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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A fórmula do desvio - 04/12/2005

São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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+ autores

Crítica ao consumo por artistas contemporâneos ignora o


ataque de Maio de 68 ao capitalismo

A fórmula do desvio
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Um porco cor-de-rosa deitado, feito de silicone, metal e fibra


de vidro, levanta suavemente orelhas, patas e rabo ao
comando de um aparelho elétrico. Um pouco mais adiante,
outros porcos, estes de latão, copulam alegremente com
piratas, à sombra de coqueiros metálicos, que enfeitam uma
ilha de latão pousada num mar de resina. Ao redor, na
galeria, vêem-se barcos de madeira ou bustos de piratas em
materiais diversos. As paredes da sala estão cobertas de
grandes desenhos, feitos a guache, representando outros
piratas de histórias em quadrinhos envolvidos em diversas
atividades burlescas ou pornográficas.
No andar superior, acumulam-se bustos, máscaras ou corpos
desmembrados em gesso; montagens fotográficas nas
paredes nos mostram corpos misturados e pintados de
vermelho berrante, que parodiam as cerimônias sangrentas
do acionismo vienense dos anos 60, enquanto o manequim
de cera do artista adormecido exibe seu sexo descoberto ao
olhar divertido dos adolescentes de passagem.
A exposição, apresentada pela White Chapel Art Gallery,
chama-se "Lala-Land Parody Paradise" [Paraíso da Paródia
Lala-Land] e confirma o gosto de seu autor, Paul McCarthy,
pelas grandes encenações que misturam a iconografia
popular dos filmes de animação, dos quadrinhos ou dos
parques de diversão e a dos filmes pornográficos, com a
intenção sempre declarada de nos revelar o "lado sombrio"
das mitologias consumistas, ao mesmo tempo em que dá
livre curso à alegre energia popular captada pelos ícones do
comércio e do poder.
Um pouco mais ao norte, numa outra galeria do East End
londrino, os irmãos Jake e Dinos Chapman propõem, em
torno dos "Caprichos" de Goya, por eles reproduzidos,
modificados e sarapintados, uma proliferação de desenhos e
gravuras nos quais se agita todo um povo de ícones infantis -
Chapeuzinho Vermelho, os três porquinhos, Bambi e uma
infinidade de coelhos, ursos, feiticeiros, duendes e dragões
os mais variados, todos entregues a atividades perversas.
Do outro lado do Tâmisa, a exposição "Universal
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Experience" dedica-se às produções artísticas suscitadas pelo


fenômeno do turismo de massa. Nela se destaca, entre um
vídeo sobre turistas americanos que imitam canibais e
fotografias de diversos lugares célebres reproduzidos num
parque de diversões de Las Vegas, uma grande instalação de
Thomas Hirschorn, em forma de pirâmide de papelão, na
qual se misturam, sobre obeliscos e sarcófagos igualmente
de papelão, imagens de imprensa da Guerra do Iraque,
cópias de estatuetas egípcias e imagens pornográficas.
Prosseguindo em direção ao oeste, pode-se visitar a terceira
edição da Frieze Art Fair e ali constatar que o "retorno da
pintura", muito proclamado nos últimos tempos pelos
galeristas, obedece basicamente à mesma estética. Quer
utilizem técnicas neo-expressionistas, pós-pop ou neo-hiper-
realistas, os pintores recorrem em massa ou à iconografia
popular e publicitária americana ou à dos heróis do trabalho
soviética e chinesa, quando não às estampas infantis ou aos
cromos religiosos de antigamente.
Não se sabe muito bem, no limite, se essa pintura "neo-pós"
imita a iconografia popular e publicitária kitsch, se imita a
pintura que imitava ontem essa iconografia ou se imita
simplesmente a prática antiquada da pintura, transformada
ela própria num elemento da cultura kitsch.

Estereótipos da percepção
É o problema colocado por essas estratégias artísticas que
reproduzem ou transformam a iconografia dominante. Elas
se afirmam, às vezes, como um simples jogo. Mas, com mais
freqüência, insistem em reafirmar uma vocação de crítica
política e social. Elas pretendem reelabor todos esses ícones
da infância, da mercadoria, do comércio e da publicidade
para nos fazer perceber os estereótipos que governam nossa
percepção.
Um termo, sempre em voga, resume tal pretensão: desvio.
Ao darem uma forma plástica monumental às imagens
planas das telas midiáticas e dos cartazes publicitários, ao
acentuarem a vulgaridade das imagens reinantes, ao
transformarem seu erotismo discreto em pornografia
berrante, os artistas parodistas estariam levando adiante a
tradição crítica do desvio tal como era entendido nos anos 60
e 70.
O grande teórico da "sociedade do espetáculo", Guy Debord
[1931-94], já não havia proposto, com essa finalidade, este
conceito: voltar contra o inimigo suas próprias imagens? Há
alguns anos, em Paris, o centro Pompidou apresentava uma
grande exposição intitulada "Para Além do Espetáculo":
filmes publicitários, personagens de mangás, sons de
discoteca, balões, carrosséis e brinquedos reciclados
associavam-se a um caubói lúbrico de Paul McCarthy e a
uma estátua neoclássica de Jeff Koons por ele mesmo como
ídolo pop, para significar a derrisão das distrações e das
imagens kitsch da cultura de massa.
O problema é que esse tipo de desvio já foi muito praticado,
e a iconografia dominante o anula de antemão, ao produzir
sua própria derrisão e sua própria paródia.
Mas também não é certo que a referência ao situacionismo e
ao pensamento contestatário de Maio de 68 seja muito fiel ao
estilo desse pensamento. O novo entusiasmo pelo
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situacionismo oferece os meios de verificá-lo: Guy Debord


entendia por espetáculo algo mais que a cultura midiática de
massa e, por desvio, não apenas a repetição em traços
exagerados dos ícone mercantis. Seus filmes, durante muito
tempo subtraídos ao público por sua vontade mesma, estão
reaparecendo, aliás, em salas de cinema e sendo editados em
DVD.
E quem vê "A Sociedade do Espetáculo" [1973] ou "In
Girum Imus Nocte et Consumimur Igni" [1978] pode
constatar que o espetáculo, para o teórico do situacionismo,
era bem mais que a cultura midiática. Era o mundo da vida
separado dos indivíduos, apropriado pelas forças do
capitalismo ocidental e da burocracia soviética.
Assim, ele não buscava, nesses filmes, enfatizar a
proliferação das mercadorias e de seus ícones.
Suas imagens noturnas dos "halles" de Paris nada têm a ver
com o amontoado de mercadorias que, em muitas instalações
contemporâneas, supostamente critica o reinado do consumo.
Elas evocavam nostalgicamente a velha Paris misteriosa dos
passeios surrealistas, que ia ser destruída pelas grandes
operações imobiliárias dos anos 70.
E as imagens que ele voltava contra o inimigo não eram as
das publicidades estupidificantes. Eram histórias de amor,
ação e heroísmo contadas pelos westerns de John Ford,
Raoul Walsh e Nicholas Ray.
Não era por derrisão antiianque que ele nos mostrava Erroll
Flynn partindo ao ataque contra as tropas sulistas ou os
índios, mas para reivindicar sua bravura no ataque contra o
inimigo capitalista e burocrático. E o tom aristocrático e o
estilo elegante de seus comentários estavam muito longe do
humor carnavalesco dos artistas de hoje. A oposição global
declarada contra a dominação mercantil dispensava o
trabalho de copiar-lhe as insígnias.
Certamente havia em Guy Debord uma pose aristocrática
muito particular. Mas, se ele pôde se tornar um ícone do
"pensamento de 68" é porque a forma de contestação da
cultura dominante praticada naqueles anos estava muito
distante da que reivindicam, em nome do desvio, os artistas
de hoje.
Uma outra ocasião de verificar isso é fornecida pelo filme de
Philippe Garrel, "Les Amants Réguliers" [Os Amantes
Regulares], recentemente premiado no Festival de Veneza.
Não que se trate de um filme militante que lembraria as
verdadeiras palavras de ordem do combate parisiense de 68.
Ao contrário, a distância está no núcleo do filme: distância
entre os grupos jovens dos atores de hoje e os grupos jovens
dos anos 60, cuja sensibilidade e as maneiras de ser tentam
recuperar; mas distância também daqueles próprios grupos
em relação ao que lhes acontecia e ao que procuravam fazer
advir na sua tentativa de "mudar a vida": confusão da noite
das barricadas, dividida entre o amor a reinventar e a
fidelidade à subversão artística, desejos de fuga e seduções
da droga.
Os personagens do filme atravessam essas experiências, nas
quais se resume facilmente a história de uma geração, como
que na ponta dos pés, como que assustados com o ruído que
fizeram por um momento na cena do mundo. O que o filme
de Garrel nos restitui de forma perturbadora é a fragilidade, a
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timidez que estiveram no centro do sonho de transformação


daqueles anos. É essa espécie de pudor meditativo no
confronto que é tachado, retrospectivamente, de
ingenuidade.
Mas talvez haja uma lei mais geral: os grupos nunca estão
realmente prontos para os grandes confrontos nos quais se
arriscam. Comparada à falta de habilidade dos jovens heróis
de Garrel, a animação berrante dos campeões do desvio de
hoje se parece mais com a patifaria que acompanha os
consentimentos à ordem existente.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Paulo Neves.

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