Você está na página 1de 46

1

Aos Domingos
ou
Todos os Domingos do Mundo
ou
Cabaré Domingos
ou
Quero ser Domingos Oliveira

Adaptação de Marcos França sobre a obra de Domingos


Oliveira, a partir da observação e apontamentos dos atores e
atrizes da turma BT41

Obs.: O espaço cênico é composto no centro por uma cama


enorme, tipo King Size. Lençóis brancos, travesseiros. Do lado
direito, um pequeno palco e um microfone, onde se apresentam
uma cantora e uma contadora de piadas velhas e ingênuas.
Do outro lado, um bar, com garrafas de uísque, copos, onde os
atores se servem, bebem, enquanto filosofam sobre o mistério
da existência.

Personagens: Narrador, Artista em crise, Filósofo, Filósofo 2,


Paulo, Maria Alice, Luísa, Rafael, Telma, Glorinha, Carlinhos,
Poeta, Felipe, Gilda, Homem Misterioso, Mulher Misteriosa,
Cantora. Piadista.

PAIXÃO, CONQUISTA, CRISE, SEPARAÇÃO, ACEITAÇÃO

Rio de Janeiro
Setembro de 2022
2

Introdução – Domingos falando para a plateia.


Domingos - (em Off) Boa noite, senhores e senhoras. Meu nome é
Domingos Oliveira. Eu sou autor do espetáculo que vocês
verão em seguida. Autor e ator. Muito obrigado por terem
vindo. Essa é a sessão em tudo em especial. Cheia de
amigos, cheia de gente com opinião. Cheia de gente querida.
A maioria veio pra gostar. Outros vieram pra criticar. Mas
todos são muito bem vindos. Tem muita gente de teatro
aqui. Gente que sabe que uma peça não é feita somente
pelos atores. E sim pelos atores e espectadores trabalhando
juntos. É assim que é feita uma peça. Na noite de hoje eu
sei que podemos contar com uma excelente performance da
plateia. E faremos o possível para corresponder à altura.
Viva o teatro e bom espetáculo para todos! Terceiro sinal,
por favor!

(Debaixo dos lençóis, dois atores despertam, assustados)

Cena 1 – Por que a gente faz teatro?


NARRADOR E ARTISTA
(Um ator, ainda sonolento, sob os lençóis, começa a murmurar algo)
Narrador Dono de circo! Dono de Circo! (Senta na cama) Dono de
circo!
Artista (Acordando) Oi?
Narrador Quando eu crescer quero ser dono de circo. Ter um grupo
de pessoas que se gostem muito e que se exijam pouco, e
que saibam fazer uns números. E que possam apresentar
esses números para que outras pessoas que se quiserem, e
forem queridas, possam passar para o lado de cá! Assim eu
gostaria de ganhar a minha vida. O Teatro!
Artista Shhhh! O que você falou?
Narrador O Teatro!
Artista Volta a dormir, porra! (O Artista volta a se deitar)
Narrador Eu tive um sonho. Sonhei que tava num palco, e um monte de
gente vinha me assistir. Mas eu simplesmente não sabia o
que dizer!
Artista Pesadelo, né?
3

Narrador Um pesadelo recorrente!


Artista Volta a dormir, vai.
Narrador Não posso. Tenho de contar essa história. Na verdade, a
gente vai contar essa história.
Artista Qual história?
Narrador Essa história. Dessa gente louca que faz teatro.
Artista O teatro! Ah, o teatro é uma coisa maravilhosa. O teatro é
feito por artistas para artistas.
Narrador Exatamente! É este o propósito! Falar com o público como se
eles também fossem artistas. E transformá-los em artistas.
Não tolerar a diferença publico /platéia.
Artista É bom! Assim fica tudo perfeito! Quem pode julgar o artista?
É bom ou ruim o que faço? Nasci pra isso ou devo desistir?
Narrador Os críticos.
Artista Não, melhor não levá-los muito em consideração, ele vão
demais ao teatro, coitados, sabem muita coisa.
Narrador Os amigos?
Artista Olha aí, juro, tenho umas cinco ou seis pessoas no mundo
que, se gostarem, pra mim já está bom.
Narrador Os inimigos?
Artista Seria masoquismo.
Narrador A plateia!
Artista Já vi tanta coisa boa que o público não vai. Tanta coisa
péssima, enganação, que o público vai!
Narrador A posteridade.
Artista Me desculpa, mas que me importa isso se eu não vou estar
lá pra ver? Não, nenhum desses critérios pode julgar o
artista.
Narrador Então, na certeza infundada de que não enlouquecemos
ainda, criemos. Levando em conta apenas o brilho das
estrelas que, no momento da criação, brilharam sobre
nossa única oval cabeça...
Artista Teatro... é beber o vinho de uma existência inteira na taça
frágil de uma hora.
Narrador Este espetáculo, também denominado, “Aos Domingos”.
4

Artista Mas poderia ser “Cabaré Domingos”.


Narrador Ou ainda “Todos os Domingos do Mundo” é uma biografia
disfarçada, um retrato polaroid da paisagem interna atual,
pleno de incoerência e irresponsabilidade de um artista.
Não deixa de ser também uma confissão. Tudo o que os
senhores verão aqui nesta sala, é a mais pura verdade. Um
retrato.
Artista Por isso foi muito difícil escrever essa peça que vocês irão
assistir.
Narrador Eu não lembro dos fatos, eu lembro de impressões. Eu não
sei se as coisas aconteceram assim. Eu não lembro. Eu tava
bêbado, porra. Bêbado não lembra.
Artista Duas ou três coisas que eu sei sobre ela: a Vida!
Narrador Ó vida, maravilhoso espetáculo e, no entanto, apenas um
espetáculo. E como vai ser essa peça?
Artista Como um cabaré. A vida é um cabaré. Dançar, beber e
contemplar o fim do mundo: esta é a missão de um cabaré.
Ou seja...
Narrador Um encontro de artistas com artistas. Gente falando com
gente, sobre um assunto comum a todos, mesmo porque
não há outro.
Artista E qual seria esse assunto comum?
Narrador Só há um único assunto: O Amor. Todo teatro é um ato de
amor.
(Entra uma canção. No palco, a cantora, linda, apaixonante,
como uma musa inspiradora, canta, enquanto todos os
outros atores vão entrando em cena, de pijamas, como os
primeiros, sentando aos pés dela, sobre a cama. Todos
apaixonados.)

CENA 2 – PAIXÃO À PRIMEIRA VISTA


Cantora Ah, o amor! Não adianta se trancar num quarto escuro. O
amor entra pelas frestas das portas e janelas, o amor vai te
encontrar.
5

GILDA, PAULO, FELIPE E MARIA ALICE


Gilda (Anda pelo espaço, Felipe vai atrás)
M. Alice (Também sai do grupo, como hipnotizando a todos)
Paulo Que uns olhos tem que os outros não têm? O que um
sorriso tem que os outros não tem?
Felipe Que uns olhos tem que os outros não têm? O que um
sorriso tem que os outros não tem?
Paulo Eu sei que gamei pela Maria Alice, na hora.
Felipe Nunca houve uma mulher como Gilda.

NARRADOR E ARTISTA
Artista É sempre à primeira vista que alguém se apaixona, e é
sempre um turbilhão de emoções e sentimentos.
Narrador (para o artista) Certa vez eu estava num bar e me apaixonei
por uma moça duas mesas adiante. Eu não a conhecia,
nunca tínhamos nos visto. Era uma moça comum.
Olhávamos, através do espaço de duas mesas, depois
desviamos os olhos. Quando ela levantou pra ir embora,
levantei também e caminhei em sua direção. Eu não sabia
que tinha feito isso, mas agora estava ao seu lado! Também
não sabia o que dizer.

PAULO E MARIA ALICE


Paulo Eu estou completamente apaixonado por você.
Narrador E ela disse:
M. Alice Eu também.
Narrador Como pode uma coisa dessas acontecer?
Paulo Você tem alguma coisa contra isso? Por exemplo, nós dois,
na sua opinião tinha alguma chance de dar certo?
M. Alice Sabe o que eu acho do amor? Eu acho que o amor é uma
coisa que depende da gente. Sabe, um objeto que a gente
gosta, não quer que quebre ou coisa assim? Então tem que
cuidar, limpar todo dia. Pois eu acho que o amor é uma
coisa assim.
6

NARRADOR E ARTISTA
Narrador Um homem pode deixar a vida passar sem ao menos
pressentir o espanto filosófico. Ou mesmo perceber o
imenso fascínio das ciências, das artes e demais
conhecimentos. Mas sem amor, ninguém vive.
Artista Do santo à besta, do sábio ao mais ignorante, todos são
sacudidos por aquela força telúrica, que é também
universal.
Narrador Tão misteriosa que não tem nome.
Artista O Amor não tem nome.

OS FILÓSOFOS
Filósofo Eu sou um filósofo. Mas não levem a sério nem esta e nem
nenhuma filosofia dentro ou fora desta peça. A função
última da filosofia não é descobrir a verdade, e sim divertir
o filósofo.
Filósofo 2 A filosofia é o jogo das palavras, assim como o teatro. E não
é impunemente que se diz uma palavra. Quando eu digo a
palavra cadeira, estou fazendo sua consciência consonar
com a minha numa ideia bem impressionante. Algo que se
refere a esta cadeira, aquela, a todas as cadeiras do mundo,
que já existiram, existem ou existirão em qualquer parte do
universo infinito, tudo isso você pensa quando eu digo a
palavra cadeira. A palavra cadeira tem a ver com todas as
cadeiras, ou seja, tem a ver com a essência da cadeira. Mas
existe uma essência da cadeira?
Filósofo Existe. Caso contrário não existiria a palavra cadeira. A
palavra é assustadora, é a maior generalização atingida pela
consciência humana. Uma proeza, um feito, um trabalho do
Hércules humano. É aquilo que o homem inventou para
dizer da essência das coisas.
Filósofo 2 Quando uma palavra correta é dita de um modo correto e
ouvida de um modo correto, é mais que uma palavra: é a
própria coisa. E para recuperar este valor sagrado, para
devolver a palavra ao mundo, existem apenas dois tipos de
homens, capazes disso: um é o poeta. E o outro é o ator.
Filósofo 1 Se um bom ator disser como deve ser dita a palavra mar, o
público pode se afogar.
7

FELIPE E GILDA
Felipe Alo, Gilda? Deixa eu ouvir a sua voz. É a voz da Gilda... era
esse número mesmo. Você não vai acreditar. É o Felipe, da
festa de ontem...Você gostou da festa, gostou? Você não vai
acreditar, Gilda. Eu acordei hoje estranho, com uma coisa
esquisita, fumacinha saindo da minha cabeça. Saudade.
Saudade de você. Eu fiquei fascinado. Eu preciso te ver.
Meus olhos quando veem uma coisa assim, deslumbrante,
eles não conseguem parar de ver, eles ficam ardendo. Eu
preciso conversar com você, te conhecer melhor. Você topa
sair pra algum lugar, a gente come alguma coisa? Topa? Ah,
então eu tô no céu, Gilda!...
(Gilda entra em cena como uma aparição. A musa
inspiradora. Felipe a acompanha. Quando vão se beijar, são
interrompidos por Luísa.)

LUÍSA
Luísa Gente, gente! Eu preciso falar, eu preciso contar pra
alguém, gente! Me aconteceu uma coisa, não sei se foi
sonho, miragem, milagre... mas que aconteceu, aconteceu.
Preciso falar, preciso pra vocês, sim, vocês merecem ouvir.
Eu fui a uma vernissage. De um grupo de pintores novos.
Recebi um convite de um amigo de um amigo, estou sem ar.
Artista Luisa, calma, que foi que te aconteceu?
Luísa Encontrei o homem da minha vida! (dá um pulo de alegria)
O homem da minha vida! Estou apaixonada,
completamente apaixonada, apaixonada para sempre!
Narrador Que bom. Pensei que você tivesse sido assaltada ou
currada. Automóvel roubado.
Luísa Eu estava lá, em pé com aquele copo de vinho vagabundo
na mão e gente à beça, aquela coisa, quando olhei e vi ele.
Explicando um quadro dele lá pras pessoas. Ele me olhou.
A boca dele continuou a explicar, mas os olhos dele me
olhando. Ele me olhando. Os olhos profundos, como um
deus! Eu não sabia o que fazer, meus amigos começaram a
ir embora, eu não sabia se ia pra longe ou se chegava perto,
devo ter fumado uns duzentos cigarros, amanhã meu peito
vai estar doendo à beça. Fiquei lá, há, como ele é lindo,
fingindo que não estava olhando, morrendo de medo dele
reparar, e achando que era impressão, que ele não tava
olhando pra mim coisa nenhuma.
8

Aí eu tomei coragem e fui lá falar com o homem. Que que


tem?, pensei: vou lá e falo com o homem.
Artista E você falou?
Luísa Fui. Mas quem falou foi ele!
Rafael Você é linda e eu te amo. Estou apaixonado por você.
Artista Ele disse isso?
(a Artista e Luísa saem pulando pela cama como duas crianças)
Artista E você disse o que?
Luísa Eu respondi: eu também estou! Aí demos um beijo ali
mesmo, um beijo ali, no meio da festa, na frente de todo
mundo, um beijo que durou um século! Eu não acredito
que isso possa estar acontecendo comigo! É o amor! É o
amor, do bom, à primeira vista! Ai, eu vou desmaiar!

POETA
Poeta (uma poeta surge do grupo) Agora é hora da poesia. Poesia!
(todos reagem)
Poeta Há um momento em que a flor
Delicada sutil caprichosa inocente única
Fecunda bela
Se dobra ao vento e revela
Mistério da cor, incrível matiz
Há um momento em que o horizonte
Fica mais perto e se desdobra
No cimo da onda, no nervo da água
Além do mar, além da gaivota
Há um momento em que o Amor
Amor mais generoso, meu destino minha glória
Esquece o amor e revela a fera
Na mata o sangue, o dragão na ponte, no castelo a muralha
Há um momento em que a Vida
No que ela tem de mais louca é pouca.
9

(todos aplaudem entusiasmados)

OS FILÓSOFOS
Filósofo 1 Quem é maior, a arte ou a filosofia?
Filósofo 2 A filosofia é o pensar sobre o pensar.
Filósofo 1 A arte é o pensar sobre o sentir.
Filósofo 2 E como pensar nada mais é que sentir pensamentos, fica
provado que a arte é maior que a filosofia.
Filósofo 1 A filosofia não é uma coisa abstrata, que nem a fumaça de
um cigarro.
Filósofo 2 É o único recurso do qual um homem moderno dispõe, no
turbilhão do fim do século, para dissipar suas dúvidas,
antes que as pernas voem, cada uma para seu lado.
Filósofo 1 Os filósofos, eles gostam de inventar palavras, conceitos, é
isso que eles fazem, os filósofos. Criam palavras, conceitos.
Do mesmo modo que o artista cria sua obra, do mesmo
modo.

NARRADOR E ARTISTA
Artista E agora, pra onde vai o espetáculo?
Narrador Ninguém comanda o espetáculo e ele para a qualquer hora
que qualquer um de nós quiser que ele pare. Ele é o que for,
é dos espectadores, dos atores, do mosquito que voar por
aqui, de quem estiver por perto.
Artista Para representar, os atores tem que entrar em estado de
grandeza. Estabelecer a priori um clima de delícia, estar ali
para se divertir. E usar uma vitalidade e uma velocidade
inicial alta, para depois então encontrar qual o ritmo do
espetáculo.
Cantora A paixão é a única moeda cósmica que temos à disposição.
Apaixonado um homem pensa que é o que não é, trai
amigos e princípios, trepa debaixo da ponte com o guarda
passando em cima. Vê cores intensas, sente odores
impossíveis, ganha poderes de bruxo. Apaixonado um
homem compreende como a vida é bela. Indiferente aos
horrores, atravessa o inferno tocando flauta. Apaixonado,
um homem é imortal. Eu, por exemplo... sou muito grata
aos homens que me comeram bem!
10

Piadinha!
Um casal de namorados, apaixonados, estão num banco de
praça, numa linda noite de luar. Um deles suspira e diz: Ah,
meu bem! Por que a lua está se escondendo por detrás das
nuvens?
E o outro: Ela está com ciúmes da sua beleza...
Vinte anos depois, o mesmo casal, na mesma praça...
Ah, bem bem! Por que a lua está se escondendo por trás
das nuvens?
E o outro:
Não tá vendo que vai chover, porra?!

CENA 3 – A CONQUISTA
CARLINHOS E MISTERIOSA
(Carlinhos chega na festa com a Misteriosa)
Carlinhos Como assim volúvel?
Misteriosa Eu sou assim. Pintou homem novo eu não consigo me
entregar pela metade. Cada homem novo que eu tenho viro
virgem de novo, recomeço minha história sexual.
Carlinhos Interessante!
Misteriosa É mais que uma vivência, um homem novo é uma cultura,
modifica a gente toda de tanta informação nova. É como
descobrir a América, ou passar férias num país distante:
Nepal, Austrália, Oklahoma… é. Muita informação.
Carlinhos Olha, essa aqui é a melhor festa do Rio de Janeiro.
Misteriosa Eu não sei... eu não tenho como ficar.
Carlinhos Vai ficar sim! (grita) Aê, galera! Carlinhos na área!

GILDA E FELIPE
Felipe Eu tô completamente apaixonado por você. Deve ser isso
que eu tô sentindo. Tô completamente apaixonado por você.
Eu sou tímido, você é linda. Eu gosto de ficar entre os
livros. Eu posso te recomendar algum livro? Eu leio todos.
Gilda Recomenda então.
11

(Começa um diálogo com os livros. Um mostra para o outro


um título: “Conto de Amor”, “Amor fora de hora”, “Amor e
exílio”, “Todos os homens são mentirosos”, “Mentiras
Parciais”, “O Beijo Canibal”, “Amor e Orgasmo”, “Sexo na
Lua”, “O Gosto do Vinho”, “Muito Prazer”.

PAULO E MARIA ALICE


M. Alice (repete a frase que já falou) Eu acho que o amor é uma
coisa que depende da gente. Sabe, um objeto que a gente
gosta, não quer que quebre ou coisa assim? Então tem que
cuidar, limpar todo dia. Pois eu acho que o amor é uma
coisa assim.
Paulo (Lendo um dicionário) Estou apaixonado. Por você. No duro.
Sério. Apaixonadíssimo. Apaixonado. Particípio Passado do
Verbo Apaixonar. Dominado de paixão, entusiasmado,
possuído de grande amor.
M. Alice Paulo, tá ficando chato esse negócio de você ficar andando
atrás de mim.
Paulo. Chato. Adjetivo do Latim “Plathos”. Vulgar, rasteiro e
inoportuno, maçador.
M. Alice Impossível falar sério com você, Paulo. Você é um palhaço.
Paulo E as piadas, meu amor? As piadas que eu inventaria pra te
divertir. Se você me namorasse, juro, ria o tempo todo.
M. Alice Então vamos fazer uma aposta. Aceita?
Paulo Qualquer uma.
M. Alice Você tem que me fazer rir agora. Se você me fizer rir agora,
nesse momento, eu juro que te namoro um pouco.
(Paulo faz caretas, tenta chamar a atenção de M. Alice. Ela
fecha os olhos. Ele chega perto e lhe dá um beijo. Ela olha
pra ele séria)
Paulo Pronto. Perdi a aposta. Você não tá rindo, sabe. Tá até bem
séria. Não esquece, tá. Eu realmente gosto de você. Se
quiser me telefona. Senão, eu juro que não te incomodo
mais. Você tem meu telefone.
Narrador Evidente que naquela noite Paulo não dormiu esperando o
telefonema. No dia seguinte...
M. Alice (Lendo um dicionário) Tentação. Substantivo feminino.
Disposição de ânimo para pratica de coisas censuráveis.
12

Indução ao mal por sugestão do diabo. Escuta. Você tem


alguma coisa pra fazer de tarde? Ou pode me levar ao
parque de diversões?

GILDA E FELIPE
Felipe Gilda! Então você gosta de ler.
Gilda Por que? Só porque eu sou bonita eu tenho de ser burra?
Eu pareço ser burra?
Felipe Você até poderia ser. Porque a beleza já é uma forma de
inteligência.
Gilda Não, beleza cansa.
Felipe Beleza é a inteligência divina. Inteligência da natureza. E a
paixão é o sentimento maior que Deus inventou. É o
Himalaia de Deus. Terminei o meu roteiro. Se você quiser
eu leio pra você.
Gilda. Não, eu prefiro ver pronto. Eu sou muito prática. Eu só me
interesso em ser cantora. Eu não tenho tempo pro amor. Eu
só amo quem pode me ajudar na minha carreira.
Felipe Olha por quem eu fui me apaixonar.
Gilda Eu não me apaixono fácil. As pessoas é que se apaixonam
fácil por mim.
Felipe Eu tô fudido.

LUÍSA E RAFAEL (E CARLINHOS)


Luisa Gente, esse é o Rafael. O cara que eu falei pra vocês. Eu
trouxe ele pra vocês conhecerem. Eu sei que chegamos
atrasados pra festa, mas Rafael vai ter de sair daqui a cinco
minutos, ele tem um encontro de negócios
Rafael Com meu marchand, um abacaxi. Marquei uma temporada
na Galeria, mas agora ele está querendo dar o espaço pra
outro pintor. Mal sabe ele que eu também estou querendo
dar a temporada pra outro marchand. Infidelidades
plásticas.
Luisa Rafael pinta em telas já pintadas.
Poeta Como é?
13

Rafael É uma técnica que eu desenvolvi com Bill, um rapaz com


quem eu fui casado em Nova York. Eu compro quadros
velhos de pintores desconhecidos, descolorizo a tela e pinto
em cima, me deixando influenciar, ou não, pelo que restou.
Retrabalhando a textura... Para que a tela já tenha estória
antes mesmo do quadro começar. Não sei mais trabalhar de
outra forma. Pintura é tempo, não é forma nem cor, é
tempo...
(Os outros se olham. Rafael percebe imediatamente)
Rafael - Bom, eu acho que agora eu dei um fora, hein, Luísa. Pensei
que você tinha dito a eles. Não gosto de fazer mistério com
essas coisas. Eu fui casado com um americano em Nova
York durante dois anos e meio. Sou bissexual.
Luísa (com absoluta naturalidade) Rafael é bissexual.
Rafael Quer dizer, não sei se sou ou fui durante uma fase da
minha vida. Agora sou apaixonado por Luísa, de véu e
grinalda... Falando sério, é que as pessoas tem tanto
preconceito com esses assuntos que eu até preciso falar
nisso no primeiro contato. Quer dizer, com as pessoas que
são importantes, que me interessam.
Poeta Luísa está feliz, é o que a gente quer.
Rafael Então deixem comigo. (Olha o relógio) Vou ter de ir, de
coração partido. Sei que é indelicadérrimo...
Poeta Não, por favor, vá, não se atrase....
Carlinhos Negócios, compreendemos...
Rafael Quem sabe na próxima festa? Valeu, gente.
(Sai. Luisa acompanha junto até a porta, afastando-se)
Carlinhos Bissexual?!!!
Poeta Ah, mas também não tem nada demais.
Carlinhos Fora a Aids, não tem nada demais!
Poeta Deixa de ser grosso. Paranóia isso.
Carlinhos A gente tá em 1995. Já viu quanta gente morreu e continua
morrendo com essa merda de doença? Tá certo, tá certo. Ele
é um bom sujeito, também achei. Mas choca. É perigoso.
Poeta Eles devem ter trepado de camisinha.
Carlinhos Claro que trepou de camisinha. Ah, vai ver ainda nem
foram pra cama.
14

Poeta Apaixonados não tem juízo.


Luísa (voltando) E aí, o que acharam dele? Não é o melhor homem
do mundo? E gostou de mim tanto quanto eu gostei dele!
Pequena coincidência, que nunca me aconteceu! Todos os
caras que eu gostei de verdade não gostaram de mim. Não
me achavam linda, ele acha!
Poeta Estamos muito contentes por você.
Carlinhos Muito contentes.
Poeta E na cama, vocês...
Luísa Vocês querem saber se nós já fomos pra cama, Rafael e eu?
Os dois Não!
Luísa Na cama é uma loucura. Ontem eu não dormi. Trepamos
três vezes. E com tanta delicadeza. É diferente, sabe, deve
ser por causa da bissexualidade, como se entendesse
melhor as mulheres. Como é que eu vou explicar? É uma
ereção aos poucos, assumida, livre, sem compromissos.
Nunca vivi nada assim. É claro que foi de camisinha, não
sou maluca. Sei que existe a Aids, ele também sabe, já fez
exame três vezes... mas também existe felicidade.
Carlinhos (pra poeta) Bissexual????

CARLINHOS
Narrador Carlinhos era um escritor, jornalista amigo meu. Escrevia
na última mesa da redação. Muito amigo do Nelson
Rodrigues e do dr. Roberto.
Carlinhos O melhor da festa é o fim da festa. No fim da festa é que a
gente vê quem é quem. Ficam os sobreviventes: os loucos e
os inocentes, os bêbados e os apaixonados, os poetas. No
fim da festa é que a festa começa.
Artista Então a festa não acaba?
Carlinhos Não. Como é o nome daquela ave da mitologia grega... a ave
que renasce das próprias cinzas??
Narrador Fênix.
Carlinhos Se a festa é inevitável, divirtam-se!!!
(eles dançam)
15

Carlinhos (Apontando a Poeta) Essa aqui é a musa da festa, gente!


(Pro Felipe) Ex mulher do meu amigo aqui. Nunca comi ela!
(Vai até Felipe) Nunca comi sua mulher! Nunca! Dá um
abraço!
Felipe É muita gentileza.

OS FILÓSOFOS
Filósofo 1 O mundo tá piorando ou tá melhorando?
Filósofo 2 Melhorando, gente !
Filosofo 1 Você tá maluca. E o Kosovo?
Filósofo 2 Kosôvo
Filósofo 1 E a África? E a violência urbana? E a índia? E o Nordeste?
E o oriente médio? E a Aids? A Aids?
Filósofo 2 Terrível. Mas já foi pior. Tá melhorando.
Filósofo 1 Piorando
Filósofo 2 E até bem pouco tempo havia uma ditadura no brasil!
Tortura nos quartéis.
Filósofo 1 Agora é só nas delegacias e presídios.
Filósofo 2 E agora estamos numa democracia...
Filósofo 1 E o desemprego? A educação? A saúde publica? A
corrupção?
Filósofo 2 Os preconceitos estão diminuindo! Há menos de cem anos
homossexual era preso ou castrado. E adúltera apedrejada.
E perda da virgindade era um horror, e mulher se não era
casada era puta... judeu não tinha vez, preto não tinha vez.
O dialogo entre pais e filhos... melhorou incrivelmente...
Filósofo 1 E os assassinatos nos colégios? Os sequestros...
Filósofo 2 Terrível, mas tá melhorando. Não tinha micro-ondas,
cinema 180 graus, celular, pílula anticoncepcional, viagra...
Turma gosta é de se queixar! E a qualidade de vida?
Filósofo 1 E toda maldade humana, que é imensa?
Filósofo 2 Claro que continua um terror, um terror de extrema
complexidade. Mas é evidente que melhora, só não vê quem
não quer. Para uma crise de pessimismo nada melhor que
uma lição de história.
16

Filósofo 1 Sei não, sei não...


Filósofo 2 O mundo melhorou, gente! Não tá vendo não?

FELIPE E GILDA
Felipe As piadas que eu inventaria pra te divertir. Se você me
namorasse, juro, ria o tempo todo.
Gilda Você é muito engraçado. Eu adoro homens engraçados
Felipe Eu não sou engraçado, eu sou triste.
Gilda Eu adoro homens tristes.
Felipe Então você vai se dar bem comigo.
Gilda Por que você é triste?
Felipe Porque eu não sou imortal. Mas eu seria se você fosse
minha namorada
Gilda Ficou sério agora?
Felipe Eu sou sério. Que foi?
Gilda É que você disse a coisa certa.
Felipe Eu tô apaixonado por você. E você é uma sedutora. Desde
que chegamos você já deu bola pra todo mundo.
Gilda Eu não sou uma sedutora. Eu coloco o meu amor à
disposição. Se você quiser, você pega. Se não quiser, não
pega.
Felipe Eu pego!
Cantora O amor é a coisa mais suavemente violenta (ou a mais
violentamente suave) que Deus botou no mundo. A paixão
remove montanhas. Tudo na vida é relativo, o amor é
absoluto. Bem aventurados os apaixonados, deles é o reino
dos céus.

CARLINHOS
Narrador Carlinhos era um cara incrível. Escreveu um livro de
crônicas que vendeu 150 exemplares. Orgulhava-se de ter
discutido em francês nas mesas do Café de Flore.
Carlinhos (apaixonado) Tô escrevendo um livro sobre você.
Poeta Sobre mim?
17

Carlinhos Todos os homens dessa festa estão apaixonados por você.


Eu também tô. Sempre fui apaixonado por você.
Poeta Para Carlinhos!
Carlinhos Sempre fui
Poeta Que isso que você tá falando?
Carlinhos Não tô brincando, tô falando sério. Sempre achei você a
mulher da minha vida. Respeitava que você era casada com
um amigo meu.
Poeta Carinhos, para com isso. Só porque eu tenho interesse nas
coisas que você fala. Te acho um sujeito bacana.
Carlinhos Você vai ter interesse quando você for pra cama comigo,
você vai ficar louca.
Poeta Carlinho, você perdeu a noção?
Carlinhos Não perdi a noção. Eu tô insistindo porque às vezes a
mulher não acredita que ela tem loucura naquele homem.
Ela quer dizer sim, mas ela fica com medo. Tô vendo que
você tá com medo. (Vai até ela) Você tá com medo de dar
pra mim. Não tenha medo. Nenhuma mulher que deu pra
mim se arrependeu. (Avança novamente, ela foge) Pode dar
pra mim, vai ser maravilhoso! Tô te falando, de coração. Eu
sei foder! (Vira-se e dá de cara com a misteriosa)
(Misteriosa vê Carlinhos dando em cima da poeta)
Misteriosa Carlinhos, está tarde. Vou embora. Eu moro longe.
Carlinhos Como ir embora? Que embora? Só um idiota não sabe que a
festa é o fim da festa! Não vai todo mundo dormir aqui? Vai
todo mundo dormir aqui, um em cima do outro. Não é
pessoal?

FELIPE E CARLINHOS
Carlinhos O difícil não é escolher uma mulher. Mas desistir de todas
as outras.
Felipe Eu e Gilda fomos tão felizes, durante muito tempo. Ser feliz
no amor é fácil. Basta ter uma boa história pra escrever o
dia inteiro e trepar no fim do dia.
Carlinhos Uma mulher bonita é uma coisa engraçada. Porque se elas
estão sendo amadas, elas não acreditam que está sendo
18

amada. Elas acham que estão sendo amadas só por causa


da beleza.
Felipe Mas se elas não estão sendo amadas, ficam indignadas.
Carlinhos Como pode alguém não me amar, sou tão bonita?
Felipe Nunca houve uma mulher como Gilda.

POETA
Poeta Poesia!!!
Diante de vossos retratos, em todas as idades
Vejo que te amo de fato
Mais que minhas liberdades
Ou rimas
Ou primas
Ou outras que vieram depois
Visto que sou porque sois...
Além da lua, dos sóis e das estrelas
Que vimos juntos ou quaisquer outros assuntos
Sei que vos amo mais que temo a Morte
E conheço a origem dos meus problemas:
É que antes e cedo eu fiquei com medo
De te escrever poemas
(os atores aplaudem. Mas com um pouco menos de
entusiasmo)

LUÍSA E RAFAEL
Rafael Atrasada, atrasadíssima, ai, ai, ai... Merece palmadas no
bumbum e vara de marmelo na mão.
Luísa (emocionada) Sacana, bobo! (Beija ele) Rafael, tô precisando
ter uma conversa com você.
Rafael Eu também tô precisando ter uma conversa com você.
Luísa A minha é séria.
19

Rafael A minha é seríssima. Escute cá. Cancún, no Caribe. Sabe o


que tem lá além do mar magnífico? Um cassino fantástico.
Você já foi ao cassino?
Luísa Não, Rafael, eu...
Rafael É que um amigo topou trocar dois quadros meus por duas
passagens. Tá barato, mas é cinco dias em Cancún, semana
que vem, em minha companhia. Pega ou larga?
(riem muito dessa bobagem, mas Luísa logo fica séria)
Rafael Que que há com você? E não me diga que não há. Porque
eu nunca vi cair de uma gargalhada para uma cara triste
tão depressa.
Luísa Rafael...
Rafael (ainda na brincadeira, porém com medo) Arranjou outro,
não me ama mais. Fala, coragem.
Luísa É o exame. Nosso exame.
Rafael Não fica preocupada com isso, vá. Fica pronto segunda,
segunda eu vou lá contigo apanhar, não combinamos? Ou
vou apanhar sozinho, se você preferir. Ô Luísa, voce acha
que eu tô com Aids?
Luísa Eu te disse que ficava pronto segunda porque eu preferia
apanhar, eu sozinha.
Rafael (pálido) E daí?
Luísa Deu negativo pra mim e positivo pra você.
Rafael Não é possível. Você está brincando? Deixa eu ver.
(Luísa mostra. Rafael olha)
Rafael Minha nossa senhora!

CENA 4 – CRISE
Narrador Nós somos personagens.
Artista Hein?
Narrador Você é autor ou personagem? Você é personagem de quem?
Hein? De quem?
Artista Eu não sei. Nós somos também personagens?
Narrador Ou eles são personagens de nós?
20

Artista Não importa. Respeita o processo que o processo te


respeita.
Narrador Eu esqueci de contar a história de Telma e Glorinha. Que
estão juntos há muito tempo. Ficaram loucas uma com a
outra, quando se conheceram. Tinham tanto para se falar,
que ganharam poderes parapsicológicos. Encontravam-se
sem querer, várias vezes por dia, por absoluto acaso, nos
pontos mais diferentes da cidade. Era como se os deuses do
amor, eles mesmos, conspirassem a favor da união. Em
seus primeiros encontros, bebiam uma garrafa inteira de
uísque e até de porre, falando, falando, antes de terem
coragem de subir para o apartamento, tal era a intensidade
do encontro. Sempre se diziam:

TELMA E GLORINHA
Telma Nosso amor é hoje.
Glorinha Tudo pode acabar amanhã
Narrador Depois iam pra cama e trepavam gloriosamente até o sol
raiar, e o sol raiava todos os dias.
Telma Depois houve um dia em que aquilo passou.
Glorinha Eu lembro uma noite em que nós estávamos trepando, nós
trepamos um milhão de vezes. Quando, no meio da
excitação, eu olhei pra Telma e achei que ela não estava tão
excitada assim. Que ela não me amava mais como
antigamente. Depois, nas noites seguintes, reparei em mim.
E vi que também eu não trepava como antigamente, não
tinha a mesma emoção. Tudo o que aconteceu conosco
depois – o esfriamento, os conflitos, a rotina – foi o que
acontece com todo o mundo, inevitável.
Telma Glorinha, tô ruim da cabeça. Glorinha, muito angustiada.
Não lava a mal, não, mas precisamos dar umas folgas...
Sair sozinho, cada um pro seu lado, umad duas vezes por
semana... tá muito grude.
Glorinha Então é isso, outra vez! Nós já experimentamos, Telma, isso
de folga não existe, não dá certo! Você é a primeira a voltar
atrás, telefona pra onde eu estou, que me encontrar...
Telma Você que me telefone.
Glorinha Você
21

Telma Tá bem, nós duas. Mas agora é diferente. Eu estou me


sentindo muito fechada nesse casamento.
Glorinha Eu também estou me sentindo muito fechada nesse
casamento.
Telma Que a gente exagera, né, Glorinha? Nenhum casal é como a
gente. As pessoas acordam, vão trabalhar, só encontram de
noite, viajam... a gente acorda junto, almoça junto, trabalha
junto, fica junto o dia inteiro... É asfixiante.
Glorinha Asfixiante. Mas esquema de folga é besteira.
Telma Nós nunca tentamos pra valer.
Glorinha Mas, Telma, se é pra ter folga... não é melhor separar de
vez? Dar um tempo?
Telma Glorinha, tenho uma vontade enorme de desistir de tudo,
desse negócio de liberdade, tudinho, e ficar só com você,
abraçada, até o fim dos meus dias, vontade enorme.
Filosoficamente, não está certo, Glorinha, não está certo o
ser humano ser casado! Há alguma coisa de imoral nisso!
Glorinha Então vamos nos separar! Hoje! Agora!
Telma Quem tá falando em separação? Separar a gente não
aguenta, não quero nem ouvir essa palavra.
Glorinha Vá à merda, Telma. Vá pra puta que o pariu! (longa pausa)
Voltando ao assunto, como é, pra você, esse negócio de
folgas? Fala sério comigo, não vou ficar chateada. É pra
trepar com outras mulheres?
Telma Não! Duas vezes ou três por semana a gente sai separado,
pra ter vida pessoal. E no maior respeito. Não pode nem
dizer pra outra onde é que vai ou foi. E é proibido contar a
noite no dia seguinte, senão não vale nada. Vida pessoal.
Glorinha Você tá mentindo. O que você quer é tempo pra ter outras.
Você quer se separar! Tá bem, a gente se separa! Se separa
nesse minuto, se você quiser. O que que tem? Eu vou pra
casa da minha mãe, eu tenho um quarto lá.
Telma Separação é uma palavra que eu nem quero ouvir. Eu te
amo.
Glorinha Vai pra puta que o pariu!
22

NARRADOR E ARTISTA
Narrador Suspeito muitas vezes que todo amor, toda paixão, seja não
mais que o sexo. Tudo é sexo. Mais que suspeito. Sei.
Artista ... Tudo é sexo. O entardecer, o amanhecer, o
comportamento individual, a política, a biologia e a física.
Dizem que nas plantas, por exemplo, as flores são o sexo.
Narrador Mentira, as folhas também são os sexos que respiram. E as
raízes, sensualmente grudadas no chão.
Arista A natureza berra sexo e toda Criação é pura sensualidade!

GILDA
Gilda
(Rouba o microfone da cantora. Canta “Amore Mio”. Nesse
momento todos da festa se colocam aos seus pés. Enquanto
isso, Felipe se envolve com uma outra mulher.)
Amado mio
Love me forever
And let forever begin tonight
Amado mio
When we're together
I'm in a dream world
Of sweet delight
Many times I've whispered
Amado mio
It was just a phrase
That I heard in plays
I was acting a part
But now when I whisper
Amado mio
Can't you tell I care
By the feeling there
'Cause it comes from my heart
I want you ever
I love my darling
Wanting to hold you
And hold you tight
23

MISTERIOSA E FELIPE
Felipe (Pra mulher misteriosa, do outro lado da festa) Quem é
você?
Misteriosa Eu sou aquilo que os homens que eu amei fizeram de mim.
Felipe Como?
Misteriosa Sou amiga do Carlinhos. Foi ele quem me trouxe.
Felipe Você existe? Você é linda. Você tem quantos anos? Você
parece uma criança. O que você faz?
Misteriosa Eu escrevo um pouco.
Felipe Escreve? O quê? Poesia, teatro?
Misteriosa Uns contos. Nada de muito importante.
Felipe E se eu quiser ver?
Misteriosa Por um acaso, eu acho que tenho alguma coisa aqui. (dá
um papel pra ele) Pode ficar.
Felipe Eu vou ler. Eu vou ler e te devolvo, tá?
Misteriosa Não precisa.
Felipe Você tem cópia? Onde é que você mora?
Misteriosa Moro longe. Longe...
Felipe Daqui a pouco você vai me ajudar a passar na corda. Você
já passou na corda? Tem uma técnica. Você fixa o olhar. Eu
vou fixar os meus olhos nos seus. E você vai tentar passar.
Você vai me ajudar. (beija a mulher)
Gilda Amado mio
Love me forever
And let forever
Begin tonight
And let forever
Begin tonight
And let forever
Begin Tonight
(Todos aplaudem Gilda. Ela não agradece. Vê Felipe aos
beijos com a Mulher Misteriosa.)
A mulher misteriosa deixa Felipe. Começa o jogo da corda.
Entra uma música animada. Eles brincam de passar
embaixo da corda).
24

(No fim do jogo da Corda, Gilda encara Felipe, que tenta se


desculpar.)

Felipe (Já culpado) Eu sou um filho da puta. Um calhorda. Eu sou


um egoísta, um doente. Perdi o amor da minha vida.
Gilda Onde é que você tava?
Felipe Desculpa.
Gilda Você não me ouviu cantar.
Felipe Claro que ouvi.
Gilda Felipe, me dá um conselho, eu tô perdidinha.
Felipe Que foi, querida?
Gilda Que raiva! Eu quero explodir, Felipe. Eu não explodi ainda.
Eu quero explodir!
Felipe Gilda, quem explode é bolha de sabão, é bola de borracha.
Você é uma artista.

PAULO E MISTERIOSA
Misteriosa O que é que mais te atrai no amor?
Paulo As mulheres
Misteriosa Se você pudesse agora escolher uma? Qual você escolheria?
Paulo Todas
Misteriosa Que processo você sugere pra tornar a vida mais digna?
Paulo O suicídio
Misteriosa Acho que podemos jogar o jogo do pinto.
Paulo Que jogo é esse?
Misteriosa Um que eu inventei. Você aceita ser a prenda?
Paulo (faz que sim)
Misteriosa O jogo é muito simples. Quem achar o pinto, faz o que
quiser com a prenda.
Paulo Mas... Eu sou a prenda. E perco de qualquer modo?
Misteriosa Não. Você joga também. Se você achar, faz o que quiser de
si mesmo.
25

(As meninas jogam o jogo do pinto com Paulo. Ele perde.


Todas vão em cima dele)
Sabe, Paulo. É sempre melhor se arrepender de ter feito que
de não ter feito, esta é uma regra de ouro, que tira muito a
dúvida de gente. A pior coisa do mundo é uma pessoa saber
o que deve fazer e fazer outra!
Paulo Perdi! Vocês podem fazer o que quiser comigo! (As mulheres
caem em cima de Paulo)

CANTORA
Piadinha!
Um casal de velhinhos está deitado na cama. A esposa,
vendo a distância que há entre eles, lembra:
- Quando éramos jovens, você costumava segurar a minha
mão na cama. Que bons tempos eram aqueles...
O marido hesita, mas depois de um breve momento estica o
braço e segura a mão da esposa.
Mas ela não se dá por satisfeita:
- Quando éramos jovens, você costumava ficar bem
pertinho de mim. Que bons tempos era aqueles...
Uma hesitação mais prolongada por parte dele, que,
resmungando, vira o corpo com dificuldade e aconchega-se
junto dela da melhor maneira possível.
Ela, ainda insatisfeita, diz:
- Quando éramos jovens, você costumava morder minha
orelha. Que bons tempos eram aqueles...
Ele dá um longo suspiro, joga a coberta de lado e sai da
cama em direção ao banheiro.
Ela, sentindo-se ofendida, grita:
- Aonde você vai??
- Buscar a dentadura, véia chata!!
26

PAULO E MARIA ALICE


(M. Alice vê Paulo no meio das mulheres. Beijando todas.
Ela se aproxima e dá um tapa nele. Ela começa a arrumar
suas coisas)
Paulo Não pode ir embora não. Não tem nada de ir embora. Pára
com essa arrumação. Você sempre gostou de mim, confiou
em mim. Elas me sortearam, meu amor. No jogo do pinto.
Eu era a prenda. É a fraqueza humana. Você não podia ter
me deixado sozinho. Você leu “O Médico e o Monstro”? Meu
amor, eu não podia fazer nada. E as mulheres? As mulheres
que eu perdi por sua causa. Eu não quero que você vá. Eu
te amo. E se eu te amo eu estou automaticamente
perdoado. Eu juro que isso não vai se repetir. Escuta. Você
não me ama, é isso? Não me ama?

TELMA E GLORINHA
Glorinha A gente só faz brigar! Precisamos dar um tempo, um mês.
Você não queria folga? Folga de um mês. Pra ver se a gente
ainda quer ficar junto.
Telma Um mês é muito, não foi isso que eu falei.
Glorinha A gente se telefona todos os dias, se for preciso. Vai ser
duro pra mim também. Mas nós duas estamos precisando
de um tempo, pra botar a cabeça no lugar.
Telma Você está apaixonada por alguém, Glorinha? É isso?
Glorinha Não, Telma, que desconfiança. E você, tá?
Telma Claro que não. Mas concordo que estamos precisando de
alguma solidão... Um mês é muito, a gente pode se perder.
Glorinha Quarenta dias. Quarenta dias, como Jesus no deserto, você
sempre fala nisso. Se nosso amor for pequeno a gente se
perde, se não, não.

CARLINHOS, FELIPE E PAULO


Carlinhos (discursando) Nós que não pagamos o aluguel. Nós que
separamos das nossas mulheres. Nós que bebemos demais.
Nós que somos mentirosos, mesquinhos. Invejosos, fracos.
Nós que acordamos tarde e fugimos para o banheiro na
hora de pagar a conta e ainda mijamos fora do vaso. Nós
somos loucos. Eles, que honram seus compromissos, que
27

cumprem suas obrigações. Vivem segundo as leis. São fieis


as suas mulheres. Eles... eles são... nojentos!
Os dois Nojentos!
Carlinhos Existem três tipos de angústia. A que resiste a 1 uísque, 2
uísques ou 3 uísques.
Felipe Então eu preciso beber mais.
Carlinhos A embriaguez é uma necessidade do ser humano
Paulo Acontece que eu sofro. Você também não sofre?
Carlinhos Sofro. Sofro igual a você.
Felipe Olha pra mim? Você tá mentindo. Você tá falando isso só
pra me agradar.
Carlinhos Vocês são apaixonados pelo mundo, né? Vocês tão fudidos.
Os dois Por que? Por que, Carlinhos?
Carlinhos Mas e o Jogo do Pinto?
Felipe Que que tem?
Carlinhos Sacanagem, a gente perdeu o Jogo do Pinto!

OS FILÓSOFOS
Filósofo 1 Há coisas no mundo tão sutis e ancestrais que ainda não
ousamos nominar.
Filósofo 2 Dizer que a Paixão é o amor ao auge, ou que pode haver
sexo sem Amor ou Paixão sem sexto – são afirmações no
mínimo superficiais
Filósofo1 O Amor é sexo e Paixão, porque é.
Filósofo 2 Há algo nas entranhas do mundo que Ama.
Filósofo 1 A espécie humana é fera, mas uma fera que Ama.
Filósofo 2 Talvez o Amor seja a força última, madura, do pensamento
ele mesmo.
Filósofo 1 Nada me deu mais alegrias. Por nada sofri tanto. Isto pode
ser dito por todos os amantes. Sobre nenhum assunto
consegui aprender tão pouco. Nenhum sentimento é tão
novo toda vez que reaparece, tem tão diversas
características.
28

Filósofo 2 O amor é extremo. E extremamente mau, quando termina.


Pode matar um homem, de dor e sofrimento. Muitos
morreram. Sofrimento intenso como a dor física. Que
balança a vida em seus mais sagrados valores.
Filósofo 1 Por que dói tanto quando o amor acaba?
Filósofo 2 Por que dói?
Filósofo 1 O enigma está diante de nós. Se sabemos que o amor
acaba, por que sofremos tanto ao vê-lo acabar?
Filósofo 1 Por que é inaceitável?
Filósofo 2 Ah, a dor do amor! É mais que uma angústia. É uma febre,
um veneno, uma desidratação.
Filósofo 1 Poucas coisas são mais tristes quanto o fim de um
verdadeiro amor.
Filósofo 2 Que dói? Onde dói?
Filósofo 1 Difícil responder, porque dói tudo.
Filósofo 2 Dói por não se mais o que era.
Filósofo 1 Dói por tudo o que poderia ser, se ainda fosse, mas não
será jamais.

PAULO E MARIA ALICE


Paulo Eu tô sofrendo, Maria Alice. Como é que você me deixa
sofrer assim. Será que você não entende que foi um
momento?
M. Alice Acho que entendo.
Paulo E não me perdoa?
M. Alice Acho que perdoo.
Paulo Então porque você não vem pra nossa casa agora?
M. Alice Eu acho que não devo.
Paulo Eu te amo, Maria Alice.
M. Alice Eu sei. Eu também te amo.
Paulo E isso não basta?
M. Alice Não.
Paulo Descobri que não posso viver sem você. O mundo tem
muitas mulheres. Talvez você não seja a melhor, mas é a
29

que eu gosto. Eu fui uma criança numa mesa cheia de


doces. Agora eu aprendi.
M. Alice Sua comparação é engraçada.
Paulo E verdadeira. Acredita.
M. Alice Eu sou muito sozinha. Eu gosto de ser sozinha, mesmo
quando eu amo. Gosto de me sentir sozinha. Deixa eu
decidir.
Paulo Não vai ser fácil.

LUÍSA E RAFAEL
Rafael Estranha essa hora em que o teto da tua casa fica mais alto
e a sala mais larga. E você vê tudo, as coisas mais
familiares, como se fosse a primeira vez. Estranho, eu estou
numa paz imensa, veja só. É bom saber. Falar com um
médico assim, cara a cara. Passar pro lado de lá. Porque
tem muita gente boa, Luísa, viu, no lado de lá. Ô, desculpe
o engano, lado de cá.
Luísa Agora é esquecer. Tocar a fita pra frente, não foi o que o
médico disse?
Rafael Repetiu três vezes. Tocar pra frente. Senti como se minha
vida fosse uma bola de sinuca. Mas sabe o que é mais
interessante, nesse negócio do médico? É que é pra sempre,
nunca tive nada na minha vida pra sempre. Mas também
não é propriamente pra sempre. Só até eu existir.
Luísa De um dia pro outro vão achar a cura dessa porra.
Rafael Você tá muito bonita nesse vestidinho, sabia? Por que você
não tira ele? Como ontem e anteontem?
(Ele beija ela. O beijo é sexual)
Luiza Calma, Rafael...
Rafael Desculpe. Tem toda a razão. Eu é que não devia estar te
expondo a essa situação, não tenho nenhum direito. Dizem
que com beijo não pega, mas nunca se sabe, não é mesmo?
(agora é ela que se emociona e beija ele. O beijo é sexual)
Rafael Mas toca, só toca em mim, pra eu me sentir.
(Ela pega, eles se beijam. Luiza não aguenta, afasta-se dele,
com evidente medo)
30

Rafael Ok. Pega aí a câmera. Vamos fazer um videozinho em


homenagem a nossa paixão. Aperta o botãozinho da frente.
Rafael Rafael ao vivo e em cores. Meu nome é Rafael. Sempre
gostei de mulheres, porém minhas grandes paixões...
sempre foram homens. Ou será que também isso é mentira?
Sempre fui apaixonado por mulheres, mas, gostar mesmo,
sempre gostei dos homens. Mas no momento presente, não
há dúvida. Estou apaixonado por Luísa. Completamente,
senão nem estava fazendo ela passar por esse embaraço
todo. Compreendo o seu medo, mas juro que o meu é maior.
Luísa, vou morrer cedo. Tenho vontade de chorar, gritar,
fugir de volta pra Minas. Porém Minas não há mais. Por um
momento sinto ódio de Luísa. Afinal, foi por causa dela que
fiz o exame, eu bem que não queria fazer. Agradeço a Luísa
por ter me ajudado a descobrir a verdade sobre mim
mesmo. Corta!
(ajoelha aos pés dela)
Rafael Genoveva, Luísa, minha doce Genoveva Luísa. Há somente
uma coisa que o nobre pajem Rafael não pode suportar.
Torturas, sim! Pânicos? Por que não?
(Desfaz a posição e fala sério com ela. A sério e buscando as
palavras)
Rafael Luísa, teu amigo não vai dar pra eu ser. Meu Deus, que
bravura é essa que nasceu dentro de mim? Amantes ou
nada – eu se que estou pedindo demais. Queria eu poder
decidir por você. Por que, inclusive agora, não é só amor. Tô
até precisando de ajuda, sabia?

Poeta A vida
Idiota querido, é uma rameira!
Apaixona por brincadeira
Depois joga na sarjeta o amante ferido
Todos serão traídos por ela
Todos cairão de boca na deliciosa boceta
Como moscas nas teias
Não resistindo aos prazeres do sangue
Correndo nas veias!
31

Mas espera, inocente imbecil


Logo a promessa transcendente se reduz ao crime vil
No auge da paixão sublime o infeliz compreende
Que a amada entregou-se apenas por instantes
A vida é uma meretriz!
O preço da hora não diz, amanhã ou agora
Depende do freguês
Mas cada um gozará apenas uma vez!
Depois – é a despedida
Saciada a fome da vida ela se irá
Nenhum valor que um homem possa ter aquinhoado
Nenhum nome que possa ser gritado
Fará com que ela olhe para trás...
Outro amante espera, ansioso, para viver o instante
delicioso
Olhem, confesso
Que mesmo eu, um gênio do mal
Não imaginei nunca nada igual!
Maldade tão absoluta!
Querido, pobre, miserável
A vida é uma puta!

Todos A vida é uma puta!

Os atores sobem todos na cama. Eles se embolam, brincam,


jogam travesseiros uns nos outros, como na cena de “Todas
as mulheres do mundo”. Depois, aos poucos, vão se
deixando cair exaustos, uns sobre os outros. Adormecem.
Começa uma música suave, uma sinfonia.
32

CENA 5 – SEPARAÇÃO

Cantora Piadinha!
O marido ciumento demais começa a interrogar a esposa
que acaba de chegar da consulta do médico:
- Aposto que ele perguntou dos seus seios.
- Sim, perguntou.
- E das coxas, perguntou?
- Também!
- E do bundão? Ele perguntou do bundão?
- Não, de você ele não quis saber nada...

Cantora Eu comecei minha carreira de um modo convencional.


Levando pra cama um diretor de musicais da Globo que me
conseguiu um pequeno papel numa novela. Então eu achei
que devia mostrar os meus talentos para um autor de
novela que tinha uma mulher horrível. E deu certo! E o
diretor musical colocou na trilha da novela uma música
cantada por mim. E então por influência do diretor
financeiro da Central de Produções eu fui assassinada.
Numa sala fechada, com onze personagens, no capítulo 35.
Todos com motivo para terem me assassinado. Hoje tá
difícil pra mim conseguir papel até no teatro. Na novela que
vai entrar tem um papel ótimo da cantora decadente. Eu me
ofereci, é claro. Mas eles me acharam muito decadente pra
fazer a cantora decadente. Mas eles tem razão. Eu não devia
ter comido todo mundo lá dentro ao mesmo tempo...
Já fui feia, já fui bonita, sei tudo do amor. Já tive homens
que me adoravam e eu detestava. Outros que eu adorava e
me detestavam. Uns ruins de cama, outros péssimos. Já fui
uma deusa da beleza. Os homens caíam ao meu redor. Hoje
eu sou um bagulho e os homens continuam caindo ao meu
redor! De susto, eu acho. Eu eu tropeço neles. Se quiserem
saber alguma coisa sobre o amor, me perguntem. Eu sei
tudo. E posso resumir em poucas palavras. O amor não tem
saída, não tem vez, não tem solução. E sempre te faz sofrer
horrores!
33

FILÓSOFOS, MARIA ALICE E GILDA


Filósofo 2 Como é possível que um amor acabe?
Filósofo 1 Vejamos como o crime se processa: passado o ciclo normal,
a natureza pensa que aquele casal já deu o que tinha de dar
e retira-lhe o fluido mágico da paixão.
Filósofo 2 Então, um ou outro começa a olhar para os lados, em
tentativa aflita de recuperar o tesouro que perdeu. Então
outro ou um começa a esbravejar, esbofetear ou esfaquear.
Gritando que aquilo não está certo, é injusto, que é seu
aquilo que não lhe pertence.

NARRADOR E ARTISTA
Artista Quero ser tua
Narrador Mas quero manter minha liberdade
Artista Também quero manter a minha
Narrador Você quer ser minha ou quer ser livre? Escolhe.
Artista Abro mão da minha liberdade. Sou tua.
Narrador Assim não te amo, só te amo livre. Eu abro mão da minha
liberdade!
Artista Não, assim não te amo!
Narrador O homem é uma paixão inútil!
Artista O homem é teatral!
FILÓSOFOS
Filósofo 1 Não, ciúme não é amor.
Filósfo 2 O amor não existe. Não existe porque morre. E em
morrendo, não é amor.
(Filósofo se aproxima de Maria Alice)
Filósofo 2 (um homem segue M. Alice. Senta ao lado dela) Você me dá
licença? Você parece muito com uma... Uma pessoa que eu
conheci. A moça... eu gostei dela. Ela gostou de mim. Fomos
felizes. Foi tudo muito simples. Depois ela deixou de gostar
de mim. O meu desespero, se é que eu posso chamar
assim... é que... o tempo que eu fui feliz, eu não aproveitei
tudo o que pude. Quando eu podia, não aproveitei. Então...
em cada momento, dê-se ao próximo o melhor e o maior de
34

seu amor e ternura. Porque ninguém nunca passará duas


vezes pelo mesmo caminho.
(Filósofo se aproxima de Gilda)
Filósofo 1 Não somos nós que passamos pelo tempo. É o tempo que
passa por nós. Como um rio caudaloso e nós sentados na
margem. Cada gota é um instante... eterno.
Filósofos Bom, é hora de ir embora. Quem quiser vir com a gente,
será bem-vindo.
Gilda Eu também quero ir, eu vou. Vocês me esperam um
minuto?
Felipe Peraí, Gilda. Calma. Você é uma ingênua.
Gilda Eu não sou nada. Eu faço charme pra todo mundo, mas é
tudo estudado. Nem boa de cama eu sou. Eu sou uma
mentira, uma fraude. Eu preciso descobrir quem eu sou.
Felipe Isso é uma cena também. Você é uma atriz, é isso?
Gilda Não, Eu nunca teria tido consciência disso se eu não tivesse
vindo pra sua casa. Agora ouvindo ele falar, eu senti um
tesão, Felipe, como eu nunca senti na vida. Por isso eu
preciso ir.
Felipe Você tá confundindo tudo.
Gilda Não, não tô. Eu tenho de ir. Desculpa.
Felipe Você tá fazendo uma cena. Você tá me enlouquecendo.
Gilda Desculpa.

LUISA E RAFAEL
Luísa Quero me afastar de você que eu amo tanto, que eu só
quero abraçar. Quero me afastar de você. Não aguento mais
sofrer! Eu queria ser uma pessoa melhor, mais corajosa,
queria dar pra você a minha vida inteira, mas não aguento
sofrer! Sei lá o que eu vou sofrer? Tenho direito a uma vida
saudável. Você acha que eu vou me perdoar? Eu jamais vou
me perdoar.
Rafael Luisa... eu mudei de ideia. Eu disse que você podia decidir.
Mas não pode. Eu é que vou decidir por nós dois. Você vai
ficar comigo. Muitos casais no mundo vivem assim. Você
pode embora e nunca mais voltar, mas se você fizer isso...
Luísa, vai ser uma covardia.
35

Luísa Não é covardia, Rafael. É medo.


Rafael Filha da puta!

ARTISTA E NARRADOR
Artista E Telma e Glorinha? O que aconteceu com elas?
Narrador Assim que se separaram, Glorinha levou algumas peças de
roupa, o livro que estava lendo. Telma quase se arrependeu
no segundo seguinte. Mas depois que pensou que quarenta
dias era realmente um tempo bom, simbólico, suficiente
para que os dois elaborassem seus problemas, satisfizessem
seus desejos e pudessem então viver felizes para sempre.
Artista Para sempre?
Narrador Mas não foi assim que aconteceu. Um dia marcaram de se
encontrar. Telma tomou 3 úisques pra neutralizar aquela
angústia que ela sentia no peito. Glorinha estava muito
nervosa. Estava namorando, mas não queria de modo
algum ferir Telma. Não queria mentir pra ela. Não podia
dizer que estava apaixonada por outra.

TELMA E GLORINHA
Glorinha Você tá bem. Corada. Foi à praia?
Telma Deve ser o prazer de te ver. Queria que você voltasse pra
mim, hoje, Glorinha. Agora.
Glorinha Não posso ainda. Essa separação tem me trazido muita
coisa importante. Eu não quero que você sofra, mas
realmente estou na dúvida se devemos voltar ou não...
Telma Nós só demos um tempo, você me ama, eu te amo...
Glorinha Não sei se ainda te amo.
Telma (ficando puta) Tem outra na jogada. Quem é?
Glorinha Ninguém.
Telma Tem outra, Glorinha, não sou criança.
Glorinha Tem outros! Três! São três!
Telma É muito... isso não te cansa não?
Glorinha Estou numa fase que quero me divertir.
Telma Você consegue se divertir sabendo que estou sofrendo?
36

Glorinha Preciso cuidar da minha vida...


Telma Volta pra mim hoje!
Glorinha Não posso.
Telma Porque é hoje ou nunca, Glorinha. Eu tenho o meu orgulho!
Glorinha Então é nunca!
Telma Nunca pensei ouvir você dizer uma coisa dessas. Você é má.
Glorinha A pior criatura do mundo! Sou má, egoísta!
Telma Quem são os três? As três?
Glorinha Não vou contar.
Telma Vai embora. Some da minha frente. Não quero nunca mais
te ver!
Glorinha (levanta e vai embora)
Telma Puta!

CENA 6 - ACEITAÇÃO

FELIPE E CANTORA
Felipe e a cantora estão no palco.
Felipe canta My Way, de Frank Sinatra, enquanto a cantora faz a
tradução simultânea.

Felipe And now / Agora


the end is near /Que o fim está próximo
And so I face / Então eu abro
the final curtain/ a cortina final
My friend, / meus amigos
I'll say it clear/ eu sei que está claro
I'll state my case, / eu apresento meu caso
of which I'm certain/ um pouco obscuro
I've lived / eu vivi
a life that's full/ uma vida cheia
I travelled / viajei
37

each and every Highway / por todas as auto estradas


And more, /e mais
much more than this / muito mais do que isso
I did it my way / eu fiz do meu jeito
Yes, there were times / Mas houve tempos
I'm sure you knew / eu sei que voce sabia
When I bit off / que eu engoli mais sapos
More than I could chew / mais do que eu podia mastigar
But through it all / E aí então
When there was doubt / quando pintava a dúvida
I ate it up and spit it out / eu comia a dúvida e cospia fora
I faced it all and I stood tall / eu encarei todas e fiquei de pé
And did it my way / e fiz do meu jeito, modo, maneira,
estilo...
I've loved, / Eu amei
I've laughed and cried / Sorri, sorrei
I've had my fill, / Eu tive minha dose
my share of losing /minha cota de perdas
And now, as tears subside / e agora que as lágrimas
secaram
I find it all so amusing / eu acho isso tudo muito engraçado
To think I did all that / e pensar que eu fiz tudo isso
And may I say, not in a shy way / e posso dizer, não de
uma forma tímida
Oh, no, / Oh, não.
oh, no, not me / Não não eu
I did it my way / Eu fiz do meu jeito, modo, estilo, maneira,
jeitão...
For what is a man, / Porque o que é um homem?
what has he got? / o que é que ele tem?
If not himself, / Se não tiver a si próprio
then he has naught /então ele não tem nada
To say the things/ pra dizer as coisas
he truly feels / que ele realmente sente
And not the words/ e não as palavras
Of one who kneels / de um bundão que se ajoelha
The record shows /minha ficha atesta
38

I took the blows / eu soprei as trombetas


And did it my way / E eu fiz do meu jeito, modo, maneira,
estilo, jeitão...

LUÍSA E RAFAEL
Luísa Eu tava sozinha há um ano quando encontrei o Rafael. E
fui eu que insisti pra ele fazer o exame. Se culpa matasse,
eu teria morrido em alguns dias.
O momento da vida em que a pessoa se sente mais só é
quando ela tem de tomar uma decisão séria e descobre que
não tem ninguém pra tomar por ela.
Rafael ficou meses sem falar comigo. Eu telefonava,
telefonava e ele não atendia.
Mas aos poucos isso foi passando, incrível.
Hoje somos bons amigos, juro. Incrível como sofrimento é
uma coisa que passa. Ele está lindo, ótimo de saúde, a
coisa não se manifestou e arranjou um namorado, o Marcos
Paulo.
Rafael Essa cena foi escrita em 1995. Ainda se morria de aids.
Ainda se tinha muito preconceito com quem era
soropositivo. Acho... acho não. Tenho certeza de que Luísa e
Rafael teriam um final diferente se a peça tivesse sido
escrita fosse hoje. Não sei. No amor, ninguém sabe de nada.
Luísa Talvez eles ficassem juntos.
Rafael Os três?
Luísa Rafael, Luísa e o Marcos Paulo?
Rafael Isso. Pra provar que tudo é possível.
Luísa E se tudo é possível, por que a cura da Aids não é?

ARTISTA E NARRADOR
Narrador As pessoas que se amaram muito e não se amam mais
devem se tornar amigas. Senão o mundo fica cruel em
demasia. Um dia eu estava quase morrendo, macerado por
meus chifres, quando essa compreensão me chegou.
Simples e clara, como no fundo são as coisas.
Artista Então você sabe o que é o Amor?
39

Narrador Pois é, sei. Amar é querer o bem do outro! Verdade


magnífica! Não, não é obvio.
Artista Alguns entenderão.
Narrador Sim! Tinha certeza da minha descoberta! AMAR É QUERER
O BEM DO OUTRO!
Assim quero amar e ser amado. Assim será alcançada a
obra prima do amor! Se amo e sei que alguma coisa é o bem
que amo, então quero esta coisa. Se o outro me ama, que
ele me queira bem.
Artista AMAR É QUERER O BEM DO OUTRO!
Narrador Quando descobri saí escrevendo em todas as paredes. Falei,
discursei, expliquei aos amigos. AMAR É QUERER O BEM
DO OUTRO!
(Os atores vão para a plateia. E dizem pra cada um dos espectadores:
AMAR É QUERER O BEM DO OUTRO! E distribuem flores de papel)

Poeta Nunca pensei que pudesse sentir tanta saudade


Dizem que a palavra não existe em nenhum outro idioma
Mas eu conheço o seu significado
Domingos A alma procura a outra
Na velocidade do desatino
Não há lugar senão para a busca
Nenhuma satisfação que não seja o encontro
Nenhum engano possível
A alma sabe exatamente
O que a outra é
É aquela em tudo Maravilha...
Que encontrada seria Uma
No eterno abraço,
Porque não cala o trovão na mente
Porque não seca a lágrima da obsessão
Porque não cessa essa falta que enfraquece
40

Essa dor que apenas cresce


Porque não fecha o peito ardente
Demente
Ouve o abismo presente
Ouve o ruido dos passos
Então cai, eternamente.
Não sei se é verdade que de saudade também se morre.
Mas é melhor morrer que sentir saudade.

TELMA E GLORINHA
Glorinha Por que você não desiste de mim?
Telma Desistir da mulher mais bonita do mundo? Sabe, Glorinha.
Eu não vou te esquecer nunca, mas vou passar o resto da
minha vida tentando. Nossa história acabou e é preciso que
eu permita que isso aconteça.
Glorinha O que é que você tem feito?
Telma Todos os dias que vou dormir peço que a manhã não
chegue. Quando acordo peço que, por algum motivo, o dia
não termine. Essa é a minha rotina.
Glorinha ... eu tenho uma coisa pra te dizer.
Telma Vai com calma.
Glorinha Vou pra fora do Brasil. Paris. Pouco tempo. Um mês.
Telma Um mês não se mede em minutos, e sim em batidas do
coração. Vai com alguém?
Glorinha Não.
Telma Me deu uma tonteira. De pensar em você do outro lado do
oceano. Quer dizer que se eu... precisar muito de você,
mesmo se eu estiver morrendo, não vou poder te ver.
Glorinha Tô correndo o risco. Vai ser bom pra todo mundo. De longe
se vê melhor as coisas.
Telma É. Talvez.
Glorinha Aproveita esse mês e bota a cabeça no lugar. Volta a ser a
Telma que eu conheci. Volta a ser feliz. Afasta os ódios, os
fantasmas. Quedê a tua bondade? Teu gosto pela vida? Tua
41

artista? Foi por ela que eu me apaixonei. (riem) Se você não


voltar a ser a mulher feliz que sempre foi, como é qu eu
posso saber se eu ainda gosto de você?
Telma Quer dizer que você vai mas me deixa uma esperança...
Será que se eu ficar feliz de novo ainda vou gostar de você?
Glorinha Amar não é querer o bem do outro?
Telma Bobagem que eu dizia quando era feliz. O amor é uma
selvageria.

PAULO E MARIA ALICE


Paulo Promete, que você nunca mais vai ter outro homem na vida
que não seja eu?
M. Alice Não.
Paulo Por quê não?
M. Alice Não gosto de juramentos eternos. Promete você. Que nunca
mais vai ter uma mulher na vida que não seja eu.
Paulo Não.
M. Alice Por que?
Paulo Não gosto de juramentos eternos.
Narrador Acontece que um ex namorado de Maria Alice morreu. E ela
entrou numa fossa danada.
Artista E Paulo?
Narrador Não havia nada que ele pudesse fazer.
Artista E vai ser assim que a historia deles acaba?
Narrador Não. Existem dois tipos de mulheres. Lunares e Solares.
Maria Alice era uma mulher solar!
Paulo Maria Alice, vamos ter um filho. Um filho? Nós dois. Tive a
certeza disso agora mesmo. Maria Alice vamos ter um filho.
Paulo (para o narrador e a artista) E a falseta foi essa. Casamos de
véu e grinalda. Estou com dois filhos agora.
Narrador Mas que horror
Paulo Por causa de M. Alice desisti de todas as mulheres do
mundo. Quando penso o Don Juan que o mundo perdeu.
Artista Mas não pode dar certo. Essas coisas não dão certo.
42

Paulo Pois acho que dá. A gente briga, mas no fim dá certo.
Narrador E as outras mulheres?
Paulo O amor é como um objeto, você precisa cuidar, tomar
conta? Entendeu?

TELMA E GLORINHA
Telma Fica com as duas, com as três, com as quatro. Aceito
qualquer coisa, minha Glorinha.
Glorinha (rindo) Você quando cisma...
Telma Eu também queria te dizer que depois de muito tentar,
arranjei uma namorada. Você tem ciúmes?
Glorinha Tenho. Gosta mais dela do que de mim?
Telma Eu gosto de você acima de tudo. A verdadeira liberdade não
é seguir seus impulsos, é seguir suas escolhas.
Glorinha Eu vim pra ficar, Telma.

Narrador Glorinha nunca soube exatamente o motivo pelo qual voltou


pra Telma.
Artista Vai ver que essas coisas não são mesmo pra saber.
Narrador Depois de mais de um ano de angustias conflitos e dúvidas,
as coisas começaram a se acalmar.
Artista E foi preciso que se passasse mais um ano pra que
Glorinha dissesse um dia sem querer, em voz alta e em
meio a um assunto qualquer, que ela iria amar a Telma até
o fim de sua vida.
Narrador E Telma permaneceu apaixonada por Glorinha e nunca
mais pediu um “tempo”.

Telma Na sessão das oito? O filme não é bom, mas a gente vê


abraçadinho.
Glorinha Vamos passar uns meses numa praia?
Telma Ando querendo escrever um romance de amor cujos
personagens são insetos.
Glorinha Vamos foder o dia inteiro?
43

Telma Deixa eu te fazer uma festa em você até você dormir?


Glorinha Deixa eu te alegrar quando você estiver triste? Te animar
quando você estiver deprimida? Te ninar quando você
estiver cansada? Vamos foder o dia inteiro?
Telma Vamos jantar com teu pai? Almoçar com meu irmão?
Glorinha Deixa eu te fazer uma massagem com creme? Vamos
aprender piano?
Telma Deixa eu ajoelhar e beijar tua mão? Vamos ser tão felizes
que fiquemos calmos?
Glorinha Tão calmos que fiquemos fortes?
Telma Tão forte que possamos ajudar todos os amigos que
precisarem? Vamos foder o dia inteiro?
Glorinha Vamos aceitar tudo o que o outro é? Defender tudo o que o
outro é? Amar tudo que o outro é?
Telma Vamos provar para o mundo que o amor vale à pena?
Glorinha Vamos foder o dia inteiro?

FELIPE E TODOS
Felipe Então, esse é o roteiro que escrevi. Gostaram do roteiro? O
que acharam? (Silêncio de todos) O que é que foi?
M. Alice É interessante. Tem uma coisa bem psicológica
Paulo Tem uma proposta.
Poeta É genial.
Misteriosa O começo não me pegou.
Felipe Vocês têm de dizer a verdade. É uma merda? Eu desafio
alguém aqui a dizer que é uma merda.
Carlinhos Felipe, é uma merda.
Rafael Uma merda não. É hermético.
Felipe Não tem a menor importância. É só a minha vida.
Luísa É maravilhoso.

Artista Não, odiei esse final. O Felipe terminar assim, sozinho.


Narrador Mas foi assim que aconteceu.
44

Artista Que deprê. As pessoas vão odiar a peça.


Narrador Não ainda não. Porque agora vem o final. Vamos falar de
arte!
Artista Teatro!
Narrador Quem não faz Teatro não sabe o que é bom!
Artista Quem faz teatro sabe que é a melhor coisa do mundo.
Principalmente quando a estreia tem data marcada e
trancamo-nos todos naquele palco, como se nada mais
existisse. Como se a Vida lá fora parasse.
Narrador E sabe que pára?
Artista Em homenagem ao Teatro, a Vida abre alas e pára. Vivemos
ali, no palco, monomotivados, cirando a nossa obra – para
depois entregá-las aos outros com Amor.
Narrador A arte é o melhor antidepressivo.
Artista A Arte é a vida, sem as partes chatas.
(entram os filósofos)
Filósofo 1 A arte é uma atividade de utilidade pública!
Filósofo 2 A finalidade da Arte é ensinar os homens a viver melhor.
Filósofo 1 O mundo não será feliz enquanto todos os homens não se
tornarem artistas.
Filósofo 2 A arte anuncia o destino do mundo!

Felipe Escuta, tenho uma coisa pra dizer pra vocês. Acabou o a
peça, acabou a festa.
Carlinhos Mas peraí, Felipe. O melhor da festa é o fim da festa. A
gente é artista.
Felipe Esse negócio de artista foi uma coisa que eu inventei pra
não ter que acordar cedo, Carlinhos. Eu tava com
dificuldade pra dizer isso pra vocês, mas vocês acharam
meu roteiro uma merda, né. Perdi minha mulher, meu
apartamento, meu roteiro é uma merda. Tá ótima a minha
vida, perfeita. Vamos fazer outra festa. Pra comemorar!
(eles começam a dançar, brincam e caem exaustos pela
cama)
45

Gilda (Volta, linda, apaixonante, entre os corpos espalhados pelo


palco)
Viver é a maior das artes.
A vida é uma louca, daquelas que se teme, que corre
berrando por corredores do hospício e enfia as unhas
tirando sangue.
Para lidar com tal amada é preciso muita calma e, depois,
propor-lhe aventuras.
Aventuras que estejam à altura de seu total desvario.
É preciso prometer-lhe o rapto do hospício!
Entre beijos estonteantes garantir que ela é sã!
E, depois respirando fundo, fazer planos para o amanhã.
Não faz mal que não sejam planos pequenos. Sequer
importa que sejam verdadeiros.
A vida é uma louca, ela acreditará.
E assim, de plano em plano, foderemos até a madrugada,
aquela hora terrível, onde o rouxinol se confunde com a
cotovia. E então, exaustos, dormiremos abraçados, ou
melhor, morreremos sem querer, renascendo de propósito
em qualquer outro amanhã.

Narrador Então, foi assim. Felipe, isto é, Paulo, isto é, Telma, isto é, a
Poeta, isto é eu mesma, isto é, Domingos José Soares de
Oliveira, isto é Domingos Oliveira. Isto é, todos nós... olhou
ao mesmo tempo para todos os amores da sua vida e
desejou ao mesmo tempo cada um daqueles corpos, sem
porém, esquecer a peculiaridade de cada um. Uniram-se.
Todos atingiram o orgasmo ao mesmo tempo. O som de
uma sinfonia de Bach jorrou altíssima na eternidade e
Domingos compreendeu que todos os amores são um só.
Que todas as paixões são uma só.
(Um ator levanta e acorda um outro com um beijo. Outro
levanta e faz o mesmo. Todos se beijam.)

Cantora (começa a cantar. Todos entram e cantam juntos)


O show business
É o bom business
46

Não tem business melhor


A estreia foi sensacional
Sucesso ou fracasso é tudo igual
Vibrando com a plateia um mesmo tom
Quem não faz teatro não sabe o que é bom
O bom business
É o show business
Só tem gente legal
Saiu a minha foto no jornal
Perco ou ganho o prêmio não faz mal
Amo, odeio, grito, eu recebo e dou
Sou rei, mendigo, ator!
Levando a vida eu vou!
O bom da vida é o show!

(Black out)

Cantora Peraí, gente, não acabou ainda. Só mais uma!


Mosquito. Mosquitinho. Adora ir ao teatro. Mas a mãe dele
acha que ele é muito pequenininho pra ir ao teatro, e ela
não quer levar porque, como todo mundo, detesta teatro.
Mas o mosquitinho insiste tanto, que ela não aguenta e
deixa: “Tá bom filhinho, vai ao teatro, mas por amor de
Deus, cuidado com os aplausos!”

FIM

Você também pode gostar