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In "Écrits sur le Théâtre", Tome I, La Cité - L'Age d'Homme, tradução

de Beatrice Picon-Vallin, Lausanne, pág. 95-104.


Tradução de Roberto Mallet.

Teatro naturalista e teatro de estados de alma

Vsevolod Meyerhold

O Teatro de Arte de Moscou tem duas faces, sendo ao mesmo tempo um teatro
naturalista (1) e um teatro de estados de alma. O naturalismo do Teatro de Arte é um
naturalismo que vem dos Meininger. Seu princípio fundamental é a reprodução exata
da natureza.

Tanto quanto possível, tudo em cena deve ser verdadeiro: tetos, cornijas, molduras,
papéis de parede, portas com cortinados, respiros, etc...

Vemos uma cascata em cena, e a chuva que cai é feita de água verdadeira; muitos
podem lembrar-se ainda de uma pequena capela de ícones, feita de madeira verdadeira,
e uma casa coberta com um fino folheado de madeira. As janelas duplas têm seus
intervalos guarnecidos de algodão, e os vitrais estão ligeiramente cobertos de geada.
Todas as partes da cena testemunham um idêntico cuidado de precisão e de detalhe.
Chaminés, mesas, estantes, estão cobertas de uma multidão de pequenos objetos que só
são visíveis de binóculo, e que um espectador curioso e perseverante não teria tempo de
recensear durante um único ato. O trovão assusta o público, uma lua cheia desliza no
céu em um fio de ferro. Vemos pela janela um verdadeiro navio costear um fiorde. A
construção sobre a cena não tem apenas várias peças, mas também vários andares, com
escadas verdadeiras e portas de carvalho. A cena desloca-se e gira. Luzes da
balaustrada. Muitas grades. Uma tela que representa o céu está suspensa, em
semicírculo. Em uma peça em que deve aparecer uma corte no campo, o palco é
coberto de imundícies em papel machê. Enfim, o resultado é aquele que Ian Styka (2)
buscava em seus panoramas: o artificial mistura-se ao real. Como em Ian Styka, no
teatro naturalista o cenógrafo trabalha em estreita colaboração com o marceneiro, o
carpinteiro, o acessorista e o modelador.

Ao colocar em cena peças históricas, o teatro naturalista impõe-se a tarefa de


transformar a cena em uma exposição de verdadeiros objetos de museu ou, na falta
destes, de cópias feitas a partir de desenhos da época ou de fotografias feitas em
museus. Além disso, o encenador e o cenógrafo esforçam-se em fixar com a maior
precisão possível o ano, o mês e o dia em que se desenrola a ação. A seus olhos, não
basta que a ação aconteça, por exemplo, no "século das perucas empoadas". Um
arbusto bizarro, fontes de contos de fadas, pequenos caminhos confusos e tortuosos,
alamedas de rosas, castanheiros podados e a murta, as crinolinas, a fantasia dos
penteados, nada disso poderia seduzir os encenadores naturalistas. Eles precisam
determinar exatamente que tipos de mangas usava-se na época de Luís XV e quais as
diferenças entre os penteados usados pelas damas dessa época e as da época de Luís
XVI. Eles não tomam por modelo o procedimento de K. A. Somov, a estilização de
uma época, mas esforçam-se em descobrir uma revista de moda do ano, do mês, do dia
em que o encenador decidiu que desenrola-se a ação.
Assim, o teatro naturalista criou o procedimento de cópia do estilo histórico. Um tal
procedimento carrega naturalmente a impossibilidade de perceber, e, por conseguinte,
de realizar a arquitetura rítmica de uma peça como Júlio César (3) através da luta
plástica entre duas forças diferentes. E nenhum dos diretores tinha consciência de que
um caleidoscópio de cenas "da vida" e uma reprodução brilhante de tipos do povo dessa
época não bastaria, em nenhum caso, para dar a síntese do "cesarismo".

A maquiagem dos atores é sempre muito característica. Todos são rostos vivos, tais
como os vemos na vida. Uma cópia idêntica. Visivelmente o teatro naturalista
considera o rosto como o intérprete essencial das intenções do ator, e assim abandona
todos os outros meios de expressão. O teatro naturalista não conhece os encantos da
plástica, não obriga seus atores a exercitarem seus corpos e, quando abre uma escola,
não compreende que a cultura física deve ser um objeto fundamental de estudo, caso se
pense em montar Antígona ou Júlio César, peças que, por sua música, pertencem a um
outro teatro.

Lembrar-se-á sempre da perfeição da maquiagem, mas jamais de atitudes ou


movimentos rítmicos. O autor da encenação de Antígona parece ter tido o desejo
inconsciente de agrupar as personagens de acordo com frescos ou desenhos de vasos;
mas limitou-se a fotografar o que vira nas ruínas - não soube nem sintetizar nem
estilizar. Vemos em cena uma série de grupos que são cópias e, feito cumes separados
por vales em uma seqüência de montanhas, há entre eles algo que equivale a abismos,
ou seja, os "gestos da vida" e os movimentos dos corpos estão em uma desarmonia
brutal com o ritmo interior das cópias reproduzidas.

O teatro naturalista criou atores extremamente aptos à metamorfose. Entretanto, não


são os objetivos da plástica que lhes servem como meio para essa metamorfose, mas a
maquiagem, e a capacidade de submeter suas línguas aos diversos acentos, aos diversos
dialetos, e de sujeitar suas vozes à onomatopéia. Fez os atores perderem todo o pudor,
em vez de desenvolver neles um sentido estético ao qual teria repugnado essa
reprodução de fatos grosseiros e disformes. Desenvolve-se no ator uma capacidade
própria ao fotógrafo amador, a de observar os detalhes do cotidiano.

De acordo com a expressão de Gogol, não há em Khlestakov "nada que seja exprimido
com nitidez", e entretanto a personalidade de Khlestakov é muito clara. Na
interpretação das personagens, o aspecto da nitidez dos contornos não é absolutamente
necessário à sua clareza.

"Os esboços dos grande mestres freqüentemente impressionam mais que seus quadros
acabados.

"As figuras de cera, embora a imitação atinja nelas seu mais alto grau, não produzem
uma impressão estética. Não devem ser consideradas obras de arte, uma vez que não
propõem nada à imaginação do espectador." (4)

O teatro naturalista ensina ao ator uma expressão resolutamente limpa, acabada,


precisa; jamais permite um jogo alusivo, uma forma de representação que
conscientemente não vá até o seu limite. Eis porque os exageros são tão freqüentes na
representação do teatro naturalista que ignore absolutamente o jogo alusivo. Alguns
atores entretanto, mesmo no período do entusiasmo naturalista, em certos momentos
utilizaram esse jogo em cena: em Casa de Bonecas (5), a tarantela interpretada por V. F.
Komissarjevskaia exprime apenas uma atitude. O movimento das pernas limita-se a um
ritmo nervoso. Se olharmos apenas para elas, trata-se antes de uma fuga que de uma
dança.

Uma atriz do teatro naturalista, ao contrário, primeiro teria aulas de dança, e depois
executaria conscientemente todos os passos, iria até o limite de sua representação,
entregando-se inteiramente apenas ao processo da dança. Mas que impressão essa
representação causaria no espectador?

No teatro, o espectador é capaz de acrescentar com sua imaginação o que permanece


alusivo. É precisamente esse Mistério e o desejo de vivenciá-lo que atrai tantas pessoas
ao teatro.

"Os poemas, esculturas ou outras obras de arte contêm tesouros de sabedoria muito
profunda, pois é sempre a natureza das coisas que é exprimida. O artista limita-se a
decifrar e traduzir suas sentenças em uma língua clara e compreensível. Mas é evidente
que todos aqueles que lêem ou olham uma obra de arte devem participar por seus
próprios meios na descoberta dessa sabedoria. Por conseguinte, cada um a
compreenderá de acordo com suas capacidades e com sua cultura, assim como o
marinheiro só pode mergulhar sua sonda na profundidade correspondente ao
comprimento de sua linha." (6)

E sem nenhuma dúvida o espectador de teatro tem, ainda que inconscientemente, sede
desse trabalho da imaginação, que às vezes transforma-se nele em criação. Sem isso,
porque haveria, por exemplo, exposições de pintura?

Evidentemente, o teatro naturalista nega ao espectador a capacidade de completar o


desenho e de sonhar, como pode fazer quando escuta música.

E entretanto o espectador é perfeitamente capaz disso. Na peça de Iartsev Junto ao


Mosteiro (7), no primeiro ato, que se desenrola na sala de hóspedes, ouve-se o som
tranqüilo do sino das vésperas. O cenário não tem janelas, mas, pelo som que provém
do campanário do mosteiro, o espectador imagina o pátio, coberto de montes de neve
azulada, os abetos, como em um quadro de Nesterov, os pequenos caminhos
percorridos de uma cela a outra, as cúpulas de ouro da igreja; um espectador verá esse
quadro, outro imaginará algo diverso, e um terceiro uma outra coisa ainda. O Mistério
possui os espectadores e os lança no mundo dos sonhos. No segundo ato, o encenador
acrescenta a janela e mostra ao espectador o pátio do mosteiro. Os abetos não estão lá,
nem os montes de neve, nem as cores das cúpulas. E o espectador não está apenas
frustrado, mas também irritado: esvaneceu-se o Mistério e seus sonhos foram
profanados.

O teatro naturalista mostrou-se bastante perseverante em sua vontade de eliminar da


cena a força do Mistério. Assim, no primeiro ato da primeira versão cênica de A
Gaivota, não se podia ver para onde iam as personagens que deixavam o palco. Depois
de atravessar rapidamente uma pequena ponte, elas desapareciam na mancha negra de
um bosque, em algum lugar (nessa época o cenógrafo do teatro ainda trabalhava sem a
colaboração do modelador). Na remontagem de A Gaivota (8), ao contrário, todos os
lados do palco estavam descobertos: construiu-se um pequeno quiosque com uma
cúpula verdadeira e colunas verdadeiras, e havia um barranco em cena; podia-se ver
distintamente as personagens descendo por ele. Na primeira versão de A Gaivota, no
terceiro ato, havia uma janela lateral, e não era possível ver a paisagem. Quando as
personagens entravam na antecâmara com seus cachecóis, secando seus chapéus, seus
capotes e suas mantas, imaginava-se o outono com sua chuvinha fina, as poças lá fora e
as tábuas que servem para ultrapassá-las, com os pequenos tufos que formam na neve.
Mas na remontagem da peça, sobre um palco tecnicamente aperfeiçoado, foram abertas
janelas de frente para os espectadores. Via-se a paisagem. A imaginação então só
podia calar-se, e, digam o que disserem as personagens sobre a paisagem, não
acreditamos nelas; ela não pode assemelhar-se à sua descrição: vemos que é pintada. E
no final do terceiro ato, na primeira versão, a partida da tróica puxada por cavalos com
guizos acontecia fora de cena e desenhava-se assim de maneira muito mais viva na
imaginação do espectador. Na segunda versão, porém, uma vez que é mostrada a
varanda de onde partem os viajantes, o espectador também quer ver os cavalos com seus
guizos.

"Uma obra de arte só exerce influência por intermédio da imaginação. Por isso ela
deve estimular continuamente a imaginação" (9), estimular, precisamente, e "não deixá-
la inativa", no esforço de tudo mostrar. Estimular a imaginação é "a condição
necessária da ação estética e também a lei fundamental das Belas Artes. Segue-se que a
obra de arte não deve oferecer tudo aos nossos sentimentos, mas apenas o bastante para
colocar a imaginação no bom caminho, deixando para esta a última palavra." (10)

"Muitas coisas podem permanecer alusivas, o espectador mesmo as completará; e


acontece que de certa forma a força da ilusão se torna mais forte. Dizer demais, porém,
é como afastar com um cotovelaço uma estátua feita de pequenos fragmentos,
espatifando-a, ou como retirar a lâmpada de uma lanterna mágica." (11)

Voltaire escreveu em algum lugar: "o segredo de ser chato é dizer tudo".

Quando se deixar de adormecer a imaginação do espectador, ela se aguçará, e a arte


tornar-se-á mais requintada. Por que o drama da Idade Média podia dispensar qualquer
construção cênica? Graças à viva imaginação dos espectadores.

O teatro naturalista não nega apenas a capacidade de sonhar do espectador, mas


também a de compreender os diálogos inteligentes que se desenrolam em cena. Daí a
análise minuciosa de todos os diálogos das peças de Ibsen, que transforma as obras do
autor norueguês em algo de tedioso, arrastado e doutrinário.

É precisamente na encenação das peças de Ibsen que o método do encenador


naturalista revela-se de forma particularmente clara.

Uma obra dramática é feita de uma série de cenas. E cada uma dessa partes distintas é
analisada em detalhe. Essa análise detalhada é aprofundada pelo encenador, que decupa
o drama em minúsculas cenas. Depois, todas essas partes minuciosamente analisadas
são reunidas para fazer delas um todo.

Essa operação que reúne as partes para fazer delas um todo pertence à arte da
encenação, mas quando eu falo do trabalho analítico do encenador naturalista, não
penso no trabalho que funde em um único conjunto as criações do poeta, do ator, do
músico, do cenógrafo e do próprio encenador.

O célebre crítico do século XVIII, Pope (12), em seu poema didático Ensaio sobre a
crítica (1711), enumera as causas que impedem o crítico de chegar a julgamentos
precisos. Ele assinala, entre outras, o hábito de prestar excessiva atenção ao particular,
enquanto que o primeiro objetivo do crítico deveria ser o de colocar-se no ponto de vista
do próprio autor, a fim de, com um só olhar, abarcar a obra em sua totalidade.

Pode-se dizer o mesmo do encenador.

Pois o encenador naturalista, ao aprofundar sua análise decompondo a obra, deixa de


ver o conjunto. Apaixonado por um trabalho de filigrana, pela realização de algumas
cenas que oferecem um material fecundo à sua imaginação criadora, que são uma mina
de "traços característicos", ele acaba por violar o equilíbrio, a harmonia do conjunto.

No teatro, o tempo (13) é muito precioso. Se uma cena que, na imaginação do autor,
deve ser muito rápida, dura mais tempo do que deveria, ela pesa como um fardo sobre a
cena seguinte, que é capital para o autor. E o espectador, cujo olhar permaneceu sobre
algo que deveria ser rapidamente esquecido, está fatigado quando vem a cena
importante. Assim, o encenador a enfatizou excessivamente. Na interpretação que o
encenador do Teatro de Arte deu ao terceiro ato de O Cerejal (14), pode-se observar
uma semelhante violação da harmonia do conjunto. Tchekhov deu um leitmotiv a esse
ato: o pressentimento que tem Ranevskaia da tempestade que ameaça (o cerejal). Todos
que a rodeiam levam uma vida absurda: satisfeitos, dançam ao som estridente e
monótono da orquestra judia e, como em um turbilhão de pesadelo, giram em uma
tediosa dança moderna, sem paixão, sem graça, sem alegria e mesmo sem prazer; eles
não sabem que a terra em que dançam está desmoronando sob seus pés. Somente
Ranevskaia pressente a Desgraça, a prevê; ela enlouquece e chega a paralisar por um
minuto essa roda adormecida, essa dança de pesadelo de marionetes em sua barraca de
feira. Em um lamento, incita os homens a cometer um crime, contanto que deixem de
ser esses "pequenos seres empertigados", uma vez que, através do crime, pode-se
ascender à santidade, enquanto na mediocridade, ao contrário, não se vai a parte
alguma, não se chega a nada. Eis portanto como surge a harmonia do ato: de um lado os
lamentos de Ranevskaia e seu pressentimento da Desgraça iminente (o princípio fatal do
novo drama místico de Tchekhov), e de outro a barraca de feira com os marionetes (não
é por acaso que Tchekhov faz Carlota dançar entre os pequenos burgueses vestidos com
o figurino favorito dos teatros de marionete - fraque negro e calças com losangos). Se
transpusermos isso em linguagem musical, teremos um dos momentos da sinfonia. Ela
compreende uma lânguida melodia fundamental - com variantes tonalidade pianissimo e
explosões forte (os sofrimentos de Ranevskaia) - e um fundo, o acompanhamento
dissonante, o rangido monótono da orquestra provincial que marca o ritmo da dança dos
cadáveres vivos (os pequeno-burgueses). Esta é a harmonia musical do ato. Assim, a
cena da prestidigitação é apenas um grito entre outros dessa estúpida dança, e sua
dissonância manifesta-se brutalmente. Isso faz com que ela deva estar fundida nas
cenas de dança, brilhar por um minuto e de novo desaparecer, tornando a perder-se por
entre as danças, que podem continuar a soar em acompanhamentos estúpidos, desde que
constituam apenas um fundo. (15)
Mas o encenador do Teatro de Arte mostrou como se pode destruir a harmonia desse
ato. Ele fez da cena de prestidigitação uma cena inteira, com todos os seus detalhes e
todos os seus truques, longa e complicada. Concentrando nela sua atenção, o espectador
perde de vista o leitmotiv do ato. E se no final do ato as melodias de fundo
permanecem na memória, o leitmotiv, enterrado pela encenação, extinguiu-se.

Em O Cerejal, como nos dramas de Maeterlinck, há um herói que não está em cena,
mas cuja presença sentimos cada vez que cai o pano. Mas quando o pano que cai sobre
O Cerejal é o do Teatro de Arte de Moscou, a presença desse herói não se faz sentir.
Não permanece em nossa memória nada além de tipos. Aos olhos de Tchekhov, as
personagens de O Cerejal são mais um meio do que um fim. Mas no Teatro de Arte as
personagens tornam-se o essencial, e é assim que não se revela nada de todo o aspecto
lírico-místico da peça.

Nas peças de Tchekhov, o particular desvia o encenador da imagem de conjunto, pois


os personagens, esboçados de maneira impressionista, constituem um material aberto,
que pode ser aproveitado para levar o traçado até seu acabamento em figuras brilhantes
(tipos). Mas no caso de Ibsen, no dizer do encenador naturalista, é necessário explicá-lo
ao público, pois o dramaturgo não lhe é suficientemente compreensível.

Em primeiro lugar, a encenação da dramaturgia ibseniana tenta a seguinte experiência:


tornar vivos os diálogos "tediosos" movimentando-os - as personagens comem, limpam
a sala, fazem as malas, embrulham sanduíches, etc... Em Hedda Gabler (16), durante a
cena entre Tesman e a tia Julie, era servido o desjejum. Recordo muito bem da
elegância com que o intérprete do papel de Tesman comia, mas infelizmente isso me
impediu de acompanhar toda a exposição da peça.

Nas peças de Ibsen, além do desenho preciso de "tipos" do universo norueguês, o


encenador empenha-se em sublinhar todos os diálogos que acha muito complicados. E
se esquece que a essência de um drama de Ibsen, como As Colunas da Sociedade (17),
acaba completamente sufocada por um trabalho analítico excessivo nas cenas de
transição. Quanto ao espectador que leu a peça e a conhece bem, ele vê no teatro uma
outra peça, que não compreende, por que ela não corresponde à que ele leu. O
encenador colocou em primeiro plano muitas cenas secundárias, e fez delas o essencial.
Mas a essência da peça não se reduz à soma das essências das cenas secundárias.
Mesmo sem ser suficientemente salientado, um único momento fundamental em um ato
é decisivo sobre o espírito do público, mesmo que todo o resto tenha deslizado à sua
frente como em um nevoeiro.

A ambição de mostrar tudo, custe o que custar, o medo do mistério, das meias-
palavras, fez do teatro uma simples ilustração do texto do autor.

"Novamente ouço o uivo de um cão", diz uma personagem. E fatalmente o uivo do


cão é reproduzido. O espectador sabe da partida não somente pelo ruído dos guizos que
se distanciam, mas também pelo barulho dos cascos dos cavalos sobre uma ponte de
madeira que atravessa o riacho. Ouve-se o ruído da chuva sobre um teto de ferro.
Ouve-se pássaros, rãs, grilos.

Eis, a esse respeito, uma conversa que A. P. Tchekhov teve com os atores (18). Ele
assiste pela segunda vez aos ensaios de A Gaivota (11 de setembro de 1898) no Teatro
de Arte de Moscou, e um dos atores lhe conta que nessa peça, fora de cena, rãs
coaxarão, cigarras cantarão e cachorros latirão.

- Por que tudo isso? - pergunta Anton Pavlovitch com um ar descontente.

- Isso a torna real - responde o ator.

- Isso a torna real - repete A. P. com um sorriso irônico. E acrescenta, depois de uma
pequena pausa: - A cena pertence à arte. Kramskoi (19) representou rostos
magnificamente, em sua pintura de costumes. Que aconteceria se, em um desses rostos,
retirássemos o nariz pintado para substituí-lo por um verdadeiro? O nariz seria real,
mas o quadro estaria destruído.

Um dos atores conta com muito orgulho que, no final do terceiro ato de A Gaivota, o
encenador quer colocar sobre o palco toda a criadagem, notadamente uma mulher com o
filho chorando.

Anton Pavlovitch, então:

- Não é preciso. É como se, no momento em que você toca uma passagem pianissimo,
caísse a tampa do piano.

- Na vida, freqüentemente acontece que, em um pianissimo, irrompa um forte


totalmente inesperado - tenta a defesa um dos atores do grupo.

- Sim, mas a cena - diz A. P. - exige uma certa convenção. Você não tem a quarta
parede. Além do mais, a cena pertence à arte, a cena reflete a quintessência da vida, e
não se deve colocar nela nada de supérfluo.

É necessário precisar a que ponto, nessas observações, o próprio A. P. Tchekhov deixa


transparecer sua condenação do teatro naturalista? Esse teatro procurou
infatigavelmente a quarta parede, e isso o conduziu a toda uma série de absurdos.

Esse teatro tornou-se tributário de seus ateliês: desejou que tudo em cena seja "como
na vida", e isso fez com que ele se transformasse em uma vitrina de objetos de museu.

Na fé que dedicavam às palavras de Stanislavski - o céu teatral pode uma vez ou


outra parecer verdadeiro ao público -, os diretores de teatro passaram a ter como
principal e dolorosa preocupação elevar o máximo possível o teto da cena.

E ninguém percebe que em vez de fazer uma modificação tão custosa dos palcos,
melhor seria romper com o princípio de base do teatro naturalista. Foi somente esse
princípio, e apenas ele, que levou o teatro a uma série de absurdos.

É difícil acreditar que é o vento, e não uma mão nos bastidores, que balança a grinalda
no primeiro quadro de Júlio César, uma vez que os mantos das personagens
permanecem imóveis.
No segundo ato de O Cerejal, as personagens saem por barrancos "verdadeiros",
atravessam pontes "verdadeiras", encontram-se junto a uma capela "verdadeira", mas ao
mesmo tempo caem do urdimento dois grandes pedaços de tela pintados de azul,
ornados de véus de tule, que de maneira nenhuma poderiam assemelhar-se a um céu,
nem a nuvens. Está certo que as colinas no campo de batalha (em Júlio César) sejam
colocadas de tal maneira que pareçam diminuir progressivamente em direção ao
horizonte; mas por que então as personagens que se distanciam na mesma direção não
diminuem também?

"Tal como é usualmente admitida, a cena coloca perante o espectador uma paisagem
em profundidade sem no entanto ser capaz de ajustar o corpo das personagens a esse
fundos distantes. Mas isso não impede que uma tal cena pretenda reproduzir fielmente
a natureza! O ator que se distancia da boca de cena e percorre dez ou mesmo vinte
metros parece sempre do mesmo tamanho, e é visto com a mesma precisão com que o
víamos no proscênio. E entretanto, de acordo com as leis da perspectiva aplicadas pela
pintura cenográfica, seria preciso fazer o ator recuar o mais longe possível, e, caso se
queira que ele apareça verdadeiramente proporcionado às árvores, às casas, às
montanhas que o rodeiam, ele deveria ser mostrado bem menor, às vezes como uma
silhueta, às vezes reduzido a um simples ponto." (20)

Uma árvore verdadeira parece grosseira e artificial ao lado de uma árvore pintada, pois
suas três dimensões introduzem uma desarmonia junto à pintura, que só possui duas.

Desses absurdos a que levou o teatro naturalista ao tomar por fundamento o princípio
da reprodução exata da natureza, poderíamos dar ainda muitos exemplos.

Conhecer o aspecto racional de um objeto, fotografar, ilustrar o texto de uma obra


dramática com a pintura cenográfica, copiar o estilo histórico, tudo isso tornou-se o
objetivo fundamental desse gênero de teatro.

Se o naturalismo levou o teatro russo a uma complicação da técnica, o teatro de


Tchekhov, a outra face do Teatro de Arte, revelou o poder dos estados de alma sobre a
cena, e criou algo sem o que o teatro dos Meininger já teria desaparecido há muito
tempo. Mas, paralelamente, o teatro naturalista não soube, no interesse de seu
desenvolvimento futuro, tirar vantagem desse novo tom que a música tcheckoviana lhe
trouxe. O teatro de estados de alma foi sugerido pela arte de A. P. Tchekhov. Quando
montou A Gaivota, o teatro Alexandrinski não compreendeu esse estado de alma que o
autor sugeria (21). E seu segredo não estava nem nos gritos dos grilos, nem nos latidos
dos cães, nem nas portas verdadeiras. Quando A Gaivota foi montada pelo Teatro de
Arte no local do Ermitage (22), a maquinaria não estava ainda muito aperfeiçoada, e a
técnica ainda não havia estendido seus tentáculos por todos os recantos do palco.

O segredo dos estados de alma tchekhovianos reside no ritmo de sua linguagem. E


esse ritmo foi compreendido pelos atores do Teatro de Arte durante os ensaios da
primeira encenação tchekhoviana. E ele foi compreendido graças ao amor que ele
dedicavam ao autor de A Gaivota.
Se o Teatro de Arte não tivesse escutado o ritmo das obras tchekhovianas, se não
tivesse sabido recriar esse ritmo em cena, jamais teria adquirido essa segunda face que
lhe deu a reputação de teatro de estados de alma; e essa era a sua própria face, e não
mais uma máscara emprestada aos Meininger.

Estou profundamente convencido de que essa circunstância, que permitiu ao Teatro de


Arte abrigar sob o mesmo teto o teatro naturalista e o teatro de estados de alma, foi o
próprio Tchekhov que contribuiu para criá-la, precisamente porque ele assistia aos
ensaios de suas peças e, através do encanto de sua personalidade e das freqüentes
conversações que tinha privadamente com os atores, influenciou seus gostos e suas
atitudes em relação aos problemas estéticos.

O teatro deve essa nova face a um grupo bem preciso de atores, que aliás eram
chamados de "atores tchekhovianos" (23). Era esse grupo, intérprete quase invariável
de todas as peças de Tchekhov, que detinha a chave de sua interpretação. E devemos
considerar esses atores como os criadores do ritmo tchekhoviano sobre a cena. Cada
vez que recordo da participação ativa dos atores do Teatro de Arte na criação das
personagens e dos estados de alma de A Gaivota, compreendo como pude começar a
crer profundamente no ator enquanto agente fundamental da cena. Nem a encenação de
detalhes, nem os grilos, nem o barulho dos cascos de cavalo sobre a ponte, nada disso
cria o estado de alma; somente a musicalidade excepcional dos intérpretes que
compreenderam o ritmo da poesia tchekhoviana e que souberam envolver suas criações
com um halo lunar.

A harmonia não foi destruída nas duas primeiras encenações (A Gaivota e Tio Vânia
(24)), já que a arte dos atores permaneceu totalmente livre. Depois, o encenador
naturalista passa a fazer do conjunto uma essência, e acaba perdendo a chave da
interpretação de Tchekhov.

A arte de cada um dos atores tornou-se passiva, pois o conjunto tornou-se a essência; o
encenador, reservando-se o papel de maestro, influiu fortemente sobre o destino do
novo tom e, em lugar de aprofundá-lo, em lugar de penetrar na essência do lirismo, o
encenador naturalista pretendeu criar o estado de alma pelo refinamento de
procedimentos formais tais como a penumbra, ruídos, acessórios, caracteres.

Mas, depois de ter compreendido o ritmo do discurso, o encenador logo perdeu as


chaves da sinfonia (terceiro ato de O Cerejal), porque não notou que Tchekhov tinha
passado de um realismo refinado a um lirismo aprofundado e à nuança mística.

Munido da chave de interpretação das peças de Tchekhov, o teatro vê nela um modelo,


que se põe a aplicar a outros autores. Interpreta Ibsen e Maeterlinck à Tchekhov.

Já vimos de que maneira esse teatro tratou Ibsen. Quanto a Maeterlinck, não foi
abordado através da música de Tchekhov, mas sempre com a mesma técnica de
racionalização. As personagens de Os Cegos eram divididas em caracteres, e, n'A
Intrusa (25), a Morte aparecia sob a forma de uma nuvem de tule.

Tudo era muito complicado, como é regra no teatro naturalista, e nada era
convencional, enquanto tudo é justamente convenção nas peças de Maeterlinck.
O Teatro de Arte poderia ter saído desse impasse e ter se orientado para o novo teatro
utilizando-se do talento lírico de Tchekhov, o músico; mas, depois, escolheu subordinar
sua música à técnica e aos diferentes truques, e, no final de sua atividade, perdeu a
chave de interpretação de seu próprio autor, como os alemães perderam a da
interpretação de Hauptmann, que, rodeado de peças de costumes, pôs-se a criar peças
que exigiam uma abordagem completamente diversa, como Schluck e Jau e Pippa
danse.

Notas

* Este artigo foi escrito em 1906, e publicado posteriormente como parte do primeiro
capítulo do livro Do Teatro (Petersburgo, edições Prosvechtchenie, 1913). As notas ao
texto são do próprio Meyerhold e de Beatrice Picon-Vallin, a tradutora francesa do
mesmo (identificadas respectivamente pelas siglas N.M. e N.T.F.). (Nota da Tradução
Brasileira) [volta]

(1) Repertório: Os Homens livres de Pisemski, O Carreteiro Henschel de Hauptmann,


As Paredes de Naidenov, Os Filhos do Sol de Gorki. (N.M.) [volta]

(2) Jan Styka (1858-1925). Pintor, poeta e escritor de origem polonesa. Consagrou-se
sobretudo a temas religiosos e de gênero. Tenta, em seus "panoramas", realizar uma
fusão entre a pintura de fundo e o plano que comporta os objetos, no qual introduz
também a silhueta humana. É amigo pessoal de L. N. Tolstói, com quem mantém uma
correspondência regular. Suas obras encontram-se nos museus poloneses (Varsóvia,
Poznan). (N.T.F.) [volta]

(3) A estréia de Júlio César de Shakespeare no Teatro de Arte foi a 2 de outubro de


1903. (N.T.F.) [volta]

(4) Schopenhauer. (N.M.) [volta]

(5) O drama de Ibsen Casa de Bonecas foi montado no Teatro Komissarjevskaia em


uma encenação de A. P. Petrovski, a 17 de setembro de 1904. Em 18 de dezembro de
1906, esse espetáculo voltou a cartaz em uma encenação de Meyerhold. (N.T.F.)
[volta]

(6) Schopenhauer. (N.M.) [volta]

(7) Montada pelo Teatro de Arte de Moscou. (N.M.) [volta]

(8) A Gaivota foi remontada pelo Teatro de Arte em 1905. Meyerhold representou por
algum tempo o papel de Treplev. (N.T.F.) [volta]

(9) Schopenhauer. (N.M.) [volta]

(10) Schopenhauer. (N.M.) [volta]


(11) L. N. Tolstói, Shakespeare e o drama. (N.M.) [volta]

(12) A. Pope (1688-1744). Poeta inglês. Em seu Essay on criticism (1711), faz uma
espécie de manifesto do classicismo inglês, cujos princípios serão em parte aplicados
em sua obra Windsor forest (1713). (N.T.F.) [volta]

(13) Esta é a primeira aparição de um tema que será particularmente caro a Meyerhold
depois da Revolução: é preciso cronometrar com precisão a duração das diversas cenas
sobre o palco, e mesmo as pausas. Constantemente ele chamará a atenção dos atores no
sentido de não deixar que certas cenas se arrastem, à medida em que se sucedem as
representações. O tempo, o ritmo, constituem um quadro, no qual deve se desenvolver a
ação do ator, que jamais deve exceder os limites dessa estrutura. (N.T.F.) [volta]

(14) A estréia de O Cerejal no Teatro de Arte, na encenação de Stanislavski e


Nemirovitch-Dantchenko, foi em 17 de janeiro de 1904. (N.T.F.) [volta]

(15) Encontramos em O Cerejal outras notas idênticas, dissonantes e fugitivas, que,


provindas do fundo, irrompem no leitmotiv do ato: a leitura dos versos pelo chefe da
gare, a cena do taco de bilhar quebrado por Epikhodov, da queda de Trofimov nas
escadas. E podemos ver, neste outro exemplo, como Tchekhov entrelaça fina e
estreitamente essas duas melodias, o leitmotiv e o fundo:

Ania (com angústia): E agora, no cozinha, um homem disse que "O Cerejal" já foi
vendido, hoje.
Liubov Andreievna: Vendido para quem?
Ania: Ele não disse para quem; ele se foi. (Ela dança com Trofimov.)
(N.M.) [volta]

(16) Hedda Gabler de Ibsen foi montada pelo Teatro de Arte em fevereiro de 1899.
Oito anos mais tarde, Meyerhold dará sua interpretação de Hedda Gabler, em oposição à
do Teatro de Arte. Meyerhold achava entretanto que Stanislavski era excelente no papel
de Levborg, e é a recordação de sua interpretação que está na base do artigo de
Meyerhold e Biebutov A Solidão de Stanislavski, publicado na primavera de 1921 em
Vestnik Teatra (O Mensageiro teatral). Nesse artigo, a natureza teatral de Stanislavski é
sublinhada. (N.T.F.) [volta]

(17) As Colunas da sociedade foi montada no Teatro de Arte em fevereiro de 1903.


(N.T.F.) [volta]

(18) Retirado de meu Diário. (N.M.) [volta]

(19) I. N. Kramskoi (1837-1887). Começa como retocador de um fotógrafo ambulante.


Em 1857, na Academia de Artes de Petersburgo, combate os métodos acadêmicos de
pintura e em 1863 "fecha a porta" da Academia. Passa então a animar uma "comuna de
pintores", que quer promover os métodos realistas, com temas contemporâneos.
Quando a "Comuna" curva-se a compromissos com a pintura acadêmica, Kramskoi a
abandona, e participa na formação do grupo dos Peredvijniki (originalmente uma
confraria de pintores que organizavam exposições ambulantes). É o mestre do retrato
realista. (N.T.F.) [volta]
(20) G. Fuchs, Die Schaubühne der Zukunft (A Cena do Futuro), pág. 28. (N.M.)
[volta]

(21) A Gaivota foi montada pela primeira vez no Teatro Alexandrinski (estréia a 17 de
outubro de 1896), mas esse teatro não tinha compreendido o caráter novo da peça, e o
espetáculo foi um fracasso. (N.T.F.) [volta]

(22) Durante as quatro primeiras temporadas (1898-1902), ou seja, durante os anos em


que Meyerhold representava, o Teatro de Arte de Moscou ainda não tinha um local
definitivo, e apresentava-se na sala do Teatro Ermitage. (N.T.F.) [volta]

(23) Por "ator tchekhoviano" Meyerhold entende o grupo de atores que interpreta todos
os primeiros espetáculos de Tchekhov: Knipper, Lilina, Stanislavski, Artiom,
Katchalov. (N.T.F.) [volta]

(24) A estréia de Tio Vânia no Teatro de Arte foi a 26 de outubro de 1899. (N.T.F.)
[volta]

(25) O Teatro de Arte apresenta em uma só noite três peças de Maeterlinck, entre as
quais Os Cegos e A Intrusa (estréia em 2 de outubro de 1904). (N.T.F.) [volta]

In "Écrits sur le Théâtre", Tome I, La Cité - L'Age d'Homme, tradução de Beatrice


Picon-Vallin, Lausanne, pág. 95-104. Tradução de Roberto Mallet.

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