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UFF/IH/GHT

TEORIA DA HISTÓRIA
Profª. Ana Maria Mauad

Curso Instrumental: História e Mídias

05/09/2022 - Aula 2

Esboço biográfico
Siegfried Kracauer (1889-1966), alemão teve como primeira área de atuação os estudos
sobre arquitetura e espaço urbano. No entanto, depois de se doutorar em engenharia,
em Berlin, no ano de 1917, volta-se nos anos 1920, durante a República de Weimar para
as áreas de filosofia, sociologia e, eventualmente, cinema. Atuou no comitê editorial do
prestigiado periódico Frankfurter Zeintung entre 1920 e 1933, período de ascensão do
nazismo que o obrigou a deixar a Alemanha. Em 1941 ele chega aos Estados Unidos e
recebeu uma bolsa pela fundação Guggenheim, com a qual produziu um dos seus
maiores estudos sobre o cinema alemão, a obra intitulada de Caligari a Hitler (1947).
Dentre as suas demais obras destacam-se: Estudos sobre os filmes de propaganda
nazista; Offenbach e História: as últimas coisas depois da última (1969).
A premissa teórica de seus estudos baseia-se na assunção de que cada media (medium)
possui uma natureza específica a qual enseja certas formas de comunicação, enquanto
obstrui outras.

KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa, São Paulo: Cosac Naif, 2009, “Prefácio:
Perspectivas descentradas, Miriam Hansen” p. 9-45; ”Fotografia”, p. 63-80 (pdf)

-I-

“Prefácio: Perspectivas descentradas, Miriam Hansen” p. 9-45

Sumário: O artigo aborda a trajetória do pensamento crítico de Kracauer identificando as


matrizes na tradição do messianismo judaico secular e no gnosticismo secular, bem como
sua superação dialética rumo à uma teoria crítica da experiência cotidiana da
modernidade e do advento e consolidação da cultura de massa no século XX. Parte do
debate sobre a relação de Kracauer com o ambiente intelectual judeu nos anos 1920,
considerado no meio como um autor menor por trabalhar com a crítica cultura - de
cinema e resenha de filmes. Na sequência, a autora reconhece nessa prática a produção
de uma constelação de "imagens de pensamento” (ou ainda conceitos) e proposições
que se voltam à uma crítica radical ao projeto da modernidade e da cultura de massa. O
artigo cumpre com os objetivos apresentados na p. 10 ao reconhecer na trajetória de
pensamento de Kracauer que o sujeito do conhecimento se constitui em relação ao
reconhecimento do seu objeto de estudo, dito em outras palavras, o sujeito do
conhecimento se constitui historicamente em relação ao seu objeto de estudo. Assim,
Kracauer pode ser identificado à noção de intelectual engajado pois realiza a crítica do
mundo em que se insere.
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Pontos a destacar do artigo:
Kracauer e o exílio intelectual: Sai da Alemanha em 1933 por conta da ascensão do
nacional socialismo, mas muitos estudiosos já consideram que o exílio do intelectual foi
anterior a sua partida - “extraterriotialidade pessoal”
“No que segue, perseguirei evidências de configurações do exílio em dois aspectos
sobrepostos da obra de Kracauer:(1) a constituição da cultura de massa como objeto, a
partir das perspectivas cruzadas de uma filosofia da história e da crítica da ideologia; (2) a
relação do escritor com aquele objeto, a construção de fenômenos da cultura de massa
na tensão entre distanciamento crítico e experiencia pessoal”(p.10)

Relação estreita entre cultura e história - “As primeiras críticas de Kracauer de A Rua dão
testemunho de sua teoria do cinema a partir do espírito de uma filosofia da história ou,
mais precisamente, de uma teologia da história” (p.11) (associada ao messianismo
judaico secular e ao gnosticismo secular, aprofunda na p. 14, 15,16 e explica o sentido na
p. 17)

Alienação da vida moderna e o desabrigo transcendental: a ausência de sentido na


modernidade - em busca de uma teoria que estabeleça um programa crítico para a
modernidade a partir da própria experiência contemporânea. Da superfície para o plano
a ruptura idealista e a elaboração de uma fenomenologia histórica materialista (p.13 -14)

O papel da crítica cinematográfica - lê-se crítica cultural - na elaboração de uma teoria da


história - deslocamento da transcendência à experiência cotidiana. Mudança de enfoque
na elaboração conceitual de Kracauer, neste ponto retoma o ambiente no qual o escritor
estava inserido: o circuito dos intelectuais alemães; a superação do messianismo e a
defesa da razão - não instrumental do capitalismo; racionalidade apoiada na ideia de que
não há mudança na história só ruptura (p.15-17)
No jogo de azar da história não há um sentido pré-estabelecido: sobre a noção de
resíduo e contingencia na imagem técnica - cinema e fotografia - o contingente e o
aleatório (p.18)

Dimensão política da crítica de Kracauer - mergulho no coração da experiência moderna


com os meios da cultura de massa. O conceito de distração e a elaboração de uma crítica
cultural que não opunha a alta e a baixa cultura. Aproxima-se da crítica de Walter
Benjamin (p.21-26)

Deslocamento da filosofia da história para a crítica da ideologia - 1933-1947. Avalia a


trajetória entrelaçada do pensamento de Kracaeur - não há como separar os primeiros
escritos sobre cinema de forte inspiração teológica e o crescente compromisso com a
crítica da ideologia (p.27-28)

Diferencia a crítica da modernidade de Kracauer da crítica pós-moderna: o efeito do real


no cinema e a materialidade das formas culturais (p.29-31)
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Modernidade e memória: as tensões que os meios técnicos provocam na vida social -
crítica sem conservadorismo (p.32-33), a dimensão materialista das formas de
representação (p.35)

A crítica redentora de Kracauer e os debates com Adorno (p.39); efeito narrativo de


Kracauer, recurso para entrelaçar sujeito e objeto do conhecimento apoiado na noção de
experiência (p.40-43)

Conclusão: uma imagem de pensamento, na qual Kracauer evoca a possibilidade de que


o consumidor possa se relacionar com o glamour da superfície de maneira simultânea e
reflexiva - o trecho da montanha russa (p.43-45)

-II-

Kracauer, Siegfried. “Fotografia”, IN: O ornamento da massa, São Paulo: Cosac Naify,
2009, p.63-80

Sumário: o texto trata a fotografia como um dos “objetos internos e externos” da cultura
de massa capitalista. Relaciona que a sua função precípua estaria associada àquela
mesma atribuída ao historicismo maniqueísta de mostrar a “vida tal como ela aconteceu”.
Nessa concepção, subtrai-se a mediação crítica do ato de conhecimento e as
determinações sociais que levam a própria produção da vida social. No entanto, apesar
de criticar a massificação que a fotografia sofre, sobretudo, através da sua veiculação nas
revistas ilustradas, Kracauer vê na função arquivo da fotografia, a capacidade de expor o
fundamento natural do mundo – para além da memória subjetiva – um mundo que torna-
se mundo pela imagem fotográfica. Uma inversão dialética que a conclusão do texto
proporciona.

Parte 1 – fotogra a e o tempo que foi – a busca do tempo perdido

P.63 – Inicia o texto tecendo um comentário sobre a foto de uma atriz publicada na capa
de uma revista ilustrada – da imagem reticulada a ilusão da realidade fotografada.

p. 64 – sobre a foto da avó se desenrola a segunda reflexão – fotografia e memória, a


perda do referente:
“ A foto cuidadosamente tirada no estúdio de um fotógrafo da corte. Mas faltava a
tradição oral, pois da imagem isoladamente não é possível reconstituir a avó. [...] Que a
fotografia decerto representa a avó, aquele pouco que se conservou dela na memória e
que talvez tenha sido mesmo esquecido, deve-se acreditar na palavra dos pais, que
afirmam, por seu lado, ter aprendido da própria mãe. Os depoimentos de testemunhas
são incertos. Afinal, pode ser da conta de que a fotografia não seja a avó, mas de uma
amiga parecida. Nenhum de seus contemporâneos esta vivo, e a semelhança? Muito
pouca, pois o original desapareceu há muito tempo. A imagem, desvanecida pelo tempo,
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tem pouco em comum com os traços impressos na memória e que os netos se
submetem, estupefatos, no esforço de ir ao encontro de semelhante mulher que é
reproduzida fragmentariamente na fotografia. De qualquer modo, a fotografia retrata,
digamos, a avó ou, na realidade, uma jovem qualquer em 1864”. P. 65 - Continua
refletindo sobre a semelhança entre o modelo e a avó como referente concreto e vivo:
“A jovem sorri e continua sorrindo, um sorriso estático que não acessa mais a vida que
lhe deu origem. [...] os manequins encontram-se nos museus por causa dos seus trajes
históricos, do mesmo modo que a avó na fotografia é um manequim arqueológico que
serve para ilustrar o traje da época: coques, cintura bem justa, crinolina e jaqueta à la
zuavo [...] Os netos riem dos trajes que, com o desaparecimento dos seus usuários,
lembram os campos de batalha. [...] Riem, mas expressam ao mesmo tempo um certo
espanto. Pois, por meio da ornamentação dos trajes, na qual a avó desapareceu,
acreditam tocar um instante do tempo passado, tempo que não mais retorna. O tempo,
na verdade, não é fotografado juntamente com o sorriso e o coque. Mas, a própria
fotografia, assim acreditam, é uma representação do tempo. Se a fotografia lhes
oferecesse apenas a duração, não aprenderiam nada da mera temporalidade, mas seria o
tempo através deles a criar imagens”.

Parte 2 – Fotogra a e a escrita da história oitocentista

p.66 – Sobre a relação entre fotografia e historicismo/historismo – contemporâneos no


momento de criação e difusão
“Em resumo, os seus representantes [do historicismo] pensam poder esclarecer de modo
puro qualquer fenômeno a partir da sua gênese e acreditam apreender também a
realidade histórica ao reconstituir se lacunas a série de acontecimentos na sua sucessão
temporal. A fotografia oferece uma continuidade espacial, o historicismo quer preencher
a continuidade temporal. De acordo com o historicismo, o espelhamento completo de
uma sequência intratemporal contém simultaneamente o sentido de conteúdo que
ocorreu no mesmo período[...] Para o historicismo, trata-se de fazer uma fotografia do
tempo. Esta fotografia do tempo corresponderia a um filme gigantesco que
representasse universalmente os acontecimentos relacionados”
Na nota 6, indica-se que Kracauer surpreende-se ao compreender, anos depois ao
escrever – História: as últimas coisas antes da última – as preocupações em relacionar os
meios visuais às filosofias da história: “De modo fulgurante tornaram-se claros para mim
os muitos paralelos entre meios fotográficos, a realidade histórica e a câmera-realidade.
Há pouco deparei com o meu ensaio sobre ‘Fotografia’ e fiquei inteiramente surpreso ao
constatar que comparei o historicismo com a fotografia já neste artigo dos anos 1920”

Parte 3 – Fotogra a e memória - diferentes relações com o passado

Nessa parte Kracauer apresenta dimensões diferenciadas daquilo que chama memória.
A 1a é lacunar, fragmentária e subjetiva:
p. 67 “A memória não se ocupa de datas, pula sobre os anos ou dilata a distância
temporal. A seleção de traços que reúne pode parecer arbitrária ao fotógrafo. A seleção
foi feita desta e não de outra maneira, pois as disposições e as intenções exigem o
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recalque, a falsificação e a alteração de valores do objeto[...]. Não importa quais cenas
um indivíduo recorda: elas querem dizer algo que se relaciona a ele sem ele precisar
saber o que elas querem dizer. Elas são conservadas justamente em relação ao que
querem lhe dizer. Organizam-se portanto de um princípio que se diferencia daquele da
fotografia na sua essência”
A 2a é essencial, compacta e reveladora o seu reconhecimento pela consciência liberta
coloca o sujeito em face da sua própria história.
p. 67-68 “A significação das imagens da memória está acoplada a seu conteúdo de
verdade. [...] Encontrar a verdade só é possível à consciência liberta que pondera o
demoníaco das pulsões. Os traços dos quais se recorda estão em relação do que se
reconhece como verdade, suscetível de se manifestar neles ou de ser deles excluídos. A
imagem, que contém estes traços, é distinta de todas as outras imagens da memória;
com efeito; esta não conserva como as outras uma abundância de recordações opacas,
mas os conteúdos que concernem ao que é reconhecido como verdade. A esta imagem,
que podemos com pertinência chamar de última, devem se reduzir todas as imagens de
memória, pois é só nela que perdura o inesquecível. A última imagem de um indivíduo é
a sua própria história. Esta omite todos os signos e determinações que não estão em
relação significativa com a verdade designada pela consciência liberta. A maneira como
o indivíduo a representa não dependem puramente de sua própria natureza, nem
tampouco da coesão aparente da sua individualidade; há, portanto, somente as partes de
seus elementos que entram na sua história”

Como a fotografia se relaciona com as duas dimensões de memória apresentadas:


p. 67 “A fotografia apreende o que é dado como um contínuo espacial (ou temporal), as
imagens da memória conservam-no na medida em que este quer dizer alguma coisa.
Como o que se quer dizer se consuma muito pouco no contexto puramente espacial e no
puramente temporal, as imagens estão de esguelha em relação à produção fotográfica.
Se do ponto de vista desta última elas aparecem como fragmento – mas como fragmento
porque a fotografia não abarca o sentido com o qual elas se relacionam; orientadas em
relação a este último, cessam de ser fragmento – assim aparece a fotografia para elas
como uma mistura em parte composta de despojos”
Trocando em miúdos – a captura da fotografia não da conta do sentido que as vivência
inscrevem na memória como imagem – as imagens da memória olham para as fotografias
como restos de uma experiência esvaziada pela falta de conteúdo memorável.
p. 68 “Sob a fotografia de um indivíduo está enterrada sua história sob um manto de
neve”

Parte 4 – Relação entre fotografia e arte – o problema da semelhança e as possibilidades


de uma arte fotográfica.

Parte 5 – Fotogra a e temporalidade – o peso do morto na imagem

p.70 “A fotografia não fixa os traços transparentes de um objeto, mas retém do ponto de
vista de sua escolha como um contínuo espacial. A última imagem da memória sobrevive
à ausência de memória por causa do tempo. A fotografia que não visa esta imagem da
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memória deve ser colocada em relação, por sua natureza, ao momento contingente de
seus nascimento.[...] Mas, a fotografia é uma função do tempo fluente, sua significação
objetiva, no entanto, se transforma ao pertencer ao âmbito do presente ou alguma fase
do passado”
Fotografia e o presente fotografado
p.71 “A fotografia atual que reproduz um fenômeno familiar à consciência
contemporânea oferece, em limitada proporção, uma passagem à vida do original. Ela
revela cada vez uma exterioridade que, conforme a duração de seu domínio, é um meio
de expressão tão universalmente conhecido como a língua. O contemporâneo acredita
ver na fotografia a própria diva do cinema.[...] O que significa que a fotografia atual
cumpre o papel de mediadora, é um signo ótico da diva que se trata de reconhecer. Se
sua característica decisiva é ser sobrenatural, deve-se duvidar ao final. [...] Não por causa
da sua semelhança, mas apesar de sua semelhança, denuncia a imagem do
sobrenatural[...]. A imagem de memória produzida pela contemplação de nossa querida
diva penetra dentro da parede da semelhança na fotografia e lhe empresta então alguma
transparência”

A foto envelhecida e o estranhamento da distancia


p. 72 “Quando a fotografia envelhece, a relação imediata com o original não é mais
possível. [...] A vida lhe foi retirada, cuja manifestação espacial encobre a era
configuração do espaço. De forma invertida se relacionam imagens da memória com a
fotografia, que engrandecem o nonograma da vida recortada. A fotografia é o sedimento
depositado pelo monograma e ano após ano diminui seu valor de signo. O teor de
verdade do original se retém na história; a fotografia retém o resíduo do qual a história se
despediu”
Na sequência recupera o exemplo da foto da avó e o seu aspecto risível como parte de
um processo de estranhamento em relação ao que foi. Esse estranhamento transforma
natureza em história: “A representação apodera-se das conexões das quais esta
consciência se originou, englobando-a, portanto, sem querer admitir os elementos que
são atrofiados. Quanto mais a consciência se priva das ligações naturais mais se reduz a
natureza”

A natureza fantasmagórica das fotografias


p.73 “A fotografia torna-se um fantasma porque a boneca vestida com trajes de época foi
via uma vez. Através da imagem sabemos que todos esses elementos estranhos
enganadores foram incluídos na vida como acessórios evidentes.[...] Quando a avó estava
diante da objetiva, estava por um segundo no contínuo espacial que se apresentava à
objetiva. No lugar da avó, é aquele instante que foi eternizado. Quem observa velhas
fotografias é tomado por calafrios, já que estas não tornam evidentes o conhecimento
original, mas a configuração espacial de um instante; não é o ser humano que emerge de
sua fotografia, mas a soma do que se pode extrair dele. A soma que aniquila enquanto o
reproduz: o ser humano não existiria se coincidisse com a fotografia [...] Os traços do ser
humanos são conservados apenas na sua ‘história’”.

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Parte 6 – Fotogra a nas revistas ilustradas – massi cação das imagens – a imagem na
imprensa – o esvaziamento da fotogra a do seu poder de afecção – a fotogra a das
ilustradas tirou o peso do morto de todas as fotogra as.

p. 74 “A prova cabal da enorme importância da fotografia nos dias atuais está no


crescimento das revistas ilustradas. Elas reúnem, juntamente com a diva do cinema, todos
aqueles fenômenos que são acessíveis à câmera fotográfica.[...]”
p.75 “A intenção das revistas ilustradas é reproduzir completamente o mundo acessível
ao aparelho fotográfico; registram especialmente o clichê das pessoas, situações e
acontecimentos em todas perspectivas possíveis[...] Nunca houve uma época tão bem
informada sobre si mesma, se ser bem informado significa possuir uma imagem das
coisas iguais a elas no sentido fotográfico. A maior parte das revistas ilustradas se refere a
objetos que existem no original, enquanto fotografias da atualidade. As cópias são,
portanto, fundamentalmente, signos que se referem a um original que poderia ser
reconhecido. Mas, na realidade, a referência ao original não é de modo algum a
finalidade desta razão fotográfico-jornalística. Se a fotografia se oferece a memória como
suporte, é a memória que deve determinar a escolha. Mas esta torrente de fotografias
varre todos os seus diques. O assalto de coleções de imagens é de tal modo violento que
talvez ameace destruir os traços decisivos da consciência. O mesmo destino afeta as
obras de arte por meio da sua reprodução[...] a obra tende a desaparecer na
multiplicidade e a continuar sua vida enquanto fotografia artística. Nas revistas ilustradas
o público vê o mundo que as revistas impedem de realmente perceber. O continuo
espacial segundo a perspectiva da câmera fotográfica recobre o fenômeno espacial do
objeto reconhecido, e sua semelhança desfigura os contornos de sua ‘história. Nunca
uma época foi tão pouco informada sobre si mesma. Nas mãos da sociedade dominante
a invenção das revistas ilustradas é um dos mais poderosos instrumentos de greve contra
o conhecimento. [...] A ideia-imagem cancela a ideia, a nevasca de fotografias trai a
indiferença em relação ao que as coisas querem dizer. Não deveria ser assim; mas para as
revistas ilustradas americanas em todo caso, imitadas de todos os modos nos outros
países, o mundo identifica-se com a quintessência das fotografia. Esta identificação não
ocorre por acaso. Pois o próprio mundo adquiriu um ‘rosto fotográfico’, pode ser
fotografado, pois este se funde no contínuo espacial que se forma com os instantâneos.
Pode depender apenas de uma fração de segundo, o que é suficiente para a exposição
do objeto, para que um desportista se torne célebre, segundo os fotógrafos sob o
comando das revistas ilustradas [...] Que ela devora o mundo é um sinal do medo da
morte. A recordação da morte, que está presente em pensamento em toda a imagem da
memória, as fotografias gostariam de banir pela sua própria acumulação. Nas revistas
ilustradas, o mundo torna o presente fotografável e o presente fotografado torna-se
inteiramente eternizado. Parece ter extirpado a morte, mas na realidade a fotografia a
abandonou” (p. 76)

Parte 7 – Uma história das imagens – a fotogra a é a última etapa histórica que se
inicia com o símbolo
p.77 “Na medida em que a consciência começa a se interiorizar e com isso desaparece
aquela ‘identidade entre homem e natureza’ (Marx, IA), a imagem assume, passo a passo,
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uma significação derivada, imaterial. [...] Por longos períodos da história representações
figurativas conservam-se como símbolos. Tanto que o homem necessita deles, ele se
encontra em estado de dependência prática das condições naturais, dependência que
condiciona a expressão visível e tangível da consciência. Apenas com o crescente
domínio sobre a natureza e contrapondo-se a ela, não mais ingenuamente forjada no
invólucro mitológico: a consciência pensa por conceitos que, certamente, podem ser
utilizados com a intenção totalmente mitológica. Em determinadas épocas a imagem
conserva ainda sua força: a representação simbólica torna-se alegoria[...]” – segue uma
breve reflexão sobre o pensamento e a imagem que Kracauer considera tosco, “mas é
suficiente para tornar visível a mudança nas representações, a saída da consciência do
seu estado de sujeição à natureza. Quanto mais decididamente, no curso do processo
histórico, a consciência se liberta de tal sujeição, tanto mais puro se lhe apresenta o
fundamento natural. Pois o que se quer dizer não se apresenta mais em imagens, mas o
que se quer dizer emana da natureza e a perpassa[..]”

Fotografia e a condição história de sua visualidade – fotografia como simulação de


pensamento e prótese do olhar
p.78 “Já que a natureza se transforma em perfeita sincronia com o estado de consciência
daquele momento, o fundamento natural vazio de significado faz sua aparição no mesmo
tempo que a fotografia moderna. Também a fotografia, não diversamente de outros
modos de representação anteriores, está subordinada a um grau determinado de
desenvolvimento da vida prático-material. É o processo de produção capitalista que a
engendra. A mera natureza que aparece na fotografia vive sua vida inteiramente na
realidade da sociedade engendrada por esse processo. Pode-se imaginar uma sociedade
presa de uma natureza muda, não possuindo nenhum significado por mais abstrato que
seja o seu silêncio. Os contornos de tal sociedade aparecem nas revistas ilustradas. Se
esta tivesse alguma consistência, a emancipação da consciência teria como consequência
seu próprio extermínio; a natureza não apreendida pela consciência senta-se à mesa que
esta abandonou. Mas esta sociedade não possui nenhuma consistência, oferecendo
assim à consciência emancipada uma chance incomparável. Não imiscuível às condições
naturais, como nunca ocorreu antes, a consciência pode experimentar sobre elas o seu
próprio poder. A guinada em relação à fotografia representa o jogo de azar da história”

p. 78 Enquanto a fotografia colocasse como o inventário geral da natureza, por preservar


aquilo que o objeto tem de materialidade ( a avó desapareceu a crinolina permaneceu), o
historicismo é o inventário dos eventos registrados apenas na sua sucessão, sem a
transparência fotográfica.

A inversão dialética – fotografia como mediação crítica na relação com o mundo – como
forma de pensamento visual – a consciência visual do mundo que a fotografia moderna
provoca.
p. 79 “a consciência prisioneira da natureza não é capaz de perceber o seu fundamento.
A tarefa da fotografia é mostrar o fundamento natural ainda não examinado. Pela
primeira vez na história a fotografia lança luz em todo o envoltório natural e torna
presente, por meio dela, o mundo dos mortps em sua independência em relação aos
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homens. A fotografia mostra cidades em perspectiva aérea, faz descer as volutas e figuras
das catedrais góticas, todas as configurações espaciais são incorporadas no arquivo
principal com interseções incomuns que se distanciam da medida humana. Se o traje da
avó perdeu a sua relação com o presente, não mais se torna, no entanto, cômico, mas
curioso como um pólipo submarino. Um dia o sobrenatural da diva desaparecerá e seu
penteado à la garçonne permanecerá junto ao coque. Assim é como os elementos se
desagregam na medida em que não há mais coesão entre eles. O arquivo fotográfico
reúne, sob a forma de cópias, os últimos elementos da natureza alienados da intenção”

O papel da crítica no tratamento das fotografias modernas


p.79 “Por meio da sua estocagem é intensificada a confrontação entre consciência e
natureza. Como a consciência se encontra diante da rude mecânica produzida pela
sociedade industrializada, do mesmo modo – graças à técnica fotográfica – o reflexo da
sociedade se dissocia dela. Originar a confrontação decisiva em todos os âmbitos: eis
precisamente o jogo de azar do processo histórico. As imagens do conjunto natural,
decomposto em seus elementos, são responsáveis pela livre disposição da consciência. A
sua disposição original desapareceu, não se encontra mais na conexão espacial que se
ligava a um original que a imagem da memória selecionou. Mas se os resíduos naturais
não têm como meta formar imagens da memória, a sua disposição presente na memória
é, necessariamente, provisória. Caberia, portanto, a consciência demonstrar a
provisoriedade de todas as configurações dada, senão até mesmo de despertar o
pressentimento de ordem justa do existente natural.[...]
Se a mistura das imagens das revistas ilustradas é confusão, este jogo com a natureza
reduzida a pedaços faz lembrar o sonho, em que são embaralhadas os fragmentos da
vida diurna. O jogo mostra que não se conhece um princípio organizador válido, segundo
o qual se deveria dispor um dia o que resta hoje da avó e da diva do cinema reunidos no
inventário geral da fotografia” (p.80)

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