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Um outro
olhar sobre
Portinari
Alecsandra Matias de Oliveira

Portinari – Três Momentos, de Elza Ajzenberg, São Paulo, Edusp, 2012, 168 p.

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C
ombatido por muitos Candido Portinari (Retirantes, Tiradentes e
e admirado por tan- D. Quixote), a autora reconstrói a trajetória,
tos outros, Candido as influências, o fazer e o repertório adotado
Portinari (1903-62) pelo pintor. Retirantes (série de óleos sobre
não deixa de ser um tela), Tiradentes (mural) e D. Quixote (con-
capítulo relevante na junto de desenhos) são produções realizadas
história da arte bra- entre os anos de 1940 e 1960. O texto con-
sileira. São inúmeros os estudos sobre sua tudo, busca referências à primeira formação
vida e obra. Alguns dificilmente serão supe- do artista, à experiência europeia, entre as
rados, uma vez que se apresentam comple- décadas de 1929 e 1931, e às intenções de sua
tos e aprofundam questões e temáticas que pintura durante os anos de 1930. Percebe-se,
envolvem o artista. Assim, o livro Portinari nesse contexto, a transformação acentuada
– Três Momentos é uma “delicada obra de da obra de Portinari na década de 1940, se-
arte” – bem cuidado, com projeto gráfico ex- gundo a autora, diante dos efeitos da Segun-
cepcional, diversas imagens, dados técnicos da Guerra Mundial e do impacto causado
acompanhados pelo Projeto Portinari e bilín- pela visão e pelo estudo “com uma lupa” do
gue. Com texto de Elza Ajzenberg e peque- painel Guernica, 1937. Somam-se, às influ-
nos fragmentos de poemas do próprio Por- ências de Picasso, as evocações dos pintores
tinari e de Cecília Meireles (para os trechos pré-renascentistas Giotto, Piero Della Fran-
que tratam sobre a obra Tiradentes, 1949), cesca e Matias Grünewald.
o livro passa em revista os sentimentos, as Ao observar os acontecimentos provoca-
lutas, os sonhos e a postura social do artista. dos pela Segunda Guerra, na série Retirantes,
Elza Ajzenberg desvela um Portinari Portinari espelha nos famintos e nos “des-
preocupado com os temas e com a “gente pejados” de seu país privações similares: o
de sua terra”. De sua infância em Brodósqui drama humano vivido por famílias que saem
(interior de São Paulo), o artista traz para sua de sua terra em busca de condições de sobre-
poética: os cenários da infância, que evocam vivência e que, por muitas vezes, encontram
a doce memória das brincadeiras de garoto; a morte pelo caminho. É o mesmo cenário
o mundo campesino, no qual emerge o traba- descrito por Graciliano Ramos em Vidas Se-
lhador da terra; e a exclusão, estampada nos cas, 1938, ou por João Cabral de Melo Neto
corpos de homens e mulheres acompanhados em Morte e Vida Severina, 1955; contudo,
por suas crianças famintas e doentes. A nar- em Portinari, os personagens parecem ser
rativa de Portinari – Três Momentos leva o citações bíblicas, e neles a dor traduz-se em
leitor para esse universo íntimo do pintor, no cores e traços expressionistas. Num primei- ALECSANDRA
qual a arte serve ao lirismo, à denúncia e à ro instante, os retirantes ainda apresentam MATIAS DE
OLIVEIRA é
transformação social. corpos semelhantes aos dos trabalhadores de doutora em História
da Arte e autora de
A partir de uma análise sensível dedica- O Café, 1935 – fortes, escultóricos, mãos e Schenberg – Crítica
da a três momentos do percurso estético de pés marcados; no entanto, com o passar da e Criação (Edusp).

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Menino Morto, década de 1940, fome e morte são visíveis primeiro grande mural para o Monumento
1944, óleo sobre nessas figuras. Em Retirantes, 1944, o retrato Rodoviário na Estrada Rio-São Paulo, em
tela, Museu de da família que está à beira da morte por des- 1936, o artista parte para a série de murais
Arte de São Paulo.
valia – a mãe envelhecida; o avô-profeta com feitos a têmpera da Biblioteca do Congresso
À direita,
Retirantes, 1936, seu cajado; o pai que carrega em uma trouxa de Washington (Descobrimento, Desbra-
óleo sobre tela, os poucos pertences da família; as crianças vamento da Mata, Catequese dos Índios e
coleção particular doentes e maltrapilhas (note-se o detalhe do Garimpo do Ouro), 1941, passando pela Via
menino com camisa picassiana) – provoca Crucis, em 1944, da Capela da Pampulha,
impacto. As evocações à pietá em Menino em Belo Horizonte. Essas se tornaram expe-
Morto, 1944, e as mulheres carpideiras que riências relevantes para o desenvolvimento
choram “rios de lágrimas” completam-se a da pintura mural de Portinari, A Primeira
partir da dramaticidade inspirada pelo mu- Missa no Brasil, 1948 (obra realizada em
ralismo mexicano presente em Enterro na Montevidéu), porém, marca o domínio do
Rede, 1944. cromatismo vibrante e não mais o sombrio
O painel Tiradentes, 1949, é o resultado que imperava na série Retirantes, a geome-
de experimentações a partir da pintura mu- trização de zonas coloridas e a eleição das
ral. As primeiras obras na capela da nona cenas históricas como tema central.
Pelegrina já mostram a maestria na técnica Em Tiradentes, Portinari representa os
do afresco. Mais tarde, a influência do mura- episódios e os principais protagonistas da
lismo mexicano e o desejo por defender uma Inconfidência Mineira. Encomendado por
Tiradentes, 1949,
pintura social – como instrumento para uma Francisco Inácio Peixoto, em 1948, o painel
têmpera sobre
tela, Memorial educação plástica e coletiva – levam Portina- destina-se originalmente para o Colégio Ca-
da América Latina ri para uma série de trabalhos nos quais os taguases – um projeto de Oscar Niemeyer –
– São Paulo temas históricos tomam espaço central. Do é posteriormente transferido para o Palácio

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Café, 1935,
óleo sobre tela,
Museu Nacional
de Belas Artes –
Rio de Janeiro.
Ao lado, Enterro
na Rede, 1944,
óleo sobre tela,
Museu de Arte
de São Paulo

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Cavalo de Pau
(Série Dom
Quixote), 1956,
lápis de cor sobre
cartão, Museus
Castro Maya,
Rio de Janeiro

dos Bandeirantes e atualmente está no Salão de do artista e também porque “representa


de Atos da Fundação Memorial da América bem o ‘sonho’ numa procura de ‘voo’ ou de
Latina. A escolha do tema é do próprio Porti- liberdade pela qual passa Portinari no fim da
nari, que se dedica aos estudos e documentos vida”. No desenho, D. Quixote e Sancho Pan-
sobre os fatos que se sucederam ao martírio ça – ambos com os olhos vendados – voam
de Joaquim José da Silva Xavier. Adota como em um cavalinho (geometrizado como uma
fonte importante de pesquisa o Romanceiro dobradura e de cor branca), sentindo o Sol,
da Inconfidência, de Cecília Meireles, e tem a Lua e a Terra azul (aqui, chama a atenção
como desafio implícito a tela Tiradentes Es- o fato de a terra ser azul, em 1956, para Por-
quartejado, 1893, de Pedro Américo. Segun- tinari – cinco anos antes de Gagarin). Porti-
do Elza Ajzenberg, “o pintor está distante da nari expõe a dicotomia entre o real e o ideal,
descrição fiel ‘quase científica’ do episódio a “dúvida sobre a essência e a realidade”, o
[…], faz uma descrição livre e simbólica, sem ser entre o sublime e o grotesco. O drama
deixar de transmitir uma mensagem verda- quixotesco torna-se universal.
deira”. Nesse ponto, a autora realiza a leitura Em síntese, na revisão do modernismo de
das cinco cenas que compõem a tela. Como Portinari, o leitor perceberá que ele adere às
um guia dos sentidos, Elza Ajzenberg nos soluções cubistas e expressionistas – Guer-
revela a obra em seu sentido pleno com todas nica é seu grande modelo –, porém, suas
as minúcias colocadas lá por Portinari. adesões não deixam de se aproximar dos
A série D. Quixote, 1956, de certa forma, pintores renascentistas Giotto, Piero della
é uma obra de maturidade. A autora adverte: Francesca e Matias Grünewald. Na trajetó-
“ao final de sua trajetória, Portinari apresenta ria de Portinari, o leitor notará que o humano
o sonho não como uma evasão da realidade, sempre lhe foi caro: sua pintura social sai das
mas como uma maneira de sair da dicotomia margens da denúncia com os Retirantes, pas-
entre o real e o ideal”. Já com sintomas de sa pela tentativa de conscientização histórica,
intoxicação pelas tintas, empregando lápis impregnada pelo mural de Tiradentes, para
de cor, o artista realiza a série como ilus- recair no sonho e no lirismo da série D. Qui-
trações para D. Quixote, a convite da edito- xote. Após a imersão nesses três momentos
ra José Olympio. Para análise mais detida, de Candido Portinari, o leitor não verá suas
Elza Ajzenberg escolhe o desenho Cavalo obras com o mesmo o olhar – tampouco a
de Pau para mostrar a técnica, a criativida- arte moderna brasileira.

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