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Mesa redonda Parque das Ruínas 01 de julho de 2018

Autora: Nadja Peregrino

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite de Denise Cathilina, amiga de longa


data, para participar desta discussão sobre a fotografia enquanto meio de expressão. É
um prazer muito grande estar aqui. Primeiro porque já participei com Denise de outros
eventos, como a homenagem feita a artista Regina Alvarez, que introduziu a fotografia
sem câmara no Brasil ainda nos idos dos anos 80. Por tudo isso sou grata a ela. Depois,
penso em vocês que vieram até aqui numa tarde de domingo para esse diálogo.
Acreditar na possibilidade deste debate, me traz esperanças, se pensarmos que o Brasil
pode avançar, não pelos seus dirigentes, mas pela nossa capacidade de saber que a arte é
uma forma de superação. O artista inventa uma outra maneira de contar uma história
visando uma transformação.

Partindo desta inflexão, acho importante falar da pluralidade da fotografia atravessada


pela transversalidade do conhecimento. Quando eu comecei a trabalhar com a fotografia
na década de 80, na Funarte, a fotografia documental imperava em sua sólida tradição.
A aderência ao real era um aspecto inquestionável. Caminhávamos sobre um terreno
mais estável em que a fotografia era vista como espelho do real. Hoje, falar de
fotografia contemporânea não é fácil. A começar pela fluidez e imprecisão do próprio
termo que desliza para fora das categorias instituídas ao longo da história da fotografia.
O que representa, por exemplo, uma reportagem fotográfica? Um simples instrumento
de informação? Mas como justificar então que estas fotos, destituídas aparentemente de
valor artístico, apareçam tanto nas paredes das galerias quanto em consagrados acervos
museológicos?

Não sem razão, Michel Poivert designa a fotografia contemporânea como um novo
objeto plasmado pela indefinição e mestiçagem dos meios de expressão. Isso me dá a
chance de pensar a relação entre a fotografia e a arte num cenário atual, marcada pela
ruptura de fronteiras, pela convergência dos meios semióticos e pela extinção de
modelos classificatórios rígidos e sistematizados. Hoje o artista, para lembrar o filósofo
Arthur Danto, não é mais dependente das narrativas históricas da arte. Ou seja, ele não
precisa mais se ajustar ao que Belting denominou de enquadramento da história da arte
do século XIX, em que todo o fazer era cerceado pela decisão do que poderia ou não se
tornar arte.

Depois disto, eu diria, somos tomados por uma arte que se encaminha para um completo
devir, uma arte sinestésica que brinca com os sentidos, uma arte em completa mutação.
Daí meu interesse pelo pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que
explora a metáfora do líquido ao trazer à tona um modo de pensar o mundo moderno em
suas mudanças e permanências. Se a água tem a sua maleabilidade, por outro lado ela
conserva as suas características enquanto uma substância essencial para a vida. Se
pensarmos nisso sob a perspectiva dos dispositivos discursivos da fotografia
contemporânea, teremos uma problematização do caráter mimético, próprio da
fotografia,, que se somam aos experimentos linguísticos caoticamente transformados
pelos novos modos de conceber o tempo e a história. Temos agora novas formas de
realizações, experiências e valores. Em pauta, o poder rememorativo das imagens, o
inventário arquivístico, a intertextualidade, a reprodutibilidade, o real e a ficção, entre
outras questões.

Não devemos esquecer, porém, que a fotografia contemporânea é muito mais do que um
objeto híbrido a ser contemplado. Isto é óbvio.. Estão aí os trabalhos por toda parte.
Uma vez que sabemos como as tecnologias digitais são cada vez mais accessíveis a
todos, como campo de experimentação, o fotógrafo demarca o seu lugar com ações, que
friccionam o já visto, para potencializar o seu trabalho de modo irredutível. Penso,
como Foucault, na necessidade de sacudir as evidências daquilo que é familiar. Tornar
visível o que é visível. Desfamiliarizar aquilo que é tão óbvio. Falar numa espécie de
língua estrangeira, que funciona para fora de seus sulcos costumeiros mediante a criação
de uma nova sintaxe.

Tudo isso me leva então a mostrar alguns trabalhos fotográficos que trafegam por
diferentes estratégias. Uns pertencem a tradição, outras carregam uma ambivalência
pela sua indeterminação carregada pelas várias camadas de sentido. Sempre acho
importante lembrar do filósofo Jacques Ranciére que reflete sobre este espaço de
indeterminação a partir das diferenças existentes entre a imagem como registro do real e
a imagem como ato artístico, transcendente. Rancière se vale do termo Imagem
pensativa para designar as múltiplas formas de articulação da imagem num campo
aberto situado entre o dizível, o visível e o pensável.
Não vou mostrar o trabalho de Sophie Riestelhueber, que Rancière considera um
exemplo desta reflexão. Optei por projetar aqui o ensaio Bala Perdida da fotógrafa
Anna Kann que nos leva a pensar sobre a violência e o medo que habitam os
subterrâneos de nossa realidade pessoal. Quem poderia imaginar que essa paisagem
idílica guarda as feridas e as cicatrizes de uma história privada? Cátia, 32 anos , dona de
casa, que estava na praia de Copacabana com amigos e sua filha de oito anos morre de
bala perdida. Assim como Luz, 63 anos, dona de casa morre no aterro do Flamengo,
dentro do ônibus e Alice, 3 anos de idade, morre na cidade de Deus, enquanto brincava
na calçada. Como vemos, Anna usa a imagem num sentido diametralmente oposto às
imagens mediáticas, ao pensar a violência dentro de um sistema de relações, definindo a
priori o seu modo de apresentação.

Pensar e refletir sobre esta questão exige de nós a aproximação com um amplo
repertório estético, sempre incompleto nesta minha abordagem, com fotógrafos que
optam também por uma relação mais orgânica com a vida. A fotógrafa Bárbara Wagner,
por exemplo, direciona o seu olhar para o universo da cultura popular, pobre, massiva.
Sem retratar as agudas condições da existência humana, própria da fotografia
humanista, pratica um fotodocumentarismo simples e imediato como no caso do ensaio
Brasília Teimosa, produzido em 2007, voltado para as pessoas que vivem na periferia
de Recife. Suas fotografias procuram antes de tudo trazer à luz questões raramente
tocadas pela mídia que por natureza estigmatiza as questões de gosto, de consumo e de
comportamento experimentados em bairros de classes populares brasileiras. O grande
trunfo deste trabalho está calcado nas formas sintáticas e nos fazeres da linguagem
fotográfica. Bárbara toma emprestada uma plástica comumente usada em fotografias
publicitárias para emanar o “lifestyle” da periferia nas praias pernambucanas, onde céus
hiper saturados se misturam às poses performáticas para exaltar e celebrar costumes
frequentemente tratados de forma preconceituosa.

Ao contrário de Barbara Wagner, o premiado fotógrafo Maurício Lima adota uma


perspectiva humanista para desenvolver um extenso projeto sobre a vida das pessoas
afetadas por crises sociais e conflitos armados espalhados por vários países do mundo.
Durante 29 dias, Lima acompanhou a caminhada da família Majid em seu deslocamento
entre a Sérvia e a Suécia. Temos nomes agora oo invés dos números estatísticos que
jamais poderão dar conta das histórias individuais por motivos óbvios. Não cabe aqui,
eu penso, analisar esteticamente a luz dramática que o fotógrafo imprime a estas
imagens. Antes de tudo, estas fotos trazem a minha mente o projeto de eugenia que
atravessa o século XX até os dias de hoje. Basta lembrar a chacina dos judeus pelos
nazistas e a eliminação dos reacionários burgueses pelo totalitarismo soviético, onde um
projeto de controle do estado opera com a exclusão e o medo coletivo para afastar os
indivíduos indesejáveis. Muros são construídos, arames farpados protegem as fronteiras.
Por isso, este problema social, ao meu ver, vai muito além da repressão ocorrida com as
migrações em massa. O duro, hoje, é seguir a vida sem a possibilidade de retorno,
constatar a impossibilidade dos indivíduos de reconstruir uma história pessoal parada
em meio ao caos, extraviada, abolida, suspensa no auge da brutalidade humana.

Já o díptico The dreadful details (os detalhes terríveis) de Eric Baudelaire causou grande
impacto num Festival de Perpignan em 2006 dedicado ao fotojornalismo. Ao contrario
do registro documental de Maurício Lima, Baudelaire não hesita em radicalizar as
premissas do fotojornalismo com a encenação de uma foto da guerra do Iraque
produzida nos estúdios de Hollywood, onde são filmadas as séries televisivas sobre o
mesmo assunto. Questionando as relações dialéticas entre a experiência do real e a
ficção, Baudelaire tenta simular um flagrante - uma máxima do fotodocumentarismo
contemporâneo - com um homem que fotografa a cena com seu telefone portátil e um
repórter que aponta sua câmara para os cadáveres deitados no chão. The Dreadful
Details aparece assim na linha de uma reflexão sobre a representação da realidade que
foi objeto de grande discussão entre os teóricos nos anos de 1980 e 1990. Como
também traz consigo referências da representação da guerra na história da arte, desde
Goya, passando por Houcine, até Dead Troops Talk de Jeff Wall em 1986 que traz
também em uma das suas imagens o mesmo simulacro estetizante de horror. The
Dreadful Details parece ser assim um resumo da teatralidade da imagem de guerra, da
sua odiosa e inegável beleza e do seu poder indivisível de atração e repulsão.

Vamos agora recuar no tempo para trazer a questão feminista explorada no campo da
fotocolagem e da performance. Tomemos como exemplo o trabalho da artista
americana Mary Beth Edelson que produziu montagens a partir de uma releitura de
pinturas famosas, como é o caso da A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, pintada por
Rembrandt em 1632.  Ao invés da cor original da obra de Rembrandt, Mary utiliza a cor
preta como recurso estético para apontar a morte do patriarcado. Além disso, estes
múltiplos rostos femininos são sintomáticos do sentido ético e político perseguido pela
artista. Ao destacá-los homenageia as mulheres ativistas que se tornaram a espinha
dorsal do movimento feminista no mundo da arte nos anos 70, tanto na Morte do
Patriarcado, quanto nesta outra colagem Some living american Women artists, uma
referência explicita ao afresco pintado por Leonardo da Vinci entre 1495 e1498.

Situações extremadas, com grande significado político, são exploradas pela paraense
Berna Reale. Suas performances, registradas em fotos e vídeos, nos confrontam com os
diferentes problemas sociais do Brasil. Corrupção, arbitrariedade policial, destruição
ambiental, criminalidade, violência contra mulheres, por exemplo, criam uma situação
sócio-política próxima ao caos. A potência do seu trabalho aflora na imagem do seu
próprio rosto, inerte, como se Berna estivesse alheia ao seu entorno. Cavalgando em
um cavalo vermelho, de uniforme preto com focinheira na cara, atravessando uma
cidade na alvorada. Exaurida, atravessando as ruas de um bairro da periferia de Belém
com um carrinho de mão cheio de ossos e de caveiras como se fosse uma mensageira do
Juízo Final.  Em Rosa Púrpura comanda as meninas com suas saias plissadas cor pink e
suas blusas brancas, que desfilam ao lado dos policiais pelas ruas. A boca de boneca de
sexo, que todas as atrizes usam, transforma essa manifestação contra a violência sexual
em um grito mudo. Ou então Berna se apresenta, quase irreconhecível, atrás da máscara
de gás, como uma bailarina sobre o lixão da história. O título da conhecida canção,
Singing in the Rain é carregado de humor, ironia, sarcasmo. Nesse cenário caótico a
artista parece querer expressar os males da a sociedade de consumo e desperdício, que
não deixa outra coisa aos miseráveis que não seja o lixo.

Não vou ter tempo aqui de mostrar um panorama mais amplo da fotografia
contemporânea. Não posso deixar de ressaltar, porém, os novos compartimentos de
inclusão do sujeito que se reconhece através de um espaço virtual desarticulado pela
profusão de informações. Não há mais uma narrativa coesa. Ao contrário, a foto digital,
segundo Fontcuberta traz à tona nossos impasses diante de uma imagem sem lugar e
sem origem, desterritorializada, que molda a espessura do mundo através de uma
realidade de ficção.

Das várias abordagens sobre as plataformas digitais que podem ser reinscritas no
panorama artístico contemporâneo, o trabalho de John Clang, natural de Cingapura, se
constitui, em sua inventividade, num ótimo exemplo para pensarmos a conexão entre
tecnologia, espaço e tempo. Na série Being Together (foto), Clang, consciente da
crescente emigração dos jovens de Cigapura, que estão distantes de suas famílias, (foto)
desenvolveu uma estratégia particular de retrato de família, mesclando imagens reais e
projeções digitais. (foto). Projetando numa parede a imagem transmitida de Cingapura,
via skype, Clang, radicado em Nova Iorque, conseguiu através deste encontro virtual,
se colocar ao lado dos seus familiares (foto) Essa simulação é a cópia da forma real,
não é falsa, mas também não pode ser considerada verdadeira, se seguirmos o
pensamento do filósofo francês Jean Baudrillard. É uma criação, algo inventado, mas
tão crível que o aspecto de irrealidade é ofuscado. Tanto é assim que a cultura ocidental
está construída num mundo fictício reforçado pelos meios de comunicação ou mesmo
por séries recentes como Black Mirror.

Já o baiano Paulo Coqueiro, em Não Minta para mim, vencedor do Premio Pierre
Verger em 2017, concebe uma verdadeira proeza quando inventa o personagem Tito
Ferraz a partir de uma narrativa visual baseada em acontecimentos puramente virtuais.
A simulação é o eixo principal de sua proposta. Para dar concretude ao seu personagem,
Coqueiro utiliza o belo retrato do escritor Albert Camus que passa a ser Tito Ferraz nas
redes sociais. Durante um ano e meio, Coqueiro, aparece no Facebook como Tito
Ferraz, compartilhando entre os amigos a identidade de seu personagem, o aniversário
de Tito Ferraz, a crise política em Brasília. Nenhum deles podia imaginar a construção
dessa realidade ficcional mesclada com êxito aos fatos do cotidiano. Em seguida,
Coqueiro, além de operar com o desaparecimento de Tito Ferraz, idealiza um livro que
contém, além de um prefácio escrito por um falso Joan Fontcuberta diversas imagens
sobrepostas que desfazem a identidade dos fotógrafos baianos. Em Não minta para
mim, a vida de Tito Ferraz se tornou uma ilha de edição, que atravessa o tempo
cronológico como simulacro, desafiando a famosa frase Ver para crer repetida ao
infinito por estas imagens.

Nessas circunstâncias de absoluta saturação icônica, (foto) o self se afirma em milhares


de imagens nas redes sociais como fenômeno global de comunicação. Talvez uma das
primeiras vezes, em que o self aparece, não com este nome é claro, tenha sido no filme
(foto) Thelma e Louise, produzido em 1991 por Ridley Scott. Geena Davis e Susan
Sarandon posam para a Polaroid durante a viagem que as duas fazem, vivendo incríveis
aventuras nas estradas americanas. Em 2013, a capa da Time (foto) faz uma matéria
especial sobre o self, como prática social, sob um ponto de vista narcisístico, enquanto
que nesta foto (foto) auto-retratos de pessoas e de personalidades do mundo da arte e
da política são manipulados para se auto-fotografarem com smartphones. Nesse
sentido, podemos dizer que a memória atravessada por discursos incessantes e
heterogêneos é efêmera, sem consistência, sem lastro. Qual o futuro dessas imagens?
Essa indagação fica no ar diante da incerteza da permanência destas imagens.

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