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Tadeusz Kantor e Valère Novarina são ar- com a profissão de fé de que o teatro deve
tistas contemporâneos que se situam na propor, ao longo dos tempos, o impacto ori-
fronteira entre a pintura e o teatro. Embora ginal do instante em que um homem se co-
estejam entre os nomes mais importantes locou pela primeira vez diante dos outros,
das artes cênicas da metade do século 20 exatamente igual a eles e, no entanto, infini-
para cá, têm também sólida carreira de ar- tamente estranho e inatingível.2
tistas plásticos, sendo suas obras expostas
com regularidade. Não é, entretanto, esse Retomando as ideias de Kleist3 e de Craig4
duplo aspecto de suas trajetórias que pre- acerca das vantagens de substituir o dança-
tendo analisar aqui, mas sim o modo como, rino ou o ator por uma supermarionete,
cada um a sua maneira, partiram das ques- Kantor repassa, nesse texto, algumas ideias
tões colocadas pelo embate entre a tradi- do romantismo e do simbolismo para con-
ção e as vanguardas do início do século pas- cluir que a vida só pode ser trabalhada, na
sado e seguiram linha em que teatro e pin- arte, pela ausência de vida. Sendo assim, ele
tura acabam confluindo em campo único de lida com o ator na mesma dinâmica que es-
reflexão. tabeleceu para suas obras plásticas, a do
objeto achado, assumindo, portanto, o lega-
Vanguardas e saturação do do dadaísmo.
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ARTE TOTAL, TUDO É ARTE, TODO queria justamente ensinar a língua a
MUNDO É ARTISTA, A ARTE ESTÁ vocês.
NA SUA CABEÇA etc. C – (...). Senhor Boucot, por favor afi-
Não gosto de engarrafamentos.6 nal, o que quer de mim a minha língua
aqui que me trava?
Fugindo dos engarrafamentos Boucot – Ela quer enganar você.
C – Socorro, minha língua quer me falar!
Em Paris, em 1968, Valère Novarina, então
Boucot – Falar? Ei seus loucos, vocês
com 21 anos, começa a escrever sua pri- não podem falar, vocês não sabem a
meira peça, O ateliê voador, encenada ori- língua!
ginalmente em 1974 por Jean-Pierre Sarrazac.
D – E essa que nós temos na boca, tal-
Formado em filosofia e filologia, com estudo
vez? Não é uma língua esse troço que
sobre Antonin Artaud, esse jovem autor
nós temos dentro?
percebia que a revolução que se entoava
Boucot – Não. É um pau (...)
nas ruas só seria possível se incidisse direta- F – E o senhor, o que o senhor tem ali?
mente sobre a linguagem, que é onde resi- Nenhuma língua também não?
de toda e qualquer estruturação – logo, todo
Boucot – Tenho uma sim. Ganhei de
domínio. Como, porém, sua ação é sutil, por
tanto ir à escola. Já vocês, vocês têm
ser obviamente expressão e não tema de
dentro um pau.7
luta de classes e outras formas de embate
de poder, ela permanece no âmbito do po- Seja de forma poética, como quando um dos
ético, chegando a tocar apenas os que con- empregados chega a se rebelar, embora seja
seguiram desenvolver o sentido da escuta devidamente recapturado no final.
em meio ao império das imagens em que se
transformou nossa cultura. A – Assa! Oisse! Usse! Oieça! Assaz! Iça!
Içu! A vida está mal organizada. Vamos
O ateliê voador põe em cena a relação do exigir o fim das tramóias imediatamen-
casal de patrões Boucot e Senhora Boca com te. Stop. Alto lá! Ascoltem o que eu
seus empregados, sintomaticamente desig- depeno lhes dizer, minas de bocas. Nós,
nados por A, B, C, D, E e F (três homens e trupes do Boco, decidimos nos
três mulheres). Se há inúmeras situações tí- assemblar a fim de desmontar a sua
picas da exploração capitalista – migalhas (li- tona para que vocês desapareçam e que
Tadeusz Kantor terais) de salários, impessoalidade da pro- nós aspareçamos; vamos decidir aqui,
A classe morta, 1975, dução, venda aos empregados dos objetos desde imediatamente, de nos aspra até
cena do espetáculo por eles mesmos manufaturados e até aula a última bluta contra qualquer rabo e
Fonte: Bablet, Denis (org.). Les
Voies de la création théâtrale. de mais-valia dada pelo patrão –, a peça se de fazer cessar de imediato toda con-
Paris : CNRS, 1983, vol. 11, p. 186 tece na estruturação dos diálogos e, neles, dição de louco e de lhes desembolotar
no uso da língua. Seja o rabo!... Todos os peões reunidos são
de forma explícita o bastante para sair da gaiola de bocó!...
(em alguns momen- (...) Vamos, vamos, Senhoras e Senho-
tos, a peça faz pen- res, vocês deixam de ignorar quem está
sar em Bertolt Brecht em cima e quem está embaixo?... É o
e seu teatro didáti- bocó que segura o alfabeto, isso é mui-
co): to evidente....8
Boucot – Estou feliz O ateliê voador ainda apresenta intriga com
por você me fazer personagens que refletem questões concre-
essa pergunta, eu tas do real, embora impregnada de inspira-
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sequência de seus textos: a da imbricada Ator esse que veio para anunciar:
construção da tradição nas teias da religião,
da filosofia, da pintura e do teatro, como A boa nova do teatro – onde a poesia
exposto a seguir. é ativa – é que o homem ainda não foi
capturado. O mundo não tem que ser
A estrutura do livro propõe, de forma bas- descrito, nem imitado, nem repetido,
tante livre, essa construção. O primeiro ca- mas deve ser de novo chamado pelas
pítulo, que lhe dá título, trata da oposição palavras. Ide e anunciai em toda parte
entre linguagem e comunicação, ressaltando que o homem ainda não foi capturado!14
desde o início sua relação com o espaço:
Quando se chega ao último capítulo, no qual
A fala avança no escuro. O espaço não Novarina trafega pela tradição religiosa, plás-
se estende mas se escuta. Pela fala, a tica e teatral, e revisita a carga originária do
matéria está aberta, crivada de palavras; Verbo, a cena já está armada e se desvenda
o real ali se desdobra. O espaço não é como Morada frágil. O ponto de partida aqui
o lugar dos corpos; ele não nos serve é o quadro de Piero della Francesca A Madona
de apoio. A linguagem o carrega agora com criança e santos ou Madona do ovo,
diante de nós e em nós, visível e ofere- no qual Novarina destrincha a operação de
cido, tenso, apresentado, aberto pelo nascimento do espaço, enfatizando a rela-
drama do tempo no qual estamos com ção entre a perspectiva e o cristianismo:
ele suspensos. O que há de mais boni-
to na linguagem é que passamos com Piero representa o nascimento do es-
ela. Tudo isso não é dito pelas ciências paço por um ponto invisível situado
comunicativas mas nós sabemos muito dentro do espectador. Ele representa
bem disso com nossas mãos na noite: a íntegra do tempo; ele o fura de um
que a linguagem é o lugar do apareci- ponto respirado que está em você. Ele
Tadeusz Kantor mento do espaço.12 abre o universo que – seu nome o in-
A classe morta, 1982, dica – tende para o 1. É isso, o ponto
quadro, coleção do artista O segundo capítulo, Opereta reversível, iden- de fuga da perspectiva: no centro do
Fonte: Bablet, Denis (org.). Les
Voies de la création théâtrale. tifica esse gênero dramático à irrepre- espaço, o espaço desaparece, o tempo
Paris : CNRS, 1993, vol. 18, p.22 sentabilidade do humano. E o terceiro, De- se devora. A cruz é esse ponto
bate com o espaço, explora a materialidade perspectivo onde o tempo se concen-
da palavra, seu aspecto tátil, pic- tra e se dispersa no espaço. Ela não é
tórico, estabelecendo elo entre absolutamente o sinal de um suplício
o trabalho do pintor e a cena: mas de um esplendor. Um 4 abre e
cresce. Quatro é o número ao qual a
A pintura é lançada, crônica, pró- palavra foi ligada: ela foi atrelada ao es-
xima do gesto do ator. Delacroix paço. Quando se fala, sempre se tem
escreve no seu diário: “Quando essa cena na cabeça.15
entro no meu atelier, entro em
cena”. O tempo também se es- Muito se sabe sobre a íntima relação entre
creve em pintura. A superfície da o uso da perspectiva no Renascimento e a
tela é inquieta, em movimento construção do palco à italiana, o palco
(...) Uma pintura movediça, apa- da ilusão, o palco da cultura ocidental.
recendo-desaparecendo, por Se a palavra cenografia surge em pintura
acessos, por crises, por danças, no Renascimento para designar o modo
uma pintura soprada e como fei- de se dispor objetos numa tela, é o
ta por um ator.13 aprofundamento do palco a partir de um
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que se propaga pelo espaço, bate em Happenings e performances são momentos
paredes, volta como uma pedra ou se em que se designa a fronteira como lugar
choca contra qualquer obstáculo que para nos lembrar que o acontecimento ar-
esteja em seu caminho. Penetra um tístico em si é sempre cena. Abandonam-se
corpo e sai como uma nova forma.18 os happenings e as performances, mas o lu-
gar permanece para ser recriado quadro a
Tradição, pensamento, criação têm que ser
quadro, peça a peça.
entendidos aqui como parte de todos os
domínios comprometidos com a produção Ângela Leite Lopes é professora do Curso de Artes
de sentido, quer no campo das línguas, quer Cênicas da EBA e atua na Linha de Pesquisa Poéticas
no da ciência, no da arte. Como já dito, não Interdisciplinares do Programa de Pós-Graduação em
há predominância a priori do teatro na obra Artes Visuais, UFRJ. Doutora em Filosofia pela Universi-
dade de Paris 1, é também tradutora e desenvolve pes-
de Novarina, e sim percepção de que onde quisa sobre a relação entre espaço e interpretação.
há ato de criação há ou deve haver cena.
Notas
Assim como Kantor, Novarina fala dessa cena
como de um trespassar. Pelo fato de se es- 1 Kantor, Tadeusz. Aux frontières de la peinture et du théâtre.
tar vendo o outro lado das coisas, ao se sen- In Le Théâtre de la mort. Lausanne: L’Âge d’Homme,
tar diante do palco, ao se olhar um quadro, 1977: 125-158.
a visão estará sempre invertida, outra, ao 2 Kantor, Tadeusz. O teatro da morte. Folhetim. Tradução
de Ângela Leite Lopes. Rio de Janeiro: Teatro do Pe-
contrário. E principalmente porque entrar em queno Gesto, 1998: 17.
cena é passar para outra dimensão. O ator 3 Heinrich von Kleist (1777-1811), dramaturgo e poeta ale-
que entra em cena dá um salto, transpõe mão, autor de Sobre o teatro de manionetes, Rio de
uma barreira. Encara o complexo jogo de Janeiro: Sette Letras, 1977.
linguagem que, Novarina não cansa de pro- 4 Edward Gordon Craig (1872-1966), encenador, cenógrafo
por, faz com que falar, ouvir e olhar sejam e teórico do teatro inglês, autor de On the art of theatre.
em si irremediavelmente ação. 5 No filme Le Théâtre de Tadeusz Kantor. Paris: CNRS
Audiovisuel/Arcanal/La Sept, 1988.
A escolha de Tadeusz Kantor e Valère 6 Kantor, op. cit., 1998: 9 e 10.
Novarina aqui não foi, portanto, aleatória, 7 Novarina, Valère. O ateliê voador. Tradução de Ângela
Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7Letras (no prelo): cena 6.
embora suas trajetórias estejam circunscri-
8 Id., ibid.: cena 10.
tas a contextos bem distintos. Ambos são
9 Debate com o espaço: título de um dos capítulos do livro
artistas que mudam o curso de suas artes de Novarina Diante da palavra. Tradução de Ângela Leite
específicas por aliar o fazer artístico à refle- Lopes, Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
xão. Uma reflexão comprometida com a pro- 10 Novarina, Valère. Le Drame de la vie. Paris: Gallimard,
dução de sua obra e que, ao mesmo tempo, 1995: 15 e 17.
pede e transcende as fronteiras preesta- 11 Novarina, 2003, op. cit.: 35.
belecidas: entre as artes, entre arte e pensa- 12 Id., ibid.: 16.
mento. Na fronteira da pintura e do teatro 13 Id., ibid.: 38.
é um manifesto de Kantor escrito nos anos 14 Id., ibid.: 48.
60, no momento em que ele mergulhava nos 15 Id., ibid.: 57.
16 Louis de Funès aparece também num dos textos mais
happenings (os mais conhecidos são conhecidos de Novarina intitulado Para Louis de Funès,
Happenings-Cricotagem, A Carta e O editado no Brasil, junto com Carta aos atores, em tra-
Happening panorâmico do mar). Reiteran- dução de Ângela Leite Lopes, pela 7Letras em 2005.
do, nos anos 80, Novarina realizou diversas 17 Novarina, 2003, op. cit.: 58.
18 Novarina, Valère. “Busco a contradição que há nas pala-
performances, criando uma cena a partir do vras”. Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 8 de
gesto plástico de escrever e desenhar. outubro de 2007.