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Na fronteira da pintura e do teatro:


Tadeusz Kantor e Valère Novarina

Ângela Leite Lopes


O texto, cujo título remete a manifesto de Kantor,1 introduz e analisa a trajetória de
dois grandes nomes da arte contemporânea, Tadeusz Kantor e Valère Novarina, na
interface entre teatro e pintura.
Teatro, pintura, Kantor, Novarina.

Tadeusz Kantor e Valère Novarina são ar- com a profissão de fé de que o teatro deve
tistas contemporâneos que se situam na propor, ao longo dos tempos, o impacto ori-
fronteira entre a pintura e o teatro. Embora ginal do instante em que um homem se co-
estejam entre os nomes mais importantes locou pela primeira vez diante dos outros,
das artes cênicas da metade do século 20 exatamente igual a eles e, no entanto, infini-
para cá, têm também sólida carreira de ar- tamente estranho e inatingível.2
tistas plásticos, sendo suas obras expostas
com regularidade. Não é, entretanto, esse Retomando as ideias de Kleist3 e de Craig4
duplo aspecto de suas trajetórias que pre- acerca das vantagens de substituir o dança-
tendo analisar aqui, mas sim o modo como, rino ou o ator por uma supermarionete,
cada um a sua maneira, partiram das ques- Kantor repassa, nesse texto, algumas ideias
tões colocadas pelo embate entre a tradi- do romantismo e do simbolismo para con-
ção e as vanguardas do início do século pas- cluir que a vida só pode ser trabalhada, na
sado e seguiram linha em que teatro e pin- arte, pela ausência de vida. Sendo assim, ele
tura acabam confluindo em campo único de lida com o ator na mesma dinâmica que es-
reflexão. tabeleceu para suas obras plásticas, a do
objeto achado, assumindo, portanto, o lega-
Vanguardas e saturação do do dadaísmo.

Tadeusz Kantor (1915, Wielopole-1990, Em entrevista a Denis Bablet,5 Kantor relata


Cracóvia, na Polônia) foi cenógrafo, pintor que, no início dos anos 40, perdeu a confi-
e encenador. Criou o Teatro Cricot 2 em ança na pintura que reproduzia objetos e
1955 com poetas, pintores e atores, grupo pessoas, e a consequência disso foi ter co-
que manteve até sua morte a formação ori- meçado a procurar o objeto real e achá-lo.
ginal, embora integrando novos membros Não, porém, o objeto extraordinário; pelo
Valère Novarina ao longo dos anos. Seu percurso artístico contrário. Logo compreendeu que o objeto
Action de dessin, 1983, é balizado por manifestos que ele vai es- pobre, prestes a ser descartado, é o que está
performance crevendo e que acompanham seus espe- disponível para a arte: o objeto entre a eter-
Pintura do cenário de táculos, happenings e exposições. Tornou- nidade e o lixo.
Vocês que habitam o
se mundialmente reconhecido com seu O
tempo, 1989
teatro da morte, de 1975, escrito no de- Há nessa nuança entre o objeto achado e o
Fonte: Dubouclez, Olivier. Valère correr do processo de criação do espetá- ready-made todo um campo que tematiza a
Novarina. Paris: ADPF – Ministère
des Affaires Étrangères, 2005 culo A classe morta. Esse manifesto termina operação artística de Kantor. O objeto acha-

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do transporta temporalidade e até certa a figura de Veit Stoss (1447-1533), escultor
dramaticidade para sua abordagem plástica, alemão que se exilou na Polônia e lá reali-
posto que perdeu o uso que já teve algum zou, entre outras obras, o retábulo da Igreja
dia. Ter no objeto achado um modelo para de Santa Maria, de Cracóvia, antes de voltar
o ator faz dele uma peça dentro de uma para a Alemanha e ser queimado pela
composição que vai sendo arquitetada em Inquisição. Os personagens do espetáculo
cena, como um quadro. Não há intriga no misturam figuras de teatro de feira com figu-
sentido psicológico; não há enredo a ser re- ras militares.
tratado. Há jogo de tensões, transformando
a cena em campo de ação concreta. O ob- A trupe de Kantor era parte integrante de
jetivo, em todos os casos, é sempre romper sua obra, e ele gostava de comparar seu
com a ilusão, com a predominância do en- Cricot 2 à commedia dell’arte. Seus atores
tendimento da arte como reprodução do faziam sempre o mesmo papel, criado a partir
Belo ou do real. de suas próprias características. O caso mais
ilustre é o dos atores gêmeos, que sempre
Em A classe morta, a ação se constrói a par- estavam em seu próprio papel. Essa galeria
tir do dispositivo cênico, bancos de escola já de personagens, aliada à composição dos
bem gastos, que funcionam como máquina atores com os objetos-máquinas, criava es-
da memória. Os atores são velhinhos que petáculos cujo impacto visual era impressio-
carregam seus duplos, manequins represen- nante, sendo seus efeitos muitas vezes cita-
tando-os quando crianças, e que lidam com dos e retomados por artistas mundo afora.
lembranças da infância, da guerra, transitan-
do em tênue linha entre vida e morte. A É, contudo, na força de sua reflexão e de
maneira como atuam, sua máscara e seu sua proposta, rompendo de forma radical
gestual, é que revela esse transitar. Há mo- com a ilusão, que reside seu verdadeiro le-
gado artístico.
mentos no espetáculo em que intervêm tre-
chos da peça Tumor cervical, do autor po- E é esta sua maneira de estabelecer diálogo
lonês Witkiewicz, numa espécie de colagem direto com os movimentos da vanguarda do
em que Kantor vai interferindo, deixando um início do século 20, recusando, entretanto,
fluxo dramático se estabelecer para ele ra- de forma veemente o que ele chama de “van-
pidamente aparecer e quebrar toda e qual- guarda oficial das massas”:
quer ilusão.
Estou cada vez mais convencido de que
Em Wielopole, Wielopole (1980), homena- o conceito de VIDA só pode ser rein-
gem a sua cidade natal, as situações reme- troduzido em arte pela AUSENCIA DE
tem às culturas que ali conviveram pacifica- VIDA no sentido convencional (ainda
mente, a cristã e a judaica, misturadas, via Craig e os simbolistas). Esse processo
máquinas-objetos, como a máquina fotográ- de DESMATERIALIZAÇÃO instalou-se
fica-metralhadora, por exemplo, às reminis- nas minhas atividades criadoras, evitan-
cências da biografia de Kantor, como a par- do no entanto toda a panóplia ortodo-
tida de seu pai para a guerra e o casamento xa da lingüística e do conceitualismo. É
póstumo de seus pais. certo que essa escolha foi em parte in-
fluenciada pelo gigantesco engarrafa-
Em Que morram os artistas! (1985), a ação mento que engasgou essa via, de agora
se desenrola a partir de personagens cujo em diante oficial, e que constitui, infe-
desfile vai formando composição que lem- lizmente, o último pedaço da grande
bra um retábulo. Kantor quer resgatar assim estrada DADAÍSTA com seus slogans

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ARTE TOTAL, TUDO É ARTE, TODO queria justamente ensinar a língua a
MUNDO É ARTISTA, A ARTE ESTÁ vocês.
NA SUA CABEÇA etc. C – (...). Senhor Boucot, por favor afi-
Não gosto de engarrafamentos.6 nal, o que quer de mim a minha língua
aqui que me trava?
Fugindo dos engarrafamentos Boucot – Ela quer enganar você.
C – Socorro, minha língua quer me falar!
Em Paris, em 1968, Valère Novarina, então
Boucot – Falar? Ei seus loucos, vocês
com 21 anos, começa a escrever sua pri- não podem falar, vocês não sabem a
meira peça, O ateliê voador, encenada ori- língua!
ginalmente em 1974 por Jean-Pierre Sarrazac.
D – E essa que nós temos na boca, tal-
Formado em filosofia e filologia, com estudo
vez? Não é uma língua esse troço que
sobre Antonin Artaud, esse jovem autor
nós temos dentro?
percebia que a revolução que se entoava
Boucot – Não. É um pau (...)
nas ruas só seria possível se incidisse direta- F – E o senhor, o que o senhor tem ali?
mente sobre a linguagem, que é onde resi- Nenhuma língua também não?
de toda e qualquer estruturação – logo, todo
Boucot – Tenho uma sim. Ganhei de
domínio. Como, porém, sua ação é sutil, por
tanto ir à escola. Já vocês, vocês têm
ser obviamente expressão e não tema de
dentro um pau.7
luta de classes e outras formas de embate
de poder, ela permanece no âmbito do po- Seja de forma poética, como quando um dos
ético, chegando a tocar apenas os que con- empregados chega a se rebelar, embora seja
seguiram desenvolver o sentido da escuta devidamente recapturado no final.
em meio ao império das imagens em que se
transformou nossa cultura. A – Assa! Oisse! Usse! Oieça! Assaz! Iça!
Içu! A vida está mal organizada. Vamos
O ateliê voador põe em cena a relação do exigir o fim das tramóias imediatamen-
casal de patrões Boucot e Senhora Boca com te. Stop. Alto lá! Ascoltem o que eu
seus empregados, sintomaticamente desig- depeno lhes dizer, minas de bocas. Nós,
nados por A, B, C, D, E e F (três homens e trupes do Boco, decidimos nos
três mulheres). Se há inúmeras situações tí- assemblar a fim de desmontar a sua
picas da exploração capitalista – migalhas (li- tona para que vocês desapareçam e que
Tadeusz Kantor terais) de salários, impessoalidade da pro- nós aspareçamos; vamos decidir aqui,
A classe morta, 1975, dução, venda aos empregados dos objetos desde imediatamente, de nos aspra até
cena do espetáculo por eles mesmos manufaturados e até aula a última bluta contra qualquer rabo e
Fonte: Bablet, Denis (org.). Les
Voies de la création théâtrale. de mais-valia dada pelo patrão –, a peça se de fazer cessar de imediato toda con-
Paris : CNRS, 1983, vol. 11, p. 186 tece na estruturação dos diálogos e, neles, dição de louco e de lhes desembolotar
no uso da língua. Seja o rabo!... Todos os peões reunidos são
de forma explícita o bastante para sair da gaiola de bocó!...
(em alguns momen- (...) Vamos, vamos, Senhoras e Senho-
tos, a peça faz pen- res, vocês deixam de ignorar quem está
sar em Bertolt Brecht em cima e quem está embaixo?... É o
e seu teatro didáti- bocó que segura o alfabeto, isso é mui-
co): to evidente....8
Boucot – Estou feliz O ateliê voador ainda apresenta intriga com
por você me fazer personagens que refletem questões concre-
essa pergunta, eu tas do real, embora impregnada de inspira-

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ção circense e de irreverência à la Jarry. Mas, res (...) passeio ali dentro; escrevo percor-
a partir daí, sua escrita vai-se desenrolar na rendo o livro.”11 Sua reflexão, entretanto, gira
urgência de um pensamento que impede ou toda em torno destas questões: de onde vêm
rechaça a interpretação no sentido tradicio- o fato de que a carne se exprime e a
nal. Crítico feroz da ênfase que se dá aos omnidade do homem? Por isso, não impor-
signos e à teoria da comunicação no mundo ta que seus personagens sejam vivos ou
atual, Novarina vai seguir produzindo sem mortos; que sejam animais; eles falam uma
dissociar seu trabalho de escritor do de pin- língua na maioria das vezes criada pelo au-
tor. Ele passa a encenar os próprios textos e tor para tornar bem evidente que não há
a pintar os cenários, fugindo das habituais nenhuma tentativa de reproduzir o huma-
referências espaciais e abrindo o palco para no, de romancear. A aparente falta de nexo
novas dimensões de significados. Autor de de alguns de seus textos não deve ser con-
inúmeras performances, principalmente nos fundida com operações do tipo da escrita
anos 80, ele foi explorando cada vez mais automática dos surrealistas, porque há sem-
seu intenso debate com o espaço.9 Em 5 e 6 pre sólida construção que se deixa sentir,
de julho de 1983, por exemplo, na Torre por exemplo, na força de seu ritmo, o que
Saint-Nicolas, em La Rochelle, durante 48 pede jogo de cena diferente da imitação e
horas seguidas, Valère Novarina desenhou, da ilustração do que ali se diz. De certa for-
no alto da torre, instalado a uma mesa de ma, porém, a grande tradição da dramaturgia
vidro transparente, cada um dos 2.587 per- está presente, pois seus textos são feitos para
sonagens de seu texto O drama da vida. Os ser ouvidos – e Novarina gosta de repetir
atores pegavam os desenhos da mesa a que algumas vezes que, em francês, o fato de o
estava Novarina e os iam pendurando nas mesmo verbo designar ouvir e entender é
paredes de pedra dos andares da torre. uma coincidência feliz. Ele chama também a
Desde então, esses desenhos compõem uma atenção para o fato de esse ouvir estar in-
exposição intitulada 2.587 desenhos, que trinsecamente ligado ao ver, ao ser e ao dan-
continua a ser exibida, podendo ser adapta- çar. Essa imagem do ser como figura de dança
da conforme as características arquitetônicas nada mais é do que manobra para, simulta-
do local. neamente, seguir e romper com a tradição,
rever o pensamento especulativo e a
O drama da vida tem 2.587 personagens para metafísica, lembrar que não há nada de es-
que não haja nenhuma possibilidade de se tático nesse mergulho para dentro da pala-
trabalhar no campo da verossimilhança. O vra; pelo contrário, pois seus
primeiro a entrar, no palco vazio, é Adão, engendramentos estão todos ligados, como
que pergunta “De onde vem que a gente mostra em seu livro Diante da palavra.
fala? Que a carne se exprime?”. E logo sai,
para que entre uma extensa fila de persona- O título já indica aquilo que distingue sua
gens que beijam o Buraco de Ciência e saem operação: a relação intrínseca entre palavra
por sua vez para dar lugar ao Cão, que de- e espaço, constituindo-a como lugar que
clara “O homem não nasceu”.10 exige de nós determinada posição – diante
dela. A palavra passa então a ser o que se
Palavra e espacialidade vê, ou seja, cena, em clara distinção entre a
O gesto artístico de Novarina tende a ser representação daquilo que a palavra expressa
um só: trabalhar na espacialidade ao escre- e a adoção da própria palavra como jogo. A
ver, encenar, desenhar, pintar. “Trabalho rigor, Diante da palavra não se pretende obra
pelas paredes; junto o texto em grandes rolos de ou sobre teatro, mas é aí que está o sub-
que afixo verticalmente. Trabalho com co- sídio para a clara construção subjacente à

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sequência de seus textos: a da imbricada Ator esse que veio para anunciar:
construção da tradição nas teias da religião,
da filosofia, da pintura e do teatro, como A boa nova do teatro – onde a poesia
exposto a seguir. é ativa – é que o homem ainda não foi
capturado. O mundo não tem que ser
A estrutura do livro propõe, de forma bas- descrito, nem imitado, nem repetido,
tante livre, essa construção. O primeiro ca- mas deve ser de novo chamado pelas
pítulo, que lhe dá título, trata da oposição palavras. Ide e anunciai em toda parte
entre linguagem e comunicação, ressaltando que o homem ainda não foi capturado!14
desde o início sua relação com o espaço:
Quando se chega ao último capítulo, no qual
A fala avança no escuro. O espaço não Novarina trafega pela tradição religiosa, plás-
se estende mas se escuta. Pela fala, a tica e teatral, e revisita a carga originária do
matéria está aberta, crivada de palavras; Verbo, a cena já está armada e se desvenda
o real ali se desdobra. O espaço não é como Morada frágil. O ponto de partida aqui
o lugar dos corpos; ele não nos serve é o quadro de Piero della Francesca A Madona
de apoio. A linguagem o carrega agora com criança e santos ou Madona do ovo,
diante de nós e em nós, visível e ofere- no qual Novarina destrincha a operação de
cido, tenso, apresentado, aberto pelo nascimento do espaço, enfatizando a rela-
drama do tempo no qual estamos com ção entre a perspectiva e o cristianismo:
ele suspensos. O que há de mais boni-
to na linguagem é que passamos com Piero representa o nascimento do es-
ela. Tudo isso não é dito pelas ciências paço por um ponto invisível situado
comunicativas mas nós sabemos muito dentro do espectador. Ele representa
bem disso com nossas mãos na noite: a íntegra do tempo; ele o fura de um
que a linguagem é o lugar do apareci- ponto respirado que está em você. Ele
Tadeusz Kantor mento do espaço.12 abre o universo que – seu nome o in-
A classe morta, 1982, dica – tende para o 1. É isso, o ponto
quadro, coleção do artista O segundo capítulo, Opereta reversível, iden- de fuga da perspectiva: no centro do
Fonte: Bablet, Denis (org.). Les
Voies de la création théâtrale. tifica esse gênero dramático à irrepre- espaço, o espaço desaparece, o tempo
Paris : CNRS, 1993, vol. 18, p.22 sentabilidade do humano. E o terceiro, De- se devora. A cruz é esse ponto
bate com o espaço, explora a materialidade perspectivo onde o tempo se concen-
da palavra, seu aspecto tátil, pic- tra e se dispersa no espaço. Ela não é
tórico, estabelecendo elo entre absolutamente o sinal de um suplício
o trabalho do pintor e a cena: mas de um esplendor. Um 4 abre e
cresce. Quatro é o número ao qual a
A pintura é lançada, crônica, pró- palavra foi ligada: ela foi atrelada ao es-
xima do gesto do ator. Delacroix paço. Quando se fala, sempre se tem
escreve no seu diário: “Quando essa cena na cabeça.15
entro no meu atelier, entro em
cena”. O tempo também se es- Muito se sabe sobre a íntima relação entre
creve em pintura. A superfície da o uso da perspectiva no Renascimento e a
tela é inquieta, em movimento construção do palco à italiana, o palco
(...) Uma pintura movediça, apa- da ilusão, o palco da cultura ocidental.
recendo-desaparecendo, por Se a palavra cenografia surge em pintura
acessos, por crises, por danças, no Renascimento para designar o modo
uma pintura soprada e como fei- de se dispor objetos numa tela, é o
ta por um ator.13 aprofundamento do palco a partir de um

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ponto de fuga único que vai desencadear as las absolutamente fictícias, como, por exem-
mudanças espaciais que deram origem à plo, “O verbo se fez carne e veio morar en-
cena italiana, que atinge sua completude no tre nós”.17 Essa frase, primeiramente proferi-
século 19 e se transforma no lugar da cria- da em grego (Kai o logos sarx égénéto, kai
ção do absoluto efeito de ilusão de apre- eskènosén en èmin), faz com que ele traga à
ensão do real. Novarina está aproveitando tona a relação entre cena e morada para
para traçar um quadro ainda mais amplo do logo associá-la ao hebraico Shechinah, pre-
arraigamento desse espaço em nossa ma- sença divina, impregnando-a de caráter ao
neira de experimentar e conceber. É nossa mesmo tempo profundo e volátil. O recur-
profunda visão de mundo que está embuti- so ao religioso aparece como o lugar em
da ali, atrelada que está à linguagem tam- que a palavra assume plenamente seu cará-
bém. Ao discernir desse modo o surgimento ter ativo e espacial, ou seja, o religioso como
simultâneo do espaço e da linguagem, a palavra em ação, e não como dogma ou
Novarina já está apontando para a não se- ensinamento. A palavra, pela prece, é sopro,
paração entre os campos do saber e o é espaço, e o espaço é também verbo: ele
consequente fim da noção da arte como ilus- espaça, atua e se perfaz na relação com o
tração e até mesmo expressão. A arte – pin- tempo. O objetivo de Novarina é não
tura, teatro, poesia – não exprime algo que sacralizar aquilo que ele tenta obstinadamen-
lhe é externo; ela é uma das modalidades te tornar dinâmico, lúdico, ativo na cadeia
de experiência do conhecimento, que está do pensamento. Com a figura de Louis de
sempre em jogo no recôndito da linguagem. Funès, ele trafega pelas origens, pelas cultu-
O desafio que se coloca para a produção ras diversas: pelo Oriente, na parte referen-
artística é, então, o mesmo que se coloca te ao teatro Nô, e pelo judaísmo e o cristia-
para os outros domínios: conjugar todas as nismo, esteios da cultura ocidental, reme-
dimensões da criação. Voltar, parafraseando xendo em suas mútuas influências, voltando
Kantor a respeito do ator, ao impacto origi- a elas como elementos de jogo também e
nal do instante em que o homem se perce- não verdades absolutas a serem seguidas ou
beu como inelutável criador. ultrapassadas.

A dimensão adâmica Novarina procura então retomar a tradição


não para simplesmente optar entre ruptura
Tão cara a Novarina, é a dimensão direta- ou continuidade, mas para fazê-la de novo
mente ligada ao nomear. É nesse ponto que atuar como força de pensamento no senti-
a démarche do autor propõe sua atualida- do mais imprescindível de criação. Muitas
de, abolindo a dicotomia entre artista e pen- vezes comparado a Samuel Beckett, por
sador. É nesse ponto também que ele pro- exemplo, pela radicalidade de sua obra, eis
vém de Kantor, evita o engarrafamento como ele define sua operação:
provocado pela banalização das vanguardas
e desemboca em via que retoma o caminho Gosto de seus textos [de Beckett]
da eterna possibilidade e urgência do ato de quando a linguagem fica menos densa
criar, reencontrada na fala e no pensamento. e alcança uma forma mais pura, ou rara...
mas eu faço exatamente o oposto.
Novarina gosta muito de se referir ao pen- Quando escrevo, busco um processo
samento como drama, no sentido original de proliferação. Tento florir a língua
do termo, ligado a ação. Não por acaso, ele francesa (...) Quero tocar a linguagem.
faz o ator cômico francês Louis de Funès Recuperar a consciência de sua
encarnar o pensador,16 emprestando-lhe fa- materialidade. A linguagem é um fluido

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que se propaga pelo espaço, bate em Happenings e performances são momentos
paredes, volta como uma pedra ou se em que se designa a fronteira como lugar
choca contra qualquer obstáculo que para nos lembrar que o acontecimento ar-
esteja em seu caminho. Penetra um tístico em si é sempre cena. Abandonam-se
corpo e sai como uma nova forma.18 os happenings e as performances, mas o lu-
gar permanece para ser recriado quadro a
Tradição, pensamento, criação têm que ser
quadro, peça a peça.
entendidos aqui como parte de todos os
domínios comprometidos com a produção Ângela Leite Lopes é professora do Curso de Artes
de sentido, quer no campo das línguas, quer Cênicas da EBA e atua na Linha de Pesquisa Poéticas
no da ciência, no da arte. Como já dito, não Interdisciplinares do Programa de Pós-Graduação em
há predominância a priori do teatro na obra Artes Visuais, UFRJ. Doutora em Filosofia pela Universi-
dade de Paris 1, é também tradutora e desenvolve pes-
de Novarina, e sim percepção de que onde quisa sobre a relação entre espaço e interpretação.
há ato de criação há ou deve haver cena.
Notas
Assim como Kantor, Novarina fala dessa cena
como de um trespassar. Pelo fato de se es- 1 Kantor, Tadeusz. Aux frontières de la peinture et du théâtre.
tar vendo o outro lado das coisas, ao se sen- In Le Théâtre de la mort. Lausanne: L’Âge d’Homme,
tar diante do palco, ao se olhar um quadro, 1977: 125-158.
a visão estará sempre invertida, outra, ao 2 Kantor, Tadeusz. O teatro da morte. Folhetim. Tradução
de Ângela Leite Lopes. Rio de Janeiro: Teatro do Pe-
contrário. E principalmente porque entrar em queno Gesto, 1998: 17.
cena é passar para outra dimensão. O ator 3 Heinrich von Kleist (1777-1811), dramaturgo e poeta ale-
que entra em cena dá um salto, transpõe mão, autor de Sobre o teatro de manionetes, Rio de
uma barreira. Encara o complexo jogo de Janeiro: Sette Letras, 1977.
linguagem que, Novarina não cansa de pro- 4 Edward Gordon Craig (1872-1966), encenador, cenógrafo
por, faz com que falar, ouvir e olhar sejam e teórico do teatro inglês, autor de On the art of theatre.
em si irremediavelmente ação. 5 No filme Le Théâtre de Tadeusz Kantor. Paris: CNRS
Audiovisuel/Arcanal/La Sept, 1988.
A escolha de Tadeusz Kantor e Valère 6 Kantor, op. cit., 1998: 9 e 10.
Novarina aqui não foi, portanto, aleatória, 7 Novarina, Valère. O ateliê voador. Tradução de Ângela
Leite Lopes, Rio de Janeiro: 7Letras (no prelo): cena 6.
embora suas trajetórias estejam circunscri-
8 Id., ibid.: cena 10.
tas a contextos bem distintos. Ambos são
9 Debate com o espaço: título de um dos capítulos do livro
artistas que mudam o curso de suas artes de Novarina Diante da palavra. Tradução de Ângela Leite
específicas por aliar o fazer artístico à refle- Lopes, Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
xão. Uma reflexão comprometida com a pro- 10 Novarina, Valère. Le Drame de la vie. Paris: Gallimard,
dução de sua obra e que, ao mesmo tempo, 1995: 15 e 17.
pede e transcende as fronteiras preesta- 11 Novarina, 2003, op. cit.: 35.
belecidas: entre as artes, entre arte e pensa- 12 Id., ibid.: 16.
mento. Na fronteira da pintura e do teatro 13 Id., ibid.: 38.
é um manifesto de Kantor escrito nos anos 14 Id., ibid.: 48.
60, no momento em que ele mergulhava nos 15 Id., ibid.: 57.
16 Louis de Funès aparece também num dos textos mais
happenings (os mais conhecidos são conhecidos de Novarina intitulado Para Louis de Funès,
Happenings-Cricotagem, A Carta e O editado no Brasil, junto com Carta aos atores, em tra-
Happening panorâmico do mar). Reiteran- dução de Ângela Leite Lopes, pela 7Letras em 2005.
do, nos anos 80, Novarina realizou diversas 17 Novarina, 2003, op. cit.: 58.
18 Novarina, Valère. “Busco a contradição que há nas pala-
performances, criando uma cena a partir do vras”. Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 8 de
gesto plástico de escrever e desenhar. outubro de 2007.

ARTIGOS • Â N G E LA LEITE LOPES 69

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