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LUIGI PIRANDELLO
PERSONAGENS
O DOUTOR HINKFUSS
TOTINA
DORINA
NÉNÉ
A CANTORA
CLIENTES DO CABARET
TRÊS RAPARIGAS
TRÊS BAILARINAS
O PESSOAL DE CENA
O ESPECTADOR DA PLATΕΙΑ
O ESPECTADOR DA GALERIA
UM ESPECTADOR DE IDADE
O MARIDO DA SENHORA
UM JOVEM ESPECTADOR
UM AUTOR
ESPECTADOR
ESPECTADORA
(Esta noite, a sala do teatro está cheia daqueles espectadores especiais que têm por hábito
assistir à estreia de qualquer peça nova. O anúncio nos jornais e nos cartazes de um espetáculo
insólito de improvisação a partir de um esboço de historieta provocou grande curiosidade em
toda a gente. Só os senhores críticos dramáticos dos jornais locais a não deixam entrever,
porque crêem amanhã poder vir facilmente a afirmar que se trata de um enorme pastiche
(“Meu Deus! Qualquer coisa no estilo da antiga commedia dell'arte; mas onde estão hoje os
atores capazes de improvisar sobre um esboço de ação, como no seu tempo o faziam os
endiabrados comediantes da commedia, a quem, aliás, as historietas antigas, as máscaras
tradicionais, o reportório de lazzi, tanto facilitavam o trabalho?”) Antes se notará neles uma
certa fúria, porque no cartaz não se menciona, e até se ignora completamente, o nome do
autor que, apesar de tudo, deve ter fornecido aos intérpretes desta noite e ao seu encenador
um qualquer esboço de história: privados de qualquer indicação que os possa remeter
confortavelmente para uma opinião já feita, receiam cair numa contradição qualquer.
Pontualmente, à hora prevista para o início do espetáculo, as luzes da sala apagam-se e a
ribalta acende-se suavemente sobre o palco.)
(Perante esta súbita penumbra, o público mostra-se, primeiro, atento; depois, não ouvindo os
toques do gongue que habitualmente anunciam a abertura do pano de boca, começa a agitar-
se um pouco; e muito mais ainda quando começam a chegar, vindos do palco e através do
pano, vozes confusas e exaltadas, como se os atores estivessem a protestar e alguém se lhes
quisesse impor com repreensões para pôr termo aos seus protestos.)
UM ESPECTADOR DA PLATEIA (Perguntando em voz muito alta, depois de ter olhado à sua
volta.)
O que é que se passa?
UM ESPECTADOR DA GALERIA
(Alguém ri.)
UM ESPECTADOR DE IDADE NUM CAMAROTE (Como se estes ruídos fossem uma ofensa à sua
dignidade de espectador sério.)
Mas que escândalo é este? Quando foi que se viu uma coisa assim?
UMA SENHORA DE IDADE (Levantando-se de repente da sua cadeira das últimas filas da plateia
com um ar de galinha assustada.)
Esses gracejos são escusados, minha senhora. Se fosse fogo tinham baixado a cortina de
segurança.
OUTROS ESPECTADORES
Silêncio! Silêncio!
(Mas o pano não se abre. Em contrapartida, ouve-se nova- mente o toque do gongue ao qual
responde, do fundo da sala, a voz colérica do Doutor Hinkfuss que acaba de abrir
violentamente a porta de entrada na sala e que agora avança furioso pela coxia central.)
O DOUTOR HINKFUSS
O gongue, por quê? Por quê? Quem deu ordem para tocar o gongue? Quando chegar a altura,
quem dá a ordem de tocar o gongue sou eu!
(Estas palavras serão gritadas pelo Doutor Hinkfuss enquanto atravessa a sala e sobe os
degraus que permitem que se suba da plateia para o palco. Volta-se agora para o público
dominando com admirável rapidez o descontrolo dos seus nervos. De fraque, com um fino rolo
de papel debaixo do braço, o Doutor Hinkfuss tem o terrível e injustíssimo defeito de ser pouco
mais alto que uma braçada. Mas disso se vinga arvorando uma indescritível cabeleira, Agita
primeiro as suas mãozinhas, que com certeza também a ele inspiram um certo desprezo, de
tão frágeis que são, e com dedinhos tão pálidos e peludos como lagartas, e depois diz sem
tomar muito o peso às palavras.)
O DOUTOR HINKFUSS
Lamento a momentânea desordem que o público pôde perceber atrás do pano, antes da
representação começar, e disso peço desculpa, apesar de que, se a quisermos tomar como
prólogo involuntário....
O DOUTOR HINKFUSS
O DOUTOR HINKFUSS
Ah, sim? Pensou? Julgou que eram propositados? Pois desiluda-se, meu caro senhor. Eu disse
“prólogo involuntário”. Peço-vos que não me interrompam. Aqui está, minhas senhoras e meus
senhores. (Tira o rolo de papel debaixo do braço) Neste rolinho de poucas páginas tenho tudo
aquilo de que necessito. Quase nada. Uma noveleta, ou pouco mais, quase nada dialogada aqui
e ali por um escritor que vos não é desconhecido.
ALGUÉM NA SALA
O nome! O nome!
OUTRO, NA GALERIA
Quem é?
O DOUTOR HINKFUSS
Por favor, meus senhores, por favor. Não foi minha intenção chamar o público para um comício.
Estou disposto, sim, a responder pelo que fiz; mas não posso permitir que me peçam contas
durante a representação.
O DOUTOR HINKFUSS
Começou, sim senhor. E quem está menos autorizado a não acreditar nisso é o próprio senhor,
que tomou aqueles ruídos de há pouco pelo início do espetáculo. A representação já começou,
uma vez que me encontro diante de vós.
Eu pensei que o senhor ia apresentar desculpas pelo escândalo inaudito que aqueles rumores
de há pouco representam. Além disso, tome conhecimento de que não vim aqui para ouvir
uma conferência sua.
O DOUTOR HINKFUSS
Mas qual conferência? Como é que o senhor pode julgar e afirmar tão veementemente que eu
aqui esteja para o fazer ouvir uma conferência?
(O senhor de idade, fortemente indignado com tal apóstrofe, levanta-se e sai do camarote
resmungando.)
O DOUTOR HINKFUSS
Pode perfeitamente sair. Ninguém o obriga a ficar. Julgo merecer um pouco da vossa atenção.
Quereis saber quem é o autor da noveleta? Também posso dizer.
O DOUTOR HINKFUSS
(Exclamações na sala)
Sim, sempre ele, incorrigivelmente! Mas se já pregou uma peça a um colega meu, mandando a
uns seis personagens perdidas à procura de autor, que provocaram uma verdadeira revolução
no palco e fizeram perder a cabeça a toda a gente, desta vez não há perigo de que me faça o
mesmo a mim. Estejam tranquilos que esse perigo já eu o eliminei. O seu nome não figura
sequer nos cartazes e isso porque teria sido injustiça da minha parte querer torná-lo
responsável, ainda que em pequeno grau, pelo espetáculo desta noite. O único responsável
sou eu.
VOZES NA SALA
Exatamente, minhas senhoras e meus senhores. Porque no teatro a obra do escritor deixa de
existir.
O ESPECTADOR DA GALERIA
O DOUTOR HINKFUSS
A criação cênica que eu possa ter construído e que é unicamente de minha autoria. Volto a
pedir ao público que me não interrompa. E previno-vos uma vez que já vi alguns dos senhores
críticos a sorrir que esta é a minha convicção. São evidentemente senhores de não a respeitar
e de continuar a atribuí-la injustamente ao escritor que, no entanto, hão de concordar, terá o
direito de sorrir perante os seus críticos tal como agora sorriem desta minha convicção: isto
evidentemente, no caso de as críticas virem a ser desfavoráveis; porque se acontecer o
contrário, o que será injusto, será atribuir ao escritor os louros que me cabem a mim. A minha
convicção funda-se em razões sólidas. A obra do escritor está aqui. (Mostra o rolo de papel) E
com ela o que é que eu faço? Transformo-a em matéria da minha criação cênica e sirvo-me
dela como me sirvo do talento dos atores escolhidos.
Noutro teatro, com outros atores e outros cenógrafos, com outra disposição e outras luzes,
concordarão comigo em que a criação cénica será certamente diferente. Outra. E não Ihes
parece ficar demonstrado com isto que aquilo que no teatro se julga nunca é a obra do escritor
que é única, tal como está fixada no texto, mas esta ou aquela criação cénica que a partir dela
foi feita, e uma sempre diferente da outra? Para julgar um texto será preciso conhecê-lo; e não
é no teatro que o podereis fazer, através de uma interpretação que dada por certos atores será
uma, necessariamente diferente da que será dada por outros. A única maneira possível de a
conhecer seria se a obra se pudesse representar a si própria, não já com os atores, mas com a
presença das suas próprias personagens que por milagre tomariam corpo e voz. Nesse caso
sim, a obra poderia ser diretamente julgada no teatro. Mas será possível um tal milagre? Até
hoje nunca ninguém o viu. O que realmente existe, minhas senhoras e meus senhores, é o que
com mais ou menos convicção, o encenador de cada noite inventa com o seu engenho e com
os seus atores. Só isso é possível.
Podem-me perguntar: “Mas quem foi que lhe disse que a arte devia ser vida? É verdade que a
vida tem de obedecer às duas necessidades opostas que o senhor diz, mas por isso mesmo não
é arte; tal como a arte não é vida porque consegue precisamente libertar-se dessas
necessidades opostas e consiste na eterna imutabilidade da sua forma. E é por isso mesmo que
a arte é o reino da criação conseguida, enquanto que a vida está como deve estar em
constante formação. Cada um de nós procura criar-se a si próprio e criar a sua própria vida com
as mesmas faculdades do espírito com que o poeta faz a sua obra de arte. A arte vinga de certa
maneira a vida porque a sua criação é autêntica enquanto liberta do tempo, dos acasos e dos
obstáculos, e não tem outro fim a não ser ela própria.” Pois, minhas senhoras e meus senhores,
eu respondo que sim, que é verdade. E até vos digo que cheguei a pensar muitas vezes com
sentimentos angustiosos, senão de pavor, na eternidade de uma obra de arte como numa
inacessível e divina solidão da qual até o poeta é excluído no momento em que a acaba de
criar, ele, um mortal, excluído desta imortalidade.
Qualquer escultor depois de ter criado uma estátua deve desejar que ela, como coisa viva, se
possa soltar da sua fixidez e se possa mover e falar.
O DOUTOR HINKFUSS
Não há perigo. Estamos salvos. (Mostrando novamente o rolo de papel) Uma ninharia. Sou eu
que farei tudo. Tudo foi feito por mim.
E tenho a esperança de ter criado um espetáculo capaz de vos agradar se os quadros e as cenas
decorrerem com o extremo cuidado com o qual os preparei, tanto no seu conjunto como em
cada pormenor; e se os meus atores corresponderem em tudo à confiança que neles depositei.
De resto permanecerei aqui no meio de vós, e estarei pronto a intervir em caso de
necessidade, seja para encaminhar de novo a representação no caso de qualquer dificuldade,
seja para superar qualquer defeito deste trabalho com esclarecimentos e explicações: o que (e
disso me orgulho) tornará mais agradável para vós a novidade de uma tentativa como esta de
improvisação sobre um tema. Dividi o espetáculo em vários quadros. Breves pausas entre uns e
outros. Frequentemente um simples momento de escuridão de onde imprevisivelmente
nascerá um novo quadro, talvez até entre vós: sim, na própria sala (deixei um camarote
propositadamente livre que a seu tempo será ocupado pelos atores; e então também vós
participareis todos na ação.) Ser-vos-á concedida uma pausa mais longa para que possais sair
da sala, mas não para descansarem, disso já vos previno, porque vos preparei também uma
surpresa lá fora, no foyer.
A ação decorre numa cidade do interior da Sicília, onde (como sabeis) as paixões são fortes e
crescem surdamente antes de rebentar com violência, e de entre todas elas, ferocíssimo, o
ciúme. O assunto da novela é precisamente um destes casos do ciúme mais tremendo porque
incurável: o ciúme do passado. E manifesta-se precisamente numa família em que devia estar
mais do que afastado, é a única da cidade que está aberta aos forasteiros, com uma
hospitalidade excessiva.
À família La Croce. É composta, como vereis, pelo pai, o Senhor Palmiro, agente técnico de
minas, o “Sampognetta”, ou seja “o búzio”, que é como todos lhe chamam, porque, sempre
distraído, anda sempre a assobiar; pela mãe, a Dona Inácia, nascida em Nápoles, conhecida na
terra por A Generala; e por quatro belas raparigas, gorduchas e sentimentais, vivaças e
apaixonadas.
Mommina,
Totina,
Dorina,
Néné,
E agora com vossa licença. (Bate palmas para chamar alguém; e afastando um pouco um dos
lados do pano grita para dentro do palco) O gongue!
(Ouve-se o gongue.)
(Quase encostado à cortina de boca vê-se um pano leve, verde, que se pode abrir ao meio.)
O DOUTOR HINKFUSS (Afastando ligeiramente uma das abas deste pano e chamando.)
Por favor, Senhor... (Diz o nome do Primeiro Ator que fará o papel de Rico Verri. Mas o Primeiro
Ator, apesar de estar atrás do pano, não quer aparecer. O Doutor Hinkfuss, repetirá então) Faça
favor, faça favor, Senhor..., aproxime-se. Espero que não ouse continuar a protestar também
diante do público.
O PRIMEIRO ACTOR (Vestido e maquiado de Rico Verri, de farda de oficial da aviação, saindo
excitadíssimo de trás do pano.)
Protesto sim senhor! E ainda protesto mais, uma vez que o senhor, agora, na presença do
público, tem a ousadia de me chamar pelo meu nome.
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ACTOR
Ofendeu, sim senhor, e sem se dar conta, continua a ofender-me fazendo-me estar aqui, a
discutir consigo, depois de me ter forçado a aparecer.
O DOUTOR HINKFUSS
E quem lhe disse que era para discutir? O senhor é que está discutindo! Eu só lhe peço que
cumpra o seu dever.
O PRIMEIRO ACTOR
Não, senhor! O senhor não me vai apresentar ao público que já me conhece. Eu não sou um
fantoche nas suas mãos. A mim não me mostra o senhor, como mostrou aquele camarote vazio
ou como se mostrasse uma cadeira colocada num local qualquer em vez de outro para algum
dos seus efeitos mágicos!
O senhor está a aproveitar-se da paciência que sou obrigado a ter nesta altura...
Não, meu caro senhor, não se trata de uma questão de paciência; peço-lhe simplesmente que
pense que neste momento já não é o... (Diz o seu nome) que está aqui, vestido com esta farda;
porque ao comprometer-se consigo a improvisar esta noite com gestos naturais devo viver a
personagem de Rico Verri, ser Rico Verri. Ainda que, como eu lhe dizia ao princípio, eu não
sabia se ele se poderá adaptar a todas as combinações e surpresas e joguinhos de luzes e
sombras que o senhor preparou para divertir o público. Percebeu?
(Nesta altura ouve-se o barulho seco de uma sonora bofetada dada atrás do pano, e logo a
seguir os protestos do velho Ator Centro que fará o papel de Sampognetta)
O ACTOR CENTRO
Ai! Que foi? Santo Deus. Faça o favor de nunca mais voltar a dar-me bofetadas de verdade!
O ACTOR CENTRO (Saindo de trás da cortina com uma mão na cara, vestido e maquiado de
Sampognetta)
Não autorizo a senhora... (Diz o nome da Atriz Característica.) sob o pretexto de que está a
improvisar, a dar-me bofetadas ouviu? Que, entre outras coisas, me estragam a maquiagem.
(Mostra-lhe o lado da cara onde levou a bofetada.)
UMA ATRIZ CARACTERÍSTICA (Saindo de trás da cortina, vestida e maquilhada de Dona Inácia.)
Ó Deus do Céu, mas o senhor não se afasta! Não é difícil desviar delas! É um movimento
instintivo e natural.
O ACTOR CENTRO
O ACTOR CENTRO
Muito bem! Mas eu é que sei quando as mereço, minha querida senhora!
Então esteja sempre pronto a esquivar porque para mim o senhor está sempre merecendo. E
se representamos de improviso, eu não posso lhe dar sempre no momento marcado.
O ACTOR CENTRO
Então como quer que lhe bata? Quer que eu finja? Eu não tenho um papel que se possa
aprender de cor: tem que vir daqui (Faz um gesto que sobe do estômago) e não tenho tempo
de pensar, sabe? O senhor me irrita e eu bato.
O DOUTOR HINKFUSS
E de que maneira!
O DOUTOR HINKFUSS
Desculpe, mas o senhor não queria fazer a apresentação? Pois aqui estamos nós a
apresentarmo-nos a nós próprios. Uma bofetada e o imbecil do meu marido já fica muito bem
apresentado.
Olhe, está a ouvir? Está a assobiar. Está completamente metido no seu papel.
O DOUTOR HINKFUSS
Mas parece-lhe possível fazer as apresentações em frente desta cortina, fora de qualquer
quadro e sem qualquer ordem?
O DOUTOR HINKFUSS
Não tem importância? O que é que a senhora quer que o público entenda?
O PRIMEIRO ACTOR
Claro que entende! Entende muito melhor assim! Deixe isso por nossa conta. Todos estamos
completamente dentro do nosso papel.
Nós faremos tudo, e até faremos tudo o que o senhor preparou! Mas, entretanto, um
momento, com licença, permite que apresente também as minhas filhas (Afasta a cortina para
as chamar). Venham cá, meninas! Venham cá, venham cá, meninas! Venham cá! (Agarra a
primeira pelo braço e puxa-a para a frente.) Mommina. (Depois a segunda.) Totina. (Depois a
terceira.) Dorina. (Depois a quarta.) Néné. (Todas, exceto a primeira, esboçam uma reverência
quando entram.)
Quatro lindas raparigas que, graças a Deus, eram todas dignas de virem a ser rainhas! Quem
diria que nasceram de um homem como aquele?
E ele assobia, está a assobiar. (Depois, saindo do papel e dirigindo-se ao Doutor Hinkfuss)
Como o público certamente terá compreendido, esta rebelião dos atores perante as minhas
ordens é fingida, foi combinada de antemão entre mim e eles para tornar mais espontânea e
viva a representação.
(Com esta saída traidora, os atores surgem como vários fantoches tomados de estupefacção. O
Doutor Hinkfuss imediatamente se dá conta disso, volta-se para olhar para eles e mostra-os ao
público)
Basta de palhaçadas! Peço ao público que acredite que os meus protestos não têm fingimento
algum. (Afasta a cortina, como anteriormente, e sai furioso.)
O DOUTOR HINKFUSS (Rápido, em confidência para o público.)
Também esta furiazinha é fingimento. Tratando-se de um ator como o senhor... (Diz o nome.)
um dos melhores da nossa cena, era necessário que eu desse alguma satisfação ao seu amor-
próprio. Mas os senhores compreenderão que tudo o que se passa em cima deste palco não
pode deixar de ser fingido.
Continue, minha senhora, continue se faz favor. Está tudo correndo muito bem. Aliás, menos
não se poderia esperar da senhora.
UMA ATRIZ CARACTERÍSTICA (Desconcertada, quase assustada com tanto imprevisto e já não
sabendo o que fazer.)
Ah... está bem... quer que eu continue? Mas... desculpe, mas o que é que eu hei de fazer?
O DOUTOR HINKFUSS
Santo Deus! Continue a apresentação, minha senhora, conforme estava combinado, e que
estava a correr tão bem.
Não, não. Escute, senhor encenador, não me fale em combinações se não quer que eu fique
sem pronunciar uma só palavra que seja.
Magnífico!
Mas desculpe, o senhor queria de verdade dar a entender que teria havido alguma combinação
para esta nossa entrada?
O DOUTOR HINKFUSS
Pergunte ao público se não tem a impressão de que neste momento nós não estamos
improvisando nada?
(O espectador das primeiras filas, os quatro espectadores da plateia e o da galeria começam a
dar palmas; mas pararão imediatamente se o verdadeiro público não lhes seguir o exemplo por
contágio.)
Ah, está bem, isso sim. Estamos mesmo improvisando. Fizemos a entrada em cena e agora
estamos improvisando, tanto eu como o senhor.
O DOUTOR HINKFUSS
Com certeza! (Chamando para trás da cortina) Eh! Meninos! Venham todos!
O DOUTOR HINKFUSS
Devagar, devagar, meus amigos, não façam confusão! Esperem aí, esperem. Você, Pomàrici, o
meu sonho para a Totina, aqui. Assim, dê-lhe o braço. Muito bem. E você, Sarelli, aqui com a
Dorina!
O TERCEIRO OFICIAL
Isso não! Nada de brincadeiras, (Agarrando-a pelo braço.) a Dorina é para mim!
Deixa-a ficar para mim, já que foi a mim que a mãe a deu!
O TERCEIRO OFICIAL
DORINA (Aborrecida.)
Claro que estamos, desculpe, Senhora Dona... (O nome da Actriz Característica.) Estamos de
acordo para representarmos os nossos papéis.
O TERCEIRO OFICIAL
Minha senhora, peço que não faça confusões do que já se tinha combinado.
Ah, está bem. Desculpe, que já não me lembrava. Você, Sarelli, fica com a Néné.
SARELLI
De resto, sabe, nós só aqui estamos para dar uma certa animação.
O DOUTOR HINKFUSS (Para a Atriz Característica.)
Sim, sim, desculpe. Não seja impaciente. Estes senhores são tantos, que fiz uma certa
confusão.
E o Verri? Onde está o Verri? Devia estar aqui com os seus colegas.
Sim, senhora, com estes valentes colegas que ensinam a modéstia às suas queridas filhas!
Queria que eu as pusesse nas freiras para aprenderem o catecismo e os lavores? Passou já o
tempo, Eneias...
Vá, venha para aqui, seja bonzinho! Olhe para elas, você que fala de modéstia, não fazem
alarde disso mas têm belas prendas de donas de casa como poucas têm nos dias de hoje. A
Mommina sabe cozinhar...
Mamã!
DONA INÁCIA
TOTINA
DONA INÁCIA
E Néne...
NÉNÉ (Subitamente agressiva, preparando-se para lhe tapar a boca.)
DONA INÁCIA
Isto já chega!
DONA INÁCIA
Desmanche-os...
Pronto, mamã!
DORINA
DONA INÁCIA
SAMPOGNETA
DONA INÁCIA
E depois não são exigentes, contentam-se com pouco; desde que lhes não falte o teatro, até
andam de jejum! Ai, o nosso velho melodrama! Até a mim me agrada tanto!
NÉNÉ (Que terá entrado com uma rosa na mão.)
Sim, está bem, a Carmen também! Mas não nos faz vibrar o coração como no seio do nosso
velho melodrama, quando se vê a inocência a gritar, sem ninguém lhe dar fé e o desespero do
amante. Pergunta à Mommina! Pronto, já chega!
(Dirigindo-se a Verri.)
O senhor veio pela primeira vez a nossa casa, se bem se recorda, apresentado por estes
rapazes...
O TERCEIRO OFICIAL
O PRIMEIRO ACTOR
...oficial da reserva, se faz favor... e só por seis meses... e depois, graças a Deus, acabou-se a
mamata para os que andam gozando a vida à minha custa!
POMÀRICI
SARELLI
Isso não importa. O que eu queria dizer era que nem as minhas filhas, nem aquele que ali
está...(O Senhor Palmiro, mal se ouve nomear volta a cara e põe-se a assobiar.)
O PRIMEIRO ACTOR
O DOUTOR HINKFUSS
Não nos antecipemos, minha senhora, não nos antecipemos ainda, por amor de Deus!
O DOUTOR HINKFUSS
Sua amiga, sim, não duvide, diz muito bem. Dizia eu. Ele também se divertia com a minha
Mommina... (Procura por ela à sua volta.)
Onde está ela? Ah, está aqui! Vem cá, chega aqui, minha desgraçada filha; ainda não é altura
para te esconderes assim. (A Primeira Atriz, que fará o papel de Mommina, resiste, enquanto a
mãe a puxa pela mão.)
A PRIMEIRA ATRIZ
Não, largue-me, largue-me, Senhora Dona... (Dirá o nome da Actriz Característica; depois,
resoluta, dirigindo-se ao Doutor Hinkfuss.) Para mim não é possível assim, senhor encenador!
Já tinha dito antes. Não é possível! O senhor estabeleceu uma linha. Uma ordem de quadros:
pois muito bem, que assim seja! Eu tenho de cantar. Preciso de me sentir segura e no meu
lugar, na ação que me foi designada. Assim, à aventura, não vou.
O PRIMEIRO ACTOR
Pois claro! Porque sem dúvida a senhora escreveu e fixou de cor as réplicas que deve dizer de
acordo com essa linha.
A PRIMEIRA ATRIZ
O PRIMEIRO ACTOR
Também fiz, também; mas não decorei as palavras que tinha de dizer. Ó minha senhora,
falemos claro para que nos possamos entender: não esteja à espera que eu fale da maneira a
que a senhora me quiser obrigar a falar, segundo as deixas que a senhora achou por bem
preparar. Eu digo aquilo que devo dizer.
(A esta tirada segue-se o burburinho de uma série de exclamações simultâneas de apoio por
parte dos outros atores.)
OS ATORES
Meus queridos senhores, falem o menos possível, falem o menos possível, já vos disse! Já
basta. A apresentação está terminada. Mais jogo cênico, muito mais jogo cênico, e menos
palavras. Confiem em mim. Asseguro-vos que as palavras virão por si próprias,
espontaneamente, nascerão do jogo. Pronto, agora retirem-se. Façam descer o pano.
(Desce o pano de boca. O Doutor Hinkfuss fica junto à ribalta e acrescenta dirigindo-se ao
público:)
II
(Volta a abrir o pano)
(“Não ficaria mal”, terá ele pensado, “se ao princípio se desse uma representação sintética da
Sicília com uma procissãozinha religiosa. E dava cor.”)
E dispôs tudo para esta procissão começar na porta de acesso à sala e ir até ao palco pela coxia
central, segundo esta ordem:
1. Quatro meninos de coro, de túnicas negras e camisas brancas com rendas; dois à frente e
dois atrás; levarão círios acesos;
3. Em cima do andor, a Sagrada Família; quer dizer, um velho maquiado e vestido de São José,
como se vê nos quadros sagrados que representam a natividade, com uma auréola de púrpura
à volta da cabeça e na mão um longo báculo, florido em cima; a seu lado, uma lindíssima
rapariguinha loira, de olhos baixos e um meigo e modestíssimo sorriso nos lábios, toucada e
vestida de Virgem Maria e também ela com uma auréola à volta da cabeça e com um belo
bebê de cera nos braços, que representa o Menino Jesus, como ainda hoje se pode ver na
Sicília no Natal, em certas toscas representações sacras com acompanhamento de música e
coros;
“Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo Para sempre seja louvado E sua mãe Maria
Santíssima.”
Entretanto ver-se-á em cena uma rua da cidade com um muro branco, de pedra, de uma casa
que correrá por mais de três quartos do palco, da esquerda para a direita, onde fará ângulo
com o fundo do palco. Na esquina, um candeeiro de rua. Para lá da esquina, no outro muro da
casa e em ângulo obtuso, ver-se-á a porta de um cabaré, iluminada com lampadazinhas
coloridas, e quase em frente, um pouco mais ao fundo, e de perfil, em cima de três degraus, o
pórtico de uma antiga igreja.
Um pouco antes de subir o pano e de a procissão entrar na sala, ouvir-se-á em cena o barulho
dos sinos da igreja e, quase imperceptivelmente, o som de um órgão que é tocado no interior.
Quando o pano sobe e a procissão entra, ver-se-ão no palco alguns homens e mulheres (nunca
mais do que oito ou nove) que passarão na rua e se ajoelharão à direita e ao longo do muro, as
mulheres fazendo o sinal da cruz e os homens tirando o chapéu. Assim que a procissão, depois
de ter subido ao palco tiver entrado na igreja, estes homens e mulheres juntar-se-ão ao cortejo
e entrarão também. Quando a última pessoa tiver passado o pórtico, os sinos deixarão de
tocar; ouvir-se-á ainda, agora mais nitidamente, o som do órgão que depois diminuirá
gradualmente, tal como a luz irá progressivamente baixando sobre a cena.
De repente, mal tenha acabado esta música sacra, rebentará com violento contraste o som de
uma orquestra de jazz no interior do cabaré e ao mesmo tempo o muro branco que se estende
por mais de três quartos de palco ficará transparente. Ver-se-á o interior do cabaret, fulgurante
de luzes de muitas cores. A direita, junto à porta de entrada, estará o bar, atrás do qual se
verão três raparigas decotadas e pintadas provocantemente. Na parede do fundo, ao lado do
bar, um grande pano de veludo vermelho escaldante, e à frente dele, como se de um baixo-
relevo se tratasse, uma estranha cantora vestida com véus negros, pálida, com a cabeça
reclinada para trás e de olhos fechados, cantará lugubremente as palavras do pedaço de jazz.
Três bailarinas loiras moverão os braços e as pernas seguindo o ritmo, de costas para o bar, no
pouco espaço existente entre ele e a primeira fila de mesinhas redondas à volta das quais estão
sentados os clientes (pouco numerosos) com as bebidas à frente
Entre estes clientes estará Sampognetta de chapéu de feltro na cabeça e um grande charuto na
boca.
O cliente que está atrás dele, na segunda fila de mesinhas, vendo-o tão atento às evoluções
daquelas três bailarinas está a preparar-lhe uma valente partida: dois grandes cornos
recortados da folha de cartolina em que vem impressa, com o programa, a lista dos vinhos e
das outras bebidas do cabaret.
Os outros clientes já deram por isso e com isso se divertem e apoiam-no fazendo sinais de
incitamento para que o faça depressa. Quando os dois cornos já estão recortados, bem
compridos e direitos, a saírem do círculo de cartão que lhes serve de base, o cliente levanta-se,
e vai colocá-los com muito cuidado no chapéu de Sampognetta. Toda a gente começa a rir e a
bater palmas.
Sampognetta, julgando que as gargalhadas e as palmas são para as três bailarinas que nessa
altura acabam de dançar, começa a rir e a bater palmas também, fazendo assim rebentar as
gargalhadas dos outros, cada vez mais escancaradas, e os seus aplausos, cada vez mais
entusiásticos. Mas não consegue perceber porque é que todos olham para ele, mesmo as
mulheres do bar e as três bailarinas que agora também se desmancham a rir. Fica perturbado;
o riso cerra-se-lhe nos lábios; o aplauso congela-se-lhe nas mãos.
Nessa altura a estranha cantora tem um ímpeto de indignação; destaca-se do pano de fundo
de veludo e aproxima-se para tirar da cabeça de Sampognetta aquele ornamento escarninho,
gritando
A CANTORA
(Os clientes retêm-na, gritando por sua vez simultaneamente em grande confusão.)
OS CLIENTES
- Deixa-nos em paz!
(E no meio destes gritos, a Cantora continuará a protestar enquanto a seguram e ela se tenta
soltar.)
A CANTORA
Deixem-me, cretinos! Por que é que os merece? Que mal fez ele?
Vá-se embora, vá-se embora daqui, que isto não é lugar para si!
TERCEIRO CLIENTE
(Sampognett é levado para fora, com os seus belos cornos na cabeça. Desfaz-se a transparência
do muro. Ainda se ouvem os gritos dos que agarram a Cantora; depois uma grande gargalhada
e a orquestra de jazz volta a atacar.)
SAMPOGNETTA (Para os dois outros clientes que o obrigaram a sair e que agora se divertem a
vê-lo assim coroado, sob a luz do candeeiro.)
O TERCEIRO CLIENTE
SEGUNDO CLIENTE
Queriam, para se divertir, que ela lhe tivesse pregado uma bofetada como na outra noite....
TERCEIRO CLIENTE
SAMPOGNETA
PRIMEIRO CLIENTE
Ah! Olhe, olhe para ali! Lá para cima, para o céu! As estrelas!
SEGUNDO CLIENTE
As estrelas?
PRIMEIRO CLIENTE
SEGUNDO CLIENTE
SAMPOGNETA
Será possível?
PRIMEIRO CLIENTE
É, é. Olhe para aquilo! É como se lhes estivessem mexendo com dois paus.
SEGUNDO CLIENTE
TERCEIRO CLIENTE
SEGUNDO CLIENTE
SAMPOGNETA
Ah, sim. Que eu esta noite, não sei se deram por isso, fiz de propósito para olhar sempre para
as bailarinas, sem nunca voltar sequer a cabeça para ela. Faz-me tanta impressão, tanta!
Aquela pobrezinha, quando canta de olhos fechados e com aquelas lágrimas que lhe escorrem
pelas faces!
SEGUNDO CLIENTE
Mas isto faz parte da profissão, Senhor Palmiro! Não acredite naquelas lágrimas!
Não, não, isso não! Da profissão? Qual profissão! Dou-lhes a minha palavra de honra que
aquela mulher sofre: sofre de verdade. E depois tem a mesma voz da minha filha mais velha:
tal e qual! tal e qual! E confessou-me que ela também é filha de boas famílias.
TERCEIRO CLIENTE
SAMPOGNETA
Isso não sei. Mas sei que certas desgraças podem acontecer a toda a gente. E cada vez que a
ouço cantar, entra-me uma... uma angústia, uma consternação...
(Nesta altura aparecem da esquerda, em passo de marcha, Totina de braço dado com Pomàrici,
Néné dando o braço a Sarelli, Dorina dando o braço ao Terceiro Oficial, Mommina ao lado de
Rico Verri e Dona Inácia dando os braços aos outros dois jovens oficiais. Pomarici marca o
passo para toda a gente, mesmo antes de o grupo ter entrado em cena. Os três clientes (que se
podem ter tornado em quatro ou mais), ouvindo a voz, retiram-se para a porta do cabaré,
deixando o Senhor Palmiro sozinho debaixo do candeeiro, ainda com os seus cornos na
cabeça.)
POMARICI
Um, dois... Um, dois... Um, dois... (Dirigem-se para o teatro; as quatro raparigas e Dona Inácia
de espalhafatosos vestidos de noite.)
POMARICI
SAMPOGNETA
NÉNÉ
Uns cornos!
DORINA
TOTINA
DONA INÁCIA
Não faltava agora senão a mãe ainda por cima embirrar com ele...
TOTINA
Quem foi que ousou? Quem foi que ousou? (Agarra um pela gola do casaco.) Foi você?
NÉNÉ
Estão-se a rir...
VERRI
POMARICI
SARELLI
DONA INÁCIA
Não, não, eu quero pedir explicações ao chefe dessa quadrilha de malfeitores!
TOTINA
MOMMINA
DORINA
TERCEIRO OFICIAL
QUARTO CLIENTE
POMARICI
SEGUNDO CLIENTE
...muito mais do que a estimamos a si, que não estimamos nada, minha cara senhora!
SEGUNDO CLIENTE
QUARTO CLIENTE
TERCEIRO CLIENTE
VERRI
POMARICI
Os senhores insultam as senhoras que vão a passar na rua acompanhadas por nós, e o nosso
dever é defendê-las!
QUARTO CLIENTE
TERCEIRO CLIENTE
DONA INÁCIA
Quem? Eu! Eu não insultei nada! Disse-vos na vossa cara o que os senhores são! Malfeitores,
malcriados! Malandrins! Mereciam era ser postos numa jaula, como os animais ferozes! Isso é
o que vocês são! (E como todos os clientes riam descaradamente.)
SARELLI
Pronto!
TERCEIRO OFICIAL
NÉNÉ
QUARTO OFICIAL
TOTINA
MOMMINA
POMARICI
DONA INÁCIA
Não, senhor. Ele! Qual teatro! Para casa! Volta já para casa! Amanhã tem que se levantar cedo
para ir para a vinha! Para casa! Para casa!
(Os clientes voltam a rir-se com esta ordem peremptória da mulher ao marido.)
SARELLI
POMARICI
Chega! Chega!
OS OUTROS OFICIAIS
(Nesta altura, o Doutor Hinkfuss que desde o princípio voltou a entrar na sala atrás da
procissão e que se sentou para vigiar a representação, estando sentado numa cadeira da
primeira fila que fora reservada para ele, levanta-se.)
O DOUTOR HINKFUSS
Sim, sim! Já chega! Para o teatro! Para o teatro! Saiam todos! Os clientes voltam para o
cabaret. Os outros saem pela direita! E fecham um bocado o pano de um lado e do outro!
(Os atores saem. Fecham um pouco o pano de cada lado de forma a deixar no meio o muro
branco que deve servir de ecrã para a projeção cinematográfica do espetáculo de ópera. Só o
Ator Centro fica ali defronte, quando todos os outros desapareceram.)
Se não vou com eles para o teatro devo sair pela esquerda, não é assim?
O DOUTOR HINKFUSS
O ACTOR CENTRO
Não, só gostava que desse conta que não me deixaram dizer uma única palavra. É confusão
demais, senhor encenador!
O DOUTOR HINKFUSS
Mas que ideia! Correu tudo lindamente! Vá, vá, vá-se embora!
O ACTOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
Está bem, mas agora que já notei, vá-se embora! Agora é a cena do teatro! (O Ator Centro sai
pela esquerda.) A gramofone! Comecem imediatamente a projeção do filme!
(O Doutor Hinkfuss volta a sentar-se na sua cadeira da plateia. Entretanto, à direita atrás do
pano de boca que terá sido puxado de maneira a esconder a esquina do muro com o
candeeiro, os empregados de cena terão colocado um gramofone na qual se terá posto um
disco com o final do primeiro ato de um velho melodrama italiano, La Forza del Destino, ou II
Ballo in Maschera ou qualquer outro sob a condição de que se faça a projeção sincrônica do
final sobre o muro branco que serve de ecrã. Assim que o som da gramofone se começa a ouvir
e começa a projeção, ilumina-se o camarote da sala que tinha ficado livre, com uma luz
especial, quente, que não se percebe de onde vem; e ver-se-ão entrar Dona Inácia com as
quatro filhas, Rico Verri e os outros jovens oficiais. A entrada será ruidosa e imediatamente
provocará protestos do público.)
DONA INÁCIA
TOTINA
DORINA
VOZES NA SALA
- Francamente!
- Silêncio!
TOTINA
DORINA
Pensámos que a Mommina quisesse ficar atrás com o Verri, como da última vez...
VOZES NA SALA
- Silêncio!
- Silêncio!
(Entretanto no camarote a mudança de lugares provoca grande alvoroço: Totina terá cedido o
seu lugar a Mommina e terá passado para o lugar de Dorina que por sua vez terá passado para
a cadeira deixada por Néné que terá ido sentar-se no banquinho junto da mãe. Rico Verri
sentar-se-á junto de Mommina, no banquinho oposto; atrás de Totina, Pomàrici; atrás de
Dorina, o Terceiro Oficial; e ao fundo Sarelli e os outros dois oficiais.)
MOMMINA
NENÉ
Eu?
NÉNÉ
DORINA
Deixem-nos falar!
TOTINA
POMARICI
VOZES NA SALA
- Esteja calado!
- É uma vergonha!
- Ponham-nos a andar!
- Que lindo! Que seja do grupo dos oficiais que sai este escândalo todo!
- Fora! Fora!
DONA INÁCIA
Canibais! A culpa não é nossa se chegámos tão tarde! Vejam lá se isto se pode considerar uma
terra civilizada! Primeiro, uma agressão em plena rua, agora até no teatro nos agridem
também! Canibais!
TOTINA
NÉNÉ
E aqui está gente que sabe como é costume fazer-se e como se vive no Continente!
VOZES NA SALA
Suficiente! Preparar!
Sim, basta, sim, sim, basta! Não se excedam, por favor, não se excedam!
DONA INÁCIA
Mas, por amor de Deus, a que excessos é que se está a referir? Eles é que nos incitam! É uma
perseguição insuportável, não vê? Só por causa de um bocadinho de barulho que fizemos
quando entrámos!
O DOUTOR HINKFUSS
Está bem, está bem! Mas agora já basta! De qualquer maneira, o ato acabou!
VERRI
O DOUTOR HINKFUSS
TOTINA
(Sai do camarote.)
NÉNÉ
O DOUTOR HINKFUSS
A parte do público que tem por hábito sair da sala entre um ato e outro, pode, se assim o
desejar, ir assistir ao escândalo que esta boa gente continuará a dar até mesmo no 'foyer' do
teatro; não porque o queira mas porque, seja o que for que fizer, dará nas vistas, mal vista
como é, e está condenada a ser o objeto da maledicência geral. Façam favor de ir, façam favor;
mas todos não, sim? Posso assegurar-vos que os que ficarem nos seus lugares não vão perder
nada de essencial. Lá fora continuarão a ver, misturados com os espectadores, aqueles que
aqui viram sair do camarote para o intervalo do costume entre um ato e o outro. Eu vou
aproveitar este intervalo para a mudança de cena. E fá-lo-ei perante vós, ostensivamente, para
vos oferecer, a vós que ficais na sala, um espetáculo a que não estais habituados. (Bate palmas
para dar sinal e ordens.)
Abram o pano!
(O pano abre.)
INTERMEDIÁRIO
Agrupar-se-ão em quatro pontos diferentes do foyer, e em cada um desses sítios cada grupo
fará a sua cena independentemente dos outros grupos e simultaneamente: Rico Verri com
Mommina; Dona Inácia com os dois oficiais que se chamam, um Pommetti, o outro Mangini,
sentar-se-á num banco; Dorina passear-se-á conversando com o Terceiro Oficial que se chama
Nardi; Néné e Totina irão com Pomarici e Sarelli para o fundo do foyer onde haverá um bar que
vende bebidas, café, cerveja, licores, caramelos e outras guloseimas.
Estas cenazinhas isoladas e simultâneas vêm aqui transcritas por necessidade de espaço umas
a seguir às outras.)
I
NÉNÉ, TOTINA, SARELLI e POMARICI (Junto do bar ao fundo do foyer.)
NÉNÉ
Não tem gelados? Que pena! Então dê-me uma bebida qualquer. Mas bem fresca! Sim, pode
ser de mentol...
TOTINA
POMARICI
NÉNÉ
TOTINA
Se calhar não são bons. São bons? Então está bem, compre, compre. É uma das maiores
satisfações que uma mulher pode ter...
POMARICI
Os bombons?
TOTINA
POMARICI
Mas isto não é nada! Pena que não tivéssemos tempo para passarmos pelo café a caminho do
teatro...
SARELLI
Mas também o papá, meu Deus, parece que vai de propósito dar pretextos para esta indigna
perseguição, ao frequentar certos lugares!
E para mim?
NÉNÉ
POMARICI
Claro! O quê? Meter um rebuçado na boca de uma menina? Sem dúvida nenhuma...
SARELLI
NÉNÉ
POMARICI
TOTINA (Provocante.)
NÉNÉ
TOTINA
POMARICI
SARELLI
POMARICI
TOTINA
NÉNÉ
Eu não aceito desculpas; quero voar sobre a cidade para ter o prazer de lhe cuspir em cima.
Posso?
SARELLI
Voar é impossível...
NÉNÉ
Não, cuspir, cuspir-lhe em cima, puh!, um escarro. Pois fica você encarregado disso.
II
NARDI
Mas sabe que o seu paizinho está loucamente apaixonado por aquela cantora do cabaré?
DORINA
NARDI
DORINA
Mas diz isso a sério? O papá, apaixonado? (Uma grande gargalhada faz com que todos os
espectadores vizinhos se voltem.)
NARDI
DORINA
Por amor de Deus, não diga nada à mama! Esfolava-o vivo! Mas quem é essa cantora? Você
conhece-a?
NARDI
DORINA
Dizem que chora sempre a cantar, de olhos fechados: lágrimas de verdade; e que algumas
vezes até cai no chão, sucumbida pelo desespero que a faz chorar, bêbada.
DORINA
NARDI
DORINA
Oh, meu Deus! E o papá? Oh, coitadinho! Mas acha que o meu pai é mesmo um desgraçado,
pobre paizinho? Não, não, não posso acreditar.
NARDI
Não acredita? E se eu lhe disser que uma noite, em que com certeza ele também estava um
bocado tocado, deu espetáculo para todo o cabaret, indo de lágrimas nos olhos e lencinho na
mão, enxugar as lágrimas dessa mulher que cantava de olhos fechados?
DORINA
NARDI
E sabe como é que ela lhe respondeu? Pregando-lhe uma enormíssima bofetada!
DORINA
NARDI
Foi exactamente isso que ele disse, ali, diante de todos os clientes que se torciam de riso:
“Também tu, ingrata? Já me dá tantas a minha mulher!”
(Nesta altura estarão perto do bar. Dorina vê as irmās Totina e Néné e corre para elas com
Nardi.)
III
DORINA
Sabem o que o Nardi me esteve a dizer? Que o papá está apaixonado pela cantora do cabaré!
TOTINA
NÉNÉ
Tu acreditas? É brincadeira!
DORINA
NARDI
SARELLI
DORINA
NÉNÉ
DORINA
Uma bofetada?
TOTINA
DORINA
TOTINA
As lágrimas?
DORINA
Sim, porque, segundo dizem, é uma mulher que está sempre a chorar...
TOTINA
Perceberam agora? Tinha ou não tinha razão para o dizer há bocado? A culpa é dele, é dele!
Como é que querem que as pessoas se não riam e não façam troça dele?
SARELLI
Se quiserem uma prova, procurem no bolso de dentro do casaco: deve lá ter o retrato dessa
cantora. Mostrou-me uma vez a mim com algumas exclamações que nem vos posso repetir,
pobre Senhor Palmiro!
IV
MOMMINA (Um pouco assustada com o aspecto sombrio com que Verri saiu da sala.)
MOMMINA
VERRI
Não sei. Só sei que se tivesse ficado mais um minuto naquele camarote, acabava mesmo por
fazer uma loucura.
MOMMINA
MOMMINA
Fale baixo, por amor de Deus! Todos os olhos estão postos em nós...
VERRI
MOMMINA
VERRI
Eu gostava de saber o interesse que tem olharem tanto para nós e andarem a escutar o que
nós dizemos.
MOMMINA
Não estamos aqui como os outros todos? Que será que vêem de estranho em nós neste
momento para nos estarem a olhar assim? Pergunto se não é possível....
MOMMINA
Sim... viver... já lho disse... fazer ainda um gesto, levantar os olhos, assim, debaixo da ira de
toda a gente. Olhe para ali, à volta das minhas irmãs e além, à volta da minha mãe....
VERRI
MOMMINA
Pois é.
VERRI
MOMMINA
VERRI
Nada. O melhor é nem pensar nisso, mas elas parece que até gostam...
MOMMINA
De que?
VERRI
MOMMINA
MOMMINA
VERRI
Bem sei, a pô-las assim; e acredite que começam a enervar-me seriamente, sobretudo aquele
Sarelli, e mesmo o Pomarici e o Nardi.
MOMMINA
Divertem-se um bocado...
VERRI
Podia pensar que o fazem à custa da boa reputação de três raparigas de bem. Ao menos
absterem-se de certos atos, de certas familiaridades...
MOMMINA
VERRI
Eu, por exemplo, não toleraria que nenhum deles se permitisse consigo...
MOMMINA
VERRI
Passemos adiante, passemos adiante, por favor! Até a menina o permitiu primeiro!
MOMMINA
Mas não basta que o saiba eu: eles também deviam saber!
MOMMINA
VERRI
Não sabem! Por mais de uma vez me quiseram mesmo mostrar que não queriam saber! E
mesmo para me escarnecer.
MOMMINA
Não pode ser! Mas quando? Por amor de Deus, não meta essas ideias na cabeça!
VERRI
MOMMINA
Eles percebem, esteja descansado! Mas quanto mais você lhes dá a ver que leva a mal mesmo
uma brincadeira inocente, mais eles continuam, até para mostrar que não o faziam por
maldade.
VERRI
MOMMINA
De maneira nenhuma! Digo isto por si, para que esteja sossegado! E por mim também, que,
vendo-o nesse estado, vivo num estado de inquietação contínua. Vamos, vamos. A mamā
mexeu-se; parece-me que quer voltar lá para dentro.
(Depois de medido o tempo que será necessário para que os quatro grupos digam
simultaneamente as suas réplicas, cada qual no local indicado, faça-se de maneira [até
cortando ou acrescentando, onde der jeito, algumas palavras] a que todos se movimentem
simultaneamente para se reunirem e deixarem o foyer em conjunto. A simultaneidade também
deverá ser regulada segundo o tempo que for necessário ao Doutor Hinkfuss para executar os
seus prodígios no palco. Esses prodígios podem ser deixados ao capricho do Doutor Hinkfuss.
Mas porque foi ele, e não o autor da novela, que quis que Rico Verri e os outros jovens oficiais
fossem aviadores, é natural que ele o tenha querido assim para se dar ao prazer de montar,
perante o público que ficar na sala, um belo cenário que represente um campo de aviação,
montado com muito efeito, em perspectiva. De noite, sob um magnífico céu estrelado, alguns
elementos sintéticos: em terra tudo em ponto pequeno, para dar a sensação do espaço infinito
com aquele céu semeado de estrelas; ao fundo, pequenina, a casinha branca dos oficiais com
as janelinhas iluminadas, e os aparelhos também pequeninos, dois ou três espalhados aqui e
ali, no campo; e uma grande sugestão de luz em claro-escuro; e o roncar de um avião invisível,
voando na noite serena. Pode-se deixar que o Doutor Hinkfuss tenha este prazer, mesmo que
na sala não fique um único espectador. Neste caso (que é de admitir, apesar de tudo), já não
haveria representação simultânea deste intermezzo no foyer do teatro e no palco. Mas o mal
seria facilmente remediável. O Doutor Hinkfuss, mesmo mandando abrir o pano, vendo que o
seu fervor não provoca o efeito de reter na sala nem mesmo uma pequena parte do público,
retirar-se-á para os bastidores, um pouco contrariado; e desforrar-se-á dando uma amostra dos
seus talentos quando a representação no foyer tiver terminado e os espectadores, chamados
pelo som da campainha, tiverem regressado à sala para tomarem os seus lugares.
O que importa sobretudo é que o público aguente estas coisas que, se não são propriamente
supérfluas, são com certeza só para enfeitar. Mas dado que há tantos sinais que mostram que
elas lhe dão tanto prazer, e que portanto, estes enfeites são procurados com maior gula do que
os saudáveis pitéus, bom proveito lhe faça; o Doutor Hinkfuss é que tem razão, e portanto
apresenta-lhes, depois desta cena do campo de aviação, outra cena, dizendo no entanto,
claramente e com a displicência de um grande senhor que se pode permitir certos luxos, que,
na realidade, se pode prescindir da primeira, porque não é estritamente necessária. Ter-se-á
perdido algum tempo para se obter um belo efeito; dar-se-á a entender o contrário, que não se
quer perder tempo algum, e que tanto assim é, que se saltou uma cena que podia ser omitida
sem prejuízo. Nós também omitiremos os comentários que o Doutor Hinkfuss poderá ele
próprio inventar facilmente, as indicações aos maquinistas, aos eletricistas e aos ajudantes de
cena para a montagem deste campo de aviação. Mal esteja o cenário montado, descerá do
palco para a sala, colocar-se-á no meio da coxia para regular bem, com outras ordens
oportunas, os efeitos de luzes, e quando tiver conseguido que eles estejam perfeitos, voltará
para o palco.)
O DOUTOR HINKFUSS
Não, não! Tirem tudo! Parem com esse ronco! Cortem! Cortem! Estou pensando que se pode
passar sem esta cena. Sim, o efeito é belo, mas com os meios que temos à nossa disposição,
podíamos obter outros não menos belos, que fizessem avançar mais eficazmente a ação.
Felizmente esta noite tenho toda a liberdade perante vós, e espero que vos não desagrade ver
como se põe de pé um espetáculo, não só perante os vossos próprios olhos, mas também (por
que não?) com a vossa colaboração. O teatro, como vedes, minhas senhoras e meus senhores,
é a boca escancarada de um grande maquinismo que tem fome: uma fome que os senhores
poetas...
UM POETA NA PLATEIA
Por favor não chame senhores aos poetas; os poetas não são senhores!
Nem os críticos são, neste sentido, senhores; e no entanto eu chamei-os assim, devido a uma
certa afetação polémica que, sem ofensa, creio que neste caso me pode ser consentida. Uma
fome, dizia eu, que os senhores poetas cometem o erro de não saber saciar. Para esta máquina
do teatro, como para outras máquinas enormemente e admiravelmente aumenta- das e
desenvolvidas, é deplorável que a fantasia dos... poetas, tão atrasada, já não consiga encontrar
um alimento adequado e suficiente. Ninguém quer entender que o teatro é acima de tudo
espetáculo. Arte sim, mas vida também. Criação, sim, mas duradoura, não: momentânea. Um
prodígio: é a forma que se move! E o prodígio, minhas senhoras e meus senhores, não pode ser
senão momentâneo. Num momento, criar uma cena perante os vossos olhos: e dentro dela,
outra, e outra, e ainda outra. Um segundo de escuridão; uma manobra rápida; um sugestivo
jogo de luzes. E aí tendes. Vou vos mostrar.
Escuro!
(Faz-se escuro, o pano fecha-se silenciosamente atrás das costas do Doutor Hinkfuss.
Acendem-se as luzes na sala, enquanto as campainhas começam a chamar os espectadores
para os seus lugares.
No caso de todo o público ter saído da sala e de o Doutor Hinkfuss [se tiver falhado a
simultaneidade da dupla representação, no foyer e na sala] se ter visto obrigado a esperar o
regresso do público à sala para dar início à montagem da primeira cena do campo de aviação e
ao palavreado, é evidente que o pano de boca não teria descido e que, depois de ter dado
ordem para o «escuro», ele continuaria perante o público a dar as suas ordens para a
continuação do espectáculo.
Aqui prevê-se o caso de haver a simultaneidade, como seria desejável; e dever-se-ia encontrar
uma maneira para a conseguir. Uma vez fechado, portanto, o pano, e acesas de novo as luzes
da sala, o Doutor Hinkfuss continuará a dizer)
O DOUTOR HINKFUSS
O DOUTOR HINKFUSS
Ah, sim; mas isso já se tinha percebido. De resto, tem pouca importância.
O PRIMEIRO ACTOR (Fazemos aparecer a cabeça pela abertura do pano de boca, nas costas do
Doutor Hinkfuss.)
Chega, já chega dessa de o oficial! Daqui a pouco ainda tiro esta farda!
Porque me irrita esse título e para pôr as coisas no seu lugar: eu não sou oficial de carreira.
O DOUTOR HINKFUSS
Já o tinha feito notar desde o princípio. Pronto. (Voltando-se para o Jovem Espectador.) Peço
imensa desculpa! Dizia o senhor...
Nada...
O DOUTOR HINKFUSS
(Quando toca o sinal volta para a sua cadeira na plateia e o pano volta a abrir-se.)
DONA INÁCIA
Ah, meu Deus, estou morrendo! Meu Deus, eu morro! É o castigo dos meus pecados! Deixe as
minhas filhas divertirem-se... Ah, meu Deus, a felicidade que eu nunca pude ter... nunca,
nunca, meu Deus.
(Neste instante Rico Verri entra pelo fundo. Primeiro pára hesitante como se o espanto tivesse
cavado um abismo em frente da sua cólera. Depois, atira-se de um salto contra Pomarici,
arranca-o ao banquinho do piano e atira-o ao chão gritando)
VERRI
(Esta entrada mergulha primeiro todas as pessoas numa espécie de espanto que se exprime
numas quantas exclamações soltas e incongruentes.)
NÉNÉ
DORINA
Está louco?!
(Depois é o tumulto, quando Pomarici que se levantou se atira para Verri, enquanto os outros
se interpõem para os separar e os reter. Falam todos ao mesmo tempo na maior das
desordens.)
POMARICI
SARELLI e NARDI
Nós também estamos aqui! Terás de nos dar uma resposta a todos!
VERRI
Pois sim, sim, a todos! Hei-de vos partir o focinho a todos, por muitos que sejam...
TOTINA
VERRI
DONA INÁCIA
Um remédio... e depois?
DONA INÁCIA
MOMMINA
DORINA
Agora só faltava esta, francamente, não se pode mais! Esta estúpida a pedir desculpa! Ainda
por cima...
NÉNÉ
SARELLI
Pai! Pai!
Vocês? Bem gostava de vos ver! Vá, experimentem, ponham-me na rua. (Para a Néné saber
correr.) Chama, chama o teu pai, vá, vai buscar o teu pai: estou pronto a responder ao chefe da
família por tudo o que faço. Quero é que as meninas sejam respeitadas por todos...
DONA INÁCIA
VERRI
MOMMINA
VERRI
Ah, eu é que sou violento? Não foram eles que fizeram a violência toda?
DONA INÁCIA
Repito que nada tenho a ver com isso. A porta está ali! Rua!
VERRI
DONA INÁCIA
A minha filha também vai te dizer. E além do mais quem manda em minha casa sou eu!
DORINA
VERRI
Isso não me chega! Se a menina está do meu lado... Eu aqui sou o único que tem intenções
honestas!
DONA INÁCIA
VERRI
Não, minha senhora. São eles! Porque em frente da seriedade das minhas intenções eles
sabem que agora já aqui não há lugar para as suas estúpidas brincadeiras.
POMARICI
É absurdo! É assim que se estraga a cena! E a gente nunca mais chega ao fim!
Mas não, por quê? Ia tudo tão bem... Vá, continuem, continuem...
MANGINI (Desculpando-se.)
NÉNÉ
Mas é claro!
VERRI (Desdenhoso, para Mangini.)
MOMMINA
Se o Senhor.... (Dirá o nome do Primeiro Ator.) quer fazer o seu papel sozinho e que a gente
fique sem fazer nada, então que o declame e a gente vai-se mas é embora!
VERRI
Eu é que me vou embora! Os outros querem fazer tudo à sua vontade e como muito bem lhes
apetece, sem eira nem beira!
SARELLI
NARDI
Quer brilhar sozinho! Ora cada um deve fazer o que lhe compete!
Basta! Basta! Continuem com a cena! Parece-me bem é que é o Senhor... (Diz o nome do
Primeiro Ator.) ...quem está a estragar tudo!
VERRI
Não, não. Só um instante! Não sou eu. Eu queria que falasse quem tem de falar e que me
dessem a deixa no tom. (Alude à Primeira Atriz.) Há três horas que eu estou aqui repetindo e a
senhora não se lembra de palavra nenhuma para pegar nisto. Sempre com esses ares de
vítima!
Mas eu sou, eu sou a vítima! Vítima das minhas irmās, desta casa, deles, vítima de todos!
(Nesta altura, por meio dos atores que, voltados para o Doutor Hinkfuss, conversam à boca de
cena, surge o Velho Ator Centro, ou seja, Sampognetta, com um rosto de morte. Com as mãos
ensanguentadas na barriga ferida por uma faca e com o casaco e as calças cheias de sangue.)
SAMPOGNETTA
Mas no fim de contas, senhor encenador, eu bato à porta, bato, assim todo ensanguentado, o
que não é nada fácil para um ator do meu naipe e ninguém me manda entrar. Entro e é esta
barafunda. Os actores parados, estragado o efeito que eu devia tirar da minha entrada que
além de moribundo e ensanguentado também estou embriagado. Pergunto-lhe, pergunto-lhe
a si como é que tudo isto agora se vai compor?
O DOUTOR HINKFUSS
A CANTORA
Aqui.
O DOUTOR HINKFUSS
SAMPOGNETA
O DOUTOR HINKFUSS
Imagine que isso já está feito, por amor de Deus. E os senhores, para os seus lugares. Força
com o desespero! (Volta para a sua cadeira, resmungando.)
MOMMINA
Pai! Pai!
NÉNÉ
Ferido?
VERRI
DORINA
Na barriga!
SARELLI
A CANTORA
NARDI
POMETTI
No cabaré?
MANGINI
Deitem-no, por amor de Deus!
POMARICI
Aqui, no divā.
DONA INÁCIA (Enquanto a Cantora e o Cliente tentam deitar o Senhor Palmiro no canapé.)
NÉNÉ
Mas não se ponha agora a pensar no cabaré, mamā! Não vê como ele está?
DONA INÁCIA
Ai, vejo-a entrar pela minha casa... e olha, olha para ele, olha como ele se agarra a ela!... Quem
é?
A CANTORA
MOMMINA
O CLIENTE DO CABARÉ
A CANTORA
CLIENTE DO CABARÉ
VERRI
O CLIENTE DO CABARÉ
NARDI
SARELLI
Era o amante...?
A CANTORA
O CLIENTE DO CABARÉ
NÉNÉ
TOTINA
Que é? Que se passa? Oh, meu Deus, o papá! Quem é que o feriu?
MOMMINA
DORINA
NÉNÉ
Olha e sorri.
TOTINA
NÉNÉ
MOMMINA
NÉNÉ
SARELLI
Sim, sim, eu vou, eu vou! (Sai pelo fundo com Mangini.)
VERRI
Mas porque é que ele não diz nada? (Alude ao Senhor Palmiro.) Devia dizer uma coisa
qualquer...
TOTINA
Pai! Pai!
NÉNÉ
MOMMINA
VERRI
POMARICI
Estranho... Para ali está, nem morto nem vivo. De que é que estará à espera?
NARDI
Não sei que dizer mais. O Sarelli foi a correr buscar um médico.
Fala! Fala! Não sabes dizer nada? Se tivesses obedecido... se tivesses pensado que tinhas
quatro filhas a quem agora até pode vir a faltar o pão...
DONA INÁCIA
Poder-se-á ao menos saber por que é que está a rir dessa maneira?
(Ficam mais uma vez todos suspensos numa breve pausa de espera.)
SAMPOGNETA
É porque me alegro ao ver como todos vocês têm mais talento do que eu.
VERRI (Enquanto os outros se olham nos olhos, paralisados no seu próprio jogo.)
Digo que eu, desta maneira, sem saber como é que entrei em casa se ninguém apareceu para
me abrir depois de ter estado tanto tempo a bater à porta...
SAMPOGNETA
...não consigo, senhor encenador; dá-me vontade de rir, ao ver como todos têm tanto talento,
e não consigo morrer. A criada... (Olha em redor.) ...não está? não a vejo... devia correr a
anunciar... “Oh, meu Deus, oh, meu Deus, trazem o patrão, está ferido!...”
O DOUTOR HINKFUSS
Mas que importância é que isso tem agora? Não se tinha já visto que o senhor já tinha entrado
em casa?
SAMPOGNETA
E agora peço desculpa, mas tanto me faz que me dêem por morto e que eu já não fale mais!
O DOUTOR HINKFUSS
SAMPOGNETTA
Pois bem, aqui tem a sua cena! (Atira-se para o canapé.) Já morri!
O DOUTOR HINKFUSS
Caro senhor encenador, venha aqui e acabe o senhor de me matar! Que quer que eu lhe diga?
Repito-lhe que desta maneira, eu por mim não consigo, não consigo morrer.
O DOUTOR HINKFUSS
SAMPOGNETA (Rápido.)
Eu falarei perante o horror dos outros... eu... recebendo a coragem do vinho e do sangue,
agarrado a esta mulher... (Puxa a Cantora para si e agarra-se a ela com um braço.) ...assim... e
dizer palavras insensatas, sem consequência e terríveis para esta mulher, para as minhas filhas
e ainda para estes rapazes a quem devia mostrar que, se fiz o papel do imbecil, foi porque eles
foram mesquinhos. Mesquinha mulher, mesquinhas filhas, mesquinhos amigos. (Irrita-se, como
se alguém o estivesse a contrariar). Mas devia dizer todas estas coisas bêbedo, num delírio. E
passar as mãos ensanguentadas pela cara... assim... e sujá-las de sangue... (Pergunta aos
outros.) ....está suja?... (E como eles fazem sinal que sim.) ...ainda bem... (E recomeça:) ...e
aterrorizar-vos e fazer-vos chorar... mas chorar de verdade... com um assobio que eu já nem sei
fazer, e era pôr os lábios assim... (Tenta assobiar mas não consegue: fhhh, fhhh.) ...para dar o
meu último assobio... e depois sim... (Chama o Cliente.) ...chega-te cá... (Agarra-se-lhe com o
outro braço.) ...assim... no meio de vocês os dois... mas mais chegado a ti, minha bela, inclinar
a cabeça... como os passarinhos... e morrer.
(Inclina a cabeça no peito da Cantora. Deixa cair os braços. Cai por terra, morto.)
A CANTORA
(Começa a chorar de verdade. Este assomo de verdadeira comoção na Primeira Atriz provoca a
comoção também em todas as outras atrizes que começam a chorar com toda a sinceridade. E
o Doutor Hinkfuss começa nessa altura a gritar:)
O DOUTOR HINKFUSS
(Escuro.)
Todos embora. As quatro irmãs e a mãe em volta da mesa da sala de jantar... seis dias depois...
a sala na escuridão... só a lâmpada da sala de jantar...
O DOUTOR HINKFUSS
Sim, sim. De preto. O pano deve ter caído depois da morte. Não importa. Vão vestir-se de
preto. E o pano que desça. Luzes na sala!
É claro que aqui era um caso de morte. Pena que o meu talentoso... (Dirá o nome do Ator
Centro.) ...tenha visto a sua entrada assim estragada. Mas o ator é um ator com recursos:
amanhã à noite desempenhará esta cena maravilhosamente. Se o autor tivesse a ideia de fazer
morrer a personagem, teria talvez feito morrer de uma síncope ou de um qualquer acidente.
Mas podeis ver o efeito teatral que consegue uma morte como eu a imaginei com o vinho e o
sangue e um braço em cima daquela cantora. A personagem tem de morrer.
Mas então esse sinal? Será possível que as senhoras atrizes ainda não estejam prontas?
Não? Que é? Que se passa? Já não querem representar mais? Que quer isso dizer? Com o
público todo à espera? Vá, venha, venha...
Dizem...
O DOUTOR HINKFUSS
(Dirá o nome do Primeiro Ator. Mas saem de trás do pano também os outros atores e atrizes.
Sai primeiro a Atriz Característica que tirará a peruca em frente do público tal como o Ator
Centro. O Primeiro Actor terá também tirado o seu uniforme militar.)
A PRIMEIRA ATRIZ
OS OUTROS
Impossível! Impossível!
O ATOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
(Neste momento estala o fim da frase do Ator Centro que, tranquila, produz o efeito de um
duche frio.)
O ACTOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
O ATOR CENTRO
Que nos vamos todos embora, senhor encenador!
O DOUTOR HINKFUSS
UNS
Embora! Embora!
O PRIMEIRO ATOR
OUTROS
O DOUTOR HINKFUSS
ATORES
Onde é que vão? São loucos? Está ali o público que pagou! Que é que querem fazer com o
público?
O ATOR CENTRO
O senhor que decida! Nós dizemos isto: ou o senhor se vai embora, ou então vamos nós!
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ATOR
O que é que aconteceu mais? Acha então que o que aconteceu não basta?
O DOUTOR HINKFUSS
O ATOR CENTRO
Resolvido, como?
O DOUTOR HINKFUSS
O ATOR CENTRO
Desculpe, mas não é assim, a saltar as cenas, a fazer-nos morrer à ordem da sua batuta...
A PRIMEIRA ATRIZ
O PRIMEIRO ATOR
...é isso. Foi o que eu disse logo desde o princípio! As palavras têm de nascer...
A PRIMEIRA ATRIZ
Mas foi o senhor o primeiro, desculpe-me, a não respeitar as palavras que me nasciam num
movimento espontâneo!
O PRIMEIRO ATOR
POMARICI
O PRIMEIRO ATOR
Deixem-me falar! A culpa não é minha! É dele! (Aponta para o Doutor Hinkfuss.)
O DOUTOR HINKFUSS
POMARICI
O PRIMEIRO ATOR
Deixem-me falar! A culpa não é minha! É dele! (Aponta para o Doutor Hinkfuss.)
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ATOR
Porque está no meio de nós com o seu maldito teatro que Deus o derrube inteiro!
O DOUTOR HINKFUSS
O meu teatro? Mas estão loucos? Onde é que nós estamos? Não estamos num teatro?
O PRIMEIRO ATOR
Estamos num teatro? Bom. Então dê-nos os papéis que temos de decorar...
A PRIMEIRA ATRIZ
NÉNÉ
O ATOR CENTRO
...e corte à sua vontade, se lhe apetecer. E faça saltar as cenas como quiser. Mas em sítios fixos
e que a gente saiba antes.
O PRIMEIRO ATOR
A PRIMEIRA ATRIZ
NÉNÉ
A PRIMEIRA ATRIZ
...para vibrar...
DORINA
...o prepotente, que vem dar ordens para a nossa casa!
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ATOR
Ainda bem o quê? Depois quer que nós cumpramos o que está indicado para cada cena...
O ATOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
Ali está o público, que não podemos mandar embora; teatro, não, nem eu nem ela
conseguimos agora pôr-nos a fazer teatro; mas assim como grita o seu desespero, e o seu
martírio, tenho eu também de gritar a minha paixão, a que me faz cometer o meu delito; pois
bem; que aí esteja como um tribunal que se senta para julgar! (Bruscamente para o Doutor
Hinkfuss.) Mas o senhor tem de se ir embora!
O DOUTOR HINKFUSS
Eu?
O PRIMEIRO ATOR
NÉNÉ
Muito bem.
O DOUTOR HINKFUSS
O ATOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ATOR
O ATOR CENTRO
Aquilo que o senhor lança aos ares todas as noites, para que cada cena seja apenas um
espectáculo para os olhos!
Quando se vive uma paixão isso é que é o verdadeiro teatro. E então basta um letreiro ao
fundo.
A PRIMEIRA ACTRIZ
Rua! Rua!
O DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ATOR
A PRIMEIRA ATRIZ
O ATOR CENTRO
O DOUTOR HINKFUSS
Vou protestar! (De costas para a porta de entrada na sala.) É um escândalo! Eu sou o vosso
encena...
(É posto fora da sala. Entretanto o pano abriu sobre um palco sombrio e vazio. O Secretário do
Doutor Hinkfuss, os maquinistas, os eletricistas, todo o pessoal de cena veio assistir ao
extraordinário espectáculo da expulsão do Diretor do Teatro pelos atores.)
POMARICI
O ATOR CENTRO
O PRIMEIRO ATOR
A PRIMEIRA ATRIZ
A PRIMEIRA ATRIZ
O PRIMEIRO ATOR
Isso sim. Mas que mal se vejam... ali... um instante... toca-lhes e depois pronto... escuro; para
fazermos ver que já não é ele, o cenário, quem manda aqui!
Basta que tu te sentes, minha filha, dentro do teu cárcere. Há-de aparecer, hão-de o ver todos,
como se estivesse mesmo a perder-te!
A PRIMEIRA ATRIZ
Espera! Tive uma ideia! Uma ideia! (Para um ajudante de cena.) Traga-me uma cadeira, já!
A PRIMEIRA ATRIZ
Que ideia?
Já vai ver. (Para os atores.) Vocês entretanto continuam a ensaiar. Ensaiam mas só aquilo que
realmente é preciso para fazermos alguma coisa. Os banquinhos das meninas. E ver se já estão
prontas para entrar, ali.
A PRIMEIRA ATRIZ
Aqui?
Sim, aqui. Aqui! E vais ver que emoção!... Néné, vai-me buscar a caixa das maquiagens e uma
toalha, vá... Espera! As meninas que tragam as camisas de noite compridas!
A PRIMEIRA ATRIZ
Deixa-nos a nós pensar, a mim que sou a tua mãe e às tuas irmãs. Nós é que te vamos pintar.
Vá, Néné!
TOTINA
A PRIMEIRA ATRIZ
Tem de ser o nosso desespero, percebes, meu, da tua mãe que sabe bem o que é a velhice... e
tu, filha, envelheceres assim antes do tempo...
TOTINA
DORINA
...e tu murchas...
A PRIMEIRA ATRIZ
TOTINA
A PRIMEIRA ATRIZ
....mas não julgues que era por medo da miséria que nos esperava depois da morte do pai...
não!
DORINA
...então por quê? Por amor? Mas tu foste mesmo capaz de te apaixonar por um monstro
daqueles?
A PRIMEIRA ATRIZ
...por ter acreditado... só ele... com todo o escândalo que se tinha espalhado...
TOTINA
DORINA
Que foi que se passou contigo? Agora... agora é que vai ver!
NÉNÉ (De volta com a caixa das maquiagens, um espelho, uma toalha, uma saia e a blusa.)
TOTINA
DORINA
A PRIMEIRA ATRIZ
NÉNÉ
(Ao dizerem a sua última réplica, elas recuam para a escuridão à direita. A Primeira Atriz que
fica só entre as três paredes nuas do seu cárcere que foram montadas no escuro durante a
cena em que foi vestida e maquilhada virá de encontro, primeiro à da direita, depois à do
fundo e por fim à da esquerda. De cada vez que lhes toca, as paredes ficam visíveis por um
instante, numa luz rasante de cima como se fosse um gelado clarão de um relâmpago para
voltarem a desaparecer no escuro.)
A PRIMEIRA ATRIZ (Num ritmo lúgubre que aumenta numa intensidade profunda, vai de
encontro às três paredes, como uma fera enjaulada.)
(E vai sentar-se numa cadeira com a atitude e o comportamento de uma louca. Durante um
tempo permanecerá assim. Da direita, para onde se retiraram a sua mãe e as três irmãs, surgirá
a voz da mãe que dirá o seguinte com o ar de quem lê uma história num livro)
E foi presa na casa mais alta da terra. Fecharam a porta, fecharam todas as janelas, vidraças e
persianas. E só à noite é que ela podia ir até àquela janela para tomar um pouco de ar.
NÉNÉ (Da sombra, em voz baixa, feliz, num tom de encantamento infantil enquanto que à
distância se ouve um som fraco, como de uma longinqua serenata...)
DORINA
Calem-se!
VERRI
Fui eu quem te tirou daquele mal. E sentindo-me ser devorado, vivo ainda, mantém-me ainda
vivo aquilo que eu sei da tua mãe e das tuas irmãs!
MOMMINA
VERRI (Tocando duas vezes com a mão na parede, o que a torna por duas vezes visível.)
Isto é uma parede! Isto é uma parede! Vocês não estão aqui!
DORINA
VERRI
DONA INÁCIA
NÉNÉ
VERRI
MOMMINA
Não, não, eu sinto que tu deves gritar, que deves gritar todo o teu tormento para te aliviares!
VERRI
São elas que o mantêm aceso! Se soubesses os escândalos que continuam a dar! Toda a terra
fala delas e imagina a minha cara... a vitória que obtiveram desenfreou-as, tornou-as ainda
mais despudoradas...
MOMMINA
A Dorina também?
VERRI
VERRI
Sim, nos teatros... nos de província, claro... onde o escândalo é sempre maior, com aquela mãe
e aquelas irmãs...
E sentes-te emocionada, é?... o teatro, é? Quando também cantavas... uma linda voz! A tua voz
era a mais bela!... Pensa só que vida não terias! Cantar, num grande teatro...
MOMMINA
Não, não...
VERRI
Não? Se tivesses ficado com elas... longe daqui... Que vida não seria a tua... em vez desta....
MOMMINA
Tu é que me fazes pensar nisso! Que queres tu que eu pense, reduzida ao que estou?
VERRI
Falta-te o ar?
MOMMINA
VERRI
MOMMINA
VERRI
Tu... há certas coisas... certas coisas... a primeira vez comigo... se era verdade... como tu
disseste que até tu não sabias... nunca podias ter feito...
MOMMINA
VERRI
Mas abraços e beijos, com o Pomàrici, sim... e os braços, os braços, como é que ele tos
apertava? Era assim? Assim?
MOMMINA
Estás-me a magoar?
VERRI
E isso dava-te prazer, não dava? E a cintura, a cintura, como é que ele ta apertava? Era assim?
Assim?
MOMMINA
E a boca? A boca? Como é que ele te beijava? A boca? Era assim? Assim? Assim?
MOMMINA
Socorro! Socorro!
(Acorrem as duas filhas com as camisas de noite compridas. Estão aterrorizadas e agarram-se à
mãe enquanto Verri foge depois de ter pegado no chapéu que estava na cadeira e a gritar.)
VERRI
Mamãe... mamãe...
MOMMINA
Que é?
DORINA
NÉNÉ
MOMMINA
Aqui onde?
TOTINA
MOMMINA
MOMMINA
NÉNÉ
DONA INÁCIA
MOMMINA
É isto o teatro... Mas antes, antes era eu quem tinha a voz mais bonita, não era a Totina... Eu,
uma voz que era bem mais bonita, tinha uma voz que todos diziam que eu devia era ir cantar
para os teatros; eu! E quem foi, foi a Totina... É, ela teve coragem... abre-se o pano, ouçam,
nessa altura... Meu Deus, o meu coração... Já não consigo cantar... fa... falta-me o ar... o
coração... não posso respirar, o coração... há tantos anos que não canto...
(Cai de repente morta. Todos pensam que ela está representando. E ficam imóveis nas suas
cadeiras à espera. Nesta imobilidade, o silêncio é mortal. Até que, no escuro, à esquerda, do
fundo, surgem, ansiosas, as vozes de Rico Verri, Dona Inácia, Totina, Dorina e Néné.)
VERRI
DONA INÁCIA
TOTINA
Mamãe! Mamãe!
DORINA
NÉNÉ
(Quer dizer “em delírio” mas não acaba. Aterrorizada como as outras, descobre o corpo inerte
por terra e ainda continuam à espera.)
VERRI
Morreu?
DORINA
TOTINA
Mamãe!
NÉNÉ
Mamãe!
(O doutor Hinkfuss entra pela porta da sala, atravessa a coxia central e, entusiasmado,
precipita-se para a cena.)
O DOUTOR HINKFUSS
Magnífico! Um quadro magnífico! Fizeram aquilo que eu dizia! Isto não está na novela!
TOTINA
Eu bem suspeitei, quando nós aparecemos ali no grupo... (Aponta para o outro lado da parede,
à direita.) Só Deus sabe o efeito que isto não deve ter tido na sala!
A ATRIZ CARACTERÍSTICA (Apontando para a Primeira Atriz que continua estendida por terra.)
Mas de que é que ela está à espera para se levantar? Está estendida como se...
O ATOR CENTRO
Senhora... Senhora...
Sente-se mal?
NÉNÉ
Claro, não é de espantar. Querem que a gente viva... eis as consequências! Mas nós não
estamos aqui para isto, não... Estamos aqui para representar papéis, papéis escritos e que se
aprendem de cor! Não quer por certo pretender que todas as noites um de nós deixe aqui a
pele!
O PRIMEIRO ATOR
O DOUTOR HINKFUSS
Não, autor, não! Papéis escritos sim, se quiserem para que nós lhes demos vida de novo, por
um momento... mas... (Para o público.) sem as inconveniências desta noite, que o público por
certo nos perdoará!
(FIM)