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05/09/2020 Folha de S.

Paulo - + autores - Jacques Rancière: O destino das imagens

São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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+ autores

O destino das imagens


Jacques Rancière

O moderno", dizia Mallarmé, "desdenha de imaginar".


Desdenhar as imagens não era evidentemente adorar as
realidades sólidas. Era, ao contrário, opor as formas ou
performances da arte a toda confecção de duplos de pessoas
ou coisas. "A natureza acontece, não se lhe acrescenta",
também dizia ele. O poema ou o quadro deveria ser o traçado
de um ato específico de que Mallarmé encontrava o modelo
nos hieróglifos mudos desenhados pelos passos da bailarina.
Entendida assim, a fórmula do escritor poderia muito
comodamente resumir toda uma idéia da modernidade
artística. À época do suprematismo, do futurismo ou do
construtivismo, essa idéia se casou de bom grado com o
projeto de construção de novas formas de vida. No desencanto
das grandes esperanças, ela encontrou seu emblema na pureza
da pintura não-figurativa, opondo a lógica das formas
coloridas a toda produção de imagens destinada ao consumo
das semelhanças.
Já faz algum tempo que essa identificação da modernidade
artística à recusa da imagem voltou à ordem do dia. O que não
quer dizer, porém, que as paisagens, as mulheres nuas e as
naturezas-mortas tenham tornado a florescer nas paredes das
galerias e exposições. Se as "composições" da era abstrata
tendem a se retirar das galerias e exposições, tal não se dá em
proveito de uma pintura novamente figurativa. É antes em
proveito de uma confrontação das imagens do mundo com
elas mesmas.
Três exposições recentes ou atuais em Paris resumem à
perfeição tal princípio. No verão passado, o Museu de Arte
Moderna da cidade de Paris apresentou uma exposição
intitulada: "Voilà, le Monde dans la Tête" (Aí Está, o Mundo
dentro da Cabeça). Mais recentemente, o Centro Georges
Pompidou seguiu no encalço do museu com uma exposição
intitulada "Au-delà du Spectacle" (Para Além do Espetáculo).
Nos últimos dias, enfim, foi aberta no Centro Nacional da
Fotografia a exposição "Bruit de Fond" (Ruído de Fundo).
Sua simultaneidade é significativa não pelas novidades que
introduziriam, mas, ao contrário, por sua semelhança com
muitas outras exposições nos quatro cantos do mundo, pela
maneira comum como testemunham hoje um cotidiano da
arte.
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Os títulos já são significativos. "Voilà" em francês é o


demonstrativo que contempla o passado ou o remoto. E, de
fato, a exposição pretendia ser uma espécie de memória do
século. Do século como tal, e não de sua arte. Nas instalações
de Christian Boltanski ou de On Kawara, nas fotografias de
August Sander nos anos 20 ou nas fotografias recentes de
Hans-Peter Feldmann, nos filmes de Jonas Mekas ou de
Chantal Akerman e nas outras instalações, vídeos, vitrines
fotográficas ou computadores repartidos ao longo de toda a
exposição, era de nossas maneiras de assimilar as imagens e
viver com as imagens que se tratava a mostra. E a sala
consagrada à pintura não se furtava a tal princípio.
O artista expositor, Bertrand Lavier, nela não apresentava a
sua pintura. Expunha uma série de quadros de todos os estilos,
cujo único princípio de unidade era a sua assinatura: todos os
pintores reunidos exibiam o mesmo prenome, o nome próprio
mais difundido na França, Martin. Assim a exposição de arte
identifica-se a um trabalho de arquivista, e a sua visita, ao
folhear de uma enciclopédia na qual textos e imagens valem
como testemunhos de um tempo e de uma maneira de
apreender esse tempo e nele inscrever os sinais. O Museu de
Arte Contemporânea tende, pois, a oscilar ele próprio entre o
"gabinete de curiosidades" de antanho e o museu de etnologia
de nossas civilizações.

Mundo midiático
As duas outras exposições explicitamente tomam emprestado
seu título a um livro. "Au-delà du Spectacle" alude ao ensaio
de Guy Debord, "A Sociedade do Espetáculo" (Ed.
Contraponto), e "Bruit de Fond", ao romance de Don DeLillo,
"Ruído Branco" (Companhia das Letras). Uma e outra se
põem assim a serviço da crítica do mundo midiático,
publicitário e televisivo, ilustrado tanto pelo teórico do
situacionismo como pelo romancista dos acontecimentos
estranhos orquestrados pela televisão na cidadezinha de
Blacksmith. Elas dão testemunho de uma arte que já não opõe
a pureza das formas ao comércio das imagens.
É possível opor as formas às imagens, contanto que estas
apareçam como os duplos supérfluos das coisas. Mas o que
implica o conceito de espetáculo é que as imagens não são
mais o duplo das coisas, são as coisas elas mesmas, a
realidade de um mundo em que uma e outra já não se
distinguem. Onde a imagem não se opõe mais à coisa, a forma
tampouco se oporá à imagem. O que a ela se opõe é uma outra
imagem. Mas uma outra imagem não é uma imagem com teor
diverso. É uma imagem disposta diversamente, ofertada num
outro registro perceptivo. "Au-delà du Spectacle" não opõe
nenhuma pintura às imagens da mídia. E se "Bruit de Fond"
apresenta fotografias, não é tanto como obra de fotógrafos, é
como material de que se servem os artistas em registros cuja
função é aprender a ler as imagens e as mensagens e a brincar
com elas.
Brincar e aprender são dois opostos que os pedagogos
progressistas insistem em querer conciliar. Se as instalações
de "Voilà" evocam os gabinetes de curiosidade, são antes a
registros de pedagogia lúdica a que se aparentam aquelas de
"Au-delà du Spectacle". Ao lado de uma mesa de bilhar, de
uma mesa de futebol de botão gigante e de um carrossel,
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figuram os monitores, as cabaninhas e as casas de boneca nas


quais os visitantes são confrontados seja com os ícones da
publicidade retrabalhados em chave diversa, seja com esses
ícones reproduzidos tais quais são, mas fora de seu contexto.

A exposição ao idêntico das imagens do narcisismo


publicitário se quer imbuída de valor crítico; como se
bastasse apresentar num outro espaço as imagens das
mercadorias e do poder para elas se tornarem
instrumentos críticos

O uso crítico das imagens tende assim a um certo


minimalismo. As fotomontagens de antes brincavam com a
relação contraditória de duas iconografias. Nos anos 30, John
Hartfield radiografava o orador Hitler para fazer ver a
circulação de ouro que animava a máquina nazista. Cerca de
40 anos mais tarde, Martha Rössler colava cenas da Guerra do
Vietnã sobre as imagens do narcisismo publicitário
americano. Hoje a própria exposição ao idêntico das imagens
do narcisismo publicitário se quer imbuída de valor crítico.
Como se bastasse apresentar num outro espaço as imagens
das mercadorias e do poder para que elas se tornem
instrumentos críticos, ensinando os espectadores a pôr em
perspectiva as imagens e ruídos coletivos que condicionam
sua existência. Na prática, são os cartões de introdução a cada
obra que têm o encargo de mostrar a diferença, reafirmando,
de uma maneira quase encantatória, a virtude crítica do
dispositivo de deslocamento das imagens.

Figuras banalizadas
Arte-arquivo, arte-escola. Contra essas duas figuras
banalizadas de uma arte constituída de imagens cuja
radicalidade estaria na própria semelhança com imagens do
mundo, retorna periodicamente a nostalgia de uma arte
instauradora de uma co-presença entre homens e coisas e dos
homens entre si. Recentemente foi inaugurada no Palácio de
Belas-Artes de Bruxelas, sob os auspícios do crítico e teórico
Thierry de Duve, uma exposição de "cem anos de arte
contemporânea", com o título escolhido a dedo por seu valor
polêmico.
Ao "Voilà" da exposição parisiense a exposição de Bruxelas
opõe um "Voici". "Voici" é em francês o demonstrativo da
presença no presente. A exposição e o livro que o
acompanham surgem, pois, como o manifesto de uma arte
concebida como arte da presença e do olhar, de uma
"facingness" oposta à "flatness" formal valorizada pelo grande
teórico da modernidade pictórica, Clement Greenberg. Mas
será em vão que se buscará nela algum retrato, cena de grupo
ou natureza-morta à moda antiga. Várias obras arroladas sob a
bandeira do "Voici" figurariam sem dificuldade sob aquela do
"Voilà": retratos de estrelas de Andy Warhol, composições
fotográficas hiper-realistas de Jeff Wall, documentos da mítica
"seção das águias" do museu ficcional de Marcel Broodthaers,
instalação de Josef Beuys de um lote de mercadorias da RDA,

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cartazes de Raymond Hains, espelhos de Pistoletto ou o


"álbum de família" de Christian Boltanski... E as inúmeras
obras tomadas de empréstimo à escultura minimalista ou à
"arte povera" têm corpos bem frágeis para encarnar os
esplendores da "facingness" evocada.
Em suma, nem o olhar nem seu objeto carregam os critérios
evidentes da diferença entre o "voici" e o "voilà". É preciso,
pois, o suplemento do discurso que transforma o "ready-
made" em amostra ou o paralelepípedo liso em espelho de
olhares cruzados. Esculturas minimalistas ou fotografias
hiper-realistas devem então ser postas sob a autoridade do
suposto pai da pintura moderna, Manet.
Mas esse pai da pintura moderna deve ele próprio ser posto
sob a autoridade do Verbo feito carne. O modernismo de
Manet e de toda a pintura em sua sequência nela é definida a
partir de um quadro de juventude que vale como cena
primitiva. No início dos anos 1860, em seu período
"espanhol", Manet pinta um "Cristo Morto Sustentado por
Anjos" imitando a Ribalta. Só que seu Cristo, à diferença do
modelo, tem os olhos abertos e se posta diante do espectador.
É o que basta para conferir à pintura, nos tempos da "morte de
Deus", uma função de substituição. O Cristo morto reabre
seus olhos, ressuscita na pura imanência da presença pictórica
e inscreve de antemão as pinturas monocromáticas como
imagética pop, as esculturas minimalistas como museus
ficcionais na tradição do ícone e da economia religiosa da
ressurreição.
"A imagem virá ao tempo da ressurreição." A fórmula de são
Paulo fornece o "Leitmotiv" das "História(s) do Cinema" de
Godard. E é sabido como Godard desenvolve a partir dela
uma teoria da imagem que transforma a tela branca em véu de
Verônica e os planos de Hitchcock em ícones da pura
presença das coisas. De um lado e de outro do formalismo de
ontem se erguem, pois, duas novas formas de identificar a arte
com a imagem: uma arte da reexposição das imagens
corriqueiras do mundo e uma arte que lhes opõe os ícones
puros da presença. O paradoxo, como vimos, é que as obras
que ilustram essas teorizações antagônicas não precisam ser
diferentes. É talvez para os teóricos da presença que o
paradoxo é mais rude. Seus sonhos de imanência não se
imporiam senão pela sua própria contradição: o discurso que
transforma todo objeto de arte em delicada hóstia, pedaço
destacado do grande corpo do Verbo feito carne.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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