.·
tudo que é estranho ou que venha a causar estranheza é muito Dentro do realmente predeterminado, ela degenera em afirmação
mais compatível o realismo literário de qualquer procedência, gratuita: Het~ Marcuse deu o nome devido ao nonsense filo-
quer se considere ele mesmo crítico ou socialista, do que obras sófico de.~ :Se' pode ainda intimamente aceitar o martírio ou
que, sem se fazerem jurar a demagogias políticas, por sua sim- recusá-lo.-c'É justamente isso, porém, que deve ressaltar das si-
ples presença põem fora de ação o sisterria de coordenadas rígido tuações dramáticas de Sartre. Por isso elas servem tão mal como
do preso a autoridades, em que aquelas outras formações se opganogramas de seu próprio existencialismo, porque contêm em
fixam tão mais encarniçadamente quanto menos elas são capa- si, em nome da verdade, todo o mundo controlado que aquele
zes da viva de um não-iniciado. O desejo de destruir existencialismo ignora; através delas, aprende-se a não-liberdade.
Brecht da jogada ajusta-se a uma camada relativamente exterior Seu teatro de idéias acaba por sabotar aquilo· para que ele urdiu
consciência política; além disso não foi tão violento, senão as categorias. Mas isso não é uma insuficiência individual de
se teria manifestado depois de 13 de agosto* muito mais crasso. suas peças. Arte não significa aguçar alternativa, e sim, atra-
Onde por outro l~do o contrato social com a realidade é desfeito, vés simplesmente de sua configuração, resistir à roda viva que
as obras literárias não mais falando como se noticiassem um sempre de novo está a mirar o peito dos homens. Tão .logo,
os cabelos arrepiam-se. Não é das menores falhas entretanto, as ubras de arte engajadas ocasionem decisões e as
das discussões sobre "engajamento" que ele nada reflita sobre transformem em seu critério de valoração, essas decisões tor-
o efeito desempenhado por obras cuja própria lei formal não nam-se substituíveis. Sartre deixou francamente claro como
leva em consideração os contextos de atuação. Enquanto não se conseqüência dessa 1polissemia, que não espera nenhuma real
confunde o que é comunicado no embate com o incompreensível, transformação do mundo através da literatura; seu ceticismo tes-
toda luta se assemelha a uma luta de sombras. Perplexidades no temunha alterações históricas da sociedade como também
julgamento do problema não o modificam, mas provocam da função prática da literatura desde Voltaire. O engajamento
a reflexão da alternativa. resvala para~ mente do escritor, segundo o extremo subjetivismo
<la filosofia de Sartre em que ecoa, apesar de todos os semi-tons
Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de ten-
materialistas, a especnlação alemã. Para ele a obra de arte torna-
áenc10sismo. A arte engajada no seu sentido conciso não intenta
se convocação de sujeitos, porque não é outra coisa senão o
instituir medidas, atos legislativos, cerimônias práticas, como
manifesto do sujeito, de sua decisão ou não-decisão. Ele não
antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o parágrafo
quer afirmar que toda obra de arte, já simplesmente por sua
do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se
concepção, confronta o escritor, por mais livre que este seja.
por uma atitude: Sartre, por e:J>:emplo, pela decisão, como con-
também com exigências objetivas, como se deve acrescentar.
dição do existir frente à neutralidade espectadora. A inovação
Frente a essas exigências, seu propósito reduz-se a mero pro-
artística do engajamento, porém, frente ao veredicto tendencioso,
pósito. A questão sartreana "por que escrever?" e sua orientação
torna o conteúdo em favor do qual o artista se engaja, plurissig-
para uma "escolha mais profunda" é falha, porque, para o
nificativo, ambíguo. A categoria da decisão, originariamente
escrito, o produto literário, as motivações do autor são irrele-
de Kierkegaard, acresce-se em Sartre da herança cristã
vantes. Sartre não se distancia muito, em suas ponderações, da
do: quem não está comigo, está contra mim, porém sem o con-
idéia de que o nível das obras, como Hegel já sabia, eleva-se
teúdo concreto teológico. Remanescente dele é apenas a
quanto menos elas fiquem presas à pessoa empírica que as pro-
autoridade abstrata da opção recomendada, indiferente a que a
duz. Quando ele chama, na linguagem de Durkheim, a obra
literária 11111 "fait social", está citando sem querer a idéia
* De 13 a 14 de agostc de 1956 agrava-se o estado de saúde ele
Brecht, que acaba morrendo à meia-noite de 14, em Berlim. (N. T.) da objetividade mais intimamente coletiva da obra, intranspo-

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nível pela simples intenção subjetiva do autor. Daí que ele não dele, sem dúvida alguma contra sua vontade íntegra, aceitável
liga o engagement àquela intenção do escritor, e sim a seu ser- para a indústria cultural. O alto nível de abstração de suas.
homem.2 Esse destino, p-0rém, é tão generalizado, que o enga- ~<;as-tese permitiu-lhe levar alguns de seus melhores trabalhos,
gement se ressente de cada uma das particularidades de o "lilme "Les jeux Sont .Fait" ou o drama "Les Mains Saltes",
quaisquer obras e comportamentos humanos. Trata-se de que o a desemp.enJ:i~urn papel proeminente na. política e não apenas
escritor se engaja no presente, dans !e présent; ao presente, entre as...c~ma.s obscuras : de modo semelhante, porém, a ideolo-
porém, ele não pode sem mais razões fugir, e por isso não se gia corr~nte, odiada por Sartre, confunde ação e sofrimento das
pode daí concluir pura e simplesmente nenhuma programação. revistas-em-quadrinhos com o caráter objetivo da história. Fica
A obrigação que o escritor contrai é muito mais precisa: não . tecido no véu da personalização que homens dirigentes decidem,
é uma imposição da decisão, mas da própria coisa. Enquanto e não a maquinária anônima, e que nos comandos sociais há
Sartre fala de dialética, seu subjetivismo registra tão pouco o vida; os à-boca-da-morte em Beckett divulgam então a palavra
"outro" definido, para o qual o sujeito se externou e através oficial. O ponto de partida de Sartre impede-o de reconhecer
do qual ele chega a ser sujeito, que cada objetivação literária o inferno, contra o qual se revolta. Muitos de seus slogans po-
sua é suspeita como inflexibilidade. Mas porque a pura imedia- deriam tornar-se os chavões de seus inimigos mortais. Que se
tez e espontaneidade que ele espera salvar não se deixa trata em si de decisão, seria equiparável até mesmo ao "somente
determinar por nenhuma contraproposta, ela se deforma nÚma a vítima nos liberta" do nacional-socialismo; no fascismo da
segunda coisificação. Para produzir drama e romance sobre a Itália, o dinamismo absoluto de Gentile também profetiza algo
mera mensagem - o modelo ideal seria para ele o grito de semelhante filosoficamente. A fraqueza na concepção do enga-
d?r do torturado - ele tem qne procurar apoio numa objeti- ~ jamento acomete ju~tamente no a-favor-de4ue Sartre se engaja.
vidade plana, subtraída da dialética da obra configurada e da Brecht também, que em algumas peças como a dramatização
expressão, na comunicação de sua própria filosofia. Ela se pre- de "Mãe", de Gorki ou a "Medida", endeuza diretamente o
tende a substância da criação literária como somente em Schil-
"partido", queria às vezes, pelo menos segundo suas obras teó-
ler; segundo a medida da obra criada, porém, o comunicado,
ricas, ( des )-educar para uma atitude distanciada, intelectiva,
por mais sublime que seja, é quase nada mais que um assunto.
experimentál, para o op-0sto da ilusionista de sentirnentalização
As peças de Sartre são veículo daquilo que o autor quer dizer,
e identificação. No pendor para abstração, sua obra dramática
atrasadas em relação à evolução das formas estéticas. Elas
desde "J ohanna" triunfa consideravelmente sobre Sartre. Só que
operam com intriga tradicional e ressaltam-na com uma con-
ele, mais conseqüentemente que o último e que o artista maior,
fiança inabaláYel-e-cega em significações que se teriam que
elevou-a ela mesma à sua lei formal, à lei de uma p-0esia didátiaa
transportar da arte para a realidade. Entretanto as teses ilus-
que exclui o conceito tradicional de pessoa dramática. Ele soube
tradas ou se possível confessas abusam da emoção cuja expressão
entender qne a superfície da :vicia social, a esfera de consumo
a própria obra dramática de Sartre desencadeia, como exemplo,
para a qual contam também as ações do indivíduo motivadas
e desconfessam rnm isso a si próprias. Quando, no fim de uma
psicologicamente, encobre a essência da sociedade. Como lei de
de suas peças mais famosas, surge a frase: "o inferno são os
troca ela própria é abstrata. Brecht desconfia da individuali-
outros", 3 ela soa corno urna citação de "L'être et le N éant" ·
além do mais, poderia ser igualmente "o inferno somos nó~ zação estética como de uma ideologia. Por isso ele quer fazer
mesmos". A complexidade do enredo seguro e da igualmente a degener-essência da sociedade comportar..cse como uma apa-
segura e de3tilável idéia, deu a Sartre o grande sucesso e fez rição teatral, dis-torcendo-a sem disfarces para a tona. Os
homens no palco reduzem-se aos simples agentes de processos
2. parce quil est hommc, 5ituations. II, Paris 1948, p. 51. e funções sociais que são, indiretamente, sem se aperceberem,
no mundo empírico. Brecht não postula mais, corno Sartre;
3. Jean Paul Sartre. "Bei gcschlosserten Türen" ("Dentro de qua-
tro paredes"), in: Drnmen, Hamburg, 1960, p. 97. identidade entre os indivíduos vivos e a essência social, ou

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mesmo a soberania absoluta do su3e1to. Mas o processo de nômicos que aparecem cerno maquinações de negociantes rapaces
redução estética, que ele expõe por amor da verdade política, são, não apenas como Brecht queria, infantis, mas segundo qual-
desmente-a frontalmente. A verdade política requer mediações quer lógica. por mais primitiva, incompreensíveis. A isso corres-'
inumeráveis que ele despreza. O que se legitima artisticamente poride no plano oposto uma ingenuidade política que apenas oca-
como infantilismo alienante - as primeiras peças de Brecht sionaria ~~b::itidos por Brecht um sorriso irônico de que
faziam companhia ao Dadá - torna-se infantilidade, assim nada ter~a~têmer de inimigos tão tolos; poderiam estar tão
que pretende validez teórico-social. Brecht queria captar na satisfeitos~ com Brecht, como estão em sua peça com Johanm.
imag-em o ser-em-si do capitalismo; nesse sentido essa sua moribunda, na cena final. É tão inverossímil, por maior que
inte;çaó era de fato realista - como ele a camuflou contra o seja a generosidade na interpretação da veracidade poética, que
terror stalinista. Ele teria recusado citar aquela essência ao um comando de greve, atrás do qual se esconde o "partido",
mesmo tempo pálida e cega, sem significação por sua mani- confie a alguém não pertencente à organização uma tarefa
festação da vida avariada. Isso porém o cumulou com a decisiva, como que através da recusa daqueles poucos chefes, a
responsabilidade da integridade teórica do que inequivocamente greve geral falhe. A comédia da ascenção duradoura do grande
intencionava, de que, no quanto sua arte desdenha o quid pro ditador Arturo UI traz à luz, aberta e corretamente, a futilidade
quo, ela, que se pretende doutrina, esteja ao mesmo tempo e hipocrisia subjetivas do chefe fascista. A desmontagem dos
dispensada do compromisso que doutrina, a !:em de sua forma dirigentes, entretanto, como no comum em Brecht a do_ indi-
estética. Qualquer crítica a ele não pode silenciar que - por víduo, prolonga-se na co'nstrução das relações sociais e
razões objetivas para além da suficiência do que configurou - econômicas, em que o ditador age. Em lugar da conspiração de
ele nunca satisfez a norma que tinha erigido para si, como se -~ dados e elementos .existentes e prováveis, aparece uma orga-
ela fosse uma salvação. A Santa Joana dos Pátios de Batalha
.,jzação pueril de g~ngster, o truste couve-flor. O verdadeiro
(" Die heilige J ohanna der SchlachThof e) foi a concepção central
horror do fascismo é escamoteado ; não é mais fomentado na
de seu teatro dialético; O Bvm Homent de SezHan (Der gute
_"!',,{ ensch von S ezvan ") é uma outra variação com a conversão
concentração de poder social, mas ocasional como casos
de que, como J ohanna através da imediatez da bondade ajuda de acidente e crime. Assim o ordena o objetivo de agitação; o
o mal, também quem quer o bem tem que se fazer mau. A adversário tem que ser minimindo, e isso fomenta a política
peça desenrola-se numa Chicago que medeia entre a lenda- falsa na literatura como na praxis de antes de 1933. O ridículo
bang-bang do capitalismo de Mahagonny* e a informação eco- de que responsabilizam UI (Ui) enfraquece - contra toda a
nômica. Quanto mais intimamente Brecht então se envolve com dialética - o fascismo que Jack London, decênios antes, previra
esta, quanto menos ele tem em mira uma "Únagerie". tanto exatamente. O poeta anti-ideólogo prepara a degradação da
mais ele falha quanto à essência do capitalismo, a que a pará- própria doutrina a ideologia. A confirmação aceita tacitamente
bola se refere. Eventos da esfera da circulação econômica, de que de um lado o mundo não é mais antagonista completa-se
em que os concorrentes ªl?ertam-se mutuamente os pescoços, com a gozação sobre tudo o CJ.Ue a teodicéia do estado atual pune
surgem em lugar da apropriação da mais valia na esfera da com mentiras. Não que, por respeito à grandeza da história
produção, frente à qual as rixas dos grandes negociantes-de- mundial, fosse proibido rir-se do ameaçador, embora a palavra
gado pela participação na espoliação são epifenômenos que ameaçador na consciência-de-classe bnrguesa especule dolorosa-
pDr si nunca poderiam causar a grande crise; e os eventos eco- mente contra Hitler. E a associação que encenou a tomada do
poder era certamente um bando. l\fas essa afinidade de escolha
* Attfstieg wzd Fali dei· Stadt Mahagomzy (Ascensão e queda da não é extra-territorial, mas está enraizada na sociedade mesma.
cidade de 1\Iahagonwy): ópera de Brecht (1928/29) musicada por Kurt Daí que a gozação do fascismo, que o cinema de Chaplin tam-
\Veill, cuja estréia foi em Leipzig a 9/3/1930. Ópera de cunho culinário, bém encenou, é exatamente ao mesmo tempo o horror mais
contestando a ópera wagneriana clássica. (N. T.)
hediondo. Se se oculta isso, se se ironiza os pobres espoliadores
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de verdure_iros, onde se trata ao contrário de pos1çoes chaves ignore sua relação com a aparência é em si também tão falsa
da economia, o ataque malogra-se. Também o Grande Ditador como a substituição dos homens-que-estão-por-trás do fascismo
perde a força satírica e peca na cena em que uma judia bate p~~ ~roletariado em andrajos. A técnica de Brecht ela· redução
seguidamente ~om uma caçarola na cabeça de soldados da S-A*, so sena ~erente no círculo da l' art pour l' art, o qual sqa versão
do enga~e-~ condena, como ele ao Lukullus.
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sem ser reduzida a pedaços. Em favor do engagement político,
dá-se pouco peso à realidade política: isso reduz também 0
Nã~Alemânha literária de hoje, costuma-se separar o
efeito político. A dúvida sincera de Sartre sobre se o quadro
poeta-Brecht do político. Quer-se salvaguardar para o Ocidente
Guernica "arrecadou para a causa espanhola um lugar único",
a figura importante, se possível colocá-lo no pedestal de uma
adapta-se também à peça dialética brechtiana. A "fabula docet"
daí retirada - de que no mundo reina injustiça - quase não
e
Alemanha unificada, com isso, au-dessus de la mélée· neutra-
lizá-lo. Certamente é correto que a força poética d~ Brecht
se precisa ensinar; a teoria dialética, em favor da qual Brecht
como tamb~r:-1 sua inteli%~ncia a~guta e indomável ultrapassaram
se confessou sumariamente, deixou aí poucos vestígios. A natu-
o credo of1C1a! e a estetJca sub;ugacla elos democratas~do-povo.
rez.a da peça didática faz lembrar o dito americano "preaching
Do mesmo modo ter-se-ia que defender Brecht de sua defesa.
to the saved", orar por aqueles que por si já estão salvos. Em
Sua obra não teria, com suas fraquezas hoje apontadas, tal
verdz.de, o primado da doutrinação sobre a forma pura, advo-
força, se não fosse embebida ela política. Isso produz, mesmo
gado por Brecht, torna-se o próprio aspecto formal. Ao ser
nos produtos mais problemáticos como a i\1 edida, a consciência
abolida, ela (a forma) se volta contra seu caráter ilusório.
de que se trata de algo muito sério. Com isso ele satisfez sua
Sua autocrítica é paralela à objetividade no reino da arte visual
pretensão de através elo teatro ocasionar a reflexão. Debalde
aplicada. A correção da forma, condicionada por fora,
~ separar as belezas !'lXÍstentes ou fictícias ele sua obra, ela inten-
a destruição dos enfeites a bem da funcionalidade, aumenta a
ç~o p_olítica. Uma crítica imanente, a única dialética, tem que
autonomia. Essa a substância da criação poética de Brecht: a
smtetizar a questão da plausibilidade do todo formado com a
JJeça didática como princípio artístico. Seu meio, o distancia-
de sua ,política. Com muita razão diz Sartre em seu ensaio "por
mento de eventos diretamente aperentes, é pois, antes um meio
que escrev~r ?": "ninguém deveria crer um momento sequer
de constituição formal, do que uma colaboração para a atuação
que se poderia escrever um bom romance em louvor do anti-
prática. E Brecht não falou dessa atuação com tanta descrença
semitismo "4. Mas também nenhum em louvor dos processos
como Sartre. Mas, inteligente e experimentado, dificilmente
moscovitas, mesmo quando antes eram subvencionados, quando
estava totalmente convencido dela; soberano, escreveu certa vez
Stalin fez matar Sinowjev e Bucharin. A inverdade política
que quando ele nãn se ilude, para ele é o teatro que é mesmo
mais importante do que aquela transformação elo mundo, a mancha a configuração estética. Onde, em favor do tema a ser
privado, a problemática social que Brecht reflexiona f'm seu
que nele (Brecht) diz servir. Pelo princípio artístico da sim-
teatro épico é des-torcid::i, o drama se desmorona em seu
plificação, porém, não se purifica apenas a verdadeira política
próprio contexto de fundamentação. A Míie Coragem é uma
das pseudo-diferenciações no reflexo subjetivo do social
cartilha ilustrada que quer levar ao absurdo a asserção
objetivo, como el<> entendia. Mas fica falsificado justa-
mente aquele objetivo, por cuja destilação a peça didática se montecucúlia * de que a guerra alimenta a guerra. A vendedora
ambulante que aproveita a guerra para manter seus filhos tem
esforç:i.. Se se toma Brecht ao pé da letra; se se faz da política
que provocar a destruição deles, justamente por isso. Mas na
o critério de seu te:i.tro engajado, e~te se patenteia politicamente
inverdadeiro. A lógica de Hegel ensinou que a essência tem
4. Sartre. "f,Vas ist Litcratv.r ! (Que é literatura?), opus cit., p. 41.
que aparecer. Mas então uma apresentação da essência que
* Raimrmdo Montecuccoli (1609-1680) gênio militar italiano a ser-
viço da casa austríaca dos Habsburgs; além de marechal de campanha,
* S-A: Sturm-Abteilung (tropa de assalto) do 3. 0
Rcich, sob o destacou-se pela sua conhecida teoria militar, arte da guerra que desen-
comando de Ernst Rohm. (X. T.) volveu em tratados: Della /Jatlaglia, Tratado della guerra.

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peça essa culpa não decorre inapelavelmente nem da situação digerir melhor, e esganiça-se. Já a masculinidade pubertária e
da guerra, nem do comportamento da pequena negocia;i~e; se rouca do jovem Brecht trai uma coragem emprestada de inte-
ela não estivesse ausente justamente no momento cntico, o lechi.al que desesperado pela força simplesmente passa-se à praxis ·
desastre não aconteceria, e que ela tenha que estar ausente para fÜfçada, que ele tem toda a razão de temer. O rugido selvagem
fazer algum dinheiro, só se relaciona com o que ocorre, de da Medida abafa a desgraça que acometeu o fato e que ele
modo muito generalizado. Essa técnica de folha ilustrada, que queria '}l~g~ inflexivelmente como graça. Mesmo a melhor
Brecht utiliza para evidenciar a tese, impede essa mesma com- parte de i3recht é infectada pelo engodo de seu engajamento. A
provação. Uma análise político-social éomo Marx e Engels linguagem denuncia o quanto se distanciam o sujeito poético
esboçaram contra o drama - "Síckin_gen de. La~sale" levaria à e a sua mensagem. Para contornar essa defasagem, ela afeta
conclusão de que, através do paralelismo simplista da guerra a iinguagem do subjugado. Mas a doutrina que ela propagandeia
de 30 anos com uma outra moderna, seria abolido o que real- exige a linguagem do intelectual. Sua despretensão e simpli-
mente é decisivo sobre o comportamento e destino da mãe cidade é ficção. Ela se trai tanto através de sinais de exagero
corarrem na moção Grimmelshausen. Porque a sociedade da como através da recorrência estilizante a caracteres de expres-
auer~a de 30 anos não é a funcional da moderna, poeticamente são antiquados e provincianos. Não raro ela se torna familiar.
~ambém não se pode estipular nenhum relacionamento. fe~hado Ouvidos que não se deixam roubar a própria capacidade de
de funções, no qual a vida e a morte do indivíduo particular diferenciação têm que ouvir que se quer enganá-los com_ con-
se tornassem sem mais transparentes, à luz da lei econômica. versa mole. É usurpação e como que ironia para com a.s vítimas
Apesar disso Brecht precisa dos antigos tempos selvagens como falar com elas como se fosse realmente uma delas. É permitido
alegoria para os presentes, pois foi ele justamente que perce?eu fazer-se qualquer papel, menos o do proletário. O que m:iis
que a sociedade de seu próprio séci:lo não é m~1: detecta'.'el pesa contra o engajamento é que mesmo a intenção correta
diretamente em homens e c01sas. Assim a compos1çao da socie- falseia quando é percebida e mais ainda quando justo por ess:i
dade descaminha primeiramente para a c~nstrução s?~al razão ela se mascara. No Brecht tardio, a ficção do velho
degenerada e depois para a imotivação dramática. Mal pohti,co camponês saturado de vivência épica como (elo) sujeito :poético
se torna um mal artístico e vice-versa. Quanto menos porem chega assim- no "Gestus"* lingüístico da sabedoria. Nenhum
as obras têm que anunciar algo que elas não se podem ac;ed~tar homem em nenhum país do mundo é hoje ainda capaz dessa
completamente, tanto mais coerentes se torn~m elas propnas; áspera experiência do camponês sul-alemão; o tom cauteloso
tanto menos precisam um saldo daquilo que dizem, sobre o que se toma meio de propaganda política, que deve fingir que lá
são. Além disso, os verdadeiros interessados em todos os acam- onde o exército vermelho tomou uma vez o poder é que a
pamentos deveriam - hoje ainda - resistir bem :razoavelmente vida é o certo. Como realmente não existe nada em que aquela
às guerras. humanidade se possa ancorar, humanidade que entretanto é
captada como realizada, o tom de Brecht se faz eco de relações
Tais aporias se reproduzem até mesmo no íntimo da fibra sociais arcaicas, que estão inapelavelmente desaparecidas. O
poética, no tom brechtiano. Por menos que haja dúvidas quanto Brecht tardio não estava muito afastado da humanidade oficial.
a ele e à sua inconíundibilidade - qualidade a que o Brecht Um ocidental com intenções jornalísticas poderia bem louvar o
maduro teria dado pouc1 importância - ele é envenenado pela Círculo de Giz Caucasiano como o salmo da maternidade; e
inverdade de sua política. Como o que ele propagandeia não é quem não desmancharia o coração quando a empregada exu-
simplesmente um socialismo imperfeito, como ele acreditou berante fosse levada como exemplo à patroa acamada com
muito tempo, mas um domínio-de-força, em que sempre está enxaqueca. Baudelaire que dedicou sua obra a quem cunhou a
de novo presente a irracionalidade cega do jogo de forças da fórmula l' art pour l' art, seria menos indicado para tal catarse.
sociedade, a que Brecht como apologízador da compreensão no
fundo ajudou, a voz lírica tem que engolir giz, para poder * Gestus = gesto que revela um ato do pensamento. (N. T.)

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se a vergonha frente às vítimas fosse ferida. Dessas vítimas
Mesmo poemas tão altamente planejados virtu?sos como a "Le-
prepara-se algo, obras de arte, lançadas à antropofagia do mun-
gende von der Entstehung des Buches Taoteking auf de_m W.~g
do~que as matou. A chamada configuração artística da crua ·
des Laotse in die Emigration" são turvados pela teatra!ida~e de
total despretensão. O que seus clássicos ~~nd.a dem~nCiaram ãm- corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que
corno parvoíce da vida campestre, a consc1enc1a m~t;lada de de muito longe, o potencial de espremendo-se escorrer prazer.
famintos e subjugados, torna-se para ele, como um filosofo da A mor~~age a arte a não esquecer isso um segundo,
ontologia existencial, a velha grande verdade. Sua obra completa cscorregà p3.ra o abismo da anti-moral. Pelo princípio de esti-
lização estética e até pela prece solene do coro, o destino
é um esforço de Sisifo para equil~bi_:ar. alguma ve~ ~eu gosto
cultivado e diferenciado com as ex1genc1as heteronom1cas tolas imponderável se apresenta como se tivesse tido algum sentido
que de tomou a si desespetadamente. algum dia; é sublimado, e tira-se um pouco de seu horror. Basta
isso para fazer-:se injustiça às vítimas, quando, entretanto, pe-
Eu não procuraria desculpar a frase: escrever-se lírica rante a justiça nenhuma arte que evitasse o caminho delas
depois de Ausschwitz é barbara; a~ está n.egativamente confes- resistiria. O tom de desespero paga também seu tributo à afir-
sado o impulso que anima a pDes1a engapda. A pergunta de mação infame. Obras de nível inferior àquelas exponenciais são
;d(Tuém em "J,f orts sans Scpult11res": há sentido viver quando portanto também deglutidas com prazer, um pouco de renova-
e~istem homens que batem até que os ossos se quebram nc ção do passado. No momento em que, na literatura engajaqa, o
corpo. é ao mesmo tempo a pergunta se a arte cm s~ma ai1:1da assassm10 generalizado (do povo) toma-se bem cultural,
pode existir, se lima regressão do mtelecto no conceito d_e hte- fica mais fácil colaborar-se com a cultura que fez nascer o
ratnra encrajada não é sujeitada pela regressão da sociedade assassínio. Quase infalível é uma característica dessa literatura:
mesma. Mas também continua válida a aproximação contrária - que ela, propDsitalmente ou não, deixa perceber-se que mesmo
de Enzensberger: a JX>esia precisa resistir a esse veredicto; ser nas chamadas situações extremas, e justamente nelas, floresce
portanto de tal modo que não tome a si pela sua simples e..-x:is- o humano; às vezes surge da uma metafísica baça que reafirma
tência deJX>Ís de Ausschwitz, o cinismo. Sua própria situação ser possível o horror levado à situação-limite, a ponto de nele
já é paradoxal; e não ;:i::ienas o modo de comi::ortament~ frente deixar revelar-se a peculiaridade do HOMEM. No clima exis-
a ela. O excesso de sofrimento real não permite esquecimento; tencial acolhedor, desfaz-se a diferença entre carrascos e
a palavra teológica de Pascal "on ne doit plus dormir" dev~:se vítimas, porque ambos são igualmente lançados na possibilidade
secularizar. Mas aquele sofrimento, segundo Hegel a consc1en- do nada, que sem dúvida é geralmente mais apropriada aos
cia de misérias, requer também a permanência da arte que carrascos.
proíbe. Não há quase outro lugar em que o sofrin:ento. enco_ntre Os discípulos daquela metafísica que a essa altura des'-
sua própria voz, o consolo, sem que este o J.tra1çoe 11ned1ata- cambou para um ..simples jogo intelectual, trovejam como antes
mente. Os mais significativos artistas da época ,seguiram-no. O. de 1933 contra o desfeiamehto, distorção, perversão artística
radicalismo sem concessões de suas obras, justamente as pros- da vida, como se os autores tivessem culpa naquilo contra que
critas por formalistas, empresta-lhe a força assombrosa que se entesam, indo o que eles escrevem igualar-se àquele horrendo.
se escoa de poesias sem esperança, para suas vítimas. Mas Uma estória sobre Picasso ilustra do melhor modo essa maneira
mesmo o "sobrevivente de \\'arschau" fica ;:iprisíonado na apo- de pensar ainda hoje epidêmica entre os alemães bucólicos.
ria a que ele, configuração autônoma da heteronomia que se Quando um oficial alemão da ocupação visitou-o em seu atelier
tornou maldição, se entrega sem reservas. Há uma dor que se e lhe perguntou em frente ao quadro Guernica "o senhor fez
associa à composição de Schonberg. E não é absolutamente aqui- isso?, ele terá respondido: "não, o senhor". Também obras de
lo que aborrece o alemão, porque não permite reprimir o que arte autônomas, como esse quadro, negam com certeza a rea-
se quer afastar a qualquer preço. Mas ao ser feita imagem lidade empírica, destroem a destruidora, aquilo que aí está.
metafórica, apesar de toda a crueza e incompatibilidade, é como simplesmente e como mero existente repete infinitamente a

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culpa. Ninguém senão Sartre reconheceu_º r:l~cior:an:ent? entre ao espelhar-se neles. A mimma promessa de felicidade ai, que
a autonomia da obra e um querer, que nao e impnm1do a obra, não __se vende a nenhuma consolação, não se pôde conseguir a
mas que é seu próprio gestus frente à realidade. "A obra de prnço mais baixo que o da perfeita inter-articulação até a apa~
arte", escreveu ele, "não tem objetivo algum, nisso concorda- tridade. Todo engajamento em favor do mundo deve dar seu
mos com Kant. Ela é, porém um objetivo. A formulação kan- aviso prévio,~ que se faça justiça à idéia de uma obra de
tiana ignora o apelo que fala de cada quadro, de cada estátua, arte engai~, ao distanciamento polêmico que o teórico Brecht
de cada livro"S. A isso ter-se-ia apenas que acrescentar que esse pensou, e "que praticou tanto menos quanto mais se inscreveu
apelo não está em nenhuma relação intàcta com o engajamento na causa humana. Esse paradoxo, que provoca o protésto dos
temático da poesia. A autonomia brutal das obras, _que se fm:ta sutis, apóia-se sem mais· filosofia, na mais simples experiência:
à submissão ao mercado e ao consumo, torna-se mvoluntana- a prosa de Kafka, as peças de Beckett, ou o verdadeiramente
mente um ataque. Este porém não é abstrato, não é um com- terrível romance "Der N amenlose" (O Sem N ame) provocam
portamento invariável de todas as obras de arte para com o uma reação frente à qual as obras oficialmente engajadas des-
mundo que não lhes perdoa não se adaptarem .totalmente.~ ele; bancam-se como brinquedos; provocam o medo que o existen-
O distanciamento das obras para com a realidade empmca e cialismo apenas persuade. Como desmontagem da aparência,
antes ao mesmo tempo intermediado por esta. A imaginação do fazem explodir a arte por dentro, que o engagement procla-
artista não é nenhuma creatio ex nihilo; apenas diletantes e sutis mado submete por fora, e por isso só aparentemente. Sua
imaginam-na assim. Ao oporem-se à empiria, as obras de arte irrecorribilidade obriga àquela mudança de comport.;.mento que
estão a obedecer às forças dessa empiria, que ao mesmo tempo as obras engajadas apenas anseiam. Aquele a quem as rodas
renegam o espiritual da obra, deixam-no ao dispor .de si n'csmo. ~de Kafka atropelaratp um dia, para ele a paz com o mundo
Não há um conteúdo objetivo, nem uma catégona formal da está tão perdida como a possibilidade de acomodar-se com a
poesia, por mais irreconhecivelmente transformado e às escon- sentença de que o giro do mundo é ruim: o aspecto confirma-
didas de si mesmo, que não proceda da realidade empírica a que tivo inerente à comprovação resignada da supremacia do real é
se furta. Com isso e com o reagrupamento dos diferentes corr::iído. Entretanto quanto maior a pretensão, tanto maior a
aspectos graças a suas leis formais, a poesia condiciona seu chance do naufrágio e insucesso. O que em pintura e música
comportamento para com a realidade. Mesmo a abstração van- se observou como perda de tensão - nas composições que se
guardista, frente à qual o burguês se desarma, e que não tem afastavam da reprodução objetiva e da coerência conteudística
nada em comum com a conceitua! e mental, é o reflexo sobre a captável - comunica-se de vários modos à literatura, segundo
um mau costume da língua vulgarmente chamada de textos. Ela,
abstração da lei, que impera objetivamente na sociedade. Isso
chega à margem da indiferença, degenera imperceptivelmente
poderia ser mostrado nas composições de Beckett. El~s gozam
para artesanato, para o jogo de repetições de fórmulas perc~
da única fama hoje digna do homem: todos se horronzam com
bido em outros gêneros, para padronagens de tapeçaria. Isso
elas, e no entanto ninguém pode negar que as peças e romances
dá direito muitas vezes à fomentação grosseira do engagement.
excêntricos tratam daquilo que todos sabem, e sobre que nin- Composições que exigem a mentirosa positividade de sentido,
guém quer falar. Sua obra como esboço an~ropológico pode
recaem facilmente num despropósito de outra espécie, a pro-
agradar a apologetas filósofos. Mas est~ ':, serviço ~~ problemas moção positivista, o vaidoso jogo estocástico com os elementos.
históricos altamente concretos: da dem1ssao do sujeito. O Ecce Com isso sucumbem ao círculo de que se querem desviar. Caso
H amo de Beckett é o que se faz dos homens. Como com olhos limite é o da literatura que se troca adialeticamente com ciên-
aos quais secaram-se as lágrimas, olham mudos de suas frases. cia, e em vão sintoniza-se com a cibernética. Os extremos se
O encanto que propalam, e sob o qual vivem presos, desfaz-se tocam : o que corta a última comunicação se torna. presa de
teoria da comunicação. Nenhum critério rijo traça o limite
5. opus cit., p. 31. entre a negação decidida e a má positividade do sem-sentido,

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como de um continuar fluente, fluindo a seu próprio bem. nico do socialismo estatal, ela efemina-se e impede a ação por
Nesse último caso, um tal limite seria a invocação do humano, causa da ação, o pecado original alemão. Aversão à felicidade,
e a maldição da mecanização. As obras de arte (JUe com sua asc~'tismo, tal espécie de ethos que sempre de novo fala nomes
existência abraçam o partido das vítimas da racio;alidade que comb Lute;-o e Bismarck, não querem nenhuma autonomia esté-
submete a natureza, estiveram no protesto - já por sua própria tic~ ; un:a .sub~ente do het:rônim~ submis5? .fundamenta sem
natureza - sempre envolvidas no processo de racionalização. maiores -~s· e pathos do imperativo categonco, que por um
Se pretendessem renegá-lo, estariam estética e socialmente inca- lado deve~' ser a própria razão, mas por outro lado deve ser
pacitadas: uma gleba mais elevada. O princípio organizador, o algo simplesmente dado e que se tem que acatar cegamente. Há
princípio que promove a unidade de cada obra de arte, é justa- 50 anos combatia-se ainda George e sua escola como esteticismo
mente tomado da racionalidade, a cuja pretensão totalitária ele de francesistas. Hoje a podridão que as bombas não fizeram
quer pôr termo. explodir aliou-se ao ódio à pretensa incompreensibilidade da
Na história da conciência francesa e alemã, a questão do nova arte. Como temário descobrir-se-ia o ódio pequeno burguês
engag.ement apresenta-se diferentemente. Na França domina ao sexo, nisso coincidem os moralistas ocidentais com os ideó-
esteticamente, de modo aberto ou oculto, o princípio de l' art logos do realismo socialista. Nenhum terror moralista tem o
f'our l-'art, conjurado com tendências acadêmicas e rea- poder de evitar que a face que a obra de arte volta ao obser-
cion:í.rias. Isso explica a revolta ad\·ersária. 6 l\-iesmo obras vador provoque neste algum prazer, mesmo que fosse apenas
extremamente vanguardistas têm na França nm toque do deco- através da realidade formal da libertação temporária do domí-
rativo agradável. Por isso o apelo de existência e engajamento nio das finalidades práticas. Thomas Mann expressou isso em
soou lá como revolucionário. Na Alemanha se deu o contrário. ·- lermos de extrema gozação, insuportável aos proprietários da
Parn uma tradição que se liga profundamente ao idea1ismo/ale- moral. Mesmo Brecfü que não estava livre de traços ascéticos
rnão (seu primeiro documento famoso, recebido da história - eles retornam metamorfoseados, nos melindres da grande arte
cultural dos professores secundários é o ensaio de Schiller sobre autônoma contra o consumo - , Brecht chegou em verdade a
o teatro como instituição moral), a falta de finalidade da arte, denunciar com razão a arte culinária, mas foi modesto demais
que entretanto foi de início elevada teoricamente por um alemão, a ponto de ignorar que quanto a problemas de atuação e acei-
de modo puro e inatacável, a padrão do julgamento de gosto, tação da obra, não se pode deixar de lado totalmente o aspecto
só podia ser suspeita. Não por causa da absolntização do espí- do prazer mesmo considerando-se a composição mais severa.
rito, ligada a ela: esta justamente esvaiu-se em arroubos, na Pelo primado do objeto estético como de um todo autenticamente
filosofia alemã. E sim peia face que a obra de arte desvinculada acabado. o consumo .:: com ele o mau acordo não entram entre-
volta à sociedade. Essa face lembra aquele gozo sensual de tanto de novo por um atalho de caminho. Pois enquanto aquele
que participa, sublimadamente e por negação, mesmo a mais :aspecto, mesmo que fosse .extirpado da atuação, está s~mpre
extrema dissonância, e justamente esta. Se a filosofia especula- de volta nela, o relacionamento de aceitação e efeito não é o
tiYa alenú subministrava o momento de transcendência da obra princípio a que as obras autônomas se submetem, e sim sua
de arte, a s;cher, f)Ue sua própria estrutura é sempre mais do própria estrutura íntima. Elas são sabedoria, como objeto
que a obra, daí se deduziu uma indicação moral. A obra de abstrato. Nisso se apóia sua dignidade. Não têm que convencer
arte, en: conseqüência daquela tradição latente, não deve ser os homens dessa dignidade, porque ela está em suas mãos.
algo por si, porque senão. como já estigmatizou o plano platô- Daí que a Alemanha hoje chegou antes à época de defender a
obra autônoma que a engajada. Esta apossou-se com excessiva
6. " Sabe-se que ;\ftc oura e arte vazia são a mesma coisa, e que o futilidade de todos os valores nobres, para detratá-los. Também
pmismo cstetico no stculn pass:ido foi uma brilhante manobra defensiva no fascismo nenhuma sujeira foi cometida que não se tenha
dos burgueses que preferiam ver-se dermnciados como filisteus que como limpo moralmente. üs que hoje ainda bradam por sua ética. e
cspernlarlorc.>''. (opus cit., p. 20).
humanidade, espreitam apenas perseguir aqueles que segundo
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suas normas de jogo são condenados, e na praxis praticar a que há de cultural mesmo as compos1çoes íntegras, ameaça
mesma desumanidade que teoricamente repreendem à nova arte. sufocar-se no palavrório da cultura, ao mesmo tempo encarre-
Na Alemanha o engagement recai reiteradamente em balido, no ga~se às obras de arte que suportem caladamente o que é in-
que todos dizem, ou ao menos no que latentemente todos gos- teNito à política. O próprio Sartre expressou isso num trecho
tariam de ouvir. No conceito da "message", da mensagem da que honra sua integridade 7 • Não estão em época as obras de
arte mesma, mesmo da políticamente radical, esconde-se já o arte pol_~;~s a política imiscuiu-se nas autônomas, e mais
aspecto mundano. No Gestus de recitar um acordo secreto com amplamêkte onde se mostram politicamente mortas, como na
aqueles a quem nos dirigimos, que somente assim poderiam ser parábola de Kafka das armas de crianças, onde se funde a
arrancados da cegueira de compactuar tal acordo. idéia de impotência com a consciência crepuscular da parali-
Uma literatura que como a engajada, mas também como zação em riste da política. Paul Klee que se insere na dis-
os filisteus éticos a querem, existe para o homem, acaba por cussão sobre arte engajada e arte autônoma porque sua obra
traindo a causa que o poderia auxiliar se não gesticulasse - écriture par excellence - teve suas raízes literárias e seria
arremedas como se estivesse a ajudá-lo. O que, porém, tirasse tão fraca se não as tivesse tido, como se não as tivesse consu-
daí a conseqüência de se pôr a si mesmo absolutamente, de só mido - Paul Klee desenhou durante a primeira guerra ou
existir por causa de si mesmo, chegaria, do mesmo modo, à pouco depois caricaturas contra o Imperador Guilherme como
ideologia. Ela não pode ultrapassar as sombras da irraciona- desumano devorador de ferro. Delas surgiu - creio que se
lidade, a sàber, que a arte deve fechar os o;hos e os ouvidos poderia comprovar com precisão - no ano de 1920 o Angelus
para o fato de, mesmo em sua oposição, constituir um momento Novus, o anjo da máquina, que não traz mais nenhuma emblema
da sociedade. Mas se ela mesma recorre a isso, se freia arbi- claro de caricatura e engajamento, mas envolve amplamente
trariamente o pensamento de seu condicionamento, e disso se com suas asas. Com olhar enigmático, o anjo da máquina
deduz sua raison d' être, ela falsifica a maldição que paira sobre força o contemplador a se perguntar se ele anuncia a desgraça
si, sob a forma de sua teodicéia. Mesmo na obra de arte mais consumada ou a salvação aí mascarada. É, porém, segundo as
sublimada, abriga-se um "deve ser de outro modo"; e mesmo palavr: rle Walter Benjamin, qne possuía a ilustração. o anjo
onde ela só se igualasse a si mesma, como em sua pura elabo- que não tra?", mas toma.
ração tornada científica, estaria ainda aí descambando no mau,
literalmente no pré-artístico. Fica transmitido porém, o aspecto Traduçiío de CELESTE AÍDA GALEÃO
do querer, e..xclusivamente pela configuração da obra, cuja cris-
talização se torna metáfora de algo diverso, que deve vir a
ser. Como algo meramente feito, fabricado, as obras de arte,
também as literárias, são regras de orientação para a praxís
a que se furtam: a fabricação da vida propriamente dita. Essa
mediação não é um meio caminho entre engagement e autono-
mia, não é uma mistura qualquer de elementos formais avança-
dos e de um valor espiritual visando a uma política progressiva
(concreta ou supostamente). O valor das obras não é absolu-
tamente o que lhe foi incutido de espiritual, antes o contrário.
A ênfase ao trabalho autônomo, entretanto, é por si mesma de
essência sócio-política. A deformação da política verdadeira aqui
e hoje, o enrijecimento das relações que não se dispõem a de-
gelar em parte alguma, obriga o espírito a tomar um rumo em
7. Cf. Jean-Paul Sartre. L'c'xistentia/1s111c oi 1t11 h11111a11is111c, Paris-,
que ele não precise se acanalhar. Enquanto atualmente tudo o 1946, p. 105.

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