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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Jacques Rancière: Teologia da imagem - 21/03/1999

São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999

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Debate moderno sobre o "irrepresentável" ressurge em


Godard e em "A Vida É Bela", cuja mediocridade não
vem da indignidade ética em fabular o horror nazista,
mas da falta de ficção do filme
Teologia da imagem
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

O lançamento do filme de Roberto Benigni "A Vida É Bela"


reavivou a querela sobre o que o cinema e a arte em geral
podem ou não podem mostrar sobre o extermínio nazista. O
dado ficcional do filme -um pai judeu que logra fazer crer a
seu filho que a estada forçada num campo de concentração é
uma brincadeira- imita evidentemente, de maneira
perturbadora, o argumento negacionista segundo o qual os
fatos podem sempre ser interpretados de outro modo.
Além disso, ele reacendeu a polêmica segundo a qual o
horror do extermínio não pode ser representado. E essa
polêmica em torno do irrepresentável suscitou, por si mesma,
a reação daqueles que repudiam a "censura" assim exercida
em relação à imagem. Entre estes últimos, Jean-Luc Godard
proclamou recentemente que não temos o direito de "impedir
as pessoas de filmarem", sob pena de levantar suspeitas
fundadas. Num artigo do "Le Monde", Gérard Wacman,
psicanalista e autor de uma obra com título significativo,
"L'Objet du Siècle" (O Objeto do Século), indagava-se sobre
o culto da imagem subjacente a essa reivindicação e
reafirmava a posição ilustrada pelas obras e declarações de
Claude Lanzmann: ao horror do extermínio nenhuma
imagem pode ser adequada. Isso porque a imagem sempre
banaliza os extremos e empresta ao crime uma face humana.
Sob a sua aparente clareza, a formulação do debate levanta
várias questões e faz com que subsistam várias obscuridades.
Uma fórmula de Adorno, enunciada com certa precipitação e
glosada de modo um tanto longo, declarava impossível a arte
depois de Auschwitz. Vemos hoje como essa culpabilidade
da arte diante do horror se deixa interpretar de duas maneiras
opostas. Segundo Lanzmann, o cinema é culpável quando
quer reproduzir as imagens do Shoah (Holocausto),
participando assim de sua banalização. Segundo Godard, ele
é culpável por não ter filmado tais imagens, por ter ignorado
os campos de concentração e até mesmo por desconhecer
que, em suas próprias ficções, havia anunciado a obra da
morte. Para um, em suma, faltam imagens ao cinema para
tomar o horror em consideração; para o outro, o erro está
justamente na falta de imagens. Essas duas visões
contraditórias da culpabilidade são, é claro, duas idéias
diferentes da relação entre arte e imagem, duas idéias da arte
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que se fundem, em última instância, em duas teologias da


imagem.
Podemos admiti-la, sem dúvida, para Gérard Wacman; a
posição de Godard, porém, sublinha algo totalmente diverso
da defesa do direito à liberdade das imagens. Ela ressalta,
antes, uma concepção propriamente icônica do cinema, que
"História(s) do Cinema" ilustra em detalhes. O cinema, diz
Godard, não é uma arte nem uma técnica, é um mistério.
Esse "mistério" não é outra coisa senão o da encarnação. O
cinema não é uma arte da ficção; a imagem cinematográfica
não é uma cópia, não é um simulacro. É a marca impressa do
verdadeiro, análoga à imagem do Cristo sobre o sudário de
Verônica. A imagem é atestado de verdade por ser a própria
marca de uma presença. Como houve campos de
concentração, deve haver imagens sobre eles. O argumento
de Godard, é claro, pode ser lido de trás para frente: é
preciso que haja imagens sobre os campos de concentração
para que se ateste a verdade da imagem e para que a arte
cinematográfica devote-se a seu culto.
Mas será que a denúncia desse culto da imagem é
perfeitamente clara? Ela reivindica a unidade de um ponto de
vista ético e de um ponto de vista estético: quem quer fazer
imagens do horror irrepresentável é punido pela
mediocridade estética de seu produto. Mas o que quer dizer,
afinal, "fazer imagens"? Lanzmann, em "Shoah", e Benigni,
em "A Vida É Bela", fazem, tanto um como outro, imagens
em movimento. O que difere é a função dessas imagens, o
fim que elas buscam e a maneira que o cineasta as compõe
para ordená-la com esse fim.
Lanzmann propõe-se a atestar a realidade de um processo a
partir da própria tentativa de apagar seus traços de maneira
programática. Isso quer dizer que a imagem não pode
reproduzir o que desapareceu. Ela tem de fazer outra coisa,
duas coisas ao mesmo tempo: mostrar como os traços foram
apagados e abrir espaço à voz de testemunhas e historiadores
que reconstituem, por meio de palavras, a lógica do
aniquilamento realizado nas linhas de combate: a lógica do
extermínio e sua dissimulação. Ao subordinar, de acordo
com essa lógica, a imagem às palavras que a fazem falar,
Lanzmann redescobre o paradoxo estético anunciado por
Burke há mais de dois séculos, ao comparar os poderes da
poesia com os da pintura: as palavras são sempre mais
adequadas que as imagens para traduzir toda a grandeza, seja
do sublime ou do horror que ultrapassa as medidas. Mais
adequadas justamente porque elas nos dispensam de ver
aquilo que nos descrevem.
Para "mostrar" o horror da última viagem rumo à morte, a
análise dos itinerários e a fria explicação do mecanismo das
"reduções de grupo", consentidas pela Reichsbahn, serão
sempre superiores a toda reconstituição do rebanho humano
conduzido ao abatedouro, e isso por duas razões, que só
aparentemente são contraditórias: porque elas nos oferecem
uma representação mais exata da "máquina" de morte ao nos
impedir de ver e imaginar o sofrimento dessas vítimas.
Em suma, o projeto de Lanzmann impõe um certo tipo de
arte, um certo tipo de "ficção", ou seja, de agenciamento de
palavras e imagens. O projeto de Benigni é claramente
diverso. Em vista do extermínio, ele não tem pruridos nem
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de atestá-lo nem de negá-lo. Ele o toma como uma situação


própria para levar ao paroxismo a lógica constitutiva de seu
personagem. Todo o filme, de fato, é construído sobre um
único dado: a capacidade de um personagem em operar
milagres a cada minuto e transfigurar toda a realidade. Ele é
igualmente incapaz de negar a realidade dos campos de
concentração e de dizer algo sobre eles.
A mediocridade do filme não vem da indignidade ética que
haveria em fabular o horror nazista, tornando-o motivo de
riso. Ela vem, ao contrário, da falta de ficção. Autor-ator
como Benigni, Chaplin assumira o risco e ganhara a aposta
de fazer rir de Hitler em seu "O Grande Ditador" (1940). Os
sucessivos equívocos que transformam o herói de Benigni
em rei da Itália ou em inspetor fascista evocam,
evidentemente, aquele outro equívoco que, no final de "O
Grande Ditador", fez tomar o barbeiro em fuga pelo Führer
conquistador. Só falta uma coisa, que é tudo: o pequeno
tremor que se apossou do barbeiro no momento de tomar o
lugar, na tribuna, de seu sósia, a fim de deixar falar o
cineasta. Esse pequeno tremor resumia, de fato, todo o
trabalho de uma encenação. Para fabular a pessoa de Hitler,
Chaplin pagara um preço caríssimo: consentira em quebrar a
unidade da forma-Charlot, em representar os papéis inversos
do ditador e de sua vítima e em despojá-los, tanto a um como
a outro, para falar em seu próprio nome. Com isso ele pusera
em cena o deslocamento de seu personagem sobre a tribuna
do Führer.
Já o diretor Benigni é incapaz de fabular o deslocamento do
ator Benigni. Incapaz de fabulá-lo, capaz somente de repetir
ao infinito a gesticulação ilusionista. As cenas do campo de
concentração não são ruins porque fornecem imagens
daquilo que não pode ou não deve ser posto em imagens.
Elas são ruins porque não têm mais nem menos razão de ser
do que aquelas que as precedem.
O problema centra-se então na capacidade ficcional da
encenação, e não na dignidade ou na indignidade da imagem.
E tampouco nas capacidades ou incapacidades. O argumento
da "banalização" pela imagem é ele próprio equívoco,
quando visto sob o prisma da eficácia, pois o fato de atestar
um acontecimento excepcional presta-se a um risco duplo.
Subtraí-lo, em nome de sua excepcionalidade, às condições
ordinárias da representação dos acontecimentos é tão
perigoso quanto banalizá-lo, representando-o segundo as
mesmas regras que todos os outros. É preciso cogitar, então,
que os inimigos da imagem, tal como seus devotos,
conferem ao tema um valor diverso.
Ao criticar o caráter redentor que Godard, como discípulo de
São Paulo, empresta à imagem, Gérard Wacman defende-se
de querer impor uma outra teologia da imagem: a proibição
mosaica da representação. Mas, se não é a sacralidade da lei
que está em jogo aqui, poderia muito bem ser uma outra, a
da arte. É preciso que o extermínio prescinda de "imagens"
para que se ateste a missão sagrada da arte. O argumento do
irrepresentável assegura a equivalência entre um projeto
moderno da arte e uma missão histórica. Segundo essa
lógica, o "Quadrado Negro sobre Fundo Branco", de
Malevich (1878-1935), ao destruir o princípio figurativo,
daria à arte moderna o seu verdadeiro tema: a ausência. Para
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atestar o mistério da imagem, Godard deveria divisar no


campo de concentração de "O Grande Ditador" ou na caça ao
coelho e na dança dos mortos de "A Regra do Jogo" (1939),
de Jean Renoir, algumas profecias de extermínio futuro.
Para atestar a missão da arte, seu crítico deve pôr em ação a
mesma lógica, divisar nos manifestos anti-representativos
dos anos 10 a antecipação profética, pela arte moderna, de
sua vocação: dar conta do "objeto do século", o extermínio.
Uma teologia da modernidade artística se oporá então a uma
teologia da imagem redentora. Não é certo que esse combate
faça jus àquilo que é exposto pelos filmes, sejam eles bons
ou maus.

Jacques Rancière é filósofo e professor da Universidade de Paris 8


(França). É autor de "O Desentendimento" (Ed. 34) e "A Noite dos
Proletários" (Cia das Letras), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.

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