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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Autores: Subtração do visível - 17/10/1999

São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999

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Subtração do visível

Um direito à imagem pode encobrir outro

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

A polêmica sobre o "direito à imagem", que recentemente


rebentou na França entre o Ministério da Justiça e a
corporação dos fotógrafos, não se refere somente às relações
entre o direito dos jornalistas a informar pela imagem e os
direitos dos particulares a sua própria imagem e a sua vida
privada. É a singularidade do atual estatuto das relações entre
a imagem, o direito, a política e mesmo a arte que se acha na
ordem do dia.
O conflito nasceu de duas disposições de um projeto de lei
relativo à presunção de inocência e aos direitos das vítimas. A
primeira proíbe publicar fotos de pessoas algemadas, a
segunda, de publicar fotos de vítimas de crimes em situações
que atentem contra a sua dignidade. Uma e outra inscrevem-
se numa mesma perspectiva global de desenvolvimento dos
direitos pessoais: proteção da vida privada, da imagem e da
dignidade pessoal, presunção de inocência de todos, até que
sejam declarados culpados.
O próprio "acusado" trocou de nome: agora é o
"examinando". Um passo a mais foi dado com a proscrição de
toda imagem material de encarceramento. Mas esse passo a
mais tem consequências perturbadoras. Não se trata somente
de emprestar um eufemismo a um estado de fato. Trata-se de
tornar invisível a sua materialidade. A proteção da pessoa
privada tende a tornar-se uma suspensão da visibilidade do
próprio acontecimento. O que não é julgado não é mostrado,
não deve ter visibilidade. Essa regra implícita esconde uma
outra: que o único "julgamento" é agora o dos tribunais.
Antes, a imagem do acusado funcionava como apelo a um
julgamento da opinião pública, independente daquele dos
juízes, e até mesmo contestador a seu respeito. Ou servia
ainda para reivindicar a justiça intrínseca de uma ação forçada
a opor-se à lei existente, para denunciar um estado de coisas
injusto. Inscrevia-se ela no combate político clássico que
repõe em questão a legitimidade das leis existentes. Ainda há
pouco, na França, o líder das ações camponesas contra a
cadeia McDonald's brandia suas algemas aos olhos dos

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jornalistas, como emblema da justiça de seu combate. Na


nova lógica, a presunção de inocência, apanágio de toda
pessoa privada, acaba de anular o litígio propriamente político
sobre esse descompasso entre duas justiças e dois
julgamentos, que emblematizam a figura do culpado inocente
ou do justiceiro encarcerado.
A proteção da pessoa e de sua imagem produz assim uma
operação indissoluvelmente política e ontológica. Ela tende a
subtrair, com um certo tipo de julgamento e de manifestação
política, uma parcela do visível. Mas essa parcela não é a
parcela de exemplo contagioso ou de horror insuportável que
proscrevíamos antes. Em matéria de violência, de indecência
e de horror, não há mais nada que as telas censurem. A
parcela proscrita é a parcela não-decidida, litigiosa, que
alimentava o conflito político, pondo em xeque, com a
"culpabilidade" do agente, a natureza da própria ação.
Cumpre agora saber onde termina a subtração, se ela não
ganha, com a visibilidade dos fatos, o próprio aval da
existência deles.
Essa é pergunta que suscita a segunda proibição, a de mostrar
as vítimas em situações atentatórias contra a sua dignidade. A
viúva de um prefeito assassinado por terroristas córsicos
insurgiu-se, por exemplo, contra uma foto que mostrava seu
marido com a cabeça contra o chão, e assim também uma
mulher quase desnuda pelo sopro de uma explosão terrorista
no metrô parisiense. Mas esses casos singulares, em que uma
pessoa reivindica sua dignidade, arrastam consigo uma cadeia
imensa dessas fotos que nos fizeram ver e continuam a nos
fazer ver os horrores que marcaram nosso século. Os
jornalistas e os fotógrafos esfregaram na cara dos legisladores
esses testemunhos históricos que são as fotos de refugiados
dos campos nazistas ou daquela pequena vietnamita nua,
queimada por napalm. E que ainda hoje registram a colheita
diária de crimes de massa na Bósnia ou em Ruanda, no Timor
Leste ou em Kosovo. Claro que a aparência das vítimas não é
conforme ao ideal de dignidade humana. O simples bom
senso responde que sua própria situação é indigna, que a
imagem quer precisamente lhe dar testemunho.
Mas o tema político e ontológico vai muito além da simples
oposição entre o respeito às vítimas e o dever de informar sua
situação. Pois não se trata simplesmente de saber se
poderemos ou não dar a conhecer, por médicos e juristas, as
dores e as injustiças do mundo. A fotografia atesta duas
coisas simultaneamente; não só a evidência do crime, mas
também sua natureza, conferindo densidade humana àqueles
que os exterminadores tratam como a canalha subumana.
O que os genocidas e as limpezas étnicas negam, de fato, é
um primeiro "direito à imagem", anterior a toda propriedade
que o indivíduo possa ter de "sua" imagem: o direito de ser
incluído na imagem da comunidade humana. A limpeza ou o
extermínio étnicos são sempre a demonstração em ato de seu
próprio pressuposto: que o exterminado não pertence àquilo
de que é excluído, que não pertence verdadeiramente à
humanidade, não, em todo caso, àquela que tem direito de
existir nesse dado tempo e nesse dado espaço. Eis por que a
limpeza ou o extermínio étnicos alcançam seu triunfo lógico
no discurso negacionista, ao apagar quaisquer vestígios.
Alegar contra essas fotografias a dignidade ameaçada das
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vítimas não seria substituir esse direito primeiro negado, o


direito de levar a imagem a público, direito sobre o qual as
vítimas não têm voz ativa, por um direito de propriedade
sobre suas imagens, detido de fato somente por aqueles que
possuem os meios de cunhar suas imagens? Alguém dirá que
se trata de uma questão bizantina. Ninguém espera, pelo
menos agora, que as vítimas kosovares pleiteiem indenizações
pela publicação de suas imagens na imprensa francesa. E o
ministro respondeu aos inquietos afirmando que a lei não se
aplicava aos fatos da guerra.
Essa resposta "reconfortante" nos deixa perplexos. Isso
porque ela remete o estatuto da imagem a uma partilha de
domínios e de gêneros que precisamente está em questão.
Hitler não movia guerra ao povo judeu, eliminava os parasitas
malsãos. As milícias sérvias não moviam guerra ao povo
kosovar, suprimiam aqueles que não estivessem em "seu"
lugar. E as operações "humanitárias" que respondem à
limpeza étnica não pretendem intervir numa guerra. Se o
extermínio e o discurso negacionista ganharam tamanha
importância no pensamento contemporâneo, é porque seu
extremismo material e sua provocação intelectual radicalizam
a incerteza que abala hoje a linha divisória entre as esferas: o
público e o privado, o político, a polícia e a guerra. O direito
do proprietário e o direito da vítima ilustram, em suma, o
progressivo desaparecimento do mundo político, em benefício
de uma cena dupla: de um lado a cena privada mundial dos
interesses proprietários, de outro a cena dos embates étnicos e
das intervenções humanitárias.
Mas não é só a imagem em geral -e particularmente a imagem
fotográfica- que se acha envolvida nessa tormenta. É também
uma certa idéia da modernidade artística. O que fez a dupla
fortuna política e artística da fotografia em nosso século foi o
fato de ela exemplificar o lugar privilegiado que a arte
moderna confere às imagens dos anônimos -esses anônimos
que se apropriaram, no século passado, dessa imagem que
sempre foi reservada aos privilegiados, aos que tinham um
nome e faziam a história. A objetiva dos grandes repórteres,
ao atestar os horrores do século, e a objetiva dos Doisneau ou
dos Cartier-Bresson, ao surpreender crianças na rua ou os
amantes anônimos.
Elas exprimiam esse tempo em que todos se revelavam
suscetíveis de ser sujeitos da história e objeto de arte. É esse
"anônimo", sujeito comum da política democrática e da arte
moderna, que vê também sua imagem se esfumar, se cindir
em duas. Ao mesmo tempo que a lei estende sua proteção
ambígua aos supostos inocentes e à dignidade das vítimas, os
anônimos da legenda fotográfica demandam às agências o
preço mercantil de sua imagem. Num mundo dividido entre
proprietários de imagens e proprietários de dignidade, não é
somente a política, mas também a arte, que vê suas imagens
comprometidas.
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Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso", "O Desentendimento", "A Noite dos Proletários", entre
outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.

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