Você está na página 1de 52

"De alguma forma, as pessoas como ela, que

dominam a escrita, costumam ser perigosas. Logo,

levantam suspeitas de falsidade - que não são elas

mesmas, mas um olho que está observando, e

transformando em frases tudo o que observa;

assim retiram da realidade sua qualidade mais

importante - sua inexpressividade."

Olga Tokarczuk, em Sobre os ossos dos mortos

Esta revista é idealizada e editada pelos dramaturgos

Arthur Martinez e Vana Medeiros

contato@malditosdramaturgos.com.br
REVISTA 1
Entrevista
"Falar é um ato de revolução, de rebelião,
de insurreição", Silvia Gomez 5

Dramaturgias
Cega-Cabra
Denizart Fazio 15

Palestra para desmagnetizar a desgraça


Filipe P. 23

Vulnerável
Lucas Vitorino 26

A tragédia do barbeiro
Eliakim Ferreira Oliveira 28

Monólogo com mãe e filho


Ismar Tirelli Neto 30
Luneta
Júlia Zocchi 34

Ensaio
Reflexões sobre Stabat Mater
Janaína Leite 45

Resenha
A mentira de cada um: Tom na Fazenda
Marcelo Oriani 49

MALDITA | 03
EDIÇÃO DE ESTREIA EDITORIAL

A PRIMEIRA EDIÇÃO DA
MALDITA
REVISTA DE DRAMATURGIA
TRAZ
PRA QUE
6 DRAMATURGIAS
1 ENTREVISTA
1 ENSAIO
SERVE O
TEATRO?
1 RESENHA

A maldita começa assim. Em um ano em que tudo é morte, e ainda assim parecemos manter o fôlego para um
novo começo. O processo de isolamento social pelo qual o mundo todo está passando fez com que 12 mil
trabalhadoras e trabalhadores do teatro parassem só no Rio de Janeiro e em São Paulo. As melhores
perspectivas contra o COVID-19 não apontam uma saída antes de 2021. E quem vai querer se arriscar tão
cedo, em aglomerações como festivais, shows, estádios, aeroportos e, é claro, salas de espetáculo?

Até março deste ano, poderíamos argumentar que uma das respostas mais plausíveis para a pergunta "para
que serve o teatro hoje?" talvez fosse "para que não deixemos de exercitar a presença". O teatro era sobre
lembrar a um mundo cada vez mais tomado por distâncias e isolamentos que existe uma arte preciosa e
esquecida no hoje, no deixar-se afetar de maneira real e concreta, na presença. No mundo acelerado, hiper
conectado e auto isolado em que já vivíamos, reunir dezenas de pessoas em um mesmo ambiente para uma
ação artística performática, qualquer que fosse ela, constituía um exercício de resistência ao
desaparecimento gradativo da presença na vida contemporânea, uma espécie de manifesto pela qualidade
desta presença. E, hoje, poucos meses depois, em um movimento que ainda conserva o seu ar de ficção
científica, vivemos em um mundo que não pode mais comportar nada disso.

O teatro não vai acabar, a contemporaneidade provavelmente não vai sofrer uma revolução tão radical
(progressista ou conservadora) quanto as que estão sendo apregoadas, não é o fim. Mas, ainda assim, fica a
impressão de que, se escrevermos antes de sermos capazes de forjar uma nova resposta para aquela mesma
pergunta - "para que serve o teatro hoje?" -, sem ao menos inventarmos provisoriamente um horizonte,
qualquer coisa dita ou escrita para teatro neste momento nasce anacrônica. Padece do pior mal possível para
a arte: não se relacionar com seu tempo. Se já nos víamos sujeitos e objetos de uma revolução, de uma
monumental transição entre eras que não poderíamos viver sem transformarmos a matéria do que falávamos,
não vamos sobreviver a isso se não repensarmos, urgentemente, como falamos. Nas próximas semanas,
meses, anos, o teatro vai servir para quê?

A maldita começa assim. Refletindo sobre novos modos de forjar. É fruto de uma reflexão sobre como
podemos, de maneira independente e com muito esforço, nos sentir parte de uma classe, a classe dos
dramaturgos brasileiros contemporâneos. E seguir a partir daí, como pudermos, fomentando e sendo
fomentados pelo olhar, pela recepção do outro. A cada seis meses, uma nova edição digital. Boa leitura e
força a todos!

Mande seu material para as próximas edições da revista!


contato@malditosdramaturgos.com.br

MALDITA | 04
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA: SILVIA GOMEZ

"FALAR É UM ATO DE REVOLUÇÃO,


DE REBELIÃO, DE INSURREIÇÃO"
Por Vana Medeiros
Entrevista com Silvia Gomez
Foto de Roberto Ikeda

Doze anos atrás, em 2008, Silvia Gomez Na entrevista a seguir, Silvinha, como é
estreava sua primeira peça profissional como conhecida no teatro em São Paulo, fala sobre
dramaturga, Cinco minutos antes da sua carreira, como enxerga a dramaturgia
tempestade, dirigida por Eric Lenate¹ e contemporânea e quais preceitos costuma
encenada dentro do CPT - Centro de levar para a sala de aula. "Eu não sou fã de
Pesquisa Teatral do SESC. Em 2020,s fórmula, e não gosto de regras. Então quando
destaca como uma das mais importantes dou aula, sinto que estou dividindo,
vozes do teatro brasileiro contemporâneo, partilhando meu interesse sobre coisa que eu
além de trabalhar para fomentar a formação mais amo no mundo que é a dramaturgia."
de novos dramaturgos.

1 Eric Lenate é ator e diretor teatral paulistano formado pelo CPT - Centro de Pesquisa Teatral do SESC, sob direção de Antunes Filho.

MALDITA | 05
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

Sua relação com a Dramaturgia começou Isso pra mim era muito claro, eu precisava me
com o Antunes²? Ou você já tinha uma comunicar com o meu tempo. Eu tinha muitos
formação? colegas que não iam ao teatro, na faculdade de
Não. Eu sou de Minas, de Belo Horizonte. Eu só jornalismo, e eu sentia que precisava falar
faço teatro porque eu tenho uma tia, Yara de coisas que eles quisessem ver.
Novaes³, 11 anos mais velha que é atriz desde
adolescente. E eu era/sou louca por ela, E sobre o que especificamente você queria
aquela tia que vira meio irmã. Eu sempre ia nos falar? Quais eram os assuntos que você
ensaios quando era criança. Pirei com aquele identificava como do seu tempo?
universo, achei incrível aquelas pessoas livres Acho que tem muito a ver com o lugar de onde
que se reuniam para inventar alguma coisa eu venho. Apesar de eu ter nascido em Belo
juntas. Mas aí quando eu fui estudar, fiz Horizonte, meu pai se mudou para o sul de
jornalismo, entrei em comunicação. Eu estava Minas quando eu era criança. Uma cidade
em dúvida entre Letras e Comunicação, mas universitária. E eu fui criada nesse lugar. Eu
achava que que não tinha vocação para dar tenho 42 anos, Minas é um lugar ainda
aulas. (risos) Então fui fazer Jornalismo e, machista, misógino. Eu observava minha mãe,
paralelamente, Teatro, num curso livre. minhas amigas, a mulher educada para ser
Quando você entra no teatro, pelo menos agradável, falar pouco. Então para mim falar é
quando eu fiz, você tinha que entrar como um ato de revolução, de rebelião, de
ator. E eu acho isso muito importante em uma insurreição. E escrever tem diretamente a ver
escola de teatro. Passar pelo lugar do ator com isso. Com o lugar de uma mulher que fala
para o dramaturgo é muito interessante, coisas perigosas, que incomoda. Pra mim o
porque o teatro é sobre a fala. Então quando teatro realiza essa fantasia do falar. Não por
você se vê no lugar do ator, você entende que acaso minhas personagens são todas mulheres
está escrevendo para um corpo que fala, e que falam em um delírio quase febril. Esse
entende um pouco como é este falar. Logo eu delírio pra mim é lucidez extrema porque é este
percebi que não me sentia confortável no o lugar de acessar essa pulsão, essa liberdade.
lugar de atriz. O que eu realmente queria era
escrever. Eu lembro que, no meu primeiro Você disse uma coisa que me lembrou o que
estágio de jornalismo, eu tinha muito tempo diz a Michelle Ferreira⁴, de que as pessoas
vago, e ficava escrevendo peças. Eu lembro não vão ao teatro porque não se fala sobre
dessa sensação de por que comecei a elas no teatro. As pessoas acham que aquilo
escrever teatro. Eu queria falar com a minha não lhes diz respeito. Você concorda?
geração, com meus amigos, meus colegas da Eu e Michelle somos muito amigas, a gente veio
faculdade. Eu queria falar sobre o que eles da mesma formação, entramos juntas no CPT.
estavam falando, queria falar do meu tempo.

2 Antunes Filho (1929 - 2019) foi um dos principais diretores do teatro brasileiro. Fundador do Centro de Pesquisa Teatral (CPT).
3 Yara de Novaes é atriz, diretora e professora de teatro. Integra o Grupo 3 de teatro juntamente com Débora Falabella e Gabriel Paiva.
4 Michelle Ferreira é atriz e dramaturga paulistana. Formada pela Escola de Artes Dramáticas da USP e pelo Núcleo de Dramaturgia do
CPT, onde estudou com Antunes Filho.

MALDITA | 06
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

E você quando você falou isso eu pensei no


Antunes, em como ele fazia teatro para as
pessoas. E em como os grandes dramaturgos e "Eu tenho muita

encenadores fazem teatro para as pessoas.


raiva, e escrever é o
Não para o seu próprio umbigo. A gente não
pode esquecer que existe um receptor, que é
meu jeito de
comunicação o que a gente faz. Temos que
pensar no outro. E teatro é sobretudo este
dialogar com essa
lugar de tensão, esta expectativa. É um luxo
tão grande uma pessoa sair de casa pra ir ver raiva, de digerir o
sua peça, ficar sentado ali por uma hora, sem
olhar no celular. O que não quer dizer que seja meu tempo."
fácil lidar com isso, porque eu acho que tem
que haver um equilíbrio entre este pensar no
outro e uma arte que questiona o entorno do Mas, na minha época, quase não tinha essa
seu tempo, que quer sim falar sobre as coisas interlocução. Eram montados os grandes
que incomodam. E como falar sobre as coisas clássicos, os dramaturgos dos anos 1960,
que incomodam e ainda assim ser estético, homens quase sempre. Até hoje a gente quase
sedutor? Porque teatro é um pouco sedução, é não vê reedição das dramaturgas daquela
encontro. A gente não pode esquecer disso época. Reeditam os homens, mas não as
jamais. É encontro de um ator com o outro, do mulheres e suas peças incríveis. Gabriela
texto com seu público; o ator vivo, um corpo Rabelo⁶, Maria Adelaide Amaral⁷, Leilah
vivo, de carne e osso, que está ali na sua Assumpção⁸, Renata Pallottini⁹, Isabel
frente. Na época em que eu comecei a Câmara¹⁰, mais antiga, e muitas outras. Por
escrever, a gente tinha muito menos esse que estas mulheres não estão sendo
movimento de dramaturgia contemporânea, reeditadas? Esse processo de apagamento
cursos, trocas, etc. A sua geração⁵ tem muito continua sendo reiterado, sob as nossas vistas.
mais gente escrevendo sobre o que está
acontecendo aí.

5 A geração de Vana Medeiros, dramaturga e editora da MALDITA. http://vanamedeiros.com.br


6 Gabriela Rabelo é dramaturga, atriz, diretora e professora. Nasceu em Belo Horizonte, mudou-se para São Paulo onde cursou a Escola
de Arte Dramática(EAD), assim como Filosofia, na Universidade de São Paulo, na qual, anos mais tarde, obteria o título de doutora em
Artes Cênicas.
7 Maria Adelaide Amaral é escritora, dramaturga e roteirista. Portuguesa, aos 12 anos, veio com a família para o Brasil, para a cidade de
São Paulo, onde cursou Jornalismo na Fundação Cásper Líbero. É conhecida por seu trabalho no teatro e na teledramaturgia brasileira,
sendo autora de várias novelas e séries.
8 Lilah Assumpção é dramaturga, pedagoga e ex-modelo. Formada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
USP. O principal assunto abordado em sua obra é a mulher e sua situação na sociedade.
9 Renata Pallottini é uma dramaturga, contista, romancista, ensaísta, poetisa e tradutora paulistana. Formada em Direito e em Filosofia.
Fez curso de Dramaturgia e Crítica da Escola de Arte Dramática da USP e cursos de Literatura e Língua Espanhola e de História da Arte,
pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha. é professora Emérita da Escola de Comunicações e Artes, USP.
10 Isabel Câmara (1940 - 2006) foi poeta e dramaturga.Com a peça As Moças, cria uma das obras mais características dos anos 1970,
enfocando a contracultura sob o prisma de duas mulheres que dividem um apartamento. Abandona o teatro precocemente, deixando
apenas o legado de uma peça, única porém definitiva para a época.

MALDITA | 07
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

Então eu queria escrever, mas encontrava Neste espírito de escrever sobre seu
poucas publicações de autores da minha tempo, de que maneira você considera que
geração, mesmo do exterior. Eu lia os clássicos. a situação política atual está se refletindo
Eu lia Beckett¹¹, eu lia Ibsen¹², Tchekhov¹³, na sua produção e na produção dos nossos
todos. Mas e a minha geração? E quem está contemporâneos?
falando do que eu estou vivendo agora? Foi Eu escrevo sobre que eu temo. Sobre o que eu
isso que me motivou a escrever. E continuo realmente temo. E motivada por esse incômodo
tentando sempre estar nesse movimento. que é quase um esgar. Essa peça que eu
Porque o que me motiva a escrever é o escrevi agora, Neste Mundo Louco, Nesta
incômodo. Eu tenho muita raiva, de tudo o que Noite Brilhante¹⁴ foi motivada por essa
se passa ao meu redor. Escrever é meu jeito de violência contra a mulher. Eu, neste meu corpo
elaborar essa raiva, de digerir o meu tempo. de mulher, não tive como não falar sobre isso.
E não só porque eu sou mulher. Vejo como um
sintoma social também. O estupro como
violação, e violação de todos os direitos. Se um
homem assiste à peça e acha que ela fala só
da situação da mulher, então precisa abrir sua
percepção para entender que a violação é
"Se você não
uma metáfora também desse nosso tempo, de
como nós estamos sendo violados o tempo
se produzir, inteiro por essa necropolítica. E o próprio
estupro como sintoma social pertinente a
não vai todos, o que ele diz de nós, das relações, do
micro ao macro? O Céu cinco minutos antes da
acontecer." tempestade¹⁵, minha primeira peça encenada,
era sobre uma mulher que começava o
espetáculo sem conseguir se mover até que ela
conseguia engatinhar, até que ela conseguia
se levantar, até que ela saía andando.

11 Samuel Beckett (1906-1989) foi dramaturgo, romancista e poeta irlandês de expressão inglesa e francesa. É um dos principais nomes da
dramaturgia do século XX e do chamado Teatro do Absurdo, na década de 1950, o qual mesclava o trágico e o cômico, com assuntos
absurdos e fora da realidade nas peças, além de personagens com comportamentos estranhos.
12 Henrik Ibsen (1828-1906) foi dramaturgo e diretor teatral norueguês. Um dos criadores do teatro realista moderno. Criou o "Teatro de
ideias". sua obra se caracteriza pelo estudo psicológico dos personagens (em especial os femininos), pela crítica à burguesia e ao
capitalismo e pelo encontro do indivíduo com a sociedade.
13 Anton Tchékhov (1860-1904) foi um médico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.
Escreveu algumas das mais sutis e penetrantes observações psicológicas do teatro ocidental. Também considerado um dos mestres do
conto moderno, sua obra foi interpretada pela companhia Teatro de Arte de Moscou de Konstantin Stanislavsky.
14 Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante - peça teatral com dramaturgia de Silvia Gomez, direção de Gabriel Fontes Paiva e no palco
Débora Falabella e Yara de Novaes. Produzida pelo Grupo 3 de Teatro, Débora Falabella interpreta uma vítima de estupro coletivo.
15 O Céu cinco minutos antes da tempestade, dirigida por Eric Lenate em 2008.

MALDITA | 08
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

No panorama da dramaturgia
contemporânea brasileira, você consegue
enxergar tendências ou similaridades no
"Dar aula é como
que está sendo feito hoje?

escrever uma peça. Essa não é uma pergunta fácil. Primeiro porque
estamos no meio da produção, no olho do
É um lugar de criação furacão. Nós ainda não estamos distanciados o
bastante para analisar. A geração dos anos
muito grande, tem um 1960 que tinha um inimigo claro. As cicatrizes
de uma ditadura ainda estão aqui. Acho que
aspecto lúdico de estamos vendo e vamos ver cada vez mais
dramaturgias que falam desse lugar da
inventar procedimentos, violência. A nossa sociedade é muito violenta.
Fomos fundados sob o signo da violência. E
fazer conexões." esse governo trouxe muito à tona, deixou às
claras. Não, nós não somos cordiais. Isso aqui
foi fundado sob muito estupro, sob massacre,
sob genocídio. Sob essa violência que às vezes
Hoje, olhando em retrospecto, eu sei é subterrânea, subcutânea. Estava sob a
exatamente que eu escrevi essa peça porque nossa pele e aflorou agora. Está mais
tem a ver com essa mulher que precisa ficar de escancarada, estamos falando mais sobre isso.
pé por si. O Mantenha fora do Alcance do
Bebê¹⁶ tinha um aspecto social e político sobre Apesar do grande número de dramaturgxs
como a gente deixa a ideia de consumo desta geração, especialmente em
contaminar mesmo as coisas mais preciosas. E comparação com as anteriores, ainda temos
teatro é o lugar pra gente mergulhar na poucas publicações e, especialmente,
experiência humana e falar: "Porra, mas não é poucos leitores. Qual é a saída para
sobre isso. Maternidade não é sobre isso". A fomentar este processo?
cultura nos permite levar as questões para o Eu acho essencial batalhar por publicar
simbólico, entre elas a violência que está dramaturgia. Para isso temos de ter leitores. E
dentro de nós. Quando falta o simbólico, tenho o único caminho para isso é a formação.
a impressão de que essa violência se torna Quando fomentamos a formação e a
mais concreta nas ruas, na realidade. espalhamos nos ambientes de ensino,
Atualmente, temos uma polarização no poder contribuímos com este processo. O Antunes
que infantiliza as coisas, um governo que falava uma coisa linda que é "o CPT é uma
zomba da morte da população, que cria um mancha de óleo". Quem passa por lá, vai
circo de fake news como distração perversa passando, contaminando, manchando os
enquanto faltam vagas nos hospitais, enquanto outros de óleo, e espalhando o que viveu aqui.
devasta a Amazônia, enquanto viola nossos Sobretudo, não era contaminado apenas pela
direitos, destrói arte, cultura, educação. figura do Antunes, como mestre.

16 Mantenha Fora do Alcance do Bebê, peça teatral com dramaturgia de Silvia Gomez, direção de Eric Lenate e no palco Débora Falabella,
Anapaula Csernik e Jorge Emil. Estreou em 2015.

MALDITA | 09
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

Também, mas sobretudo pela busca dele. São


duas coisas muito distintas. Ele deixou de se
dedicar somente à montagem como diretor para
se dedicar à formação do ator. Esta foi a busca "É como se a dramaturgia
do Antunes. Ele dedicou a vida a formar o ator.
E ele percebeu que, para formar o ator, ele não conseguisse mais
tinha que falar sobre dramaturgia. Porque um
evitar a realidade. A
bom ator é um bom leitor. Um bom ator é o rei
da cena, é aquele que também pode escrever a
gente não consegue
própria cena, e que sabe ler como ninguém as
palavras. Os grandes atores são inteligentes mais escrever puramente
para dialogar com a dramaturgia e desdobrá-
la, multiplicá-la, ampliá-la. diálogos e ficção. "

Como é a sua relação com a sala de ensaio


hoje? Principalmente porque você escreve
uma dramaturgia que podemos considerar
mais de "gabinete”... Claro que às vezes visões são equivocadas e,
Eu amo ir para o ensaio, mudo muita coisa lá. por isso, é importante dialogar, “gente, mas
Mas tenho uma rotina híbrida como jornalista e tem humor aqui”, porque as coisas que eu
roteirista também, nunca consegui ter um escrevo são pesadas, elas questionam lugares
grupo. E chega uma hora que acho que eu mais profundos, são às vezes doídas, mas têm
atrapalho do que ajudo, então tento deixar o humor. Um humor que nasce desse lugar doído
diretor mais livre porque eu sou muito ansiosa pra continuar vivendo. O Antunes falava muito
também. Minha mãe, que é psicóloga, me disse isso. Que o teatro vive dos pólos opostos: Yin e
uma frase, algo assim: “Mãe é como o sol do Yang. “A contradição é o degrau no qual você
meio-dia, chega uma hora que ela queima se apoia para dar o salto” era a frase dele. É
demais”. Acho que o dramaturgo tem uma hora como pensar um quadro do Caravaggio, por
que é como o sol do meio-dia. Ele tem que exemplo, o trabalho de luz e sombra. Há um
deixar as pessoas livres para elas criarem. jogo de contrastes ali. Para você fazer com que
Claro que quando você escreve, você dirige um a sua frase contundente tenha efeito
pouco na cabeça: você pensa na música, contundente, você tem que ter trabalhado o
coloca a trilha, vê a cena, mas é a visão de desenho para chegar até seu brilho.
uma pessoa só. E a graça do teatro é que ele
não é a visão de uma pessoa só, mas de muitas. Como se deu inicialmente seu envolvimento
São muitas camadas criadoras e isso faz do com a formação em Dramaturgia?
teatro algo diferente de um livro. Porque o Eu fiquei 10 anos no CPT, e depois, em 2017, o
teatro é uma soma de universos, de Antunes me chamou de volta para dar aula lá
significados e de repertórios. Isso faz o teatro para os atores do CPTezinho. E basicamente foi
ser tão grande, tão potente. E se você fica assim que eu comecei a dar aulas. Eu nunca
muito controlador, impõe uma visão só. Você imaginei que eu seria capaz de dar aula.
tem que permitir que todos criem, porque isso
só vai te beneficiar.

MALDITA | 10
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

A Marici Salomão¹⁷ então me convidou para Você observa o lugar do ator e não esquece
dar aula na SP Escola de Teatro. Depois um que o teatro é um lugar onde existem seres
curso no SESI¹⁸, oficinas, workshops etc... A humanos falando, respirando, se
vida foi me chamando pra isso. E eu aceitei. movimentando, trocando. Isso é vital. Você
precisa saber que é para eles que você vai
O ensino da Dramaturgia raramente foi escrever. Eu não sou fã de fórmulas e não
formal no Brasil. Você acha que existem gosto de regras. Então quando dou aula, sinto
caminhos ideais para estudar Dramaturgia? que eu estou na verdade partilhando. Estou
Quais foram os componentes mais dividindo meu interesse pela coisa que eu mais
importantes para a sua formação? amo no mundo, que é a dramaturgia. Partilho a
O poeta norte-americano Raymond Carver¹⁹ minha experiência prática de uma artista que
disse: “Sob o risco de parecer tolo, um escritor se ferra tentando escrever, que tem medo, que
às vezes precisa apenas ser capaz de parar e acha que não vai conseguir, que quando vai
olhar boquiaberto para alguma coisa – um estrear uma peça fica sem dormir, passa mal.
pôr-do-sol ou um sapato velho – simples e Eu não vou saber te dar uma solução final. É
absolutamente maravilhado”. Ele transforma uma busca pessoal, intransferível. Mas posso
poeticamente o que vê. Acho que a formação partilhar minhas paixões. Eu fui entendendo
do dramaturgo é muito a leitura de peças. E, que dar aula é como escrever uma peça: é um
além da escola, o próprio teatro também te lugar de criação muito grande, tem um aspecto
forma, como foi a minha formação que lúdico de inventar procedimentos, fazer
começou quando eu tinha 4 anos, indo para o conexões. O que eu acho muito importante
ensaio da minha tia. para o dramaturgo é aprender a se auto
inspirar, a se auto provocar e a fazer
correlações de ideias e coisas que estão
acontecendo. "Isso está acontecendo no
mundo agora. De onde vêm isso? Que filósofo
"Eu não sou fã de
poderia falar sobre isso? Que filósofo já falou
sobre isso? Vamos ver a mostra tal de artes
fórmulas e não gosto
plásticas, o filme, a peça, o cientista... O que
de regras. Então as outras artes estão dizendo sobre esse
mundo de agora? Por que tantas obras sobre
quando dou aula, sinto isso? Como isso poderia ser dramatúrgico? O
que é a nova dramaturgia? Para onde vamos?"
que eu estou na
A busca de escrever uma peça impossível, da
forma impossível. Na prática, você não
verdade partilhando."
consegue, mas a busca pelo impossível já te
leva para outro lugar.

17 Marici Salomão é dramaturga, curadora, crítica e jornalista. Desde 2008, coordena o Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council
(Prêmio Shell de Teatro na categoria Inovação, em 2016) e, a partir de 2009, também o curso de dramaturgia da SP Escola de Teatro.
18 O Serviço Social da Indústria (SESI) é uma entidade de direito privado, nos termos da lei civil, estruturada em base federativa para
prestar assistência social aos trabalhadores industriais e de atividades assemelhadas em todo o País.
19 Raymond Clevie Carver, Jr. (25 de Maio de 1938 – 2 de Agosto de 1988) foi um escritor norte-americano, participante do
chamado Realismo sujo e célebre por seus contos e poemas minimalistas.
MALDITA | 11
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

Quais são os princípios pedagógicos que É interessante pensarmos que, com a


você costuma levar para os encontros proliferação dos cursos de dramaturgia,
quando conduz um processo em aula? diversos dramaturgos estão sendo lançados
Eu acredito que é preciso sobretudo aprender na cena teatral todos os anos. Como ela
a ler dramaturgia e a ler o texto do outro. A absorve esses profissionais? Existe cena
Marici [Salomão] faz isso muito bem. Coloca um para todos estes textos sendo produzidos?
dramaturgo para ser dramaturgista do outro, Eu precisei entender que nada iria acontecer
para descobrir como você pode aprender a ler sem o meu esforço. É uma busca. Você vai
o texto do outro por dentro. Por dentro da pele continuar e persistir porque não consegue
do outro. Não querendo impor o que você acha viver sem isso. Ainda é muito difícil fazer isso
que é dramaturgia para o outro. Esse foi o jeito no Brasil. A dramaturgia não é um produto. Eu
que eu aprendi a escrever dramaturgia no não tenho um grupo, mas tenho amigos. Eu
CPT, por exemplo. Tento também na medida do tenho muita sorte de ter amigos que são atores
possível partilhar a ideia de que precisamos que estão a fim de fazer, que vão fazer a
duvidar mais, ter mais perguntas do que qualquer custo. Essa é minha grande sorte. É
respostas. Estamos vivendo um tempo muito sobretudo entender que, se você não correr
cheio de respostas e de certezas de redes atrás, não vai vir um príncipe encantado num
sociais. Quando você coloca mais perguntas, cavalo branco e falar: “Te dou 15 mil reais e
você também deixa espaço para o outro vou montar o seu maravilhoso texto”. Você vai
colaborar com a sua obra. Menos tirania e mais ter que correr atrás, vai ter que ter sua turma,
liberdade. E aprender a criar tensão. vai ter que entender como produzir. Vai ter
Basicamente o desafio é manter o público que fazer concessões, vai se frustrar, vai
sentado durante uma hora sem olhar no querer mais e não vai conseguir. Se você não
celular, o que está cada vez mais difícil. se produzir não vai acontecer. Tem que se
mostrar disposto também. Na verdade,
Você também lê muitos textos de qualquer trabalho é assim.
dramaturgos novos, em aprendizado. O que
te chama atenção nestas produções? Queria que você falasse um pouco sobre
O grau de originalidade, de singularidade, que tipo de peça tem atraído sua
além da qualidade literária. Não me importa sensibilidade, sobre dramaturgxs que você
tanto se ele está escrevendo de forma admira. O que você tem visto que tem
dramatúrgica, mas se ele tem uma chamado sua atenção?
singularidade no modo de olhar o mundo e seu Eu amo muito a Grace Passô²⁰. Estou lendo
tempo. Está sendo incomodado pelo seu muitas mulheres ultimamente. Carolina
tempo? É importante ser testemunha do seu Bianchi²¹. Quando eu vi LOBO²² eu pensei:
tempo, estar incomodado, falar sobre ele. “Estou diante de uma grande artista!”.

20 Grace Passô é atriz, dramaturga, diretora, atriz e curadora minera. Trabalha em parceria com diversas companhias e artistas
brasileiros. Com peças traduzidas para vários idiomas, sua dramaturgia cria fábulas contemporâneas metafóricas que se distinguem por
evidenciar o jogo entre o ficcional e o real.
21 Carolina Bianchi é atriz, performer, diretora e dramaturga. Formada em atuação pela Escola de Artes Dramática da Universidade de
São Paulo, suas criações atravessam o teatro, a dança, a literatura e a performance através de trabalhos autorais gerados em parceria
com artistas multidisciplinares, formando o coletivo Cara de Cavalo.
22 LOBO - espetáculo teatral com dramaturgia e direção de Carolina Bianchi. Sua estreia aconteceu em 2018 no Teatro de Contêiner em
São Paulo. O trabalho é uma sequência de imagens, textos, experiências que misturam passado e presente, desenrolando imagens que
evocam o barroco italiano do século XIX, filmes de terror dos anos 70, natureza morta e viva.
MALDITA | 12
EDIÇÃO DE ESTREIA ENTREVISTA

Tem uma singularidade absurda, ninguém mais A dramaturgia se aproxima cada vez do real
poderia ter escrito aquilo. Tanto a Carolina para fazer teatro e questionar o que é fazer
como a Grace têm uma singularidade teatro. A realidade política e social está muito
inconfundível. Vaga Carne²³ é uma infectada e é como se a dramaturgia não
anunciação. É genial e tem poucas páginas. A conseguisse mais evitá-la. A gente não
Janaina Leite²⁴, a Michelle Ferreira, a Dione consegue mais escrever puramente diálogos e
Carlos²⁵... Atualmente, estou alucinada pelo ficção. Como absorver essa infecção com
Sergio Blanco²⁶, pela dramaturgia dele, e essa poesia? Às vezes me faço essa pergunta.
relação com a autoficção. E pelos
dramaturgos do México, que conheci mais a
fundo em uma viagem em 2019, como Maribel
Carrasco²⁷.

23 Vaga Carne, premiado texto de Grace Passô para o teatro, estreou em 2016 e foi adaptado para os cinemas em filme de 2020.
24 Janaina Leite é atriz, dramaturga e diretora teatral formada em letras francês-português pela Universidade de São Paulo, estudou na
Escola de Arte Dramática e no Teatro Escola Macunaíma. Desde 2001, integra o Grupo XIX de Teatro. Em seus trabalho utiliza-se do teatro
documentário e da autobiografia na formatação de sua dramaturgia.
25 Dione Carlos é dramaturga formada pela SP Escola de Teatro e orientadora do Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de
Santo André. Entre suas obras estão as peças Kaim e Bonita.
26 Sergio Blanco é dramaturgo e diretor franco-uruguaio. Seus trabalhos foram apresentados e premiados em diversos países do
continente americano e europeu. Seu trabalho explora o desenvolvimento teórico do gênero literário de auto-ficção no teatro.
27 Maribel Carrasco é dramaturga mexicana, especializada em teatro para crianças e jovens.

MALDITA | 13
DRAMATURGIAS

MALDITA
|
14
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CEGA-CABRA
Denizart Fazio

Marcus é um soldado, tem em seu braço esquerdo um pano preto amarrado em sinal de luto.
Está com um fuzil

MARCUS
Estamos em uma fileira.
Doze homens.
A posição de cada um é decidida apenas lá fora.
Ficamos em uma sala esperando, sem as armas.
Elas serão entregues quando já estivermos perfilados.
Nenhum de nós pode saber se será da sua arma que saíra o tiro.

Há um padre na sala.
Em três minutos ele sairá daqui e conversará com o futuro morto.
O padre nos pergunta se precisamos de consolo.
Antes que possamos responder qualquer coisa...
(Aqui não podemos falar)
Ele diz que há certas missões ingratas, mas Deus sabe que nossos corações são puros e não nos julgará
pela morte do irmão.
Ele diz:
“Deus não vos julgará pela morte do irmão”.
Ele continua a falar e eu vejo que o padre nos julga.
Ele não chamaria o delinquente de irmão se achasse que Deus nos perdoaria.
O padre erra duas vezes em menos de três minutos.
Não é um irmão.
É um assassino.
Não, Deus não nos perdoará.

Mesmo que...
Ninguém veio por vontade própria.
Mesmo que nos reconheçamos por trás da balaclava, ficamos em silêncio.

Ficamos em silêncio como se achássemos que há alguma cerimônia nisso tudo.


O padre nos consola antes de empunharmos as armas.
Um confessionário às avessas, eu penso.

MALDITA | 15
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Ele não para de dizer uma palavra depois da outra como se elas se puxassem numa corda imensa tenho
certeza que já se passaram três minutos ele deixa a gente constrangido pois a gente percebe esse tipo de
coisa a gente sempre percebe todo mundo percebe que ele é o único apreensivo nesta sala.

Se ele continuar falando eu sou capaz de desviar lentamente o fuzil e acertar sua boca.
Me desculpe, comandante, no momento do disparo tive uma vertigem.
Vejo ele se arrastando em busca de consolo diante dos doze encapuzados.
Já se passaram bem mais de três minutos.
Acho que não ouvi nada do que ele disse.
Ele se retira de forma solene.
Como se fosse o próprio condenado.
Mas é a maneira como andam os padres.

Ele não entende que somos profissionais.


O pelotão precisa funcionar como um relógio.
Todos atiram, mas apenas uma bala rompe o alvo vermelho na roupa do delinquente.
As outras onze são falsas.
Dizem que daí ninguém se sente culpado por matar.
Mas o cheiro da pólvora é forte e sabemos quando a morte sai das nossas mãos.
É meu terceiro fuzilamento e nenhum cheiro.

Não será hoje.


A arma que acabaram de me entregar tem bala de festim.
É possível sentir a diferença de peso.
Não pra qualquer um. Mas a gente sempre sente.
E então começo a me sentir inútil porque afinal de contas tudo, absolutamente tudo, a partir de agora é
encenação. Perfilar, esperar a ordem, empunhar, mirar o alvo e atirar a bala falsa, tentando adivinhar de
onde saiu o tiro fatal.
Eu olho para o condenado.
Ele tem uma venda simples que cobre os olhos.
Ofega nervoso enquanto o padre fala alguma coisa.
Em algum momento eles sempre começam a tremer.
Mesmo os que entram calmos. Ao ouvirem a ordem do comandante...
É como se seus ossos quebrassem todos por dentro.
Ele se contorce como um polvo que consegue fugir de um lugar muito estreito e fechado passando cada
parte do corpo espremida pelos buracos que encontra.
Ele não é um polvo.
E antes da ordem do comandante ele já não ouve mais o que o padre continua a dizer.
Deve ter a minha idade.
Fez a barba para ser morto. O rosto está bem irritado.
O vermelho fica mais forte na parte esquerda do rosto em uma cicatriz de alguma briga estúpida.
Esses malditos sempre fazem isso em algum momento da vida.
Precisam ganhar uma cicatriz ridícula.
É pequena mas forma um sulco na bochecha que me dá aflição.
MALDITA | 16
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Tem o corpo de alguém que malha e usa um macacão qualquer de condenado.


As pernas mexem nervosas e tenho a impressão que ele levantará em algum momento.
Quis morrer sentado.
A perna mexendo chega a fazer barulho.
Tento ir acompanhando o corpo dele enquanto a missa do padre em seu ouvido não para, mas meus olhos
sempre retornam à cicatriz. Aquele sulco me dá aflição. Eu volto aos pés. E a cicatriz. Aos braços. A
cicatriz. Mas que merda foi que ele fez pra receber isso?

Uma garrafa quebrada. Esses caras sempre são cortados por alguém com uma garrafa quebrada.
O Cecílio era um cara excepcional.
Não seria jamais um bandido.
Ele tem a cara do Cecílio.
Já faz tanto tempo...
Ele tinha uma cicatriz assim.
Dava aflição também.
Como é que eu aguentava aquela cicatriz?
Eu tinha uma puta aflição.
Será que a cicatriz dele cresceu como a desse sujeito?

Percebe-se que o comandante ordenou o fuzilamento porque Marcus empunha a arma e mira.

MARCUS
Que saudade.

No mesmo instante em que ouvimos um tiro muito alto, Cecílio aparece correndo e toca Marcus.
Agora são duas crianças brincando.

CECÍLIO
Peguei você.

MARCUS
Ah, não, Cecílio, assim não vale. Eu tava distraído. A gente precisa combinar antes de começar.

CECÍLIO
Vamos começar a agora então.

MARCUS
Calma. Vem cá. Espera. Deixa eu te falar uma coisa...

Cecílio se aproxima. Quando está próximo Marcus pega nele e sai correndo.

MARCUS
Peguei! Tá com você.

MALDITA | 17
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Os dois voltam a correr.

CECÍLIO
Assim também não vale. Volta aqui.

MARCUS
Vale sim. Você não me pega!

Eles correm e dão risadas. Cecílio é muito mais rápido e alcança Marcus com facilidade.
Marcus corre um pouco atrás de Cecílio, mas para.

MARCUS (ofegante)
Eu não consigo. Odeio pega-pega. Vamos brincar de outra coisa.

CECÍLIO
Mas do que?

MARCUS
Ué. Polícia e ladrão!

CECÍLIO
Eba! Eu sou o ladrão.

MARCUS (se afastando)


Então eu sou o polícia.

Cecílio corre de Marcus. Em seguida dá uma investida e toma a arma do amigo.


Correm de um lado para o outro brincando até que Cecílio empunha a alma na direção de Marcus.
Agora são adultos.

CECÍLIO
Ajoelha.

MARCUS
O que você tá fazendo?

CECÍLIO
Eu mandei ajoelhar.

MARCUS
A gente pode resolver isso de outro jeito.

CECÍLIO
Tira a roupa.
MALDITA | 18
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Marcus começa a se deitar.

CECÍLIO
Ele não demorou muito pra tirar a roupa.
Eu não precisei ameaçar tanto assim.
Ele não demorou. Mas começou a chorar.
Ele logo começou a chorar de um jeito que parecia uma criança.
Eu fiquei puto. Porra!
Eu não queria enfiar meu pau numa criança.
Eu mandei ele parar.
(para Marcus) Para, porra. Engole esse choro!
Eu disse que se continuasse assim eu daria um tiro na outra perna dele.
É verdade.
Eu já tinha atirado em uma.
Ele gritava.
Ele ainda não gritava tanto. Mas já dava pra ouvir.
O bom era que a gente tava num terreno baldio lá depois dos condomínios.
Ninguém ia ali.
Tava escuro.
Eu sabia que ele tinha grana, mas eu queria mesmo era enfiar o pau nele.
E isso era o que parecia difícil dele entender.
Eu não me incomodava com os gritos.
Eu só não queria que ele chorasse.
Ele parou de chorar e eu fui ficando com o pau duro.
Mas ele não conseguia ficar de quatro.
O filho da puta voltou a chorar.
Agora um choro com muita dor.
Eu ainda não tinha feito nada.
Só os tiros nas pernas.
E na hora que eu comecei a enfiar meu pau nele ele começou a vomitar.
Porra, vomitar não!
Porra!
Que nojo.
Aí eu dei um tiro na cabeça dele pra ele parar de se mexer um pouco porque eu queria muito enfiar meu
pau nele.

Cecílio deita em cima de Marcus, que acorda. São crianças.

MARCUS
Ei, o que você tá fazendo?

CECÍLIO
Nada.
Tô te sacaneando.
MALDITA | 19
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

MARCUS
Porra, Cecílio. Você é veado, cara?

CECÍLIO (rindo)
Vai, vamos brincar!

MARCUS
Porra, você tava em cima de mim, cara. Mas que merda.

CECÍLIO
Deixa de frescura, Marcus. Vamos brincar.

MARCUS
Sem viadagem!
E nada de correr.

CECÍLIO
Cabra-cega!

MARCUS
Ah, não.

CECÍLIO
Ah, vamos!

MARCUS
Só se for com você. Porquê da outra vez só fui eu. E depois você nem quis mais brincar.

CECÍLIO
Tá bom. Eu vou. Precisa de uma venda.

Marcus retira o pedaço de pano preto do seu braço e venda Cecílio. Cecílio tateia às escuras,
Marcus fica parado. Cecílio vai chegando bem perto e o encontra. Segura o pau de Marcus.

CECÍLIO (sussurrando)
Achei.

Marcus fica imóvel, a princípio acha estranho, mas não consegue reagir, começa a gostar. Está muito
nervoso. Pega a cabeça de Cecílio e se aproxima pra beijá-lo, quando está muito próximo da boca, faz um
movimento relutante, desvia a cabeça e de um jeito desajeitado beija o olho de Cecílio, ainda vendado.

CECÍLIO (rindo)
Não é aí.

MALDITA | 20
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Marcus corre. Ofega e ri.


Quando Cecílio vai se aproximando ele se desloca lentamente para outro lugar.

CECÍLIO
Para de se mexer Marcus, eu estou ouvindo sua risada.
Você tá ofegante.

Enquanto Cecílio vai tentando encontra-lo. Progressivamente tornam-se adultos.


Marcus retoma seu posto inicial, empunha sua arma.
Cecílio anda mais um pouco até parar de frente para o público, ainda vendado. Cecílio urra de dor.

CECÍLIO (gritando)
Meu olho!
Meu olho.
Meu olho,
Meu olho...

MARCUS
Eu mirei no olho enquanto pensava na cicatriz esquisita do Cecílio.
Eu tinha uma aflição.
Eu não queria acertar o olho daquele infeliz.
Eu tinha certeza que minha arma não estava com a bala de verdade.
Ele se parece tanto com o Cecílio.
Que aflição!
Eu acertei o olho do infeliz.
Porra, o olho.
Mas que merda.
Os outros onze me olham indignados.
E eu me sinto culpado ao mesmo tempo em que penso:
Porra, é apenas um bandido de merda.
Eu desvio o olhar.
Ele não para de gritar.
O padre fala mais tantas coisas que absolutamente ninguém escuta.
“Me desculpe. Me desculpe, por favor, comandante. Isso não vai mais acontecer”.
Eu falei, e eu sei que a gente não podia falar de jeito nenhum.
Mas era uma concessão, eu atirei no olho do infeliz.
Porra, eu atirei no olho do cara.
Me desculpe, comandante.
Aqui não se pode falar, cala a sua boca.
Foi o que ele me disse.
E eu continuo a dizer algo que não sei.
Mas o comandante não me ouve.
Esse infeliz grita muito alto.
O comandante me deixa falando sozinho.
MALDITA | 21
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

Marcus corre. Ofega e ri.


Anda rápido enquanto empunha seu fuzil e acerta rente à cabeça do bandido.
O olho para de gritar.
O sangue escorre.
Entra no sulco da cicatriz na pele.
Parece um barco.
Um barco afundando.
Eu nunca tinha pensado que parecia um barco a do Cecílio.
Acho que agora eu tenho menos aflição.
Eu tenho menos aflição de um barco afundando.
Porra, acertei o olho dele.
Que merda.
O olho!
Um barco, padre, um barco.
Eu peço perdão.
Me ajuda, padre.

Escuridão. As luzes se acendem vagarosamente. No palco há apenas Cecílio, vendado,


procurando por Marcus, às vezes acha que o encontrou e tenta pegar algo no ar.

CECÍLIO
Ei.
Cadê você?
Para de se mexer.
Eu escuto cada um dos seus passos.
Ó.
Você está indo pra lá agora.
Mudou.
Você faz muito barulho.
Faz muito barulho por nada.
Você tá ofegante.
Cadê você, hein.
Não vale ficar se mexendo assim.
Vem cá, pra eu te achar de novo...

Luzes diminuem enquanto ele continua a tatear.


Escuridão.

Denizart Fazio é dramaturgo, poeta, diretor e educador. Escreveu as peças Wolfgang (2020), Infinito Ontem (2019),
Babilônia 3310 (2019) e Ar teso (2016). Em 2016 integrou o “Núcleo de dramaturgia Sesi” de São Paulo; em 2019 foi MALDITA | 22

contemplado pelo Proac para escrita e publicação de Babilônia 3310; em 2020 dirigiu Wolfgang. @denizartfazio
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

PALESTRA PARA
DESMAGNETIZAR A DESGRAÇA
Filipe P.
Um auditório. Um palestrante motivacional toma um copo de água antes de começar seu discurso, como se
as pessoas não estivessem ali. Ele coloca um imã em um suporte acima de um bico de Bunse, e liga um fogo
brando para aquecer o magneto. Então, ela olha para sua plateia e sorri. Depois de um tempo bastante
constrangedor para quem assiste, começa.

PALESTRANTE
Sejam bem vindos, todos e todas. Estamos aqui para pensar o momento em que vivemos, esta época de
colapso – colapso financeiro, imunológico, emocional e até institucional. Colapso global. E como, apesar de
tudo, precisamos aprender a pensar positivamente. Pois apenas isso poderá nos salvar de uma catástrofe.

Pensar positivamente.

O problema é que – vamos falar a verdade – as pessoas gostam de um apocalipse. De um fim do mundo.
De uma bomba atómica, pandemia, um meteoro passando perto do planeta, quem sabe dessa vez ele
acerta? Admita: você, no fundo, sempre quis algo assim! É natural. Fomos todos programados para pensar
assim pela sociedade contemporânea.

Acham que estou exagerando?

Vamos ver. Respondam: quantos de vocês já desejaram estar doentes para poder faltar em um
compromisso? Sejam sinceros! Deixa eu ver umas mãos levantadas. (ele mesmo levanta a mão, e contabiliza
quantos mais levantaram) Bom, talvez alguns de vocês nunca desejaram diretamente isso, mas quantos
ficaram aliviados ao chegar num médico e descobrir que receberiam atestado médico para não sair da
cama? Ou que o alagamento na sua rua te impede de sair de casa? Ou que você vai ser dispensando do dia
de trabalho devido a uma queda de energia no quarteirão todo?

Tudo que acontece no micro se reflete no macro. O que estamos prestes a viver no mundo não é nada além
de uma manifestação do que a humanidade, como coletivo, tem desejado.

Não preciso falar pra vocês do poder do pensamento positivo. Vários livros comprovam científicamente sua
eficácia. O que frequentemente esquecemos é do poder do pensamento negativo. Imagine a seguinte
situação. Uma pessoa vê algo ruim prestes a acontecer. Como não conseguir uma vaga de emprego. Ou
falhar em um investimento. Ou sofrer um acidente. Quando ela mentaliza isso, o que acontece na maioria
dos casos? Exatamente o que ela pensou. Porque ela pensou negativamente. Mas por que essa pessoa tem
esses pensamentos, se eles são tão destrutivos? Porque isso confirma sua visão de mundo negativa.

MALDITA | 23
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

É mais confortável. Faz com que essa pessoa continue na zona de conforto. Não evolua. Secretamente,
inconscientemente, essa pessoa preferiria a própria morte a ter seu pessimismo contrariado.
Agora, se uma pessoa só tem esse poder negativo de atração, imagine um grupo de pessoas.

Um bairro.
Uma nação.
O planeta todo.

Palestrante volta sua atenção para o imã aquecendo na chama.


Troca de lados para que o outro seja esquentado.

PALESTRANTE
Este é o grande desafio do homem contemporâneo. Precisamos parar de atrair tanta negatividade, em
especial neste momento em que a existência humana está em risco. Como podemos fazer isso? Com o poder
do pensamento positivo, certo?

Eu peço pra vocês agora repetirem comigo as palavras: “eu penso positivamente, eu reconfiguro a minha
mente”. Três vezes, porque o poder da sugestão trabalha na repetição, então, vamos lá.

Repete, esperando que o público faça isso.

PALESTRANTE
Conseguem sentir a mudança? Conseguem?

Caso consigam, eu preciso dizer uma coisa. Vocês estão iludidos. O poder do pensamento não funciona
assim. Vocês foram enganados por todos aqueles charlatães que fazem parecer que o pensamento positivo
se atinge com uma frase de efeito e uns gritos de guerra.

Calma, não se desesperem. Tudo que vocês precisam fazer a aprender a não atrair a negatividade. E como
podemos fazer isso?

Saca outro imã do seu bolso, e passa ele por clipes de papel, que grudam.

PALESTRANTE
Vejam só, é puramente uma questão de magnetismo, um elemento básico da física. Eu vou atrair metal ao
passar com um imã por perto. Da mesma maneira, eu vou atrair pensamentos negativos ao passar perto
deles.
Bom, mas então, o que a gente pode fazer pra escapar disso?
É simples. Precisamos nos desmagnetizar para a desgraça.
Vejam esse caso aqui.

Pega o imã que foi desmagetizado pela chama, que não atrai os clipes.

MALDITA | 24
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

PALESTRANTE
Através de uma preparação, de uma disciplina – bastante rigorosa e científica, como podem ver – este
imã não mais atrai o metal. Ele foi desmagnetizado. Da mesma maneira, através da disciplina que teremos
aqui, vocês aprenderão a não atrair a negatividade para vocês.

Claro, lembrem-se: este é um curso rápido de um dia. Não poderia ser difetente, afinal, estamos correndo
contra o tempo. Não podemos ser nada menos que extremamente eficazes, custe o que custar. Por isso, eu
entrego a vocês uma maneira de acelerar o nosso processo de desmagnetização.

Palestrante pega um galão de álcool e derrama sobre o palco.


Do lado do público, surgem assistentes, que derramam galões de álcool ao lado
daqueles que estão assistindo.
Todo o local está encharcado de álcool.

PALESTRANTE
É uma questão de ciência, o elemento mais básico da física. Um procedimento para desmagnetizar uma
superfície magnética é submetê-la a fortes ondas de calor. Para nos purificarmos do negativismo de
maneira rápida e eficiente, é isso que faremos aqui e agora.

Palestrante pega um fósforo e acende.

PALESTRANTE
Não se preocupem. Pensem positivamente.

Palestrante derruba o fósforo aceso no chão.

Filipe Pereira (que assina seus textos como Filipe P.) é ator, palhaço, professor e sempre que
possível dramaturgo. Também tem umas recaídas na poesia de vez em quando. É graduado em Letras
MALDITA | 25
em 2007 e especializado em Literatura em 2012 pela PUC-SP, e formado pela SP Escola de Teatro em
Humor (2016) e Dramaturgia (2014). Atualmente atua como ator no Grupo Pandora de Teatro.
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

VULNERÁVEL
Lucas Vitorino Cena de um crime. Isolada.
No chão ao centro o desenho da silhueta de um corpo.
Envolta, de pé, observando, estão quatro homens de terno e gravata.
Vestem preto, usam chapéu e guarda-chuvas.

HOMEM 1 HOMEM 1
Tão bela Uma pena

HOMEM 2 HOMEM 2
Tão nova Tão jovem

HOMEM 3 HOMEM 3
Tão pura Tão carinhosa.

HOMEM 4 HOMEM 4
Me pergunto por que? Tão sexy

HOMEM 1 HOMEM 1
Uma pena Me disseram que foi overdose.

HOMEM 2 HOMEM 2
Sentirei sua falta Saiu como infecção alimentar

HOMEM 3 HOMEM 3
Ontem mesmo estava... Foi socorrida, mas na ambulância...

HOMEM 4 HOMEM 4
Morta. Soube que se enforcou no ventilador de teto.

HOMEM 1 HOMEM 1
Provavelmente foi encontrada às duas da manhã Vivia uma crise profunda

HOMEM 2 HOMEM 2
Não resistiu teve uma parada às onze Se afogou.

HOMEM 3 HOMEM 3
Saltou do décimo ao meio dia Acidente fatal.

HOMEM 4 HOMEM 4
Levou duas semanas para encontrarem o corpo já Isso ia acontecer um dia
em estado de decomposição
MALDITA | 26
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

HOMEM 1 HOMEM 4
Logo agora Faremos tudo para que a verdade venha a tona

HOMEM 2 HOMEM 1
Estava melhorando tanto Não descansarei

HOMEM 3 HOMEM 2
Pagou suas dívidas. Que a justiça seja feita

HOMEM 4 HOMEM 3
Tinha conseguido um ótimo cliente pra ela Toda a nação merece saber

HOMEM 1 HOMEM 4
Preciso de alguém com o mesmo perfil. Aos criminosos suas sentenças

HOMEM 2 HOMEM 1
Fomos... Intransigentes demais? Todos pagarão pelos seus crimes

HOMEM 3 HOMEM 2
Colocaria em risco o nosso futuro Exatamente

HOMEM 4 HOMEM 3
Devia ter tomado mais cuidado Perfeita colocação

HOMEM 1 HOMEM 4
Uma fatalidade Não poderia ser mais preciso

HOMEM 2 HOMEM 1
Uma perda enorme Muito me admira vossas convicções

HOMEM 3 HOMEM 2
Como é implacável o destino Vossas colocações

HOMEM 4 HOMEM 3
A vida continua Vossas compaixões

HOMEM 1 HOMEM 4
Que os assassinos paguem por isso Vossas mais sinceras palavras

HOMEM 2 Lentamente se afastam um do outro, este


Algo assim não passa impune dialogo nunca existiu. Saem.

HOMEM 3
As investigações revelarão os culpados

Lucas Vitorino é diretor, dramaturgo e professor. Integrante do Grupo Pandora de Teatro, morador do bairro
de Perus e compõe a equipe gestora da Ocupação Artística Canhoba. Formado em Direção pela SP Escola de MALDITA | 27

Teatro, licenciado em Arte-Teatro pela UNESP e participou da 11ª Turma do Núcleo de Dramaturgia SESI-SP.
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

A TRAGÉDIA DO BARBEIRO
Eliakim Ferreira Oliveira

— Carminha! Ó, Caminha! Mas por que você fez isso comigo?

—... Joã... — interrompida.

— Eu comprei uma cadeira no Largo da Batata, era para nós.

— ... Meu am... — interrompida.

— Com o dinheiro que eu conseguisse cortando as barbas, ia abrir uma caderneta de poupança para você.

— Descul... — interrompida.

— Mas aí chegou o fevereiro. Por que ser porta-bandeira, Carminha, por quê?

— Me perdo... — interrompida.

— Eu já tinha comprado a aliança. Você me traiu com o rei momo... Com o rei momo, Carminha!

— Não, João, ele era mestre-sala.

— Não importa o que ele era, Carminha. Eu paguei mil cruzeiros na sua linha de telefone. Carminha, quem
tem telefone é rico!

— Jão, eu tava bêba... — interrompida.

— Aquela romiseta amarela, lembra? Eu já tinha dado a entrada. Era pra você.

— Foi só um beijo, Jão!

— Um beijo, Carminha, foi o que Judas deu em Jesus, e você sabe no que deu!

— O que uma coisa tem a ver... — interrompida.

— Carminha, sirigaita!

— Assim você já está me ofen... — interrompida.

MALDITA | 28
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

— O que o rei momo tem que eu não tenho?

— Mestre-sala!

— Você sabe que eu não gosto de samba. Mesmo assim não me importei de você ser a porta-bandeira. Mal
sabia eu que você ia dormir com metade da escola de samba!

— Jão! Foi só um beijo no mestre-sa... — interrompida.

— E se eu não descobrisse? Eu teria que criar um filho que não é meu. — Jão, você está doido? — Pobre
barbeiro, com uma paupérrima caderneta de poupança. Eu teria que vender a romiseta e a sua linha de
telefone.

— Você está exageran...

— Ai de mim! Por que não posso morrer?

— Jão, para com isso!

— Ai de mim! Sofro, desventurada, sofro, e não posso conter os meus gritos de dor.

— O quê?

— Ai de mim! Ai de mim! Desgraçada que sou!

— Jão, isso é Medeia, você está passando dos limites. Foi só um beijo!

— Eu não viria a assassinar meu pai nem seria culpado como amante da criatura que me pôs no mundo.

— Jão, que drama! O mestre-sala é casado. O barbeiro pega uma faca. Corta os próprios olhos.

— Deus do céu, Jão, o que você está fazendo?

— Carminha, olho arregalado.

— Perdoai, senhor; causei-vos grande ofensa.

— Jão, eu falei para você não entrar naquela companhia de teatro! Era melhor ter ido para a escola de
samba. Você enlouqueceu.

— Ai de mim!

Eliakim Ferreira Oliveira é escritor e pesquisador na área de filosofia. Publicou Polióptico (poesia, Ed.
Córrego) e vai publicar Uma mesa de tamanho normal (contos, Ed. Córrego). Administra o blog Eliakim MALDITA | 29

Ferreira Oliveira Textos.


EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

MONÓLOGO COM MÃE E FILHO


Ismar Tirelli Neto
(Ao iniciar-se o mundo, um tipo um bocado incaracterístico encontra-se sentado numa cadeira igualmente
incaracterístico. Um mundo, em suma, incaracterístico, assinalado apenas pelas luzes, pela contingência de
ser um ponto para o qual convergem alguns olhares).

RAPAZ
Visiono da seguinte maneira. Estamos sentados numa sala atravancada de cacarecos... eles estão sentados
em extremos opostos de uma sala, um cômodo... entulhado de... objetos memoriosos. A impressão que temos
é de que vivem num cinzeiro. A impressão que temos é de que vivem num antiquário. A impressão que
temos... não é de completa imobilidade. Podendo-se caracterizar este caráter de cinzeiro da seguinte
maneira: sobre a imobilidade destas duas figuras, cada qual posicionada a um canto do cômodo, chovem
cinzas.

(Chuva de papel picado. O rapaz não reage).

RAPAZ
Não é o caso. Manteremos à parte toda e qualquer canção. Canções haveria. Canções que poderíamos
citar, cantar. Agora. Um sem-número de canções. Serão mantidas em seus zoos, de onde jamais deveriam
ter saído para começo de conversa. Com algum raiva, ele olha para cima e berra: “SEM CHANCHADA.
NADA DE CHANCHADA”. E depois... penso que vivem nos fundos de um antiquário. É coisa mais lógica.
Um único cômodo. Uma quitinete. Certa feita, ela quis colocar um biombo que pelo menos separasse a
cozinha do... resto. Não queria acordar todos os dias e imediatamente dar de cara com a louça encardida
da noite anterior.

(Chovem cinzas).

RAPAZ
Ah, sim. Bom, nós chamamos por isto em algum momento. Tinha me esquecido. Me esquecerei de muitas
coisas ao longo desta comunicação. Pelo menos é o que pretendo. Voltando. A louça. Mas não é ela quem a
lava. É o rapaz. Já podemos chamá-lo de filho. É como ele se refere a si próprio, pelo menos. FILHO.
Palavra boa e durável. Conhecemos casos em que esta palavra durou mais de oitenta anos. Um vizinho
deles, por exemplo. Filho também. Há uns setenta anos, talvez mais. A mãe, viva, surda como uma porta,
surda como Deus, costuma postar-se sob a janela da “área de serviço” de nossos protagonistas e gritar
que eles fedem. Que a casa, empestada de cigarro, mofo, secreções as mais vis... que a casa... mesmo
sendo “de fundos”, praticamente incomunicante com relação às outras unidades do edifício... que a casa
fede. São uma vergonha para os outros condôminos.

MALDITA | 30
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

(pausa em que o Rapaz olha para cima)

RAPAZ
SEM CHANCHADA.Disse, repito. Sem chanchada. Sem canção. Uma que outra, talvez, ela... gorgulha. Para
imenso aborrecimento do Filho, cujos devaneios são interrompidos pela voz da mãe acabando. A voz da
mãe acabando. Ela mal consegue se fazer ouvir agora. O que quer que seja que a está devorando por
dentro começou seu trabalho pela voz. Pena. Ela costumava cantar em transatlânticos. Ele tinha este
antiquário, em cujos fundos vivia em relativa paz e tranquilidade até que... bom, isto não é uma narrativa.
Ela não culmina. Há apenas arredores. Interrupções. Mas nenhuma linha-mestra. Nada que sirva de
pilastra. Eles vivem juntos, ele devaneia, é um inútil. Sua mãe está sendo devorada viva por alguma... coisa.
“Minha irmã”, diz ela, “o corte no peritônio... o processo... as despesas com advogados”. Ela fala em causas
perdidas. Na ruína de uma “família”. Ela lembra a irmã que um dia deu entrada num hospital para tirar
uma... uma verruga ou coisa parecida... e nunca mais saiu. Ela decide abandonar a vida viajora aos
primeiros sinais de que há algo errado. Instala-se em casa de Filho. Filho não negará pouso à mãe, isto
seria uma obscenidade.

(Ao enunciar a palavra “obscenidade”, Rapaz começa a se despir sem nenhuma real motivação).

RAPAZ
O que muda? O que muda, afinal? Ela própria vivia dizendo... já lavei muito esse... esse... bom, destas
vulgaridades ele nunca conseguiu se defender. Certa feita, durante uma festa, talvez tenha sido no Natal,
Mãe chamou Filho – ainda pequeno – ao centro da sala. “Mágica”, anunciou aos presentes. Filho postou-se
imóvel diante de uma ferradura de dez, quinze desconhecidos. Mãe debruçou-se sobre Filho, aproximou
seus lábios ao ouvido do Filho, meteu-lhe a língua por dentro...

(Despido, Rapaz torna a sentar, com a mesma austeridade de sempre).

RAPAZ
... o que acabou por ocasionar, em Filho, ereção um bocado perceptível. Mãe acolhe os aplausos da
assistência, sorrindo daqui até Deus. Toma a mão de Filho, faz menção para que ele também se... dobre.
Agradecido. Depois ela esvoaça até a eletrola e põe um disco da Eydie Gorme e o Trio Los Panchos para
tocar...

(pausa)

RAPAZ
NADA DE MÚSICA. De volta, de volta. Às vezes elas têm fome... conseguem escapar por entre as grades.
Que sei eu? A cena presente... o silêncio sepulcral... o silêncio sarcofágico deste cômodo. De quando em
quando violado pelos gritos de Dona Neném, os gritos de que eles fedem. É de manhã. Agora. Eles estão
em extremos opostos do cômodo. Mãe reúne os fiapos de voz que restam-lhe ainda. Há muito ela examina a
letra miúda à lombada de uma caixa vazia de suco. O rapaz, em seu canto... lê... dá polimento a alguma
jarra de prata... fuma... fita a distância com expressão agravada. Fita a nós. Mãe reúne os fiapos de voz
que restam-lhe ainda, a voz e o fôlego e o cheiro e as próteses dentais. Saca do telefone, liga para o
número de Atendimento ao Consumidor. Não para reclamar. Para parabenizar.
MALDITA | 31
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

O suco estava muito gostoso. Obrigado. Depois pergunta, coquete – vocês não devem receber muitas
ligações deste tipo, não é? A funcionária que a atende confirma, mais para constrangida, que estão mais
habituados a gente reclamando. “Pois eu”, ela diz, rouca, rouca e arfante, “só tenho a agradecer”. Desliga.
Desliga com força. E emburra, fecha a cara. Ela batizou o suco? Tomou já os remédios? Não os remédios
que ela deveria tomar. Nunca. Os remédios, os remédios... as bolinhas. Também Rapaz passa o dia inteiro
tomando bolinhas. Uma voz forte, trovejante, que costumava fazer tremer os cristais mais delicados da
loja... mas que também... também está acabando. Parece.

(pausa)

RAPAZ
Eu não ligo a mínima. Pode ficar andando pelado pela casa o quanto você quiser. Você esquece. Quantas
vezes já não lavei esse pinto.

(Rapaz se ergue e mostra o pênis à plateia, mas sempre com o mesmo rosto impassível. Torna a sentar).

RAPAZ
Eu nunca pude me defender dessas vulgaridades. Mãe passa a vida inteira cantando em transatlânticos.
No instante em que percebe que algo... algo a está devorando... retoma contato com Filho, com quem não
troca palavra há aproximadamente dez anos. Um filho não nega pouso à mãe. Seria uma obscenidade.
Tenho direitos sobre este pinto. Mais até do que você. Se não os exerço, é por uma questão de educação.
Não sobra muita coisa. O ânus, talvez. Resta-me o ânus, ele pensa, enquanto a mãe cruza os braços no
extremo oposto do cômodo. Sua expressão facial transformou-se completamente desde o término da
ligação. Amargou. Visivelmente. Rapaz não tem expressão. Rapaz não faz expressão. Ele poderia matar
alguém com aquela voz... estrondosa, uma voz estrondosa, um fenômeno. Bom dia, em que posso ajudá-lo?
Na esteira de toda e qualquer saudação, os cristais tilintam. Quase que subliminarmente. Resta-me o cu,
ele pensa. Nenhum problema com o cu. Nenhuma restrição moral. Nenhum impeditivo. Mas é um pouco
triste. Um pouco triste quando tudo que nos sobra é o cu.

(Rapaz se ergue e faz menção de virar-se para a plateia, mas desiste no meio. Senta-se)

RAPAZ
Deixemos de vulgaridades. Eis o que nosso convívio tem feito comigo. Sua presença... sua... murchidão. Sua
murchidão por toda parte. Sua decrepitude. Cedo minha cama. Tenho dormido numa espécie de esteira
improvisada aqui, no canto oposto, NO CANTO OPOSTO. Filho tenta fortificar sua própria identidade
mediante expedientes cada vez mais absurdos. Aprendeu com ela a roncar dessa maneira. Tinham de
instalá-la sempre nas cabines mais afastadas. Ele nunca se casou. Ele se casou com o triquetraque. Nenhum
dos dois compreende como Dona Josefina e seu filho de oitenta anos conseguem passar tanto tempo em
silêncio – silêncio rompido apenas de quando em quando por Dona Josefina, quando esta vai gritar seus
impropérios sob a janela de nossa área de serviço. Meu basculante de vida... De resto, não se ouve nada lá
dentro, nunca. São como fantasmas. E como fantasmas, irrompem de vez em quando, sem aviso, aos
berros, fazendo terríveis acusações e exigências. Sim, fantasmas. Exatamente como fantasmas. As mesmas
oscilações dos fantasmas. E é para isto que estamos caminhando.

MALDITA | 32
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

(pausa)

RAPAZ
A condição de fantasmas. É para isso que eles estão “caminhando”, imóveis que estão. Imóveis, imóveis. É
assim que os visiono também. De vozes cada vez menores, o porte minguando, a fumaça pairando sobre
tudo. As caixas de suco pela metade, as toalhinhas e tapetinhos, os entalhes da Santa Ceia, os talheres
enferrujados. NADA DE CHANCHADA. NADA DE SORDIDEZ. A morte digna.

(pausa, Rapaz encara com mais intencionalidade, alguma raiva reprimida)

RAPAZ
A morte digna. Nenhum de nós a terá. Ela nunca se jogou da amurada. Ele nunca engoliu um mata-borrão.
Teriam sido mortes dignas. Não. Para eles, não. As vozes vão minguando, minguando. Cada vez mais
roucas. Cada vez mais desfeitas. As vozes e os corpos. Ainda de cara amarrada, ela fala... de seu canto da
sala... do cômodo... e com esforço... obsceno... EU – ESTOU – MORRENDO.

(pausa)

RAPAZ
Eu também.

(pausa)

RAPAZ
Quem vai primeiro?

Ismar Tirelli Neto (Rio de Janeiro, 1985) é escritor. Autor de "Os Postais Catastróficos", "A Mais ou Menos
Completa Ausência", "Os Ilhados", entre outros. Atualmente vive em São Paulo, onde ministra oficinas de MALDITA | 33

escrita criativa. Seu último livro, "adão aparas", pode ser acessado pelo site: ismartirellineto.com
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

LUNETA
Júlia Zocchi
Cena I CARMEN
Deixa eu ver. Aquele sofá ali?
ALBERTO
Bom dia ALBERTO
O loiro entrou num carro e pegou aquelas travas
CARMEN de segurança que se põem na direção
Bom dia, dormiu bem?
CARMEN
ALBERTO Macaco?
Não dormi muito
ALBERTO
CARMEN Não, macaco é pra pneu. Trava de segurança
Ainda to com sono
CARMEN
ALBERTO Ah, sei
Tá tendo confusão aqui na rua
ALBERTO
CARMEN Ele saiu com aquilo na mão dizendo: "eu vou
Que aconteceu? acabar com esse nego"

ALBERTO CARMEN
Tem um morador de rua morando num sofá Que coisa horrível
encostado no nosso prédio, aqui na rua lateral. Tá
debaixo das janelas dos quartos. ALBERTO
Aquela moça do prédio da frente não para de
CARMEN falar absurdos, olha: "tem que matar mesmo"
Tá frio.
CARMEN
ALBERTO Eu preparei um mingau ontem à noite pra
Ele começou a bater nas pessoas que passam na tomarmos de café da manhã. Você quer?
rua
ALBERTO
CARMEN Olha, o guarda de trânsito tá tirando o sofá. Eles
Quer café? não fazem questão de tomar uma atitude
humanizada.
ALBERTO
A confusão começou mesmo quando ele foi pra CARMEN
cima de um loirinho meio ruivo Ta todo mundo olhando...

MALDITA | 34
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

ALBERTO CARMEN
Aquela mulher continua falando, olha. Pobre de Acho que ela não gosta de mim
direita é foda.
ALBERTO
CARMEN Bobagem… Estamos juntos faz 10 anos, não tem
Cadê ele? mais o que gostar ou não gostar

ALBERTO CARMEN
Quem? Como assim?

CARMEN ALBERTO
O morador de rua Uma hora a gente acostuma. Não fica deixando de
gostar da mesma pessoa por anos
ALBERTO
Depois que o loiro ameaçou ele com a trava de CARMEN
segurança, ele saiu correndo. Então você admite?

CARMEN ALBERTO
Vem, vamos. O café vai esfriar. O quê?

CARMEN
Cena II Que ela nunca gostou de mim

CARMEN ALBERTO
Sua mãe ligou Deixa disso, Carmen… Você também nunca foi
muito fã dela
ALBERTO
É? CARMEN
Alberto, fã é, sei lá eu gostar de Smiths. Com sua
CARMEN mãe sou no máximo simpatizante
Uhum
ALBERTO
ALBERTO Então
Disse o quê?
CARMEN
CARMEN Então o quê?
Pra você ligar pra ela
ALBERTO
ALBERTO Vocês estão na mesma
Mas não disse nada? Nem o assunto?
CARMEN
CARMEN Você vai ligar?
Só disse “Fala pro Júnior ligar pra mim”
ALBERTO
ALBERTO ….
Eu odeio quando ela me chama assim

MALDITA | 35
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CARMEN CARMEN
Hein? Alguém nessa família precisa reagir!

ALBERTO ALBERTO
…. Mas mamãe, mamãe, o que é um botijão de gás
perto de anos de casamento? Não…. tá tudo bem,
CARMEN não foi em você. Acho que a senhora está
Responde enganada, não foi a intenção dele. Eu conheço o
papai, eu sei como é, ele não seria capaz de fazer
ALBERTO nada
Que é, hein? Deixa eu ler o jornal em paz
CARMEN
CARMEN Provavelmente foi esse o problema
Perguntei se você vai ligar
ALBERTO
ALBERTO Por que alguém tacaria um botijão de gás em
Pra quem? você? Bom mas, se não foi o papai que tacou,
porque você tá brava com ele? Hummmm, iiiiiih,
CARMEN hummm
Pra sua mãe, oras!!
CARMEM
ALBERTO Eu sabia que um dia seu pai ia pagar com aquela
Ai, que te importa, hein?? língua. Mas não sabia que seria a gás, muito
menos aéreo
CARMEN
Nada… Fiquei curiosa ALBERTO (a Carmen)
O botijão era pra ele, mas aí ele desviou
ALBERTO
Quando sua mãe liga pra contar da vida das suas Cena III
tias eu não fico curioso
ALBERTO
CARMEN (preocupada) Bom dia
Você acha que é isso? É pra isso que sua mãe
ligou? CARMEN
Bom dia, dormiu bem?
ALBERTO
Eu sei lá, Carmen, me deixa ler em paz ALBERTO
Não dormi muito
CARMEN (ao telefone)
Alô? Ah - a Alberto - Falando no diabo… CARMEN
Ainda to com sono
ALBERTO (ao telefone)
Oi. Oi, tá me ouvindo? Fala. Você me ligou? Hum. ALBERTO
É, eu ia te ligar, mamãe, mas eu acabei de chegar. Tá tendo confusão aqui na rua
To de sapato ainda. Fala. O que foi? Como? Mas o
que aconteceu? (a Carmen) Ela e papai não estão CARMEN
mais juntos Que aconteceu?
MALDITA | 36
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

ALBERTO ALBERTO
Tem um cara que vende esfihas numa barraca A vizinha da frente ta falando "tem que expulsar
aqui na rua do lado. mesmo. O país ta sendo invadido por homens-
bombas”
CARMEN
Embaixo da janela dos quartos? CARMEN (corrigindo)
Homens-bomba
ALBERTO
Isso. Ele ta sendo humilhado por outro cara ALBERTO
Então, que foi que eu disse?
CARMEN
Por quê? CARMEN
Homens-bombas
ALBERTO
Porque ele é sírio ALBERTO
Que diferença faz?
CARMEN
Ai, to com frio CARMEN
Isso é plural dos substantivos compostos.
ALBERTO
O cara tava ameaçando o sírio com um pedaço de ALBERTO
pau em cada mão Isso aí

CARMEN CARMEN
Quer café? Que absurdo

ALBERTO ALBERTO
Tava dizendo coisas absurdas do tipo "sai do meu O quê?
país"
CARMEN
CARMEN Ela dizer isso
Deixa eu ver. Aquele cara ali embaixo?
ALBERTO
ALBERTO Que o país tá sendo invadido?
Tá pedindo pra que o prefeito tome uma atitude
pra barrar a entrada de estrangeiros CARMEN
Eu tava dizendo do plural dos substantivos
CARMEN compostos
Mas quem cuida disso não é a Polícia Federal?
ALBERTO
ALBERTO Ah...
Sei lá, o cara é doido
CARMEN
CARMEN E cadê ele?
Eu preparei um mingau ontem à noite pra
tomarmos de café da manhã. Você quer?

MALDITA | 37
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

ALBERTO CARMEN
Quem? E pra você tudo é uma tragédia. Se lembra
daquela vez em que nossa gasolina acabou no
CARMEN meio da estrada de volta da praia às quatro horas
O sírio da manhã e você ficou com medo de sermos
sequestrados, estuprados e mutilados?
ALBERTO
Depois que o cara pegou o segundo pedaço de ALBERTO
pau, ele saiu correndo com o carrinho de esfihas Tava escuro e nosso carro parou no meio da
estrada, pelo amor de deus!
CARMEN
Vem, vamos. O café vai esfriar. CARMEN
É tudo uma questão de ponto de vista, eu achei
Cena IV normal

ALBERTO ALBERTO
Carmen… Carmen!! Meu primo tinha morrido em um assalto à mão
armada a luz do dia. LUZ DO DIA!
CARMEN
Diga CARMEN
Então, são situações completamente diferentes
ALBERTO
Por um acaso você sabe por que o síndico mandou ALBERTO
uma carta pra gente referente à sujeira do Inacreditável, inacreditável
condomínio?
CARMEN
CARMEN Você por um acaso já saiu de casa sem ter o
E por que é que eu saberia? Quem fica fumando mínimo medo de morrer?
na janela é você
Cena V
ALBERTO
Não se faça de desentendida. Você sacode todos ALBERTO
os tapetes da casa na janela que eu sei Bom dia

CARMEN CARMEN
Poeirinha à toa, não deve ser por isso Bom dia, dormiu bem??

ALBERTO ALBERTO
Agora devemos estar com fama de porcos Mais ou menos

CARMEN CARMEN
Que exagero… To morrendo de sono

ALBERTO ALBERTO
Pra você tudo é exagero Ta tendo confusão aqui na rua

MALDITA | 38
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CARMEN ALBERTO
Acabou o café? Não bastasse matar a garota, agora os filhos da
puta tão reprimindo todo mundo
ALBERTO
Não, tem na dispensa CARMEN
Será que vai estar trânsito?
CARMEN
Ah, achei. Que confusão é essa? ALBERTO
Tão jogando bomba de gás!!
ALBERTO
Tá rolando uma manifestação aqui embaixo CARMEN
Fecha a janela se não vai entrar tudo aqui
CARMEN
Manifestação? ALBERTO
Você passou o café?
ALBERTO
Uma menina foi assassinada na rua de baixo. Tão
dizendo que foi a Polícia Cena VI

CARMEN ALBERTO
Você vai querer o café ou não? Bom dia

ALBERTO CARMEN
A Polícia matou uma menina na rua de baixo Bom dia, dormiu bem?

CARMEN ALBERTO
E ai tão fazendo manifestação? Rapaz… a coisa tá feia

ALBERTO CARMEN
Isso Que aconteceu?

CARMEN ALBERTO
Café? Você dormiu em um lugar e acordou em outro

ALBERTO CARMEN
Sim Como assim?

CARMEN ALBERTO
To atrasada Ontem você dormiu e sabia que o país estaria aqui
quando acordasse
ALBERTO
Olha, vem ver que absurdo CARMEN
Ai, cansei, você é todo cheio de história, vou
CARMEN passar café
O quê?

MALDITA | 39
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

ALBERTO CARMEN
O país foi embora Como as coisas chegaram a esse ponto?

CARMEN ALBERTO
Mas como assim? Chocado…

ALBERTO CARMEN
Acabou, não tem mais. Se você sair na rua vai ver Vamos ter que ser exilados..

CARMEN ALBERTO
Tem o que? Exilados?

ALBERTO CARMEN
Tomaram tudo É ué, gente de oposição que é mandado pra fora

CARMEN ALBERTO
Não é possível Isso é pacote da CVC, Carmen

ALBERTO CARMEN
Só tem ódio lá na rua. Ó, tá ouvindo?? Tão Para com isso, eu vi um aplicativo de exílio, a
brigando de novo lá embaixo galera da esquerda pensa em tudo

CARMEN ALBERTO
Eu já falei que a gente podia se mudar daqui Gente de oposição é morta

ALBERTO CARMEN
O bairro é bom, para com isso… Por isso que a gente tem que se exilar antes de
morrer
CARMEN
Toda hora é gritaria. Os gritos são muito altos, ALBERTO
não me deixam dormir Pelo amor...

ALBERTO CARMEN
Mas não tem bairro. Você não entendeu? O país Meu sonho recitar Gonçalves Dias… Em Paris…
acabou Emocionante

CARMEN Cena VII


Tomaram tudo mesmo?
ALBERTO
ALBERTO Bom dia
Tudo tudo
CARMEN
CARMEN Bom dia, dormiu bem?
Não sobrou nada?
ALBERTO
ALBERTO Fala baixo
Agora é silêncio e medo
MALDITA | 40
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CARMEN CARMEN
Tá rolando confusão na rua? Tem café ainda?

ALBERTO ALBERTO
Dessa vez não Uma hora dessas e você resolve falar de café?

CARMEN CARMEN
Como assim? Acabei de acordar, to com sono

ALBERTO ALBERTO
Dessa vez é aqui dentro Eu acabei de dizer que invadiram a nossa casa e
você age naturalmente
CARMEN
Como aqui dentro? CARMEN
Eu to com medo, mas ainda preciso de café
ALBERTO
Não vai pra sala ALBERTO
Vai la na sala e oferece um cafezinho pra eles
CARMEN então
Quem ta la?
CARMEN
ALBERTO Será que eles querem?
Invadiram a casa
ALBERTO
CARMEN Eu estava sendo sarcástico, imbecil
E agora?
CARMEN
ALBERTO Tá acabando mesmo
Não sei
ALBERTO
CARMEN Não, eles só roubaram a sala até agora. Acho que
Quem foi? depois vão entrar aqui e nos sequestrar

ALBERTO CARMEN
Acho que alguém daqui da rua Tava falando do café

CARMEN ALBERTO
Que eles querem? Por favor, vá à merda

ALBERTO CARMEN
Acho que vamos ser sequestrados Não tem porquê eles nos sequestrarem

CARMEN ALBERTO
Ai meu deus Como não?

ALBERTO
Estou com medo
MALDITA | 41
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CARMEN CARMEN
Olha esse apartamento. Vivemos no sufoco Recolher realmente é o melhor termo

ALBERTO ALBERTO
Eles não querem saber Mas, meus senhores… Vocês não acham melhor
fazer esta “colheita” em outra casa? Digo…
CARMEN
Eles sequestram gente rica, cheia da grana CARMEN
Aqui temos quase nada de valor. Sou apenas uma
ALBERTO professora, entende?
Você não tá com medo?
ALBERTO
CARMEN O que? Polícia? Não imagine…. Não faríamos isso
Estou
CARMEN
ALBERTO Entendemos a condição de vocês, seria muita
Não parece crueldade se… Essa tv? Ah, é, foi um presente. Na
verdade ela já é antiga e…
CARMEN
Eu tento disfarçar, fingir que está tudo bem ALBERTO
Tudo bem, podemos ficar sem tv, é realmente
ALBERTO prejudicial à saúde.
Sempre ou só em situações de risco?
CARMEN
CARMEN Veja, podemos fazer um acordo, talvez
Sempre
ALBERTO
Cena VIII Agora perdi uma tv e o meu dedão do pé

ALBERTO CARMEN
Bom dia, meus senhores. É, bem… desculpe Não se pode mais andar, não se pode mais ver a
perguntar mas… novela

CARMEN ALBERTO
O que desejam? Podemos ajudar em alguma Este tablet? Ah, coisa boba. Ganhei no bingo do
coisa? clube. Sim, última geração.

ALBERTO CARMEN
Ah, sim, pois não. Compreendo Gostava tanto desse tablet, amor!

CARMEN ALBERTO
Arrecadar? O senhor quer dizer… roubar? Agora não é momento, querida, acabei de perder
a minha mão direita
ALBERTO
Ah, sim, realmente. É uma palavra muito forte CARMEN
para ser usada hoje em dia. Ah, sim, esse quadro é lindo, não?

MALDITA | 42
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

ALBERTO ALBERTO
Um miró Por favor eu tenho labirintite, se quiserem me
apagar podem apenas me asfixiar?
CARMEN
O quê? Mas é claro que é legítimo CARMEN
Não! Hahaha, claro que não. Não tem problema
ALBERTO nenhum em você me mutilar desse jeito
Vai levar? Tem certeza?
ALBERTO
CARMEN Não precisa levar isso também
As pessoas nem ligam mais pra arte hoje em dia...
Alberto, onde estão seus dedos do pé? CARMEN
Nem isso… veja bem
ALBERTO
Isso? Ah, sim. É uma coleção que possuo ALBERTO
Eu dei muito duro pra pagar isso
CARMEN
Ele definitivamente ama whisky. Mas já tava na CARMEN
hora de parar de beber, né querido? São jóias de família, você entende? Foram da
minha avó, depois da minha mãe…
ALBERTO
10 anos de casado… não é fácil né? ALBERTO
Amor à vida?? Não, claro, claro. Eu tenho muito
CARMEN amor à minha vida
Novas experiências? Não sei se tenho interesse…
CARMEN
ALBERTO Sabe, meu senhor, se tem uma coisa que eu sei é
Olha aqui rapaz, você não pode chegar aqui, guardar segredos, pode ter certeza
pegar as minhas coisas, a minha mulher e…
ALBERTO
CARMEN Uhum, estamos ótimos, nada abalados. Podem
Alberto, ele está rasgando o meu vestido ficar tranquilos. Eu garanto que, apesar do álcool,
meu fígado está inteiro
ALBERTO
Ah, não, que isso. Falaremos mais baixo, pode CARMEN
ficar tranquilo Eu ir junto? Tem certeza?

CARMEN ALBERTO
O que é isso, meu senhor? Não precisa de tudo Ah… claro e pode levar a cafeteira também
isso
CARMEN
ALBERTO Alberto!
Ajoelhar? Veja bem, fiz uma cirurgia mês passado

CARMEN
Amor, ajoelha logo! Seu braço direito não existe
mais
MALDITA | 43
EDIÇÃO DE ESTREIA DRAMATURGIAS

CARMEN
ALBERTO
A gente tem que se unir, se não eles vão engolir a
Perdão, meu anjo! Eu me preocupo com você, mas
gente. Ah, vão!!
(exageradamente desesperado) a violência da
sociedade contemporânea está incontrolável, nós
ALBERTO
não estamos seguros nem em nossa própria casa!
Isso aqui tá um horror, quando é que vem a
empregada, hein!
CARMEN (de modo canastro)
A sociedade patriarcal assola todas as
CARMEN
esperanças de nós, mulheres, estarmos plenas em
A guerra, como tudo humano quer alterar, mas a
nossas casas, no nosso lar
guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar
muito, e alterar depressa.
ALBERTO
Carmen, que cheiro é esse?
ALBERTO
Quer café?

CENA IX

O apartamento foi queimado, só se restou a


janela. Alberto escovando os dentes com o braço
esquerdo. Carmen folheia um livro de Alberto
Caeiro.

ALBERTO
Não tenho pressa, pressa de que, me fala? Não
têm pressa o sol e a lua… eles estão certos!! Ter
pressa é acreditar que a gente passa adiante das
pernas, ou que, dando um pulo, salta por cima da
sombra. Eu cansei de almoçar em pé, de não
cumprimentar o meu colega de trabalho e desse
estresse maldito por conta do dinheiro apertado,
EU FAREI GREVE!

Júlia Zocchi é uma artista e produtora cultural natural de São Paulo que se expressa em diversas
linguagens artísticas, como dramaturgia, poesia e pintura. Atualmente compõe a coletiva The Fucking MALDITA | 44

New Marias, a equipe do espetáculo LUNETA, o Matritsa Coletivo e o projeto solo Pagu Indignada.
EDIÇÃO DE ESTREIA ENSAIO

REFLEXÕES SOBRE O REAL EM


STABAT MATER

JANAÍNA LEITE

O espetáculo “Conversas com meu pai”, que “Não é a minha mãe” é a frase síntese de Freud para a

estreei em 2014, investigava memórias denegação. O ponto de recusa e omissão, pareceram


apontar para algo que estava foracluído. Justamente,
incestuosas que, em sua indiscernibilidade
no apagar tão descarado da figura da mãe, encontrei,
entre lembrança e sonho, terminam por criar em todo o longo processo de “Conversas com meu pai”,
uma trama discursiva labiríntica na qual o um estranho e inquietante ponto cego. Um ponto cego
próprio narrador – eu, Janaina – acaba por que apontava para o lugar do feminino em mim e,
se perder. Focada exclusivamente, descobri, não só. Mas de uma fusão entre o feminino e o
maternal que é um dos pilares da construção e
insistentemente, obsessivamente na figura
demarcação de gênero no Ocidente.¹
do pai, na relação com o pai, é apenas
depois de concluída essa jornada de anos,
com o espetáculo estreado, e meu segundo Apesar do senso comum que alia o abjeto ao
filho nascido, que passei a me perguntar “repulsivo”, o conceito mapeado por Julia Kristeva em
seu livro “Os poderes do horror” diz respeito a tensão
“onde estava a minha mãe, a MÃE, durante
dentro/fora, ou melhor, a uma dimensão fronteiriça já
esses anos todos?”. Onde ela se posicionava
que, sem se tornar nunca um objeto (configurado pela
nesse conjunto de imagens produzidos por oposição eu/outro) o abjeto remonta a uma crise
mim sobre essa relação pai e filha? narcísica que nos é fundante.

¹ Essa espécie de insight biográfico deu origem a três investigações que envolveram quase cem artistas: Feminino abjeto 1 (2017), Feminino
Abjeto 2 – O vórtice do masculino (2018) e Stabat Mater (2019). Olhar para a mãe e o feminino, abriu as portas para um dos conceitos mais
instigantes que encontrei até aqui, a abjeção, formulado por Julia Kristeva a partir do pensamento de Melanie Klein.

MALDITA | 45
EDIÇÃO DE ESTREIA ENSAIO

Amália Fontes Leite e


Lucas Asseituno em
cena de Stabat Mater

MALDITA | 46
EDIÇÃO DE ESTREIA ENSAIO

Aparentemente abstrato, o conceito de abjeção se elucida quando a autora funda seu sentido principal no
processo de individuação do bebê em relação à mãe, já que antes de entrar no território da lei paterna que
estrutura o campo social das trocas simbólicas, já estivemos, um dia, fusionados, amalgamados no território da
mãe. Antes de sermos um “indivíduo” fomos parte do corpo de alguém. E essa separação não se dá nem
imediatamente ao nascer, e segundo as autoras, nem completamente ao longo da vida. Permanecer
irremediavelmente preso a esse território é um perigo como o mostra os quadros de psicose, ao mesmo tempo,
não ser capaz de voltar, significa perder a capacidade de adentrar o território fragmentado, pré-linguagem,
sinestésico, pulsional, que um dia, representou o corpo da mãe. É esse território que Kristeva e Melanie Klein -
psicanalista que resgatou o papel fundamental da mãe na teoria demasiadamente parcial em favor do pai, de
Freud - vão nomear como o “semiótico”. Terreno, por excelência, da criação artística. Segundo Klein: matar a
mãe para pensar, voltar à mãe para criar! Esse paradoxo é o cerne de todas essas experiências que se deram a
partir de um “feminino abjeto” pois que tiveram por centro um jogo de identificação e repulsa em relação à
figura materna, ou retomando Liddell, em relação a esse “comumente feminino” do qual a transmissão depende,
em grande parte, desse posicionamento estratégico da figura da “mãe”.

A mãe é então, nesses trabalhos, não apenas assunto ao plasmar alguns axiomas fundamentais para as
representações do feminino no Ocidente, mas é também forma posto que essa tensão lei-simbólico-teatralidade
versus real-semiótico-performatividade foi também base estética dos trabalhos ao aliar em cena teoria,
metalinguagem e performance ao simbolismo ostensivo próprio da linguagem do mito e do sonho.

Em todo o processo de simbolização permanece uma “margem”, aquilo que não consegue ser domado pelo
regime simbólico. Essa pressão na linguagem é feita pelo “real”, ou pelo semiótico como propõe a Kristeva. O
real do corpo, da experiência do corpo, não totalmente legível, ou passível de elaboração pela linguagem entra
aí. Eu tenho interesse justamente nessa tensão: a tentativa – desesperada – de entender, ao mesmo tempo, a
noção desse fracasso quando as experiências do corpo, no corpo, geram consequências que o saber racional
não acessa diretamente.

Como em um ato falho, essa mãe que passou despercebida em “Conversas com meu pai”, é agora retomada e
tornada central nessas experiências, especialmente, em Stabat Mater. Onde estava a mãe? é a pergunta que é
indiretamente respondida através da Virgem Maria e o stabat mater – ou “a mãe lá estava” – referência ao
poema do século XII que consagrou o tema de Maria aos pés do filho padecendo na cruz. Stabat Mater é
também o nome do artigo de Julia Kristeva de 1986 em que a filósofa e psicanalista defende que Maria, essa
mulher que deu à luz “sem prazer e sem pecado”, fecundada enquanto dormia, tornou-se o protótipo para a
construção no ocidente de um feminino que se dá entre a santa e a caída, entre a abnegação e o masoquismo.

Em uma totalidade ideal que nenhuma mulher singular poderia encarnar, a representação de Maria, ao longo
dos séculos, vai assimilando as qualidades da mulher desejada e da Santa Mãe que se tornou o centro do amor
cortês no século XIII. Não à toa, encontramos o poema Stabat Mater na versão dolorosa (a sofredora) e na
versão speciosa (a bela). É ainda mais inacessível quanto mais humana ao tornar-se “amarra da humanização”
do Ocidente mostrando-se pobre e humilde, ajoelhada diante de seu filho divino.

MALDITA | 47
EDIÇÃO DE ESTREIA ENSAIO

Nessa imagem que Simone de Beauvoir viu uma derrota feminina, Kristeva vê o ideal final pois que se trata de
uma mãe totalmente carnal e humana, capaz de doação e abnegação infinitas. Se de um lado, essa imagem está
na base das teorias do masoquismo feminino, por outro, dá a ver a contrapartida de gratificação e gozo, de
forma que “a cabeça baixa da mãe diante do filho não exclui o orgulho incomensurável daquela que se sabe
também esposa e filha. Sabe-se voltada a essa eternidade (espiritual ou da espécie) que nenhuma mãe
inconscientemente ignora, e em comparação com a qual a devoção e até o sacrifício materno são apenas um
preço irrisório a pagar.” (KRISTEVA, 1986).

No trânsito do racional ao sonho, do real ao mítico, duas referências fundamentais ofereceram as bases
estéticas do trabalho: o terror e a pornografia, justamente pela excessiva proximidade com o “semiótico” em
que se colocam. Territórios nos quais a linguagem explode, deixando, literalmente, ver suas entranhas. Nesse
momento, fica evidente de que, agora, o real que eu buscava era menos o “assunto”, mas um real que
tensionasse o simbólico até seu esgarçamento. Um real enquanto excesso, enquanto trauma.

Kristeva nos oferece uma outra possibilidade para pensar a degradação do corpo feminino na cultura de massa
para além das teorias do male gaze. A imagem do corpo da mulher que, frequentemente, aparece aberto,
exposto, vasculhado em seus buracos, suas vísceras, funcionaria como uma espécie de lembrete do tempo
gasto no estado indiferenciado do semiótico, onde não se tem noção de si ou identidade. Depois de abjetar essa
mãe primordial, os sujeitos mantêm uma fascinação inconsciente com o semiótico, desejando se reunir com a
mãe ao mesmo tempo que temem a perda da própria identidade. Fascínio e horror; o ventre como paraíso e
como tumba. Os filmes de terror proporcionam, dessa forma, uma maneira da audiência reencenar com
segurança o processo de abjeção, expulsando e destruindo a figura materna. Os slashers e sua evidente
investida fálica através de facões e motosserras, sob essa ótica, são vingadores, lutando contra o medo da
dependência. Quem se interessa pela lógica dos serial killers vai identificar esse mesmo traço misógino fundado
na reação contra um feminino onipotente que tem na mãe a primeira matriz. Dessa reflexão em relação ao
terror, foi um pequeno passo até a pornografia que segue uma lógica bastante semelhante.

Além de dividir a cena com minha mãe real Amália Fontes Leite sustentando as camadas biográficas dessa
secular dimensão mítica, imaginei, para compor o tripé do “romance familiar”, uma figura que responde na peça
por “Príapo” e que deveria ser performada por um ator pornô. Pai, príncipe encantado, slasher, figura sempre
mascarada, oscilando entre algo de sedutor mas também ameaçador. No vídeo, camada fundamental da
encenação, acompanhamos todo o processo de casting para a escolha do ator pornô que faria Príapo assim
como as curiosas reações à pergunta lançada aos profissionais à queima roupa: “você aceitaria fazer uma cena
de sexo comigo dirigido pela minha mãe?” Hoje, entendo que a presença dela, lá, foi o passo mais arriscado de
todos – a vera parresía do processo. Teria certamente muito a dizer e pensar ainda sobre essa minha incursão
no universo da pornografia – questões que permanecem em aberto e que, intuo, deixam pistas para uma
próxima investigação. Mas a Virgem Maria nos conta que sexo e maternidade caminham separados há dois mil
anos. E unir, no mesmo espaço, a minha mãe, a minha maternidade e todo o imaginário violentamente erótico
que atravessa o trabalho e suas consequências reais na minha vida e na peça, foi algo para o qual não havia
mesmo como me preparar. Era no risco.

Atriz, diretora, dramaturgista e pesquisadora, Janaina faz doutorado na Escola


de Comunicação e Artes da Usp e é umas das fundadoras do Grupo XIX de MALDITA | 48
Teatro. Acaba de ganhar o prêmio Shell de dramaturgia por Stabat Mater.
EDIÇÃO DE ESTREIA RESENHA

MARCELO ORIANI

A MENTIRA DE CADA UM
LIVRO: Tom Na Fazenda
AUTOR: Michel Marc Bouchard
TRADUTOR: Armando Babaioff
EDITORA: Cobogó
Armando Babaioff e Gustavo Vaz em cena de Tom na Fazenda

Existem, neste exato instante, 7,7 bilhões de Lá, no entanto, descobre que não era esperado.
pessoas no mundo. Algumas delas mentindo a Ao contrário, esperavam, com naturalidade,
idade para alguém que acabaram de conhecer. uma namorada em seu lugar.
Algumas mentindo o tamanho do pau em alguma
sala de bate-papo perdida no ciberespaço. Mentira fabricada pelo falecido namorado, com
Algumas mentindo que não são bichas. Para os a ajuda do irmão – Francis –, para proteger a
outros e para si mesmas. Para que possam se mãe – Ágatha – da verdade. E, ameaçado pelo
amar. Proteger-se. Ou ser amadas. Outras estão irmão do namorado, Tom se vê obrigado a
mentindo, em rede nacional, que uma pandemia mentir sua sexualidade para manter a verdade
é só uma gripezinha. 7,7 bilhões de pessoas. 7,7 afastada da mãe.
bilhões de verdades. E 7,7 bilhões de mentiras
existindo no mundo, neste exato instante. É interessante notar que esse deslocamento
geográfico embutido no binômio cidade-campo
Foi inserido nesse contexto, sitiado de mentiras promove também uma espécie de deslocamento
por todos os lados, que li Tom Na Fazenda, do temporal na moral e nos costumes. Como se o
dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard (e tempo retrocedesse, à medida que se afasta da
o que é um dramaturgo senão alguém que se cidade rumo ao campo, numa espécie de tango
profissionalizou em contar mentiras?). dançado com a distância.

O texto é publicado pela editora Cobogó, com Não por acaso, o nome da peça é Tom Na
tradução de Armando Babaioff, que, além de Fazenda. É no ambiente rural que Tom tem que
tradutor, também participou como ator da abdicar de quem ele é em benefício de uma
montagem brasileira da peça (e o que são os mentira que não seja ofensiva a todos. Em
atores também senão pessoas que se contrapartida, é na cidade que o seu falecido
profissionalizaram em viver as mentiras que os namorado encontra liberdade para exercer
outros contam?). plenamente sua sexualidade.

Tom Na Fazenda narra a história de um jovem Francis se mostra disposto a fazer o que for
publicitário – Tom –, assumidamente bicha, que preciso – inclusive desfigurar o rosto de uma
viaja da cidade para o campo com o intuito de pessoa – para manter a verdade escondida no
enterrar seu falecido namorado. fundo do guarda-roupas. E, não só, mas também

Foto: Divulgação MALDITA | 49


EDIÇÃO DE ESTREIA RESENHA

dentro de uma caixa de sapatos, lugar que Como é o caso de Ágatha, que, por meio da
Ágatha escolhe para manter os pertences do repetição de diversos versículos bíblicos, explicita
falecido filho. Como se trancado lá dentro, o filho a negação da verdade quando adquire alguma
pudesse realizar o desejo de ser, na lembrança espécie de consciência sobre ela. Até que a
da mãe, aquele que, desde o princípio, ela queria chegada – a pedido de Tom – de Sara/Hellen, a
que ele fosse. falsa namorada do falecido, ao mesmo tempo em
que resulta no alívio cômico da peça também
Vai-se construindo, no decorrer da peça, uma acaba por revelar as consequências perversas
relação de repulsa e desejo entre Tom e Francis. das mentiras em que todos ali estão inseridos.
Desvelada, na maioria das vezes, pela violência, Inclusive o próprio falecido, que “conseguia
física e verbal. Porque aos homens – do campo – mentir para ele mesmo” para poder transar com
não foi permitido falar de afeto senão pela outros homens e mulheres.
violência ou pelo escárnio.
É interessante notar que a verdade é revelada
Isto acaba por expor os dois a uma espécie de por meio de uma pessoa que mente ser outra, já
dependência física e emocional um do outro. que a falsa namorada, em realidade, é amiga de
Tanto da parte de Francis, que, para poder trabalho de Tom e de seu falecido namorado. E é
demonstrar qualquer nesga de afeto, toma exatamente por desnudar as mentiras invisíveis
emprestados os afetos da mãe para falar dos que ligavam todos naquela casa que essa
seus (“Você pode voltar a usar seu perfume de personagem não é bem-vinda. Como se, ali, não
novo. Mamãe gosta do seu perfume”) quanto da houvesse lugar nenhum para aqueles que não
parte de Tom, que, mesmo apanhando diversas sabem mentir.
vezes de Francis – e isso torna-se visível pelos
hematomas que vão sobrando em seu corpo –, As personagens vão sendo niveladas entre si à
não consegue mais ir embora daquele lugar. medida que suas mentiras são externadas, não
importando mais o que cada uma é. A mentira, de
Mentir, para as personagens da peça, é mais que certa maneira, faz com que não haja mais
uma questão moral. É uma questão de distinção alguma entre estas figuras, já que todas
sobrevivência. Torna-se, desta maneira, ali são mentirosas. Tom Na Fazenda é, portanto,
impossível atribuir qualquer juízo de valor sobre um texto que fala de todos nós. Porque somos 7,7
as mentiras que elas contam. bilhões de mentirosos existindo neste exato
momento no planeta. E essa é, pode-se concluir, a
Porque a mentira, no contexto em que estão única igualdade possível entre pessoas distintas
inseridas, perde o caráter moral para virar num mundo mentiroso. E isso é tudo, inclusive
proteção ou fuga. Cada uma, dentro daquela mentira. Também.
situação, se protege como pode. Ou refugia-se
na religião em busca de uma verdade que talvez
possa confortá-la.

MARCELO ORIANI é bicha, dramaturgo e ator. E mentiroso compulsivo. Formado em Dramaturgia pela
SP Escola de Teatro e Escola Livre de Teatro. Autor das peças Requiem, Kaputt – Poema MALDITA | 50

Performativo Para Atrizes-Jogadoras e Boneca Russa.doc. Também é roteirista do curta Bicha-Bomba.


"Assim consegui pôr tudo em seus lugares.

Na página pelo menos. Dentro de mim,

continua tudo como dantes."

Ítalo Calvino em O castelo dos destinos cruzados


uma publicação de malditos dramaturgos

malditosdramaturgos.com.br

Envie seu material para

contato@malditosdramaturgos.com.br

Você também pode gostar