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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores: A máquina e o feto - 26/01/2003

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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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+ autores

A MÁQUINA E O FETO
Reprodução

Cena de
"Cremaster
1", que
integra a
série de
cinco
filmes do
artista
norte-
americano
Matthew
Barney

Jacques Rancière

Quando os intelectuais não sabem mais muito bem onde


estão, é bastante frequente que os artistas lhes mostrem. Não
porque tenham um dom superior de adivinhação. É
simplesmente porque percebemos melhor o relógio do tempo
quando não temos a tarefa de prevê-lo ou de tirar suas lições.
Hoje em dia os intelectuais parisienses estão perdidos em
uma obscura disputa na qual, na primeira página dos grandes
jornais, se acusam reciprocamente de ter abraçado a causa da
reação, traindo os ideais de liberdade ou de igualdade, ou
ambos ao mesmo tempo, sem que saibamos muito bem de
que falam os beligerantes. Por outro lado, o visitante que
cruzasse a porta do Museu de Arte Moderna da Cidade de
Paris, onde se realizavam simultaneamente a retrospectiva
das obras de Francis Picabia (1879-1953) e a apresentação do
ciclo "Cremaster", de Matthew Barney, teria a sensação
muito desconcertante de compreender totalmente em duas
horas o que foram os ideais de um século e suas
transformações.

Enciclopédia imaginária
Poderíamos inicialmente apresentar a coisa em termos de
enciclopédia. O primeiro quadro de Picabia presente na
exposição é um Pissaro mais verdadeiro que o real, e os
últimos, pintados nos anos 1950-1960, situam-se na corrente
da pintura informal. Nesse intervalo o artista teria pintado os
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quadros mais decididamente cubistas, as obras emblemáticas


do dadaísmo e os depoimentos mais marcantes do retorno ao
realismo mais acadêmico. Por motivos de idade, ele teria
evitado apenas a mais antiga das escolas que marcaram os
três quartos de século que atravessou. Falta somente o
simbolismo na coleção de estilos que ele adotou. Podemos
dizer que é esse elo ausente que o ciclo "Cremaster"
apresenta, sob sua forma mais radical. Por meio das analogias
que ele compõe entre seus filmes musicais, esculturas
plásticas e "cibacromos", este reencena o sonho wagneriano
da obra de arte total. Ele também carrega todo o imaginário e
os processos favoritos de uma época: cenários de geleiras ou
de colunatas rococó, formas lisas e linhas sinuosas, estética
art déco que transforma uma carroceria de automóvel ou um
aparelho de jantar em poemas absolutos, modulações de
ópera pós-romântica sobre um fundo de dourado fim-de-
século, divindades aquáticas, ninfas, sátiros e balés de
meninas-flores ou evocações de lendas celtas. A relação entre
um andar e outro do Museu de Arte Moderna compõe então
uma singular dramaturgia da arte moderna. Podemos ver na
obra de Matthew Barney o último episódio da lenda de um
século, simplesmente colocando entre parênteses a era pop e
a era conceitual e sublimando o bricabraque neogótico das
músicas ou dos filmes contemporâneos para levar um ciclo
da arte a seu ponto de partida. Podemos, ao contrário, dizer
que o ciclo "Cremaster" resume toda a confusão simbolista,
espiritualista, wagneriana e estetizante contra a qual, na
década de 1910, se ergueram as provocações futuristas ou
dadaístas de jovens como Picabia, pensando que, se aquilo
era arte, mais valia condená-la à morte e celebrar o feliz
reinado da máquina.

Modernismo e pós
O que vamos guardar, então, mais que a travessia das formas
de um século, é a oposição de dois momentos característicos:
os anos 1910-1920 contra os anos 1990-2000. Mas essa
oposição não se deixa reduzir à oposição entre uma idade
modernista das rupturas radicais e uma pós-moderna da
recuperação e da reciclagem generalizadas. É de uma
maneira mais complexa que se opõem os paradigmas
estéticos que são mais geralmente paradigmas da relação
entre os homens e a materialidade, portadores de visões
antagônicas da história e do mundo comuns.
O que opõe o artista radical dos anos 1920 ao artista festejado
no ano 2000 são, poderíamos dizer, duas idéias da
antinatureza: nos anos 1915-1920, Picabia fez suas pinturas
"mecanomorfas". Isso quer dizer que, para rejeitar a
semelhança pictórica tradicional, ele se inspira muito
fielmente nos desenhos de máquinas apresentados nas
revistas científicas, chegando a lhes dar nomes de fantasia:
"O Santo dos Santos" ou "Retrato de uma Jovem Americana
em Estado de Nudez". Um pouco mais tarde ele escolheria
para suas pinturas o esmalte dos pintores industriais. O que o
opõe à ordem natural exigida pela tradição da pintura é a
dureza do metal e a geometria da máquina. Essa opção
estética está de acordo com o tempo das grandes esperanças
depositadas na máquina destruidora do velho homem e
promotora de um novo mundo. Picabia não parece ter-se
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ocupado muito de política, menos ainda de revolução. Mas o


que liga as invenções dos artistas às lutas e às esperanças de
um tempo passa justamente menos por seus compromissos
pessoais que por uma atitude comum em relação aos
potenciais da matéria sensível.

Quem visse as obras de Picabia e a


apresentação do ciclo "Cremaster",
de Matthew Barney, teria a sensação
muito desconcertante de
compreender totalmente em duas
horas o que foram os ideais de um
século e suas transformações

A antinatureza de Matthew Barney chama-se artifício. Sua


matéria não é o metal das máquinas de sonho dadaístas ou da
epopéia soviética, mas a matéria mole dos derivados do
petróleo. Náilon, plástico, vinil e resina são, ao lado da
tapioca, a matéria-prima essencial das esculturas mais ou
menos monumentais que servem ora como réplicas, ora como
pedestais para as imagens de seus filmes. Seus carros não têm
bielas nem cilindros, somente carrocerias em plástico
moldado. Contra a dureza das engrenagens maquínicas que
os inventores dos anos 20 opunham às molezas dos velhos
mundos e aos floreios do "modern style", ele escolheu a
matéria residual e maleável, essa matéria tão dócil aos sonhos
quanto às mãos, privilegiada por uma era que pensa menos
em mudar a vida do que em abolir as fronteiras que separam
o vivo do não-vivo. Uma "matéria" é sempre também uma
certa idéia do que a matéria pode fazer pelo homem e do que
o homem pode fazer com a matéria. Sem dúvida a ironia das
pinturas "mecanomorfas" de Picabia está muito distante dos
embriagamentos futuristas e dos sonhos construtivistas. Mas
ela apenas mostra melhor seu desafio mais essencial.
Revejamos os títulos dessas pinturas de engrenagens, pistões
e polias: "Exibição Amorosa", "O Noivo" e, principalmente,
várias vezes repetido, "Esta É a Menina Que Nasceu sem
Mãe". O sonho maquínico é exatamente isso: o sonho da
filiação materna abolida. É por isso que ele se ajustou tão
naturalmente ao sonho da auto-emancipação operária. O
sonho de autonomia é o de uma humanidade masculina
engendrando-se a si mesma de novo. Máquinas celibatárias
dos artistas maliciosos e aço temperado dos construtores
soviéticos guardam juntos esse sonho de um potencial
absoluto de auto-engendramento. Existem, certamente, várias
maneiras de tirar proveito dele. Em Picabia, essa capacidade
se realiza finalmente, longe de qualquer programa
construtivista coletivo, no simples virtuosismo do técnico
capaz de fazer qualquer coisa com o mesmo êxito: quadros
ou antiquadros, figuração ou antifiguração. Opomos sem
problemas o individualismo da invenção artística ao rigor do
empreendimento coletivo. Mas é de um mesmo fundo
comum que ambos se sustentam. O individualismo é sempre
a outra face de um coletivismo.

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Jamais ter nascido


Existem várias maneiras de liquidar esse sonho prometéico
do homem que quer ser seu próprio genitor. Existe a velha
sabedoria trágica que diz que o maior bem para o homem
seria nunca ter nascido, e o segundo bem, morrer o mais cedo
possível. Esta se transformou, na época romântica, em
nostalgia do pré-nascimento. Nietzsche resumiu a sabedoria
trágica wagneriana no desejo de Isolda agonizante, o de se
perder novamente no grande mar original do Indiferenciado.
A psicanálise, por sua vez, opôs de bom grado à utopia
comunista do homem criador de si mesmo a miséria
irredutível do animal humano como animal inacabado,
marcado pela prematuração de seu nascimento.

Vida sem dor


Sob seus aspectos de retorno à razão simples, o capitalismo
contemporâneo talvez alimente sua própria utopia: a utopia
de uma vida que escapa a essa "miséria", uma vida
consumidora sem dor, inteiramente passada na tranquilidade
do ventre materno. O ciclo "Cremaster" se propõe a refazer
analogamente a história do feto entre a indiferenciação e a
diferenciação sexual. Mas não se trata somente de analogia
ou de símbolo. Os interiores de automóveis que Matthew
Barney encerra nos blocos de plástico, evocando ao mesmo
tempo a graxa protetora e a pureza das geleiras, bem ilustram
a reversão da ideologia metálica e mecânica. A matéria mole
dos artifícios é a matéria sempre pronta a se fundir em um
oceano primitivo ou em líquido amniótico para celebrar uma
vida fetal elevada à dimensão da eternidade.
Aqui mais uma vez o individual e o coletivo não se separam,
assim como a arte e a política. Graves pensadores comovem-
se regularmente com os perigos que representaria o
narcisismo exacerbado do "indivíduo democrático" para a
gestão dos interesses coletivos. Esses pretensos opostos, no
entanto, bem poderiam ser apenas as duas faces de uma
mesma moeda. O sonho de proteção materna ininterrupta que
traduz o universo líquido do artista da moda é sincrônico com
essa promessa de segurança em que os países ricos resumem
hoje o todo da política.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O


Dissenso" (ed. 34). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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