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POBRE, POBRE PALHAÇO,

QUEBROU UM PÉ,
SANGROU UM BRAÇO

Timochenco Wehbi
O título acima poderia ser um dos possíveis nomes da peça em questão, mas acabei optando por
Palhaços mesmo. A tese é simples: eu que sou palhaço de Circo, tenho consciência da minha situação. Você
é palhaço de todo mundo, a toda hora, em qualquer lugar; justamente por isso, não tem consciência da
situação.
Mas a peça não é só isso. Assim como outras peças minhas, os personagens estão envolvidos
dentro de prismas multifacetados, refletindo-se neles de várias maneiras.
Um psicodrama? Pode ser que pareça, mas sem qualquer intenção a priori.
Uma colocação existencial? Social? Sim, todas as faces de um mesmo prisma, revelam o confronto
de duas situações humanas: o homem integrado dentro do status quo aspirando a tradicional caminhada
para o topo, e o homem-artista-ator, cujos valores encaminham-se contra a média, contra a estabilidade,
pois este segundo homem foi excluído, esmagado e enganado e sabe de tudo isso; o primeiro sofre o
mesmo processo, mas se acomoda, se apassiva e não quer encarar a realidade. O primeiro, um homem
comum que vai ao Circo em busca de fantasia e fuga, mas que ao se atrever a penetrar no camarim, no
outro lado do Circo, defronta-se com o reverso do espelho: negro, obscuro e mutilado.
Neste camarim está o palhaço Careta, e é aí, na sua faixa de segurança, invadido por um intruso,
que o Palhaço se arma com todas as suas garras e forças para não ser engolido de vez. Com o intruso, o
artista se exercita, dá o máximo de si, faz malabarismos físicos e mentais. Contorce, exorciza, revela-se,
representa, sofre, chora, ri.
O homem comum, pobre fã de palhaços perdidos nas trincheiras da memória que não passaram de
sonhos de infância reprimida, é obrigado a entrar num jogo dolorido, impossível, sempre recusado, nunca
encarado. Um jogo de sujeitos e objetos de uma mesma oração. O sujeito ativo e objeto passivo, e as ações
desenvolvidas, uma em relação às outras. “O palhaço, o que é? É ladrão de muié”, diz o refrão popular.
“Vai, vai, vai começar a brincadeira...” reza uma música de Sidney Miller sobre o Circo... Um palhaço sonha
galgar a escada que vai à lua, no poético livro de Henry Miller Sorrisos aos Pés da Escada... Os palhaços de
Picasso. Os palhaços de Fellini, Piolin, Arrelia, e uma infinidade de palhaços brasileiros.
A todo este maravilhoso, que estes seres nos proporcionaram, presto uma saudação tímida, pois
quando pequeno ainda, como muita gente, pensei em fugir com o Circo, pensei em ser palhaço de Circo,
mas como muita gente, não fugi. Tive medo... Era um domingo qualquer, eu tinha seis anos, minha irmã
onze anos. A atriz principal do drama que ia ser apresentado naquele domingo, naquele Circo, daquela
cidade do interior, havia fugido com um elemento da companhia e minha irmã fora convidada em cima da
hora para substituir a atriz. O drama era A Canção de Bernadette. Ela aceitou e me carregou pra cena. O
“ponto” berrava o texto e eu, no meio dos outros atores, fazendo a figuração. A irmã, séria no seu papel.
Olhei sorrateiramente e vi que quem fazia o ponto era um palhaço. E ele soluçava. Eu estranhei. Jamais
pensara que um palhaço pudesse soluçar.
Aquela matinê acabou. Aquele Circo, do qual eu não lembro o nome, levantou suas estacas e sumiu
pelo mundo afora. Minha irmã chegou mesmo a ser convidada para ir com o Circo, mas não foi. Eu não
cheguei a ser convidado, mas, intimamente, aquele palhaço que soluçava me preocupou.
Tempos depois o Circo volta à minha cidade. Cadê aquele palhaço? Suicidou-se, me disseram. Eu
tinha sete anos. Fui pra casa, entrei num porão, apaguei a luz e chorei. Até não mais poder.

1
PALHAÇOS
Peça em um ato

CARETA - um palhaço.
VISITANTE - um rapaz comum.

Tudo se passa num camarim de circo, um velho e pequeno circo. No intervalo entre duas sessões.
O palhaço é pessoa cheia de nuances: ora trágica, ora cômica, patética, burlesca, agressiva, lírica.
Em poucos momentos da peça podemos ver quem realmente é o palhaço. Geralmente está representando.
O visitante é um homem limitado ao círculo que sua formação o inscreveu.
Aparentemente, o espetáculo pode parecer agressivo, porém a própria condição humana de
procura e desencontro deve predominar, quase que magicamente, sobre o aspecto de desafio e luta entre
os dois personagens. Não há uma luta, mas sim uma exposição melancólica desta condição humana.

Marcha de circo. Termina a primeira sessão. O palhaço Careta entra no camarim, tira a jaqueta, senta num
banquinho frente a um espelho, numa mesa. De repente, vê pelo espelho a entrada do Visitante por uma
abertura na lona...
CARETA: Quem é o senhor?
VISITANTE: Boa noite... (timidamente).
CARETA: O que o senhor deseja?
VISITANTE (apontando a lona): É que vi uma abertura e entrei pra...
CARETA (abruptamente): Abertura? Onde? (vê a lona) Ah... (Sério) “É proibida a entrada de pessoas que
não pertençam ao circo”... Não leu o aviso lá fora?
VISITANTE (inibido): É que eu vi o senhor lá da plateia e...
CARETA (estalando a língua): Ah, um espectador!
VISITANTE: É, sou.
CARETA: Bem, neste caso o senhor não é tão estranho assim. Em que lhe posso ser útil?
VISITANTE (encabulado): Eu... Eu vim pra cumprimentar o senhor, ver o senhor de perto... Apertar as suas
mãos.
CARETA (estendendo-lhe a mão): Se isto te satisfaz, toma lá, a minha mão à sua disposição!
VISITANTE (emocionado): Meus parabéns!
CARETA (surpreso): O que está acontecendo? Você está tremendo todo.
VISITANTE: É de emoção.
CARETA: Emoção?
VISITANTE: Emoção sim, de estar aqui...
CARETA: Assim você me envaidece demais. Não exagere tanto!
2
VISITANTE: Gosto muito de circo, sabe, principalmente de palhaços... E o senhor é um dos mais engraçados
que já vi em toda minha vida.
CARETA (estalando a língua): Ah, um fã!... Quer dizer que o senhor gostou das minhas palhaçadas?
VISITANTE: Ora, todo mundo gosta de palhaçadas.
CARETA: Por que o senhor me acha um dos mais engraçados, hein?
VISITANTE: Por causa das coisas que o senhor faz.
CARETA (curioso): As coisas que eu faço?!
VISITANTE: O senhor faz a plateia rir e...
CARETA: Rir do que?
VISITANTE (rindo encabulado): Ora, seu Careta, o senhor sabe melhor que eu. Tá querendo fazer alguma
piada comigo? Eu conheço muito bem as brincadeiras dos palhaços.
CARETA (sério): Eu falo sério rapaz. E o camarim não é lugar de piadas nem de brincadeiras. Apenas desejo
saber o que é que espectadores como você pensam de palhaços como eu... É claro!
VISITANTE: Pra mim, seu Careta, o palhaço diverte a plateia, até mata a gente de rir, isto quando é
realmente um bom palhaço, lógico... Não é verdade?
CARETA: É uma verdade, mas não a verdade.
VISITANTE: Ora...
CARETA: E se por acaso o público não rir das maluquices do palhaço, de quem é a culpa?
VISITANTE: Acho que é do próprio palhaço.
CARETA: Por que do próprio palhaço?
VISITANTE (embananando): Bem, é que esse palhaço não fez aquilo que devia, não foi engraçado... E, a
plateia não ri, porque esse palhaço não é um grande artista. É isso que eu acho!
CARETA (admirado): Ah, é?... Então eu sou um grande palhaço? (Eufórico) Um grande artista?
VISITANTE: Sem dúvida.
CARETA: E o que significa um grande artista?
VISITANTE (encabulado): Pra mim?... É a pessoa mais feliz do que a gente, que se diverte e faz a gente se
divertir... Que vive viajando, que... O senhor sabe como é. (Decisivo) Um artista é um artista!
CARETA (irônico): Excelente resposta!
VISITANTE: É difícil de responder.
CARETA: Depende de quem responde.
VISITANTE: Pra mim é difícil. Mas, o senhor, que é artista, deve saber melhor do que qualquer pessoa.
CARETA: Deveria saber. Tenha apenas uma vaga ideia. (Divagando) Às vezes eu mesmo não sei quem sou, o
que sou. Ser palhaço é uma mera condição e dentro dela tento existir...
VISITANTE: Não estou entendendo muito bem, seu artista...
CARETA (irritado): Como pode me chamar de “seu artista”, se nem sabe o que isso significa!
VISITANTE: É costume de dizer.
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CARETA: Então você diz as coisas só porque costuma dizê-las?
VISITANTE: Não é bem assim não.
CARETA: Só posso lhe afirmar que há artistas e... Artistas.
VISITANTE (alegre): Foi isso mesmo que eu disse: um artista é um artista!
CARETA (severo): Não foi não!
VISITANTE: O senhor me confunde.
CARETA (explicativo): Preste atenção, vê se entende. Há vários tipos de artistas - atores, pintores, músicos,
escultores, poetas, palhaços - uma infinidade perdida pelos quatro cantos do mundo (divagando) em busca
de um pouco de fantasia, de uma liberdade ilusória. (Pausa).
VISITANTE (cortando): De que o senhor está falando?
CARETA (bravo): Estou falando de Arte, de artista! (Continuando a demonstração)... É alguém que brinca
com as palavras... Eu brinco com elas: solto, inverto, anulo, invento, improviso-as, como improviso meus
gestos e movimentos...
VISITANTE (bobo): É engraçado...
CARETA (percebendo, irônico): E agora... Já sabe o que é um artista?
VISITANTE (fingindo): É bacana ser artista, né?
CARETA (volta-se para retocar a maquiagem frente ao espelho, desligando-se): Bacana... Huuum... Deve
ser...
VISITANTE (sentindo-se rejeitado, vai afastando-se para a saída): Bem, preciso ir andando... (Chamando a
atenção sobre si). Até logo, seu palhaço... Foi um prazer...
CARETA (voltando-se abruptamente como se se ofendesse pelo “seu palhaço”): Espera! Você já pensou,
alguma vez em fugir com o circo, em ser palhaço?
VISITANTE (espantado, vai se sentando automaticamente numa banqueta): Uai, como o senhor sabe disso?
Eu era ainda criança... (encabulado) O senhor me conhece de algum lugar pra saber?
CARETA (incisivo): Conheço... Muita gente do teu tipo.
VISITANTE (cortando empolgado): Foi coisa passageira, fogo de palha. Eu devia ter uns 9 anos, quando
enfiei na cabeça essa de fugir com um circo que estava armado do lado da minha casa. Eu tinha amizade
com todos os artistas, não perdia um só espetáculo. Então eles me convidaram para ir embora com eles...
Na noite da partida pensei (Representa) “Vou junto, vou junto com o circo e ninguém me segura!” Ninguém
me segura pois sim. Como a gente fica metido nessa idade, né? De madrugada, me decidi, e já ia saindo, de
mansinho, pelos fundos, na ponta dos pés, quando senti no cangote uma mão pesada que me agarrava. Um
frio me subiu pela espinha (Grita) “Não, pai!” Na outra mão dele, uma vara de marmelo. (Contorcendo-se)
Desce vara, sobe vara, e eu gritando, berrando até perder a voz. O velho me malhou sem dó. Me arrepio só
de pensar em ver uma vara de marmelo e...
CARETA: Depois desta, desistiu de fugir com o circo.
VISITANTE: Tive de desistir. E também, depois a gente vai crescendo e descobre que precisa lutar pra viver,
se instruir; e essas criancices acabam saindo da cabeça da gente.
CARETA (irônico, ofendido): Ah... criancices!

4
VISITANTE (percebendo a gafe): Quer dizer...
CARETA (contendo-se): Como você mesmo disse, ser palhaço ou ser artista é levar uma vida bacana,
divertida, foi ou não foi?
VISITANTE: É eu disse.
CARETA (irônico): Então: está em tempo ainda de você levar essa vida.
VISITANTE: Nem por brincadeira.
CARETA: Presumo que seus pais não mandam mais em você.
VISITANTE (triste): Morreram.
CARETA (apertando suas mãos, irônico): Meus pêsames.
VISITANTE (sério): Que Deus os tenha.
CARETA (animando-se): Então não há mais nada que te impede ou há?
VISITANTE: Sou um homem que trabalha, sou muito responsável.
CARETA (irônico): Ah, você tra-ba-lha!
VISITANTE: Das sete às sete, isso quando não faço hora extra! É fogo! Dou um duro desgraçado.
CARETA: Gosta do seu trabalho?
VISITANTE: Preciso dele e a gente acaba se conformando.
CARETA: E o que o senhor faz?
VISITANTE: Trabalho no comércio.
CARETA (burlesco): Opa, tenho o prazer de conversar com um comerciante!
VISITANTE: Sou balconista. Lido com calçados. É um trabalho humilde, mas honesto. Não é lá desses
empregos. Lá na loja a gente tem futuro.
CARETA: Futuro... Como é isso?
VISITANTE: Quem se esforça tem. Já estou no ramo há dez anos e...
CARETA: Dez anos?! E é balconista ainda?
VISITANTE: Com a graça de Deus! Pra quem começou limpando privada, posso me dar por feliz. Hoje
agrado os fregueses, ganho boas comissões e o patrão anda notando muito a minha dedicação... Acho que
não demora a minha promoção e...
CARETA: Promoção?!
VISITANTE (pomposo): Ser gerente.
CARETA: Ah, o topo da escada!... É esta a sua maior ambição?
VISITANTE: Merecimento e recompensa.
CARETA (encantamento fingido): Então, um dia você espera ser gerente de uma loja de sapatos!
VISITANTE (um pouco triste): Esperar, sempre esperei. Mas no momento não posso ainda.
CARETA: Uai, por quê?
VISITANTE: Sabe como é, hoje em dia quem não tem diploma fica empacado.
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CARETA: Aahn... E você não tem o bendito diploma?!
VISITANTE (irritado): Maldito professor de português! Vivia implicando comigo, o filho da mãe! (imitando-
o) “O que é sujeito, o que é objeto? O que é não sei mais o quê?...” Um dia ele passou das medidas: me
perguntou, e eu de birra não respondi. Aí me xingou de burro, jumento... Vivia me insultando. Mal acabou
de me humilhar, devolvi pra ele tudo quanto era palavrão. Pra quê! Apanhou a varinha de marmelo e me
ripou as costas. Não deixei por menos, voei pra cima dele... Daí me chutaram pro meio da rua. Expulso por
culpa daquele lazarento! Depois disso desisti de estudar por algum tempo.
CARETA (fingindo-se compadecido): E agora, hein?! Vê como está lhe faltando o diploma!
VISITANTE (pomposo): Acha que sou besta! Estou fazendo o Telecurso. É mais rápido. Até o fim do ano
descolo meu cartucho.
CARETA: Esses cursos são um grande quebra-galho, não?
VISITANTE: Mas nem é!
CARETA (irônico): Não fica difícil pra você...?
VISITANTE: Fica sim, racho a cabeça de tanto estudar. É um sacrifício danado.
CARETA (festivo): Mas a recompensa vai ser altíssima. Você vai trocar sua roupa por um terno de casimira
inglesa, ter um gabinete com poltronas de couro, telefone com linha direta, uma gostosa secretária
bilíngue. Vai ser chamado de Comendador, comandar todos seus subalternos. O salário aumenta. Uma
mansão, uma casa de praia, iate, Nova Iorque, China, Bariloche. Letras de câmbio, cartão de crédito. “Relax
for men”...
VISITANTE (empolgadíssimo): Sonho com tudo isso há muito tempo!
CARETA: Maravilha! Torne seu sonho realidade, já!
VISITANTE (triste): Se só o diploma pudesse me transformar em gerente, eu estava feito, feitíssimo.
CARETA (perscrutando irônico): Existe mais algum problema?
VISITANTE: Não sou casado... Exigem que gerente tem que ter família, pois aparenta mais
responsabilidade, sabe como é, né?
CARETA: Acho que sei... (malicioso) mas isto não é problema, pois tem tanta mulher louquinha pra agitar a
periquita... Querendo se casar, ainda mais com um garotão com futuro tão promissor.
VISITANTE (cabisbaixo): Casar eu quero... Mas...
CARETA (malicioso): O quê?! Vai me dizer que teu negócio não é mu...
VISITANTE (cortando ofendido): Qual é? Não é isso não. Sou muito macho, graças a Deus! E bem provido!
Deus o livre!
CARETA (repentinamente): Você é cristão, rapaz?
VISITANTE: Católico, apostólico, romano! Por quê?
CARETA: Não se deve usar o nome de Deus em vão!
VISITANTE: Não estou usando não. (Triste, titubeando)... É que... É que... Eu tinha uma noiva.
CARETA (estalando a língua, curioso): Aaaah... Existe uma noiva na sua história!

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VISITANTE (amargurado): Não existe mais... Rompemos o compromisso. Outro dia ainda. (desespero) Não
sei o que fazer, não sei mesmo... Moça honesta, delicada. O enxoval já estava pronto pra gente se casar
logo que eu me formasse.
CARETA (fingindo): Pobre rapaz.
VISITANTE: Eu não devia estar amolando o senhor com essas coisas... (quase soluçando) Tenho sofrido
muito, seu Careta, muito.
CARETA: Calculo que veio ao circo para se distrair um pouco.
VISITANTE: É verdade. Hoje me senti tão desesperado que tive medo de me descontrolar e fazer uma
loucura, de tanta solidão.
CARETA: Ligou pro CVV?... Pensou em se...
VISITANTE (defensivo): Centro de Valorização da Vida?! Não pensei em suicídio não! É pecado. Deus o livre!
O medo foi de pirar, aprontar uma pesada... Parar na cadeia! Bêbado!
CARETA (apavorando-o): Choque no cacete. Pau de arara. Enrabado pelo touro!
VISITANTE (tremendo): E fichado pelo resto da vida. Despedido da loja. Olho da rua. O que eu ia fazer
então? Hein? Não quero nem pensar nessa desgraça.
CARETA (apaziguando): Foi melhor ter vindo ao circo, rir das palhaçadas do papai Careta, expulsando essa
piração da cuca... Esquecer essa noivinha ingrata...
VISITANTE: O espetáculo acabou... Mas dela eu não esqueci não.
CARETA: Arruma outra.
VISITANTE: Só gosto da Dorinha.
CARETA: Substitui ela.
VISITANTE: Não dá. Já tentei. Mas é a Dorinha, só a Dorinha... (desabafando) Eu não devia estar falando
dela, mas não aguento mais. Não aguento!
CARETA (postura de padre que ouve confissão): Sou todo ouvidos. Pode se confessar.
VISITANTE (nostálgico): Antes, toda a noite, juntinhos. Namorando na sala, de mãos dadas. Vendo
televisão. Ah, como eu era feliz!... Mas isso acabou. Só de pensar nela, me dá um nó na garganta e tenho
vontade de chorar. Que vergonha!
CARETA: O riso alivia, o choro também.
VISITANTE: Chorar de raiva só aumenta o ódio da gente! (Nervoso).
CARETA (curioso): Raiva?
VISITANTE (explodindo): No dia que levei o fora, não me conformei. Quase arrebentei a cara dela. Pudera,
já tinha dado entrada nos móveis, alugando apartamento... E de repente: tudo por água abaixo... Também,
a Dorinha era muito ambiciosa, queria mais, sempre mais... Anel de brilhantes, carrão último tipo, viagens...
CARETA: Depois de se casar com ela, você poderia proporcionar-lhe tudo isso e o céu. Não explicou pra
ela?
VISITANTE (irritado): Ela entendeu, mas a família é quem meteu o bedelho e virou a cabeça dela. Família
lazarenta! Sempre fui legal com eles. Nunca faltei com o respeito...

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CARETA (irônico): Mentira.
VISITANTE: Sabiam que as minhas intenções eram sérias, mesmo assim desmancharam o noivado.
CARETA (incisivo): Tem certeza que foram os pais que desmancharam?
VISITANTE (titubeando): Bem... Tinha coelho naquele mato... Foi por causa de um parente afastado, um
cara cheio da grana.
CARETA (estalando a língua): Aaaah... Existe outro personagem na história!
VISITANTE (exaltado): Um maconheiro filho da puta! Traficante de tóxicos! Pois é, o viado tanto fez que
levou todo mundo na conversa. Vivia enchendo todo mundo de presentes e...
CARETA: A Dorinha acabou simpatizando com ele...?
VISITANTE: Que nada! Ela preferia ver o demônio na frente! Precisa ver como ela chorou no dia em que se
despediu de mim!
CARETA (irônico): Imagino, estou tentando imaginar!
VISITANTE: Moça decente está ali. Não quis desobedecer os pais. Um anjo! E como gostava de mim!
CARETA (cínico): Honrar pai e mãe é um dever...
VISITANTE (irado): Interesseiros, cachorros! Quem sou eu? Um joão-ninguém de bolso furado. Isto é que se
recebe quando se é honesto.
CARETA (compadecido-fingido): Porra, e agora hein? Tua vida me parece bem enrolada. Como sair dessa?
VISITANTE: Estou fodido. Eu tinha prometido pro patrão que me casava logo depois do diploma. Me deu
até adiantamento pros móveis. Sujeito bom está ali.
CARETA: Se este patrão é um bom patrão, explica pra ele a situação, que vai haver uma solução... Certo ou
não?
VISITANTE: Pensa que é fácil?! Lá na loja está cheio de gente querendo abocanhar o meu lugar! A vaga não
vai esperar até eu arrumar outra noiva não.
CARETA (enérgico): Escuta aqui, meu, você ama mais a Dorinha ou a cobiçada vaga de gerente?
VISITANTE: É claro que é a Dorinha. Moça honrada, religiosa, virgem-virgem, ouviu bem? Não se
encontram mais moças como ela hoje em dia.
CARETA: Virgem? Sei... E você nunca desconfiou de nada?
VISITANTE (preocupando-se): Desconfiou... Do quê?
CARETA: Das intenções da Dorinha?
VISITANTE (agressivo): O que é... O que o senhor está dizendo...? Não admito que o senhor me diga que ela
estava me... Me...
CARETA: Fala! (Faz sinal com chifres na cabeça).
VISITANTE (agressivo se aproxima de Careta): Tá pensando que eu sou...
CARETA (severo na defensiva): Alto lá, meu chapa! Eu estava quieto aqui no meu camarim, na minha
própria casa, e você veio me ocupar na minha hora de descanso e...
VISITANTE (lamentoso): Foi o senhor que me deu corda. Não é fácil o que estou passando. (Frisa)
Experimenta ficar no meu lugar, experimenta!
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CARETA: O que posso fazer, hein? Ouvir, eu te ouvi, dar minha opinião, eu dei, e então?
VISITANTE (acalmando-se): É, ninguém pode fazer nada por mim. Eu não devia ter vindo.
CARETA: Não se arrependa - a minha arte é a de amparar necessitados.
VISITANTE (saindo): Bem, até logo, foi um prazer. O senhor é mesmo um grande artista.
CARETA (abruptamente como se a palavra artista doesse em seus ouvidos): Espera aí. Você empregou
novamente a palavra artista. Poderia me dizer pelo menos que tipo de artista eu sou? Poderia?
VISITANTE (pára, encabulado): Deixa pra lá. Fica pra outro dia...
CARETA (tapa-lhe a saída): Não sabe, não é mesmo?
VISITANTE: Não, não sei. Vou indo.
CARETA (amavelmente): Calma, rapaz, não posso deixar você ir sem eu lhe explicar a minha arte.
VISITANTE: Não precisa seu Careta, eu entendo.
CARETA (insistindo): Não, não. Você foi muito gentil em me explicar a sua profissão, devo em troca, explicar
a minha. Você ter por obrigação saber o que é um artista. Vamos, senta!
VISITANTE (sentando, atabalhoado): Está bem... Que tipo de artista é o senhor?
CARETA (sério): Sou um ator. Uma pessoa que age, atua, representa... Que interpreta.
VISITANTE: Como assim?!
CARETA: Aiaiai... Como é que eu poderia dizer... Vejamos. Há pouco você me disse: “Experimenta ficar no
meu lugar, experimenta”.
VISITANTE: Disse, e daí?
CARETA: Se eu ficar em seu lugar, eu lhe demonstro o que é um ator.
VISITANTE: Como?
CARETA (iniciando uma representação mais enfática): Você gostaria de ser palhaço de circo?
VISITANTE: Já disse que quando era pequeno...
CARETA (enérgico): Agora, gostaria?
VISITANTE: Não posso, tenho que enfrentar a vida...
CARETA (sarcástico): Aaah, é mesmo, você é um indivíduo sério, responsável.
VISITANTE: Não estou querendo ofender a sua profissão...
CARETA: Nem conseguiria.
VISITANTE: É que escolhi a melhor profissão pra mim e...
CARETA (seco): Eu escolhi, você não.
VISITANTE (sério): Gosto muito do que faço.
CARETA (ríspido): Enfiar sapato nos pés dos outros, fedendo a chulé, cheios de frieira, gosta?
VISITANTE (na defensiva): Meu trabalho é muito limpo e honesto.
CARETA (arrancando suas próprias botas e apanhando os pés, fingindo dor): Se é, malditos sapatos!

9
VISITANTE (assustado): O que o senhor está fazendo?!
CARETA: Uiuiui... Olha, vê como meus pés estão vermelhos, inchados, vê.
VISITANTE (admirado): Puxa vida!
CARETA: Chega aqui, ponha a mão neles.
VISITANTE (relutando): Acho que o senhor não está regulando bem.
CARETA (tocando na vaidade do outro): Estou ou não falando com um especialista no assunto?
Daqui em diante, o Visitante assume a postura de vendedor de calçados, desligando-se da realidade de
Careta, fato que o irrita.
VISITANTE (apanhando os pés de Careta e examinando-os cuidadosamente): Pois bem...
CARETA: Está sentindo como meus pés estão doloridos?
VISITANTE: Credo, que baita olho de peixe! Esses calos podem infeccionar e...
CARETA (irritado): Está sentindo minhas dores? Hein?
VISITANTE (examina o calçado): Acho que deve ser a fôrma... É... É a fôrma. O senhor deve trocar
urgentemente de número. Este aqui deve ser 38 - é muito pequeno pros seus pés. Por que não tenta
experimentar 39...? Não, 39 não vai servir ainda! Compra o número 40.
CARETA: Acorda, rapaz, não estamos tratando de negócio agora. Está sentindo minha dor? Reparou como
eu me retorço todo no palco...
VISITANTE (cortando): O que reparei e acho muito esquisito, é que o senhor usa botas pesadas e calculo
que este não seja o calçado mais indicado para o trabalho que o senhor realiza. Por que não experimenta
um tipo mais leve, desse que curva com o movimento dos pés, desse - como é o nome mesmo?... Taí: mo-
cas-sim! (Feliz) Mocassim é uma beleza! Não esfola, não cria calo, se ajusta no pé como uma luva, e
inclusive é mais barato.
CARETA (dando corda): Que imponência! De balconista a gerente, o grande sonho!
A partir deste momento Careta passa a representar dois papeis: o do próprio Visitante e o de seu patrão. O
Visitante representa o papel de um freguês qualquer. Uma situação de compra e venda... Mágica e
patética...
CARETA (anunciando efusivamente): Entrem, entrem meus senhores! Não percam esta sensacional
oportunidade! Aproveitem a nossa liquidação anual de calçados! É a grande queima: tudo a preços
módicos. Revolução total, pague dois e leve três. Sapatos, botas, botinhas, sandálias, chinelos, chinelões,
cromo, pelica, verniz, camurça, o estoque completo para a satisfação geral do freguês. (Para o Visitante)
Boa tarde, distinto senhor, vamos entrar. (Sentando-o na banqueta) Pode pedir o que desejar, estamos
aqui para servi-lo. (Assumindo o patrão, sempre com a voz grave). Ei, sua lesma, está dormindo!
BALCONISTA (Careta, submisso): Já vou patrão, num instante.
PATRÃO: O freguês está com pressa!
BALCONISTA: Eu estava...
PATRÃO: Rápido!
BALCONISTA (para o freguês): Boa tarde, como tem passado? (Pausa) À sua disposição, o estoque é
bastante variado... Talvez pode chover e...

10
PATRÃO: Não enrole, o freguês está sem tempo!
BALCONISTA: Aaah, sim... O senhor prefere um calçado esporte ou social? (Pausa) Esporte... Pois não... (Vai
saindo).
PATRÃO: Perguntou a cor que o cliente deseja?
BALCONISTA (volta): Ô que cabeça! Preto ou marrom, meu senhor? (Pausa) Cinza?... (Saindo) Com licença,
vou ver se tenho cinza...
PATRÃO: Já indagou o número que o freguês calça?
BALCONISTA (volta): Aaah é, desculpa. Qual o número? (Pausa) 43? Vou ver se temos (saindo).
PATRÃO: Ah, meu saco... E o tipo de sola, perguntou?
BALCONISTA (volta): Borracha ou couro? (Pausa) Não importa? (Apanha um par imaginário, colocando-os
no freguês) Olha que beleza. Sente a maciez, sente.
PATRÃO: Cuidado para não ferir o pé do cliente!
BALCONISTA (maravilhado diante do freguês que caminha experimentando os sapatos): Não é uma
maravilha? Feitinho sob medida... E por esse preço o senhor não encontra em lugar nenhum da cidade...
(Preocupa-se) Caro? É de graça, meu senhor...
PATRÃO: Corra! O comprador deseja calçados mais em conta!
BALCONISTA (atarantado corre de um lugar para outro): Mais baratos que estes?... Onde?
PATRÃO (apanhando um par de mocassins): Você é uma nulidade! Mostre esses mocassins para o freguês.
Não notou que ele tem pé chato?
BALCONISTA (apanha os mocassins e, ao dirigir-se pro freguês, percebe que ele está indo embora. Suplica):
Olha aqui estes, meu senhor... Por favor, o senhor não pode ir embora sem conhecer nosso estoque... Por
favor, talvez um sapato para seu filho... Sua esposa...
Neste momento Careta continua como Patrão e o Visitante assume ele mesmo na situação que está
ocorrendo...
PATRÃO (bravíssimo): É um absurdo! Deixar sair um freguês de mãos vazias! Que vendedor é você?
VISITANTE (desesperado): Eu tentei, eu me esforcei, eu...
PATRÃO: Você é um burro, um beócio, um cretino! Vai por o uniforme de faxina outra vez. Limpar bosta.
Rebaixado. (Tirando-lhe a gravata) Tira a gravata!
VISITANTE (apavorado): A gravata não. O senhor não tem o direito de fazer isso!
PATRÃO (coativo): Cuidado, rebelde, cuidado! Olha a lei de segurança... Ainda mais com essa onda de
anarquia, de greves... Eu te enquadro!
VISITANTE (revoltando-se): Só porque o freguês não quis mocassim!
PATRÃO: O bom vendedor tem que ter fé, persuasão, convencer, iludir...
VISITANTE (sério): Só um palhaço usa mocassim... Foi o que disse o cliente.
Ambos voltam à realidade.
CARETA (amargo): Nem todos... Prefiro ver meus pés sangrando.
VISITANTE: Por que se queixa então?
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CARETA: Tenho meus motivos.
VISITANTE (desdenhando): Que engraçado!
CARETA (irônico): Me acha sempre engraçado, não é mesmo?
VISITANTE: No picadeiro sim, aqui não.
CARETA: Sabe por que não uso mocassim, sabe?
VISITANTE: Sei lá.
CARETA (assumindo aos poucos uma postura trágica. Representada às vezes com verdade; às vezes, como
representação mesmo): Porque são cômodos demais, me aliviam os pés. E se eu me sentir aliviado, esqueço
que preciso largar urgentemente a minha profissão de palhaço.
VISITANTE (meio compadecido): Por que largar se o senhor é um grande artista?
CARETA: Os circos estão morrendo e levando junto os pequenos e grandes artistas... Você notou o gato
pingado que havia lá na plateia?... E a lona? Toda esburacada, uma enorme pedreira... E quando chove?
Quando chove é um verdadeiro desastre, nem o gato pingado aparece... Contudo, continuamos o terrível
espetáculo...
VISITANTE (animando-o): Até que o público gostou hoje! O senhor não ouviu a enorme barulheira que
aprontavam quando o senhor fazia seu número?
CARETA (amargo): É, tem razão... Só que barulheira não quer dizer aplauso... Ultimamente tenho escutado
vaias, insultos e isto tem me apavorado muito... Sinto medo, um medo tão horrível que chega a paralisar
minhas pernas... Porém esse mesmo medo me obriga a não parar, a me movimentar outra vez... E
recomeço minhas palhaçadas, continuo o espetáculo... Giro, rodopio, pulo, grito, como se muitos palhaços
estivessem dentro de mim, de mãos dadas enfrentando o perigo... E giro, giro, giro até os insultos se
aquietarem, as vaias diminuírem... E de repente, quando me apercebo, no giro, já saltei pra dentro do
camarim... Mais seguro... E consigo escapar mais uma vez... Outra vez... (Verdadeiro e medroso) Porém,
sinto que nos últimos tempos, demoro pra reagir... E o público descobrindo minha insegurança, meu
pavor... E eu... E eu... (quase em transe).
VISITANTE (bobo): Será que o senhor é médium?
CARETA (agressivo, despertando): Já disse que sou palhaço, única e exclusivamente palhaço!
VISITANTE (desculpando-se): Não falei por mal não.
CARETA (trágico): Por isso o camarim tornou-se a minha fortaleza. Aqui readquiro minhas forças... Mas
aqui também é que esqueço do medo que passei no picadeiro.
VISITANTE (confuso): Que bom que o senhor esquece, hein?
CARETA: Bom porra nenhuma! Sou obrigado a ter esse medo. Não posso esquecê-lo nunca! Por este
motivo eu uso botas apertadas, que me criam calos... Os calos doem, latejam, e a dor é o aviso, o sinal de
alerta, é a voz que me anima a partir do circo, a ir embora pra sempre daqui enquanto o tempo ainda me
der tempo.
VISITANTE (confuso): O senhor diz tanta coisa engraçada.
CARETA (irritado): Repito e repito que sou palhaço! Medroso, covarde, faminto... Quantas noites sem
comer, quantas!
VISITANTE: E como o senhor mata a fome?
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CARETA (ri amargurado): Isso me pergunto sempre: como?
VISITANTE (animando): Por que não trabalha na televisão? Viu o Chacrinha? Diz que ele ganha bem mais
melhor que...
CARETA (cortando irado): Não quero ganhar nem mais melhor, nem mais bom, nem mais nada. Tinha razão
seu professor de Português em meter a vara de marmelo no lombo!
VISITANTE: Corta essa, não sou surdo! Não precisa me ofender... Eu acho que o senhor quer ser diferente
dos outros... Arrogante...
CARETA (incisivo): Tenho carne, ossos, dor de dente, cago, mijo, tenho tudo como todo mundo... E também
uma história, sabe?
VISITANTE: Iiiiih, não vem com mais história não.
CARETA: Pensa que só você tem dificuldades financeiras e amorosas, hein?
VISITANTE: Esquece as minhas dificuldades.
CARETA (autoritário): Vamos lembrá-las. Arranque os sapatos!
VISITANTE (encabulado): O que é? Ficou lelé?
CARETA (chantagem emocional, persuasivo): É um pedido de amigo que te faço. Gostaria que você
participasse aqui e agora da minha tristeza e dor como participou lá na plateia da minha alegria.
VISITANTE (confuso):... Mas, seu Careta.
CARETA: Não seja desumano, é uma caridade que você faz ao próximo... Quero que alguém sinta comigo
minha dor. Tira.
VISITANTE (tirando, comovido): Está bem, se isto lhe ajuda... O senhor é esquisito mesmo, né?... Pronto!
Pra que essa asneira de tirar o sapato?
CARETA (apanhando os pés do Visitante): Vê, olha só como seus pés estão doloridos, sangrando?
VISITANTE (enervando-se): O senhor está querendo me enganar. Uso sapatos bem macios.
CARETA: Não é questão de maciez, rapaz, é questão de imaginar e sentir, ouvir: (mordaz) A Dorinha te
pisou no calo, teu patrão está esfolando teus calos, teus pais, a escola, o mundo inteiro te esmigalha o pé.
VISITANTE (revoltado): Tira a mão de meus calos!
CARETA: E então, qual é a diferença entre nós dois, hein?
VISITANTE (alto): O senhor é um palhaço, eu não!
CARETA (dirigindo-se a um baú): Vou te mostrar ao vivo que tenho problemas talvez maiores que os teus.
(Voltando com fotos nas mãos) Pra começo de conversa, Careta é meu nome de guerra, artístico se
preferir. (Sério) Atrás da máscara existe uma identidade, meu nome é José.
VISITANTE (admirado): José! Puxa, nunca pensei.
CARETA: Veja esses retratos... Compõem a minha história. São membros da minha família - eu também tive
uma família. (Mostrando foto por foto) Meu pai, minha mãe, irmãos... E amigos que nem sei por onde
andam... Colegas de trabalho... E meus mestres que me ensinaram tantas coisas.
VISITANTE (apanha uma foto, encantado): Que mulher bonita, quem é?
CARETA: A mulher de José.

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VISITANTE: Você é casado?
CARETA: Fui.
VISITANTE: Viúvo?
CARETA (desconversando): Qual é mesmo seu nome?
VISITANTE: Benvindo, Benvindo da Silva. Um nome como outro qualquer.
CARETA: Benvindo? Ironia do destino... Seja Benvindo, como outro qualquer.
VISITANTE (curioso): Bem, Zé, e... A tua esposa?
CARETA (direto): Fugiu com o trapezista do circo. Sabe como são as mulheres.
VISITANTE (revoltado): Não prestam!
CARETA: Não exagera, a minha Elza era uma criatura excepcional.
VISITANTE: Por que te largou, então?
CARETA: Não me amava mais. Foi sincera quando me disse.
VISITANTE: Você foi nessa? Se fosse eu...
CARETA: Estava grávida... De Satã.
VISITANTE: Cruz credo!
CARETA (melodramatizando): Satã era o maior trapezista aqui do circo. A Elza, campeã da corda bamba. Foi
com ele que a Elza partiu. Vivia se queixando. Era o medo. A corda estava bamba demais. E ela perdendo o
equilíbrio, despencando, caindo... Caindo para outro lado, onde meus braços não conseguiam alcançar.
(Nostálgico e amargo) No dia em que me disse que ia embora de vez, meu sangue subiu à cabeça. Levei-a
num supetão para a corda e obriguei-a a fazer um número só pra mim. Ela muda e calada. Não disse nada.
Dançou, girou, rodopiou. Gritei. (Grita) “Pára!” E ela despencou como de um sono profundo. Seu ventre nas
minhas mãos. Seu hálito. Sua presença, distante de mim. (Furioso) “Cadela! Sua puta!” Ela não emitiu um
ruído sequer. Seu silêncio aumentou ainda mais meu ódio. E furiosamente pisei-lhe a barriga!
VISITANTE (apavorado): Virgem Maria, que coragem!
CARETA: Covardia. Ela salvou-se, mas perdeu a criança. Covarde por não ter feito como a Elza e os outros.
Fraco por não ter tomado uma resolução definitiva e se picado do circo de uma vez. Medroso por ter
permanecido aqui, tocando lenha nessa fogueira que me consome todo por dentro.
VISITANTE (comovido): Como você deve ter sofrido, Zé! De que vale a pena viver, de que vale...?
CARETA (distante): E continuo aqui, olhando passivamente as lembranças que escorregam por todos os
cantos do circo. Sem forças para partir também. Sem ninguém pra me ajudar, sem ter pra onde ir...
Sozinho... Ninguém!
VISITANTE (animando):... E se eu pudesse te ajudar... Isso é, dar um empurrãozinho... Sei lá...
CARETA (fingindo animação): O quê? Você?... Ajudar como? Ir pra onde?... Só sei ser palhaço. Ia viver de
que, Benvindo?
VISITANTE (eurecando): Que tal uma colocação lá na loja? Sei que tenho alguma influência.
CARETA (admirado): Na tua loja? Não está fazendo alguma piada comigo?
VISITANTE: É sim, na minha loja. No começo é meio difícil...

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CARETA: Limpar bosta?
VISITANTE: Não vai precisar, o senhor já é estudado, né?
CARETA: Sim, sim... Mas...
VISITANTE: E também, o que interessa é você dar o pira daqui, o mais rápido. Vamos, coragem.
CARETA: Calma lá... Tenho um monte de responsabilidades nas minhas mãos. Daqui a pouco vai começar a
segunda sessão e quem é que vai ficar no meu lugar?
VISITANTE: Deixa pra lá... O circo que se vire. (Animando) Tenho certeza que você vai gostar da turma lá. É
muito divertido, você vai ver.
CARETA (jogando): Pois bem, você me convenceu. Eu vou, mas vou se você aceitar a minha proposta.
VISITANTE: Que proposta?
CARETA (jocoso): Uma troca. Você dá o teu cargo lá na loja e eu lhe dou a minha vaga aqui no circo. Você
vira artista.
VISITANTE: Ah, Zé (menosprezando)... Não é hora de brincadeira... Eu, palhaço?!
CARETA (sério): É uma proposta honesta. Não posso deixar um grande buraco aqui no circo, mais nenhum.
VISITANTE (abobalhado): Que é isso? Não posso sair da loja.
CARETA (demagógico): Pensei que você fosse meu amigo, Benvindo, e tivesse compreendido minha triste
condição. Não é não. Todo mundo quer ver a minha caveira. Estou cansado de me iludir com os outros. Por
isso vou me afastando cada vez mais das pessoas. Hoje, pensei aqui com meus botões: “Este rapaz que
acaba de entrar pela abertura - você Benvindo - pode se tornar seu ponto de apoio, um grande amigo meu.
Devo tratá-lo com toda a consideração e respeito, pois é uma pessoa sincera, íntegra, briosa”. Tratei ou não
te tratei com dignidade?
VISITANTE (encabulado): Mas eu não iludi o senhor não, não lhe fiz nada de mal.
CARETA (cobrando): Ah, não? Ofender meus sentimentos, invadir a minha intimidade, é me fazer bem, é?
VISITANTE: Foi você mesmo que...
CARETA (demagógico): Confessei-te segredos que nunca havia revelado a ninguém, a ninguém (começa a
fingir dores de cabeça). Não, eu não mereço ser tratado assim. Minha cabeça está latejando, como dói!
VISITANTE (sentindo-se culpado): Eu não quis te ferir. Desculpa. Não tive a intenção. Mas o que é que eu te
fiz?
CARETA (grita de dor fingida): Teve a intenção sim. Malhou a minha cuca. Socorro! Acuda pelo amor de
Deus! Minha cabeça está estourando!... Rápido, aiaiai, em cima da mesa... Meu remédio. Vou morrer!
VISITANTE (atarantado corre para a mesinha e apanha um tubo): O quê? Onde? O que eu fiz? Ah, o
remédio. (Abre o tubo e de dentro dele salta uma cobra de mola; Benvindo assustadíssimo vai ao chão;
Careta ri desbragadamente) Acuda Deus do cééééu! O que é isso? (Percebe a farsa e se rebela) Seu filho da
mãe! Gozando a minha cara é? Que besta que eu fui. Não sou palhaço de ninguém, ouviu bem, seu
merdinha!
CARETA (rindo): Foi tão engraçado.
VISITANTE: Achou engraçado, né? Se eu tivesse um enfarte, hein? Você ia parar na cadeia.
CARETA: Não transgredi lei nenhuma.
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VISITANTE: Isso não se faz.
CARETA (conciliador): Essa cobra de mola é um dos meus instrumentos de trabalho. Não leva tão a sério.
Estou ensaiando.
VISITANTE: Por que logo comigo?
CARETA: Porque você está aqui, e mais ninguém, Benvindo. Eu estou tentando te dar uma explicação sobre
o que é um ator.
VISITANTE: Você é muito complicado. Fez esta palhaçada toda só pra me tapear e acabou não explicando
nada.
CARETA: Então, meu chapa, o que fiz até agora?
VISITANTE: Inventou uma série de coisas, sei lá, contou a sua história... Imitou...
CARETA (sério): E você acreditou que a história que eu te contei é a minha história?
VISITANTE: Claro. Você me pareceu bem sincero. Não é verdadeira?
CARETA: É. Só que esta história não é a minha.
VISITANTE: De quem é então?
CARETA (incisivo): A tua história. Imitei você até agora, Benvindo.
VISITANTE (rindo desajeitadamente): Só porque você quer. Sem essa. Nunca fui largado por alguma Elza,
nem tive calo nos pés... Não, não. Você está querendo me iludir e...
CARETA (melodramático): Mas como! Será que eu não consegui te convencer? Usei toda a minha veia
cômica, burlesca, trágica, até mesmo melodramática para encarnar você, representar você.
VISITANTE: Tá querendo fazer deboche comigo outra vez, tá?
CARETA (sério): Não, Benvindo. Suei, me esforcei, coloquei todo o meu sangue pra te provar o que é um
ator, como ele trabalha, representa, e não consegui realizar minha intenção?!... Não, não... E o patético
balconista? O monstruoso patrão?... O amante abandonado?... Nada disso te convenceu de que até agora
eu estava sendo você, te imitando?
VISITANTE (brincando): Ah, seu Zé. Olha que já estou sacando melhor seus truques, hein?... O senhor nem
sequer imagina o que está dentro do meu coração. O senhor me desculpe, mas não pode saber mais do
que eu o que se passa dentro de mim.
CARETA: Arrematei sobre tudo que você disse com grande dose de imaginação.
VISITANTE: Imaginação demais. Esse não sou eu não. Se engana.
CARETA (demagógico): Mas isso é uma tragédia, uma fatalidade! Uma verdadeira desgraça, Benvindo!
VISITANTE: Não sei porquê, seu Zé.
CARETA: Uma calamidade. Pois além de não te esclarecer sobre o ator, não consegui entrar em tua pele, no
teu lugar, nem...
VISITANTE: O que é ator, já compreendi. Só sei que esse que o senhor imitou não sou eu não. Não complica
mais.
CARETA: É uma triste constatação: (trágico) Se não consegui te imitar, não sou um grande artista, um
grande ator. (Acusando) Você é que me complicou. Assim a vida não tem mais sentido para mim. Você que

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acreditar Benvindo, era obrigado a crer. Você se recusou a se ver em mim, pois fui teu espelho mais triste e
doloroso, não foi?
VISITANTE: Escuta, seu Zé, escuta. Fica no teu papel de palhaço que é muito mais fácil pra você. É um
conselho que lhe dou.
CARETA (irado): Não me dê conselhos, seu...!
VISITANTE: Como teu amigo, acho que tenho essa liberdade.
CARETA (desabafando irado): Pensa que é fácil ser palhaço em fim de carreira, pensa, Benvindo? Fim de
carreira, ouviu bem?
VISITANTE (meio irônico): Lá vem outra invenção.
CARETA: Não é mole não. Você tem uma visão completamente distorcida das coisas. Este circo é pior que
os circos romanos. Lá pelo menos os leões devoravam de uma vez as pessoas. Aqui não: o sofrimento vai se
arrastando, se prolongando... E vamos sendo devorados pela fome, miséria, solidão... Quem é idealista hoje
em dia e aguenta o tranco até o fim, quem?... Eu, o trouxa aqui. Todos vão indo e eu ficando, carregando o
fardo sozinho no lombo.
VISITANTE (compadecido): Desculpa, Careta... Sei que não é fácil pra você... Quem consegue ser feliz no
mundo de hoje?
CARETA: A vida aqui no circo não é diferente da vida lá fora, talvez pior. No circo, meu filho, você acaba
virando pau pra toda obra. Pifou algum artista, é o Careta aqui que tem que se virar pra preencher o buraco
que aparece - o espetáculo não pode ter falhas... Não tem senão não. É músico, malabarista, trapezista,
lutador, o diabo a quatro, toca o palhaço a fazer milagre. O público sabe quando falta um número... E
insulta... E reclama, e não vem mais... Ninguém come.
VISITANTE (muito comovido): Puxa, Zé, nunca pensei que fosse assim. É fogo, né? Não sei como você
aguenta.
CARETA: Hoje, por exemplo, hoje mesmo Benvindo. De manhã, houve uma zueira geral. Havia
desaparecido a arrecadação da bilheteria de ontem à noite. Quem foi? Quem foi? Vasculharam tudo e
deram por falta do mágico. Naturalmente a desconfiança recaiu sobre ele.
VISITANTE: Que sacana! Acharam ele?
CARETA: Não. Desapareceu. Zupt! Deve ter alcançado a perfeição em seus truques.
VISITANTE (curioso): E quem fez aquelas mágicas hoje?
Insinuando-se, Careta apanha um tubo de plumas.
VISITANTE (encantado): Mentira. Nem desconfiei. Foi você...
CARETA: Eu estava com outra maquiagem. Pra que tanto espanto?
VISITANTE: Sou louco por mágica. Como é que faz, hein?
CARETA: Questão de habilidade.
VISITANTE: Faz uma pra eu ver. (Insiste) Faz!
A partir deste momento estabelece-se um clima de magia em que Careta vai envolvendo Benvindo
gradativamente até a um certo paroxismo em que o outro, Benvindo, acaba por se transformar.
CARETA: Está vendo este tubo? O que há dentro dele?

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VISITANTE (encantado): Nada, nada. Vazio.
CARETA: Muito bem. (Mostra a outra mão) O que é que tenho nesta mão?
VISITANTE: Um espanador.
CARETA: Que espanador, que nada! É um feixe de plumas amarelas... (Fazendo a mágica) Presta atenção:
coloco estas plumas amarelas dentro do tubo vazio e eis o que vemos? Um feixe de plumas verdes!
VISITANTE (aplaudindo): Que joia!
CARETA: Atenção, atenção! Agora introduzo as plumas verdes dentro do mesmo tubo, e eis que surgem...
Plumas vermelhas! Repare bem agora: coloco dentro do mesmo tubo as plumas vermelhas e o que vemos?
Novamente as plumas amarelas! (Mostra o tubo para Benvindo) Examine com seus próprios olhos, meu
senhor, o que está vendo dentro do tubo?
VISITANTE (maravilhado): Nada, está vazio de novo! Que maravilha! (Apanha o tubo e o feixe de plumas)
Me ensina esse truque, Zé?
CARETA: A Ordem Internacional dos Mágicos pode te processar. Estes segredos são confidenciais.
VISITANTE: Ninguém vai ficar sabendo. Me ensina! Eu guardo segredo.
CARETA: Persistente, hein? Tente descobrir por si mesmo... Lavo minhas mãos.
VISITANTE (começa a errar a mágica): Puxa, é bacana... Mas como é complicado, hein?
CARETA: Use a cabeça... Calma.
VISITANTE: Estou usando.
CARETA: Cuidado para não fundi-la.
VISITANTE: Mas é fogo. Nunca pensei que fosse tão difícil assim.
CARETA (apanha uma capa e uma cartola e vai colocando em Benvindo): Espera um pouco! Vamos
prepará-lo devidamente para a função. Um mágico não se define apenas pela sua habilidade e ciência do
Ocultismo, mas sobretudo pela maneira de se trajar...
VISITANTE (um pouco assustado, rodopia com a capa): Que barato, Zé!
CARETA (acendendo um incenso): É preciso impregnar a atmosfera de elementos estranhos... Neste
momento você inicia a longa caminhada dentro dos labirintos escuros e misteriosos da magia... (sério)
Vamos ao trabalho! Olha a gesticulação, o andar... Delicadeza, destreza no movimento dos dedos
(conduzindo Benvindo).
VISITANTE (embaralhando-se com o excesso de comandos): Acho que... Não vou conseguir. É difícil. Não
dou pra isso.
CARETA: Você optou! Não pode desistir. Como vamos fazer? A vaga do mágico tem que ser preenchida.
Este número é fundamental. O público que paga não pode ser traído.
VISITANTE (envolvido): Mágica não sei fazer mesmo. Faço de tudo, mas...
CARETA (apanha três bolas e faz malabarismos com elas): O circo impõe suas condições a nós, e temos de
segui-las. E nesta casa quem não trabalha não come. Um-dois-três. Sabe o que aconteceu com o
malabarista? Um-dois-três, sabe?
VISITANTE (tirando a camisa): Não, o que foi?

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CARETA: Um-dois-três... Atirou-se na linha do trem... E sabe o que isto significa? Um-dois-três.
VISITANTE: Por quê? Por que ele fez isto?
CARETA: Cansou-se da vida... Do circo... Escapou, mas as rodas arrancaram seus braços, inteirinhos. Um-
dois-três... (atirando abruptamente as bolas para Benvindo) Estamos com mais uma lacuna. Vamos!
VISITANTE (embananado tenta apanhar as bolas e fazer malabarismos): Eu não sei...
CARETA (autoritário): Vamos rapaz, não discuta. Um-dois-três!
VISITANTE (a calça vai lhe caindo e ele se embaralha): Um-três-dois. Eu não sou malabarista!
CARETA: Harmonia e agilidade! Um-dois-três!
VISITANTE (acabando de arrancar as calças, retoma as bolas): Não vou acertar, não vou. Um-dois-três.
CARETA (apanhando uma saia de bailarina, vai dançando suavemente com ela até colocá-la em Benvindo):
E para maior desgraça de nosso querido circo, quando nossa prima-ballerina recebeu a notícia de que seu
amante malabarista havia tentado o suicídio, seguiu-lhe os passos... E o trem arrancou-lhe as pernas.
Juntos na alegria como na desgraça. Ela não pode mais entrar na dança. Isto é terrível para o circo... Mais
uma lacuna, Deus do céu. Vamos, dance!
VISITANTE (percebendo-se de saia tenta rodopiar na ponta dos pés): Não, eu sou homem. Não sei dançar!
CARETA: Deixe de reclamação! Os pés, leveza... Leveza... Como uma pluma branca na brisa calma da
tarde... Nada de vexame! Ritmo... Defenda a honra de nossa brilhante estrela. Olha que estou te dando um
cargo muitíssimo importante.
VISITANTE (tentando revoltar-se): Não, não quero dançar! Esta não é a minha chance.
CARETA (enérgico): Que chance, que chance? Não existe escolha quando os buracos vão surgindo um atrás
do outro. O público vaia, insulta, atira pedras, e ninguém para nos defender, ninguém.
VISITANTE: Como ninguém? E o nosso peso-pesado...?
CARETA (rindo): Não sabia? Desistiu da luta para ser cabelereiro... Ca-be-le-rei-ro, quem diria, hein?
VISITANTE: Não acredito... E agora?
CARETA (atacando-o com passes de luta): A vaga é tua, palerma! Vamos, defenda-se! Se fraquejar, estamos
perdidos!
VISITANTE (tentando se esquivar): Não treinei. Pára, você me machuca!
CARETA (irônico, agredindo): Vai ser bicha também? Vamos...
VISITANTE (revoltando, avança sobre Careta e na luta arranca-lhe o traje de palhaço): Você vai ver quem é
bicha, seu, seu...
CARETA (escapole e vendo-se nu): A censura não permite strip-tease no circo, seu tarado! Vou dispensá-lo,
você não serve pra nada. (Apanha um roupão e se cobre) Está demitido!
VISITANTE (apavorado, vendo-se com o traje de palhaço na mão, começa a vesti-lo): Não, você não viu
ainda o que eu posso ser, fazer... Não vou embora não. Tenho minha escolha. Minha habilidade. Sou
melhor do que você pensa.
CARETA (aumentando sua ironia começa a maquiar Benvindo de palhaço e... Maquiavelicamente): ... Sabe?
Sabe da última? Um outro elemento nosso escapuliu.

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VISITANTE: Quem? Quem mais?
CARETA: Um outro artista. Um ágil e esperto gavião que vive pelos ares... Voando... Atrás de suas presas...
VISITANTE (preocupando-se): Quem foi? Diz logo, não rodeia.
CARETA: O nosso trapezista.
VISITANTE: Ele... Ele? Por quê?
CARETA: É uma questão delicada, caro amigo... Por problemas amorosos, entende?
VISITANTE (enervando-se): Amorosos?... Explica logo!
CARETA: Nos seus voos e revoos pelos ares, nosso astuto gavião acabou roçando as asas partidas de uma
frágil An-Dorinha... Que mal se equilibrava num fio tênue... Sozinha, medrosa... Desamparada... Tão frágil
que acabou sendo presa fácil. Nem resistiu, não quis reagir aos ataques do trapezista... E com ele, ela
readquiriu suas forças... E juntos voaram sem rumo por esse mundo afora... Perdemos mais dois
importantes artistas, de uma só vez. (Grita de dor) No picadeiro, dois lugares vazios que balançam
melancolicamente... O trapézio e a corda bamba!
VISITANTE (agressivo, avança sobre Careta): É mentira, é mentira! A Dorinha nunca faria isso comigo. Você
está me envenenando, seu filho da puta. Vou te retalhar inteiro, pra você não levantar calúnia!
CARETA (defendendo-se com um chicote): Calma lá! Vaga pra animal não há! O único leão que entrou nesse
circo morreu de inanição! Afasta! O problema não é meu. Satã era amante dela há muito tempo e todo
mundo sabia disto... Alguém tinha que te contar... Fui teu amigo... E é assim que você me agradece...?
(Grita) Caia na realidade, imbecil!
VISITANTE (sentando-se arrasado, choramingando): Estou liquidado, fodido! Que vergonha! Chifrado dessa
maneira... Não vou aguentar viver sem a Dorinha... Não aguento!
CARETA (maldoso): As mulheres não prestam.
VISITANTE: Mentirosa! E dizia que me amava tanto! (Erguendo-se revoltado) Não, isso não vai ficar assim.
Ela me paga! Acabo com a vida daquela puta! (Tentando sair) Mato os dois!
CARETA (salta-lhe à frente, severo): Espera aí! Você não pode...
VISITANTE (esquivando-se): Me larga, me larga! Eles vão ver só!
CARETA (empurrando Benvindo para a mesinha, com toda a força): Isto é o que você pensa. E o trabalho,
hein? Já vai começar a segunda sessão, e não podemos ficar sem palhaço. Calma lá! E a consciência
profissional?!
VISITANTE (suplicante): Por favor, deixa eu ir, dispensa meu número!
CARETA: Não posso, seu número é tudo! Todos desertaram... Não há mais ninguém aqui além de você,
esqueceu? Você teve que suprir todos os buracos, não se lembra?... E por tua própria culpa. (Acende um
bastão de fogo).
VISITANTE (desesperando-se): Não sou culpado de nada... Leva esse fogo pra lá!
CARETA: Todos partiram por tua culpa. Você é o único responsável por todas as lacunas. O único e mais
ninguém. Esqueceu do que você fez com o comedor de fogo? Hein? (aproxima a chama de Benvindo que
não quer encará-la).
VISITANTE: Eu não fiz nada. Não tenho culpa de nada.

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CARETA: É cômodo esquecer, não é? Mas não vou permitir que você esqueça. Ele andava se queixando
demais. Vivia bêbado... Pudera, estava cansado de engolir labaredas, seu corpo reclamava alimentos... E ele
havia tomado consciência da situação geral e você não admitia...
VISITANTE: Ele não devia ter bebido...
CARETA: Mas bebeu, naquela noite bebeu muito. Bebeu além da conta. Todo mundo estava apavorado
com o seu número, lembra?... Estava consciente demais. Lembra quando começou sua função, hein?
(Representa o comedor de fogo) Girava e girava a chama nas mãos, mas não engolia - o público inquieto, os
colegas nervosos, e ele girava mais ainda e nada de engolir... O público começou a vaiar, ele ficou trêmulo...
Os colegas paralisados... Os insultos aumentando, e o sangue subiu-lhe à cabeça - uma barulheira infernal!
E ele no giro, no rodopio, cegamente... De repente saltou pra junto da lona. A plateia uivou, gritou,
esperneou... E ele ao encostar a chama na lona... (Cai no chão agonizante)... “Não, você não devia... Isto é
traição, socorro!... Foi covardia tua... Ter me atirado a faca nas costas... Eu estou certo... Estou
queimando”. (Levanta-se) O comedor de fogo estirado no chão e a tocha sobre ele. Que espetáculo
terrível! Covarde! (agredindo).
VISITANTE: Não havia outro jeito, senão acertar o alvo... Ele ia fazer uma loucura! (tomado).
CARETA (amargurado): Daquele dia em diante, todos foram abandonando o circo, silenciosamente, sem
olhar pra trás, para um picadeiro onde o palhaço suplicava a volta deles.
VISITANTE (desespero): Eles não entenderam... O comedor ia destruir tudo...
CARETA: Entenderam muito bem... Partindo... Quem não entendeu foi você... O palhaço que não teve a
coragem de partir também... Ficando cheio de buracos, com o mundo nos ombros, preparando-se para
preenchê-los... O espetáculo não podia parar... Covarde! Medroso!
VISITANTE (exaltando): Não, covarde não. Sou muito corajoso. Sou forte!
CARETA (colocando-lhe a tocha nas mãos): Vamos ver então, a extensão de sua coragem.
VISITANTE (assustado): O que você está pretendendo? Eu não sei comer fogo!
CARETA: Não vai comê-lo.
VISITANTE: O que quer dizer...?
CARETA: Você vai fazer aquilo que você mesmo impediu daquela vez: pôr fogo no circo!
VISITANTE (apavorado e trêmulo): Não, pelo amor de Deus, ninguém pode me obrigar a nada! Chega de
ordens! (revolta-se) Ninguém manda em mim! (Apaga e depõe a tocha) Vou embora, e ninguém me segura.
Adeus! (Vai saindo).
Careta assume a postura do pai de Benvindo, apanha uma vara de marmelo e agarra-o pelo colarinho...
CARETA: Onde você pensa que vai, hein moleque atrevido? (Simula uma surra).
VISITANTE (vai ao chão morrendo de medo, criança): Não, pai, não me bate, não estou fazendo nada de
errado!
CARETA: Ah, é! Como se explica essa roupa, hein? Onde você ia a essa hora da noite? Pensa que me
engana? Eu e tua mãe não andamos nada contentes com o teu procedimento, ultimamente. Bela porcaria
pusemos no mundo! É pra isso que nos sacrificamos? Palhaço, sim senhor! Seu ingrato. E os estudos, hein?
Você não presta mesmo! Tudo que ganho vai pros teus estudos... Um artista na família... Que vergonha,
que vergonha!

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VISITANTE (amedrontado, devagarinho vai se justificando): Pára pai, deixa eu explicar. Deixa eu escolher o
que eu quero fazer. Na escola já aprendi de tudo. Não tenho mais nada que aprender...
CARETA (assumindo uma atitude de professor severo, ainda com a vara na mão; Benvindo vai assumindo a
posição de aluno, sentando-se numa banqueta): Indisciplinado! Aprendeu de tudo, só quero ver! Quero
testar sua auto-suficiência, alunozinho rebelde! Cresça e apareça... Você não sabe nada!... O que é
gramática, hein, o que é gramática?
VISITANTE (submisso): Não é que eu sei de tudo... É que, eu tenho me matado de estudar, professor, mas é
tão difícil! Tenho me esforçado bastante...
CARETA: Esforçado coisa nenhuma! Você é um preguiçoso, petulante, vagabundo, um zero à esquerda!
Não sabe o que é gramática, não é mesmo?... (Dissertando) Por acaso, sabe que o princípio é o verbo, este
conduz a ação, e esta é praticada pelo sujeito, pelo agente, ou melhor, pelo ator...?
VISITANTE (interrompendo): Pára que isso eu sei, deixa eu falar!
CARETA (grita): Silêncio! Quando um burro fala, ou outro murcha a orelha!
VISITANTE (agressivo): Não me chama de burro, seu, seu...
CARETA (ameaçando com a vara): Cala a boca, irresponsável! Sou seu superior e não admito que qualquer
pirralho desobedeça minhas ordens!
VISITANTE (aos poucos levantando-se e reassumindo ele mesmo adulto): Não goza na minha cara. Sou
muito responsável, esforçado, sério!
CARETA: Imprestável! Nunca vai ser ninguém na vida! Vagabundo!
VISITANTE: É mentira. Tenho um futuro, um grande futuro pela frente... Um maravilhoso futuro.
Careta começa a rir. O clima da ação se altera. Uma nova música. Uma atmosfera estranha. Benvindo
arrasado senta-se à mesinha em frente ao espelho, aniquilado, tal qual estava Careta no começo da peça. E
Careta observando esta situação assume o papel de Benvindo, com certo deboche, quando este entrou no
camarim...
CARETA (diminuindo o riso, e ecoando as palavras): Belo futuro... Estou vendo... Eu te conheço... Eu te
conheço...
VISITANTE (lentamente levanta a cabeça e vê Careta numa postura humilde): ... Quem é o senhor? O que
deseja de mim? Afinal de contas: o que quer de mim?
CARETA (fingindo humildade): Eu?... Ah, eu sou um fã do senhor. Desculpa incomodar... Vi uma abertura...
Me alertaram que era proibido... Mas como sou teimoso entrei através dela pra saber o que tinha dentro e
conhecer o senhor de perto. Ter o prazer de apertar suas mãos... Dizer um montão de coisas pro senhor
que...
VISITANTE (atento): Que o quê?
CARETA: Que o senhor é um grande artista; que vim ao circo hoje pra me distrair um pouco, rir das suas
palhaçadas... Estava triste, sozinho. (Fingindo desespero vai lentamente tirando um revólver do bolso do
roupão) Não estou aguentando mais, seu palhaço, e não tinha ninguém pra me desabafar! (Mostra o
revólver) Olha, eu ia disparar esse revólver contra mim mesmo, suicidar-me. Não tive coragem (chora). Sou
o mais infeliz dos mortais! Minha noiva me botou chifres com outro. Fui reprovado vergonhosamente nos
exames escolares... E meu patrão vai descobrir que não vou mais me casar, (apontando o revólver na
própria nuca)... E, então... Adeus gerência!

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VISITANTE (conscientizando-se de que o outro passou dos limites voa pra cima dele, fazendo com que o
revólver voe longe. Agride): Seu filho duma puta, lazarento! É mentira! Palhaço, palhaço imundo, nojento!
CARETA (com força, apanha Benvindo e leva-o frente ao espelho. Seríssimo): Olhe-se antes, senhor
Benvindo. Olhe-se bem. (Pausa).
VISITANTE (estatelado, só agora percebe que estava travestido de palhaço): O que me aconteceu? O que
você fez comigo? (Nervosamente vai arrancando a roupa de palhaço) Que palhaçada! Deus do céu! Que
palhaçada! (Joga a roupa de palhaço e vai vestindo a sua própria).
CARETA (apanhando sua roupa de palhaço e vestindo-a. Sincero e triste): É, Benvindo, tem razão, uma
palhaçada mesmo. Eu, um palhaço com hora e local determinados, imaginação fértil e com consciência do
que faço. Você, palhaço de todo mundo, em qualquer tempo, em qualquer espaço, sem sequer imaginar
que...
VISITANTE (desespero e agressão): Eu não entendo pra que tudo isso... Porque o senhor me pegou pra
Cristo! (volta-se para o rosto de Careta, encarando-o nos olhos como se o desnudasse) Meu senhor, quem é
você? Pelo amor de Deus! Mostra a tua cara!
CARETA (não aguentando os olhos do outro, esquiva-se e “representa”): Não, você não me viu, nem me
verá. E eu me pus a nu diante de você. Eu já me mostrei inteiro pra você. Porém a sua falta de imaginação
não te permitiu enxergar-me. Eu quis te demonstrar uma situação, revelando a minha condição... Você não
viu, não entendeu. Nada adiantou... Não sabe o que é um ator... E não é fácil para ninguém se desdobrar
em tantos papeis como eu me desdobrei, mas nada adiantou. (Grita amargo) O que é que vocês fizeram da
imaginação, hein, Benvindo?
VISITANTE (decidido): Vou-me embora. Maldita hora que mergulhei nessa abertura... Podridão. Você é um
monte de merda! Tudo isso aqui é uma grande mentira!
CARETA (ofendidíssimo): Ato consumado! Você mergulhou, e encheu muito meu saco! Você não foi, não é,
e nunca será Benvindo!
VISITANTE (acabando de amarrar os sapatos): Fala, fala, matraca! (procurando a gravata) Quero minha
gravata! Vou embora. Já perdi muito tempo. Tenho que acordar cedo. Onde está a gravata?
CARETA (apanhando a gravata e pondo em seu próprio pescoço): Aqui, ó. Apertando meu pescoço. (Vai
apertando o nó, fingindo sufocamento).
VISITANTE (paralisado): O que você está fazendo?
CARETA: Aquilo que você deveria fazer: apertar o nó... Estrangular pra sair do sufoco.
VISITANTE: Você tá louco, para com isso!
CARETA (fingindo estrangular-se com a voz meio rouca, lentamente caindo): Todo dia, invariavelmente,
madrugando, indo pra loja, pondo a gravata, a mesma gravata, a mesma rotina, a mesma bronca, o mesmo
cartão... Porém, um dia, o infeliz balconista, foi pirando, transando uma de esquizóide e foi apertando o nó,
no outro dia, pirando mais... A gravata se apertando, o sufoco aumentando... Ele já não suportava mais: pé-
cromo-verniz-carniça-patrão... A gravata apertando mais e mais... O pescoço esfolado, o sangue subindo, o
calo pisado... Era o sinal da partida, da partida daquela vida inútil, asquerosa, mesquinha...
VISITANTE (avança pra cima de Careta esbofeteando-o várias vezes, furiosamente): Filho da puta! Você me
paga! Lazarento! Sua imaginação foi longe demais!
CARETA (num salto apanha o revólver e aponta para Benvindo, autoritário, sem representação): Foi... Foi
mesmo, minha imaginação foi tão longe que acabou se encontrando com a realidade. Olha bem o que
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tenho na mão. Talvez agora você entenda tudo. Agirei de acordo com as regras que você segue e obedece.
Não sou mais ator. Por exclusão talvez você saiba agora o que seja um artista. Não represento mais. Falo a
tua língua, Benvindo. E não estou mais brincando, ouviu... Viu?
VISITANTE (atemorizado): Pelo amor de Deus! Só quero minha gravata, vou embora. Não fiz por mal.
CARETA (altivo): Engraçado... (ri amargamente. Mostra-lhe um espelhinho) Você não se enxerga mesmo.
Que incrível... Nem sequer tirou a maquiagem!
VISITANTE (tenta reagir, atirando o espelho longe): Eu te...
CARETA (chegando-lhe o revólver na nuca): Eu sou o poder supremo, rapaz, pois tenho a arma na mão. Por
isso dito as leis. (Grita) Obedeça!
VISITANTE (suplicando): Não faz essa loucura... Eu sou jovem ainda... Eu não quero morrer. O senhor está
louco! Perdão!
CARETA: Louco não, cansado de você... Da sua raça... Você veio perturbar a minha paz. Pisou nos meus
calos. Humilhou a única coisa que me resta: o meu trabalho... Me virou do avesso. Devassou todo o meu
ser, canalha! Alimentou meu medo... Esgotou meus recursos. Remexeu nas minhas feridas... Te dei tudo...
Tudo... (irado) De que adiantou, de quê?
VISITANTE (encolhendo-se, choramingando): Pelo amor de Deus, não... Não... Não!
CARETA (com o revólver na nuca do outro): E apesar de tudo, neste ato final, ainda estou te ajudando... Pois
tenho pena da alma humana. Você confiou demais... Prepare-se. Adeus! (Dispara o revólver. Dele salta um
feixe de flores - é a última palhaçada - um clima histérico, patético e cômico).
VISITANTE (berrando): Socorro, acuda!
Careta contorce-se de tanto rir... De súbito, Benvindo reabre os olhos, contata a farsa e chora esmurrando o
chão. Luz vai descendo em resistência... No ar uma música melancólica e ao mesmo tempo circense.

FIM

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