Você está na página 1de 5

Faculdade Paulista de Artes

Pós-Graduação (latu sensu) Artes Cênicas – 2º módulo


Professor: Péricles Martins

Anticonselho aos jovens atores


Gianni Ratto

O Teatro é um fenômeno oscilante, permanentemente oscilante. Vive processos de ascensão


criativa, com subidas e mais subidas até que, de repente, ele entra num declive, ou despenca.
Mesmo os grandes grupos têm uma vida breve, de seis, sete, oito anos. Poucos,
milagrosamente, permanecem por mais tempo. É como nos outros fenômenos de vida: o
Teatro nasce, cresce, se define e morre. É esse seu processo real. E por estar em
transformação constante, o Teatro é um lugar de insegurança.
O jovem ator tem que aprender que seu trabalho se dá num campo de insegurança total. Se
tiver consciência crítica saberá lidar com isso. No nosso trabalho, ninguém vai feito um trem.
Com o poeta, o escritor, ocorre o mesmo. Flaubert, a cada semana, cortava palavras, escrevia,
reescrevia, refazia quarenta, cinqüenta linhas. O ator que chega no ensaio dizendo “Eu já
sei”, esse ator se fodeu. Com o perdão da palavra. Cansei de ouvir isso: “Mas eu já decorei!”.
Decorou o quê? Você vai decorar Teatro?
Tinha uma bilheteira do tempo do TBC, que quando telefonavam para fazer uma reserva, e
perguntavam se o espetáculo estava indo bem, ela dizia: “Olha, já decoraram a peça”.
Tem muita escola de teatro que ajuda a difundir essa visão. São cursos que encantam não sei
quantos jovens, iludidos, desgraçados, pagando aulas de Teatro. A cada ano, quantos alunos
ditos “formados” saem dessas escolas? E o Sindicato faz questão de dar a carteira que
confirma esse ponto de vista: você paga e é registrado como ator. Os donos de escola, esses
canalhas atuais, que fazem do Teatro uma moldura de televisão, deveriam se envergonhar.
Ensinam a falsa segurança de uma listagem de expressões fixas e comportamentos
emocionais padronizados. Você sabia que na Itália, na época do fascismo, existia uma
máquina fotográfica parecida com isso: você ia lá, fazia quarenta fotografias com expressões
como dor, alegria, gozo etc.?
Contra esse imobilismo mentiroso, o teatro sério tem que reconquistar uma agressividade
permanente. Para trabalhar com a vida real do Teatro, para vencer todos os obstáculos,
culturais, políticos, e de sensibilidade, você tem que ser agressivo. Agressivo não significa
matar ninguém, mas estar pronto para atacar uma idéia. A agressão pode ser uma coisa
positiva.
O Teatro pede de você uma disponibilidade definitiva. Ele exige de você uma dedicação
total. Nas minhas próximas almas, nos meus próximos amanheceres, estarei sempre
disponível. Ou você é disponível ou não é. Disponibilidade significa que você tem que se
entregar para uma luta financeira, técnica, que envolve a totalidade da sua vida. Existem
propagandas dessas casas de comércio que vendem a idéia de uma dedicação total. Mas,
dedicação total a quê? À compra e venda de mercadorias. Não a dedicação a uma idéia, a um
ofício. Eu acho que o Teatro é uma Idéia, uma grande Idéia. Posso até me submeter a
pequenas concessões para não me desviar dessa descoberta. Mas você não pode namorar
vinte mulheres ao mesmo tempo porque, infelizmente, só tem um órgão genital. O Teatro é
exatamente igual ao amor, se você acredita nele, tudo bem. Por que eu estou fazendo teatro
até hoje? O que eu trabalhei em teatro não é brincadeira, foi dos quinze anos em diante.
Setenta anos de trabalho. É verdade: no bem, no mal, no êxito, no fracasso, no ganho, no
déficit. Mas é Teatro o que eu tenho que fazer.

O Teatro é isto: você tem que ter a pachorra. É ruim o espetáculo? Uma porcaria? Ou você
avaliou que é bom? Não, não é bom... porém você está lá? Então vai. Não é questão de
paixão romântica, mas uma confirmação permanente de algo que faz viver. Não sei se estou
certo, mas estou falando o que eu sinto.
Para mim, o Teatro é a grande aventura. Nela tomam parte os condutores dos povos, os Júlio
César, os Coriolano, mas existem também os soldadinhos. E é entre esses trabalhadores que
habitam as pequenas salas, esses jardins de catacumbas, que você pode encontrar realmente
as descobertas. Porque Júlio César se formou, está pronto, está feito. É uma imagem acabada.
São tristes os atores que se consideram modelos realizados. O sujeito faz oitenta anos,
continua atuando em espetáculos, tem um técnica interpretativa fantástica (afinal são tantos
anos de trabalho) mas o que sobra dele é a mediocridade humana, a sovinice permanente.
Um diretor francês do passado escreveu a uma jovem atriz: “Você começou agora, está tendo
muito sucesso, seu trabalho é esplêndido, mas e quando seu rosto ficar envelhecido, como é
que você vai fazer Julieta?” Esta pequena aula de duzentos anos atrás continua válida: então
você vai continuar tentando segurar a idéia da Julieta enquanto seu rosto envelhece?
O ator é aquele que atravessa o processo de mudança. Porque o Teatro de hoje não é mais o
Teatro de ontem. De que serve a grande técnica se a atriz ficou ressequida, se a vida sugou
dela tudo de que ela precisava? É um jogo terrível: o Teatro é um fenômeno de crueldade
definitiva, é um estupro permanente. E é preciso se pôr em movimento pela descoberta
permanente, ter a avidez de aprender, de receber para poder devolver. O Teatro também é
isso: dar e devolver, dar e devolver, dar e devolver, até o momento no qual os dois se juntam
para fazer uma coisa só - que é o grande tema da vida.
Depois de um período de morte, de sono, de sonolência, o Teatro no Brasil parece que
despertou. Está manifestando de forma muito mais categórica, mais violenta, mais agressiva,
no bom sentido da palavra, uma presença dramatúrgica muito forte. Em grupos, como no
caso dos seis que se reúnem para esse jornal, isso me parece muito evidente.
Importa não esquecer a pergunta do ponto de partida: o que te interessa dentro da Arte? Para
mim, é a presença do homem. Buscar o ser humano. Têm pessoas cuja falta de humanidade
não interessa mais.

Gianni Ratto é cenógrafo e diretor de teatro, de origem italiana.


Foi um dos mais ativos e críticos trabalhadores do teatro brasileiro.
Movimentos do teatro paulista
Alexandre Matte

Diferenças e contraditórias semelhanças entre as produções teatrais desenvolvidas nas


décadas de 60 e de 90 na cidade de São Paulo.

Em 1948 foi inaugurado o Teatro Brasileiro de Comédia, empresa pensada e gerida em


moldes capitalistas de produção e venda de espetáculos. De início bem sucedido, o TBC
adotou os pressupostos do esteticismo francês à Jacques Copeau: reconstituição ilusionista
impecável do real e dos valores caros à burguesia, e utilização de textos clássicos.
Transformou-se em um paradigma de uma produção teatral que no Brasil vinha sendo tentada
desde 1927 com o Teatro de Brinquedo de Eugênia e Álvaro Moreyra. O TBC, em 16 anos
de existência, montou 144 espetáculos e ‘contaminou’ com seu modelo inúmeros outros
artistas, que desenvolveram seus trabalhos na década de 60, quando socializaram e
estenderam seu padrão estético.
De maneira bastante significativa (mas não quanto ao modo de produção) – com rigor
ilusionista na interpretação, requinte na visualidade e escolha de textos clássicos – a
experiência desenvolvida pelo TBC pode ser percebida atualmente em inúmeras montagens.
Mas, em termos de trabalho de grupo e longevidade, destacam-se as montagens apuradas e
bem realizadas pelas batutas e mãos competentes dos diretores: Eduardo Tolentino – do
grupo TAPA; Roberto Lage e Celso Frateschi – diretores do Ágora.
Surgido na contramão do TBC, em 1953, e vivendo uma fase de teatro nacional-popular,
decorrência de Eles não usam Black-tie de Guarnieri e dos Seminários de Dramaturgia,
ambos de 1958, o Teatro de Arena viveu na década de 60 sua mais importante fase, quando
desenvolveu os postulados ligados ao teatro de forma épica. Com temáticas históricas e
nacionais, tendo claro que para além do estético o teatro teria também (e, sobretudo) uma
função social de despertar da consciência critica e de tomada de partido, o grupo assumiu (de
certo modo) as proposições de Bertolt Brecht, aclimatando-as ao Brasil. Surgiu daí um teatro
em que o assunto articulava-se a uma estrutura musical e narrativa, como nos espetáculos do
“Arena conta”. Não fosse o AI-5, em 1968, talvez o Arena, a despeito de todas as cisões e
contradições internas, conseguisse aprofundar as experiências buscadas desde 58.
Dos grupos atuantes na cidade de São Paulo e cujos pressupostos (ainda que bastante díspares
àqueles do Arena), mas muito próximos aos compromissos estéticos e sociais inseridos no
teatro de forma épica, pode ser citada a Companhia do Latão, que para muitos caracteriza-se
em ‘teatro de referência’, tanto pela qualidade estética de seus espetáculos quanto pela
pertinência e abrangência social dos assuntos, modos de produção, locais de apresentação e
institucionalização de processo de debate adotado pelo grupo desde sua origem. Organizado
internamente em diversos núcleos de atuação – conciliando qualidade estética a uma
tendência social justa, numa perspectiva solicitada por Walter Benjamin, em O autor como
produtor – Sérgio de Carvalho, Márcio Marciano e Ney Piacentini (entre outros) têm
“espalha-divulgado” uma estética e compromisso militante de modo absolutamente
irreprimível.
Ainda inserido nessa proposição, mas buscando através do viés antiilusionista, das raízes
populares, da apresentação de outros assuntos: socialmente relevantes e coletivos e
trabalhados numa perspectiva épico-cômica, pode ser a Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes,
dirigida desde sua origem (início dos anos 80) por Ednaldo Freire, sempre com a dramaturgia
de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros de todos os tempos, Luís Alberto de
Abreu. Juntos: dramaturgo, diretor e atores têm apresentado aquilo que de melhor e mais
significativo representa a chamada comédia épica.
Numa terceira tendência mais vanguardista ou mais corretamente da vanguarda –
desenvolvida a partir de experimentalismos estéticos, fundamentados na ruptura, no choque,
na iconoclastia, na busca de ‘novas’ e ritualísticas relações com o público e na reapresentação
de assuntos ditos proibidos, malditos ou mesmo pouco afeitos ao teatro – encontra-se a
inquietante figura de José Celso Martinez Correa, um dos criadores do Teatro Oficina
(fundado em 1958). Responsáveis pelas mais belas, polêmicas e significativas encenações do
teatro brasileiro de todos os tempos – na tendência aludida – (e contando com os parceiros
permanentes da chamada tríade do Oficina, até 1971, Fernando Peixoto e Renato Borghi), Zé
Celso fincou raízes, confundiu críticos e público, desestruturou convicções, comportamentos
e mentalidades e caracterizou-se em personagem totêmica e modelar do teatro universal do
Ocidente. E, cá entre nós: viva o Zé Celso! Sempre!
Algumas das características do teatro de Zé Celso, adaptadas e aclimatadas ao teatro paulista,
nos dias de hoje, podem ser percebidas no delicioso deboche dos espetáculos apresentados
pelo grupo Cemitério de Automóveis. Com um humor cáustico e corrosivo do criativo e
laboriosíssimo batalhador Mário Bortolotto. No Teatro da Vertigem, um dos grupos
brasileiros da atualidade mais convidado a apresentar-se fora do país, e cujos espetáculos
impactantes, inovadores e provocativos têm se apresentado sempre com casa lotada. Dirigido
por Antonio de Araújo e com um pequeno núcleo permanente desde a fundação do grupo aos
quais novos integrantes de somaram, os espetáculos integrantes da chamada Trilogia Bíblica:
O paraíso perdido, o livro de Jó e Apocalipse 1, 11 apresentam-se em espaços ditos não-
convencionais e propõem uma relação processional com o público. Repleto de situações
grotescas e por vezes escatológicas, os atores atuam sempre no paroxismo e próximos ao
estado de risco. Espetáculos e atores comovem para além do estético, de um modo primal,
antropológico... correspondendo, de um certo modo, àquilo que Antunes Filho pretende e
alcança com seus espetáculos. Nos trabalhos inovadores, instigantes e provocadores da Cia
São Jorge de Variedades, dirigida pela ‘espuletíssima’ Georgette Fadel e pelo Núcleo
Bartolomeu de Depoimentos, com espetáculos e performances do projeto Urgência nas Ruas,
misturando diversas manifestações de cultura/arte de rua, narrativa épica e assuntos
relevantes e protagonizados pelos marginais e desterrados da história oficial. Apresentando-
se em diversos espaços, o grupo induz à participação e à reflexão. Cláudia Schapira tem
coordenado bela e provocativamente todas as manifestações do grupo ajudadas de perto por
Eugênio de Lima, que é responsável pela direção musical dos espetáculos e intervenções.
Caso à parte, e que congregaria as duas últimas tendências apresentadas, pode ser encontrada
na Cia. Folias d’Arte, sobretudo nas direções tanto profissionais quanto escolares (Teatro-
escola Célia Helena e Escola de Arte Dramática) de Marco Antonio Rodrigues. Nota-se nas
encenações do diretor traços estilísticos inconfundíveis, ou seja: forte influência do teatro
brechtiano, tanto na escolha dos textos como na utilização dos expedientes a ele
característicos e a utilização hiperbólica e imagética do conceito de grotesco, que aproximaria
os espetáculos de Marco às vislumbradas paisagens surrealistas e fellinianas.

Por último, aliando tradições circenses ingênuas e grotescas à várias modalidades de comédia
pantomima, fescenina, Commedia dell’Arte... e teatro popular, os Parlapatões têm, ao longo
de seus dez anos de existência, andando na contramarcha da história e contaminado inúmeros
indivíduos e grupos na senda do teatro popular e do cômico, redignizando o gênero e seus
antigos artistas. Com seus quase vinte espetáculos, Piolin, Sardanapalo, Funâmbulos,
Pantagruel os Parlapatões, em qualquer espaço, têm alegrado a vida e o teatro. Com relação a
todos os Parlapatões ex e atuais (e especialmente com relação a Hugo Possolo: o Tililingo),
diria um limitado poeta: penso que se houvesse um-céu-no-céu-da-terra, no centro da arena
que lá houvesse vocês seriam permanentemente homenageados. Riso como o provocado por
vocês comove, humaniza e enternece naquilo que cada um tem de melhor.
Quanto ao público, a produção atual tem dificuldades diversas das dos anos 60. Mais sujeita a
uma indústria-da-divulgação-de-modelos-e-obras-normalmente-alienantes (chamada media),
ela se vê determinada por uma conjunção de medo, crise econômica e atropelo da memória.
Hoje, parcela significativa da população que poderia ir ao teatro, está presa e trancada em
suas casas.
Mas... e viva nós! O teatro existe! Enfrenta ‘dragões da maldade’, se apropria de experiências
anteriores, se renova. Retoma um gosto que permaneceu até 1968: o das mobilizações
coletivas. E como se diria na tradição da revista, com relação ao teatro paulista: OBA!

Alexandre Matte é professor do curso de Artes Cênicas da UNESP

Você também pode gostar