Você está na página 1de 3

Resenha Pintura Reencarnada Angélica de Moraes

Assim como não cessa a presença da pintura no horizonte da arte


contemporânea, embora inúmeras vezes ao longo do século passado tenham
decretado sua morte. Não se trata aqui de identificar uma pintura supostamente
revigorada, mas sim de observar que ela migrou de corpo. A pintura deixou de ser
apenas o aglomerado de moléculas de um objeto para ser pura energia de sinapses
cerebrais. Fio condutor da maior parte da história da arte ocidental, a pintura é hoje um
rico acervo de conceitos que passou a ser exercitado e expandido também em outros
matérias e processos.

Há um conjunto enorme de instalações, objetos, performances e, mesmo, diversas


expressões de arte eletrônica que estabeleceram suas poéticas a partir de matrizes
criativas solidamente ficadas no pensamento pictórico. Chamo a essa produção de
pintura reencarnada. Krauss se aplicava não apenas á escultura, mais á maioria das
formas de expressão visual contemporânea.
Pintura reencarnada é a pintura que, desprendida da matéria que a
caracterizava, pousa de modo indelével é perfeitamente reconhecível em obras
produzidas na atualidade. Foi absolutamente intencional não colocar a chamada
pintura – pintura no conjunto da mostra. "Reencarnada" não defende pressupostos
modernos de "evolução" da pintura para novos meios.

Arte que nós proporciona percepções aumentadas do estar no mundo. Mas tudo é


pintura. Essas obras não existiriam se autores não estivessem atentos ao legado
pictórico da história da arte. Um novo lugar para a pintura na contemporaneidade.

Que pinta é essa? É pintura reencarnada. Se nesta exposição a chamada pintura –


pintura não está presente é exatamente para sublinhar, in absentia, a sua importância
como motor de toda a mostra. O pensamento pictórico é o fio condutor do percurso
expositivo de "Pintura Reencarnada". Até porque está tratando da imaterialidade e da
permanência da pintura.

Na história da arte do Brasil, isso se coloca a partir do neoconcretismo e dos sólidos


geométricos criados por Aluisio Carvão em 1960. Conforme esclarece Anna Maria
Martins² na monografia sobre o artista, Carvão "vai além da tela na afirmação da
fisicamente da cor". Para dar copo ao pigmento, ele cria duas obras emblemáticas
dessa questão na arte brasileira. " Na peça executada em cimento, Cubo – Cor, de
novo nas palavras de Martins, o artista "intensificou forma, volume, matéria, superfície
e textura no mesmo suporte para cor, como se ela fosso o próprio.

A geometria sensível do artista reduz a pura relação desdobra essa percepção no


Cerne – Cor, estabelecendo um ângulo agudo entre dois planos e, assim, destacando
ainda mais a alternava encontrada por ele para a pintura escapar da
bidimensionalidade. Penso que Carvão estabelece, com essas duas, o momento
inaugural da pintura reencarnada no âmbito da arte produzida no Brasil.
É paisagem sem imagem, frontalizada como um mural. Site specific que modifica o
espaço onde está colocando, criando uma vibração de cor para fruição diante
dela, mas também no seu avesso, cor para fruição diante dela, mas também no seu
avesso, aparado como espaço integrante e irradiador da obra. Este trabalho, se
observando no contexto da mostra, é exemplo vigoroso da presença sutl da pintura
pousada em novos processos e materiais trazidos pela contemporaneidade.
Sólido, dessa estupenda colorista chamada Amélia Toledo, assim como seu peso, a
gosta vermelha aprisionada em vidro que nos lembra o sacrifício de uma geração
idealista nos idos da ditadura militar brasileira.

Essa obra instaura o indizível e nos atravessa, por inteiro, o coração. Em outros, a


invocação da pintura se dá pela memória, pela inspiração em quadros famosos ou na
expansão contemporânea e tridimensional de alguns gêneros que definem a pintura
clássica, como o mural, o retrato e a paisagem. Um único artista estrangeiro, o
videoartista Bill Viola, Comparece para sublinhar que o fenômeno é internacional e
ganhou uma visibilidade maior a partir da vídeo arte.

Vista de perto, revela que os inúmeros toques coloridos de pincel são, na


verdade, figuras autocolantes de personagens pop como as Meninas
Superpoderosas, o gato Frajola ou o Coração de Jesus.

Descendente direto da pintura barroca de Caravaggio, La Tour é revisitado por Afonso


em O impostor, após La Tour. A imagem, em clave de auto – retrato, mostra o artista
como um jogador, um ilusionista. Afinal, o ilusionismo está na base da pintura desse
período. Hermano criou uma trama de fios aéreos que suportam delicadas estruturas
vazadas sobre um chão semeado de pratos intensamente coloridos. Seria uma pintura
reencarnada mesmo sem o referencial famoso. O gênero paisagem é revisitado por
Hélio Oiticica no objeto Topologicial Ready Made Landscape de 1978, em que o artista
nos remete á percepção da linha do horizonte através do exercício de fazer coincido
está linha real como a linha imaginária estabelecida por um elástico. Na proposta
original, o artista pretendia que o espectador observasse esse objeto de uma janela de
frente para um horizonte e pudesse manipular o elástico para «sintonizar» realidade e
representação.

Justificadamente incontornáveis se pensamos a peça como objeto da história da arte e


não como um conceito reproduzível. A padronagem oriental é apropriada como
superfície pictórica e o conjunto remete ao atentado de 11 de setembro, mais também
afirma e recupera o território de sonho de 1001 noites que significa o deslocamento
em viagens de avião. Elida Tessler traz a instalação Fundo de Rumor. Macio que o
Silêncio, uma investigação poética sobre o lugar da existência, entendida como
horizonte e memória. Sem intencionalidade estabelecida pela artista, mas garantida
pelo fato de compartilhar os mesmos espaços da mostra, esse trabalho acaba
dialogando com a obra de Oiticia.

Essa linha está na altura dos olhos da artista. Rachel Rosalen investiga a


sobreposição de peles que tece o espaço urbano em uma pintura imaterial feita de
pixels de imagem eletrônicas na qual predomina o vermelho –
sangue. Espaço, sensores de presença acionam a projeção de imagens de violência
de noticiários televisivos sobre nós e, também, sobre um grande envelope de
plástico , em que estão depositados restos de construção, pedaços de
asfalto, concreto e pedra. Somos imersos nessa violência e a vemos projetada sobre
nós.

Marcelo Duchamp, por sua vez, teve objetivo demolidor ainda mais amplo ao lançar
um anátema sobre o que denominou de «arte retiniana», ou seja, aquela que se
compraz em satisfazer o olhar. Para Duchamp, a função essencial do fazer artístico é
criar obras que possam agir para além do nervo óptico, penetrando nas circunvoluções
cerebrais e agindo como motores para ideias. Ela se Transubstancia, evola-se de um
corpo para existir em outro, como pintura reencarnada. 
De qualquer modo e polêmicas à parte, o espectador está convidado a fruir de modo
mais ativo esta exposição, detendo-se tanto nas propostas autorais de cada artista
quanto na reflexão sobre uma presença que resiste a todos os anúncios da sua
pretensa morte. A palavra impressa tentou matar a pintura, sim. Esta exposição frisa
que ela está viva. A pintura contemporânea há muito transbordou da assepsia das
vanguardas russas do século passado e da crítica formalista de inspiração
greenberguiana.

Descolou – se dos cânones rígidos que determinam um horizonte arcaico, em que o


finis terra e está muito antes da contemporaneidade começar. Pode alimentar – se de
muitas crenças, de muitas teorias e percepções que podem ser minimalistas, ortogonal
e quase sem cor, mas também pode ser neobarroco, saturado de informação e
excessivo como este século em que vivemos. Se formos traçar uma linha histórica dos
sucessivos anúncios de morte da pintura, vamos notar que o fenômeno tem mais de
um século. Conforme nos esclarece Yves – Alain Bois, a pintura modernista já convivia
com esse trauma. Aliás, como ele afirma, “o luto foi a atividade da pintura durante todo
o século XX”.

Você também pode gostar