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Os Últimos Dias da Humanidade

Os Últimos Dias da Humanidade


Autor Karl Kraus
KARL KRAUS
Título original Die letzten Tage der Menschheit (1915­‑1922)
Tradução, posfácio e notas António Sousa Ribeiro

Direcção editorial João Luís Pereira, Pedro Sobrado


Direcção gráfica João Faria
Capa e paginação Studio Dobra
Fotografia João Tuna

© 2016, Teatro Nacional São João


e Edições Húmus, Lda.
Os Últimos Dias
Apartado 7081
4764­‑908 Ribeirão – V.N. Famalicão
T 92 637 53 05
da Humanidade
humus@humus.com.pt Tragédia em cinco actos
Impressão: Papelmunde com prólogo e epílogo
1.ª edição: Outubro de 2016
Depósito legal n.º
ISBN 978­‑989­‑99605­‑2­‑7

Colecção Teatro Nacional São João – 17

Resultado de uma parceria com as editoras Campo das Letras (2007­‑08)


e Húmus, a Colecção Teatro Nacional São João privilegia a edição de textos Tradução, posfácio e notas de
originais e novas traduções encomendados para a encenação de espectáculos
produzidos pelo TNSJ ou integrados na sua programação. António Sousa Ribeiro
Este livro não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Versão integral
A tradução aqui publicada foi estreada
no Teatro Nacional São João (Porto),
no dia 27 de Outubro de 2016.

Os Últimos Dias da Humanidade


de Karl Kraus
tradução António Sousa Ribeiro
dramaturgia Nuno Carinhas, Nuno M Cardoso,
João Luís Pereira, Pedro Sobrado

encenação Nuno Carinhas, Nuno M Cardoso


cenografia e figurinos Nuno Carinhas
desenho de luz Wilma Moutinho
desenho de som Francisco Leal
música Jonathan Saldanha
vídeo Pedro Filipe Marques
assistência de encenação Mafalda Lencastre

interpretação
Ana Mafalda Pereira, Andreia Ruivo, António Durães,
Benedita Pereira, Diana Sá, João Cardoso, Joana Africano,
João Castro, João Lourenço, Mafalda Canhola, Marcello Urgeghe,
Maria Inês Peixoto, Miguel Loureiro, Paulo Calatré,
Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Raquel Cunha, Rita Pinheiro,
Sara Barros Leitão, Teresa Arcanjo, Tiago Sarmento

produção TNSJ
Os Últimos Dias da Humanidade

Prefácio, Karl Kraus 15


Dramatis personae 19

Prólogo 49
Acto I 77
Acto II 263
Acto III 373
Acto IV 491
Acto V 639
Epílogo 843

Notas 893
índice onomástico 913
Posfácio, António Sousa Ribeiro 935
Prefácio

Este drama, cuja extensão, medida à escala terrena, daria para


preencher uns dez serões, destina­‑se a ser representado por um
teatro do planeta Marte. O público do nosso mundo não teria for‑
ças para suportá­‑lo. Pois que é sangue do seu sangue e o conteúdo
é parte do conteúdo daqueles anos irreais, impensáveis, inacessí‑
veis a toda a mente lúcida, fora do alcance da memória e só pre‑
servados num sonho sangrento, os anos em que figuras de opereta
representaram a tragédia da humanidade. A acção, que nos trans‑
porta a um cento de cenas e infernos, é inconcebível, retalhada,
sem heróis, como aqueloutra. O humor não é senão a acusação
lançada a si próprio por alguém que não enlouqueceu à ideia de
ter suportado testemunhar as coisas deste tempo no seu perfeito
juízo. Além dele, que transfere para a posteridade a vergonha de
em tal ter tido parte, ninguém mais tem direito a esse humor. Os
contemporâneos, que consentiram que acontecesse o que aqui
fica registado, renunciem ao direito de rir, em prol do dever de
chorar. Os feitos mais inverosímeis aqui relatados aconteceram na
verdade; eu pintei o que eles só fizeram.1 Os diálogos mais invero‑
símeis aqui travados foram pronunciados nesta exacta forma; as
mais cruéis fantasias são citações. Frases cuja absurdidade se ins‑
creveu indelevelmente no ouvido ganham a dimensão da música
da vida. O documento é uma personagem; relatos ganham vida
como figuras humanas, figuras morrem como editoriais; o artigo
16 Os Últimos Dias da Humanidade Prefácio 17

de jornal recebeu uma boca, que o recita em forma de monólogo; se deixa abalar, sente tão pouco a expiação como sentiu o acto
os clichés erguem­‑se sobre duas pernas – houve seres humanos cometido, mas, apesar disso, tem suficiente instinto de preserva‑
que ficaram só com uma. Há cadências a vociferar com estrondo ção para tapar os ouvidos perante o fonógrafo das suas melodias
pelo tempo fora, engrossando até se tornarem no coro de um rito heróicas e suficiente espírito de sacrifício para, se necessário, vol‑
blasfemo. Gente que viveu abaixo da humanidade e que sobrevi‑ tar a entoá­‑las. Pois que há­‑de haver guerra é coisa que não é mini‑
veu a esta surge – enquanto agente e porta­‑voz de um presente mamente inconcebível para aqueles a quem a palavra de ordem
que não tem carne mas tem sangue, que não tem sangue mas tem “Agora estamos em guerra” permitiu e protegeu todas as infâmias,
tinta – reduzida a espectros e a marionetas e traduzida na fórmula mas a quem a admoestação “Agora estivemos em guerra!” per‑
da sua activa insubstancialidade. Carrancas e lémures, máscaras turba o justo descanso dos sobreviventes. Eles sonharam conquis‑
do Carnaval trágico, têm nomes autênticos, porque é assim que tar o mercado mundial – o fim para que nasceram – envergando
tem de ser e porque, justamente, nesta temporalidade governada uma armadura de cavaleiro; têm de contentar­‑se com o negócio
pelo acaso nada acontece por acaso. Isto a ninguém concede o pior de a venderem na feira da ladra. Numa tal disposição de espí‑
direito de julgar que se trata de uma questão local. Também o rito, venham agora falar­‑lhes da guerra! E talvez seja de recear que
que se passa na esquina da Sirk2 é regido a partir de um ponto um futuro desentranhado de um presente tão brutal não possua,
cósmico. Quem não tiver nervos resistentes, mesmo que os tenha apesar da maior distância, uma capacidade maior de compreen‑
suficientemente fortes para suportar a nossa época, vá­‑se embora são. Apesar disso, uma tão plena confissão da culpa de pertencer a
do espectáculo. Não é de esperar que um presente em que isto esta humanidade em algum lugar há­‑de ser bem­‑vinda e alguma
pôde acontecer veja no horror feito palavras outra coisa que não vez há­‑de ter utilidade. E “porque estão inda em fúria os espíritos
uma brincadeira, tanto mais quanto ele lhe ecoa aos ouvidos dos homens”, seja convocada ao cadafalso sobre as ruínas a men‑
vindo das aconchegadas profundezas dos mais hediondos dialec‑ sagem que Horácio dirige ao renovador:
tos, e que veja naquilo que há pouco se viveu, a que se sobreviveu, E deixai que conte ao mundo, que o não sabe,
outra coisa senão uma invenção. Uma invenção cuja matéria não Como tudo isto foi; dir­‑vos­‑ei, pois,
aceita. Porque maior do que toda a vergonha da guerra é a ver‑ De actos corruptos, feros, monstruosos,
gonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando Juízos de acaso, cegos assassínios;
que haja guerra, mas não que tenha havido. Os que sobreviveram De mortes pela força e pela astúcia
ao tempo dela acham que o tempo dela já passou e as máscaras E de planos que, falhando, caíram
cumprem, é certo, a quarta­‑feira de cinzas, mas não querem ser Sobre os seus autores: tudo isto eu posso
recordadas umas das outras. Como é fundamente compreensível Narrar­‑vos com verdade.3
a circunspecção de uma época que, jamais capaz de uma vivência
e incapaz de trazer à ideia o que viveu, nem pela derrocada sofrida
DRAMATIS PERSONAE

PRÓLOGO

CENA 1 (p. 49) Um estranho


(Viena. Picadeiro da Ringstraße.) O criado Franz
Um ardina O primeiro­‑ministro
Um passeante O ministro do Interior
A mulher dele O chefe de gabinete
Quatro oficiais
Dois agentes CENA 3 (p. 58)
Fischl (Gabinete nos Serviços de
Um vienense Administração da Corte.)
A mulher dele Nepalleck
Um velho assinante da Neue Freie
Presse CENA 4 (p. 64)
O mais velho assinante (No mesmo local.)
Alguns bêbedos Um contínuo
Quatro rapazes e quatro raparigas Nepalleck
de braço dado
A multidão CENA 5 (p. 64)
Fritz Werner (No mesmo local.)
A menina Löwenstamm Nepalleck
A menina Körmendy Um velho camareiro
Um homem com estudos
A mulher dele CENA 6 (p. 65)
Poldi Fesch (No mesmo local.)
Um polícia Nepalleck
Dois pequeno-burgueses Montenuovo
Dois repórteres Um velho camareiro
Um cocheiro
CENA 7 (p. 65)
CENA 2 (p. 56) (No mesmo local.)
(Café Pucher.) Montenuovo
O chefe de mesa Eduard Nepalleck
O gerente
20 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 21

CENA 8 (p. 66) Passeantes, transeuntes, criados de ACTO I


(No mesmo local.) café, público, agentes da polícia,
Um contínuo dignitários, cortesãos, senhoras da alta
CENA 1 (p. 77) Um ladrão
Príncipe Weikersheim aristocracia, religiosos, conselheiros
(Viena. Picadeiro da Ringstraße. A roubada
Nepalleck municipais, notáveis, lacaios,
Esquina da Sirk.) Uma voz de mulher
jornalistas.
Um ardina Poldi Fesch
CENA 9 (p. 67)
Um manifestante O acompanhante dele
(No mesmo local.)
Um homem com estudos Dois admiradores da Reichspost
Nepalleck
Um gabiru Cânticos de soldados mobilizados
Uma prostituta Um velho assinante da Neue Freie Presse
CENA 10 (p. 67)
Vários transeuntes O mais velho assinante
(Estação do Sul.)
A multidão Quatro rapazes e quatro raparigas de
Nepalleck
Dois repórteres braço dado
Angelo Eisner von Eisenhof
Dois fornecedores do exército Fritz Werner
Spielvogel e Zawadil
Quatro oficiais A menina Körmendy
Conselheiro e conselheira Schwarz­‑Gelber
Um vienense A menina Löwenstamm
Dobner von Dobenau
Vozes da multidão Três gabirus
Conde Lippay
Um pequeno pedinte Dois intermediários
Riedl, proprietário de café
Duas raparigas
Dr. Charas
Um polícia CENA 2 (p. 94)
Chefe do Serviço de Segurança,
Um intelectual (Tirol do Sul. À entrada de uma ponte.)
conselheiro Stukart
A namorada dele Um miliciano tirolês
Chefe de secção Wilhelm Exner
Um passageiro O Eterno Descontente
Sieghart, governador do banco
Um cocheiro
Bodenkreditanstalt Marionetas Um porteiro CENA 3 (p. 95)
Landesberger, presidente do Anglobank
Dois americanos da Cruz Vermelha (À saída da ponte.)
Herzberg­‑Fränkel
Dois turcos Um soldado
Os conselheiros municipais liberais
Dois chineses O Eterno Descontente
Stein e Hein
Uma senhora com leves traços de bigode Um capitão
Dois cônsules Stiaßny
Alguém mais sensato
Três conselheiros imperiais
Voz de um cocheiro CENA 4 (p. 95)
Sukfüll
Uma voz O Optimista e o Eterno Descontente
Birinski e Glücksmann
Um transeunte
O livreiro Hugo Heller
A mulher dele CENA 5 (p. 98)
Flora Dub
Um bando de garotos de barretina e (Ballhausplatz.)
O Eterno Descontente
com sabres de madeira Conde Leopold Franz Rudolf Ernest
O redactor
Um grupo de gente a cantar Vinzenz Innocenz Maria
22 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 23

Barão Eduard Alois Josef Ottokar Sukfüll, Süßmandl, Wottawa, Karl Füchsl CENA 20 (p. 170)
Ignazius Eusebius Maria Wunderer e Rudolf Wunderer, Zitterer Feigl Repórteres (Frente da Bucovina. Num posto de
A voz de Berchtold Halberstam comando.)
CENA 10 (p. 120) Primeiro­‑tenente Fallota
CENA 6 (p. 103) (No Café Pucher.) CENA 15 (p. 157) Primeiro­‑tenente Beinsteller
(Em frente de um salão de cabeleireiro O criado Eduard O Optimista e o Eterno Descontente
na Habsburgergasse.) O velho Biach CENA 21 (p. 177)
A multidão O conselheiro imperial CENA 16 (p. 157) (Um campo de batalha.)
Um vendedor de violinos O doutor (Sede do quartel­‑general.) Dois repórteres de guerra
Um cabeleireiro O sócio Auffenberg A Schalek
Friedjung O retroseiro Brudermann Generais O pintor Haubitzer
Historiadores
Brockhausen O primeiro­‑ministro Dankl
Pflanzer­‑Baltin CENA 22 (p. 184)
CENA 7 (p. 106) CENA 11 (p. 127) Um ajudante­‑de­‑campo (Em frente ao Ministério da Guerra.)
(Kohlmarkt. Em frente à porta Dois que se desenrascaram O Optimista e o Eterno Descontente
giratória que dá entrada para O assinante CENA 17 (p. 162) Um ardina
o Café Pucher.) O patriota (Viena. No grémio dos proprietários Dois refugiados
O velho Biach Um ardina de café.) Nepalleck
O conselheiro imperial Riedl Eisner von Eisenhof
O sócio CENA 12 (p. 148) Três donos de cafés
O doutor Um gigante à civil e um anão de Um criado CENA 23 (p. 193)
O Eterno Descontente uniforme (Junto à Lagoa de Janow.)
O retroseiro Um ardina CENA 18 (p. 165) Ganghofer
(No quartel do regimento Um ajudante­‑de­‑campo de Wilhelm II
CENA 8 (p. 110) CENA 13 (p. 149) Deutschmeister em Viena.) Wilhelm II
(Uma rua dos arrabaldes.) (Eléctrico Baden­‑Viena.) Um cavalheiro O fotógrafo da Woche
Quatro rapazes jovens Um homem completamente bêbedo Cabo Weiguny Um ordenança
O dono do Café Westminster Um casal Aspirante Wögerer
Um condutor CENA 24 (p. 201)
CENA 9 (p. 114) Um casal de refugiados da Galícia CENA 19 (p. 167) (Gabinete do Chefe do Estado­‑Maior.)
(Numa escola primária.) Um funcionário das Finanças (Repartição da Assistência de Guerra.) Conrad von Hötzendorf
O professor Zehetbauer Um vienense Hugo von Hofmannsthal Um major
A turma Um cínico Skolik, fotógrafo
Os meninos Anderle, Braunshör, CENA 14 (p. 151) O Poldi
Czezowiczka, Fleischanderl, (Em casa da actriz Elfriede Ritter.) CENA 25 (p. 204)
Gasselseder, Habetswallner, Elfriede Ritter (Picadeiro.)
Kotzlik, Merores, Praxmarer, Um especulador
24 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 25

Um proprietário de imóveis Passeantes, transeuntes, mendigos, ACTO II


Primeiro­‑sargento Wagenknecht traficantes, prostitutas, oficiais,
Cabo Sedlatschek soldados, manifestantes, clientes,
CENA 1 (p. 263) CENA 4 (p. 276)
Hans Müller criados de café, ministros, passageiros,
(Viena. Picadeiro da Ringstraße. (Sede do Estado­‑Maior. Uma rua.)
Voz de um cocheiro estudantes nacionalistas, refugiados da
Esquina da Sirk.) Um jornalista e um velho general
Voz de uma prostituta Galícia, séquito de Wilhelm II.
Um ardina Um outro jornalista e um outro velho
Mendel Singer
passando Um judeu polaco general
Sieghart
Um agiota local
Um homem que apanha uma beata de
Um agente CENA 5 (p. 277)
charuto do chão
Um ferido grave de muletas, (Frente sudoeste.)
Uma mulher dos jornais
com movimentos convulsivos Duas vozes dos bastidores
dos membros Um velho general e um soldado
CENA 26 (p. 216)
Bermann siciliano
(Frente sudoeste. Um reduto a uma
Uma dama vestida de maneira vistosa Um membro do Departamento de
altitude de mais de 2500 metros.)
Weiß Imprensa Militar
Um vigia
Quatro oficiais
A Schalek
Um soldado de muletas CENA 6 (p. 278)
Um atirador
Um intelectual (Um regimento de infantaria a 300
Um oficial
Poldi Fesch passos do inimigo.)
Um ordenança
O acompanhante dele Um oficial de infantaria
Cânticos de soldados mobilizados O capelão Anton Allmer
CENA 27 (p. 219)
Três traficantes de palito na boca
(No Vaticano.)
Três granadeiros alemães CENA 7 (p. 279)
A voz de Bento a rezar
Três vereadores (Junto à bateria.)
Dois repórteres Um oficial de artilharia
CENA 28 (p. 220)
Um traficante berlinense O capelão Anton Allmer
(Na redacção.)
Um moço de recados Gritos
A voz de Benedikt a ditar
Gritos da multidão A Schalek
CENA 29 (p. 221)
CENA 2 (p. 272) CENA 8 (p. 280)
O Optimista e o Eterno Descontente
O Optimista e o Eterno Descontente (A Feira Popular no Prater.)
O empresário da trincheira do Prater
CENA 30 (p. 261)
CENA 3 (p. 274) Um representante da Agência Noticiosa
(De noite, no Graben.)
O Assinante e o Patriota Wilhelm
Dois traficantes, com as
O colega dele
acompanhantes
A voz do arquiduque Karl Franz Josef
Um ardina
O público
26 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 27

Conselheira Schwarz­‑Gelber CENA 12 (p. 303) A vendedora de flores CENA 22 (p. 334)
O senhor tenente que preferiu ficar (Kärntnerstraße.) Uma vendedora de jornais (Sede do quartel­‑general. Uma rua.)
anónimo e que na Farmácia Um homem que come muito Três clientes Um capitão do Departamento de
Schaumann, em Stockerau, ofereceu Um homem que come normalmente Um cliente habitual Imprensa Militar
a importância de uma coroa para Um homem faminto Bambula von Feldsturm Um jornalista
ajuda da Cruz Vermelha O Eterno Descontente Um homem corpulento já de idade, de
Doutor Kunze CENA 13 (p. 306) patilhas e monóculo, com um bastão
O Patriota (Florianigasse.) CENA 18 (p. 325) de marechal em cada mão
O Assinante Conselheiro jubilado Dlauhobetzky (Schottenring.)
von Dlauhobetz Senhora Pollatschek da ROHÖ CENA 23 (p. 337)
CENA 9 (p. 283) Conselheiro jubilado Tibetanzl Senhora Rosenberg (Centro da cidade.)
(Semmering. Terraço Senhora Bachstelz Um inválido com um soldado cego
da GEKAWE
do Hotel Südbahn.) CENA 14 (p. 308) Senhora Funk­‑Feigl Um jornalista sensacionalista
Jovem e Velho (Um clube de caçadores.) Um inválido de muletas Um agente
Grande e Pequeno Von Dreckwitz Uma mendiga
Uma senhora que acabou de recitar Os sócios do clube Um rapaz CENA 24 (p. 338)
Heine com profundo sentimento Um bebé (Durante a representação num teatro
Dangl CENA 15 (p. 312) Uma mulher grávida dos subúrbios.)
Todos (Secretaria de um destacamento militar.) O Eterno Descontente A Niese
Algaraviada Hirsch O comparsa
Um incondicional do Semmering Roda Roda CENA 19 (p. 331) O público
Um director­‑geral (Belgrado.)
CENA 16 (p. 316) A Schalek CENA 25 (p. 339)
CENA 10 (p. 285) (Uma outra secretaria.) Mulheres sérvias a rir­‑se (No Wolf de Gersthof.)
O Optimista e o Eterno Descontente Um oficial do Estado­‑Maior ao telefone Um intérprete O Wolf de Gersthof
Uma coluna de recrutas de barbas O inspector­‑geral da Cruz Vermelha,
grisalhas CENA 17 (p. 317) CENA 20 (p. 333) o arquiduque Franz Salvator, o seu
Rapazes a cantar (Restaurante de Anton Grüßer.) (Rua nos subúrbios.) administrador do palácio, dois
Anton Grüßer, dono de restaurante Uma mulher de idade aristocratas e a Putzi
CENA 11 (p. 302) Quatro criados de mesa Um primeiro­‑tenente Um cliente
(Rua nos subúrbios.) Dois criados jovens A multidão Os cantores populares
Dois polícias O chefe de mesa
Mulheres e homens da multidão que Um cavalheiro e uma senhora CENA 21 (p. 333) CENA 26 (p. 340)
está a fazer bicha Um ardina pigmeu (Uma casa nos subúrbios.) O Assinante e o Patriota
Um merceeiro Duas raparigas com postais Família Liebal: pai, mãe e rapaz
Uma mulher mais bem vestida Duas mulheres com postais A vizinha Sikora
O vendedor de flores
28 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 29

CENA 27 (p. 342) CENA 33 (p. 359) ACTO III


(Posição nas proximidades (Quarto em casa do conselheiro
do desfiladeiro de Uzsok.) Schwarz­‑Gelber.)
CENA 1 (p. 373) CENA 5 (p. 385)
Um general austríaco Conselheiro e conselheira
(Viena. Picadeiro da Ringstraße. (Hermannstadt. Diante de uma livraria
Um tenente prussiano Schwarz­‑Gelber
Esquina da Sirk.) alemã encerrada.)
Os ardinas Um mosqueteiro prussiano
CENA 28 (p. 343) Refugiados da Galícia, traficantes,
Dois fornecedores do exército Um livreiro alemão
(Quartel­‑general. Sala de cinema.) passeantes, transeuntes, mendigos,
Quatro oficiais
Arquiduque Friedrich, comandante­ mendigas, crianças pedintes, oficiais
Uma rapariguinha CENA 6 (p. 386)
‑em­‑chefe do exército de carreira no gozo de licença,
Uma rapariga (Na mercearia de Vinzenz Chramosta.)
Rei Ferdinand da Bulgária comandantes de hospitais, soldados
Uma mulher Vinzenz Chramosta
Uma voz que grita “pumba!” dos serviços auxiliares, civis que se
Dois admiradores da Reichspost Clientes
desenrascaram, feridos de todos os
Um velho assinante da Neue Freie Presse O inspector dos mercados
CENA 29 (p. 344) graus, soldados, actores de província,
O mais velho assinante
O Optimista e o Eterno Descontente público, hóspedes do Semmering,
Um aleijado CENA 7 (p. 388)
pessoas na bicha à porta de uma
Poldi Fesch (Dois conselheiros comerciais a sair
CENA 30 (p. 351) mercearia, fornecedores do exército,
O acompanhante dele do Hotel Imperial.)
(Algures no Adriático. No hangar oficiais, prostitutas, jornalistas, clientes,
Dois inválidos Dois conselheiros comerciais
de um esquadrão de hidroaviões.) música folclórica.
Cânticos de soldados mobilizados Um inválido
A Schalek
A voz de um cocheiro Um cocheiro
Um tenente de fragata
Uma mendiga com uma perna de pau
CENA 2 (p. 376) e um braço amputado
CENA 31 (p. 354)
(Diante das nossas posições
(Num submarino que acabou
de artilharia.) CENA 8 (p. 390)
de vir à superfície.)
A Schalek O velho Biach
Um cabo da marinha
O artilheiro
Um oficial de submarinos
CENA 9 (p. 390)
Os membros do Departamento
CENA 3 (p. 377) (Arquivo Militar.)
de Imprensa Militar
(Frente do Isonzo. Num posto Um capitão
A Schalek
de comando.) Dörmann
Primeiro­‑tenente Fallota Hans Müller
CENA 32 (p. 355)
Primeiro­‑tenente Beinsteller Outros literatos
(Uma fábrica submetida à Lei
Dois ordenanças
da Produção de Guerra.)
CENA 4 (p. 383)
O director militar de uma fábrica
(Em Jena.)
O industrial
Dois estudantes de Filosofia
30 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 31

CENA 10 (p. 399) CENA 16 (p. 411) CENA 23 (p. 422) Funcionários alemães
(Um laboratório químico em Berlim.) (Uma outra igreja protestante.) (Quartel­‑general.) Oficiais alemães
Professor Delbrück, conselheiro Conselheiro consistorial Rabe Arquiduque Friedrich
privado do governo Ambos os Buquoy CENA 31 (p. 432)
CENA 17 (p. 412) O ajudante (Censura postal num sector alemão da
CENA 11 (p. 400) (Uma outra igreja protestante.) frente.)
(Reunião da Liga dos Queruscos Pastor Geier CENA 24 (p. 423) Um oficial censor
em Krems.) Dois admiradores da Reichspost Um capitão
Pogatschnigg, mais CENA 18 (p. 415) Um aviador
conhecido por Teut (Santuário.) CENA 25 (p. 429) Um segundo­‑sargento
Uma voz Um sacristão (Em frente do Ministério da Guerra.) Um sargento
Senhora Pogatschnigg Um forasteiro Dois jovens Um soldado da milícia territorial
Winfried Hromatka, Queruscos Guarnição dos canhões de 9 cm, dita
sócio honorário CENA 19 (p. 415) CENA 26 (p. 429) “coluna de assalto”
Kasmader (Constantinopla. Uma mesquita.) (Ringstraße.) Dezasseis condutores
Übelhör Dois jovens de Berlim Cinquenta que escaparam à tropa Um primeiro­‑tenente
Homolatsch Um imã Um observador da aviação
Uma senhora CENA 27 (p. 430) Um tenente
CENA 12 (p. 404) (Em frente ao Ministério da Guerra.) Um músico militar
(Festa dançante em Hasenpoth.) CENA 20 (p. 418) Dois outros jovens Um cabo
Cavalheiro báltico e senhora báltica (Redacção em Berlim.) Um soldado
Alfred Kerr CENA 28 (p. 430) Um médico do Estado­‑Maior
CENA 13 (p. 404) (Ministério da Defesa.) Um artilheiro
(Audiência para apreciação CENA 21 (p. 419) Um capitão Um comandante de companhia
de recurso no Tribunal (Consultório em Berlim.) Um civil Um oficial delegado
de Comarca de Heilbronn.) Professor Molenaar Um soldado de engenharia
Um procurador­‑geral Um doente CENA 29 (p. 431) Um voluntário
Uma ré (Innsbruck. Um restaurante.) Um major­‑general
Dois entre a assistência CENA 22 (p. 421) Um coronel
(Secretaria de um destacamento militar.) A esposa do coronel CENA 32 (p. 436)
CENA 14 (p. 406) Um oficial do Estado­‑Maior ao telefone (Um pacífico retiro de poeta nos bosques
O Optimista e o Eterno Descontente Dois velhos generais CENA 30 (p. 431) da Estíria.)
Um jornalista (Praça do mercado de Grodno.) Kernstock
CENA 15 (p. 410) Um funcionário do comando militar Dois admiradores de Kernstock
(Uma igreja protestante.) da cidade
Superintendente Falke As raparigas que fazem mesuras
As pessoas de respeito
32 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 33

CENA 33 (p. 439) CENA 40 (p. 453) CENA 43 (p. 479) Carrancas e lémures, passeantes,
(Num posto de comando de sector.) (As termas alemãs de Groß­‑Salze.) Um capitão transeuntes, inválidos de guerra,
A Schalek Conselheiro comercial Ottomar Um civil cegos, mendigos, mendigas, crianças
Wilhelm Wahnschaffe pedintes, clientes, literatos, queruscos
CENA 34 (p. 440) Conselheira comercial Auguste CENA 44 (p. 481) em Krems, dançarinos em Hasenpoth,
(Berlim, Tiergarten.) Wahnschaffe (Kastelruth.) funcionários do tribunal, público
Um professor convidado Willichen Filhos deles
Tenente Helwig na sala de audiências, participantes
Um deputado nacional­‑liberal Mariechen Um outro tenente no serviço religioso, oficiais, clientes
Um coro invisível, representando Uma criada de mesa de restaurante, populaça, soldados,
CENA 35 (p. 443) o riso do estrangeiro O aspirante de serviço auditório, empregadas de bar,
(Auditório em Berlim.) Dois inválidos alternadeiras, estroinas, cavalheiros
O poeta Duas criadas CENA 45 (p. 481) da Cruz Vermelha, legionários
Os ouvintes Hänschen e Trudchen (Um bar nocturno vienense.) polacos, pessoal de um bar nocturno,
Hans Adalbert Rolf Rolf, o poeta repentista comparsas, a orquestra de salão
CENA 36 (p. 445) e Annemariechen Gritos Nechwatal, a orquestra cigana
(Auditório em Viena.) August e Guste Dois oficiais Miskolczy Jancsi.
O Eterno Descontente Mieze Frieda Morelli, a cantora
Crianças
Um ouvinte e a esposa Klaus e Dolly Uma voz
Walter e Marga Um comerciante de gado húngaro
CENA 37 (p. 446) Paulchen e Paulinchen O dono do bar
O Assinante e o Patriota Jochen e Suse O pessoal do vestiário e a empregada
Elsbeth dos lavabos
CENA 38 (p. 449) Uma mãe Um comerciante de cereais
(Num compartimento de Um cavalheiro Todos
caminho­‑de­‑ferro.) Dois pais Um cliente habitual
Dois caixeiros­‑viajantes Dois filhinhos Um funcionário da Cruz Vermelha
embriagado
CENA 39 (p. 452) CENA 41 (p. 473) O colega dele
O Optimista e o Eterno Descontente O Optimista e o Eterno Descontente Um médico de regimento
O colega dele
CENA 42 (p. 479) Um cliente bêbedo
(Durante a Batalha do Somme.
Portão do parque de uma mansão.) CENA 46 (p. 488)
O príncipe­‑herdeiro alemão (De noite. O Graben.)
Uma companhia que passa a marchar O Eterno Descontente
Um bêbedo a satisfazer uma
necessidade no meio da rua
34 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 35

ACTO IV O presidente do Colégio Médico da CENA 13 (p. 523)


Grande Berlim (Hospital junto ao posto de comando
Guarda Buddicke de uma divisão.)
CENA 1 (p. 491) CENA 2 (p. 498)
Várias vozes Um ferido grave
(Viena. Picadeiro da Ringstraße. O Optimista e o Eterno Descontente
Um enfermeiro
Esquina da Sirk.)
CENA 8 (p. 514) Canções vindas da sala ao lado
Os ardinas CENA 3 (p. 499)
(Weimar. Clínica ginecológica.)
Quatro oficiais (Uma estação de caminhos­‑de­‑ferro
Professor Henkel CENA 14 (p. 523)
Uma condessa em Viena.)
Professor Busse (Numa divisão de reserva alemã.)
A acompanhante dela Um porteiro de estação
A doente Um coronel
Um soldado cego em cima de uma Seis vienenses
Um assistente
carreta O Eterno Descontente
O príncipe zu Lippe CENA 15 (p. 523)
Um intelectual O rosto austríaco
Uma enfermeira O Optimista e o Eterno Descontente
O acompanhante dele Um iniciado
Poldi Fesch
CENA 9 (p. 515) CENA 16 (p. 525)
O bebé gigante CENA 4 (p. 501)
(Numa divisão de reserva alemã.) (Estação de mercadorias de Debreczin.)
O paquete do hotel (Kohlmarkt. Em frente da montra
Um coronel Uma sentinela
Cânticos de soldados mobilizados de uma galeria de arte.)
Primeiro­‑tenente Beinsteller
Um exportador berlinense com Margosches
CENA 10 (p. 515) Tenente Sekira
charutos de importação na boca Wolffsohn
(Frente do Isonzo. Num comando
O acompanhante dele
de brigada.) CENA 17 (p. 526)
Um transeunte de mãos erguidas CENA 5 (p. 502)
A Schalek (Repartição municipal em Viena.)
Um outro transeunte Strobl
Escritores Coro dos oficiais Um funcionário
Uma esposa de oficial Ertl
Um requerente
O acompanhante dela
CENA 11 (p. 520)
Dois passeantes CENA 6 (p. 503)
(Posto de comando de uma divisão.) CENA 18 (p. 528)
Dois admiradores da Reichspost (Festividade académica.)
Um comandante (Casa da família Durchhalter.)
Um excêntrico Um antigo estudante
O Mata­‑caçadores­‑imperiais Pai, mãe e filhos
O acompanhante dele Os colegas
Um major
Lenzer von Lenzbruck Um caloiro
CENA 19 (p. 528)
Senhora Back von Brünnerherz
CENA 12 (p. 522) O Assinante e o Patriota
Uma vendedora de flores CENA 7 (p. 505)
(Retirada. Uma povoação.)
Dois cavalheiros (Congresso médico em Berlim.)
O Mata­‑caçadores­‑imperiais CENA 20 (p. 529)
Storm Um psiquiatra
Um soldado faminto (Sófia. Um banquete de redactores­‑em­
A menina Löwenstamm Um louco
Um coronel ‑chefe alemães e búlgaros.)
A menina Körmendy Professor Boas
Primeiro­‑tenente Gerl O embaixador alemão, conde Oberndorff
Um passageiro Professor Zuntz
Os redactores­‑em­‑chefe alemães e búlgaros
Um cocheiro Professor Rosenfeld­‑Breslau
36 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 37

Kleinecke­‑Berlin CENA 28 (p. 569) CENA 34 (p. 611) CENA 39 (p. 622)
Steinecke­‑Hannover (Sala de cinema.) (Esquadra de polícia.) (No mesmo local, no abrigo de Hiller.)
O realizador O inspector Médico­‑ajudante Müller
CENA 21 (p. 532) Uma voz de mulher Um polícia Comandante de companhia Hiller
(Ministério dos Negócios Estrangeiros.) Emil A rapariga de 17 anos
Haymerle CENA 40 (p. 623)
Um redactor CENA 29 (p. 570) CENA 35 (p. 611) O Optimista e o Eterno Descontente
O Optimista e o Eterno Descontente (Um bar nocturno em Berlim.)
CENA 22 (p. 534) Uma voz aos berros CENA 41 (p. 624)
(Na sala de visitas da família CENA 30 (p. 591) Frieda Gutzke (Um hospital militar.)
Wahnschaffe.) (Tribunal marcial.) Katzenellenbogen Um médico do Estado­‑Maior
Senhora Pogatschnigg Capitão Dr. Stanislaus von Zagorski, Krotoschiner II Tenente­‑coronel Vinzenz Demmer,
Senhora Wahnschaffe juiz militar barão de Drahtverhau
Os 11 delinquentes CENA 36 (p. 613) Um médico de regimento
CENA 23 (p. 538) Os oficiais do tribunal marcial O Optimista e o Eterno Descontente Um sargento
Três senhoras janotas alemãs Um capelão
CENA 31 (p. 597) CENA 37 (p. 616)
CENA 24 (p. 538) (Schönbrunn. Gabinete de trabalho.) (Quartel­‑general alemão.) CENA 42 (p. 628)
O Assinante e o Patriota Franz Joseph Wilhelm II O Optimista e o Eterno Descontente
O camareiro da direita e o da esquerda Os generais
CENA 25 (p. 539) Von Seckendorff, ajudante­‑de­‑campo CENA 43 (p. 632)
(Almoço com Hindenburg CENA 32 (p. 608) Três oficiais (Departamento de Imprensa Militar.)
e Ludendorff.) (Kragujevac. Tribunal militar.) Von Hahnke Um capitão
Hindenburg e Ludendorff O primeiro­‑tenente juiz militar Von Duncker Um jornalista
Paul Goldmann O secretário Von Krickwitz
Von Flottwitz CENA 44 (p. 635)
CENA 26 (p. 543) CENA 33 (p. 609) Von Martius (Grupo de Instrução do Exército
(Semmering. No caminho (Esplanada em Ischl.) de Wladimir­‑Wolinsky.)
da montanha.) O velho Korngold CENA 38 (p. 621) Um capitão
O conselheiro imperial Quatro aquistas (Inverno nos Cárpatos.) Um secretário
O velho Biach A menina Löwenstamm Comandante de companhia Hiller
A menina Körmendy Atirador Helmhake CENA 45 (p. 636)
CENA 27 (p. 564) Bob Schlesinger Dois soldados (Em casa do conde Dohna­‑Schlodien.)
(Tiergarten em Berlim.) Baby Fanto Conde Dohna­‑Schlodien
Padde e Kladde Um velho assinante Doze representantes da imprensa
O mais velho assinante Uma voz do meio do grupo
38 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 39

Carrancas e lémures, passeantes, ACTO V


inválidos, mutilados, cegos, mendigos,
mendigas, crianças pedintes, público
CENA 1 (p. 639) CENA 5 (p. 647)
em frente de uma bilheteira de estação,
(Ao anoitecer. Esquina da Sirk.) (Junto a Udine.)
médicos, oficiais, praças, internados
Os ardinas Dois generais, cada qual num
no hospital, sentinelas, curiosos,
Quatro oficiais automóvel carregado até cima
espectadores de cinema, aquistas,
Cânticos de soldados mobilizados Um soldado de infantaria que apanha
clientes de bares nocturnos, cocotes,
Poldi Fesch uma maçaroca de milho
convalescentes, feridos de todos os
O acompanhante dele
graus, moribundos, membros do
Turi e Ludi CENA 6 (p. 649)
Departamento de Imprensa Militar,
Fallota (A retaguarda em Fourmies.)
música do regimento, música de bar
Uma vendedora de flores Soldado territorial Lüdecke
nocturno.
Dois cotos de pernas metidos num
uniforme esfarrapado CENA 7 (p. 650)
Uma voz sussurrante (Circo Busch.)
Um grito estrondeante Pastor Brüstlein
Redactor­‑em­‑chefe Maschke
CENA 2 (p. 641) Um descontente
O Optimista e o Eterno Descontente Professor Puppe
Gritos
CENA 3 (p. 644)
(Em frente ao Parlamento.) CENA 8 (p. 652)
Uma mulher que acaba de desmaiar O Optimista e o Eterno Descontente
de fome
Pattai CENA 9 (p. 654)
(Esplanada de Ischl.)
CENA 4 (p. 645) O Assinante
(Ministério dos Negócios Estrangeiros.) O Patriota
Conde Leopold Franz Rudolf Ernest O velho Biach
Vinzenz Innocenz Maria Aquistas
Barão Eduard Alois Josef Ottokar
Ignazius Eusebius Maria CENA 10 (p. 664)
(Berlim. Restaurante numa galeria.)
Zulauf
Políticos liberais
Ablaß
40 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 41

CENA 11 (p. 666) CENA 17 (p. 678) CENA 25 (p. 698) Dois dos seus amigos
(Assembleia­‑geral de guerra da O Assinante e o Patriota (Café da Ringstraße.) A mulher dele
comissão eleitoral social­‑democrática A gritaria A filha dele
do mega­círculo eleitoral de Teltow­ CENA 18 (p. 681) Mammut O tio
‑Beskow­‑Strokow­‑Charlottenburg O Optimista e o Eterno Descontente Um criado Um especulador jovem
da Grande Berlim.) Zieselmaus O gerente
Camarada Schliefke (Teltow) CENA 19 (p. 682) Walroß
Um interpelante (Michaelerplatz.) Hamster CENA 26 (p. 703)
Coro dos gabirus Nashorn (Friedrichstraße.)
CENA 12 (p. 667) Tapir Coro dos pregoeiros
O Assinante e o Patriota CENA 20 (p. 682) Schakal Um jovem
(Posto de comando militar.) Leguan Uma rapariga
CENA 13 (p. 668) Um capitão Kaiman Um polícia
(Secretaria de um destacamento militar.) Um escrivão Pavian Um especulador berlinense e um
Um membro do Estado­‑Maior ao Kondor especulador vienense ombro
telefone CENA 21 (p. 683) Löw com ombro
(Ministério da Guerra.) Hirsch Um ardina
CENA 14 (p. 669) Um capitão Wolf
(Campo de batalha junto a Saarburg.) Um escrivão Posamentier CENA 27 (p. 705)
Capitão Niedermacher Um aspirante Spitzbauch (Acantonamento do Alto-Comando
Major Metzler Schlechtigkeit do Exército. Cabaré.)
Um ferido francês CENA 22 (p. 690) Vozes de pessoas que entram Um oficial do Estado­‑Maior
Um soldado alemão (Governo Civil de Brünn.) apressadamente embriagado
O governador Gollerstepper Coro dos criados de mesa
CENA 15 (p. 670) Um secretário Tugendhat A rapariga da direita
(Junto a Verdun.) Mastodon Kohn
General Gloirefaisant CENA 23 (p. 692) Raubitschek Fritzi­‑Spritzi
Marionetas
Capitão de Massacré (Numa escola primária.) Vortrefflich O dono
Coronel Meurtrier O professor Zehetbauer Gutwillig A empregada dos lavabos
Os meninos Anderle, Gasselseder, Aufrichtig e o pessoal do bengaleiro
CENA 16 (p. 671) Kotzlik, Merores, Sukfüll, Zitterer Beständig Fettköter
(Departamento de Imprensa Brauchbar A rapariga da esquerda
Militar em Rodaun.) CENA 24 (p. 695) A empregada dos lavabos Um oficial do Estado­‑Maior
A Schalek (Na Delegação Regional de Turismo.) Pollatschek Os oficiais do Estado­‑Maior
O camarada Um redactor Lustig
Um funcionário Um inválido com tremuras
Bernhard Moldauer, um velho traficante
42 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 43

CENA 28 (p. 709) CENA 35 (p. 724) CENA 40 (p. 734) A Steffi
(Auditório em Viena.) (Hospital em Leitmeritz.) (Uma travessa.) Um agitador
O Eterno Descontente Um inválido repatriado Um soldado cego e a filhinha dele O representante da companhia
Um ouvinte e a esposa O vizinho de cama Um inválido com um realejo cinematográfica
Um tenente O dono do restaurante
CENA 29 (p. 711) CENA 36 (p. 725) A multidão
O Assinante e o Patriota (Campo de repatriados na Galícia.) CENA 41 (p. 734)
O amigo (Alto-Comando do Exército.) CENA 44 (p. 749)
CENA 30 (p. 712) Um major O Optimista e o Eterno Descontente
(Dois conselheiros comerciais CENA 37 (p. 729) Um outro major
saindo do Hotel Imperial.) (Depois da ofensiva de Inverno CENA 45 (p. 753)
Dois conselheiros comerciais nas Sete Comunas.) CENA 42 (p. 736) (Innsbruck. Maria Theresienstraße.)
Uma mendiga com uma perna Dois correspondentes de guerra O Optimista e o Eterno Descontente Um ajudante de carniceiro
de pau e um coto em vez de braço Dois soldados A rapariga com o sabre
Um cocheiro Um capitão CENA 43 (p. 745) O oficial sem sabre
Uma mulher que desmaia Figuras corpulentas que saem de (Parque da cidade.) Dois outros oficiais
de inanição automóveis Uma multidão a perder de vista Dois polícias
Um inválido Uma figura mais franzina, embrulhada Um ardina Um oficial inspector
em peles espessas Duas senhoras
CENA 31 (p. 715) O coronel Um cavalheiro CENA 46 (p. 756)
O Optimista e o Eterno Descontente Um major O querido marido e a querida esposa Dois admiradores da Reichspost
Um traficante gordo dormindo
CENA 32 (p. 718) CENA 38 (p. 732) A rapariga dele
(Formatura de um batalhão.) (Palácio Imperial. Serviço de imprensa.) Um acompanhante CENA 47 (p. 758)
Um major Capitão Werkmann Voz de um céptico (Compartimento separado
Quatro soldados Um secretário A menina Körmendy de primeira classe.)
Um cabo A menina Löwenstamm Maderer von Mullatschak, tenente­
CENA 39 (p. 733) Um peralta e uma sécia ‑coronel do Estado­‑Maior
CENA 33 (p. 720) (Kärnterstraße.) Gritos
O Optimista e o Eterno Descontente Arquiduque Max Três oradores CENA 48 (p. 759)
Um lacaio Dois grupos (A três mil metros de altitude.)
CENA 34 (p. 724) O tenor Alguém que chega a correr Um alferes
(Na aldeia de Postabitz.) A multidão Um outro A Schalek
Uma mulher Um ardina Um senhor de idade a trautear
Um jovem de casaca e CENA 49 (p. 760)
polainas brancas O Optimista e o Eterno Descontente
O amigo dele
44 Os Últimos Dias da Humanidade DRAMATIS PERSONAE 45

CENA 50 (p. 762) Um inválido repatriado moribundo Romuald Kurzbauer de ópera, boémios, benzedores,
(Comboio de montanha na Suíça.) Stanislaus von Zakrychiewicz chulos, gigolôs, putas, especuladores
Gog & Magog CENA 53 (p. 774) Petričič de preços, traficantes, candongueiros
Elschen (Uma rua deserta.) Iwaschko Oficiais
Estado­‑
e rameiras, oficiais do Estado­‑Maior,
Coribantes e ménades Koudjela ‑Maior especuladores de guerra, alternadeiras,
CENA 51 (p. 769) Felix Bellak, responsável pelo música de bar nocturno, público de
(Barracão na Sibéria.) CENA 54 (p. 774) aprovisionamento uma sessão de leitura, passeantes,
Prisioneiros na Sibéria O Eterno Descontente sentado à secretária Wowes internados num hospital, restos de
Um capitão austríaco Um oficial do Estado­‑Maior alemão um regimento, viajantes no meio de
CENA 55 (p. 789) Um capitão alemão malas, passageiros de um comboio de
CENA 52 (p. 769) (Banquete de oficiais no posto de Dois capitães prussianos montanha suíço, curiosos, membros
(Estação do Norte.) comando de um corpo do exército.) Dois primeiros­‑tenentes prussianos da associação “Louros para os nossos
Diferentes vozes O general Um tenente prussiano heróis”, funcionários, membros dos
Spielvogel e Zawadil O coronel prussiano Dois correspondentes de guerra serviços de assistência aos feridos,
Angelo Eisner von Eisenhof Um ordenança Enfermeira Paula e enfermeira inválidos repatriados, música de
Conselheiro e conselheira Brigadeiro Ludmilla regimento, jornalistas, homens e
Schwarz­‑Gelber Coronel Um ordenança mulheres que fizeram uma sugestão,
Chefe de secção Wilhelm Tenente­‑coronel A orquestra oficiais austríacos e alemães, pessoal
Exner Major Gritos dos serviços de abastecimento, visões.
Dobner von Dobenau Capitão de cavalaria
Riedl Oficial de dia Alas dos feridos e mortos, gente da Visões que falam:
Stukart do Estado­‑Maior vida mundana, mendigos, mendigas, O menino Slobodan Ljubinkovits
Sieghart Oficial de comunicações crianças pedintes, membros da († 1915); um correspondente de
Landesberger, presidente Capitães Câmara Alta, amontoado de sacos, guerra; o jovem de 19 anos e o jovem
do Anglobank Marionetas
Primeiros­‑tenentes mochilas e corpos num eléctrico, de 21 anos; dois juízes militares; um
Uma mãe Tenentes Oficiais
praças, participantes num comício auditor­‑chefe; o capitão Prasch; um
A filha Intendente­‑chefe Estado­‑
‑Maior
gigantesco, transeuntes numa primeiro­‑tenente dos Ulanos; as
Dr. Charas Médico­‑chefe galeria de Berlim, membros da máscaras de gás; os soldados mortos
Flora Dub do Estado­‑Maior comissão eleitoral, soldados e oficiais, de frio; o velho camponês sérvio; as
Dois cônsules Stiaßny Médico de regimento alemães e franceses, prisioneiros chamas; os mil e duzentos cavalos;
Três conselheiros imperiais Auditor­‑chefe alemães, feridos, a banda imperial, Leonardo da Vinci; as crianças do
Sukfüll Capelão e rabino frequentadores de um café à civil Lusitania; os cães de guerra; a floresta
Birinski e Glücksmann Adido de artilharia e de uniforme, maridinhos, tatus, morta; a mãe; o rosto austríaco; os
Hans Müller Um oficial da raparigas vestidas como insectos, corvos; as auxiliares do exército;
Putzker contra­‑espionagem criados e criadas de mesa, vendedores o filho por nascer.
O livreiro Hugo Heller Géza von Lakkati de Némesfalva de programas das corridas, um cortejo
O redactor et Kutjafelegfaluszég ordenado de rufias, agiotas, cantores
46 Os Últimos Dias da Humanidade

EPÍLOGO
A Última Noite (p. 843)

Soldado moribundo
Máscara de gás masculina
Máscara de gás feminina
General
Primeiro correspondente de guerra
Segundo correspondente de guerra
O moribundo
Um sargento
Um cego
A correspondente de guerra
Um ferido
O hussardo com a insígnia da caveira
Nowotny von Eichensieg
Doutor­‑Engenheiro Abendrot
Fressack
Hienas
Naschkatz
Coro das hienas
O senhor das hienas
Três colaboradores ocasionais
Vozes do alto
Vozes de baixo
Dois ordenanças
Os operadores de câmara
Uma voz de cima
A voz de Deus
PRÓLOGO

CENA 1
Viena. Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk.
Entardecer de um feriado estival. Vida e animação.
Formam­‑se grupos.

Um ardina: Edição especiaaal…! Assassínio do herdeiro do


trono!1 O criminoso tá preso!
Um passeante: (Para a mulher.) Graças a Deus que não é
judeu.
A mulher: Anda para casa. (Puxa por ele para se irem embora.)
Segundo ardina: Edição especiaaal…! Neue Freie Presse!
O crime de Sarajevo…! O assassino é um sérvioo!
Um oficial: Ora viva, Powolny! Então que é que dizes? Vais ao
Gartenbau?2
Segundo oficial: (Com bengala.) Era bom! Tá fechado!
O primeiro: (Abalado.) Fechado?
Um terceiro: Mas fechado como?
O segundo: É o que te digo!
O primeiro: Então que é que dizes?
O segundo: Ora, vamos ao Hopfner, pronto!3
O primeiro: Claro… mas o que eu quero dizer é que é que achas
tu do ponto de vista político, tu és um tipo esperto…
O segundo: Sabes, cá a gente o que vai fazer… (esgrime com a
bengala) isto vai ser cá um cafarnaum… nada mau… mal não
faz… já era tempo…
O primeiro: Sempre me saíste cá um figurão! Sabes, quem vai
ficar nas nuvens é o Fallota, que…
50 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 51

Um quarto: (Junta­‑se risonho ao grupo.) Ora viva Nowotny, ora O segundo: Tás a ver, é que não estudaste lógica… o qu’ele fez foi
viva Pokorny, ora viva Powolny, olha lá… tu que sabes de polí‑ confundir o Werner com o Treumann.
tica, atão que é que dizes? O terceiro: Bem, não… ’pera aí. (Reflecte.) Sabes mas é o que é que
O segundo: Sabes que mais, essa corja andou mas é com mano‑ eu acho? Sangue de Hussardo é melhor que Manobras de Outono!5
bras subversivas, é o que é. O segundo: Ora, ora.
O terceiro: Pois… pois é claro. O primeiro: Olha, tu és culto como o caraças, portanto…
O quarto: É exactamente a minha opinião… Ontem andei na O quarto: Pois claro que era o Werner!
farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta! O primeiro: Tu és culto como o caraças…
O segundo: Sabes que mais, o Fallota, aquilo é que é um patriota, O segundo: Porquê?
ele diz sempre que não basta uma pessoa cumprir o seu dever, é O primeiro: Já foste ver o Marido Sorridente?6 Também conheces
preciso ser­‑se um patriota quando as coisas viram pr’aí. Quando o Marischka?
aquele mete uma coisa na cabeça, não há cá mas nem meio mas. O segundo: Tenho pena, mas não.
Sabes que é que eu acho? Vamos ter que suar as estopinhas, é o O primeiro: Também conheces o Storm?
que é. Bem, cá por mim! O segundo: Claro que sim.
O terceiro: Atão, vamos ao Hopfner ou não? O quarto: Vamos lá, não fiqueis pr’aí na esquina das celebrida‑
O quarto: Olha lá, tu sabes quem eram aquelas duas tipas? des. Vamos ao Hopfner, se dizeis que o Gartenbau…
O segundo: Sabes que mais, o Schlepitschka von Schlachtentreu, O terceiro: Também conheces o Glawatsch? (Saem em conversa.)
o gajo é culto como o caraças, sabe a Presse4 assim de cor de uma Um ardina: (Chega em passo de corrida.) Tagblaatt…7 olhò her‑
ponta à outra, ele diz que também devíamos ler, está lá escrito, deiro do trono e a esposa assassinados…!
diz ele, nós somos pela paz, mas não pela paz a qualquer preço, Um agente de negócios: A noite inda é uma criança, qual é o
olha lá, isso é mesmo assim? (Passa uma empregada de restau‑ programa?
rante.) Olha, aquela é a tipa que eu te contei que a comi de graça Um segundo: Parece que Veneza está aberta.8
o outro dia. (Passa o actor Fritz Werner.) Os meus respeitos! O primeiro: Tá bem, apanha­‑se um eléctrico e vamos pra Veneza.
O terceiro: Sabes, acho que não sei quem é aquele. O segundo: Não sei, é que estou um bocado nervoso, enquanto
O quarto: Não conheces? Ora, vai mangar com outro, não a gente não souber…
conheces! Mas é o Werner! O primeiro: Ora, sabe­‑se lá em baixo! No Imperial toda a gente
O terceiro: É boa, sabes que é que se me meteu na cabeça, jul‑ apostava em Melpomene, ontem passaram o dia a encher­‑nos
guei que era o Treumann! os ouvidos com Melpomene. São uns desgraçados, sabe como
O primeiro: Olha que essa! Mas como é que se pode confundir o é… se julgam que eu nasci ontem… vai ali o Fischl… (Grita
Treumann com o Werner! para a alameda em frente.) Fischl, Melpomene?
52 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 53

Fischl: Pois claro! O mais velho: Seu pessimista! (Saem ambos.)


O primeiro: Raios o partam! Alguns bêbedos: (Metem­‑se à força entre os transeuntes.) Ora,
Fischl: O senhor primeiro. Glaukopis… chegou em segundo!9 como passaram todos! Abáxo! Abáxo co’a Sérvia! Façam­‑na
Um vienense: (Para a mulher.) Mas deixa que te diga, ele não em fanicos! Viva!
era benquisto… Quatro rapazes e quatro raparigas de braço dado:
A mulher: Virgem santíssima, mas atão porquê? “Uma ponte fez lançar, prò rio se poder passar, Belgrado e a
O vienense: Porque não era popular. Foi o próprio Riedl que me cidadela…”11
contou… (Saem.) A multidão: Viva! (Fritz Werner regressa e agradece com sauda‑
Um velho assinante da Neue Freie Presse: (Em conversa ções.) Viva Werner!
com o mais velho assinante.) Lindo serviço! A menina Löwenstamm: Chega­‑te agora a ele e pede­‑lhe.
O mais velho assinante: Mas qual serviço? (Olha em volta.) A menina Körmendy: (Aproxima­‑se.) Sabe, sou uma grande
Tudo vai melhorar! Vem aí uma época como no tempo de admiradora sua e gostava de pedir um autógrafo…
Maria Theresia, é o que lhe digo! (Werner saca de um bloco de notas, escreve numa folha e
O velho: Isso é o que você diz! entrega­‑lha. Sai.)
O mais velho: Pois se lhe estou a dizer! Mas que simpático.
O velho: Pois vá dizê­‑lo a outro. Mas… por amor de Deus… A menina Löwenstamm: Ele olhou para a tua cara? Sai daí da
a Sérvia! O meu filho mais novo! confusão, tudo por causa do assassínio. Eu derreto­‑me toda é
O mais velho: Em primeiro lugar, uma guerra hoje em dia está pelo Storm! (Saem.)
excluída e depois… logo esse é que eles hão­‑de chamar? Porquê, Um ardina: Edição especiaaaal…! O arquiduque Franz
então não há outra gente que chegue? (Murmura.) Deus meu, Ferdinand…
tu és justo! Eu… estou ansioso por ver o editorial de amanhã.10 Um homem com estudos: Vai ser mas é um prejuízo colossal para
As palavras que ele vai encontrar, vai ser como nunca. Nem vai os teatros, o Volkstheater estava completamente esgotado…
ter comparação com quando o Lueger morreu. Agora é que ele A mulher dele: Está a noite estragada, antes tivéssemos ficado
finalmente vai poder falar como lhe der na gana, embora, evi‑ em casa, mas tu, tu não há quem te segure…
dentemente, com todas as cautelas. Mas há­‑de dizer o que vai O homem com estudos: Fico espantado com o teu egoísmo,
na alma a todos, mesmo aos goyims, é o que lhe digo, e mesmo nunca teria suposto que tivesses uma tão completa falta de sen‑
aos goyims das altas esferas e mesmo aos das mais altas esferas e timento social.
especialmente a esses. Ele sabia o que está em jogo, olá se sabia! A mulher: Se calhar julgas que eu não me interesso, é claro que
O velho: O melhor é não se estar a invocar isso. Talvez não seja me interesso, comer no Volksgarten não faz sentido, se assim
verdade. como assim não há música, vamos logo para o Hartmann…
54 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 55

O homem com estudos: Tu e mais a comida, quem é que agora O ardina: Dez vinténs!
tem cabeça… Vais ver o que vai acontecer, isto não é coisa de O pequeno­‑burguês: Estão mas é doidos! Isto é um roubo! Tam‑
somenos… bém não traz nada que se leia. Olha… pst… tás a ver aquela
A mulher: Se ao menos der pra ver! garina, que tal, hem? Belas mamas! A minha velha comparada
O homem com estudos: Vai ser um funeral como não há memó‑ com aquilo mais vale nem falar.
ria! Inda me lembro quando o príncipe­‑herdeiro…12 (Saem.) Segundo: Deixa­‑te disso, é uma prostituta!
Poldi Fesch: (Para o seu acompanhante.) Hoje vai­‑se prà farra… Primeiro: Olha, há gente em frente ao Bristol, vamos lá, deve ser
Ontem estive na farra com o Sascha Kolowrat, amanhã vou prà uma personalidade. (Saem.)
farra com o… (Saem.) Um polícia: Pela esquerda, por favor, pela esquerda!
Um polícia: Pela esquerda, por favor, pela esquerda! Um repórter: (Para o seu acompanhante.) Aqui é que se capta
Um ardina: Reichspost!13 Segunda tiragee! O assassínio do casal melhor o ambiente. Fora como um rastilho, está a ver, que a notícia
herdeiro do tronooo! correra no picadeiro, lá onde as ondas se quebram. A alegre vida e
Um pequeno­‑burguês: Viver e deixar viver! Ora, pois claro, animação que costumavam reinar nesta hora do dia emudeceram
para o vienense, para o homem comum, aquilo não calhava de repente, o desalento, a sensação de uma profunda comoção,
bem. Porquê, eu já te explico, estás a perceber. Pois porquê? sobretudo, porém, um luto silencioso, podiam ler­‑se em todos os
O vienense está habituado a que lhe deixem fazer tudo como rostos. Desconhecidos dirigiam a palavra uns aos outros, as edi‑
está acostumado. Ele, por seu lado… o Hadrawa reconheceu­‑o ções especiais eram arrancadas das mãos, formavam­‑se grupos…
uma vez em que ele, claro que em cógnito, até vinha num táxi Segundo repórter: Eu proporia o seguinte: nas alamedas da
e deu gorjeta como uma pessoa qualquer, mas nem mais um Ringstraße viam­‑se agrupamentos de pessoas que comen‑
vintém, é o que eu te digo. tavam o acontecimento. Os polícias dispersavam os grupos
Segundo pequeno­‑burguês: Olha que essa! e declaravam que não consentiriam em mais agrupamentos.
O primeiro: E quando ia às lojas finas, também não qu’ria pagar Na sequência disto, formaram­‑se grupos e o povo começou a
mais. Era cá um figurão! Julgas que ele se teria deixado levar juntar­‑se em massa… ora veja ali!
cá pela gente? Havia de ter arranjado confusões com a gente. (Em frente ao Hotel Bristol, gerou­‑se uma troca de palavras entre
E a gente também precisa de viver! Ele não deixava passar nada um passageiro e um cocheiro de praça, os transeuntes tomam
em claro. Nem que chovessem picaretas! Olha, cada qual sabe partido, ouvem­‑se vaias.)
de si, o que eu digo é, viver e deixar viver e sou capaz de morrer Um ardina: Edição especiaaaal…! O herdeiro do trono e a esposa
por isso. E porquê? O homem comum… assassinados por conspiradores!
Um ardina: Edição especiaaaal…! O cocheiro: Mas, Vossa Mercê! Num dia como este…!
O pequeno­‑burguês: Dá cá o jornal! Quanto é…? (Muda a cena.)
56 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 57

CENA 2 (Enquanto ambos prosseguem a conversa, entrou um estranho.


Café Pucher. No mesmo fim de dia, antes da meia­‑noite. Sentou­‑se a uma mesa em frente dos dois cavalheiros idosos. Um
O café está quase vazio; só há duas mesas ocupadas. criado traz café.)
Um gerente do Bankverein acabou de se sentar a uma delas. O estranho: Olhe, faz favor, quem é que são aqueles dois senho‑
Na outra, estão sentados dois cavalheiros carecas que, cada res de idade, tenho ideia de serem pessoas conhecidas…
qual com um charuto de boquilha de papel na boca, estão Franz: (Inclinando­‑se para o freguês.) É a mesa dos ministros. O cava‑
imersos na leitura de jornais humorísticos. A menina da caixa lheiro de monóculo que está a ler o Kleines Witzblatt é Sua Inse‑
está a dormir. Um criado diverte­‑se a agitar o guardanapo lência o ministro do Interior, e o cavalheiro de monóculo que está
diante da cara dela. Um outro é posto fora da cozinha com a estudar o Pschütt é Sua Inselência o senhor primeiro­‑ministro.14
um trapo pelo encarregado dos cafés, o que faz o chefe de O estranho: Ah, bom! Eles só hoje é que cá estão, por causa do
mesa e o cozinheiro rebentarem às gargalhadas. que aconteceu, ou estão cá sempre?
Franz: Todas as noites sem falha, está a ver, as inselências são
O chefe de mesa Eduard: Mas julgais qu’isto é uma tasca? quase todos solteiros.
Tende vergonha! Os ministros estão a ler e a menina Paula está O estranho: Ah, bom! E quem é o cavalheiro que acaba de se
a dormir! lhes juntar?
O gerente: Faz favor! Franz: Ah, já chegou… é Sua Inselência o chefe de gabinete.
Eduard: Senhor von Geiringer? O estranho: Ah, bom!
O gerente: Um trabuco e uma edição especial! (Franz vai­‑se embora a correr e traz ao chefe de gabinete
Eduard: (Tira a caixa dos charutos e um jornal do bolso interior uma limonada e o Interessantes Blatt.15 Ao fim de um bocado, diz.)
do casaco e diz.) Um charutinho e alguma coisa para alegrar a O primeiro­‑ministro: (Pousando as caricaturas do Pschütt.)
alma! Nada de especial hoje.
O gerente: Não esteve cá ninguém? Como é que isto hoje está O ministro do Interior: (Boceja e diz.) Sem graça nenhuma!
tão às moscas? Nem sequer o doutor Gomperz? O primeiro­‑ministro: Pois, um dia assim custa a passar.
Eduard: Ninguém, senhor von Geiringer. O chefe de gabinete: Nota­‑se que estão aí a vir os dias do calor.
O gerente: Telefonou alguém? O primeiro­‑ministro: (Depois de um intervalo de meditação.) Acho
Eduard: Até agora não. De qualquer modo, com o tempo tão que vai ser preciso um comunicado, está­‑me cá a parecer. Por
bom… talvez os cavalheiros tenham aproveitado o feriado causa das medidas que o governo está a encarar, devido à situação
para um passeio… criada pelos acontecimentos e para cuja discussão os membros do
O gerente: Mas que feriado é que é hoje? governo ficaram reunidos numa longa sessão e assim.
Eduard: É dia de S. Pedro e S. Paulo, senhor von Geiringer. O ministro do Interior: É o que há a fazer.
58 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 59

O primeiro­‑ministro: Eduard! imediato a iniciativa… Como? Perdão, Inselência, como?


O ministro do Interior: Mas então que medidas é que nós A ligação está hoje outra vez tão má… com mil raios, menina,
vamos tomar? é uma chamada da corte, isto é um escândalo!… Perdão, Inse‑
O primeiro­‑ministro: Isso vai depender do comunicado. lência, houve um corte… sim… sim… sim… às ordens… vai­
Eduard, faz favor! ‑se tratar disso… mas pois claro… disse que não… a todos…
Eduard: Sua Inselência manda? evidentemente… Sua Alteza tomou de imediato a iniciativa…
O primeiro­‑ministro: Então hoje não há novidades nenhu‑ pois claro… Sua Alteza vai ficar muito satisfeita… Tudo como
mas? Traga­‑me a… como é que é o nome? Sua Alteza quiser… Pode confiar, Inselência… não, não,
Eduard: (Procurando entre os jornais humorísticos em cima da nenhum dos monarcas… também nenhuns membros… não,
mesa.) Mas falta ainda alguma coisa, Inselência? Tem razão! também nenhuns parentes… pois claro… Como?… não, todos
(Dirige­‑se para a estante dos jornais. Entretanto, o gerente queriam… não vem nenhum… Um grão­‑duque tinha já tudo
aproxima­‑se da mesa dos ministros e entabula uma conversa pronto prà viagem, mas, felizmente, pudemos impedi­‑lo ainda
com o ministro do Interior, que se levantou. Eduard a tempo… só faltava que nos viessem cá com explicações…
chama o criado Franz, que acabou de ser expulso da cozinha desde que no fim isto não venha a dar em guerra… Como? Já
com um trapo e se prepara para agitar o guardanapo diante da caiu a chamada outra vez, com mil raios, mas que banda‑
cara da menina da caixa.) lheira!… Sim, também da Inglaterra… não, ninguém… não
Eduard: Atão inda não acabastes com isso? Julgais qu’isto é uma vem vivalma de nenhuma corte… só os embaixadores e gente
tasca? Tende vergonha! (Continua à procura na estante dos jor‑ assim… pois claro, também aí bem escolhidos, já que não se
nais.) Mas onde é que pusestes outra vez as revistas? A Bombe pode dizer que não… a gente cá se arranja… tudo bem pas‑
prà mesa dos ministros!16 sado à peneira, tudo… na medida do possível… o problema do
(Muda a cena.) espaço, Deus meu, a capelinha, aquilo é que foi um gozo…
Como é que ficou redigido? Só um momento. (Tira um papel
CENA 3 do bolso.) “Limitações das delegações de cortes estrangeiras e
Gabinete nos Serviços de Administração da Corte. de representantes militares que, tendo em conta o espaço dis‑
Nepalleck, um conselheiro da corte, sentado à secretária. ponível…” Como? Pois claro, evidentemente, isto vai ser a
Está a telefonar, fazendo constantemente vénias diante do maior desilusão, nenhuma participação militar, nem oficial
aparelho, quase a enfiar­‑se dentro dele. nem geral… Como, Inselência? Em Belgrado? Ah, pois, eles
vão achar estranho… é isso mesmo, eles que se ponham ainda
Nepalleck: Funerais de terceira classe… Pois claro, Inselência… mais atrevidos contra nós… não temos nada a opor, não é, Inse‑
Vossa Inselência não se preocupe… Sua Alteza17 tomou de lência?… É isso mesmo!… Muito bem, Inselência, esplêndido,
60 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 61

funerais de terceira classe, não­‑fumadores… esplêndido, tenho cobres… como ele gostava… por respeito, muito bom! Tenho
que contar a Sua Alteza, Sua Alteza vai­‑se rebolar de riso… já que contar a Sua Alteza, Sua Alteza vai… não, sem grandes
basta as chatices que temos co’a cerimónia de consagração… formalidades, um pequeno banquete num círculo informal. Se
pois, a nobreza da Boémia, são um bocado insistentes esses vamos aceitar alguém? Nem um, vai tudo prò olho da rua…
cavalheiros… os amigalhaços e a parentela… o que é que nós Pois é, uma trabalheira dos diabos… é claro, se fosse eu a deci‑
respondemos? Sua Alteza tomou de imediato a iniciativa. dir, eu por mim fui desde o primeiro momento contra que o
É muito simples, além das mais altas esferas da corte e das enti‑ corpo da Chotek20 viesse no mesmo comboio… em casos des‑
dades oficiais só pode estar quando muito o tutor… Como? Os tes, o que eu digo é: não quisesses subir tão alto e não tinhas
filhos? Não, Sua Alteza não quer por causa das choradeiras… dado c’os burros no chão… mas, infelizmente, foi… pois, pois,
Como? Pois, os cavalheiros querem ir de passeio a pé… é claro o bom coração de Sua Alteza… e depois, Vossa Inselência sabe
que é muito desagradável para Sua Alteza, quase uma manifes‑ como é, Sua Alteza Imperial interveio, que é que se há­‑de
tação… Muito bom, os desempregados! Tenho que contar a fazer?… Bem, pelo menos pusemos ordem na coisa e o caixão
Sua Alteza, Sua Alteza vai­‑se rebolar de riso… Como diz, Inse‑ dela vai ficar um degrau abaixo do dele… É verdade, amanhã
lência? Nas tintas? E de que maneira! Completamente nas tin‑ na Estação do Sul não vai ser agradável… mas pelo menos não
tas!… Mas é claro, ninguém vai ter nada a dizer… todas as vai haver apertos… Como? Muito bom, não é como aos
formalidades cumpridas… muito simplesmente necessidade de domingos a ida para Atzgersdorf,21 muito bom, tenho que con‑
repouso de Sua Alteza… pois é claro, eles que fiquem a espu‑ tar a Sua Alteza, Sua Alteza vai… Como? Perdão, ah, sim, os
mar… é evidente… os funerais de um herdeiro do trono são de jornais? Têm as instruções, todos têm as instruções, não vão
terceira classe, e pronto, não há cá coisas… não há motivo pôr­‑se com grandes parangonas. Palavra de ordem: nada de
nenhum para esforços suplementares… ah, por falar nisso, pompas, um luto discreto ou lá o que for… Como, Inselência?
Inselência, inda não sabe do atrevimento descarado do gabi‑ Tão discreto que… esplêndido, tenho que contar a Sua Alteza,
nete dele?… Depois do cerimonial espanhol, ainda queriam Sua Alteza vai… Como? Pois, satisfeitíssimo por os serviços da
que tratássemos do enterro em Artstetten,18 não apenas o chancelaria estarem tão profundamente abalados como o
transporte para a Estação do Oeste… pois, é inaudito… Nós só Departamento dos Assuntos da Corte… Sua Alteza vai­‑se
somos responsáveis pela Cripta dos Capuchinhos,19 e ponto rebolar… alguns estabelecimentos de diversões vieram­‑nos
final!… Mas, pois claro, Sua Alteza tomou de imediato a inicia‑ perguntar se haviam de manter as suas sessões. Resposta: que
tiva e respondeu­‑lhes que já deviam ficar contentes por nós inda não tinha sido dada ordem pra um luto da corte e que fica
levarmos o corpo até à Estação do Oeste. Tudo o mais é com os ao critério de cada direcção… boa, não?… pois, e qual vai ser
serviços funerários municipais… ou a sociedade da vida o critério deles tá­‑se a ver, pois claro, o Wolf de Gersthof22 tam‑
eterna, é isso mesmo… quanto mais não seja, para poupar uns bém não precisa de chorar mais que eu. Mas Veneza em Viena,
62 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 63

Vossa Inselência vai gostar de saber, esses tiveram juízo e nem iniciativa junto do Tisza, mas este já tinha tomado todas as pro‑
se dignaram perguntar e deram calmamente o espectáculo no vidências. Seis prà segurança pessoal dele, mas isso era mais
mesmo dia. Santo Deus, porque é que não se há­‑de deixar ao que suficiente!… Muito bem, um ajuste razoável, 200 foram os
pessoal o pedacito de farra e o pedacito de negócio nestes tem‑ que lhe deram pra Konopischt24 pra que o estimável público
pos difíceis… viver e deixar viver, pois claro… Certo, certo, não não pisasse a relva… sim, sim, disso ele gostou, ali é que foi
só nós, todo o Império… todo o Império… muito bom, todos esbanjar… Como? Nos Negócios Estrangeiros já estão furio‑
têm os mesmos sentimentos, é bem verdade, o que não se quer sos? Pois claro, são os que podem tratar melhor da coisa, é
é sufocar… Como? Com mil raios, mas que é isto outra vez… a evidente… Finalmente, finalmente!… Estou com curiosidade
chamada ia caindo!… é isso mesmo, quer­‑se é não ter chati‑ de ver se vão levar muito tempo a investigar naquele ninho de
ces… é bem verdade, mesmo o carrasco lá vem o dia em que víboras… é mais outro ajuste razoável, seis agentes pra Sara‑
estica o pernil… viver e deixar viver. As pessoas querem ver jevo, pra Belgrado é que vão ser precisos mais!… Granda
uma cara alegre, senão são elas que ficam rabugentas… Pois cáfila… Mas é claro, a gente somos uns autênticos cordeiri‑
claro, quem não sabe fazer uma saudação não pode ir à nhos… Sim, isso é verdade, que ele teve pressentimentos, mas
cabeça!… bem, a esse respeito graças a Deus que escusamos de nós é que o encorajámos, um oficial não tem medo!… é isso
estar preocupados com o futuro… Como? O que é que anda a mesmo, ele estava nas mãos de Deus, toda a vida, até ao fim…
fazer a outra Alteza, a nova? Ou melhor, o antigo chefe futuro não se podia ter evitado, compreendo, compreendo, mas,
do Departamento dos Assuntos da Corte?23 O falecido favorito, depois de ter acontecido, é preciso punir!… pois claro, depois
adormecido na bem­ ‑aventurança do Senhor, Deus Nosso é que a gente se põe em guarda, é evidente, sim, pois, nesse
Senhor o tenha acolhido no seu seio, o diabo que o leve, pois, ponto também a coisa há­‑de ter aspectos positivos, pra dentro
uma notícia funesta muito especial, o único que curvado até ao e pra fora… ajustar as contas… Pois, o Conrad,25 claro, agora
chão, bem… não, não é provável que volte a honrar­‑nos com a ele vai… pois claro, eles vão engolir tudo! Tem que haver uma
sua visita… Como? Os que estavam no grupo de Sarajevo? satisfação, mesmo uma criança vê isso, era o que faltava… uma
O Harrach? Também, se calhar. Assim como assim, ele “protegeu­‑o questão de prestígio como não há outra… havemos de dar
c’o próprio corpo”… pois, eles armaram­‑se em importantes lá conta disso… mas claro… Como? Mas é claro, os alemães
em baixo… O Morsey põe­‑se a descompor um polícia, porque depois safam­‑nos… é isso mesmo, a gente somos pela paz, mas
é que não tinha prendido um dos autores do atentado, mas ele não pela paz a qualquer preço… Não, Inselência, infelizmente
respondeu­‑lhe sem mais aquelas, “Senhor tenente, não se meta férias agora nem pensar, como é que havia de ser… as coisas
onde não é chamado!”… A polícia em Sarajevo limitou­‑se a são como são, pois claro, a nada escapo afinal…26 mais uma
cumprir o seu dever, nem mais nem menos… A gendarmerie… vez, evidentemente, não precisa de se preocupar… transmiti‑
quantos é que lá estavam? Sua Alteza tomou na altura a rei… mil ’gradecimentos, às suas ordes, Inselência!
64 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 65

CENA 4 Nepalleck: O quê, ainda se põe com atrevimentos?


No mesmo local. Camareiro: Mas não, Senhor Conselheiro… eu não quero… eu
não quero…
Um contínuo: Com licença, Senhor Conselheiro… está aqui Nepalleck: Mas então que é que quer?
uma pessoa. Camareiro: Mas não… é verdade, um senhor exigente… mas…
Nepalleck: Uma pessoa, quem? exigente… e… uma boa Alteza… mas… bem…
O contínuo: (Embaraçado.) Bem, uma dos outros. Nepalleck: Olhe, meu caro, não se ponha aqui com histórias da
Nepalleck: (Em tom imperioso.) Não há outros! Esse tempo aca‑ carochinha… diga mas é o que é que quer de nós!
bou! Eu não lhe disse que quem viesse… Camareiro: Mas eu não queria nada, Senhor Conselheiro, nada,
O contínuo: Peço desculpa… ele diz que vem só por causa de nada, não queria nada… só falar… só falar… só falar… pela
uma informação. última vez junto ao corpo…
Nepalleck: Gostava de saber o que é que há para informar, bem, Nepalleck: (Levantando a voz.) Não tenho tempo para o atender,
mande entrar. (O contínuo sai.) estamos entendidos?
(Vindo da direita, atraído pelo barulho, o príncipe
CENA 5 Montenuovo entra de rompante, com as feições transtornadas
(Entra um velho camareiro do falecido arquiduque.) pela cólera.)

Nepalleck: O que é que quer? CENA 6


O velho camareiro: Um seu criado, Senhor Conselheiro…
quer dizer… não sei bem, nesta circunstância… quer dizer, Montenuovo: Mas o que é isto? Ah, já aqui está um! Olhe lá,
nesta situação… portanto, noutras circunstâncias… ponha­‑se mas é na alheta! Aqui não há lugares para nenhum
Nepalleck: Eu gostava de saber é o que é que o senhor quer! de vocês, é desaparecer, e depressinha!
Camareiro: É por causa da desgraça, da grande desgraça, não é ver‑ Camareiro: (Completamente espantado.) Eu… sirvo é… Jesus…
dade, Senhor Conselheiro… eu, que já servi a Alteza Imperial… o Alteza… (Sai.)
falecido senhor… O senhor arquiduque Ludwig, que Deus tenha…
Nepalleck: Ah, pois, em resumo, o senhor é um camareiro sem CENA 7
emprego… Olhe, meu caro, é que nem pense nisso, aqui não
arranjamos colocações! Montenuovo: Ó Senhor Conselheiro, o senhor sabe que isto aqui
Camareiro: (A chorar.) Mas não, Senhor Conselheiro… mas não é um asilo para sem­‑abrigo… lá tive eu que tomar a inicia‑
não, Senhor Conselheiro… tiva, pois claro… Quero aqui sossego!
66 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 67

Nepalleck: Vossa Alteza fique descansada, não volta a acontecer, CENA 9


o fulano só queria…
Montenuovo: Seja como for. Não quero nem uma dessas criaturas Nepalleck: (Ri­‑se convulsivamente. O telefone toca.) Um seu
do Belvedere27 a arranjar aqui um lugar!… Quantos convites? humilde criado, Inselência, de momento… (Montenuovo
Nepalleck: Quarenta e oito. enfia a cabeça pela porta, Nepalleck vira­‑se com toda a rapi‑
Montenuovo: O quê? dez.) Às suas ordens, Alteza…
Nepalleck: Ah, sim, mil desculpas, estava a pensar em amanhã (Muda a cena.)
à noite. Vinte e seis.
Montenuovo: Corte mais esses seis! (Sai.) CENA 10
Nepalleck: Às suas ordens! (Volta a sentar­‑se à secretária.) Estação do Sul. À luz pálida da manhã, uma sala a partir da
qual, através de uma grande abertura, se tem uma perspectiva
CENA 8 geral do salão de espera da corte. Este está totalmente revestido
O príncipe Weikersheim, com o contínuo logo atrás. com panos negros. A meio da sala, de início ainda visível para
os que estão no exterior, dois sarcófagos, um dos quais está um
Contínuo: Por favor, Alteza, tenho ordens estritas… degrau abaixo do outro; em torno dos caixões, candelabros
Príncipe Weikersheim: Que é que ele tem? Ordens? O quê? Aqui altos com velas acesas. Coroas de flores, genuflexórios. Lacaios
uma pessoa tem que ser anunciada? (O criado sai. Nepalleck com librés negras estão ocupados a acender as últimas velas
deixa­
‑se ficar sentado à secretária, sem erguer os olhos. e a fazer os preparativos necessários para o acolhimento dos
O príncipe, depois de um compasso de espera.) Olhe lá! convidados para o velório. No vestíbulo e na parte ainda visível
(Depois de mais um compasso de espera, mais alto.) Olhe lá! das escadas, acumula­‑se público, mantido em ordem por
O que… que é que se está a passar aqui? (Aos gritos.) Ponha­‑se polícias. Surgem dignitários, funcionários com diferentes tipos
de pé, está a ouvir? de uniformes, deixam­‑se ficar no vestíbulo ou desaparecem na
Nepalleck: (Vira a cabeça, em tom displicente.) Bom dia, bom dia. sala, trocam cumprimentos em silêncio ou em sussurros. Um ir
Príncipe Weikersheim: (Depois de um momento de espanto e vir constante. Surge uma delegação de conselheiros municipais
mudo.) O… que é… isso? Tão… depressa… (Em tom vincado.) de fraque. O conselheiro Nepalleck entra, com todos os
O senhor sabe quem eu sou? sinais de um profundo abatimento, e recebe as condolências de
Nepalleck: Ora essa, ora essa, claro que sei quem o senhor é, é o numerosos presentes. Esta acção e as seguintes desenrolam­‑se na
barão Bronn von Weikersheim elevado a príncipe. semi­‑obscuridade. As conversas são conversas de espectros.
Príncipe Weikersheim: E você é um… E aquele ali é o seu
superior! (Sai, batendo com a porta.) Nepalleck: Nada podia ser mais terrível, Sua Majestade está
68 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 69

mergulhada na maior tristeza e impedida de assistir pessoal‑ deixam de estar visíveis. Enquanto cada um dos dez puxa de
mente às exéquias solenes por não se sentir bem. Também o um bloco de notas, dois funcionários aproximam­‑se do grupo e
conde Orsini­‑Rosenberg teve de ficar de cama. Tudo se desmo‑ apresentam­‑se mutuamente da maneira seguinte.)
ronou sobre as nossas cabeças. A mais bonita, à direita, a que Zawadil: Spielvogel.
tem crisântemos e está sobre o caixão de sua falecida Alteza, a Spielvogel: Zawadil.
Sereníssima Senhora Duquesa, foi Sua Majestade que ofereceu. Ambos: (Falando ao mesmo tempo.) Uma manhã sombria. Às seis
(Entra um cavalheiro de elevada estatura, cuja roupa e atitude horas já aqui estávamos para tomar todas as disposições.
denotam o luto mais profundo, dirige­‑se a Nepalleck e dá­‑lhe Angelo Eisner von Eisenhof: (Junta­‑se ao grupo e fala de modo
um caloroso aperto de mão.) insistente com um dos dez, que começam a escrever. Aponta para
Angelo Eisner von Eisenhof: Ele era meu amigo. Eu estava­ diferentes pessoas que esticam todas o pescoço e fazem menção de
‑lhe muito próximo. Por exemplo, na inauguração da Exposi‑ sair da fila. Ele tranquiliza­‑as uma a uma com acenos, fazendo,
ção do Adriático. Mas o que é a minha dor comparada com a ao mesmo tempo que aponta para os dez homens, o gesto de escre‑
sua, caro conselheiro! O que alguém como o senhor há­‑de ter ver, como se quisesse dar­‑lhes a entender que a presença delas já
sofrido nestes últimos dias! fora anotada. Entretanto, o conselheiro Schwarz­‑Gelber
Nepalleck: A nada escapo afinal. e a esposa conseguiram chegar ao contacto directo com os que
(Entretanto, o portão fronteiro foi aberto e vê­‑se o salão a encher­‑se estão a escrever e dar um toque no ombro de um deles.)
com personalidades da corte, os funcionários superiores da corte e Conselheiro Schwarz­‑Gelber e conselheira Schwarz­‑Gelber:
do Estado e membros do clero, enquanto um mestre­‑de­‑cerimónias Não quisemos deixar de vir pessoalmente.
intervém a pôr ordem nas coisas, indicando a cada qual o lugar Angelo Eisner von Eisenhof: (Que vira as costas com um olhar
que lhe está reservado. Até ao início do ofício religioso, afluem indignado, para o seu vizinho, Dobner von Dobenau.) E gente
permanentemente ao vestíbulo novos participantes e espectadores desta quer vir assistir a um ofício sagrado! Se calhar é a primeira
que tentam entrar, mostram convites, são admitidos ou manda‑ vez. Até tenho vergonha do meu amigo Lobkowitz, que está
dos embora. Algumas damas da alta aristocracia são mandadas agora mesmo a olhar para nós. (Cumprimenta uma e outra vez e
embora do salão por um funcionário. Surgem dez cavalheiros de faz acenos.) Ah, ele reparou em mim, mas não me reconheceu.
sobrecasaca que, sem se identificarem, são conduzidos com toda a Dobner von Dobenau: (Com feições carregadas e devagar.) Na
deferência passando pela fila dos que estão à espera até à porta da minha qualidade de senescal, eu devia ter direito a ir lá para
câmara-ardente, que ocupam durante o que se segue, de maneira dentro, onde estão as altas personalidades.
que, enquanto eles próprios podem observar os acontecimentos, Conde Lippay: Como eu tive a oportunidade, na minha quali‑
ocultam estes quase por completo dos olhares das pessoas que estão dade de artista, de fazer o retrato do Papa, tive, na qualidade
no exterior. Desde o momento em que eles entram, os sarcófagos de conde palatino, frequentes ocasiões de chamar a atenção de
70 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 71

Sua Santidade, na qualidade de seu camareiro, para a piedade contra mim uma acusação de desejo de notoriedade. Em Viena,
do grande desaparecido, que nunca se deixou abalar por acon‑ isso teria sido impossível. Não quero de modo nenhum negar
tecimentos como estes, o que Sua Santidade se dignou reco‑ que o distinto colega de Sarajevo enveredou até ao atentado em
nhecer com agrado. si por uma táctica semelhante à que tem dado repetidas provas
Eisner von Eisenhof: Pois, Lipschitz, mas como é que o senhor entre nós, a táctica ou de nada se saber dos preparativos de
está aqui? Os nossos pais, em Pilsen, nem em sonhos teriam… um atentado ou de deixar este amadurecer para, mais tarde,
Conde Lippay: Nada disso, senhor barão, nada disso, tempi passati. o poder desmascarar com tanto maior sucesso. Mas o distinto
O senhor sabe como é que é, nemo propheta in sua patria e todos colega de Sarajevo falhou lamentavelmente este mesmo verda‑
os caminhos vão dar a Roma. Mas não viu os meus filhos, os deiro objectivo criminalista, se é que visou atingi­‑lo. Como eu
condes Franz e Erwein? teria tomado a peito o caso de maneira tão diferente uma vez
Dobner von Dobenau: Na qualidade de senescal, eu devia ter consumado o acto, muito para além do meu dever profissional,
direito… com o nosso serviço de segurança a trabalhar febrilmente e eu
Riedl, proprietário de café: Na Exposição do Adriático, eu próprio a segurar as rédeas o tempo necessário para conseguir
convivi com Sua Alteza Imperial, fui eu próprio que, enquanto fazer o criminoso ceder ao peso das provas depois de aconte‑
patriota e simples comerciante, lhe servi o café muito em espe‑ cida a confissão, o que não foi possível ao distinto colega de
cial, porque não, mesmo que eu também seja uma pessoa com Sarajevo dado o facto de o criminoso ter sido preso em fla‑
estatuto, nós não somos gente convencida, também os seus grante delito. Só consigo explicar esta desafortunada viragem
magnânimos esforços em prol do reforço da nossa marinha dos acontecimentos pela falta de jeito, talvez o excesso de zelo
encontraram sempre em mim, no espírito de Tegetthoff e na do autor do atentado, que não se opôs à prisão, ou por um
qualidade de presidente da Associação, um patrono caloroso, acaso infeliz que, justamente neste caso particularmente lasti‑
disposto a prosseguir indómito o caminho já aberto. mável, paralisou por completo a actividade da polícia. Como,
Dr. Charas: Comigo à cabeça, apareceu também a Associação porém, a vítima do assassino está inteiramente inocente deste
de Prontos­‑Socorros, mas ainda não teve ensejo de intervir em desfecho catastrófico, será compreensível para toda a gente que
numerosos casos. a minha presença aqui, ainda que entre outros, dê nas vistas.
O Chefe do Serviço de Segurança, conselheiro Stukart: Chefe de secção Wilhelm Exner: Eu estou aqui como repre‑
A minha presença não precisa de explicações. Independente‑ sentante de interesses tecnológicos.
mente do meu prestígio social, bastava o interesse puramente Sieghart, governador do banco Bodenkreditanstalt:
criminalístico para atrair a minha atenção para este caso, que Hoje, eu sou governador. Na expectativa segura de que agora o
encaro de modo inteiramente isento, já que se trata de um caso poder de Estado vá seguir sem detença um rumo adequado à
de assassínio com base no qual ninguém conseguirá deduzir minha visão das coisas, posso afirmar aqui o meu lugar.
72 Os Últimos Dias da Humanidade PRÓLOGO 73

Landesberger, presidente do Anglobank: Dizem de mim O livreiro Hugo Heller: Através das minhas muito ramifi‑
que sou um magnate da banca. Apesar disso, não julgo que cadas relações culturais, ter­‑me­‑ia sido manifestamente fácil
esteja abaixo da minha dignidade aspirar a um lugarzinho ligar o ilustre falecido duradouramente à minha pessoa, não
modesto, mas orgulhoso, atrás do caixão de um poderoso, fora, como já foi dito, a morte ter­‑se atravessado no caminho.
mesmo que virado para outros ideais. (Durante esta fala, entrou em cena uma dama de luto pesado.
Herzberg­‑Fränkel: O meu nome é Herzberg­‑Fränkel. Eu sei, Todos recuam.)
em vida ele não tinha grandes simpatias pelo meu tipo, mas a Conselheira Schwarz­‑Gelber: (Como que fulminada por
morte tem alguma coisa de conciliador. um raio, dá uma cotovelada ao marido e diz.) Que é que eu te
Os conselheiros municipais liberais Stein e Hein: A ver‑ disse! Aquela está em todo o lado em que não devia estar. Se ao
dade é que não sei o que é que vim aqui fazer, mas, já que cá menos uma vez se pudesse estar só entre nós!
estou, estou cá. Flora Dub: Como jazem tranquilos. Se ela estivesse viva,
Dois cônsules: (Apresentam­‑se em simultâneo.) Stiaßny. É certo lembrar­‑se­‑ia de como uma vez lhe lancei flores. Ele não tinha
que não temos nenhuma relação digna desse nome com o fale‑ um apreço especial por batalhas de flores. Mas eu vim para que
cido, mas, não obstante, apressámo­‑nos a vir cumprir o nosso eles vejam que não lhes guardo nenhum rancor.
dever. O Eterno Descontente: (No proscénio.)
Três conselheiros imperiais: (Entram em cena em fila.) Nós Ó grande Deus dos grandes e pequenos!
aparecemos como delegação, pois julgamos dever aos manes, Tu pões à prova os grandes, por haver os pequenos.
na esperança de tempos melhores, não deixar que nos dis‑ Através do grande pões à prova os pequenos.
suadam da convicção de que ele quis o bem, mas estava mal E chamaste­‑o pra ti. Assim, nesta prova,
informado. fracassou, examinando e sendo examinado.
Sukfüll: Enviado pelo grémio e com a missão de exprimir os Foi esta a intenção ao inventares
sentimentos de dor da secção, vemo­‑nos perante um futuro morte e vida, tão bem diferenciadas?
incerto e não estamos ainda sequer em posição de avaliar se o Cai no abismo do infinito
que sucedeu deve ser interpretado como nocivo ou favorável o inimigo terreno, uma horda demente?
para o planeado aumento do turismo. Seja como for, apresento E não é a dor património divino
a minha última saudação. pra que esteja agora nas mãos dos assassinos?
Birinski e Glücksmann: Como representantes da arte, a arte O sangue vertido é só um rubi,
enviou­‑nos para renovarmos junto do féretro do grande morto a lágrima pura um falso diamante,
o juramento de uma aspiração ideal, enquanto a representação um adorno emprestado à máscara de Judas?
da indústria é, em qualquer caso, assegurada por outros. Então o tempo acabou e não resta senão
74 Os Últimos Dias da Humanidade

a tua prova. Faz com que eles paguem,


que na cidade, no Estado, sintam esses monstros
que tudo é consumado! Toma o sangue deles
e chora­‑os com a lágrima de Deus!
(Durante estas palavras, o serviço religioso iniciou­‑se com o
máximo de solenidade. Vê­‑se toda a corte reunida no salão fúne‑
bre ajoelhar­‑se para rezar, com os três filhos dos assassinados à
frente, em soluços. A espaços, torna­‑se audível a voz do padre. Soa
agora o órgão. Um dos dez que, pouco a pouco, foram entrando
na câmara fúnebre dirige­‑se de repente em voz alta ao vizinho.)
O redactor: Onde é que está o Somorzy? É preciso captar o
ambiente!
(O órgão cala­‑se. Gera­‑se uma pausa de oração silenciosa,
apenas interrompida pelos soluços das três crianças.)
O redactor: (Para o vizinho.) Escreva como eles rezam!
ACTO I

CENA 1
Viena. Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk. Algumas
semanas depois. As janelas estão enfeitadas com bandeiras.
Os soldados que desfilam na rua são alvo de aclamações.
Excitação geral. Formam­‑se grupos.

Um ardina: Edição especiaaal!


Segundo ardina: Edição especiaaal! Olhàs notícias!
Um manifestante: (Que sai de um grupo que cantava a “Marcha
do Príncipe Eugénio”, grita sem parar, de cara ao rubro e já com‑
pletamente rouco.) Abáx’a Séérvia! Abáxo! Viv’òs Habsburgos!
Viva! Viv’à Séérvia!
Um homem com estudos: (Que, notando o erro, lhe dá um
encontrão.) Mas que história é essa…
O manifestante: (A princípio admirado, depois cai em si.) Abáx’a
Séérvia! Abáxo! Viva! Abáx’os Habsburgos! Séérvia!
(No aperto de um segundo grupo, em que se deixou envolver
também uma prostituta, um gabiru que caminha mesmo
atrás desta tenta tirar­‑lhe a carteira.)
O gabiru: (Vai gritando sem parar.) Viva! Viva!
A prostituta: Largue! Seu patife sem vergonha! Largue, senão
eu…
O gabiru: (Desistindo dos seus objectivos.) Mas porque é que não
dá vivas? Isso é que é ser patriota? Você não passa é duma puta!
A prostituta: E você não passa dum carteirista!
O gabiru: Olha a desavergonhada! Agora estamos em guerra, é
bom que não se esqueça! Você é mas é uma puta!
78 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 79
Um transeunte: Tréguas, por favor! Façam tréguas!1 Pokorny, ora viva Powolny, olha lá… tu que sabes de política,
A multidão: (De atenção despertada.) É uma puta! Qu’é qu’ela então que é que dizes?
disse? Segundo oficial: (De bengala.) Olha, cá a meu ver, é tudo por
Segundo transeunte: Quer­‑me cá parecer qu’ela disse qual‑ causa do cerco.
quer coisa contra a augusta casa reinante! O terceiro: Pois… pois é claro.
A multidão: Abáxo! Porrada nela! (A rapariga conseguiu desa‑ O quarto: É exactamente a minha opinião… Ontem andei na
parecer por uma passagem entre prédios.) Deixem­‑na ir! Cá a farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta!
gente não semos desses! Viv’òs Habsburgos! O terceiro: Sabes, o jornal diz que era inviável.
Um repórter: (Para o acompanhante.) Parece que aqui é que há O segundo: O que lá vem é “inevitável”.
ambiente. Que é que se passa? O terceiro: Pois claro, inevitável, sabes, enganei­‑me a ler. Então
Segundo repórter: Já vamos ver. e tu?
Um fornecedor do exército: (Subiu junto com outro a um O quarto: Bem, vamos lá a ver, mas parece que tenho hipóteses
banco da avenida.) Daqui já se pode vê­‑los melhor. Isto é que de ir parar ao Ministério da Guerra.
eles desfilam bem, os nossos bravos soldados! O primeiro: Grande maganão, então vens cá prò pé da gente.
O segundo: Como é que disse Bismarck, vem hoje no jornal, Olha, ontem estava eu no Apolo a ver a Mela Mars… o Nowak
“A nossa gente dá mesmo vontade de a beijar!” do 59 disse­‑me que se fala que o meu nome está na lista prà
O primeiro: Sabia que até o rapaz mais velho do Eisler foi medalha de prata.
chamado? Um ardina: Taagblaaatt! Granda vitória em Chabaaatz!
O segundo: Não me diga! Mas que coisa incrível! Com o dinheiro O quarto: Parabéns!… Vist’aquela que passou? Belíssimo
que eles têm! Não se ter podido fazer nada! pedaço, vos digo eu… esperem, eu… (Sai de cena.)
O primeiro: Parece que estão agora a tentar. O mais provável é ele Os outros: (Gritam­‑lhe.) Vai então depois ter ao Hopfner!
arranjar maneira de compor as coisas. Um vienense: (Faz uma arenga de cima de um banco.) … porque
O segundo: E na pior das hipóteses… Vai ver, agora é que ele lhe tínhamos de obedecer aos manes do herdeiro do trono assassi‑
compra o automóvel que se lhe tinha encasquetado na cabeça.2 nado, não houve mas nem meio mas… por isso digo também,
O primeiro: Mesmo assim não está livre de sofrer um acidente. concidadãos… é como um só homem que vamos unir­‑nos à
Um transeunte: Os meus respeitos, senhor director­‑geral! pátria, de bandeiras ao vento, nesta grande época! Pois estamos
Outro transeunte: (Para o acompanhante.) Ouvistes? Sabes cercados de inimigos por toda a parte! O que nós travamos
quem é? Um director­‑geral à paisana. É preciso ter cuidado c’o é uma sagrada guerra de despesa, pois travamos! Ora vejam
que se diz. Quem manda nos generais é ele. bem… olhem pròs nossos valentes, qu’agora fazem frente ò
Um oficial: (Para três outros.) Ora viva Nowotny, ora viva inemigo, não obstante, olhem como eles lá longe arrostam c’o
80 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 81
inemigo, porque a pátria é qu’os chama, e em conformidade Um pequeno pedinte: Deus castigue a Inglaterra!
desafiam a fúria das intempéries – lá longe, olhem mas é bem Vozes: Assim seja. Abáxo a Inglaterra!
pra eles! E por isso eu digo também… o dever de qualquer Uma rapariga: O meu Poldl prometeu que me trazia as tripas
um que queira ser um concidadão é de imediato, ombro com dum sérvio! Já escrevi à Reichspost a contar!
ombro,3 contribuir c’o seu óbolo. Em conformidade! O qu’é pre‑ Uma voz: Vivà Reichspost! O nosso jornal cristão!
ciso é seguir esse exemplo, pois sim senhor! E por isso eu digo Outra rapariga: E eu também escrevi, a mim o Ferdl prometeu
também… cada um de vós deve fazer corpo c’os outros como que me trazia os rins dum russo!
um só homem! E é pra qu’eles ouçam, os inemigos, qu’a guerra A multidão: Venham eles!
qu’a gente estamos a travar é uma sagrada guerra de despesa. Um polícia: Pela esquerda, circulem pela esquerda, por favor.
Aqui ’stamos, tal qual uma fénix qu’eles não vão ser capazes de Um intelectual: (Para a namorada.) Aqui, se houvesse ainda
romper, em conformidade… cá a gente semos quem semos e a tempo, poderíamos mergulhar na alma do povo, que horas
Áustria há­‑de ressuscitar como uma falange do incêndio uni‑ são? Hoje vem no editorial que é um regalo viver. É brilhante
versal, é o qu’eu digo! A causa por que nos mandaram rasgar a a maneira como ele diz que o brilho duma grandeza clássica
camisa é uma causa justa, e não há cá mais coisas, e por isso eu ilumina a nossa época.
digo também: a Sérvia… o demo leve­‑a! A namorada: Já é meia­‑hora. A mamã disse que, se eu chegasse
Vozes da multidão: Bravo! É assim mesmo!… A Sérvia, o a casa depois da meia, levava.
demo leve­‑a!… Queira ou não queira!… Viva!… O demo leve O intelectual: Ora, deixa­‑te ficar. Olha mas é prò povo, como
a todos! ele ferve. Presta atenção à ascensão!
Uma voz de entre a multidão: E pra cada russo…4 A namorada: Onde?
Outra voz: (Aos berros.) Olhò grande urso. O intelectual: Quer dizer, espiritual, como as pessoas se puri‑
Uma terceira: Dá­‑lhe c’o chuço! (Risos.) ficaram, no editorial vem que isto o que são é heróis. Quem
Uma quarta: Basta um cartucho. teria julgado possível como os tempos se transformaram e nós
Todos: Isso! Um cartucho! Bravo! com eles.
O segundo: E ao francês? (Um fiacre pára diante de uma casa.)
O terceiro: Isso é má rês! (Risos.) O passageiro: Quanto é?
O quarto: Fura­‑lhe as tripas duma só vez. O cocheiro: Vossa senhoria é que sabe.
Todos: Bravo! Duma só vez! Isso! O passageiro: Não sei. Quanto é?
O terceiro: E dois pontapés… não, pra cada inglês!? O cocheiro: Ora, é o preço fixado.
O quarto: Dois pontapés! O passageiro: E qual é o preço fixado?
Todos: Boa! Um inglês pra dois pontapés! Bravo! O cocheiro: Ora, pois atão, é o que costuma dar aos outros.
82 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 83
O passageiro: Tem troco? (Dá­‑lhe uma moeda de dez coroas em A multidão: Olha! Japoneses! Até japoneses há em Viena! Devia­‑se
ouro.) era enforcar essa canalha pelos carrapitos!
O cocheiro: Troco? Essa moeda nem inteira, quem me diz que Um: Deixem­‑nos ir! Eles são mas é chineses!
não é ouro francês? Um segundo: Quem tem cara de chinês és tu!
Um porteiro: (Aproxima­‑se.) Quê? Um francês? Olha qu’esta! O primeiro: Olha quem fala!
Às tantas é mas é um espião! Deixa que já vais ver! Donde é Um terceiro: Todos os chineses são japoneses!
que ele vem? Um quarto: Quer dizer que você é japonês?
O cocheiro: Da Estação do Leste! O terceiro: Nã.
O porteiro: Ah, ah! De Petersburgo! O quarto: Está a ver, mas está­‑se a pôr com chinesices! (Risos.)
A multidão: (Que se juntou à volta do fiacre.) Um espião! Um quinto: Atão, atão, atão, mas que é que estaindes a fazer,
Um espião! (O passageiro desapareceu na passagem entre atão não lestes no jornal, olhem, cá está: (saca de uma página
prédios.) de jornal) “Tais excessos de patriatismo não podem de modo
O cocheiro: (Grita na direcção da passagem.) Granda malandro, nenhum ser to­‑lerados e, além disso, são de molde a causar
seu espião dum raio! preju­‑ju­‑ízos ao turismo.” Como é que depois se há­‑de desen‑
A multidão: Deixem­‑no ir! Nada de reprasálias, isso não são volver o turismo, como, não me querem dizer?
maneiras. Cá a gente não semos desses! Um sexto: Bravo! Ele tem razão! O turismo, se queremos
Um americano da Cruz Vermelha: (Para um outro.) Look at aumentá­‑lo, não é brincadeira, que é que pensam?
the people how enthusiastic they are! Um sétimo: Cala a caixa! A guerra é a guerra e se vem alguém
A multidão: Dois ingleses! Falem alemão! Deus castigue a Ingla‑ pr’àqui falar americano ou turco ou o que for…
terra! Porrada neles! Isto aqui é Viena! (Os americanos fogem Um oitavo: É assim mesmo! Agora tamos em guerra e não nos
por uma passagem entre prédios.) Deixem­‑nos ir! Cá a gente venham cá com tretas!
não semos desses! (Entra em cena uma senhora com leves traços de bigode.)
Um turco: (Para um outro.) Regardez l’enthousiasme de tout le A multidão: Ah, olhem pr’àquilo! Julgam que nos enganam,
monde! olh’um espião disfarçado! Prendam­‑no! Já prà choldra!
A multidão: Dois franceses! Falem alemão! Porrada neles! Isto Alguém mais sensato: Mas, meus senhores… pensem bem…
aqui é Viena! (Os turcos fogem pela passagem entre prédios.) se fosse assim ela tinha feito a barba!
Deixem­‑nos ir! Cá a gente não semos desses! Mas afinal eram Alguém de entre a multidão: Quem?
turcos! Atão não vedes qu’inté usavam fez! Isso são aliados! O mais sensato: Se ela fosse um espião.
Apanhem­‑nos e cantem a “Marcha do Príncipe Eugénio”!5 Um segundo de entre a multidão: Esqueceu­‑se, pronto!
(Entram em cena dois chineses, em silêncio.) Deixou o rabo de fora!
84 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 85
Gritos: Quem?… Ele!… Ora, ela! poder sentir em si próprio o pulsar da grande época que agora
Um terceiro: É mesmo assim a esperteza dos espiões! vem irrompendo.
Um quarto: Pra que a gente não repare qu’eles são espiões, dei‑ Uma voz de entre a multidão: À merda!
xam ficar a barba! O repórter: Ouça como soa e volta a soar a “Marcha do Príncipe
Um quinto: Deixem­‑se mas é de palermices, ela é uma mulher Eugénio” e o hino nacional, e “A Guarda do Reno” junta­‑se­
espião e pra qu’a gente não repare prantou c’uma barba na cara! ‑lhes com toda a naturalidade, em sinal da fidelidade entre os
Um sexto: É uma mulher espião que se faz passar por homem! coligados. Hoje, Viena largou o trabalho mais cedo do que de
Um sétimo: Não, é um homem que se faz passar por uma mulher costume. Já me ia esquecendo, temos de descrever em especial
espião! como o público se concentrou diante do Ministério da Guerra.
A multidão: Seja como for, é um suspeito que tem que ir malhar Mas sobretudo não podemos esquecer­‑nos de referir… ora
c’os ossos na esquadra! Agarrem­‑no! adivinhe lá.
(A senhora é levada por um polícia. Ouve­‑se cantar “A Guarda O segundo: É claro que sei. Não podemos esquecer­‑nos de refe‑
do Reno”.)6 rir como as pessoas se concentraram em massa às centenas e
O primeiro repórter: (Com um bloco de notas na mão.) Não centenas na Fichtegasse, diante da sede da redacção da Neue
foi uma labareda de um ébrio entusiasmo momentâneo, não Freie Presse.
foi a irrupção ruidosa de uma malsã histeria de massas. Com O primeiro: Você sabe­‑a toda! É verdade, de coisas assim é que
genuína virilidade, Viena aceita a decisão prenhe de con‑ o chefe gosta. Mas que história é essa das centenas e centenas?
sequências. Sabe como é que vou sintetizar este ambiente? Olha que esta! Diga logo milhares e milhares, que diferença lhe
O ambiente pode sintetizar­‑se nas palavras: sem nenhuma faz, se eles resolveram concentrar­‑se em massa!
soberba e sem nenhuma fraqueza. Sem nenhuma soberba e O segundo: Bem, só espero é que não seja interpretado como uma
sem nenhuma fraqueza, esta expressão que cunhámos para manifestação hostil o facto de o jornal do último domingo, em
captar o essencial do ambiente em Viena não pode repetir­‑se que já tínhamos entrado na grande época, trazer ainda tantos
nunca vezes de mais. Sem nenhuma soberba e sem nenhuma anúncios de salões de massagem!
fraqueza! Então que é que me diz? O primeiro: Numa tão grande época, tão mesquinha perspec‑
O segundo repórter: Que hei­‑de dizer? Brilhante! tiva está fora de questão. Deixe isso para a Fackel. Todos acla‑
O primeiro: Sem nenhuma soberba e sem nenhuma fraqueza. maram o jornal. Ressoaram gritos exaltados: “Leiam em voz
Muitos e muitos milhares andaram hoje pelas ruas, de braço alta! Leiam em voz alta!” E isto referia­‑se, evidentemente, a
dado, pobres e ricos, velhos e novos, nobres e plebeus. A ati‑ Belgrado. Depois, a multidão deu vivas formidáveis…
tude de cada um mostrava que tem plena consciência da gravi‑ O segundo: Vivas incontáveis…
dade da situação, mas também o orgulho que experimenta em O primeiro: …vivas à Áustria, à Alemanha e à Neue Freie Presse.
86 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 87
A sequência não foi propriamente lisonjeira para nós, mas perder tempo, temos é que escrever sobre o que se passa, mas,
mesmo assim foi muito simpático da parte da multidão entu‑ em vez disso, ficamos parados a ver. O que eu queria dizer é
siasmada. Toda a santa noite, quando não estava ocupada em que é muito importante descrever como eles estão todos deter‑
frente ao Ministério da Guerra ou no Ballplatz,7 a multidão minados e aqui e ali há um que se destaca, quer a todo o preço
manteve­‑se na Fichtegasse como sardinhas em lata, formando contribuir com o seu óbolo. São coisas que se podem exprimir
uma grande concentração. duma maneira muito plástica. Ontem, ele mandou­‑me cha‑
O segundo: Só me admira onde é que essa gente arranja tempo. mar e disse que é preciso despertar o apetite do público pela
O primeiro: Ora, ora, são tão grandes os tempos que pra isso guerra e pelo jornal, uma coisa não vai sem a outra. E aí são
sobra sempre tempo! Ora, portanto, as notícias da edição ves‑ muito importantes os pormenores e os detalhes, numa palavra,
pertina eram constantemente discutidas e debatidas. O nome as nuances, e especialmente a nota vienense. Por exemplo, é
de Auffenberg passava de boca em boca. preciso referir que, evidentemente, as diferenças de classe dei‑
O segundo: Mas como é que é isso? xaram de ter significado, e isto logo de imediato… as pessoas
O primeiro: Eu posso explicar­‑lhe, é um segredo da redacção, acenavam de automóveis e mesmo de carruagens. Eu vi uma
não conte a ninguém enquanto durar a guerra. Foi assim, Roda senhora com toilette de rendas a sair do carro e a lançar­‑se nos
Roda telegrafou ontem ao jornal sobre a batalha de Lemberg braços da mulher de lenço desbotado na cabeça. E tem sido
e, no fim do telegrama, vêm as palavras: “Fazer estardalhaço assim desde o ultimato, tudo é um só coração e uma só alma.
por Auffenberg!” A composição já estava pronta. No último Voz de um cocheiro: Vê lá por onde andas, ó ganda filho dum
momento, detectou­‑se ainda a coisa e tirou­‑se, mas então é que cabrão…!
se fez mesmo estardalhaço por Auffenberg. O segundo repórter: Sabe o que é que eu observei? Observei
O segundo: O principal agora são as cenas de rua. Ele quer uma que estavam a formar­‑se grupos.
cena de rua por cada pedra de esquina em que um cão se esteja O primeiro: E então…?
a manifestar. Ontem, mandou­‑me chamar e disse­‑me para O segundo: E um estudante fez um discurso, que todos têm de
estar atento às cenas pitorescas. Mas é justamente nisso que me cumprir o seu dever, nessa altura houve um que se destacou
sinto pouco à vontade, eu não gosto de me meter na confusão, dum grupo e disse: “Antes assim!”
ontem fui obrigado a cantar em coro “A Guarda do Reno”… O primeiro: Nada mal. Tudo o que posso constatar é que uma
Venha daí embora, aqui as coisas também começam a mexer­ seriedade imensa se estende por toda a cidade, e esta seriedade,
‑se, olhe só pra esta gente, conheço este ambiente, mal uma suavizada pela elevação e pela consciência do alcance histó‑
pessoa se precata e já está no meio a cantar o “Deus mantenha”. rico deste momento, exprime­‑se em todos os rostos, nos dos
O primeiro: Deus proteja!8 Você tem razão… também não per‑ homens que têm de partir já, nos daqueles que por enquanto
cebo porque é que tem que se estar lá em pessoa, só serve para ainda ficam…
88 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 89
Uma voz: À merda! (Um bando de garotos de barretina e com sabres de madeira
O primeiro: …e nos daqueles a quem incumbe uma tão insigne passa cantando: “Quem quer juntar­‑se aos soldados… Uma
missão. Acabou­‑se a indolência comodista, a irreflexão hedo‑ ponte fez lançar…”)
nista; o lema geral é “uma seriedade confiante e uma orgulhosa O primeiro: Tome nota: uma cena bem pitoresca. Aliás, temos
dignidade”. A fisionomia da nossa cidade transformou­‑se dum de tentar dizer o mais possível sobre o povo, inda hoje o chefe
momento para o outro. escreveu que ele é a fonte onde retemperamos a alma.
Um transeunte: (Para a mulher.) Cá por mim, podes ir ao Um grupo: (Cantando.)
Teatro da Josefstadt, eu vou ao Teatro an der Wien! Os russos e os sérvios de caminho
Um ardina: Avanço dos austríacos! Todas as posições vamos fazê­‑los já em picadinho!11
conquistadas! Vivò! Abáxo! Olhem pràqueles dois judeus!
A mulher: Eu até já vomito o Sangue de Hussardo. O segundo repórter: Olhe, acabou­‑se­‑me a vontade de obser‑
O primeiro repórter: Em parte alguma há um traço que seja var cenas pitorescas. Ele que retempere a alma na fonte, se se
de angústia e de abatimento, em parte alguma há aflito nervo‑ atrever. Eu, cá por mim, acho que não tenho nenhuma…
sismo e ansiedade minada pela palidez do pensamento.9 Mas O primeiro: Nenhuma soberba e nenhuma fraqueza, esta expres‑
tampouco subestimação leviana do sucedido ou uma euforia são que cunhámos para captar o essencial do ambiente em
insensata, irreflectida. Viena… (Saem ambos precipitadamente.)
A multidão: Hurra, um alemão. Abáxo a Sérvia! (Gera­‑se agitação. Um jovem roubou a carteira a uma senhora
O primeiro repórter: Olhe só pra isto, capacidade de entu‑ de idade. A multidão toma partido contra a mulher.)
siasmo meridional conduzida e disciplinada pela seriedade Uma voz de mulher: Pois é, minha querida, agora estamos em
alemã. Quanto à baixa da cidade, é o que posso observar. Para guerra, não é como em tempo de paz, todos têm que dar qual‑
a zona da Leopoldstadt10 você pode optar por uma nota mais quer coisinha, isto aqui é Viena!
exaltada. Poldi Fesch: (Para o acompanhante.) Ontem andei na farra c’o
O segundo: Nem pensar, eu também prefiro os ambientes mais Sascha Kolowrat, hoje… (Sai.)
serenos. Aqui e ali vê­‑se, é o que vou dizer, um ancião enca‑ (Entram dois admiradores do jornal reichspost.)
necido, que, imerso em pensamentos, recorda os longínquos O primeiro admirador da reichspost: As guerras são pro‑
dias da juventude, ou uma velhinha alquebrada, que, com tré‑ cessos de purificação e de limpeza, são sementeiras da virtude
mula mão, acena uma saudação de despedida e uma bênção. e fazem despertar os heróis. Agora falam as armas!
Uma mulher deixa perceber que receia por um filho ou por O segundo admirador da reichspost: Até que enfim! Até
um esposo. Se se virar pra trás, vai ver como eles acenam, eles que enfim!
acenam, não há dúvida. O primeiro: As guerras são uma bênção, não apenas pelos ideais
90 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 91
que defendem, mas também pela purificação que trazem ao O primeiro: O Weiskirchner disse, “Meus caros vienenses, estais
povo que as trava em nome dos mais preciosos bens. Os tem‑ a viver uma grande época”.
pos de paz são tempos perigosos. Com demasiada facilidade, O segundo: Ora pois, não é nenhuma bagatela!
ocasionam relaxamento e alienação. O primeiro: “Temos também presente em espírito o nosso aliado
O segundo: A verdade é que um homem também precisa de uma de couraça resplandecente”, disse ele.
dose de combate e de violência. O segundo: A homenagem da população fiel ao imperador foi já
O primeiro: Propriedade, descanso, prazer, nada disso pode con‑ deposta aos pés do trono altíssimo.
tar quando é a honra da pátria que tem de valer tudo. Seja, O primeiro: Nos arraiais da corte imperial em Ischl.
pois, a guerra em que a nossa pátria se viu envolvida… O segundo: Vais ver, a guerra vai suscitar um renascimento do
O segundo: …seja a guerra, que visa castigar os crimes e garantir pensamento e da acção austríacos, vais ver. Zás, catrapus!
a paz e a ordem, entendida e abençoada de todo o coração. O primeiro: Já é mais que tempo da gente termos um floresci‑
O primeiro: Há que varrer com punho de ferro! mento espiritual. E pimba!
O segundo: Em Praga, Brünn e Budweis… em toda a parte as O segundo: A gente precisamos é dum banho de aço! Um banho
decisões do imperador são aclamadas. de aço!12
O primeiro: Em Sarajevo cantaram o “Deus mantenha”. O primeiro: Já foste mobilizado?
O segundo: A Itália mantém­‑se fiel ao lado da Áustria. O segundo: Era o que faltava, fiquei livre! E tu?
O primeiro: O príncipe Alfred Windischgrätz ofereceu­‑se como O primeiro: Deram­‑me como inapto.
voluntário para o serviço militar. O segundo: Um suspiro de alívio percorre as nossas gentes! Esta
O segundo: Sua Majestade trabalhou o dia inteiro com todo o afinco. guerra… (Saem de cena.)
O primeiro: No dia 27, entre o meio­‑dia e a uma, tomaram­‑se na (Ouvem­‑se soldados que passam a cantar: “E de volta à pátria
Caixa de Depósitos Postal as providências financeiras exigidas amada nos iremos reencontrar…”)13
pela guerra. Um velho assinante da neue freie presse: (Em conversa com
O segundo: O aprovisionamento de Viena para o período da o mais velho assinante.) Interessante, hoje no editorial
guerra foi assegurado pelo burgomestre, em conjunto com o vem como a corte sérvia e os outros todos têm que abandonar
primeiro­‑ministro e o ministro da Agricultura. Belgrado. (Lê em voz alta.) “Esta noite não foi Viena a cidade
O primeiro: Viste no jornal? A guerra não vai provocar carestia. que, abandonada, não ofereceu à corte, ao governo e às tropas
O segundo: Boa malha! um abrigo seguro. Foi Belgrado.”
O primeiro: Em inabalável fidelidade… O mais velho assinante: Palavras que valem quanto pesam.
O segundo: …prestamos homenagem ao nosso velho imperador É bom ouvir coisas dessas e uma pessoa sente­‑se assim a modos
tão amado. que satisfeita.
92 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 93
O velho assinante: É claro que se podia objectar que Viena Um gabiru: Ora viva, Franz, atão adonde é que vais?
de momento está mais longe dos sérvios do que Belgrado dos Um segundo gabiru: Auxtrois Franzois.
austríacos, pois que Belgrado fica mesmo em frente de Semlin, O primeiro: Adonde?
enquanto Viena não fica mesmo em frente de Belgrado, e por‑ O segundo: Auxtrois Franzois. Vou dar cabo das montras do
que já se está a começar a disparar de Semlin sobre Belgrado, Hutterer se ele não tirar o letreiro. Tou cá c’uma fúria dos
enquanto eles não podem disparar lá de Belgrado sobre Viena, diabos!
graças a Deus. O primeiro: Tens razão, é um escândalo, lá isso é.
O mais velho assinante: Entendo o seu raciocínio, mas onde O segundo: Onde vejo a dizer “Modes”, faço tudo em fanicos!
é que isso leva? Seja como for que se veja a situação, tem que se (Sai com ares furibundos.)
chegar ao resultado de que o que ele diz no editorial é verdade. O primeiro: Ora viva, Pepi, atão adonde é que vais?
Quer dizer, que em Viena a corte e tudo em geral pode ficar Um terceiro: Vou contribuir c’o meu óbolo.
como está e em Belgrado não. Ou será que isto não é verdade? O primeiro: Olha, olha, mas que civismo tás a mostrar…
Quer­‑me cá parecer que você se está a armar em céptico! O terceiro: Quê? Civismo? Olha qu’isso ninguém mo diz a mim
O velho assinante: Mas verdade o quê? É absolutamente duas vezes, cá a mim não… (Espeta­‑lhe uma bofetada.)
incontestável e nunca tive a sensação de ele ter tanta razão Gritos da multidão: Olha pr’àli! Não têm vergonha? Mas
como a razão que tem agora. É que quando ele tem razão nin‑ quem é aquele? Você julga que é o Nikolaievitch?
guém lha tira! (Saem de cena.) Alguém de entre a multidão: O civismo de que as pessoas
Um ardina: …Lemberg inda nas nossas mãããos!14 dão mostras em plena guerra, quem diria que uma coisa destas
Quatro rapazes e quatro raparigas de braço dado: Uma era possível!
ponte fez lançar, prò rio se poder passar, Belgrado e a cidadela… (Entram dois intermediários.)
A multidão: Viva! (Entra Fritz Werner e cumprimenta a agradecer.) O primeiro intermediário: Então hoje é dia de estreia, olhe,
A menina körmendy: Olha, vai ter com ele e pede­‑lhe. dei ouro a troco de ferro.
A menina löwenstamm: (Aproxima­‑se.) Sabe, sou uma grande O segundo: Você? Vá mas é contar essa a outro. Você deu! Logo
admiradora sua e gostava de lhe pedir um autógrafo… você…
(Werner saca de um bloco de notas, escreve numa folha e entrega­‑lha. O primeiro: Mas quem é que está a dizer que eu dei? Você não
Sai.) entende alemão? O que eu estou a ver é além o cartaz da estreia
Mas que simpático. de hoje: Dei Ouro a Troco de Ferro, gostava de ir ver.15
A menina körmendy: Ele olhou para a tua cara? Sai daí da con‑ O segundo: Boa, eu vou também! Agora é que é a altura mais inte‑
fusão, tudo por causa da guerra. Eu derreto­‑me toda é pelo ressante. Ontem, na Princesa das Czardas,16 a Gerda Walde leu
Storm! (Saem.) alto a edição especial sobre os 40 mil russos no arame farpado
94 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 95
– você havia de ter ouvido o entusiasmo que foi, chamaram­‑na CENA 3
ao palco pr’aí dez vezes no mínimo. À saída da ponte. Uma chusma de soldados à volta do
O primeiro: Já lá havia soldados feridos? automóvel. O motorista mostra a carta de condução.
O segundo: Também! Agora é que é a altura mais interessante.
Outro dia ficou um sentado ao pé de mim. Qual é que era o Um soldado: (De arma apontada.) Alto!
programa? Ah, sim… Tive um dia um camarada.17 O Eterno Descontente: Mas o carro já está parado. Porque é
O primeiro: Você? que o homem está tão assanhado?
O segundo: Mas quem é que diz eu? É do Viktor Léon! O capitão: (De cabeça perdida.) Está a cumprir o seu dever.
O primeiro: É boom? E se no campo de batalha ele estiver assim assanhado contra o
O segundo: Êxito explosivo! inimigo, assim é que deve ser!
Um ardina: Olhòoo bombardeamento de Belgrado…! O Eterno Descontente: Sim, mas é que nós não somos…
(Muda a cena.) O capitão: Guerra é guerra! E ponto final! (O automóvel segue
viagem.)
CENA 2 (Muda a cena.)
Tirol do Sul. À entrada de uma ponte. Um automóvel é
mandado parar. O motorista mostra a carta de condução. CENA 4
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
O miliciano: Deus salve a vossas senhorias! Ora, se fizerem
favor… O Optimista: E ainda pode dar­‑se por feliz. Na Estíria, uma
O Eterno Descontente: Finalmente, um homem amável. Os enfermeira da Cruz Vermelha cujo automóvel andou ainda
outros estão todos tão assanhados, apontam logo a arma… alguns metros foi morta a tiro.
O miliciano: É por causa dum automóble russo carregado de O Eterno Descontente: Ao escravo foi dado poder. É mais do
ouro, pois, sim senhor… que a natureza dele pode suportar.
O Eterno Descontente: Mas um automóvel que quer parar O Optimista: Infelizmente, na guerra nem sempre poderão ser
não pode parar logo ali, anda ainda uns metros… e então pode evitados os excessos de alguns subordinados. Em tempos como
acontecer a maior das desgraças. estes, contudo, todas as considerações devem ser subordinadas
O miliciano: (Em fúria.) Pois… se há um que não pára… cá a a uma única ideia: a da vitória.
gente varre tudo a tiro… a gente varre tudo a tiro… a gente O Eterno Descontente: O poder que foi dado ao escravo não
varre… (O automóvel segue viagem.) chegará para acabar com o inimigo, mas há­‑de chegar para
(Muda a cena.) acabar com o Estado.
96 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 97
O Optimista: Militarismo significa reforço da organização do O Optimista: Tal como se cobre de glória o Estado que toma
Estado através da força para… sobre si, em salvaguarda do seu prestígio, o inevitável combate
O Eterno Descontente: …chegar por essa via à desintegra‑ de defesa, assim cada um se cobre de glória, e o que o sangue
ção final. Na guerra todos se transformam em superiores do agora derramado há­‑de trazer ao mundo é…
seu próximo. O exército é um superior do Estado, ao qual não O Eterno Descontente: …imundície.
resta outra saída desse constrangimento contranatura que não O Optimista: Pois é, o senhor, que viu imundície por todo o lado,
seja a corrupção. Quando o homem de Estado deixa o militar sente que o seu tempo passou! Fique­‑se a resmungar no seu
mandar nele quer dizer que sucumbiu ao fascínio de um ídolo canto, como sempre fez – nós outros caminhamos ao encontro
de pacotilha, que sobreviveu ao seu tempo e que já não pode de uma era de elevação espiritual! Então o senhor não repara
ser traduzido impunemente em vida e em morte pelo nosso que irrompeu uma nova época, uma grande época?
tempo. A administração militar é a utilização das galinhas O Eterno Descontente: Eu conheço­‑a desde pequenina, e ela
como raposas e a transformação das raposas em galinhas. há­‑de voltar a ser pequena.
O Optimista: Não sei o que é que o autoriza a um diagnóstico O Optimista: Ainda é capaz de negar? Não ouve as expressões
assim sombrio. Manifestamente, o senhor, como era seu hábito de júbilo? Não vê o entusiasmo? Pode um coração sensível
no tempo da paz, está a tirar conclusões gerais a partir de con‑ furtar­‑se a ele? O senhor é o único. Julga que a grande agitação
sequências que são inevitáveis, está a partir de escândalos oca‑ interior das massas não há­‑de produzir os seus frutos, julga
sionais que interpreta como sintomas. A nossa época é dema‑ que esta magnífica abertura vai ficar sem continuação? Os que
siado grande para que possamos ocupar­‑nos com ninharias. hoje rejubilam…
O Eterno Descontente: Mas as ninharias hão­‑de crescer com O Eterno Descontente: …hão­‑de lamentar­‑se amanhã.
ela! O Optimista: Que importa o sofrimento individual! Importa
O Optimista: A consciência de viver numa época em que aconte‑ tanto como a vida individual. O olhar dos homens ergue­‑se
cem coisas tão portentosas há­‑de fazer mesmo o mais pequeno finalmente de novo para o alto. Não se vive apenas para obter
de todos transcender­‑se a si próprio. ganhos materiais, mas também…
O Eterno Descontente: Os pequenos ladrões que ainda não O Eterno Descontente: …para ganhar medalhas.
foram enforcados hão­‑de fazer­‑se grandes e então hão­‑de ser O Optimista: Nem só de pão vive o homem.
postos em liberdade. O Eterno Descontente: Pois não, tem também de fazer guer‑
O Optimista: O que mesmo o mais pequeno há­‑de ganhar com ras, para ficar sem pão.
a guerra é… O Optimista: Pão há­‑de haver sempre! Mas nós vivemos da espe‑
O Eterno Descontente: …uma comissão. Quem estender a rança na vitória final, de que não pode duvidar­‑se e antes da
mão há­‑de apontar para cicatrizes que não tem. qual nós…
98 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 99
O Eterno Descontente: …havemos de morrer de fome. O barão: Se uma pessoa pensar bem… por causa de dois ponto‑
O Optimista: Mas que pusilanimidade! Como o senhor há­‑de um zinhos… e, vejam lá, por causa de uma bagatela dessas reben‑
dia ficar cheio de vergonha! Não se feche dentro de si quando tou a guerra mundial. É mesmo de morrer a rir.
há festas a celebrar­‑se! As portas da alma estão abertas de par O conde: Não era coisa de que pudéssemos prescindir, a exi‑
em par. A memória dos dias em que a retaguarda, mesmo que gência dos dois pontozinhos. Porque é que eles, os sérvios, se
só através da recepção do comunicado diário, tomava parte fizeram de caros e não aceitaram os dois pontozinhos?
nos feitos e sofrimentos de uma frente gloriosa não há­‑de dei‑ O barão: Bem, isso estava claro desde o princípio, que eles não
xar à alma… iam aceitar uma coisa dessas.
O Eterno Descontente: …nenhuma cicatriz. O conde: Pois, isso já a gente sabia de antemão. O Poldi Berchtold
O Optimista: Os povos só aprenderão com a guerra… não é uma pessoa qualquer, não há cá coisas. E também só há
O Eterno Descontente: …a não deixar de fazer guerra no uma voz na sociedade. Fantástico! É o que eu te digo… uma
futuro. exaltação! Finalmente, finalmente! Já não se conseguia aguen‑
O Optimista: A bala já foi disparada e à humanidade… tar. A gente estava tolhida a par e passo. Bem, isto agora vai ser
O Eterno Descontente: …há­ ‑de ter­‑lhe entrado por um outra vida! Neste Inverno, mal se faça a paz, ninguém me tira
ouvido e saído pelo outro! a Riviera.
(Muda a cena.) O barão: Eu já me dou por satisfeito se ninguém nos tirar o
Adriático.
CENA 5 O conde: Não te ponhas com piadas. O Adriático é nosso. A Itália
Ballhausplatz. não se vai mexer. É o que eu te digo, mal se faça a paz…
O barão: Bem, quando é que achas que vai haver paz?
Conde Leopold Franz Rudolf Ernest Vinzenz Innocenz O conde: Calculo que dentro de duas, no máximo três semanas.
Maria: O ultimato foi de trás da orelha! Finalmente, O barão: Deixa­‑me rir.
finalmente! O conde: Mas que é que é, da Sérvia damos conta a brincar, mas
Barão Eduard Alois Josef Ottokar Ignazius Eusebius a brincar, meu caro… vais ver como a nossa gente se vai bater
Maria: Foudroyant! Bem, mas foi por uma unha negra que bem. Basta ver o brio dos nossos dragões do Seis! Olha, parece
não o aceitaram. que alguma gente da sociedade está já mesmo na linha da
O conde: Isso tinha­‑me posto com uma cachola dos diabos. frente! Pois, e a nossa artilharia… é do melhor que há. Traba‑
Felizmente que tínhamos lá aqueles dois pontozinhos, a nossa lha com uma precisão de arrasar!
investigação em território sérvio e assim… bem, nessa eles não O barão: Bem, mas a Rússia?
caíram. Agora só se podem culpar a eles próprios, os sérvios. O conde: O russo vai ficar satisfeito se o deixarem em paz. Tem
100 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 101
confiança no Conrad, ele lá sabe porque é que os deixa entrar em obrigados a atacar por causa do prestígio e assim… bem,
Lemberg. Mal estejamos em Belgrado, a situação vai­‑se inverter. isso pra mim… francamente… esqueceste­ ‑te do cerco?…
O Potiorek é de truz! É o que te digo, os sérvios vão­‑se abaixo Inda ontem estava a falar c’o Fipsi Schaffgotsch, aquele que é
enquanto o diabo esfrega um olho. Tudo o resto é automático. casado com uma Bellgard’, sabes, ele é um bocado senhor do
O barão: Bem, quando é que tu achas, a sério… seu nariz, mas muito simpático… bem, que é que eu estava a
O conde: Daqui a três, quatro semanas, temos a paz. querer dizer… sim… mas então não fomos mesmo obrigados
O barão: Tu sempre foste um optimista descabelado. a deixar­‑nos atacar pelos sérvios em Temes­‑Kubin19 para…
O conde: Então diz lá tu, quando? O barão: Como assim?
O barão: Antes de dois, três meses, não se consegue! Vais ver. Se O conde: Como assim! Ora, não te ponhas com coisas… tu sabes
tudo correr bem, em dois. Mas aí tinha mesmo que correr tudo melhor que ninguém que um ataque sérvio em Temes­‑Kubin
muito bem, meu caro! era necessário… quer dizer, nós tivemos mesmo que atacar…
O conde: Bem, isso agora, faz favor… isso já era uma chatice das O barão: Ora, mas isso é evidente!
grandes. Tens cada ideia! Isso não dava, desde logo por causa O conde: Ora pois, se não fosse assim precisávamos disso?
da alimentação. Há dias, a Sacher disse­‑me… “Olha, tu não É como os alemães com as bombas sobre Nuremberga! Bem…
acreditas que essa coisa do racionamento se vá manter, pois por favor… bem, se isto não é uma guerra defensiva!
não? Mesmo no Demel18 já começam a resistir a pé firme… O barão: Olha lá, mas que é que eu disse? Tu sabes que eu em
bonita situação, é o que te digo… assim como assim, uma especial sempre fui a favor da prova de força, ainda pra mais
pessoa vai­‑se limitando como pode, mas no longo prazo…” quando ainda por cima é a última. Chamem­‑lhe o que quise‑
É ridículo, nem pensar! Ou achas que… rem, tanto se me dá como se me deu. Guerra defensiva – isso
O barão: Tu conheces a minha opinião. Não dou muito pela reta‑ soa como se uma pessoa tivesse que andar a pedir desculpa. Cá
guarda. No fim e ao cabo, a gente não somos teutões, mesmo pra mim, a guerra é a guerra.
que sejamos forçados a alinhar com eles… inda ontem falei c’o O conde: Pois claro, nisso tens razão. Ora, o Poldi Berchtold!
Putzo Wurmbrand, sabes quem é, o que anda co’a a Maritschl É e será sempre um tipo giro a valer! Digam o que disserem.
Palffy, ele é o braço-direito do Krobatin, quer dizer, um O facto é que as nossas tarefas também exigem bravura, e bra‑
patriota de primeira… diz ele, quando se começa uma guerra vura é coisa que não lhe falta. A maneira como ele se escapou
de defesa… tás a ver, é que ele foi coisa que meteu mesmo na desses senhores e foi pra Ischl… inda lhe queriam era dar cabo
cabeça, isso da guerra de defesa… do ultimato. Mas ele… é o que te digo, foi grandioso. Só tiros
O conde: Bem… por favor… então não é uma guerra de defesa? na mouche!
Tu és um derrotista de primeira. A situação de aperto em que O barão: Épatant! Eu não teria acreditado que a coisa lhe fosse
nós estávamos, tu já te esqueceste de que, soit disant, fomos sair tão bem. Ele não dá confiança a ninguém. A política do
102 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 103
Poldi Berchtold já se via quando ele restringiu os funerais e O barão: Tás a ver!
deixou de fora o grão­‑duque russo. O conde: O Poldi Berchtold… sabes… (enquanto vai murmu‑
O conde: É claro. Não foi culpa dele que a Rússia depois se tenha rando o resto do texto da notícia) recuperada… ora, sempre
mesmo assim imiscuído. Por vontade dele, a guerra mundial tinha a mesma coisa… agassant… já enjoa… (faz o papel numa
ficado limitada à Sérvia. Sabes o que é que o Poldi Berchtold tem? bola) o que eu queria dizer… quanto mais penso na situação…
O Poldi Berchtold tem a coisa que um diplomata numa guerra enfim… hoje podíamos ir jantar aos arrabaldes co’a Steffi.
mundial tem de ter antes de tudo o resto: savoir vivre! Fiquei (Muda a cena.)
barbaramente impressionado com a maneira como ele meteu
simplesmente a proposta dessa cambada dos ingleses20 no CENA 6
meio dos programas das corridas… era o que faltava precisar‑ Em frente de um salão de cabeleireiro na Habsburgergasse.
mos da gentil autorização deles para ocupar Belgrado… bando Uma multidão fortemente agitada.
de mercenários hipócritas, é o que eles são… e a maneira como
ele depois veio ao clube, lembras­‑te, olha pra nós com aquele A multidão: Abáxo! É partir tudo!
olhar firme e diz: “Agora o exército tem o que queria!” Naquele Alguém: (Que tenta acalmar os ânimos.) Mas, gentes, o home nã
momento ele estava cá c’uma boa disposição! Tens que admi‑ fez nada! O vizinho da loja de violinos não pode vê­‑lo…
tir… não foi propriamente uma insignificância, numa hora O vendedor de violinos: (Arengando à multidão.) Ele é um
pressaga como aquela. sérvio! Disse coisas que não se admitem. Contra uma alta per‑
(Ouve­‑se um toque de campainha na sala ao lado e a seguir.) sonalidade. Eu ouvi c’os meus próprios olhos!
A voz de Berchtold: Café granizado! (Ouve­‑se uma porta a O cabeleireiro: (Retorcendo as mãos.) Estou inocente… Eu sou
fechar­‑se.) cabeleireiro da corte… como é que me havia de lembrar…
O barão: Ora vês… às 11 e meia da manhã! Vês… às 11 e meia Um segundo no meio da multidão: Basta olhar prò nome pra
já ele está a pedir o seu café granizado! Não, estou tentado a se ver qu’é um sérvio, é partir­‑lhe as taças do sabão em cima
também eu uma vez… não há dúvida, não posso deixar de o da tola…
dizer… o café granizado é mesmo o ponto forte dele! Terceiro: É enchê­‑lo de sabão! Abáxo! Abáxo o corta­‑gargantas
O conde: É capaz de ser a sua única fraqueza! Ele adora café gra‑ sérvio!
nizado! Mas também é preciso admitir que o café granizado do A multidão: Abáxoo…! (A loja é destruída.)
Demel… que maravilha! (Surgem à esquina os historiadores Friedjung e Brockhausen,
O barão: Olha, hoje está um sol lá fora… fantástico! em conversa.)
O conde: (Abre um envelope da agência noticiosa e lê.) … “Lem‑ Brockhausen: Justamente hoje mandei para os jornais uma
berg ainda está nas nossas mãos.” nota pertinente sobre este tema, que recusa logo de entrada
104 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 105
com uma lógica irrefutável qualquer comparação entre o nosso Brockhausen: Não devemos ignorar a causa justa da sua agita‑
povo e a gentalha francesa ou inglesa. Talvez o passo lhe possa ção. Como já dizia…
servir para o seu trabalho, caro colega, ponho­‑o à sua disposi‑ Friedjung: Desde o dia em que o nosso augusto monarca cha‑
ção, ora ouça: “A convicção que inspirava o homem que cultiva mou às armas milhares e milhares dos nossos filhos e irmãos,
a história, consolando­‑o e animando­‑o como a quintessência parece de facto reinar tremenda agitação entre os povos que
da sabedoria, a saber, que à barbárie jamais pode estar des‑ vivem na margem do rio dos Nibelungos.22 No entanto, o
tinada uma vitória definitiva, transmitiu­‑se instintivamente à mosto, no seu estranho fermentar…23
massa do povo. A verdade é que nas ruas de Viena nunca se Brockhausen: Longe vão os tempos em que se chamavam Fea‑
ouviu o vociferar estridente de um patriotismo triunfalista e ces. O tear vibrante do tempo…24
barato. Aqui, o fogo de palha efémero do entusiasmo de um só Friedjung: Olha, olha, parece que querem todos entrar naquela
dia não se inflamou. Desde o começo da guerra que este velho barbearia, é um cabeleireiro da corte e a alma ingénua do povo
Estado alemão fez suas as mais belas virtudes do povo germâ‑ pensa provavelmente…
nico: a confiança tenaz em si próprio e a crença profunda na Gritos da multidão: “Já lhe chegámos a roupa ao pêlo!” “Pimba,
vitória da nobre e justa causa.” (Passa­‑lhe o recorte para a mão.) catapimba!” “Cachorro sérvio, cara de fuinha!” “Agora ele que
Friedjung: É deveras uma opinião excelente, caro colega, que faça a barba aos sérvios com os cacos!” “A esponja vai prà minha
vira o bico ao prego e dá em cheio no que mais importa. Vou patroa!” “Salvei todos os perfumes!” “Dá cá alguns!” “Jesus, que
tomá­‑la ad notam. Olha, olha… já aqui temos um exemplo! linda bata branca!” “Anda lá, empresta­‑me um vaporizador!”
Uma multidão inflamada de patriotismo que, com modera‑ “Deus castigue a Inglaterra!” “O tipo pôs­‑se na alheta!”
ção, dá expressão aos seus sentimentos, suaviter in re, fortiter O vendedor de violinos: Eu não vos disse! É réu de alta trai‑
in modo,21 como é próprio da tradição vienense. O pretexto ção, é o que eu vos digo!
imediato deve sem dúvida residir no facto de se tratar da rua Brockhausen: A multidão está excitada e supõe com razão estar
dos Habsburgos. Pelos vistos, o povinho leal queria prestar mais uma vez na pista das maquinações de traidores sérvios.
a homenagem devida ao nome, tal como, na época de Leo‑ Friedjung: Não deixa de ser surpreendente o faro tão apurado
pold, o teria com toda a propriedade manifestado na rua dos que o povo tem para um atentado contra o património invio‑
Babenberg. lado dos reinos e territórios representados na Dieta Imperial.
Brockhausen: (Desconcertado.) Contudo, quer­‑me parecer… Ou muito me engano ou os documentos daquela conspiração
Friedjung: (Desconcertado.) Pois, é estranho… pan­‑sérvia do Slovensky Jug, que eu já em 1908 trouxe à luz,
Brockhausen: Esta boa gentinha está a fazer muito barulho… estão guardados neste cabeleireiro.25
Friedjung: Mais barulho, em todo o caso, do que é próprio da Brockhausen: A forma é que se me afigura um tanto
tradição… questionável.
106 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 107
A multidão: Atrás dele! Porrada nele! Abáxo a Sérvia! O velho Biach: De que é que serve agora a arte dos diplomatas,
Friedjung: Talvez seja indicado, caro colega, tendo em vista este agora é a vez de falarem as armas! Podemos nós sujeitar­‑nos a
justamente irritado comerciante de violinos, fugir em passo um échec? Se não fizermos agora a investida…
acelerado desta patente contradição com o facto historica‑ O Eterno Descontente: (Quer entrar no café.) Perdão…
mente provado de que a população vienense não é inclinada O doutor: Isso faz sentido para mim. Mas o factor estratégico
ao vociferar estridente de um patriotismo triunfalista barato. que, na guerra de movimento, o ataque de flanco…
Gritos entre a multidão: “Mas que é que querem aqueles O retroseiro: Olhe, pode ter a certeza que eles estão cercados,
dois judeus além?” “Têm cara de também serem dos Balcãs!” foi a própria Soffi Pollak que o disse.26
“Só lhes falta o cafetã!” “São sérvios!” “Dois sérvios!” “Traido‑ O velho Biach: Ora, ora, e ela é que sabe! Sabe donde, isso é que
res!” “Porrada neles!” eu gostava que me dissessem!
(Os dois historiadores desaparecem numa passagem entre prédios.) O retroseiro: Donde? Então o marido não foi mobilizado, pra
(Muda a cena.) tratar do jardim do hospital de reserva?
O conselheiro imperial: Mas tinham­‑me dito que ele tinha
CENA 7 ficado livre! Cercados, isso é que era fantástico, vocês sabem,
Kohlmarkt. Em frente à porta giratória isso é a mesma coisa que apertados numa tenaz.
que dá entrada para o Café Pucher. O velho Biach (Com sofreguidão.) Eles que os apertem até lhes
faltar o ar! Quem me dera poder assistir nem que fosse uma só
O velho Biach: (Muito agitado.) O mais simples era atirar cinco cor‑ vez a um aperto desses!
pos de exército contra a Rússia, resolvia­‑se tudo duma assentada. O retroseiro: O Klein pode, ele está no Departamento de
O conselheiro imperial: Evidente. A melhor defesa é o ataque. Imprensa Militar. Ontem, escreveu que eles hão­‑de ficar sem
É só olhar pròs alemães, o que eles conseguiram. Um élaan! pinta de sangue. Só nessa altura é que ele os larga.
Uma coisa como a investida através da Bélgica é algo nunca O sócio: Isso é que é sorte, poder participar. Ó doutorzinho,
visto! Disso é que nós precisávamos. como é que é isso do Departamento de Imprensa Militar? Vai
O sócio: Ouça lá, como é que está então a situação do seu filho? pra lá quem não está apto ou também quem está?
O conselheiro imperial: Ficou livre, é uma preocupação a O Eterno Descontente: Perdão… (Eles deixam passar.)
menos. Mas a situação… a situação… acredite, lá por cima as O retroseiro: Mas qual apto qual quê? Vai pra lá quem sabe
coisas não andam bem. Uma coisa como a investida através da escrever, mas não quer andar aos tiros, embora queira que os
Bélgica… é o que lhe digo, um novo espírito ofensivo… outros andem.
O sócio: Arranje­‑nos uma Bélgica… e a gente cá faz a investida. O conselheiro imperial: Como é que é isso? Como é que ele
O doutor: Do que precisávamos era dum Bismarck… não quer andar aos tiros, por compaixão?
108 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 109
O retroseiro: Não, por prudência. Compaixão, na tropa não se O velho Biach: Pessimista o quê? O que é que quer mais, Lem‑
pode ter, e se ele está no Departamento de Imprensa Militar é berg ainda está nas nossas mãos!
como estar na tropa. O sócio: Está a ver?
O velho Biach: Esse Departamento de Imprensa Militar deve ser O doutor: Não há razões nenhumas para se estar pessimista. Na
uma coisa fantástica! Pode­‑se ver tudo. É mesmo junto à linha da pior das hipóteses, se as coisas ficarem decididas agora, é uma
frente e a frente é onde há a batalha, isso quer dizer que o Klein partie remise.
vai estar quase na batalha, pode ver tudo sem correr perigo. O retroseiro: E é o que lhe digo, quem me contou foi até um
O sócio: O que eu tenho ouvido dizer é que num campo de funcionário do ministério, a coisa é como se já estivesse feita.
batalha moderno não se vê nada de jeito. Quer dizer que no Nós vimos pela direita, os alemães pela esquerda, e damos­‑lhes
Departamento de Imprensa Militar se vê até mais do que se se um apertão que até ficam sem fôlego.
estivesse mesmo na batalha. O conselheiro imperial: Está bem… mas a Sérvia?
O doutor: De certo modo é assim, e pode­‑se até escrever sobre O velho Biach: (Enfurecido.) A Sérvia? Que é que tem a Sérvia?
várias frentes de combate ao mesmo tempo. A Sérvia a gente vai varrê­‑la!
O conselheiro imperial: O Klein é que escreveu aquela des‑ O conselheiro imperial: Não sei… é mais forte do que eu…
crição emocionante que veio nos jornais, de que a maior parte o comunicado de hoje… é preciso ser capaz de ler nas entreli‑
dos ferimentos dos nossos ocorrem nas faces exteriores das nhas e quando se pega no mapa… uma olhadela para o mapa
mãos e dos pés, donde se conclui que os russos privilegiam o mostra… mesmo o simples leigo… posso demonstrar­‑lhes, a
ataque de flanco… Sérvia…
O retroseiro: Pois, mas com um Roda Roda é que ele não se O velho biach: (Irritado.) Deixe­‑me lá em paz com a Sérvia, a
compara! Ainda há­‑de correr muita água pelo Dniepre abaixo Sérvia é um teatro de guerra secundário. Só serve pra me irri‑
até ele ser capaz de escrever como o Roda Roda! tar. Vamos lá pra dentro, estou com curiosidade de saber que
O conselheiro imperial: Do que eu gosto no Roda Roda é é que os ministros vão dizer hoje… proponho, meus senhores,
sobretudo que ele tem classe. Diz que amanhã vai ver como que nos sentemos logo na mesa ao lado. (Entram.)
está a batalha junto ao Drina e é o que faz. Isso é ter classe! (Muda a cena.)
O velho Biach: Por mais voltas que se dê, é o antigo oficial a
vir ao de cima… o espírito de corpo! O meu filho ficou livre,
mas ele interessa­‑se muito, até quer fazer uma assinatura do
Streffleur.27
O conselheiro imperial: Não sei, não sei… eu estou muito
pessimista.
110 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 111
CENA 8 O quarto: Mas olhe lá, porque é que pôs um nome desses ao seu
Uma rua dos arrabaldes. Vê­‑se a loja de uma chapeleira, estabelecimento, foi uma imprudência da sua parte.
uma agência Pathéphone, o Café Westminster e uma filial O dono do café: Mas, meus senhores, quem é que podia adi‑
da lavandaria Söldner & Chini. Entram quatro rapazes, vinhar, agora eu próprio fico embaraçado. Sabem, eu pus esse
um dos quais leva um escadote, tiras de papel e cola. nome ao estabelecimento porque aqui estamos mesmo ao pé
da Estação do Oeste, é aqui que os lordes ingleses costumam
O primeiro: Cá apanhamos mais um! Que é que tá aqui escrito? chegar na temporada turística, estão a ver, pra que eles se sin‑
“Salon Stern, Modes et Robes”. Isto é pra tapar duma ponta à outra! tam logo como em casa…
O segundo: Bem, mas o nome podia ficar, pra se saber que loja O primeiro: Mas olhe lá, mas então o senhor já teve algum lorde
é esta. Dá cá, vamos fazer assim: (cola e lê em voz alta) “Salo inglês no seu estabelecimento?
Stern Mode”. Assim tá bem. Isso é alemão. Vamos prà frente. O dono do café: Olá se tive! Aquilo é que eram tempos! Santo Deus!
O primeiro: “Patephon”, olhem pr’àqui, que é que é isto? É franciú? O primeiro: Dou­‑lhe os meus parabéns. Mas está a ver, agora é
O segundo: Não, é latim, isso pode ficar, mas ali… que é que que não pode vir nenhum!
está ali escrito? “Músicas alemãs, francesas, inglesas, italianas, O dono do café: Graças a Deus… Deus castigue a Inglaterra…
russas e hebraicas.” mas olhe cá, o nome já está tão enraizado, e depois da guerra
O terceiro: Que é que a gente faz co’ isto? quando, se Deus quiser, os clientes ingleses voltarem outra
O primeiro: Isso tem que ir tudo embora! vez… estão a ver, os senhores podiam ter compreensão.
O segundo: Vamos fazer assim: (cola e lê em voz alta) “Músicas O primeiro: A voz do povo não pode tomar coisas dessas em
alemãs… hebraicas”. Assim tá bem. consideração, meu caro senhor, e a voz do povo, o senhor sabe
O terceiro: Mas que é que é isto? Ah, olha qu’esta! Ali está escrito de certeza como é que é…
“Café Westminster”, cá a mim parece­‑me que isso é uma desig‑ O dono do café: Mas pois claro, como é que não havíamos de
nação inglesa! saber, afinal somos mais ou menos um café popular… mas…
O primeiro: Bem, mas isso só se pode fazer de comum acordo, como é que hei­‑de então chamar ao café?
isto é um café, o dono pode ser uma personalidade, inda aca‑ O segundo: Não esteja preocupado, a gente não lhe vai fazer
bávamos por ter chatices. Vamos pedir­‑lhe pra vir cá fora, mal… vamos já resolver a questão… e sem dor. (Raspa o “i”.)
esperai. (Entra no café e regressa num instante com o dono O dono do café: Mas… que… que é que… foi isso?
do café, que está visivelmente muito abalado.) O senhor de O segundo: Ora aqui está! E agora mande o pintor pôr­‑lhe aí
certeza que vai entender… é um sacrifício pela pátria… um “ü”…
O dono do café: É uma grande contrariedade, mas se os senho‑ O dono do café: Um “ü”? Café Westmünster…?
res pertencem à comissão voluntária… O segundo: Um “ü”! Vem a dar ao mesmo e é alemão. Granda
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pinta! Ninguém nota a diferença e, no entanto, ninguém pode Chini”! Isto é outra vez a mesma mistela do dono do café.
deixar de reparar que é uma coisa completamente diferente, “Söldner” quer dizer “mercenário”, logo é um inglês… e Chini
atão que é que me diz? é um italiano!
O dono do café: Ah, magnífico! Ah, magnífico! Vou já man‑ O primeiro: Deus castigue a Inglaterra e destrua a Itália… Isto
dar vir um pintor. Agradeço­‑lhes, meus senhores, pela com‑ é pra tapar de uma ponta à outra! Limpeza a seco? É limpar
preensão. Isto vai ficar assim enquanto durar a guerra. Para o tudinho! Tou cá c’uma raiva dos diabos… amanhã o bairro
período da guerra, serve. Depois, na verdade, preferia… pois tem de estar livre de todos os estrangeirismos, se apanho inda
que é que vão depois dizer os lordes, quando voltarem vão ficar algum, ponho­‑lhe as tripas ao sol! (O segundo cola uma tira
de olhos arregalados! por cima da tabuleta.)
(Dois clientes saem nesse momento do café e despedem­‑se um do O terceiro: O melhor é a gente separar­‑se agora, vocês dois
outro, um diz “adieu!”, o outro “addio!”) fiquem no trotuá, nós vamos vis­‑à­‑vis.
O primeiro: Mas que ouvi eu? O senhor tem frequentadores fran‑ O primeiro: Calha muito mal, mas hoje não posso acompanhar,
ceses e italianos! Um diz adieu e o outro diz addio? O senhor estou muito apertado de tempo, é que tenho um rendez­‑vous.
parece ter cá uma clientela internacional, aí há coisa suspeita… O segundo: Que malheur. Sem ti, a gente arrisca­‑se a ter um
O dono do café: Mas, olhe lá, alguém dizer adieu… conflito. A mim não se me dá nem se me deu, mas as pessoas
O segundo: Mas atão o senhor não ouviu o primeiro a dizer às vezes são impertinentes e…
addio? É a língua do inimigo hereditário! O quarto: Eu cá não me sinto touché com uma coisa dessas…
O terceiro: Do vil traidor! mas a gente podia ver­‑se metida no meio da mêlée. É certo que
O quarto: Do perjuro do Pó!28 comigo até agora não se passou nada…
O primeiro: Pois claro, o traidor era nosso inimigo hereditário! O Segundo: Percebo, é odioso, e eu sou sempre muito comme il
O segundo: O nosso inimigo hereditário, o que nos foi infiel! faut em afastar­‑me das pessoas num espírito de entente. Mas
O terceiro: No Pó! o que vocês não devem é deixar­‑se intimidar. Agora o clou da
O quarto: No Pó! Meta bem isso na cabeça! questão é ser resoluto e levar a cabo àtupris a acção patriótica
(O dono do café recuou aos poucos para dentro do em que nos engajámos.
estabelecimento.) O terceiro: Sim, é claro, mas já se sabe como as pessoas são, se
O primeiro: (Gritando na direcção dele.) Seu macarrão inglês do aparece alguém com o argumento de que a gente lhe está a dar
Pó! cabo da vida… põe­‑se com lamentações ou fica mesmo enragé,
O segundo: Bem, já demos uma boa lição nessa coisa dos estran‑ então…
geirismos! Vamos continuar. O primeiro: Mas por favor… é não fazer caso! Ou replicar tout
O terceiro: Olhem aqui, hoje estamos com sorte: “Söldner & court: agora há interesses mais altos! De certeza que ele vai cair
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em si. É que as pessoas são inteligentes. Nada de grandes dis‑ e que, graças ao desvelo do excelentíssimo inspector escolar do
cussões… onde é que se ia parar se a gente se fosse pôr no Estado e do digno inspector escolar do distrito, também deram
parlapiê com qualquer um… entrada nos vossos jovens corações não serão espezinhadas pela
O segundo: Mas se ele começa a ficar enragé… as pessoas não se férrea marcha dos batalhões, por mais indispensável que esta
ensaiam em pôr­‑se com ordinarices… seja nesta grande época, pelo contrário, elas vão ser cuidadas e
O primeiro: Nesse caso, é dizer­‑lhe que é um elemento subver‑ tratadas para sempre. Evidentemente que é necessário que cada
sivo e basta! Portanto… courage! Amanhã fazeis­‑me um rap‑ qual hoje esteja à altura, vós também, também tendes de tomar
port, eu vou estar de novo… Santo Deus, são cinco menos um a iniciativa e pedir aos senhores vossos pais ou encarregados
quarto, agora tenho que acelerar e já… senão vou chegar de de educação que vos dêem de surpresa de aniversário o bonito
certeza à bout de souffle… bem, desejo­‑vos uma boa soirée… jogo para jovens “Brincar à Guerra Mundial” ou, como o Natal
Salut… Adieu…! está à porta, o “Morte dos Russos”. Também vos quero dizer que,
O terceiro: Salut! para recompensar a vossa aplicação e bom comportamento,
O quarto: Servitore! naturalmente que com a autorização dos ilustres senhores vos‑
O segundo: Orrevoar! sos pais ou encarregados de educação, no domingo cada qual
O primeiro: (Voltando atrás.) Apropos, no caso de alguém recla‑ vai poder pregar um prego no Guerreiro de Ferro29 e, assim, ao
mar, só tendes que vos identificar como voluntários interinos encher de pregos este símbolo…
da comissão central provisória do comité executivo da Liga A turma: Grande malha!
para o Boicote Geral aos Estrangeirismos. Addio! (Um rapaz põe o braço no ar.)
(Muda a cena.) O professor: Que é que queres, Gasselseder?
O rapaz: Sôr professor, fáxavor, eu já prèguei um prego c’o meu
CENA 9 pai, posso inda prègar mais um?
Numa escola primária. O professor: Se os senhores teus pais ou encarregados de edu‑
cação derem autorização, da parte da direcção da escola não
O professor Zehetbauer: … Mas agora caíram­‑nos em cima há nada que obste ao teu desejo patriótico de uma renovada
ideais mais elevados, de maneira que o turismo ficou um pregação deste símbolo. (Um rapaz põe o braço no ar.) Que é
bocado para trás e só entra em linha de conta em segundo que queres, Czeczowicza?
lugar. Apesar disso, nada de desanimar, agora o nosso dever, Segundo rapaz: Fáxavor, preciso de ir lá fora.
depois de cada qual ter dado o seu óbolo à pátria, é prosseguir O professor: Lá fora? Ainda és muito novo, espera até chegares
firmes e destemidos o caminho por onde enveredámos. As a uma idade mais madura.
sementes delicadas do turismo que plantámos por toda a parte O rapaz: Mas eu preciso mesmo.
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O professor: Não posso satisfazer agora esse desejo. Tem vergo‑ Os alunos: Do fio, senhor professor, o senhor professor disse que
nha. Que é que te está a puxar lá para fora? tinha perdido o fio.
O rapaz: É que estou aflito. O professor: Sois uns patetas, não era em sentido figurado, mas
O professor: Espera até virem melhores dias. Estarias a dar um literal.
mau exemplo aos teus camaradas. A pátria está em aflição, tens Um aluno: Será que posso ir buscar o meu fio…
de seguir o exemplo. Agora é preciso é aguentar. (Dois rapa‑ O professor: Wottawa, também tu não me entendeste. Estou a
zes põem o braço no ar.) Que quereis, Karl Wunderer e Rudolf ver que não tendes maturidade. Queria fazer perguntas sobre
Wunderer? o “Cântico de Ódio”, mas por hoje vou­‑vos poupar a isso. Até
Ambos: Fáxavor, nós antes queríamos pregar um prego no cepo amanhã ides preparar os ideais que a grande época vos impõe,
de ferro.30 porque nessa altura eu já não vou poder fechar os olhos. O que
O professor: Já sentados! Tende vergonha. O cepo de ferro é um é que o senhor inspector escolar do concelho vai pensar se vier
símbolo onde já não há lugar para pregos. Mas o Guerreiro de visitar a turma e as coisas andarem assim. Agora, numa altura
Ferro há­‑de tornar­‑se um símbolo com a vossa enérgica ajuda, em que se espera que façais publicidade ao segundo emprés‑
um monumento de que os vossos filhos e os filhos dos vossos timo de guerra, ainda mais tendes o dever de não desiludir as
filhos ainda hão­‑de falar. expectativas. Portanto, tratai de aprender de cor o “Cântico de
O aluno Kotzlik: Senhor professor, o Merores passa a vida a Ódio” para amanhã! Não me canso de vos meter na cabeça:
dar empurrões! aguentai, contribuí com o vosso óbolo, fazei publicidade ao
Merores: Não é verdade, ele chamou­‑me judeu, vou dizer ao empréstimo de guerra, juntai metais, ide buscar o vosso ouro
papá, ele diz­‑lhe como é, manda a notícia prò Tagblatt. que jaz na arca sem uso! Mas, por hoje, ainda vou fechar os
O professor: Respeitai as tréguas, Kotzlik e Merores! Vamos olhos e rever convosco o turismo. Aumentai o dito! Já antes vos
agora ler o texto de hoje: “Cântico de Ódio contra a Inglaterra”. expliquei porque é que o turismo justamente agora não pode
Merores, já agora podes ficar de pé, responde­‑me à pergunta ser descurado. Embora a rude tempestade da guerra varra os
de quem é o poeta que escreveu este poema. nossos territórios e o nosso augusto monarca tenha chamado
Merores: Claro que sei, Frischauer. às armas milhares e milhares dos nossos filhos e irmãos, neste
O professor: Errado, senta­‑te. momento já são perceptíveis os primeiros indícios de um
Um aluno: (Soprando a resposta.) Lissauer. aumento do turismo. Por isso, nunca percamos de vista este
O Professor: Praxmarer, se voltas a soprar a resposta, mando­‑te ideal. Temos um belo texto para ler: “Um Rio de Ouro”. Mas
copiar o Príncipe Eugénio de Hofmannsthal.31 Já perdi o fio à não. Hoje vamos antes entoar a velha canção que aprendestes
meada. (Alguns alunos precipitam­‑se para o pódio e curvam­‑se.) outrora no tempo da paz, ainda vos lembrais? (Um aluno põe
De que é que estais à procura? a mão no ar.) Diz lá, Habetswallner!
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O aluno: Fáxavor, senhor professor, já sei, “Em Estalagem (Pega na rabeca, a turma entra na música e canta.)
Benfazeja”.32 A a a, o turista já cá está.
O professor: Errado! (Um aluno põe a mão no ar.) Diz lá, Chega de o cinto apertar,
Braunshör! O turismo já está a dar,
O aluno: “Fiel e Leal Sê Sempre”.33 A a a, o turista já cá está.
O professor: Nada disso! Devias ter vergonha! (Um aluno põe
a mão no ar.) Diz lá, Fleischanderl! E e e, manda vossa mercê.
O aluno: “Caminhar é o Prazer do Moleiro”.34 É tudo na maior e as moças é ver,
O professor: Senta­‑te! (Um aluno põe a mão no ar.) Diz lá, Da cabeça aos pés lindas de morrer,
Zitterer! E e e, manda vossa mercê.
O aluno: “Lá pra Longe é que Vamos”!35
O professor: Senta­‑te! Não somos nós que podemos agora ir pra I i i, nós queremos é pilim.
longe, os de lá de fora é que têm que vir para cá! (Um aluno Vá, da bolsa abri lá os cordões
põe a mão no ar.) Süßmandl, tu sabes a resposta? E nós, vereis, somos uns maganões,
O aluno: Fáxavor, preciso de ir lá fora! I i i, nós queremos é pilim.
O professor: Mas que ideia, eu não disse que isso agora não
pode ser, nem na turma nem quando sairdes para a vida. O o o, viva o forrobodó.
Então, nenhum de vós conhece a canção? (Um aluno põe a A bem ou mal vos vamos convencer,
mão no ar.) Então, Anderle? Sangue vienense é digno de se ver,
O aluno: “Que me Interessam Dinheiro e Haveres”.36 O o o, viva o forrobodó.
O professor: Senta­‑te na última carteira. Mas onde é que apren‑
deste isso? Tem vergonha, Anderle! Estou a ver que nestes U u u, ora descansas tu.
tempos férreos esquecestes a canção. E, no entanto, é a doce Viena será sempre uma canção,
velha canção com que outrora aprendestes as vogais. Devíeis Ficamos à vossa disposição,
ter vergonha. Ora bem, eu vou pegar na rabeca e vós ides logo U u u, ora descansas tu.
entrar na música sozinhos. (Um aluno põe a mão no ar.) (Muda a cena.)
O que é, Sukfüll, queres envergonhar a turma?
O aluno Sukfüll: “Cuidai do Turismo”!
O professor: Bravo, Sukfüll, tu pões toda a turma envergonhada.
Vou contar ao teu pai para que ele te dê um louvor.
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CENA 10 sss… um momento… três, quatro, não, cinco páginas inteiras.
No Café Pucher. Os ministros estão reunidos. Toda a gente se atropela para dar os parabéns ao jornal, as indi‑
vidualidades mais eminentes não têm pruridos.
Eduard: (Para Franz.) Ainda falta a Muskete, o Floh e o O conselheiro imperial: Eu escrevi hoje… preste atenção, vai
Interessantes…37 sair amanhã!
(Cinco pessoas que entraram instalam­‑se na mesa ao lado. O velho Biach: (Com nervosismo.) Se o senhor escreveu, tam‑
O primeiro­‑ministro dirige­‑se ao ministro do Interior.) bém eu vou escrever. Não é uma honra despicienda, numa
O velho Biach: Ia jurar que ele disse qualquer coisa sobre uma companhia assim…
bomba… O doutor: O que é cómico, estou agora a reparar… em todos
Eduard: (Traz as revistas ilustradas.) Desculpe, Inselência, já não os casos, nos milhares e milhares de felicitações, em todos os
precisa da Bombe? casos ele põe sempre a direcção: Ilustríssimo Senhor Moritz
O velho Biach: Ah, bem… Benedikt, Director da Neue Freie Presse, Viena I, Fichtegasse 11.
Os outros: (Todos ao mesmo tempo.) Que é que ele disse? Não posso deixar de dizer… há aí um bocado de vaidade! Ele
O velho Biach: Nada… enganei­‑me. podia dispensar o “Ilustríssimo” e, assim como assim, o ende‑
O conselheiro imperial: (Para o vizinho.) É interessante o que reço basta pô­‑lo 20 vezes.
vem hoje no Tagblatt… O sócio: Não diga isso. Uma pessoa nunca se cansa de o ouvir.
(O criado Franz acercou­‑se da mesa. Ouvem-se gritos sucessivos: O conselheiro imperial: (Quase ao mesmo tempo.) Eu não sou
“Para mim um duplo com natas”, “Para mim com espuma e mais dessa opinião, ele não quer mudar nada, as pessoas escreveram
claro!”, “Um galão e o jornal da tarde!”, “Um garoto bem tirado!”) assim, assim é que há­‑de sair no jornal, ele tem toda a razão!
O conselheiro imperial: E para mim café com leite, ou… não, O velho Biach: Que é que ele disse? Que é que ele disse?
sabe que mais, traga­‑me para variar uma bica curta e a Presse! O sócio: (Em tom conciliador.) Mas… nada… Lemberg ainda
O velho Biach: (Pegando na Neue Freie Presse.) Fantástico! está nas nossas mãos.
Todos: O quê? O retroseiro: Sobretudo, vê­‑se que todas as cartas são autênticas,
O velho Biach: Estão a ver, é impressionante, ele já há 14 dias que ora olhe aqui, Montecuccoli e excelências até mais não… sss…
comemora o quinquagésimo aniversário, sempre em primeiro O conselheiro imperial: Mas que é isso de Montecuccoli mais
lugar, depois vem a batalha de Lemberg com as impressões. as excelências? E Berchtold é um zé­‑ninguém? Mandou ontem
Ao menos, vê­‑se que ainda acontecem coisas boas na Áustria! as felicitações pelo próprio punho!
E, no fim e ao cabo, é uma coisa nunca vista. O baluarte da O velho Biach: Mas Berchtold o quê? Weiskirchner! Está aqui
fé, da ética e da cultura germano­‑liberais, é só ver os nomes mesmo em frente dos seus olhos, que é que quer mais? Não é
da lista dos parabéns… ora olhem aqui para isto, por favor… incrível? Weiskirchner, o anti­‑semita-mor! Ele dá­‑lhe os parabéns
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“com toda a sinceridade”. Que é que está aqui escrito? Muito O velho Biach: Sim, mas, ao mesmo tempo, estenografa.
bonito, de quem é que será, “a Neue Freie Presse é o breviário O sócio: Mas olhem aqui para a lista, nunca mais acaba…
de todas as pessoas cultas”. O doutor: Pois é, é triste.
O sócio: Mas isso é mesmo verdade. Que é que está aqui escrito? O sócio: Como assim, triste?
Interessante, a firma Dukes congratula­‑se por ter a mais cor‑ O doutor: Ah, bem, é que eu estava a olhar para a lista das baixas
dial das relações com o jornal. E é a maior empresa publicitária mais adiante, que casualidade ela vir logo a seguir aos nomes
de Viena! dos congratulantes.
O doutor: Ora veja aqui! Até Harden, que, como todos sabem, O velho Biach: Ora… que se há­‑de fazer, seja como for, é e
é o mais brilhante dos estilistas… o que é que ele escreveu, ele será um acontecimento de que os filhos dos nossos filhos ainda
chama­‑lhe, brilhante, ouçam como é que ele lhe chama, “chefe hão­‑de falar.
do estado­‑maior do espírito”! O conselheiro imperial: Isso é verdade, não é todos os dias
O retroseiro: É bem visto, mas não é original. Isso já estava que um jornal faz 50 anos.
numas dúzias de cartas, a verdade é que dizer isso é perfeita‑ O velho Biach: É muito certo, mas eu estava a referir­‑me…
mente evidente. a Lemberg.
O velho Biach: Pois claro, logo agora que a seguir se faz logo O conselheiro imperial: Mas quem está a falar de Lemberg?
menção de Lemberg! Os discursos no banquete foram tam‑ O doutor: (Olhando cuidadosamente em redor.) Infelizmente,
bém magníficos… não se pode negar que não é precisamente uma honra para
O sócio: Mas não foi no banquete, então o banquete não tinha nós.
sido cancelado por causa da guerra mundial? O velho Biach: O quê? Não é uma honra? Atreva­‑se a dizer uma
O conselheiro imperial: Por modéstia. coisa dessas em voz alta!
O retroseiro: Foi um cuidado excessivo. O doutor: (Baixinho.) Bem, o que eu queria dizer era que com
O velho Biach: Enfim! Bem, não foi um festim, mas mesmo Lemberg…
assim foi duma solenidade colossal. Se não houvesse guerra, O velho Biach: Mas quem é que está a falar de Lemberg? E se
havíeis de ter visto o que se tinha feito. Mas eles não quiseram alguém fica desalentado e esmorece por causa disso, só tem é
prescindir. Foi muito bonito eles todos a festejá­‑lo, o chefe da que se animar com o que vem na primeira página – o jubileu!
contabilidade e mesmo a distribuidora mais antiga. Tem assim O conselheiro imperial: Sabe o que é que eu acho mais
um lado familiar, uma festa da imprensa como essa. Ao que me impressionante? Não me impressiona o que vem na primeira
disseram, os discursos são logo estenografados. página, não me impressiona o que vem no meio, o que me
O conselheiro imperial: Mas o estenógrafo também dá os impressiona é o que vem nas últimas páginas! Está lembrado,
parabéns, não? no dia do aniversário, das 100 páginas de publicidade a bancos,
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de página inteira? Todos tiveram que abrir os cordões à bolsa, Uma pessoa fica no cerne da questão. Depois, ele põe­‑se a sal‑
em plena moratória, até às últimas! Pois é, a imprensa é uma tar dum lado para o outro, fala de Talleyrand, o que é que ele
força que não se deixa abanar… mas quando é ela que abana, disse à refeição e não tarda está­‑se no meio do compromisso
então vem tudo abaixo. húngaro.
O velho Biach: Que é que o senhor quer, o homem tem cá uma O velho Biach: O que mais me impressiona é quando ele diz
genica como não há mais ninguém na Áustria. Tem fantasia e que se pode fazer ideia de como é. Ou quando ele vem com a
sensibilidade e espírito e convicções e mete dinheiro em caixa fantasia, é fascinante como ele traz isso para a conversa, e uma
que é um louvar a Deus. pessoa imagina logo tudo, como se ele estivesse no meio do
O conselheiro imperial: Sabe, senhor Biach, quem é que me fumo da pólvora, Deus nos livre, e nós todos junto com ele.
faz lembrar a maneira de falar como o senhor acabou de fazer? Mas parece é que ao que ele dá mais valor é aos ambientes e às
O velho Biach: Quem é que o faz lembrar? Mas a quem é que impressões dos detalhes e é emocionante quando conta como
há­‑de fazer lembrar? é que eles incendiaram as paixões. Mas eu cá por mim tenho
O conselheiro imperial: A ele mesmo, com a quantidade que dizer que o que gosto mais de ler é quando ele imagina
dos “e”! como eles já estão a dar voltas na cama de noite, especialmente
O velho Biach: E então? É caso para admirar? Queira ou não Poincaré e Grey e mesmo o czar, quando estão já roídos de
queira, uma pessoa não escapa ao domínio dele! O senhor cuidados por os muros já deixarem passar água. “E talvez neste
leu inda outro dia, na edição vespertina, “Perguntas de leigo momento já esteja” e “talvez eles já tenham” e “talvez” e “talvez”,
e respostas de leigo”? Coisa fina, hem? Sobretudo na edição é dum dramatismo enorme! Disseram­‑me que ele dita o que
vespertina ele está nas suas sete quintas. Repete tudo outra escreve. Uma pessoa pode imaginá­‑lo a ditar um editorial. É o
vez. Quando correu a notícia que “Lemberg ainda está nas que lhe digo, a imaginação deleita­‑se só de pensar que quando
nossas mãos”, ele disse, aqui é sobretudo a palavrinha “ainda” ele dita os candelabros da redacção estremecem!
que chama a atenção e os olhos ficam presos nela e uma pes‑ O doutor: Mas eu por acaso sei, porque uma vez fui lá levar
soa pode imaginar como é. Ele dá sempre tudo e mais alguma pessoalmente uma queixa sobre o homem do estrume e as
coisa! “Ontem chegou a notícia… hoje chegou a notícia”, fica­ moscas…
‑se com isso às voltas na cabeça. Ele fala como a gente, mas O velho Biach: O senhor sabe o quê?
com mais clareza. Não se sabe se é ele que fala como a gente ou O doutor: Que eles não têm lá nenhuns candelabros!
a gente que fala como ele. O velho Biach: (Irritado.) Mas o que é que eles têm então?
O conselheiro imperial: Ora, e o editorial não conta pra Não me venha com essa, doutor, o senhor é um desmancha­
nada? Logo a primeira frase… há alguém capaz de o imitar? ‑prazeres de marca… têm candeeiros de pé, pronto! Tanto
“A família Brodsky é uma das mais ricas de Kiev.” E pronto. faz… os candelabros estremecem na mesma! A gente ainda
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tem ilusões, e acabou. Faz favor, traga a Blochische Wochen­ O velho Biach: …e já são dez horas e a minha Rosa está lá em
schrift38 e a Danzers Armeezeitung!39 casa e não gosta que eu chegue tarde e por isso proponho que
O sócio: Um momento! Agora… se agora se pudesse ouvir o que paguemos e vamos embora.
os ministros estão a dizer!… (Todos se põem à escuta. O velho (O criado vem com a conta, eles saem de cena virando­‑se ainda
Biach põe a cadeira mesmo ao pé da mesa dos ministros.) todos outra vez para olhar para a mesa dos ministros com uma
O primeiro­‑ministro: O Pschütt está hoje outra vez num estado, curiosidade envergonhada.)
neste sítio isso é mesmo arreliador… em vez de os criados O velho Biach: (Ao sair.) Acabámos de viver um momento his‑
fecharem as revistas bem fechadas, deixam­‑nas suspensas… o tórico. Por mais anos que viva, nunca hei­‑de esquecer a expres‑
que eles queriam era mesmo tomar todas as liberdades. Depois são séria do rosto do conde Stürgkh.
recebo um jornal assim todo aos pedaços… isto assim não tem (Muda a cena.)
lei, o fundamental é mandá­‑las reservar, é o mais simples.
O velho Biach: (Extremamente agitado.) Sabeis o que acabei de CENA 11
ouvir? Deus meu, ouvi muito distintamente as palavras: estado Dois que se desenrascaram encontram­‑se.
de sítio, fechar bem fechadas, deixar suspensas…
O sócio: Tsss…! O primeiro: Ora viva, inda estás em Viena? Não tinhas sido
O velho Biach: Suspensas todas as liberdades, a lei fundamental apurado?
aos pedaços! O segundo: Fui lá acima e desenrasquei­‑me. Então e tu, que estás
O conselheiro imperial: Ora, temo­‑la feita! a fazer ainda em Viena? Não tinhas sido apurado?
O doutor: Sabem uma coisa? Isto é uma sensação política kate‑ O primeiro: Fui lá acima e desenrasquei­‑me.
xochen, e em primeira mão, pode­‑se bem dizer! O segundo: Pois claro.
O velho Biach: (Orgulhoso.) Então, que é que me dizem? O primeiro: Pois claro.
O retroseiro: O seu dever é comunicar tudo ainda hoje à O segundo: Não sabes o que aconteceu ao Edi Wagner, será que
imprensa! ele conseguiu desenrascar­‑se? Foi em Outubro à inspecção,
O velho Biach: Pois, os tempos são graves… depois falou­‑se que o velhote lhe ia comprar um Daimler, por‑
O conselheiro imperial: …e quem sabe o que pode trazer o que o major dele, o Tschibulka von Welschwehr, prometeu que o
dia de amanhã… punha no batalhão automóvel, depois disse­‑se que ele ou ia para
O retroseiro: …e o Estado tem a obrigação de voltar a conter as Klosterneuburg para a Escola de Oficiais ou para uma fábrica
paixões que foram desencadeadas… de munições, para o escritório, claro, a seguir já se dizia que ele
O sócio: …e os ambientes são importantes… ia ser declarado indispensável no estabelecimento e o tio dele,
O doutor: …e a inquietação cresce… sabes, aquele que tem sido um mãos­‑largas com o hospital de
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reserva da Fillgradergasse, encontrei­‑o na altura e ele disse­‑me O primeiro: (Volta­‑se.) Está­‑se a referir a mim?
que se tudo o resto falhasse lhe arranjava um lugar na Cruz Ver‑ O assinante: A si? Eu nem o conheço, deixe­‑me em paz…
melha, já ninguém percebia nada, em suma, eu gostava mesmo O segundo: Pois isso mesmo é que nós queríamos… o senhor
de saber onde é que o pobre diabo acabou por ir malhar. nem faz ideia…
O primeiro: Isso posso­‑te eu dizer. O velho, forreta como ele é, O patriota: Mas por favor, meus senhores, por favor, este cava‑
voltou atrás com o Daimler e preferiu arranjar­‑lhe um lugar lheiro estava a falar de gente a safar­‑se do serviço militar em
na fábrica dinamarquesa de toalhas de papel, mas ele chateou­ França, por isso os senhores não precisam de se enervar tanto.
‑se de lá estar e então disse que antes queria ir prà tropa e foi Os senhores não são da França, pois não?
pra Blumau, mas ali depressa se fartou e agora passa as noites O primeiro: Ah, bom, perdão, bem, se isso não se refere à Áus‑
no Chapeau, umas vezes de uniforme, outras à civil, como é tria, então enganei­‑me, adeus, tive muito gosto! (Saem ambos.)
que o moço faz, isso pra mim é um mistério, o que imagino O assinante: Está a ver, e descarados, ainda por cima! O tipo
é que, quando viu que as cunhas não davam resultado, ele foi pensou efectivamente que ao falar de gente a safar­‑se do ser‑
lá acima e se desenrascou. Mas também pode ser que tenha viço militar em França nos estávamos a referir a ele.
ficado mesmo isento ou que tenha sido declarado inapto para O patriota: Provavelmente, é um francês que se pôs nas
o serviço. Olha, adeusinho, tenho um rendez­‑vous com uma encolhas e que anda aqui a fazer das suas, sabe­‑se lá, olhe,
alta personalidade, talvez consiga uma encomenda, e que aposto a minha cabeça se não era um desertor ou mesmo
encomenda, uma coisa de truz… um espião!
O segundo: Tens sempre uma destas vacas! Já te contaram que O assinante: Também fiquei mesmo com essa impressão.
o Pepi Seifert morreu em combate, sabes, na batalha de Rawa‑ O patriota: Aliás, passa­‑se cada coisa nos Estados inimigos!
ruska, adeusinho, tenho de ir a uma reunião no Departamento O assinante: A quem o diz! Para nos ficarmos só pela França,
de Assistência de Guerra, amanhã eles têm o chá e eu prometi não foram, por exemplo, convocadas segundas inspecções,
levar o Fritzi­‑Spritzi, o Sascha Kolowrat também vai, olha, tira­‑te veja bem, segundas inspecções!
das tamanquinhas e vem também, mais a tua boneca, adeusinho! O patriota: Mas não é só haver lá segundas inspecções… os que
O primeiro: Meu caro amigo, agora tenho mais que fazer, se con‑ ficam apurados têm também que ir para a frente de combate!
seguir, telefono­‑te, adeusinho… olha lá… a propósito… o que Li uma notícia sobre a “incorporação da segunda leva de ins‑
eu te ia a contar… (Entram um assinante e um patriota.) peccionados na França”!
O patriota: Jovens a vender saúde, já viu? Dava para formar um O assinante: E que me diz ao desgoverno da manutenção militar
batalhão inteiro na Ringstraße. francesa?
O assinante: Uma pessoa tem mesmo que ficar indignada. Que O patriota: Fecharam­‑se contratos para fornecimentos militares
vergonha, gente a safar­‑se do serviço militar em França! a preços de estarrecer.
130 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 131
O assinante: Nos fornecimentos de conservas e munições parece O assinante: Que hei­‑de dizer? A queda do rublo fala por si.
que se verificaram diferenças de preços muito estranhas. O patriota: Meu Deus, se compararmos, por exemplo, com a
O patriota: Pagaram­‑se preços especulativos por tecido, panos nossa coroa…
de linho e farinha. O assinante: A lira também está uma desgraça, baixou 30 por
O assinante: Certos intermediários fecharam negócios com cento!
grandes lucros. Eles trabalham com intermediários! O patriota: A coroa, felizmente, só baixou o dobro.
O patriota: Onde? O assinante: A propósito da Itália, você leu hoje como as coisas lá
O assinante: Ora, em França! em baixo já não têm ponta por onde se lhes pegue? O Messagero
O patriota: Que escândalo! queixa­‑se da deficiente recolha do lixo em Roma, o que lança
O assinante: E é em plena sessão pública do Parlamento que uma luz muito característica sobre a situação que lá se vive.
uma coisa destas é relatada! O patriota: Se compararmos com as nossas ruas de Viena! Como
O patriota: Como se isso fosse possível entre nós! Por sorte, se elas estivessem mais sujas na guerra do que na paz! Alguma
temos… vez se pôde ler uma só palavra num dos nossos jornais sobre
O Assinante: …o Parlamento fechado, quer você dizer…40 alguma coisa que neste aspecto, porventura, não estivesse em
O patriota: Não, a consciência tranquila. ordem? Bom, no máximo vem uma vez por outra na Presse…
O assinante: Foi o próprio Millerand que admitiu tudo, é impos‑ bem, qualquer coisa sobre “o homem do estrume e as moscas”…
sível evitar erros, disse ele, mas que se estão a tomar medidas mas isso também não deixa de ter interesse!
draconianas. O assinante: E isso são problemas que já foram parcialmente
O patriota: Eu cá inda não dei por nada! resolvidos. Você não leu: “Eliminação parcial do homem do
O assinante: Então e a Rússia? É muito característico que eles já estrume”? Ora aí tem!
se vejam lá obrigados a convocar a Duma e o governo não tem O patriota: Que me diz da Inglaterra?
remédio senão ouvir das boas. O assinante: Digo que na Inglaterra o preço da batata subiu de
O patriota: Entre nós isso seria impossível, por sorte, temos… maneira colossal.
O assinante: …a consciência tranquila, já sei. O patriota: Pois, e verifica­‑se até que lá o preço ainda é mais
O patriota: Não, o Parlamento fechado. baixo agora do que entre nós no tempo da paz. Está a ver como
O assinante: Então, e que me diz das colheitas? as coisas são?
O patriota: Digo simplesmente: más colheitas na Itália. Colhei‑ O assinante: Ora, e o tratamento dos nossos civis que foram
tas perdidas na Inglaterra. Perspectivas desfavoráveis para as internados? Você viu no jornal as privações que eles são obri‑
colheitas na Rússia. Preocupações por causa das colheitas na gados a passar? E você sabe a bela vida que os prisioneiros de
França. E que me diz aos câmbios, hem? guerra russos levam na nossa terra.
132 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 133
O patriota: E é claro que, em troca, eles permitem­‑se os maiores de ainda não ter lido o que vem hoje no jornal, olhe aqui,
desaforos. Chegou­‑me aos ouvidos que no Tirol, no Brenner, trago­‑o comigo, ora ouça: “Abusos das tropas russas contra
os fazem cavar trincheiras, só para lhes dar uma ocupação. prisioneiros de guerra obrigados a participar nas hostilidades.
E o que é que julga que eles fazem? Recusam­‑se, é o que eles O Departamento de Imprensa Militar comunica: desde que
fazem! Claro, é evidente que não se está com meias­‑medidas. os russos foram expulsos da Galícia, quase não passa um dia
Manda­‑se vir um destacamento de Innsbruck, perguntam­ sem que se descubra uma violação do direito internacional
‑lhes outra vez se querem cavar as trincheiras. “Não!”, é a res‑ pelas tropas russas de que ainda se não sabia, de modo que
posta. Apontam­‑lhes as armas. Era o que faltava pormo­‑nos hoje já não há praticamente um único artigo das convenções
com coisas, qual direito internacional, a guerra é a guerra. Mas de guerra que, comprovadamente, não tenha sido espezinhado
como cá na nossa terra é tudo uns bons­‑serás, tiveram ainda a pelo lado russo.”
paciência de lhes fazer a pergunta outra vez, a esses rebeldes. O patriota: Muito bem.
“Não”, responderam! Faz­‑se pontaria. E, é claro… você havia O assinante: Mas ouça…
de ter visto, de repente todos se oferecem, sim, querem cavar O patriota: Estou a ouvir.
trincheiras. Era tudo sem mais aquelas a esgadanhar­‑se por O assinante: “É assim que investigações policiais agora levadas
causa das trincheiras, é o que lhe digo. Quer dizer, todos menos a cabo nas partes da Galícia que estiveram ocupadas revelaram
quatro. Claro, é evidente que a esses fuzilam­‑nos, não podia ser que, com base numa ordem do comandante­‑em­‑chefe russo,
doutra maneira. Entre eles havia um alferes… ora ouça… durante todo o período da ocupação todos os homens e
O assinante: Estou a ouvir. mulheres minimamente capazes de trabalhar foram, além de
O patriota: Provavelmente o principal cabecilha. Tem o topete outras tarefas, especialmente encarregados à força…”
de se pôr ainda a fazer um discurso contra a Áustria, lá no alto O patriota: Mas que é que me está a dizer?
da montanha. Provavelmente um anti­‑semita. Ora ouça… O assinante: “…da construção de trincheiras e, para isso, foram
O assinante: Estou a ouvir. arrastados quase até aos Cárpatos. É claro que as autoridades
O patriota: Mas a nossa gente, quer dizer, os nossos soldados, russas não se ralaram com o facto de, segundo a Convenção de
bondosos como são, estavam demasiado nervosos ao dispa‑ Haia, ser expressamente proibido ao inimigo impor à popula‑
rar, não havia maneira de acertarem, acabou por ter de ser o ção civil do território ocupado tarefas conducentes a combater
capitão em pessoa a dar uma ajuda e a abater os tipos com o a pátria dela.”
revólver de serviço. Ora veja lá do que os russos são capazes cá O patriota: Não se ralaram! Cambada!
na nossa terra! O assinante: Mas ouça…
O assinante: Na nossa terra? Do que é que são capazes na terra O patriota: Estou a ouvir.
deles contra os prisioneiros austríacos, isso é que é! No caso O assinante: “Não admira, por conseguinte, que os russos, como
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agora pôde igualmente confirmar­‑se, usem indevidamente os O assinante: No alto do Brenner! Não há mesmo dúvida, não se
membros do Exército Imperial e Real caídos prisioneiros para passa um dia sem esses contrastes que bradam aos céus!
a execução de obras contra nós…” O patriota: O artigo do professor Brockhausen é que era exce‑
O patriota: Inconcebível! Exactamente o mesmo caso! lente, o modo como ele escreveu que entre nós nunca prisio‑
O assinante: “…embora isto infrinja do mesmo modo as nor‑ neiros indefesos foram escarnecidos nem com palavras.
mas da Convenção de Haia, segundo as quais os prisioneiros O assinante: E escreveu muito bem. Acho que foi nesse mesmo
de guerra não podem ser utilizados para trabalhos que estejam número da Presse que o governador militar de Lemberg fez
relacionados de qualquer forma com as acções bélicas. Quis saber que prisioneiros russos, durante o transporte pelas ruas,
um singular acaso que o 82.º Regimento de Infantaria Impe‑ foram insultados e espancados com paus por uma parte dos
rial e Real tivesse tomado recentemente de assalto um reduto que estavam a assistir. Ele constatou expressamente que isso
russo que membros feitos prisioneiros do mesmo regimento era um comportamento indigno de uma nação de cultura.
tinham sido obrigados a edificar. Numa tabuleta de madeira, O patriota: Ele admitiu que nós somos uma nação de cultura,
encontrou­‑se lá a seguinte inscrição em húngaro: ‘Este reduto não só os judeus.
foi construído por soldados székely do 82.º Regimento de O assinante: Evidentemente. Mas a verdade é que não há um
Infantaria.’ Este coagir de pessoas com a nacionalidade austro­ único ponto em que não nos distingamos dos inimigos, ou não
‑húngara à participação nas hostilidades contra a sua pátria fossem eles a escória da humanidade.
não surge como correlativo da deportação de cidadãos aus‑ O patriota: Por exemplo, distinguimo­‑nos pelo tom delicado
tríacos recentemente noticiada, mas sim como uma medida que adoptamos mesmo perante os inimigos, apesar de eles
complementar ao sistema de combate russo.” – Então, que é serem a maior cáfila que Deus ao mundo deitou.
que me diz agora? O assinante: E sobretudo, diferentemente deles, somos sempre
O patriota: Tipicamente russo! É inaudito! É verdade, não humanos! A Presse, por exemplo, no editorial, não se esqueceu
surge como correlativo, é mesmo uma medida complementar! até dos peixes e dos bichos marinhos do Adriático, ao dizer que
E entre os pobres soldados austríacos, provavelmente nenhum eles agora vão passar bem com tantos cadáveres italianos que
se atreveu a recusar­‑se. vão ter para comer. A isto chamo eu já verdadeiramente exa‑
O assinante: Pois, nem todos têm assim o topete dum alferes gerar o espírito de humanidade, em tempos endurecidos como
russo! são estes estar ainda a pensar nos peixes e nos bichos marinhos
O patriota: Fazer um discurso contra o Estado lá em cima no do Adriático, numa altura em que mesmo seres humanos têm
meio da montanha. de passar fome!
O assinante: Lá no alto dos Cárpatos. O patriota: Pois é, não há dúvida que ele às vezes é um exa‑
O Patriota: Quais Cárpatos? No alto do Brenner! gerado. Mas… dá­‑lhes a valer! E não é só a humanidade em
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tempo de guerra que nos superioriza a eles, mas uma coisa que O assinante: Eles em sítio nenhum conseguem aguentar tão
é ainda muito mais valiosa – a capacidade de resistência! Nos bem como nós.
outros já reina em toda a parte o desânimo. Bem gostariam eles O patriota: O vienense, em especial, é um aguentador de
que já tudo tivesse acabado. Entre nós… primeira. Cá na nossa terra suportam­‑se todas as privações
O assinante: Isso também já me chamou a atenção. Por exem‑ como se fosse um divertimento.
plo, na França reina o desânimo! O assinante: Privações? Que privações?
O patriota: Apatia na Inglaterra! O patriota: Quer dizer, se por acaso houvesse privações…
O assinante: Desespero na Rússia! O assinante: Mas felizmente não há!
O patriota: Arrependimento na Itália! O patriota: É verdade. Não há. Mas diga­‑me cá… se não se
O assinante: Enfim, os estados de espírito na Entente! passa privações… então mas porque é que é preciso aguentar?
O patriota: Os muros deixam passar água. O assinante: Isso posso­‑lhe eu explicar. É certo que não há pri‑
O assinante: Poincaré está roído de cuidados. vações, mas as pessoas suportam­‑nas como se nada fosse…
O patriota: Grey está desalentado. essa é que é a habilidade. Nisso é que desde sempre nós fomos
O assinante: O czar dá voltas na cama. bons.
O patriota: Angústia na Bélgica. O patriota: Ora aí está. Fazer bicha, por exemplo, é uma paró‑
O assinante: Isto alivia! Desmoralização na Sérvia. dia… é mesmo por causa disso que as pessoas vão para a bicha.
O patriota: Assim até dá gosto! Desespero no Montenegro. O assinante: A única diferença em relação a antes é que agora há
O assinante: Dá pra ter ainda esperança! Consternação na quá‑ guerra. Se não houvesse guerra, quase se poderia acreditar que
drupla aliança. há paz. Mas a guerra é a guerra, e nestas alturas tem de se fazer
O patriota: Uma pessoa sente­‑se como nova! Dúvidas em Lon‑ muitas coisas que antes se teria só querido fazer.
dres, Paris e Roma. Basta mesmo olhar só para os títulos, nem O patriota: Isso mesmo. No nosso país nada mudou. E se uma
é preciso continuar a ler, a gente vê logo em que pé é que as vez quando o rei faz anos se fazem cá segundas inspecções, é
coisas estão. Vê­‑se a situação desgraçada em que eles se encon‑ coisa digna de se ver, eles nem vêem a hora de ir prà frente de
tram e como tudo nos corre bem a nós. Estados de espírito combate, os nossos jovens de até 50 anos.
também nós temos, mas, graças a Deus, um bocado diferentes O assinante: Os anos mais adiantados ainda nem sequer foram
dos deles! à inspecção.
O assinante: Entre nós reina a alegria, a confiança, a satisfação, O patriota: Você viu no jornal, “Chamada dos que têm 19 anos
a esperança, o contentamento, estamos sempre bem­‑dispostos, em Itália”? O simples título já diz toda a terrível verdade.
porque não havemos de estar se a gente é que temos razão? O Assinante: Não, deve­‑me ter escapado. Não me diga, gente tão
O patriota: Aguentar a pé firme, por exemplo, é a nossa paixão. jovem! Cá, sempre tem que se ser já mais velho, agora, se não
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me engano, ainda calha a vez aos que têm 50 anos feitos, mas mercadoria mais cedo, e o ministro da Guerra, por seu turno,
claro que só para a retaguarda, ainda há suficientes dos de 49 diz que ela está a fazer falta. Que é que quer que lhe diga, as
anos na frente de batalha. coisas andaram assim durante seis meses dum lado prò outro
O patriota: Na França estão já a chamar à inspecção os homens entre o Ministério da Guerra e o das Finanças. Todo o tempo
de 48 anos! que durou a Batalha dos Cárpatos. Então a firma resolve­‑se e o
O assinante: Quer dizer, gente de cabelo grisalho! Os mais Katzenellenbogen de Berlim, você sabe, o que é o nosso braço­‑
novos parece que já se esgotaram. Nós, em Março, saímos cá ‑direito especialmente no Ministério da Guerra, intervém pes‑
pra fora com os de 17 anos, vai ser uma alegria. soalmente. Lá foi ao ministro das Finanças e diz­‑lhe na cara:
O patriota: Claro, esses são os anos mais bonitos! Sabe onde “Isto assim não pode ser!” O ministro das Finanças diz que
é que está também a diferença? No equipamento. Isso é que não pode resolver as coisas assim sem mais. Diz­‑lhe o Katzen­
é o mais importante. Mas entre nós uma coisa dessas é sim‑ ellenbogen, enérgico como ele é, você sabe a genica que ele
plesmente evidente, não se faz nenhum estardalhaço por causa tem, diz­‑lhe então o Katzenellenbogen: “Primeiro, a firma vai à
disso. Você leu no jornal de hoje: “Preocupações em Itália por falência, depois, os cobertores de lã ficam estragados, estão ao
causa da roupa quente de montanha para os soldados”? ar livre a apanhar humidade e frio, já se foram quase todos…”
O assinante: Olhe as preocupações que eles têm! O assinante: Quem?
O patriota: Cá ninguém se preocupa nem um bocadinho com O patriota: Ora, os cobertores de lã! É que eles estão empilhados
isso. Ninharias! Faz­em‑se as encomendas e pronto. Você conhece ao ar livre.
certamente a história dos cobertores de lã? Ou não conhece? O assinante: Quem?
O assinante: Não. O patriota: Ora, os cobertores de lã! Mas que perguntas são essas?
O patriota: Aí tem você um exemplo magnífico de como as coi‑ Ora bem, diz ele categoricamente, primeiro, a firma vai à falên‑
sas no nosso país funcionam sem mais. Feiner & Cia. assinam cia, depois, os cobertores de lã ficam estragados e, em terceiro
um contrato para o fornecimento de milhão e meio de cober‑ lugar, no fim de contas eles estão também a fazer falta aos sol‑
tores de lã importados da Alemanha, o nosso Ministério da dados. O ministro das Finanças encolhe os ombros e responde­
Guerra achava que era mais ou menos essa a quantidade neces‑ ‑lhe que não está na mão dele, o processo tem que correr os seus
sária para os Cárpatos no Inverno. Mas também não se levou trâmites. Primeiro a alfândega, depois os cobertores…
a coisa para o trágico, porque se contava com a vitória final O assinante: Mas então porque é que o Ministério da Guerra
ainda antes. Ora, quando as coisas, apesar disso, se complica‑ não pagou?
ram, vem de repente a ordem: “Tudo muito bem, mas antes O patriota: Boa pergunta! O ministro da Guerra foi de opinião
é preciso cumprir as formalidades alfandegárias.” O ministro de que não estava na sua mão, primeiro o processo tinha que
das Finanças nem à lei da bala se deixa demover a libertar a correr os seus trâmites.
140 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 141
O assinante: O processo da alfândega? Mas isso não foi o minis‑ O patriota: Chega­‑se à conclusão de que os soldados já não têm
tro das Finanças que declarou? qualquer precisão dos cobertores de lã. É que, primeiro, já não
O patriota: Nada disso, o processo relativo à autorização de estava assim tanto frio nos Cárpatos e, depois, assim como assim
pagamento à alfândega! à maior parte já os pés tinham gelado. – Bem, e agora pergunto eu:
O assinante: Ah, bom, mas e então que é que aconteceu? Já será que nós andamos preocupados por causa de cobertores de lã?
estou em pulgas… O assinante: Os italianos sim! Agora é que eles vêem como é!
O patriota: Que aconteceu? O Katzenellenbogen vai lá outra Que me diz você à carestia dos bens alimentares em Itália?
vez e diz­‑lhe na cara: “Excelência”, diz ele, “o Ministério da O patriota: Sobre isso não li nada, só vi uma notícia sobre as más
Guerra não cede.” Diz ele: “Vou­‑lhe dizer uma coisa. Na prática colheitas na Itália.
comercial é costume, quando um cliente momentaneamente O assinante: Não está a confundir com as más colheitas na
não pode pagar, uma pessoa o que faz é tirar informações e, Inglaterra?
se o que lhe disserem é que se trata dum cliente de confiança, O patriota: Isso já é um outro capítulo, da mesma maneira que,
então é costume dar­‑lhe uma prorrogação do prazo de paga‑ por outro lado, é preciso distinguir a escassez de bens alimen‑
mento. Excelência, vou­‑lhe dizer uma coisa, tire informações tares na Rússia.
sobre o Ministério da Guerra, o que lhe vão dizer é que ele é O assinante: Ora, ora, em toda a parte é a mesma coisa. E, por
de confiança… que é que quer mais, dê­‑lhe uma prorrogação!” exemplo, também em toda a parte já começaram com as listas
Ora bem, ele viu que isto fazia sentido. Concedeu­‑se uma pror‑ de baixas.
rogação e os cobertores de lã foram entregues. O patriota: Pois, precisamente como cá, eles imitam tudo…
O assinante: Ora pois, então tudo acabou pelo melhor? O assinante: Desculpe, que é que está a dizer? Mas então nós
O patriota: Até aqui, sim. Mas nessa altura já estávamos em temos…
Março. Ora que é que acontece, quando se vai a desempaco‑ O patriota: Pelo contrário, entre nós começaram agora com a
tar os cobertores, estão eles completamente estragados. Então lista diária das baixas inglesas.
pegou­‑se em refugiados e mandou­‑se aproveitar o que se podia O assinante: Também já tinha reparado nisso, enquanto a nossa
cosendo aos dois e dois, e quando finalmente se chega a Abril só é publicada lá de longe a longe.
e tudo parecia estar em ordem, só é pena que por duas vezes O patriota: Pois é, que é que queriam, que falsificássemos e que
o preço da encomenda, afinal um trabalho desses tem que ser inventássemos nomes? No máximo tivemos este ano pr’aí uns
pago, já viu o que é remendar milhão e meio de cobertores de 800 feridos!
lã… ora pois, quando tudo estava pronto, a que conclusão é O assinante: Na Itália não sai nenhuma lista. Não acha que isso
que julga que se chega? é mais que suspeito? A verdade é que eles não são capazes de
O assinante: Diga lá! admitir as hecatombes que já sofreram.
142 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 143
O patriota: Por falar na Itália, viu a notícia: “Demissão dum O patriota: E porque é que havia de se permitir? Só se mentisse!
general italiano”? Por incompetência demonstrada na frente Veja bem, mesmo na Inglaterra eles dizem a verdade, desde o
de batalha! E diz­‑se que vai haver mais demissões! momento em que são obrigados a admitir que as coisas não
O assinante: Tchhh…! Parece impossível! Se já alguma vez cá se lhes correm bem.
ouviu coisa parecida, que um general… O assinante: Aquilo é que devem ser uns belos patriotas por
O patriota: Bem, bem, isso já. aquelas bandas. Há pouco tempo houve um lá que escreveu
O assinante: Por incompetência? que a Inglaterra merece ser destruída pela Alemanha. Ora,
O patriota: Também! mas esse pagou bem caro. Sabe com quanto é que apanhou?
O assinante: Mas pelo menos não teve oportunidade de a Catorze dias!
demonstrar na frente de batalha! O patriota: (Levando as mãos à cabeça.) Pena de prisão por fazer
O patriota: Isso não, aí você tem razão. A propósito, você sabe críticas na Inglaterra. Lindo estado de coisas! Catorze dias!
que também já há refractários na Itália? O assinante: Pois, é que esses senhores não gostam de ouvir
O assinante: Mas onde havia de ser senão na Itália? E isto mal eles essas coisas, não são capazes de suportar a verdade. Mas entre
começaram a guerra! Mas sabe o que eles também já introduzi‑ nós também nenhum jornalista se deixaria levar a um ponto
ram? A censura! Aliás, a liberdade de expressão do pensamento desses.
parece que anda pelas ruas da amargura por todo o lado. Nem O patriota: Ora, e na França, acha que a situação é melhor? Nem
uma palavrinha livre se pode por lá dizer, foi o que me contaram. um niquinho! Você não leu o que vinha na Presse justamente
O patriota: O mais que os jornais de lá estão autorizados a hoje: “Penas de prisão por divulgar a verdade em França”? Está
escrever é que a nossa situação militar está muito melhor que a ver, porque alguém disse a verdade! Neste caso, uma senhora
a deles. Pois é, a verdade acaba sempre por vir ao de cima. Os – ela disse que a Alemanha estava preparada para a guerra,
críticos militares ingleses caracterizam a situação dos países da mas a França não. Pois é, se alguém uma vez lhes diz a verdade
Entente como desesperada. na cara…
O assinante: Linda maneira de governar, consentirem uma O assinante: Não, eles não suportam isso, os cavalheiros que
coisa dessas! Se alguém cá quisesse dizer uma coisa assim, que mandam na França! Fazer guerra sim, isso já lhes convém,
é que não lhe acontecia! atacar sem mais aquelas a Alemanha, um vizinho pacífico, isso
O patriota: Se ele quisesse dizer que a situação dos países da já lhes convém…
Entente é desesperada? O patriota: Palavras que valem quanto pesam, a Alemanha está
O assinante: Não, se quisesse dizer que a situação das Potências a travar uma guerra defensiva, ninguém na Alemanha estava
Centrais é desesperada. Era justo era que o enforcassem. Nin‑ preparado para a guerra, os círculos da indústria pesada foi lite‑
guém aqui se permite um desaforo desses. ralmente como se tivessem levado uma marretada na cabeça.
144 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 145
O assinante: Evidente, e se aquela desgraçada na França diz em O assinante: Pois claro, o que a gente lê nas notícias é como eles
palavras singelas uma verdade tão simples, que mesmo um lá dizem a verdade ao governo nos jornais e o chorrilho de
leigo é capaz de entender… mentiras que dizem sobre nós. Tudo pura maldade. Se a gente
O patriota: Não, você agora enganou­‑se, a mulher foi mas é con‑ fosse a acreditar no que os jornais de Londres escrevem a nosso
denada porque… respeito, ia­‑se julgar que a Inglaterra está nas últimas.
O assinante: Ora, porque disse a verdade! O patriota: Ora, ora, quem é que acredita numa coisa dessas!
O patriota: Mas o que ela disse foi que a Alemanha estava pre‑ Entre nós, as pessoas sentem de uma maneira completamente
parada prà guerra… diferente. A mentalidade, foi o que me disseram, é completa‑
O assinante: Pois, mas a verdade é que a Alemanha não estava mente diferente. Graças a Deus. Os nossos jornalistas pode­‑se
preparada prà guerra… dizer que estão ainda mais entusiasmados que os nossos solda‑
O patriota: Mas o que ela disse foi que a Alemanha estava mesmo dos. Especialmente na secção cultural.
preparada prà guerra… O assinante: Já que fala na secção cultural… queria­‑lhe contar
O assinante: Ora, mas isso é mas é uma mentira! uma coisa, você sabe quem temos hoje de visita? Adivinhe, o
O patriota: Bom, mas ela foi condenada foi por ter dito a verdade… maior escritor vivo, Hans Müller!
O assinante: Mas então porque é que ela foi condenada? O patriota: Olhe, pode dizer­‑lhe que tudo o que ele escreve é
O patriota: Ora, por ter dito que a Alemanha estava preparada como se me saísse do fundo do peito! Como é ele em pessoa?
para a guerra! Gostava de saber. Ensolarado e encantador, não há palavras
O assinante: Mas como é que ela pode ser condenada por causa que se apliquem melhor ao estilo dele. Foi mais do que encan‑
disso na França, por causa disso ela devia era ser condenada tadora a maneira como em Berlim deu uma beijoca em plena
na Alemanha! rua a um simples soldado e depois a oração na igreja pelas
O patriota: Como assim?… Um momento… não… ou sim… armas coligadas no fim do artigo! Ele é o meu especial favo‑
olhe, eu cá pra mim explico a coisa simplesmente desta rito! Nenhum desses todos que pr’aí escrevem, mesmo Roda
maneira: é claro que ela disse a verdade, mas na França, da Roda, Salten, captou o ombro com ombro como ele, pode­‑se
forma que aquela gente é, foi condenada por ter mentido! verdadeiramente dizer que ele escreve literalmente ombro com
O assinante: Um momento, você aí baralhou­‑se. Eu acho que é ombro – por exemplo, com Ganghofer. Até se pode equiparar
antes assim: ela mentiu e foi condenada porque eles na França a este! No princípio, quando ele escreveu o artigo da frente
não suportam a verdade. de combate, “Cassiano na linha da frente”, tão autêntico, tão
O patriota: Está a ver, deve ter sido mesmo isso! Sabe, está­‑lhes entusiástico, uma pessoa acreditava mesmo que ele estava na
na massa do sangue! As pessoas lá não conseguem impedir­‑se linha da frente. Só depois, por puro acaso, é que soube que
de dizer certas coisas. ele está em Viena. Ele até escreveu o artigo mesmo em Viena!
146 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 147
O jeito que ele tem! Que talento! O que eu gostava de saber era: Nem acredito no que me está pr’aí a contar. Se calhar está a
como é ele em pessoa? confundi­‑lo com outro.
O assinante: Em pessoa… é difícil de dizer. De momento, está O assinante: Ele é que ficava contente se depois de amanhã na
muito angustiado; desgraçadamente, depois de amanhã tem inspecção o confundissem com outro.
de ir à inspecção. O patriota: Olhe lá, isso deixa­‑me aborrecido! Só posso imaginar
O patriota: Ah sim, mas porque é que ele está angustiado? é que você não está bem informado. Quando alguém escreveu
O assinante: Ora, por causa da inspecção! como escreveu o Hans Müller, tão autêntico, tão entusiástico,
O patriota: Angustiado? Porque está cheio de medo de não ficar não pode deixar de ficar contente se ficar apurado…
apurado? O assinante: (Irritado.) Então… então eles são obrigados a apu‑
O assinante: Não percebo o que está a dizer, ele está angustiado, rar todos? Todos têm de ficar contentes? Já não se pode ter
é evidente, porque receia que vá ficar apurado! outras preocupações? Não basta ele estar entusiasmado? Não,
O patriota: Não se faça de engraçado. Hans Müller? O Hans tem de prestar serviço militar! Logo ele? Você nem as pensa!
Müller que se esfarrapa pela pátria? Ora essa! É que eu nunca Como se estivesse ansioso por o ver a fazer exercícios. Mas
ouvi falar de ninguém que desse tanto a impressão como ele você está a preocupar­‑se sem motivo e oxalá que ele também.
de que está disposto a dar a vida pela união dos Nibelungos!41 E se ele ficar apurado… felizmente que hoje já se sabe quem
E eu que tinha a ideia de que naquela altura ele regressou de é Hans Müller! Hão­‑de dar­‑lhe uma colocação apropriada ao
propósito da Alemanha, onde foi dar um abraço aos guerrei‑ seu talento!
ros, à nossa tropa de cotim, porque está em pulgas, porque O patriota: Você viu que eu estou de acordo consigo em tudo…
quer oferecer­‑se voluntário! Ele vai ficar mas é feliz e contente, mas quanto a essa questão os nossos pontos de vista são dife‑
foi o que pensei, se eles o apurarem… E se não o apurarem, rentes! Eu acreditei em Hans Müller e o que sou obrigado
sabe Deus do que será capaz! a ouvir deixa­‑me decepcionado. Você, é evidente, assume
O assinante: Como assim, mas você não ouviu, o artigo da frente a perspectiva do assinante, para si, um talento como o dele é
de combate era de Viena, e foi com isso mesmo que você ficou indispensável…
impressionado, com o jeito que ele tem pra escrever da frente O assinante: E você observa tudo como patriota… onde é que
de combate em Viena? iríamos parar! Adeus, vou ver se encontro uma edição especial.
O patriota: O artigo da frente de combate, o que eu pensei foi E você, que vai fazer?
que ele o tinha escrito por estar ofendido por não ter ficado O patriota: Eu vou contribuir c’o meu óbolo. (Saem em direcções
apurado, se calhar… só pra mostrar como é! Ele queria opostas.)
demonstrar­‑lhes o jeito que não teria para escrever da linha da Um ardina: Ediçããão especiaaaaal…! Olhàs notícias!
frente desde o momento em que estivesse na linha da frente! (Muda a cena.)
148 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 149
CENA 12 CENA 13
Entram um gigante à paisana e um anão de uniforme. Eléctrico Baden­‑Viena. Um homem completamente bêbedo,
talvez carregador de mudanças na vida civil,
O gigante: Você é que tem sorte, pode tornar­‑se útil à comu‑ estatura gigantesca, bigode hirsuto, calças xadrez,
nidade. A mim, o médico do regimento mandou­‑me logo que evidenciam os traços de um consumo imoderado de vinho
embora. e de uma recém­‑sofrida expulsão à força do local do crime.
O anão: Por que motivo? Traz um saco ao pé, do qual tira de vez em quando uma
O gigante: Por não ter força que chegue. Quer dizer, de acordo garrafa. Envolve­‑se em conflito com um casal porque
com o velho resultado da inspecção, de há 15 anos. Nessa altura foi de encontro à rapariga, ameaça o acompanhante dela
tinha o mesmo aspecto que você tem agora. e berra durante toda a viagem.
O anão: Se é assim, admiro­‑me que não tenham querido que
você ficasse. A mim, o médico mal me viu fiquei logo apurado. O bêbedo: Olhò fedelho… agora a armar­‑se… mas qu’é que você fez
A mamã ficou tristíssima. pla pátria? Mostre lá os seus documentos! Jàqui à minha frente!…
O gigante: Que filhinho da mamã você me saiu. Olhe pra mim… tenho filhos como você no campo de batalha…
O anão: Mas eu estou contente. Cresce o homem quanto mais e têm mais barba que você… eles tão a fazer alguma coisa… pla
alto aspira.42 A princípio, é certo que tive dúvidas sobre se pátria… Você sabe donde é qu’eu venho… venho de Baden…
estaria à altura desta grande época e se estaria em condições olhò fedelho… já disse pra mostrar os documentos… Mas qu’é
de combater ombro com ombro. Mas à paisana só se ouvem que julga… olha qu’este… aí a armar­‑se… se calhar é porque
piadas e da tropa regressarei como um herói sobre cuja cabeça vem co’a miúda… mas qu’é que você fez pla pátria?… Olhe pra
muitas balas hão­‑de ter passado. Os outros atiram­‑se para o mim… eu faço alguma coisa… pla pátria… Se a gente nos pusés‑
chão, mas eu… fico de pé! semos todos a armar como ele… Mas qu’é que você quer? Disse
O gigante: Seu felizardo! alguma coisa que o ofendesse?… Olhò fedelho… eu faço alguma
O anão: Deixe lá, a culpa não é sua. A junta é que decide. coisa… mostre os seus documentos… ora olh’aqui… sabe o qu’é
O gigante: Eu safei­‑me limpinho. isto… um postal militar do meu sobrinho… pla pátria… Olhò
O anão: A mim, o médico topou­‑me logo. fedelho… já lhe disse pra mostrar os documentos… o fedelho…
O gigante: Vamos comer, estou com uma fome de gigante. tem que me mostrar os documentos a mim… não fez nicles…
O anão: Eu como qualquer coisinha. pla pátria… (Depois de se ter acalmado um pouco com algumas
Um ardina: Edição especiaaal…! Olhàs notícias! palavras que lhe dirige o condutor, um homem de aspecto franzino,
(Muda a cena.) oferece a garrafa aos circunstantes, sobre quem vai caindo à vez.)
Vai um golinho, patrão… cá a gente semos austríacos!
150 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 151
Um casal de refugiados da Galícia: Valha­ ‑nos Deus! CENA 14
(Mudam de lugar à pressa, mas deixam o guarda­‑chuva esque‑ Em casa da actriz Elfriede Ritter, recém­‑regressada
cido no lugar anterior.) da Rússia. Malas meio desfeitas. Os repórteres Füchsl,
O bêbedo: (Já só a balbuciar.) O fedelho… pla pátria… os papéis… Feigl e Halberstam43 seguram­‑lhe nos braços
O funcionário das Finanças: (Aparece.) Que é que leva aí e assediam­‑na com perguntas.
embrulhado?
O bêbedo: (Em voz surda.) Fedelho… pla pátria… papéis… (Ao Os três: (Todos ao mesmo tempo.) Ficou com marcas das nagaikas?44
fim de uma longa conversa, resolve­‑se a abrir o embrulho e a Ora mostre! Precisamos de pormenores, de detalhes. Que nos
pagar uma taxa de 20 centavos. Enquanto isto dura, o eléctrico diz dessa moscovitagem? Com que impressões ficou? De cer‑
mantém­‑se parado.) teza que passou por coisas horríveis, ouça bem, de certeza
Um vienense: (Que ocupou entretanto o lugar onde antes esteve absoluta!
sentado o casal de refugiados.) E tem a gente que ficar aqui Füchsl: Descreva como a trataram como uma prisioneira!
à espera por uma ninharia assim! Nesta linha passa a vida a Feigl: Dê­ ‑me as impressões da sua estada, para a edição
haver chatices destas! Já começo a ficar cheio! (Desce do eléc‑ vespertina!
trico com o guarda­‑chuva. Chove. O bêbedo desce agora tam‑ Halberstam: Dê­‑nos o ambiente da viagem de regresso, para a
bém do eléctrico, que se põe de novo em movimento.) edição da manhã!
O bêbedo: (Já na rua, outra vez mais animado.) Pla pátria… ele Elfriede Ritter: (Fala com sotaque do Norte da Alemanha, sor‑
tem… tem que mostrar os papéis… fedelho… não fez nicles… ridente.) Meus senhores, agradeço o vosso solícito interesse,
pla pátria… é verdadeiramente comovente que os meus queridos vienen‑
O casal de refugiados: (Suspira de alívio e volta para os luga‑ ses continuem a ter tanta simpatia por mim. Agradeço­‑vos de
res anteriores. Depois de um pedaço, levantando­‑se de repente.) todo o coração que tenham mesmo feito questão de vir pes‑
Onde está o guarda­‑chuva? Meu Deus, onde está o guarda­ soalmente. De bom grado deixaria o desfazer das malas para
‑chuva? Senhor condutor, viu o guarda­‑chuva? mais tarde, mas, por mais que queira, meus senhores, não
(Muda a cena.) tenho mais nada para dizer, a não ser que foi muito, muito
interessante, que não me aconteceu absolutamente nada, bem,
e que mais, que a viagem de regresso foi, é certo, demorada,
mas de modo nenhum penosa e (com ar travesso) que estou
contente por estar de novo na minha querida Viena.
Halberstam: Interessante… com que então, uma viagem demo‑
rada, quer dizer que ela confirma?…
152 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 153
Feigl: Penosa, disse ela… Feigl: Ritter, seja razoável; acha que um bocadinho de publici‑
Füchsl: Esperem, o começo já o trago escrito da redacção… um dade a vai prejudicar, agora que se prepara para pisar outra vez
momento… (Escrevendo.) Resgatada ao martírio do cativeiro o palco, ora pois!
russo, chegada finalmente ao termo da demorada e penosa via‑ Elfriede Ritter: Mas, meus senhores… é que eu não posso…
gem, a artista chorou lágrimas de alegria ao lembrar­‑se de que mas isso é puxado pelos cabelos… se tivessem visto… na rua
estava de novo na sua querida cidade de Viena… ou nas repartições… se eu tivesse tido razões para a mínima
Elfriede Ritter: (Ameaçando com o dedo.) Doutorzinho, ó das queixas, sobre maus­‑tratos ou coisas assim, acham que me
doutorzinho, não foi isso que eu disse, pelo contrário, o que calava?
eu disse foi que não me podia queixar de nada, absolutamente Füchsl: (Escrevendo.) Ainda a tremer de agitação, Elfriede Ritter
de nada… descreve como a populaça das ruas a arrastou pelos cabelos,
Füchsl: Ah, ah! (Escrevendo.) É com uma certa serenidade iró‑ como à mínima queixa foi maltratada nas repartições públicas
nica que a artista olha hoje para tudo aquilo por que teve de e como foi forçada a manter o silêncio sobre tudo isto por que
passar. passou.
Elfriede Ritter: Mas, mas então… olhe que… nã, doutor, Elfriede Ritter: Mas, doutor, está a gracejar? Pois se eu até lhe
estou indignada… digo que os funcionários da polícia tentaram sempre vir ao
Füchsl: (Escrevendo.) Mas depois, quando o visitante lhe aviva a encontro dos meus desejos, sempre que possível deram­‑me a
memória, ela é de novo possuída pela indignação. Em palavras mão, eu podia sair para onde quisesse, voltar para casa quando
convulsas, a actriz descreve como lhe roubaram todas as possi‑ quisesse, asseguro­‑lhe, se me tivesse sentido um instantinho
bilidades de se queixar da maneira como foi tratada. que fosse como prisioneira…
Elfriede Ritter: Mas, doutor, então que coisas são essas?… Füchsl: (Escrevendo.) A artista conta que, ao fazer uma vez a ten‑
É que eu não posso dizer… tativa de sair de casa, num instantinho lhe vieram polícias ao
Füchsl: Ela não pode dizer… encontro, agarraram­‑na pela mão e arrastaram­‑na para casa,
Elfriede Ritter: Mas é verdade… eu não posso dizer… de modo que levou literalmente uma vida de prisioneira…
Halberstam: Ora, ora, nem faz ideia das coisas que se podem Elfriede Ritter: Agora fizeram­‑me zangar a sério… não é ver‑
dizer! Minha cara amiga, veja bem, o público, está a entender, dade, meus senhores, protesto…
quer ter coisas para ler. Digo­‑lhe que pode dizer. Aqui sim, na Füchsl: (Escrevendo.) Ela fica zangadíssima quando as recorda‑
Rússia talvez não, aqui graças a Deus que temos liberdade de ções das coisas por que passou, dos seus protestos inúteis…
expressão, não é como na Rússia, aqui Deus seja louvado que Elfriede Ritter: Não é verdade, meus senhores!
se pode dizer tudo, sobre a situação na Rússia! Algum jornal na Füchsl: (Erguendo os olhos do papel.) Não é… verdade? Não é
Rússia se preocupou consigo como aqui? Ora aí está! verdade o quê, se eu estou a transcrever todas as suas palavras?
154 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 155
Feigl: Nós queremos pôr no jornal, e não é verdade? classe! É o que lhe digo, para si é uma questão de vida ou de
Halberstam: Sabe, isto é coisa que nunca me aconteceu. Curioso! morte!
Feigl: Ainda é capaz de acabar por nos mandar um desmentido! Elfriede Ritter: (Suplicante.) Mas… mas… mas… senhor
Füchsl: Veja lá, não se ponha com histórias, olhe que ainda se redactor… é que eu… julguei… caro doutor… por favor, por
prejudica! favor, caro doutor… eu só quis… dizer a verdade… desculpe…
Feigl: Não dê cabo da sua vida! desculpe, por favor…
Halberstam: Quando é que lhe voltam a dar um papel? Feigl: (Furioso.) A verdade, diz a senhora? Quer dizer que nós
Füchsl: Se no sábado, quando se for tratar do repertório, eu con‑ estamos a mentir?
tar isto ao director, quem fica com o papel da Margarida é a Elfriede Ritter: Quer dizer… perdão… é que eu… julguei que era a
Berger, ai não se não fica! verdade… mas se… meus caros senhores… os senhores julgam…
Feigl: Então é assim que agradece, quando o Fuchs a tratou sem‑ que… a verdade não é essa… os senhores é que são jornalistas… os
pre tão bem? Olhe que não faz ideia do que o Fuchs é capaz! Se senhores… é que… devem… entender melhor como as coisas são.
ele souber disto, vai ver o que lhe acontece na próxima estreia! Sabem… como mulher também não tenho bem a… perspectiva
Halberstam: O Wolf, assim como assim, tem­‑lhe um certo pó, correcta, não é? Meu Deus… os senhores compreendem… é que
desde aquela vez em que a senhora teve um papel na peça dele, estamos em guerra… a gente está tão cheia de medo… fica­‑se tão
é bom que saiba, além disso, o Wolf é muito contra a Rússia, contente quando se escapa sã e salva de território inimigo…
se agora ainda lhe for chegar aos ouvidos que a senhora não Halberstam: Ora está a ver como se vai recordando a pouco e
tem razões de queixa em relação à Rússia… escreve logo uma pouco…
crítica que a põe de rastos! Elfriede Ritter: Ah, pois claro, doutorzinho. Sabe, o primeiro
Füchsl: Isso não é nada, e o Löw? Não se meta com o Löw, uma transporte de alegria por estar de novo na vossa amada Viena…
actriz tem de se acomodar e pronto! vê­‑se logo em tons mais rosados tudo aquilo por que se passou,
Feigl: Por outro lado, posso­‑lhe revelar que lhe traria vantagens só por um instantinho, é claro… mas depois… vem logo outra
colossais, não só junto do público mas até da própria imprensa, vez a cólera e a amargura…
se tivesse sido maltratada na Rússia. Halberstam: Ora então, está a ver, desde o primeiro momento
Halberstam: Pense bem no assunto. A senhora veio de Berlim que soubemos que a senhora…
e não demorou a adaptar­‑se ao nosso ambiente. Aqui tudo lhe Füchsl: (Escreve.) A artista ainda hoje se sente dominada pela
correu sempre bem, foi de braços abertos que… cólera e pela amargura quando se lembra dos tormentos que
Füchsl: Só lhe posso dizer que com coisas assim não se brinca. sofreu e mal o primeiro transporte de alegria por se encon‑
Uma pessoa ter estado na Rússia e não ter nada que contar dos trar de novo na metrópole deu lugar às recordações penosas…
sofrimentos por que passou, é ridículo, uma artista de primeira (Voltando­‑se para ela.) Então, isto agora é verdade?
156 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 157
Elfriede Ritter: Sim, meus senhores, é a verdade… sabem, eu CENA 15
estava ainda tanto sob a impressão… fica­‑se tão amedrontada, O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
tão…
Füchsl: Espere… (Escrevendo.) Ainda dominada pelo medo, ela O Optimista: É exaltante e ao mesmo tempo comovente como
não ousa falar das coisas. Na terra da liberdade, cede ainda o patriotismo agora se afirma mesmo nos letreiros das lojas,
temporariamente à sugestão de se encontrar na Rússia, lá onde uma circunstância susceptível de nos conciliar com o aumento
foi forçada a sentir de modo tão ignominioso a renúncia aos dos preços.
direitos da pessoa, à livre opinião e à livre expressão do pen‑ O Eterno Descontente: Mas então o senhor terá que se man‑
samento. (Voltando­‑se para ela.) Então, isto agora é verdade? ter inconciliável com o Hotel Bristol, que continua a ter esse
Elfriede Ritter: Oh, doutor, a maneira como o senhor capta os nome, embora em Londres, mesmo no tempo da paz, nunca
meus sentimentos mais secretos… tenha havido um Hotel St. Pölten.
Füchsl: Ora está a ver? O Optimista: Seja como for, o Hotel Bristol, ao transformar o
Halberstam: Muito bem, ela admite que sofreu… seu grillroom numa sala de grelhados, demonstrou que é capaz
Feigl: Ela padeceu! da coragem e da energia necessárias para reconsiderar a sua
Füchsl: Qual padeceu? Autênticas torturas foi o que ela passou! posição. E veja aqui – “Casa da Armada”. Que singeleza! É uma
Halberstam: Bem, de que mais é que precisamos, vamos lavandaria que, como é sabido, ainda há pouco se chamava
embora, não estamos aqui para nos divertirmos… “Casa da Armada Inglesa”. (O dono aparece à porta.)
Füchsl: Está claro, o fim escrevo­‑o na redacção. Bem… então não O Eterno Descontente: Pois, mas nunca se sabe… espere, vou
temos que recear um desmentido? Era o que mais nos faltava! perguntar­‑lhe que armada é que agora é a dele. Talvez no meio
Elfriede Ritter: Mas que ideia, doutor!… Foi mesmo char‑ da confusão ele faça algum desconto ao preço das camisas.
mant, terem­‑me vindo visitar. Voltem quando quiserem… (O dono retira­‑se.) É a austríaca.
Adeus, adeus. (Chamando.) Grete! Gre­ete! (Muda a cena.)
Feigl: Não há dúvida que ela é uma pessoa atilada. Fique com
Deus, menina. (À saída, para os outros.) Passou por coisas ini‑ CENA 16
magináveis e não tem coragem para contar às pessoas… que é Sede do quartel­‑general. Entram quatro
que se há­‑de fazer? comandantes­‑em­‑chefe.
(Elfriede Ritter deixa­‑se cair numa cadeira e levanta­‑se a
seguir, para desfazer as malas.) Auffenberg: Pois é, meus senhores, assim não! Eu não tenho a
(Muda a cena.) intenção de me tornar num segundo Benedek, isso simples‑
mente não admito…
158 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 159
Brudermann: Vá lá, vá lá, deixa­‑te de coisas, que é que queres Dankl: Mas a quem é que estás tu pr’aí a escrever num tom tão
que a gente diga? Eu só perdi 80 mil e também já começam a histórico­‑universal?
pôr­‑me nas ruas da amargura. Auffenberg: Ouçam: “Nesta hora, em que era meu hábito estar
Dankl: A mim lançam­‑me à cara os 70 mil. sentado nas suas salas tão familiares, penso em si e no seu pes‑
Pflanzer­‑Baltin: O melhor é não ligar! Cá comigo vai haver soal e envio­‑lhe saudações cordiais de um bivaque distante.
ataque e não me venham cá com tretas! Amanhã lançamo­ Auffenberg.”
‑nos ao assalto, senão ficamos atascados na merda. Eu sou Brudermann: Mas a quem estás a escrever? Ao Krobatin?
pela ofensiva, sempre gostava de saber pra que é que essa gente Auffenberg: Olha que essa! Ao Riedl!
serve senão pra uma morte de herói! Ao ataque, ao ataque… Todos: Ah, ao Riedl!
(Tem um ataque de tosse.) Brudermann: Não há dúvida que o Auffenberg é um sentimen‑
Auffenberg: Vá lá, vá lá… sou exactamente da mesma opinião. tal. Estás a ver, fico contente com essa tua atitude. Assim já não
Sempre fui a favor de pôr o nosso pessoal a dar o litro sem vão poder chatear­‑te a mona por causa dos 90 mil tiroleses
contemplações. Eu também já estou a tratar dos preparativos. e salzburgueses que sacrificaste. Sacrificaste, é assim que eles
O que eu digo é: se não fizer bem, mal também não faz. Mas é falam!
verdade, antes que me esqueça… o meu ajudante voltou a não Pflanzer­‑Baltin: O melhor é não ligar! Eu cá já vou nos 100
me lembrar, a gente é que tem de ter cabeça pra tudo… mil.
Brudermann: Mas que é que tens? Dankl: Sabeis que mais? Vamos todos escrever ao Riedl!
Auffenberg: Nada… que chatice… sabes, é que tenho que lhe Brudermann: Bem, eu cá sou mais frequentador do Café da
escrever um postal. Desde Lublin que ando com essa ideia, Ópera… vou antes… (Senta­‑se e escreve.)
mas na confusão da retirada varreu­‑se­‑me por completo. Um Pflanzer­‑Baltin: Eu onde me sinto como em casa é no Hein‑
momento! (Senta­‑se a uma mesa e escreve.) Ora, isso é que ele richshof, vou… (Senta­‑se e escreve.)
vai ficar contente! Dankl: Pois é, têm razão… eu, que faz 29 anos que passo a vida
Dankl: Mas que é que estás aí a escrever? no Café Stadtpark… todos os dias leio lá o comunicado do
Auffenberg: Ouçam: “Nesta hora…” Estado­‑Maior junto c’o Höfer…45 (Senta­‑se e escreve.)
Pflanzer­‑Baltin: Ah, ele está a levantar o moral das tropas… Auffenberg: (À parte.) Passam a vida a imitar­‑me. Primeiro as
isso eu não faço. A gente tem metralhadoras e capelães! Ama‑ questões de estratégia e agora a comunicação co’a retaguarda.
nhã lançamo­‑nos ao assalto e então… É pena o Potiorek não estar cá, mas ele mandou­‑me ontem
Auffenberg: “Nesta hora…” um postal de campanha do Café Kremser e o Frank Liborius
Brudermann: Tás a escrever uma ordem do exército? está c’o Puhallo von Brlog sentado à mesa do Scheidl. O Con‑
Auffenberg: Nã, um bilhete postal. rad meteu­‑se em noivados, lá se foi a vida de café. Passam a
160 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 161
vida a imitar­‑me. Eu fui o primeiro que mandou o retrato prò Auffenberg: Então pode­‑se dar os parabéns? E de que faculdade
Humorist,46 fiz papel de pioneiro. Sempre deu pra variar… pra é que é?
não ser sempre só as gajas do teatro e mais nada. Agora é uma Pflanzer­‑Baltin: De Czernowitz.
parada geral, é generais e mais generais, até já chateia, era bom Brudermann: Ora, ora, mas isso não é uma faculdade, não passa
que aparecesse mas é uma gaja outra vez. Fui eu o primeiro de uma simples cátedra. De que disciplina?
que recorreu mais à imprensa… agora não há nenhum que não Pflanzer­‑Baltin: Filosofia, claro.
tenha o seu plumitivo às ordens, tudo por causa do reclame. Dankl: Por onde é que te vão fazer doutor?
Sempre quero ver se o Riedl vai ter a presença de espírito de Pflanzer­‑Baltin: Por Czernowitz. Não é grande coisa, mas seja
mandar os postais prò Extrablatt.47 Mas, é verdade, antes que como for…
me esqueça, na semana que vem temos uma ofensiva e eu Brudermann: Eu pode ser que consiga alguma coisa em Graz,
tenho que… olha lá, ó Pflanzer, que é que achas, lanço já uma porque os estudantes de lá combateram nas minhas fileiras.
ofensiva ou espero pela semana que vem? Mas o assunto, infelizmente, não tem andado prà frente, por‑
Pflanzer­‑Baltin: Não queria estar a meter­‑me nessa questão, que, pela mesma razão, eles estão a querer fechar as portas.
mas, no teu lugar, armava uma ofensiva tal que… Dankl: A mim, não tarda que vocês possam dar­‑me os parabéns
Brudermann: Agora que o teu pessoal está praticamente arra‑ por um doutoramento honoris causa por Innsbruck.
sado, eu também seria dessa opinião. Não há­‑de faltar tempo Auffenberg: Vocês não passam de actores de província. Eu uma
depois pra se restabelecerem. Manda­‑os atacar! coisa dessas não me passaria pela cabeça aceitar! O que eu digo
Dankl: Não me façam rir! Ele deve é guardar o ataque para 18 de é: ou Viena ou nicles. A propósito de Viena, o Riedl vai ter uma
Agosto, a não ser que queira esperar até 2 de Dezembro.48 Nem alegria de cair prò lado! Não posso esquecer­‑me de lembrar ao
por isso deixará de ser uma bela surpresa. ajudante­‑de­‑campo para não se esquecer de lembrar ao esta‑
Pflanzer­‑Baltin: Eu pra salamaleques desses não tenho feta senão ele ainda acaba por se esquecer e deixa ficar pra trás
pachorra. Pela parte que me toca, o ataque é amanhã, e não me o postal prò Riedl!
venham cá com tretas! Dankl, Brudermann, Pflanzer­‑Baltin: Boa ideia, vamos
(Entra um ajudante­‑de­‑campo de Pflanzer­‑Baltin.) fazer a mesma coisa, uma entrega por estafeta é sempre mais
O ajudante­‑de­‑campo: Com sua licença, meu general, os len‑ segura.
tes já chegaram e querem entregar­‑lhe o doutoramento honoris Auffenberg: (À parte.) Passam a vida a imitar­‑me. Primeiro as
causa. questões de estratégia e agora a comunicação co’a retaguarda!
Pflanzer­‑Baltin: Ah, eles qu’esperem… se a coisa for pesada, (Muda a cena.)
eles que a ponham no chão e que aproveitem pra recuperar o
fôlego. (O ajudante­‑de­‑campo sai de cena.)
162 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 163
CENA 17 acreditar! Riedl, tu, o único de nós que tem já um monumento
Viena. No grémio dos proprietários de cafés. em vida…
Entram quatro donos de cafés, entre os quais Riedl. Riedl: Pois, e um monumento que eu erigi a mim próprio! É que
Todos procuram convencê­‑lo com veemência. eu sou um selfmeiman da cabeça aos pés… na minha própria
casa, santos da minha alma, cada vez que entro em casa, a ale‑
O primeiro: Isso não pode ser, Riedl, tu és um patriota e um sin‑ gria que tenho com o belo baixo­‑relevo!
gelo comerciante, tu não podes fazer isso… olha lá, é que é só O primeiro: Ora pois, pra que é que precisas tu dos pendurica‑
enquanto durar a guerra, ó despois dão­‑to de volta outra vez. lhos dos nossos inimigos? Tens que os devolver todos, Riedl,
O segundo: Riedl, tu não me ponhas c’os azeites, tás a pôr em todos, mesmo os de Montenegro, e mesmo a medalha da liber‑
xeque toda a classe de que és hoje a fina flor… tens de fazer tação da República da Libéria!
isso, quer queiras quer não, tens de o fazer! Riedl: O quê, essa também? Nessa mesma é que eu tinha mais
O terceiro: Deixem­‑no em paz, ele a mim ouve. Riedl, não sejas orgulho. Olhai lá, logo quando eu ando a pensar reformar­‑me
chato. Tu não és um vienense? Ora lá está! Não és um alemão? daqui a um ano… não, é impossível!
Ora lá está! O segundo: Riedl, tens que fazer isso.
Riedl: Mas olhai lá, que aspecto é que isto vai ter depois no pró‑ O terceiro: Riedl, não tens alternativa.
ximo anuário? Eu fui sempre quem tinha mais condecorações Riedl: E se calhar a Ordem de Franz Joseph também?
na área de Viena, tantas como as que tenho em cima de mim O primeiro: Pelo contrário, essa podes agora mandá­‑la pôr no
não há mais ninguém que tenha. anuário em letras gordas!
O primeiro: Riedl, percebo que seja difícil pra ti, mas tu tens de Riedl: (Luta consigo próprio, depois, firmemente decidido.) Então
fazer um sacrifício. Riedl, seria uma bronca, seria nem mais nem muito bem… É o que vou fazer! Eu sei o que a pátria exige de
menos que alta traição, quando há tantos cabos de guerra que mim. Renuncio às homenagens que os governos inimigos me
frequentam a tua casa, e há um que é mesmo cliente habitual. prestaram, essa grande cáfila! Nem sequer aceitaria de volta o
O segundo: Olha lá, todos estamos a fazer sacrifícios nesta dinheiro que dei por essa tralha!
grande época, eu até em vez de subir a bica para quatro e 50 Todos: (À mistura.) Viva o Riedl!… Este é que é o nosso Riedl!…
subi só para quatro e 44, hoje em dia toda a gente tem que Viva a cidade de Viena e o nosso Riedl! Viva a torre de Santo
contribuir c’o seu óbolo… Estêvão junto c’o nosso Riedl!… Deus castigue a Inglaterra!…
O terceiro: É ridículo, nem posso acreditar que o famoso Ele a castigue!… Abaixo o Montenegro! Fora com ele!… Não
patriota Riedl, o presidente, o comandante dos veteranos da há maior patriota que o Riedl!
marinha… não me venham com coisas, o Tegetthoff vai dar Riedl: (Limpando o suor da testa.) Agradeço­‑vos… agradeço­‑vos…
voltas na campa se isto lhe chega aos ouvidos. Não dá pra vou já telefonar pra casa, para as levarem à Cruz Vermelha.
164 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 165
Amanhã já ides poder ler no jornal… (Fica pensativo.) Eis­‑me pensam… a mim, uma coisa assim não impressiona. É que
aqui, um tronco trespassado.49 antes de ontem recebi do Pflanzer­‑Baltin… (Tira­‑o do bolso.)
O segundo: Olha como o Riedl é culto, agora até já fala em O terceiro: Vocês têm cá uns fumos de grandeza! Por acaso, já
clássico. na semana passada o Dankl… (Tira­‑o do bolso.)
Riedl: Isto não é clássico, o doutor do Extrablatt é que diz sempre Todos os três: (Lêem ao mesmo tempo em voz alta.) “Nesta hora,
isto quando perde à lerpa. Agora… (abatido) quem perde… em que era meu hábito estar sentado nas suas salas tão familia‑
sou eu! res, penso em si e no seu pessoal e envio­‑lhe saudações cordiais
O terceiro: Nada de tristezas, Riedl! Nada de tristezas! O que tás de um bivaque distante. Dankl – Pflanzer – Brudermann.”
agora a entregar vais receber outra vez mais tarde em dobro ou Riedl: (Fora de si.) Não pode ser! É um plájo! Um plájo! Uma
em triplo. E talvez mais cedo do que julgas. burla! Comparados comigo vocês são uns zés­‑ninguéns! Não
(Um criado precipita­‑se na sala.) vou aturar isto! Por enquanto, inda não devolvi nenhuma con‑
O criado: Senhor von Riedl, senhor von Riedl, chegou um pos‑ decoração, era o que faltava, e se o Auffenberg não me explicar
tal, a menina Anna disse pra eu vir a correr… é fantástico… o tudo imediatamente… fico com elas todas!
café tá todo em polvorosa… (Muda a cena.)
Riedl: Dá cá, mas que é que é… (Lê, a tremer de susto e de ale‑
gria.) Meus senhores… nesta hora… é um momento histó‑ CENA 18
rico… como patriota e simples comerciante, eu que recebi dos No quartel do regimento Deutschmeister em Viena.
meus concidadãos inúmeras provas honrosas do apreço em Um cavalheiro de cerca de 40 anos, elegantemente vestido,
que me têm… eu como presidente… mas uma coisa assim… está à espera numa sala suja, sem cadeiras.
não… olhai cá… Entra o cabo Weiguny.
Todos: Mas que é que é?
Riedl: O meu freguês habitual mais glorioso… o nosso cabo­‑de­ O cavalheiro: Desculpe… senhor cabo… não… me poderá
‑guerra de primeiríssima classe… durante a batalha… pen‑ dizer… é que já aqui estou há três horas… não aparece nin‑
sou… em mim! Segurai­‑me! Tenho que… ao… Extrablatt… guém… sabe, eu fui dado como inapto para o serviço na
(Todos o seguram e lêem.) frente… apresentei­‑me voluntariamente antes do prazo para
O primeiro: Ora, ora, sabe Deus o que pensei. As cenas que ele me darem um lugar de secretaria… e então disseram­‑me que
faz! Eu ontem recebi um postal do Brudermann… (Tira­‑o do tinha logo… de ficar… o problema é que eu…
bolso.) O cabo: Bico calado!
Riedl: Olha que essa, isso agora deixa­‑me sem jeito… O cavalheiro: Sim… por favor… mas é que eu queria… eu tenho…
O segundo: Olhem lá, mas que admiração, vocês nem as sabe, pelo menos… que avisar a família… e também não posso
166 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 167
como estou… quer dizer, preciso… quer dizer, dos meus artigos mas o que tu tens simplesmente de lhe dizer, sabes, mas tem
de higiene… uma escova de dentes, um cobertor e assim… que ser de modo directo, sem vergonhas, em tom garboso: (faz
O cabo: Bico calado! a continência) “Meu Capitão, com sua licença, tenho encontro
O cavalheiro: Mas… por favor… desculpe… fui eu que me marcado c’uma chavala!…” E olha, o capitão vai­‑te retorquir,
apresentei… como é que eu podia saber… é que eu tenho… queres apostar que ele vai dizer: “O quê, tem encontro mar‑
O cabo: Pedaço dum cabrão, dizes mais uma palavra e eu esfrego­ cado c’uma chavala? Ponha­‑se a mexer daqui, seu maganão!”
‑te as fuças de alto a baixo qu’inté… Ora, e então podes­‑te ir embora!
(O homem tira do bolso do colete uma nota de dez coroas e (Muda a cena.)
estende­‑a ao cabo.)
O cabo: Quer dizer… veja, meu caro senhor… ir pra casa isso não CENA 19
posso de verdades deixá­‑lo ir, não dá, mas se quer um cober‑ Repartição da Assistência de Guerra.
tor… isso arranjo­‑lhe. (Sai da sala.)
(Sai um aspirante da sala ao lado.) Hugo von Hofmannsthal: (Folheando um jornal.) Ah, uma
O aspirante: O quê? Eras tu que estavas a discutir com o cabo? carta aberta para mim?… Que amabilidade do Bahr, não se
Viva, já não me conheces? Wögerer, do ginásio… ter esquecido de mim nestes tempos horrorosos!50 (Lê em
O cavalheiro: Ah, sim, já estou a ver. voz alta.) “Saudação a Hofmannsthal. Sei apenas que está em
O aspirante: Foste dado como inapto para o serviço activo, armas, caro Hugo, mas ninguém é capaz de dizer­‑me onde.
não?… Olha lá, como é que tu, uma pessoa inteligente, pode Por isso vou escrever­‑lhe através do jornal. Talvez que o vento
pôr­‑se a discutir com um cabo? amável o faça pairar até à fogueira junto à qual está de vela e lhe
O cavalheiro: Mas que é que hei­‑de eu fazer? Já estou aqui à leve as minhas saudações…” (Interrompe a leitura.)
espera há três horas. Não posso deixar de ir a casa… a minha Um cínico: Então… continua, continua! Escreve bonito, o Bahr!
gente não faz ideia… apresentei­‑me voluntariamente… Hofmannsthal: (Amarfanha o jornal.) Este Bahr é mesmo
O aspirante: Ora, aí é que caíste que nem um patinho. Mas horroroso…
quem é que te deu esse conselho? Agora, se queres ir para casa, O cínico: Mas que é que tens? (Pega no jornal e lê alto algumas
é claro que podes ir. partes.) “Todo o alemão, na retaguarda ou no campo de bata‑
O cavalheiro: Pois, mas como é que se arranja isso? lha, anda agora de uniforme. É essa a felicidade imensa do
O aspirante: Não me faças rir, tu és uma pessoa de posição… eu momento que estamos a viver. Deus no­‑la preserve! … É o
ajudo­‑te… fazes assim… ora bem, vais ao capitão… caminho antigo, o caminho da canção dos Nibelungos, e das
O cavalheiro: O quê, ele deixa­‑me ir para casa? cantigas de amor e das cantigas de mesteirais, da nossa mística
O aspirante: Normalmente claro que não, ele é muito rigoroso, e do nosso barroco alemão, de Klopstock e Herder, Goethe e
168 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 169
Schiller, Kant e Fichte, Bach, Beethoven, Wagner… Boa sorte, esqueçais de mim, eu penso em vós! É que vós estais tão bem…”
meu caro tenente…” Hofmannsthal: Acaba com isso!
Hofmannsthal: Pára com isso! O cínico: “…e de certeza que aí as ideias vos hão­‑de ocorrer em
O cínico: (Lê.) “Sei que está contente. Que sente a alegria de estar catadupa, não?” Ele há cada ideia!
a participar. Não há alegria maior.” Hofmannsthal: Deixa­‑me em paz!
Hofmannsthal: Olha que se não páras neste mesmo instante… O cínico: Assim como assim, tu não vais dentro em breve a Varsó‑
O cínico: (Lê.) “E é isso que vamos agora fixar no espírito para toda via? Em viagem de propaganda, quero dizer, ou coisa parecida.
a eternidade: o que importa é participar. E vamos tratar de ter‑ Vais proferir de novo a tua conferência sobre Hindenburg?
mos sempre de futuro alguma coisa em que possamos participar. Hofmannsthal: Já te disse, deixa­‑me em paz!
Então teríamos chegado ao fim do caminho alemão, e as cantigas O cínico: Olha, já viste o frio que está hoje outra vez… vou mas
de amigo e as cantigas de mesteirais, o senhor Walter von der é tocar a campainha para que venham acender a fogueira do
Vogelweide e Hans Sachs, Eckhart e Tauler, a mística e o barroco, acampamento.
Klopstock e Herder, Goethe e Schiller, Kant e Fichte, Beethoven e Hofmannsthal: Francamente, isso não se faz! Olha… vai cha‑
Wagner teriam então sido cumpridos.” – Mas que é que estes têm tear outro, deixa­‑me trabalhar!
a ver contigo? Ah, ele quer dizer se calhar que eles ficaram isentos (Entra o Poldi.)51
do serviço militar. “E foi Deus todo­‑poderoso que isto concedeu Poldi: (Com voz quente e grave.) Ora atão boas! Ó Hugo da
à nossa pobre estirpe!” Deus seja louvado!… (Lê.) “Mas agora minh’alma, não tens sabido nada do Bahr?
não tardará certamente que estejais em Varsóvia!” (Hofmannsthal tapa os ouvidos com as mãos.)
Hofmannsthal: Chega! O cínico: Os meus respeitos, senhor Barão, o senhor chega
O cínico: “Quando lá chegar, vá logo ao nosso consulado e per‑ mesmo na hora certa.
gunte se o cônsul­‑geral da Áustria­‑Hungria ainda lá está: Leo‑ Poldi: Olha lá, filho, é verdade que o Bahr este ano inda não apa‑
pold Andrian.” (Dá­‑lhe um ataque de riso.) receu por cá ou será que foi mobilizado?
Hofmannsthal: De que é que te estás a rir? O cínico: O quê, ele também?
O cínico: Provavelmente, ele ficou em Varsóvia depois do começo Hofmannsthal: Olha, este tipo é horroroso… anda, vamos lá
da guerra para passar o visto às tropas invasoras… já se sabe para dentro…
que, na guerra, isso é indispensável… senão elas não podem Poldi: Sabes, filho, o Baudelaire é de trás da orelha, vou recitar­‑te
progredir para a Rússia! (Lê.) “E quando estiverdes juntos em umas coisinhas.
tão boa disposição e, enquanto lá fora rufam os tambores, o Hofmannsthal: E eu mostro­‑te o meu Príncipe Eugénio!
Poldi dá grandes passadas de um lado para o outro da sala Poldi: Fantástico!
e, com a sua voz quente e grave, declama Baudelaire, não vos (Muda a cena.)
170 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 171
CENA 20 Fallota: Nem me fales dessa nação de escravos! Já leste o poema
Frente da Bucovina. Num posto de comando. do Kappus? É em verso e até rima!
Entram os primeiros­‑tenentes Fallota e Beinsteller. Beinsteller: Pois claro, a Muskete agora está de gritos… o
Schönpflug…
Fallota: Tás a ver, ontem catrapisquei uma polaca bem gira… Fallota: Homem, isso é outra música! Olha, vou mandar pra lá
só te digo, de trás da orelha! É pena não podermos incluí­‑la na uma anedota… Sabes que mais, vou começar agora um diário,
foto de conjunto que vamos mandar à Muskete. vai lá estar tudo por que passei. A começar anteontem com a
Beinsteller: Ah, uma moçoila! Sabes, o capelão tem que ser farra. Uma polaca de estalo, é o que te digo, mas gira a valer…
fotografado para o Interessantes, a cavalo, a dar os últimos sacra‑ (Faz um gesto a indicar o porte volumoso.)
mentos a um moribundo. É coisa fácil de se arranjar, se for pre‑ Beinsteller: Ah, umas boas mamalhocas… pois é, tu é que apro‑
ciso prepara­‑se a cena, tás a ver, manda­‑se um tipo deitar­‑se no veitas, sabes, eu interesso­‑me mais pela cultura. Leio muito.
chão, e além disso a redacção ainda pediu que têm necessidade Agora não tarda acabo os livros da Colecção Engelhorn.52
de uma oração junto ao túmulo do soldado, bem, isso é canja. Dantes, quando estive lá em baixo… nessa altura também se
Fallota: Olha, ontem tirei uma fotografia, só te digo que tem passava a vida na farra. Um bocadinho de música, sim. Temos
muita pinta. Um russo moribundo, uma cena clássica, c’um agora um gramofone, do castelo. Podias­‑me emprestar a tua
tiro na cabeça, mesmo tirado pelo natural. Tás a ver, ele ainda polaca, pra ela dançar a acompanhar.
conseguiu olhar fixamente prà máquina. Só te digo, tinha cá Fallota: Sabes quem é que de certeza já viveu muita coisa na
um olhar, como se fosse em pose, estupendo, achas que é coisa linha da frente? O Nowak do 14, um gajo do caraças, só te digo.
prò Interessantes, que eles estarão interessados? Esse, quando não risca os seus 60 tiros por dia na espingarda,
Beinsteller: Olá se estão, e ainda por cima pagam. fica lixado com o nosso pessoal. O Pühringer escreveu­‑me há
Fallota: Achas? Olha, é verdade, não sabes o que perdeste, dias um postal, queres saber, o Nowak avista um velho campo‑
o cabo ontem desmaiou ao segurar o espião, sabes, o padre nês sérvio do outro lado a ir buscar água ao Drina. Tás a ver,
ruteno, durante a execução para a Sascha Filmes, foi pena não era uma pausa nos combates, diz ele ao Pühringer, olha, diz ele,
estares lá a ver. tás a ver aquele além do outro lado, aponta, pimba, acertou­
Beinsteller: Então que é que fizeste ao gajo? ‑lhe logo. Um gajo do caraças, o Nowak. Liquida tudo a tiro.
Fallota: Ora, mandei­‑o atar ao poste, claro. Não vou metê­‑lo na O nome dele também já foi proposto prà Ordem da Coroa.
choldra, afinal não estamos em tempo de paz… a choldra, isso Beinsteller: Granda pinta! É claro que os patetas dos pacifistas
é o que os gajos queriam. não percebem uma coisa assim. Olha lá, estou é curioso pra ver
Beinsteller: Sabes, eu não entendo os russos. É que os prisio‑ como é que o Scharinger se vai desenrascar daquela história
neiros vêm­‑te contar que lá entre eles não há castigos desses. estúpida, não ouviste contar?
172 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 173
Fallota: Por se ter posto nas encolhas quando foi do ataque? que dão jeito. E o forrobodó que havia sempre, bastonadas e coi‑
Beinsteller: Mas por favor, não é por isso que um oficial do sas assim. Tudo com champanhe. Mas agora isto é uma chum‑
quadro vai agora… bada. Não posso dizer que ande satisfeito por cá, tirando as gajas.
Fallota: Ah, sim, houve assim uma história, como uma coisa Beinsteller: Tenho cá a ideia de que agora está outra vez a
qualquer se tinha queimado, de ele mandar o cozinheiro prà apetecer­‑lhes um ataque, pelo menos sempre dá pra variar.
linha de fogo… Fallota: No último foi tudo uma parvoíce. Dois mil feridos, 600
Beinsteller: Mas não, por causa dum capote… atão não sabes, mortos… sabes, eu não sou sentimental, e sou sempre a favor
é que ele naquela altura mudou­‑se prò sítio onde tinha morado de que se faça o trabalho…
o coronel, o Kratochwila von Schlachtentreu, pois, e então ele Beinsteller: Pra mim também foi um mistério.
fanou um capote do coronel que tinha lá ficado depois de ele Fallota: Nem um palmo de trincheira, só prò relatório. Quatro
se ter ido embora. Mas não conheces a história? Ora ouve lá. semanas esteve o pessoal ali estendido…
O coronel dá de caras com ele e vê o capote, já embrulhado. Beinsteller: Por isso mesmo. Eles lá em cima é que combina‑
O Scharinger arranja uma desculpa, diz que julgou que era um ram o arranjinho todo outra vez. “Vamos lá mandar atacar”,
capote do inimigo, que o tirou do palácio, e que ia justamente é o que eles dizem. Quando o pessoal começa a resmungar
devolvê­‑lo. E vai daí… pois, podes imaginar a barafunda. Bem, por causa dos legumes secos, vamos lá mandar atacar. Quanto
ele há­‑de arranjar maneira de se desenrascar. mais não seja, pra que não percam o treino. O gordalhão53
Fallota: Não consigo entender… sempre com coisas dessas. Eu depois diz: “Então, mas isso é um resultado?” “Ora, ora”, foi o
até aqui inda nunca tive chatices com isso. Quando se trata que eles disseram, “se não for isso, o pessoal também não tem
de produto do saque… então pois, está claro! E então naquela nada pra fazer.” Mas não se trata duma estratégia por aí além,
altura! O próprio Josef Ferdinand abarbatou­‑se com uma bela tenho que dizer, embora eu seguramente não seja dos que se
equipagem e com paramentos, tás a ver, toda a gente sabe que põem com meias­‑medidas. Mas o que eu digo é, a não ser que
ele é um amante das artes e jóias e coisas assim. Sabes, eu tam‑ não haja outro remédio… é preciso ser poupado c’o material
bém fiquei com algumas coisinhas jeitosas na altura… só te humano. Pois é… primeiro gastam à toa os homens treinados,
digo que tinha faro pr’àquilo… pois, quer dizer… tás a ver, um depois mandam­‑nos uns fresquinhos da inspecção. Uns maça‑
piano, já é coisa de respeito. ricos que não são capazes de distinguir uma granada de mão
Beinsteller: Chiça, tiro­‑te o chapéu! dum monte de caca. Isto é coisa que se admita?
Fallota: Que é que tu queres, a generala ficou com roupas e ves‑ Fallota: Pois, é a maneira de lamberem as botas ao Pflanzer.
tuário do aquartelamento, bem, só pra uso próprio, claro, sabes, Beinsteller: Safa, o coronel fica lixado quando numa retirada
a filha quem lhe dá o enxoval é o Ministério da Guerra. Aquilo é há tantos a escapar com vida. “O quê?”, berrou ele para uma
que eram tempos. Fanava­‑se trigo e animais e outras coisas assim companhia, “porque é que não quereis esticar o pernil?” É o
174 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 175
sistema tás­‑aqui­‑tás­‑tramado do Pflanzer­‑Baltin, é o que diz o Beinsteller: Parabéns. Olha, como está o Floderer? Inda conti‑
pessoal do Böhm­‑Ermolli. nua a disparar sobre a nossa própria gente?
Fallota: Outro dia foi um rebuliço por causa dos feridos. Claro, Fallota: E de que maneira! Faz um ano, diagnosticaram­‑lhe uma
quem é que teria imaginado que isto ia tomar tais proporções, paralisia – não serve de nada. Passam a vida a mandá­‑lo embora
o certo é que não havia ambulâncias que chegassem. Tás a ver, e ele volta sempre. Como é que ele consegue é que eu não
os carros estavam todos na cidade com os generais, tinham ido entendo. Faz pouco, matou a tiro um cabo que o tenente tinha
ao teatro e coisas assim. Telefonaram pra lá, mas nenhum se mandado buscar munições, porque se lhe meteu na cabeça que
veio embora. Só te digo, foi cá uma confusão! o homem estava a recuar. Nem lhe perguntou, pimba, lá se foi.
Beinsteller: Os feridos só dão chatices. Beinsteller: Mais um, menos um… Sabes, a verdade é que,
Fallota: Eles deviam era dar um pouco mais de atenção à nossa quando se anda agora há um ano nisto – é o que te digo,
gente. Percebo que se aperte com a população, mas no fim de morto não é nada. Mas a história dos feridos, isso é uma cha‑
contas tropas é sempre preciso. Neste mês tivemos 240 sen‑ tice pegada. Mais um ano, quando chegar a paz, não vai haver
tenças de morte contra civis, executadas acto contínuo, a coisa senão tocadores de realejo, já estou a tapar os ouvidos. Que é
agora anda sobre rodas. que se há­‑de fazer com esses tipos? Feridos… é uma história
Beinsteller: Eram politicamente suspeitos? assim a meio pau. O que eu digo é: morte de herói ou nada,
Fallota: Metade eram politicamente de pouca confiança. doutra maneira, só têm que se culpar a si próprios.
Beinsteller: Qual era o problema? Fallota: Os cegos são do piorio. Andam aos baldões duma
Fallota: Bem, tavam metidos em maquinações e coisas assim. maneira tão cómica. Faz pouco, vinha eu da licença, chego a
Beinsteller: Não me digas! uma estação e mesmo na altura em que o pessoal andava aos
Fallota: Sabes, eu não sou partidário da lei marcial, isso é assim encontrões a um, a rir­‑se e a fazer dele gato­‑sapato.
a modos que um artifício jurídico a cheirar a mofo… sempre Beinsteller: Pois, que é que queres – havias de ter visto como o
com as escrevinhações idiotas: “Execute­‑se!” “Executado!” Já general de divisão outro dia gozou com um atacado por tremuras.
alguma vez leste um processo? Eu não. Quando ponho o meu Fallota: Pois, uma pessoa com sentimentos fica incomodada
sabre à cintura, não preciso de coisas dessas. com essas coisas, mas sabes o que é que penso nesses casos?
Beinsteller: Ainda por cima tem que se assistir às execuções! Guerra é guerra, é o que eu penso nesses casos.
Fallota: Bem, ao princípio isso até me interessava. Mas agora, Beinsteller: Olha, e o teu impedido, como é que anda? Que
quando acontece eu estar ocupado a jogar às cartas, mando idade é que ele tem agora?
um alferes. Assim como assim, ouve­‑se tudo dentro do quarto. Fallota: Fez agora mesmo 48. Ontem, pra festejar os anos, levou
Agora temos uns juristas bons de Viena. Mas é um trabalho de uma chapada.
cão. Propuseram o meu nome para a Cruz de Mérito. Beinsteller: Mas que é que ele faz afinal?
176 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 177
Fallota: Sei lá, é compositor ou assim filósofo. CENA 21
Beinsteller: Olha, o Mayerhofer esteve em Teschen na semana Um campo de batalha. Não se vê nada. Ao fundo, muito ao
passada. O manda­‑chuva­‑mor54 anda lá agora pelas ruas, sabes longe, sobe de vez em quando fumo. Dois repórteres de guerra
como? Passeia­‑se por lá com o bastão de marechal. de calções à inglesa, óculo, máquinas Kodak.
Fallota: E quando vai à casinha, leva­‑o junto com ele?
Beinsteller: Agora recebeu mais um do Willi,55 se calhar anda O primeiro: Tenha vergonha, você não é um homem de acção,
agora c’os dois. olhe pra mim, eu andei na Guerra dos Balcãs e não me aconte‑
Fallota: Puxa, mas isso então parecem duas muletas! ceu nada! (Agacha­‑se.)
Beinsteller: Sabes, a judia gorda de Viena anda além outra O segundo: Que é que aconteceu, eu não avanço mais por nada
vez às voltas, a influente Egéria – se se pudesse conseguir ali deste mundo.
alguma coisa, não era mau… O primeiro: Nada. São obuses a rebentar. (Agacha­‑se.)
Fallota: Tu não recuas perante nada. Pois, sabes… eu também já O segundo: Por amor de Deus, que é que foi agora? (Agacha­‑se.)
ficava contente se pudesse estar outra vez à noite no Gartenbau O primeiro: Um projéctil que não explodiu, nada de especial.
e antes disso na esquina das celebridades.56 O segundo: Um projéctil que não explodiu, ai meu Deus! Não,
Beinsteller: O quê? O Gartenbau? Isso é que vai ser um bico­‑ não imaginava que isto fosse assim.
‑de­‑obra! O primeiro: Procure um abrigo.
Fallota: Como assim? O segundo: Procuro o quê?
Beinsteller: Então, estiveste agora em Viena e não sabes que O primeiro: Um abrigo! Dê cá o óculo.
agora está lá um hospital? O segundo: Que é que está a observar?
Fallota: Pois é (absorto), pois claro… Bem, mas olha, aqui tam‑ O primeiro: Os lírios­‑verdes. Faz­‑me lembrar a Guerra dos Bal‑
bém não estou mal instalado. Sabes, agora tenho outra vez um cãs. Já captei o ambiente. (Põe­‑se à escuta.)
piano e um candeeiro de cabeceira… O segundo: Que é que está a ouvir?
Beinsteller: Cabeceira, rameira, rameira. O primeiro: Corvos. Crocitam como se pressentissem a presa.
Fallota: Olha, parece que vem aí chuva. É igualzinho à Guerra dos Balcãs. E o perigo chama.
Beinsteller: (Olha para cima.) Ah, olhà a chuva! Vambora. O segundo: Vambora.
Fallota: Não ouviste nada do Doderer? É um sortalhão do caraças. O primeiro: Olha que cobarde! E o perigo chama. (Um tiro.)
Beinsteller: Pois, ele foi sempre um peralta. Por amor de Deus! Não são os nossos que estão além?
Fallota: Lá peralta é ele, é verdade. Mas que é um gandulo de O segundo: Do Departamento de Imprensa?
marca, olá se é! O primeiro: Não, as nossas tropas.
(Muda a cena.) O segundo: Parece que sim.
178 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 179
O primeiro: É uma rapaziada valente. Nenhum pensava nos Ela vai até à linha da frente. E a maneira como ela se interessa
entes queridos, todos no inimigo pensavam. Que é que está pela limpeza das trincheiras inimigas…!
além no chão? O segundo: Pois sim, isso está bem para mulheres, mas e nós?
O segundo: Nada, cadáveres italianos que estão estendidos em O primeiro: Pois é, e a maneira como ela descreve quando estava
frente das nossas posições. no meio da chuva de balas… você que é homem não se sente
O primeiro: Um momento! (Tira fotografias.) Nada faz lembrar envergonhado com uma coisa assim?
que estamos na guerra. Não se vê nada que nos recorde a misé‑ O segundo: Eu sei que ela é corajosa. Mas eu trabalho é na secção
ria, a fome, as fadigas e os horrores. teatral.
O segundo: Um momento! Agora estou a sentir o sopro da O primeiro: A maneira como ela descreve os cadáveres, em com‑
guerra. (Um tiro.) Vambora. paração o cheiro putrefacto não é nada.
O primeiro: Não foi nada. O caso não passou afinal duma esca‑ O segundo: Isso não é coisa que ligue cá c’o meu gosto.
ramuça entre postos avançados. O primeiro: Quem é que moveu céus e terra para a deixarem partici‑
O segundo: Se tivéssemos mas é ficado em Villach… Meu Deus, par num ataque de flanco? Ela! E agora você quer­‑se pôr na alheta
ontem andei na farra c’o Sascha Kolowrat… eu disse­‑lhe que só por ver umas patrulhas. Dantes você era só fanfarronadas…
não tenho nenhumas ambições. Vai ver que estamos num O segundo: Qualquer um de nós a princípio se deixou arrastar.
ponto a descoberto. Mas agora, depois de um ano de guerra…
O primeiro: Se você nem é capaz de aguentar umas escaramuças, O primeiro: Você escreveu que queria ver c’os próprios olhos
faz­‑me mas é pena. a guerra na frente sudoeste. Ora bem, veja­‑a, aqui está ela.
O segundo: Mas eu sou um herói? Eu sou um Alexander Roda (Agacha­‑se.)
Roda? O segundo: (Agacha­‑se.) Contra a Rússia era tudo muito dife‑
O primeiro: Eu também não sou um Ganghofer, mas o que lhe rente, aí nem se saiu do hotel, lá dentro não tive nenhuma
posso dizer é que devia ter vergonha da Schalek! Ali vem ela! experiência, cá por mim, pode achar­‑me um cobarde, mas o
Agora é que você devia esconder­‑se… que lhe digo é que não avanço mais!
O segundo: Está bem. (Esconde­‑se. Um tiro.) O primeiro: Mas o capitão não tarda aí, ele garantiu que não vai
O primeiro: Diga­‑se de passagem que eu também não quero que acontecer nada.
ela me veja. (Estende­‑se no chão.) O segundo: Mas eu é que não quero. Mando o artigo tal como
A Schalek: (Entra em cena completamente equipada e diz as pala‑ está, os termos técnicos que faltarem dá­‑mos você.
vras.) Eu quero ir para a linha da frente, lá onde está o homem O primeiro: Você não passou pela escola da Guerra dos Balcãs,
comum, o homem anónimo! (Sai de cena.) não percebo como é que alguém pode não se sentir atraído
O primeiro: Está a ver, ora aí está um exemplo para si. (Levantam­‑se.) pelo perigo. (Agacha­‑se.)
180 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 181
O segundo: Mas, veja lá, eu conheço isso. Eu descrevi esta O primeiro: Nada, um morteiro de pequeno calibre do sistema
embriaguez, este ditoso esquecimento perante a morte, você antigo da coluna de munições IV b da artilharia antiaérea.
sabe como o chefe ficou satisfeito, houve cartas aos montes, já O segundo: Como você domina os termos técnicos! Não é aquele
não se lembra disso? O meu nome foi proposto para a Cruz de morteiro que faz sempre tsi­‑tsi?
Mérito! (Agacha­‑se.) O primeiro: Você não pesca mesmo nada de nada. Não, é aquele
O primeiro: Mas eu não percebo como é que não se encontra que faz sempre tiu­‑tiu!
satisfação justamente em ver c’os próprios olhos… (Tiro.) Por O segundo: Então tenho que mudar uma coisa no meu texto…
amor de Deus, que é que foi agora? Sabe que mais, vou­‑me embora, pra que o texto siga mais cedo.
O segundo: Está a ver… quem me dera é que estivéssemos já de Inda tem que ir à censura.
volta ao Departamento de Imprensa. Lá pelo menos não se está O primeiro: Estou­‑lhe a dizer pra não sair daqui. Sozinho eu
a descoberto diante do inimigo. não fico.
O primeiro: Parece­‑me que a coisa é forte, é o contra­‑ataque! Ora, O segundo: Mas acha que isso faz sentido?
e que seja. Agora é preciso é resistir, lá onde o nosso dever colo‑ O primeiro: Olhe lá, não podemos fazer má figura. Os oficiais
cou o soldado. O capitão mandou arranjar a ponte destruída até já estão a rir­‑se. Claro que fazem caras amáveis, porque
de propósito para nós… já que cá estamos, o que importa é querem que os nomes deles apareçam na ofensiva, mas tenho
manter a calma. C’est la guerre! (Agacha­‑se.) Eu também gosto muitas vezes a impressão de que, na retirada, eles troçam de
de ambientes, mas em caso de emergência… só captar ambien‑ nós. Vou aproveitar pra lhes mostrar que não sou homem pra
tes não dá! Pois é, você no tempo da paz nunca fez outra coisa dar parte de fraco. Sabe, é que no Departamento de Imprensa
senão assistir às estreias, agora é que se vê o resultado. Mas é tudo tão monótono…
porque é que se ofereceu para as reportagens de guerra? O segundo: Antes monótono que perigoso.
O segundo: Então acha que eu ia deixar que me mandassem prà O primeiro: Mas olhe, acha que é coisa que lhe convenha a longo
tropa? prazo? Há um ano que isto já dura. Comemos o que nos dão.
O primeiro: Está bem, mas, quanto mais não seja pela honra Passam­‑nos o aranzel e a gente tudo o que fazemos é pôr o
do jornal, você sempre podia mostrar alguma compostura. nome por baixo. Ele mente e nós temos que assinar. Então isto
A guerra é a guerra. é vida, diga lá?
O segundo: Nunca me armei em herói. O segundo: Além disso, a coisa parece­‑me ridícula até mais não.
O primeiro: Ao ler o seu último artigo ficava­‑se com a ideia bem Que é que eu tenho a ver com isso tudo? Uma vez por mês
marcada de que você era isso mesmo. o artigo para a secção cultural… isso ainda é distracção, aí
O segundo: Um artigo é um artigo. Olhe e não se ponha com ares pode­‑se descrever as sensações que eles vão vivendo. Mas por
de quem não sabia isso… Meu Deus, mas que é que foi agora? que diabo tenho que assinar, quando o inimigo foi repelido,
182 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 183
quando o inimigo não foi repelido? Então eu sou Höfer? Sou o Quando ainda por cima não se é um colosso como o Gang­
chefe de redacção da guerra mundial? hofer! Que é que você quer de mim? Olhe prò pintor Haubit‑
O primeiro: Ora, ora, Höfer… eu estive mais vezes nos campos zer…58 ali está ele a pintar. Comparado comigo, é um gigante.
de batalha do que o Höfer! No Kaiserbar ele cantou a “Marcha do Príncipe Eugénio” de
O segundo: A mim isto tudo não me agrada nada. Hei­‑de falar tal maneira que até parecia que bastava ele sozinho pra vencer.
com o comandante de divisão, aquele que anda com o teatro Agora? Não vê como ele treme ao pintar? Tem mais medo do
de campanha. que nós todos juntos!
O primeiro: Teatro de campanha? Que quer dizer?… Ah, estou O primeiro: Do que você, talvez! Do que eu, não! Mas deixe
a ver. lá o Haubitzer em paz! Ele tem coragem que chegue, pinta
O segundo: Ele ficou impressionado com a ideia e aí eu estou na a batalha ao ar livre, apesar de estar constipado. Você viu o
minha especialidade. Hoje à mesa vou­‑lhe lembrar. Vou­‑lhe retrato dele? Quer dizer, a fotografia dele no Interessantes Blatt,
dizer na cara que não me agrada o serviço. o pintor Haubitzer no campo de batalha?
O primeiro: Bem, nós não estamos fadados pra êxitos como os O segundo: Cá por mim… eu não avanço por nada deste mundo.
de Ganghofer. Para gente como nós eles não vão arranjar uma O primeiro: Tome como exemplo Ludwig Bauer na Guerra dos
batalha de propósito. Balcãs!
O segundo: Como? Mas de que é que está agora a falar? O segundo: Na guerra mundial, Bauer está na Suíça, quem me
O primeiro: De que é que estou a falar? Da última vez que ele dera a mim estar na Suíça!
esteve na frente do Tirol! Dezassete dos nossos foram até mor‑ O primeiro: Tome como exemplo Szomory ou, por exemplo,
tos ou pelo menos feridos por bases de projécteis que fizeram os soldados. Eles cerram os dentes, não dão parte de fracos…
ricochete, foi o maior reconhecimento que foi concedido à (Agacha­‑se.) Então quer que voltemos pra trás?
imprensa desde que começou a guerra mundial! O segundo: Sim, e só paramos em Viena! Tenho que captar
O segundo: O quê, mas isso é uma piada do Simplicissimus,57 eles ambientes. Pra isso, sim, dou o nome! Se o meu nome vier no
esperarem com a batalha até chegar o Ganghofer! jornal ao lado do dela, ao lado de Irma von Höfer,59 está bem.
O primeiro: Pois, pois, primeiro era uma piada do Simplicissimus Mas ao lado dele… pra que preciso eu disso? Pra falar com
e depois tornou­‑se realidade. O conde Walterskirchen, o major, franqueza, tenho é vergonha.
pirou­‑se dali, furioso. Ele não tinha simpatia pela imprensa, o O primeiro: Eu não! Eu estou aqui a cumprir um dever que tomei
nome dele nunca tinha aparecido, anteontem, pelo que ouvi, sobre mim. (Atira­‑se para o chão.)
foi morto em combate. O segundo: Você desde sempre que teve um forte fraquinho pelo
O segundo: Está a ver, honras assim não estão ao nosso alcance. momento estratégico. (Ouve­‑se um estrondo.) Deus do céu!
Vou falar hoje com ele por causa do teatro de campanha! O primeiro: Porque é que está tão aterrado?
184 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 185
O segundo: Agora… julguei… mas é quase… como a voz… do O Optimista: Por os sãos ficarem sãos e os doentes, doentes?
chefe! O Eterno Descontente: Não, por os sãos adoecerem.
O primeiro: Olha o herói… mas aquilo era só o Tonante, o super­ O Optimista: Mas também os doentes se curarem.
‑canhão! (Fogem os dois; atrás deles, também em passo de corrida, O Eterno Descontente: O senhor está a pensar no famoso
o pintor Haubitzer com a pasta dos desenhos, agitando um lenço banho de aço? Ou no facto provado de que as granadas desta
branco.) guerra curaram milhões de aleijados com os seus estilhaços?
(Muda a cena.) De que salvaram centenas de milhares de tuberculosos e devol‑
veram outros tantos sifilíticos à sociedade?
CENA 22 O Optimista: Não, devido às conquistas da higiene moderna foi
Em frente ao Ministério da Guerra. possível curar tantos homens que tinham adoecido ou ficado
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. aleijados na guerra…
O Eterno Descontente: …para os enviar para a frente em con‑
O Optimista: O senhor põe antolhos para não reparar na imen‑ valescença. Mas estes doentes não é devido à guerra que se
sidão de nobreza e espírito de sacrifício que a guerra trouxe à restabelecem, restabelecem­‑se apesar da guerra e com o fim de
luz do dia. serem de novo expostos à guerra.
O Eterno Descontente: Não, eu só não deixo é de reparar O Optimista: Pois, não há volta a dar­‑lhe, guerra é guerra. Mas,
na imensidão de desumanidade e infâmia que foi necessária acima de tudo, a nossa medicina avançada conseguiu impedir
para atingir este resultado. Se foi preciso um fogo­‑posto para o alastrar do tifo, da cólera e da peste.
apurar se dois moradores honestos de uma casa querem salvar O Eterno Descontente: O que, por sua vez, não é tanto mérito
das chamas dez moradores inocentes, enquanto 88 moradores da guerra como de uma força que se lhe atravessa no cami‑
desonestos aproveitam a oportunidade para canalhices, seria nho. Mas para essa força seria tudo muito mais fácil se não
errado atrasar a acção dos bombeiros e da polícia com louvo‑ houvesse guerra. Ou será que fala a favor da guerra o facto de
res aos aspectos bons da natureza humana. É que não havia ela ter proporcionado oportunidade de remediar um pouco
a mínima necessidade de demonstrar a bondade dos bons e as suas consequências? Quem é pela guerra devia tratar essas
foi pouco prático gerar, com esse fim, uma oportunidade atra‑ consequências com mais respeito. Devia ter vergonha, um
vés da qual os maus se tornam piores. A guerra é, na melhor engenho científico que se orgulha das próteses em vez de ter
das hipóteses, uma aula prática baseada numa acentuação dos poder para prevenir radicalmente que haja ossos estilhaça‑
contrastes. Ela pode ter o valor de levar a dispensar as guerras dos. Na sua posição moral, a ciência que hoje faz pensos não
de futuro. Há um único contraste, o contraste entre o que é são é melhor do que aquela que inventou as granadas. A guerra
e o que está doente, que a guerra não reforça. é uma potência moral ao pé dessa ciência, que não se limita
186 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 187
a remendar os danos dela, mas o faz com o fito de tornar a sangrento, ainda era precisa esta confusão mitológica! Mas
vítima outra vez apta para o combate. Pois é, flagelos de Deus desde quando é que Marte é o deus do comércio e Mercúrio o
tão antiquados como a cólera e a peste, horrores de guerras de deus da guerra?
antanho, deixam­‑se intimidar pela ciência e optam pela deser‑ O Optimista: A cada época a sua guerra!
ção. Mas a sífilis e a tuberculose são aliados fiéis desta guerra, O Eterno Descontente: Assim é. Mas a nossa época não tem
com os quais uma humanidade contaminada pela mentira não coragem para inventar os emblemas da sua infâmia. Sabe qual
vai conseguir concluir uma paz separada. Elas vão a par com é o aspecto do Ares desta guerra? Ali vai ele. Um judeu gordo
o serviço militar obrigatório e com uma técnica que tomou da milícia automóvel. O seu ventre é o Moloch. O seu nariz é
a forma de tanques e nuvens de gás. Logo veremos que cada uma foice de que pinga sangue. Os olhos luzem como carbún‑
época tem a epidemia que merece. A cada época a sua peste. culos. Ele vem ao Demel em dois Mercedes, completamente
O Optimista: Ora cá estamos em frente ao Ministério da Guerra. equipado com um alicate de cortar arame. Anda por aí como
Hoje é um dia promissor… um saco de dormir. Tem o aspecto da vida no seu melhor, mas
(Vê­‑se um grupo de especuladores sair do portão principal.) o seu rasto traz o selo do abismo.
Um ardina: Edição especiaaaal… Olhò Weltblatt!60 O Optimista: Mas diga­‑me, por favor, o que é que tem contra o
Um refugiado: (Acompanhado por um outro.) Dê cá! (Arranca Oppenheimer?
o jornal da mão do ardina, lê em voz alta.) “Tudo está bem! (Diante do Ministério da Guerra, engrossou entretanto a mul‑
Departamento de Imprensa Militar, 30 de Agosto, 10:30 tidão, composta na maioria por estudantes nacionalistas pró­
da manhã. A gigantesca batalha continua hoje, domingo. ‑alemães e refugiados da Galícia. Vê­‑se por todo o lado ambos
O estado de espírito no quartel­‑general é bom, porque tudo os tipos de braço dado e, de súbito, ouve­‑se o cântico: “Qual tro‑
está bem. O tempo está magnífico. Kohlfürst.” vão ressoa um brado…”62 Nepalleck e Angelo Eisner von
O segundo refugiado: Esse deve ser assim a modos que um Eisenhof dirigem­‑se um para o outro.)
general! (Saem.) Von Eisner: Excelentíssimo conselheiro da corte, servitore, como
O Eterno Descontente: As máscaras da fachada deste bastião tem passado, como está Sua Alteza? Desde aquela ocasião que
do pecado, que mandam olhar à direita e olhar à esquerda, estão nós…
hoje numa atitude especialmente rígida.61 Se ficar a olhar mais Nepalleck: Os meus cumprimentos. Obrigado. Não me posso
tempo para uma destas cabeças horrorosas, vou apanhar febre. queixar. Sua Alteza está óptima.
O Optimista: Que é que estas velhas figuras marciais lhe fizeram? Von Eisner: Aquela carta de agradecimento de Sua Majestade
O Eterno Descontente: Nada, excepto serem marciais e, ape‑ imperial naquela altura, não há dúvida que Sua Alteza a mere‑
sar disso, não terem sido capazes de tolher a entrada ao men‑ cia, isso deve­‑lhe ter feito um bem fenomenal aos nervos, a
sageiro Mercúrio. Como se não bastasse todo o desmazelo sociedade agora também tem uma opinião unânime…
188 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 189
Nepalleck: Mas pois claro… e o senhor, senhor barão, tem andado Nepalleck: Não me diga, eu julgava que ele andava com a Mädi
muito atarefado? Muito ocupado com a caridade, imagino… Kinsky…
Von Eisner: Não, está a sobrestimar­‑me, meu caro conselheiro. Von Eisner: Mas pelo contrário, que ideia, para essa só o Bubi
Neste momento, estou a retirar­‑me. Há para aí uma quanti‑ Windischgrätz é que conta, sabe, o major, que está agora na
dade de arrivistas e o melhor é deixar­‑lhes o campo livre. Nem Guarda… bem, olhe, uma pessoa é assediada de todos os
todos estão dispostos a aturar essa raça de gente… não, não é lados, inda ontem me dizia o Mappl Hohenlohe na missa, sabe,
coisa que me tente minimamente… é que… aquele que é casado com uma Schaffgotsch, olha cá, diz ele,
Nepalleck: Está bem, mas a boa causa, a boa causa, barão, do porque é que agora andas tão sumido, digo­‑lhe eu, caro Mappl,
que conheço de si, não vai agora descurar todos os seus com‑ tempora mutatur, com a gente que agora está na mó de cima,
promissos, mesmo que, o que eu acho muito compreensível, não percebo como é que vocês todos ainda alinham. Eu, no
não queira estar pessoalmente nos comités… que me toca, do que gosto à brava é de estar num sítio sos‑
Von Eisner: Não, eu agora só ando ocupado na câmara alta… ah, segado. Numa palavra, onde ninguém repara na gente. Quer
mas que digo eu, na câmara da Associação dos Senhorios, há saber, meu caro conselheiro, o que ele me respondeu? Tens
lá imenso que fazer, o Riedl, sabe como é, já não é o mesmo… razão, disse ele! Eu, quanto a isso, estou totalmente de acordo
deve ter tido uma decepção ou, não sei, ele parece é que se sente com o Montschi.63 É claro que contribuo pontualmente com
um pedaço descurado por causa da guerra… pois é, é assim, as o meu óbolo… mas ir lá? Não, nesse ponto conhece­‑me mal.
personalidades mais populares estão agora um bocado postas Nunca gostei da exposição pública. Sabe, é que uma pessoa
de lado, outros chegam­‑se à frente… não está livre de lhe acontecer… está­‑se ali num Te Deum sem
Nepalleck: Bem, as coisas hão­‑de entrar outra vez nos eixos… pensar em mais nada e no dia seguinte aparece­‑se no jornal na
também na corte aconteceu… lista dos presentes.
Von Eisner: Pois, temos todos de ter paciência. Eu, no que me Nepalleck: É, mete nojo, sei como é. Agora, ao menos tenho
cabe, tive experiências bem amargas. Sabe, a caridade, isto insistido em que, já que têm que pôr o meu nome, ao menos
também é assim uma coisa. Poça, nesse capítulo não me fal‑ ponham o nome completo. Já não, como até agora, conselheiro
tava assunto para a Fackel… quer dizer, se quiséssemos dar­ da corte Nepalleck ou conselheiro da corte Wilhelm Nepalleck,
‑nos com aquele tipo. Sabe o que é, senhor conselheiro, só fazer mas, uma vez que o meu verdadeiro nome é Wilhelm
sacrifícios e mais sacrifícios e gratidão nem vê­‑la? Meu Deus, Friedrich… conselheiro da corte Friedrich Wilhelm Nepalleck.
é claro, evidentemente que não me afasto… os meus amigos Não é, agora a coisa soa mesmo bem, podia mudar­‑me já para
Harrach, Schönborn e os outros dão as suas festas, mandam­ Potsdam…64
‑me os seus cartões… ainda ontem o Pipsi Starhemberg, sabe, Von Eisner: Soa fantasticamente! Mas… mudar­‑se para Potsdam?
aquele que anda com a Maritschl Wurmbrand… Anda com vontade disso?
190 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 191
Nepalleck: Qual quê, é só por causa da fidelidade dos Nibelun‑ bocas de certos cavalheiros: “Sempre de acordo com as minhas
gos. Eu… deixar a minha Alteza! Sua Alteza ainda hoje me está intenções.” E, sobretudo, ter sido reconhecido até que ponto
grata pela organização das exéquias solenes. Sua Alteza, quer dizer, nós, não se poupou a trabalhos com o
Von Eisner: É verdade, foi uma beleza! funeral. Sei o texto de cor: “Nos últimos dias, o falecimento do
Nepalleck: Com tudo rigorosamente cumprido… como deve meu querido sobrinho, o arquiduque Franz Ferdinand, a quem
ser num funeral de terceira classe. o ligavam laços constantes de confiança…”
Von Eisner: Foi mais um dos seus êxitos completos, tudo de pri‑ Von Eisner: Foram dois coelhos com uma cajadada.
meira. É, aquela cena na Estação do Sul na altura foi mesmo Nepalleck: É isso mesmo. “…lhe colocaram exigências absoluta‑
gira. (Cumprimenta alguém que passa.) Aquele não era um mente extraordinárias, caro príncipe, e lhe deram novamente
Lobkowitz? Depois vai­‑se queixar de que eu não o reconheço… oportunidade…”
Bem, é claro, em Artstetten… lá, infelizmente, já se notou um Von Eisner: Claro, Sua Alteza deve ter ficado satisfeita por o fale‑
bocadinho que o senhor não tinha estado envolvido, as coisas cimento lhe ter dado oportunidade. Não é difícil de entender.
ali passaram­‑se de maneira bastante ordinária. Nepalleck: Isso mesmo. “…de demonstrar em elevada medida
Nepalleck: É evidente… porque nos cortaram as vazas! O Bel‑ a sua devoção dedicada à Minha Pessoa e à Minha Casa.” Ora
vedere não abriu mão. Oh, nós bem insistimos, eu disse: é com vê? E o agradecimento mais caloroso e pleno reconhecimento
o cerimonial espanhol, não há cá batatinhas! Bem, e depois, por serviços fiéis, extraordinários, que é que se quer mais, de
infelizmente, porque os cavalheiros estavam tão obstinados, certeza que isto fez certos cavalheiros treparem pelas paredes.
quer dizer, em Artstetten houve mesmo batatinhas. Von Eisner: A carta de agradecimento de Sua Majestade impe‑
Von Eisner: Como? rial seguramente que não foi uma surpresa para Sua Alteza?
Nepalleck: Pois, os bombeiros comeram­‑nas junto aos caixões Nepalleck: Nem por sombras, Sua Alteza tomou a iniciativa
de Suas Altezas quando começou o temporal, é que os cai‑ logo a seguir ao cadáver… isto é, o que eu quero dizer…
xões estavam no compartimento das bilheteiras da estação de Von Eisner: Ah, bem, queria dizer que os acontecimentos se
mercadorias, puseram­‑se a fumar charutos, foi um escândalo, precipitaram. Está a ver, caro conselheiro, e agora até temos a
bom, sabe como é, nós não temos culpa, na Estação do Sul foi guerra mundial.
tudo tão bonito e solene. Nepalleck: Sim, uma expiação justa, exaltante. Sim, sim. Se Sua
Von Eisner: Pra mim é como se fosse hoje, na ocasião fiquei Alteza não tivesse tomado a iniciativa…
entre o Cary Auersperg e o Poldi Kolowrat. A verdade é que Von Eisner: Como? Da guerra mundial?
desde aquele momento histórico nunca mais nos vimos. Nepalleck: Ah, mas que é que estou a dizer! Eu queria dizer é
Nepalleck: Pois é, mais não podíamos ter feito. A carta de que Sua Majestade imperial o que precisava era de descanso.
agradecimento de Sua Majestade também calou as prezadas Von Eisner: Como? Em vistas da guerra mundial?
192 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 193
Nepalleck: Não… desculpe… estava a pensar noutra coisa. CENA 23
O que eu queria dizer era que as coisas não podiam continuar Junto à Lagoa de Janow. Entra Ganghofer, cantando à tirolesa.
como estavam, não podiam. Sabe, desde a anexação… Veste um gibão de pano grosso, colete, calções, mochila e bastão de
Von Eisner: Eu disse ao Ährental que ia acontecer. Lembro­‑me alpinista, e traz a Cruz de Ferro de primeira classe; sob o chapéu
como se fosse hoje, foi no ano em que a Aline Palffy foi apre‑ empenachado distingue­‑se um tufo de cabelo louro, um pouco
sentada à sociedade. Ainda o acompanhei até ao Ballplatz… encanecido. No nariz, um tanto curvo, traz umas lunetas de ouro.
Nepalleck: Mesmo que seja um pesado fardo pra cada um…
Von Eisner: Pois é, quem é que não tem razão de queixa, eu já Holodriódrió,
tive prejuízos… Ora cá estou eu na frente,
Nepalleck: O quê? O senhor também, barão? Holodriódrió,
Von Eisner: Sim, sim, uma pessoa vê­‑se aflita pra se desenrascar Não é que isso me apoquente.
com uns fornecimentos. Estou justamente a caminho dali em Sou força da natureza
frente… depois, talvez ainda me encontre com o Tutu Trautt‑ Como é raro de encontrar,
mansdorff… pois, agora a palavra de ordem é aguentar, aguen‑ Pena é não ter destreza
tar… o fundamental é e nunca deixa de ser que a nossa gente se Para a vida militar.
bata bem, o resto vem por acréscimo… Cumprimentos, beijo
as mãos a Sua Alteza… Mas também não é por isso
Nepalleck: Obrigado, obrigado. Serão entregues, cumprimen‑ Que farei fraca figura,
tos, adeus… Servi o Szeps em Viena,
(Ouve­‑se o canto: “Ressoa um brado…”) Vejam lá minha bravura.
(Muda a cena.) Tenho alma de caçador,
Holdrió, e de primeira,
E o que escrevo, já se sabe,
É à maneira.

Plumitivos em Viena
São mais do que água no mar,
Por isso lá não vingou
Minha vida a despontar.
Um traje de camponês
194 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 195
Sem demoras enverguei O Roda Roda não logra
E logo p’lo bosque adentro Pôr o pé em toda a parte,
Me embrenhei. A mais excelsa entrevista
É só cá prà minha arte.
Em vez de andar nas gazetas, O Kaiser fala com gosto
Passei­‑me prà natureza, Comigo de caçador,
E é assim que vou vivendo De um tal senhor isso é
Com largueza. Alto favor.65
A minha cabotinice
Não notam na Baviera, Depois lê­‑me a artigalhada
Só vêem a minha loura E alegra­‑se outra vez,
Cabeleira. E assim faço­‑lhe uma espera
Aqui nesta redondez.
E em Berlim são doidinhos Holodriódrió (ouve­‑se um carro muito ao longe)
É pelo meu dialecto. Tatiú­‑tata­‑tatiú,
Na Prússia, o odor da terra Eis todo o mundo suspenso
É perfume predilecto. Da entrevue.
Se vê jaqueta de pano
E um chapéu emplumado, Um ajudante­‑de­‑campo: (Aparece em passo de corrida.) Ah,
O berlinense suspira aí está você, Ganghofer. Sua Majestade não tarda a chegar, não
Extasiado. ouve já a buzina? Veja se adopta uma atitude bem galhofeira,
você sabe como Sua Majestade aprecia isso, não se ponha com
O meu ânimo brioso patetices, mantenha­‑se igual a si próprio, com naturalidade,
Grandes senhores encantou como se estivesse diante de um velho companheiro de caça‑
E até mesmo o Guilherme das. Você sabe que, quando toca à arte, Sua Majestade só tem
Comigo se deslumbrou. três ideais: na pintura, Knackfuß, na música, O Corneteiro de
Ser um rato dos jornais Säckingen66 e talvez também “Amor, Luz dos Meus Olhos”,67
Dá­‑me jeito de repente: na literatura, você, caro Ganghofer, e talvez também Lauff,
Escrevo prà Freie Presse Höcker e a Anny Wothe. Otto Ernst também tem coisas boas.
As crónicas da frente. Portanto… nada de nervosismos, Ganghofer, Deus sabe que
196 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 197
não tem nenhuma precisão disso… e ponha­‑se bem firme, O Imperador: Já esteve em Przemísel, Ganghofer? Mas coma lá,
como convém a um caçador e a um tipo desempoeirado, Sua pelo amor de Deus, coma! (Ganghofer come.)
Majestade vai seguramente estender­‑lhe a mão com um riso Ganghofer: Os meus mais humildes agradecimentos, Majes‑
cordial. (Ouve­‑se o sinal: tatiú­‑tata…) Aí vem Sua Majes‑ tade. Sim, sim, em Pchemisl.
tade. Vem acompanhado pelo fotógrafo da Woche.68 Vai ser O Imperador: Então, ficou satisfeito? Quer dizer, com Przemísel.
uma cena das mais arrebatadoras, ver o Imperador e o Poeta Mas coma, Ganghofer, veja se come!
caminhando juntos, pois ambos habitam os cumes da humani‑ Ganghofer: (Comendo.) Sim, sim. Foi estupendo lá em Pchemisl.
dade.69 Mas não julgue que estou a pensar nas suas montanhas, O Imperador: Viu o Sven Hedin? Mas coma, Ganghofer…
caro Ganghofer, estou a pensar nos cumes do espírito. Cora‑ Ganghofer: (Comendo.) Vi, vi sim.
gem, pois, caro Ganghofer… (ouve­‑se o sinal de muito perto: O Imperador: (Com os olhos a brilhar.) Fico contente por você
tatiú­‑tata…) força nas canetas! ter travado conhecimento com esse homem. Este sueco é um
(S.M. com o seu séquito. Em segundo plano, o fotógrafo da tipo e peras. Se voltar a vê­‑lo – mas veja se come, Ganghofer –
Woche. S.M. dirige­‑se ao poeta e estende­‑lhe a mão com um transmita­‑lhe as minhas saudações mais cordiais.
riso cordial.) (Um avião russo aproxima­‑se vindo de leste, brilhando ao sol
O Imperador: Safa, Ganghofer, você está em toda a parte! Ouça dourado do entardecer como um escaravelho de ouro. Atrás dele
lá, Ganghofer, você é dos bons! rebentam granadas. O Imperador está calmamente de pé,
Ganghofer: Majestade, toda a paixão do meu coração se empe‑ olha para o céu e diz.)
nhou em conseguir alcançar a marcha triunfal dos exérci‑ Curto de mais!
tos alemães. Eia, esta saiu­‑me assim de repente! (Põe­‑se aos (Os restantes tiros ficam a grande distância atrás do avião.
pulinhos.) O Imperador abana a cabeça, pensativo.)
O Imperador: (Rindo.) Tá bem, Ganghofer, tá bem. Olhe, já Pois é, ter asas quer dizer para os outros chegar sempre tarde.
almoçou? Mas coma lá, Ganghofer.
Ganghofer: Não, Majestade, numa época tão grande, quem é (Há um intervalo, durante o qual Ganghofer come. De
que ia preocupar­‑se com uma coisa dessas? repente, o Imperador vira­‑se para o escritor e diz­‑lhe com voz
O Imperador: Por amor de Deus, mas então tem que comer já abafada, em tom severo e devagar, destacando cada palavra.)
alguma coisa! (O Imperador faz um sinal e trazem um pote Ganghofer – que – diz – da – Itália?
com chá e duas grossas fatias de bolo. O próprio Imperador (Só passado um bocado, durante o qual Ganghofer esteve a
mete a mão numa lata, enche os bolsos de Ganghofer com comer, é que este consegue responder.)
bolachas, enquanto vai repetindo.) Coma, Ganghofer, coma lá! Ganghofer: Majestade, tal com as coisas aconteceram, acho
(O fotógrafo dispara a máquina.) que é melhor para a Áustria e para nós. Numa casa honrada, o
198 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 199
melhor que há é ter sempre tudo em pratos limpos. os tímpanos rebentados. Quando ela começa a cantar a sua tro‑
(O Imperador acena aprovadoramente com a cabeça. Um sus‑ vejante canção – uma canção do espírito inventivo alemão e da
piro de alívio distende­‑lhe a figura.) força alemã –, sai­‑lhe da garganta um raio de fogo do tamanho
O ajudante­‑de­‑campo: (Baixinho, para Ganghofer.) Dialecto! de um poste e quem estiver atrás da priminha cantora (o Impe‑
Dialecto! rador ri com gargalhadas tonitruantes) vê um disco negro,
O Imperador: E então, Ganghofer, você tem algum artiguinho que vai ficando cada vez mais pequeno, a subir a pique pelos
pronto? Ora leia­‑nos lá. ares até uma altura que nem com uma boa centena de torres de
Ganghofer: Às ordens, Majestade, mas, infelizmente, está igreja empilhadas umas sobre as outras se conseguiria alcan‑
escrito em parte em alto­‑alemão. çar. E, muitos segundos depois, rebenta na fortaleza russa de
O ajudante­‑de­‑campo: (Baixinho.) Dialecto! Rozan um inferno de fumo e de fogo. Uma eficiente filha da
O Imperador: Leia, não se preocupe. Alemanha, esta virgem de ferro! (O Imperador bate com a
Ganghofer: O começo, Majestade, é em dialecto da Suábia. mão esquerda na coxa, às gargalhadas.) Separo­‑me dela com
O Imperador: Ora, tanto melhor, excelente, leia. o sentimento de uma confiança reforçada e da mais elevada
Ganghofer: (Tira um manuscrito do bolso e lê.) “A meio cami‑ satisfação, tiro, 400 passos adiante, os tampões de algodão dos
nho, dizem­‑nos que a primeira trincheira inimiga antes da ouvidos e descubro agora que a voz desta excelente rapariga
cintura fortificada de Rozan já foi tomada. Foi um belo golpe soa de um modo sumamente aprazível. (O Imperador ri­‑se
à maneira da Suábia. Um soldado de Estugarda com que nos como um lobo.) Admito que este juízo tem um carácter for‑
cruzamos na rua, com o braço esquerdo metido numa faixa temente subjectivo. Provavelmente, se fosse comandante da
branca, diz­‑me risonho: ‘A primeira trincha já cá canta. A coisa fortaleza de Rozan, teria uma opinião muitíssimo diferente.”
’teve feia. Os russos despacharam granadas em barda. Mas O Imperador: (Que, no final, escutou com os olhos a brilhar e um
tanto dá. O que importa é que agora a trincha é nossa! Aí é que rosto radiante, bate agora sem parar com a mão esquerda na
bate o ponto!’” coxa e grita.) Ai, isto é de gritos! Bravo, Ganghofer, você apa‑
O Imperador: Esplêndido, Ganghofer. nhou a coisa às maravilhas. Lauff cantou a gorda Berta e você
Ganghofer: (Continuando a ler.) “Aproveito os primeiros alvores faz a corte à priminha, é de morrer a rir, é de morrer a rir! Mas
da manhã para visitar uma priminha bem encorpada da nossa coma Ganghofer, você não está a comer nada…
zelosa Berta.70 (O Imperador ri­‑se.) Uma moça ainda jovem! (Ganghofer come. O Imperador, aproximando­ ‑se dele
E, apesar disso, já com uma força espantosa! A sua boquinha numa decisão súbita, diz­‑lhe alguma coisa ao ouvido. Gang­
está talvez uns quatro metros acima do meu telhado capilar. hofer estremece, um pedaço de bolacha cai­‑lhe da boca, o
(O Imperador ri a bandeiras despregadas.) E tem uma voz tal rosto está como que resplandecente de um alegre entusiasmo e
que é preciso pôr algodão nos ouvidos se não se quer ficar com exprime determinação. Põe o dedo em cima da boca, como se
200 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 201
quisesse garantir o seu silêncio. O Imperador faz a mesma o sinal vindo de longe, Ganghofer continua a dançar. Depois
coisa.) pára e diz, num tom totalmente diferente.) Isto vai dar um artigo
Ganghofer: Um novo elo de aço para a aliança. de fundo!
O Imperador: Só divulgar no dia em que for concretizado! (Muda a cena.)
Ganghofer: E esse dia há­‑de chegar!
O Imperador: Coma, Ganghofer! CENA 24
(Ganghofer come. Um ordenança traz­‑lhe uma mensagem.) Gabinete do Chefe do Estado­‑Maior.
Ganghofer: É de Mackensen! (Lê em alegre excitação.) “Parta o Conrad von Hötzendorf, sozinho.
mais cedo possível. As posições russas junto de Tarnoo foram Posição: braços cruzados, em posição de descanso, pensativo.
conquistadas por nós…”
O ajudante­‑de­‑campo: (Baixinho.) Dialecto! Conrad: (Elevando os olhos ao céu.) Se ao menos já tivesse che‑
Ganghofer: “…amanhã há­‑de cair Lemberg.” Iupiii! (Começa gado o Skolik!
a bailar uma dança tirolesa. Depois, recolhendo­‑se, com gravi‑ Um major: (Chega.) Meu general, com sua licença, o Skolik já
dade, elevando os olhos ao céu.) Majestade! chegou.
O Imperador: Então, mas que é que tem, Ganghofer, dance lá Conrad: Mas qual Skolik?
mais um poucachinho. O major: Ora, Skolik, o fotógrafo da corte, de Viena, o que
Ganghofer: Terei que manter segredo por mais tempo? daquela vez, durante a Guerra dos Balcãs, fez aquela bela foto
O Imperador: Mas então que é que se passa? do meu general absorto no estudo do mapa dos Balcãs.
Ganghofer: O que Sua Majestade acabou de me confidenciar… Conrad: Ah, sim, tenho uma lembrança desfocada.
a minh’alma já não consegue calá­‑lo… que Sua Majestade O major: Não, meu general, bem nítida, perfeitamente iluminada.
(abruptamente) destinou três vagões de cerveja bávara para as Conrad: Sim, sim, lembro­‑me, foi um momento glorioso.
nossas briosas tropas austríacas! O major: Ele alega que o meu general o mandou chamar outra
O Imperador: Ora, cá por mim, grite a notícia aos quatro ventos! vez.
É bom que saibam que vão poder beber uma boa pinga da sua Conrad: Bem, chamar, chamar, não foi bem, mas mandei­‑lhe dar
formosa Baviera! Mas você… coma, Ganghofer, coma lá! um toque, porque o homem não há dúvida que tira belos retra‑
Ganghofer: (Come e dança à tirolesa ao mesmo tempo, o Impe‑ tos. Ele escreveu­‑me a dizer que já não sabe que desculpa dar
rador dá uma palmada no rabo do ajudante­ ‑de­
‑campo, aos jornais ilustrados, que aquela fotografia teve um sucesso
o fotógrafo dispara. O séquito põe­‑se em ordem de marcha. nunca visto, em suma…
Quando o Imperador sobe para o carro e acena outra vez a O major: Ele pediu também para ser autorizado a tirar uma foto‑
Ganghofer, ouve­‑se o sinal: tatiú­‑tata… Enquanto soa ainda grafia de grupo com os senhores generais.
202 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 203
Conrad: Isso é que já não me agrada! Eles que mandem vir os militares” ou coisa parecida, cada um por si, só mesmo se for
seus próprios fotógrafos. para postais ilustrados.
O major: Ele diz que eles não têm cabeça e então é capaz de lhes Conrad: Ai sim? E quem é que você tem? Veja lá, não se esqueça
tirar só uma fotografia de meio­‑corpo. do Höfer, esse é um homem expedito, recebe 20 mil coroas de
Conrad: Ah, isso é outra coisa. Mande então entrar o Skolik! subsídio de combate só por ler o nome todos os dias quando
Espere… e se fosse outra vez a estudar o mapa dos Balcãs… compra a edição especial na Ringstraße.
isso é que foi uma coisa extraordinária… mas parece­‑me que, Skolik: Já está na lista, Excelência, evidentemente, em primeira
para variar, talvez o mapa da Itália… linha.
O major: Esse agora é sem dúvida mais adequado. Conrad: O quê, primeira linha, mas afinal como é que é? Então
(Conrad von Hötzendorf desdobra o mapa e ensaia dife‑ e eu, onde é que você me mete? Tudo menos coisa que salte de
rentes posições. Quando o fotógrafo entra com o major, já está mais à vista, nada que salte à vista, meu caro, você sabe, não me
absorto no estudo do mapa do teatro de guerra italiano. O fotó‑ ponha junto c’os outros, com discrição! Sempre com discrição!
grafo faz uma vénia rasgada. O major põe­‑se ao pé da secretá‑ Skolik: O espaço já está reservado expressamente. Vai ser a primeira
ria. Ele e Conrad olham fixamente para o mapa.) página, a primeira página da Woche. Um número muito interes‑
Conrad: Mas que é que foi agora? Será que não se pode estar um sante, de Viena fiquei também encarregado das manequins dos
só instante… não vêem que estou justamente… Ateliers Vienenses e do Treumann, mas tenho informações segu‑
(O major pisca o olho ao fotógrafo.) ras de que também vai aparecer ainda Sua Majestade, o impera‑
Skolik: Só uma pequena foto especial, Excelência, se me permite dor da Alemanha, na caça ao javali, uma fotografia ainda inédita,
o atrevimento. e, logo ao lado, a grande sensação, Sua Majestade em conversa
Conrad: Estou eu a trabalhar para a história universal e… com o escritor Ganghofer. Portanto, Excelência, acho que…
Skolik: É que do Interessantes Blatt pediram­‑me e… Conrad: Tá bem, nada mal, nada mal… mas, meu caro amigo,
Conrad: Ah, ah, para recordação da época… de momento estou, infelizmente… não pode vir um poucochi‑
Skolik: Sim, também para a Woche. nho mais tarde, é que eu… digo­‑lho em confidência, não está
Conrad: Mas aí acaba por se aparecer no meio dos nossos gene‑ autorizado a divulgar, é que eu estou precisamente a estudar o
rais, já sei como isso é, eu antes queria… mapa dos Balcãs… ah, quer dizer, da Itália…
Skolik: Não, Excelência, Vossa Excelência pode ficar completa‑ (O major pisca o olho ao fotógrafo, que fazia menção de se
mente sossegada a esse respeito. Com o nome imortal que é o retirar.)
de Vossa Excelência, é evidente que Vossa Excelência vai apa‑ Skolik: Isso vem mesmo a calhar… trata­‑se de um momento da
recer completamente à parte. Os outros, esses aparecem todos mais elevada presença de espírito, é uma ocasião que não pode
juntos, por exemplo, com a legenda “Os nossos gloriosos chefes ser desperdiçada. Estou mesmo a ver a legenda: “O major­
204 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 205
‑general Conrad von Hötzendorf estuda com o seu ajudante­ O especulador: Como o senhor adivinha… penso muitas vezes,
‑de­‑campo, o major Rudolf Kundmann, o mapa do teatro de nem livrinhos vermelhos,71 nem sessões públicas… mesmo ele
guerra dos Balcãs…” ah, quer dizer, “da Itália”. Acha que está já há uma eternidade que ninguém lhe põe a vista em cima.
bem, Excelência? O proprietário de imóveis: Não me venha cá com o Kraus,
Conrad: Bem, cá por mim… mas é pra fazer a vontade ao Kund­ um homem que, como toda a gente sabe, não tem ideais. É que
mann, ele está em pulgas… (Olha fixa e detidamente para o eu conheço o cunhado.
mapa, o major, que não se mexeu do sítio, faz a mesma coisa. O especulador: Eu conheço­‑o pessoalmente.
Ambos cofiam os bigodes.) É coisa para demorar? O proprietário de imóveis: Conhece­‑o pessoalmente?
Skolik: Só um momento histórico, se me permitem… O especulador: Olá se conheço, não havia dia que ele não pas‑
Conrad: Então acha que devo prosseguir com o estudo do mapa sasse por mim.
dos… quer dizer, da Itália? O proprietário de imóveis: Não há razões para sentir orgulho
Skolik: Esteja à vontade, Excelência, prossiga como quiser com o nesse convívio. Arrastar tudo pela lama… botar tudo abaixo…
estudo do mapa… assim… descontraidamente… como quem não construir nada… grande reformador, ora vejam lá! Sabe o
não quer a coisa… assim… não, isso ficaria um poucochinho que lhe digo, eu sei como é que isso é. Quando era mais novo,
artificial, ainda podiam julgar que era uma cena preparada… também eu criticava tudo, não havia nada que me enchesse as
o senhor major, se faz favor, um bocadinho mais pra trás… a medidas. Até ter assentado. Ele também há­‑de assentar.
cabeça… assim tá bem… não, Excelência, mais naturalidade… O especulador: Ele também já anda muito descoroçoado.
e com uma expressão ousada, por favor, mais ousada! Uma O proprietário de imóveis: Ora está a ver? Ouvi dizer que ele
expressão de comando, se faz favor!… É que isto tem que ser… não tarda a arrumar as botas.
assim… tem que ser uma lembrança histri… uma lembrança O especulador: Porque não? De certeza que também já ganhou
histórica duradoura da grande época… assim está bem!… Só umas boas massas.
mais… um poucachinho… assiiim… Excelência, por favor, O proprietário de imóveis: Ganhou…! Como ele anda a bater
uma cara de poucos amigos!… Agora! Já está… obrigado! a bola baixinho! É o que lhe digo, o homem está acabado. Vá
(Muda a cena.) por mim. Assim é que as coisas vêm ao de cima. Harden não
parou na guerra. A verdade é que ele é que tem os temas mais
CENA 25 elevados… (Pára.) São giros estes oficiais alemães, mais giros
Picadeiro. que os nossos.
O especulador: Claro, agora que era a altura de escrever é que
Um especulador: Sabe quem é que desapareceu por completo? ele não escreve!
Um proprietário de imóveis: Sei, o Kraus da Fackel. O proprietário de imóveis: Ora, mas deixam­‑no?
206 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 207
O especulador: Por causa da censura? Ora, ora, uma pena hábil, serviço! Trabalham! Está a ver, não me custa imaginar que à
e há que reconhecer que ele tem uma, podia… noite queiram ouvir o Salzer.
O proprietário de imóveis: Não é por causa da censura… O proprietário de imóveis: Uma lástima, essa Reims… que
ele é que já não pode. Já não dá uma prà caixa. Vá por mim. pena, a catedral!
E depois… de qualquer modo, ele sente que agora há mais O especulador: Ora, não me venha com essa, era o que mais
em que pensar. No tempo da paz era tudo muito divertido… faltava! O senhor desculpe, tratando­‑se, como ficou provado,
agora não há disposição pra bisbilhotices dessas. Vai ver que de um reduto militar, é pura hipocrisia da parte dos franceses.
não tarda que ele deixe de se armar em caro. Sabe o que é que Entrincheirarem­‑se atrás de uma catedral, é bom é, não me
eu lhe desejo… deviam era mobilizá­‑lo! Para a frente! Ele que venha cá com essa cáfila.
mostre aí quem é! O que ele só sabe é dizer mal. (Passa o Eterno O proprietário de imóveis: Ora, ora, por favor, não precisa de
Descontente. Ambos cumprimentam.) me saltar em cima. Eu disse alguma coisa? Até parece que eu
O especulador: Olha que coincidência! Então o senhor não sei tão bem como o senhor onde é que estão os bárbaros.
conhece­‑o pessoalmente? Como assim? Mas uma pessoa sempre pode ter pena da catedral, não? Na
O proprietário de imóveis: De fugida, de uma sessão qualidade de proprietário de imóveis…
de leitura, fico contente quando não o vejo. Uma pessoa O especulador: Bem, está bem, isso é outra coisa, o que eu
não deve dar­‑se com gente assim. (Passa Fanto. Ambos não suporto é que se esteja com sentimentalismos na guerra e
cumprimentam.) sobretudo num caso em que se trata de uma efectiva artima‑
Ambos: (Ao mesmo tempo, em tom de mistério.) Fanto. nha! A guerra é a guerra, pronto!
O proprietário de imóveis: (Absorto.) Grande homem! O proprietário de imóveis: Ora aí você tem razão!
O especulador: Porque é que ele não faz sessões de leitura? O especulador: Onde é que isto ia parar? Uma pessoa pode
É uma coisa que está a dar. sujeitar­‑se a um fiasco? A melhor defesa é o ataque! Ora veja
O proprietário de imóveis: (Como que acordando.) Quem?… ali… é de se tirar o chapéu.
ah, sim… claro… Marcell Salzer anda até a fazer uma tournée O proprietário de imóveis: Espere, vou dar um brado…
pela Bélgica, ainda hoje vi no jornal que ele segue dali para o Vivam os nossos valentes soldados!
exército na França e, depois, para o quartel­‑general e para as (Entram um soldado alemão e um austríaco, ombro com ombro.)
tropas de Hindenburg. Primeiro­‑sargento Wagenknecht: Então nós pusemo­‑nos
O especulador: Pois, Hindenburg até lhe escreveu. Vai ter coi‑ todos em formatura e o nosso bombardeiro­‑mor disse: “Rapa‑
sas pra contar. Viu hoje no jornal a notícia sobre as granadas zes, quando vos der agora a vontade, é dar­‑lhes na tarraqueta.”
incendiárias, as que se inflamam sozinhas no ar, que eles andam Cabo Sedlatschek: (Mantendo­‑se muito chegado e erguendo
há dez meses a atirar pra cima de Reims? Eles não brincam em assustado o olhar para ele.) Não…!
208 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 209
Wagenknecht: Desculpa lá, é que tu estás encostado ao meu não era isso que queria dizer. Pra isso nós temos a expressão:
ombro. lançar!
Sedlatschek: Ah, d’sculpa… (Recua.) Sedlatschek: (Fitando­ ‑o sem entender.) O quê… atão… o
Wagenknecht: Bem, assim tá melhor. Então, vê lá, o lançador­‑mor?
bombardeiro­‑mor deixou ao nosso cuidado… Wagenknecht: Nã, nada disso… isso não existe. Caramba, vê
Sedlatschek: Olha ali, aquela loja é de estrondo! (Aponta para lá se ouves. O que eu quero dizer é que o bombardeiro lança a
uma montra.) bomba. Mas o bombardeiro­‑mor…
Wagenknecht: Como?… ah, bem… pensei… ora ouve… (Está Sedlatschek: (Olhando fixamente para ele.) Mas o mor o quê?
agora completamente encostado a Sedlatschek, que recua Wagenknecht: Bem, esse é que é o chefe dos bombardeiros, por
cambaleante.) isso é que se chama bombardeiro­‑mor… como é que eu te hei­
Sedlatschek: Ai, é que estás a apertar­‑me o ombro! ‑de explicar, por exemplo, ah, bem, vamos a ver, vocês também
Wagenknecht: D’sculpa. Ora ouve então, o bombardeiro­‑mor… têm a designação chefe de mesa ou comandante­‑em­‑chefe…
Sedlatschek: D’sculpa interromper­‑te. É que há uma coisa que Sedlatschek: Olha, agora tou­‑te a entender. Atão da mesma
não entendo bem. maneira que o comandante­‑em­‑chefe é o superior dos clien‑
Wagenknecht: Então? tes… ou não… da maneira que o chefe de mesa é o superior
Sedlatschek: É que, d’sculpa… tu dizes que o bombardeiro­ da guarnição… não…
‑mor fez e aconteceu. Mas vocês são todos bombardeiros, Wagenknecht: Mas estás a ver, nesse caso nós dizemos simples‑
quem é que fez e aconteceu afinal? mente: “Ó chefe… ó chefe, venha aqui, por favor.”
Wagenknecht: Não entendo a tua dúvida, o que eu disse foi, Sedlatschek: (Vira­‑se, faz a continência, assustado.) O quê?
presta mais atenção… o bombardeiro­‑mor. Chamaste o comandante­‑em­‑chefe?
Sedlatschek: Está bem, mas d’sculpa… mas então tu também Wagenknecht: Mas homem, nesse caso eu não podia dizer
não atiras bombas? Então também és um bombardeiro­‑mor. chefe. Estás a ver, no caso do criado de mesa deixa­‑se de lado
Wagenknecht: Mas como, ora ouve… a designação da profissão e diz­‑se simplesmente chefe, se
Sedlatschek: Atão… o bombardeiro­ ‑mor é alguém… que queres…
amanda as bombas… ou não? Sedlatschek: Chefe sequer?
Wagenknecht: Amanda as bombas? Mas o que é isso? Wagenknecht: Mas não, eu só queria dizer, se queres dirigir­‑te
Sedlatschek: (Faz a pantomima de lançar.) Ora… não enten‑ aos outros superiores não podes exprimir­‑te de maneira tão
des… amandar… dali… ora vê… amandar… pra cima dos tipos. terra­‑a­‑terra, não se diz ao comandante­‑em­‑chefe “Ó chefe!”,
Wagenknecht: Ah, bem, agora entendo… eh pá, mas isto tem era uma ofensa, tás a ver. Bem, e com o bombardeiro­‑mor é
imensa piada… é de morrer a rir… é de se mandar ao ar… nã, mais ou menos o mesmo.
210 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 211
Sedlatschek: Tou a ver… deve­ ‑se dizer atão: “Senhor gostar de um tabaco fino que me manda de além­‑mar um tio,
bombardeiro­‑mor, posso pôr­‑me eu agora a bombardear?” um casmurro dos antigos. Ei, fumamos uma cigarrada juntos
Wagenknecht: Bem, cá por mim, se isso te dá gozo… vós, aus‑ e enquanto as argolas soltas vão subindo, talvez então algum
tríacos, sois uns cómicos de truz. Bem, dá­‑me licença por um desejo fiel esvoace até junto dos valentes, que ora fazem frente
bocadinho, preciso só de urinar. (Dirige­‑se a um urinol público. a tantos inimigos malévolos por mor do nosso lar e que estão
No momento em que vai a entrar, sai Hans Müller, vai direito longe de nós desde que nos engalfinhámos com esses povos lati‑
ao sargento alemão e beija­‑o.) nos. E vós… também estivestes no hospital? Estais enfermos?
Wagenknecht: Olha que esta! Olhe lá, isso é muito simpático, é Será que estais até feridos? Pois seja! Haveis de vos recuperar à
verdade, não há dúvida que vós, vienenses, sois uma gentinha vontade. Mas dediquemo­‑nos também a coisas edificantes e que
gira, mas… a hora tranquila que nos foi oferecida por um fácil acaso seja
Hans Müller: Iupii, não há dia que não me venha à cabeça o temperada pela circunspecção deveras apropriada ao conteúdo
dito de Bismarck: “A nossa gente dá vontade de a beijar”, e é desta terríbil história, mas também aos dias outonais da mais
isso mesmo que eu faço. Com mil raios! Não me consigo conter ensolarada esperança de felicidade. Ei, estais a hesitar? Não que‑
quando ponho os olhos em cima dum desses bravos rapazes. reis? Se calhar estais de mau humor? Lérias! Deixai lá a irrita‑
Vou pela rua fora, meditando em como agora o fiel coração de ção, guardai­‑a no canto mais escuro, onde velhas quinquilharias,
mãe deve estar repleto com a lembrança do seu intrépido filho sem préstimo para a festa, se foram juntando. Força, dêem cá
e eis que aparecestes vós, um penhor da mais nobre aliança que mais uma, tomai a mão de irmão e deixai todos os bons espíri‑
alguma vez soldou a união de dois povos, e se isso não vos enfa‑ tos da vossa alegria de viver festejar a quermesse! O quê? Estais
dar, primos, de bom grado irei beber um copo convosco. Vede, amuados com o céu azul? Ora, manias! Não passa dum resmun‑
aqui pertinho, neste bar, a que o espírito estrangeirado chama gão quem hoje queira deixar­‑se ficar de lado, de um tolo, quem
Bristol, há uma boa mesa posta, há de certeza também uma alimentar desconfiança contra a palavra amiga, de um brinca‑
refeição saborosa e, em animadas conversas, embora sem per‑ lhão, quem for pôr os camaradas nas bocas do mundo. Ao diabo
der a noção da solenidade da hora, nunca o tempo nos há­‑de com todos os boateiros maldizentes! Não há quem não saiba que
parecer demasiado comprido. Ei, eu tenho um bom varapau e não é agora altura de ser um desmancha­‑prazeres. Tolos é que
sou capaz de uma passada vigorosa como os melhores. Venham, vós não sois. Mesmo que não sejais um doutor, juntos podíamos
vamos entregar­‑nos ao prazer da convivência, quereis? Tenho cá chegar longe. Ei, podeis esticar a corda à vontade! (Um carro de
uma vontade, camarada, de beber um copo, que tal se fôssemos praça pára diante do Hotel Bristol. Ouve­‑se uma voz: “Na guerra
juntos erguer ao Sol a taça de tinto? Ou quereis fazer as hon‑ arrecebo a dobrar!”) Ei, ficais admirados com isso? Não leveis a
ras a uma caneca de cerveja, uma saudável bebida fermentada mal, é costume da terra, o cocheiro é um desordeiro e ainda por
das terras da Boémia! Não vai custar grossa moeda! Haveis de cima um malandro de marca…
212 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 213
Wagenknecht: O quê? deixai que a moça fique ao vosso dispor. É uma cortesã que
Hans Müller: …não leveis a mal, ele está a batalhar pela gor‑ vos vai deleitar, pois que o seu mester é dedicar­‑se aos prazeres.
jeta, porque não trabalha a troco de um “Deus lhe pague”, um O diabo leve todos os misantropos e vós só tendes de agir
viandante assim nunca pode exigir bastante e a nenhum outro como achardes melhor, mas não me parece uma companhia
título do que o egoísmo. Ei, um trato que está todos os dias a digna da gravidade dos tempos. Tende a coragem de serdes
acontecer, de modo nenhum uma zanga azeda – ele é de opi‑ quem sois e, mesmo que não sejais versados em altas retóricas,
nião que o outro há­‑de saber quanto é que ficou a dever, o que não tenhais estudado as artes e saberes da ciência jurídica,
forasteiro retruca que não sabe, mas gostava de saber, o outro que sejais ignorantes das obras eruditas, ei, todo o ofício vale
que o proclame sem rebuço, este garante que não pede mais ouro e à minha frente não tendes de medir, hesitantes, as pala‑
do que é seu direito e o que corresponde à tarifa, o forasteiro, vras. Se o que tendes em mente é alguma bugiganga que pro‑
sem má intenção, pergunta qual é então a tarifa, o homem, metestes levar à vossa bem­‑amada, a uma priminha jeitosa ou
atrevido, aconselha­‑o a esportular o que costuma esportular uma coisinha fofa assim a quem não quereis de modo nenhum
aos outros e pragueja exuberantemente contra os tempos que pagar em dinheiro… podeis dizer­‑mo sem rodeios. Haveis de
vão maus, pois, na verdade, a aveia dá­‑lhe mais coceira do que arranjar o que quereis, mesmo que fosse um anelzinho de ouro
ao seu cavalo, continuam um pedaço a regatear animados, para o dedo, não vos há­‑de custar couro e cabelo. Não vale pre‑
mas aquele não vacila e observa que não hão­‑de precisar de gar sustos. Posso indicar­‑vos um mercador que por um “Deus
ir ao alcaide. E eis que levam a espinhosa questão a uma con‑ lhe pague” já deixou marchar daqui com presentes preciosos
clusão pacífica, o fulano desembolsa o dobro, o outro, ainda muitos valentes guerreiros das plagas alemãs. Que não vos dê
rabugento, exige uma alcavala de mais um décimo, o fulano cuidado. O ouro, já se sabe, é uma coisa dos infernos, que tem
paga e o outro esporeia o veloz corcel apodando­‑o de paspa‑ de ser bem guardada, e o compadre Traugott Feitel aqui em
lho sovina. Pois bem! Cada qual que aproveite a oportunidade frente vai ficar ao vosso inteiro dispor. (Passa Mendel Singer,72
se a hora lhe é propícia, e a Dona Astúcia é guia segura por Müller cumprimenta.) Ei, não o reconhecestes? Caramba, era
trancos e barrancos. Nós não somos senão os bobos da for‑ mestre Mendel, um cantor celebrado e jucundo conselheiro
tuna e quem não sabe como se comportam as pessoas sensatas do imperador! Mas agora atrever­‑me­‑ia a dizer que tendes de
é um tolo. Isto aplica­‑se a vós. Se tendes engenho que valha ir directos comigo para a taberna. É um excelente anfitrião e
um vintém de Carnaval e não tendes papas na língua, tudo se hospedeiro, e vai­‑vos preparar manjares e bebidas muito ao
há­‑de virar passo a passo em vosso favor. (Passa uma prostituta vosso gosto. Vinde, Amigo Hesitante, esquecei todas as dúvi‑
que diz: “Anda daí, ó doutor de preto, a gente vai passar um das mesquinhas e pregai uma partida ao demónio Melancolia.
bom bocado.”) Não dá, agora não tenho tempo. (Para Wagen­ Ele abunda em ardis e ciladas e ainda vai acabar por vos con‑
knecht.) Ei, ficais admirados? Então tratai da vossa vida e tagiar. É capaz de muitos disfarces e cai­‑vos em cima quando
214 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 215
menos estais à espera. Então, mestre Perplexo, porque estais aí vos há­‑de parecer composta para violino. Olhai, já o Sol se põe
feito parvo? Será que tenho o aspecto de alguém que está com sobre os campos, saúda com os seus últimos raios os fatigados
a telha? Ou será que julgais que tenho a bolsa vazia? Eu ganhei ceifeiros que seguem o seu caminho, muitos deles a regressar
umas massas valentes nos teatros e desenvencilhei­‑me à valen‑ exaustos a casa da alegre montaria, todos com os olhos postos
tona com os meus cantos de guerra! Não sou um desmancha­ na meta aprazível, onde a casa e o lar, a fiel e amante esposa e a
‑prazeres, tenho as melhores intenções e o meu desejo era alegre roda dos filhos os aguardam. Muitas cosem em casa até
que passásseis um bom bocado, não que vos fôsseis pôr com os dedos ficarem em ferida, pensam piedosas nos trabalhos do
tristezas em pleno dia. Será que, como sois um cavaleiro em guerreiro na agreste época de Inverno e, libertas do dever de
armas, desprezais a companhia de um pobre rapaz que ficou preparar a sua mesa, velam amorosamente pela grande família
em casa? Não é por isso que sou um poltrão, não senhor. Posso dos seus compatriotas. Mulheres e donzelas de Vindobona, nas
cantar­‑vos muitas modinhas ardorosas que vos fortalecerão a margens do velho rio dos Nibelungos, salve­‑vos Deus!
coragem para novos feitos viris. (Passa Sieghart, Müller cum‑ Wagenknecht: (Como que despertando de um estado de ator‑
primenta.) Ei, não o reconhecestes? C’um caramba, era mes‑ doamento, para Sedlatschek.) Olha lá, Sedlatschek…
tre Sieghart, um dos melhores entre os melhores, que cobra Sedlatschek: (Aproxima­‑se.) Bolas, esteve demorado…
direitos de venda das armas… É o que vos digo! Pois é! Quem Wagenknecht: Ah, nãã, eu ia pra me aliviar ali dentro e eis
dá mais do que tem é um velhaco, mas eu tenho um bom for‑ senão quando aparece­‑me um rapazola judeu a sarrazinar­‑me
necimento de anedotas com piada. Hum. Julgais que sou um os ouvidos…
intrigante? Ou que sou um malandro que o que quer é pregar­ Hans Müller: (Transformado de súbito.) Olha que esta, se calhar
‑vos uma partida ou então um peralvilho ocioso que só vai é um crime eu querer convidá­‑lo a ir ao Bristol por simpatia
dando à matraca para depois vos ludibriar? Tarrenego, Bel‑ com a nossa aliança em armas? Mas quem é o senhor? Julga
zebu! Não sejais grosseiros, por favor! Nunca na minha vida que me deixo impressionar? Havia de ser bonito! E à conta
fui um sonso ou um hipócrita. Sou inofensivo e, embora não de quê? Não vou fazer­‑lhe a continência, pode ficar à espera,
seja nem por sombras um rapazola sem eira nem beira, sou se quiser, uma continência minha é que não! Eu queria falar
um homem ajuizado, que gosta de estar nas suas sete quintas consigo porque tenho de escrever para domingo uma crónica
e, quanto ao resto, vive e deixa viver. (Um homem agacha­‑se sobre a fidelidade dos Nibelungos… agora pode esperar sen‑
para apanhar do chão uma beata de charuto.) Ora viva, meu tado! (Sai.)
velho, que tal a cachimbadazinha? (Continuando.) Também Wagenknecht: (Seguindo­‑o admirado com os olhos.) Homessa,
eu sou sempre probo e fiel, até ao último hausto de homens e mas que raça de gente há aqui na vossa bela cidade de Viena!
cavalos.73 Não vale a pena contradizerdes­‑me. Deixai só que O homem tem pinta de judeu e palra um dialecto do tempo
tome a palavra e eu canto­‑vos uma melodia das minhas que dos afonsinhos, em que ainda nem sequer havia judeus. É um
216 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 217
tipo da imprensa e deu­‑me um beijo! Em vez de levar um beijo então, a estrada do vale, outrora tão movimentada, pertence
assim de uma vienense gira, uma pessoa é obrigada a aguentar por inteiro ao Departamento de Imprensa Militar. Lá no alto,
uma coisa destas! Caramba, o que eu pergunto é se Varsóvia chegados ao cume, senti pela primeira vez uma espécie de satis‑
não nos ficou demasiado cara! fação ao ver um hotel das Dolomitas transformado num quartel
Uma mulher dos jornais: Ediçããão especiaaal…! Comuni‑ militar. Onde estão agora as signoras maquilhadas, envoltas em
cado alemããão! Granda vitória dos coligadooos! rendas, onde está o hoteleiro italiano? Desaparecidos sem dei‑
Sedlatschek: Tás a ver, ora ouve, aí tens tu uma vienense gira! xar rasto. Ah, que reconfortante! O oficial que nos guiou esteve
(Muda a cena.) um pedaço a pensar que pico seria mais indicado para nós.
Propôs um que é o menos metralhado, claro que os senhores
CENA 26 meus colegas estavam de acordo, mas eu disse: não, eu nisso
Frente sudoeste. Um reduto a uma altitude de mais de dois mil não alinho; e assim acabámos por vir ter cá acima. Também é
e 500 metros. A mesa está enfeitada com flores e troféus. o mínimo! Respondam­‑me agora por favor só a uma pergunta:
como é que antes da guerra nunca vi as figuras magníficas que
O vigia: Já aí vêm! agora encontro todos os dias? O homem comum é um autêntico
A Schalek: (À cabeça de um grupo de correspondentes de guerra.) monumento! Na cidade… meu Deus, que sensaboria! Aqui,
Estou a ver que fizeram preparativos festivos para nos receber. todos são figuras inesquecíveis. Onde está o oficial?
Flores! Destinam­‑se certamente aos senhores meus colegas, os O oficial: (De dentro.) Está ocupado.
troféus é que são para mim! Obrigada, meus bravos! Avan‑ A Schalek: Não faz mal. (O oficial entra em cena. Ela começa
çámos até este reduto, não é muito, mas seja como for. Já nos a arrancar­‑lhe literalmente os pormenores da boca azedamente
damos por contentes de ele pelo menos estar à vista do ini‑ fechada. Depois, pergunta.) Onde é que está a frincha de obser‑
migo. Infelizmente, o comandante não pôde satisfazer o meu vação? Mas vocês não têm uma frincha de observação? Em
grande desejo de ser autorizada a visitar um ponto directa‑ toda a parte onde tenho ido, havia na trincheira do vigia, no
mente exposto, diz ele que para não acirrar o inimigo. meio das coberturas de musgo, uma frincha de cinco centíme‑
Um atirador: (Cospe para o chão e diz.) Salve­‑os Deus. tros de largura à minha disposição. Ah, aqui está ela! (Põe­‑se
A Schalek: Santo Deus, que interessante. Está ali sentado como em posição para espreitar.)
se fosse pintado, se não desse um sinal de vida, era de certeza O oficial: (Aos gritos.) Agache­‑se! (A Schalek agacha­‑se.) Os
de Defregger, que digo eu, de Egger­‑Lienz! Parece­‑me que ele do outro lado não sabem onde é que nos pomos de vigia, uma
até exibe furtivamente um piscar de olhos matreiro. O homem ponta de nariz pode denunciar­‑nos. (Os membros masculi‑
comum, em carne e osso! Deixem que vos conte, meus bra‑ nos do Departamento de Imprensa Militar puxam dos lenços e
vos, o que nos aconteceu até conseguirmos chegar até vós. Ora tapam a cara com eles.)
218 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 219
A Schalek: (À parte.) Cobardes! (A bateria começa a trabalhar.) A Schalek: Humanidade libertada.
Graças a Deus, chegámos mesmo em boa altura. Agora começa O oficial: Bem, sabe, se ao menos uma vez, quando o rei faz
um espectáculo… ora diga­‑me, senhor tenente, se a arte de anos, pudéssemos dispor de algum tempo livre!
um artista teria podido dar a este espectáculo uma forma mais A Schalek: Mas em compensação tem o perigo de vida cons‑
empolgante, mais apaixonante. Os que ficaram em casa pode‑ tante, isso permite experiências inesquecíveis! Sabe o que é que
rão continuar sem desfalecimentos a chamar à guerra a ver‑ me interessa mais? Em que é que pensa, o que é que lhe vai na
gonha do nosso século – era isso mesmo que eu fazia quando alma? É espantoso com que facilidade os homens, a uma alti‑
estava ainda na retaguarda –, mas os que estão a participar são tude de dois mil e 500 metros, se conseguem desenvencilhar
possuídos pela febre do que lhes é dado viver. Não é verdade, não apenas sem a ajuda de nós, mulheres, mas também sem a
senhor tenente, o senhor está aqui no meio da guerra, admita nossa presença.
que muitos dos senhores não querem de modo nenhum que Um ordenança: (Chega.) Meu tenente, com sua licença, o sar‑
chegue o fim! gento Hofer morreu.
O oficial: Não, isso ninguém quer. É por isso que todos querem A Schalek: Com que simplicidade o homem simples traz a notí‑
que chegue ao fim. cia! Está pálido como um lençol. Chamai­‑lhe amor à pátria,
(Ouve­‑se o sibilar de projécteis: Sss­‑ ‑­ ‑­ ) ódio ao inimigo, desporto, aventura ou volúpia da força – eu
A Schalek: Sss­‑ ­‑! Isto foi uma granada. chamo­‑lhe humanidade libertada. Estou possuída pela febre
O oficial: Não, foi um shrapnel. Então não sabe isso? do que me é dado viver. Senhor tenente, ora diga­‑me, em que é
A Schalek: Manifestamente, o senhor tem dificuldade em enten‑ que está a pensar agora, o que é que lhe vai na alma?
der que eu ainda não consigo distinguir bem os cambiantes (Muda a cena.)
sonoros. Mas, no tempo que tenho passado na frente de bata‑
lha, já aprendi muitas coisas, hei­‑de aprender também isso. CENA 27
Dá­‑me a impressão de que o espectáculo acabou. Que pena! No Vaticano. Ouve­‑se a voz do Papa Bento a rezar.
Era de primeiríssima.
O oficial: Está satisfeita? Pelo santo nome de Deus, do nosso Pai e Senhor celeste, pelo san‑
A Schalek: Como satisfeita? Satisfeita não é nada. Chamai­‑lhe gue ungido de Jesus, preço da salvação dos homens, apelamos a
amor à pátria, ó idealistas; chamai­‑lhe ódio ao inimigo, ó vós, que a divina Providência destinou a governar as nações em
nacionalistas; chamai­‑lhe desporto, ó modernos; chamai­‑lhe guerra, para que ponhais finalmente termo a esta cruenta matança,
aventura, ó românticos; chamai­‑lhe volúpia da força, ó conhe‑ que há já um ano desonra a Europa. É sangue de irmãos o que
cedores das almas… eu chamo­‑lhe humanidade libertada. está a ser derramado em terra e no mar. As mais belas regiões da
O oficial: Como é que lhe chama? Europa, este jardim do mundo, estão semeadas de cadáveres e de
220 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 221
ruínas. Vós carregais perante Deus e os homens a responsabili‑ CENA 29
dade terrível pela paz e pela guerra. Ouvi o nosso pedido, a voz O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
paternal do vigário do mais alto e eterno juiz, a quem haveis um
dia de prestar contas. A imensidão das riquezas com que Deus, o O Optimista: O senhor não pode negar que a guerra, abstraindo das
Criador, dotou os países que governais permite­‑vos sem dúvida consequências positivas para os que todos os dias têm de olhar
continuar a luta. Mas a que preço? Que respondam a esta pergunta a morte de frente, também deu azo a uma elevação espiritual.
os milhares de jovens vidas humanas que dia após dia se extin‑ O Eterno Descontente: Não tenho inveja da morte por ter de
guem nos campos de batalha… se deixar olhar agora de frente por tantos pobres diabos que
(Muda a cena.) só ascendem a um nível metafísico graças ao serviço patibular
obrigatório, abstraindo do facto de que, na maior parte dos
CENA 28 casos, nem isso conseguem.
Na redacção. Ouve­‑se a voz de Benedikt74 a ditar. O Optimista: Os bons tornam­‑se melhores e os maus tornam­‑se
bons. A guerra purifica.
E os peixes, lagostas e caranguejos do Adriático há muito que não O Eterno Descontente: Ela rouba aos bons a fé, quando não
passavam tão bem como agora. No Adriático Sul comeram quase lhes rouba a vida, e torna os maus piores. Os contrastes da paz
toda a tripulação do Léon Gambetta. Os habitantes do Adriá‑ já eram suficientemente grandes.
tico Médio encontraram sustento naqueles italianos do navio O Optimista: Mas então não nota a elevação espiritual na
Turbine que já não conseguimos salvar e, no Adriático Norte, a retaguarda?
mesa dos habitantes do mar é cada vez mais abundante. Ao sub‑ O Eterno Descontente: No que toca à elevação espiritual na
marino Medusa e aos dois torpedeiros juntou­‑se agora o coura‑ retaguarda, tudo o que notei até agora foi a poeira das ruas que
çado Amalfi. O mostruário dos despojos marítimos, que até ao a vassoura mecânica levanta para que ela caia de novo no chão.
momento abrangia apenas a “quinquilharia marítima”, aumentou O Optimista: Então nada se modifica?
de maneira notável e deve ser mais amargo do que nunca o sabor O Eterno Descontente: Modifica, a poeira transforma­‑se em
do Adriático, cujo fundo se cobre cada vez mais com os corpos lama, porque atrás vem ainda o carro­‑mangueira.
rebentados de barcos italianos e sobre cujas ondas azuis sopra o O Optimista: Então o senhor não acredita que alguma coisa
bafo da decomposição dos libertadores do planalto Cársico que tenha melhorado desde o princípio de Agosto, quando eles
encontraram a morte… partiram para a frente?
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: O princípio de Agosto, pois, era esse o
prazo da ordem de despejo à honra da humanidade. Esta deve‑
ria ter impugnado esse prazo no tribunal do universo.
222 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 223
O Optimista: Não me diga que quer pôr em dúvida o entusiasmo O Optimista: Por mim, acreditaria que a guerra põe fim ao mal.
com que os nossos bravos soldados partem para o campo de O Eterno Descontente: A guerra dá­‑lhe continuidade.
batalha e o orgulho com que os que ficam os vêem partir? O Optimista: A guerra enquanto guerra?
O Eterno Descontente: Decerto que não; só quero afirmar O Eterno Descontente: A guerra enquanto esta guerra. Ela
que os bravos soldados gostariam mais de trocar com aqueles age a partir das condições de decadência da nossa época, é com
que os vêem partir com orgulho do que aqueles que os vêem os bacilos desta que as suas bombas estão cheias.
partir com orgulho de trocar com os bravos soldados. O Optimista: Mas pelo menos há outra vez um ideal. Isso não faz
O Optimista: Quer pôr em dúvida a grande solidariedade que a com que o mal se acabe?
guerra fez nascer como que por magia? O Eterno Descontente: O mal prospera melhor sob a capa do
O Eterno Descontente: A solidariedade seria ainda maior se ideal.
ninguém tivesse de partir e todos pudessem ficar a olhar com O Optimista: Mas os exemplos de espírito de sacrifício hão­‑de,
orgulho. de qualquer modo, perdurar para além da guerra.
O Optimista: O imperador alemão disse: “Já não há partidos, já O Eterno Descontente: O mal age através da guerra e para
só há alemães.” além dela, alimenta­‑se do sacrifício.
O Eterno Descontente: Isso pode ser válido para a Alemanha, O Optimista: O senhor não dá o devido valor às forças morais
noutras paragens as pessoas têm talvez uma ambição ainda que a guerra põe em movimento.
maior. O Eterno Descontente: Longe de mim tal coisa. É certo que
O Optimista: Como assim? muitos dos que agora têm de morrer estão também autoriza‑
O Eterno Descontente: Basta olhar para a nacionalidade para dos a assassinar, mas estão pelo menos dispensados da pos‑
perceber que noutras paragens as pessoas não são alemães. sibilidade de agiotar. O que acontece é que, para compensar
O Optimista: Quem mais que o senhor viu a humanidade apo‑ esta baixa, os outros, que os vêem partir com orgulho, podem
drecer na paz? desforrar­‑se. Eles além são os pecadores livres do serviço mili‑
O Eterno Descontente: A humanidade transporta a sua tar; estes aqui são as tropas mobilizadas de fresco.
podridão para a guerra, contagia a guerra com ela, deixa a O Optimista: O senhor está a confundir um fenómeno super‑
guerra corroer­‑se por causa dela e há­‑de salvá­‑la incólume e ficial, como o que representa a metrópole corrupta, com o
acrescentada para quando chegar a paz. Antes que o médico núcleo, que é são.
cure a peste, já ela o matou e ao doente. O Eterno Descontente: A vocação do núcleo são é transformar­
O Optimista: Sim, mas, para uma humanidade assim, não será a ‑se em fenómeno superficial. A direcção que se desenha para a
guerra melhor do que a paz? cultura é a do mundo como metrópole. Num abrir e fechar de
O Eterno Descontente: Se é assim, então a paz chega atrasada. olhos, pode transformar­‑se um camponês da Vestefália num
224 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 225
traficante berlinense, o inverso é impossível e voltar para trás O Optimista: E acredita que os estadistas das potências inimi‑
também já não é possível. gas têm consciência disso, eles que defendem precisamente e
O Optimista: Mas, pelo simples facto de existir de novo uma de modo manifesto interesses mercantis e ficaram marcados
ideia e de se poder mesmo morrer por ela, a ideia pela qual se perante a história universal como o partido da inveja mercantil?
combate significa que a cura é possível. O Eterno Descontente: Entre nós, a história universal vem a
O Eterno Descontente: Pode­‑se mesmo morrer por ela e, ape‑ lume duas vezes ao dia,75 quer dizer, com demasiada frequên‑
sar disso, não se recupera a saúde. É que não se morre por ela, cia para conquistar a necessária autoridade junto da Entente.
morre­‑se por causa dela. E morre­‑se por causa dela, quer se Não, os estadistas não têm nunca consciência de uma ideia,
viva ou se morra por ela, na guerra e na paz. Porque se vive mas ela vive no instinto dos povos o tempo suficiente para um
dela. dia se manifestar num acto de Estado que tem então uma face
O Optimista: Isso é um trocadilho. Que ideia é que o senhor tem inteiramente diferente, um motivo completamente distinto.
em mente? Deveríamos habituar­‑nos pouco a pouco a interpretar aquilo
O Eterno Descontente: A ideia pela qual o povo morre, sem a a que se chama inveja britânica, sede de vingança francesa e
ter, sem dela nada tirar, e por causa da qual o povo morre, sem cobiça russa como a aversão à marcha férrea de pés suados
saber. A ideia da destruição capitalista, isto é, judaico­‑cristã, do alemães.
mundo, arreigada na consciência daqueles que não combatem, O Optimista: Não acredita, portanto, que se trata simplesmente
antes vivem para a ideia e da ideia e que, se não forem imortais, de uma agressão planeada?
hão­‑de morrer de obesidade ou de diabetes. O Eterno Descontente: Acredito, acredito.
O Optimista: Mas então, se só se combate por uma tal ideia, O Optimista: Mas então…?
quem haveria de vencer? O Eterno Descontente: Uma agressão acontece por regra con‑
O Eterno Descontente: Espero que não aquela cultura que tra aquele que é agredido, é mais raro acontecer contra aquele
mais espontaneamente se entregou à ideia cuja vitória depende que agride. Ou chamemos­‑lhe uma agressão que foi de certo
justamente da organização do poder em que consistia a única modo surpreendente para o agressor e um acto de legítima
coisa de que essa ideia era capaz. defesa que colheu um pouco de surpresa o agressor.
O Optimista: Compreendo. Os outros, os inimigos, combate‑ O Optimista: Agora está a brincar.
riam então por uma outra ideia? O Eterno Descontente: A sério, eu considero esta aliança
O Eterno Descontente: Esperemos que sim. Isto é, comba‑ europeia contra a Europa Central como o último facto elemen‑
teriam por uma ideia. A ideia de libertar a cultura europeia tar de que a civilização cristã era capaz.
da pressão daquela ideia. Libertar­‑se a si própria, levar­‑se a si O Optimista: Manifestamente, o senhor é de opinião que não foi
própria a arrepiar caminho ao pressentir­‑se o perigo. a Europa Central, mas a Entente, que agiu em legítima defesa.
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Mas se, como se está a ver, ela não for capaz de conduzir com militar obrigatório. A legítima defesa de agora, que convoca
sucesso esta legítima defesa perante uma agressão? a coacção geral, não é apenas uma tentativa desesperada, mas
O Eterno Descontente: Então esta guerra de comerciantes também uma tentativa de que pouco há a esperar. A Ingla‑
decidir­‑se­‑ia provisoriamente a favor daqueles que tinham terra, ao mesmo tempo que vence a Alemanha, corre o risco de
menos religião para, 100 anos volvidos, se transformar aberta‑ vencer­‑se a si própria. A única raça que é suficientemente forte
mente numa guerra de religião. para sobreviver à vida técnica não vive na Europa. É assim que
O Optimista: Que quer dizer com isso? às vezes vejo as coisas. Que o Deus dos cristãos permita que
O Eterno Descontente: Quero dizer que, nessa altura, a cris‑ não seja assim que aconteça!
tandade judaizada da Europa há­‑de depor as armas perante o O Optimista: Ah, ah, os seus chineses, a raça mais inapta para a
imperativo do espírito asiático. guerra!
O Optimista: E com que armas conseguiria o espírito asiático O Eterno Descontente: É verdade, eles carecem hoje de todas
impor esse imperativo? as conquistas dos tempos modernos, porque, possivelmente,
O Eterno Descontente: Com armas. Precisamente com a ideia já passaram por elas em tempos remotos que desconhecemos
da quantidade e do desenvolvimento da técnica, único meio e conseguiram sair delas sãos e salvos. Eles vão obter de novo
de fazer frente à ideia, ao espírito infernal da Europa Central. sem custo essas conquistas, mal tenham necessidade delas
A quantidade já a China a tem, a outra arma há­‑de ela ainda para as extirpar aos europeus. Também farão disparates: mas
acrescentá­‑la. Há­‑de garantir uma japonização em devido com um objectivo moral. Chamo a isso uma guerra de religião
tempo. Fará como faz hoje, em menor escala, a Inglaterra, que digna desse nome.
é obrigada a adoptar o militarismo para o derrotar. O Optimista: Que ideia é que essa guerra leva à vitória?
O Optimista: Mas a questão é que não derrota. O Eterno Descontente: A ideia de que Deus não criou o
O Eterno Descontente: Espero que venha a derrotá­‑lo. E que ser humano como consumidor ou produtor, mas como ser
não se derrote a si própria pelo contágio do militarismo; e que humano. De que os meios de subsistência não são os fins da
não pague uma vitória material com o empobrecimento espi‑ existência. De que o estômago não deve impor­‑se à cabeça. De
ritual. A não ser assim, a Europa seria germanizada. O milita‑ que a vida não radica na exclusividade dos interesses materiais.
rismo talvez seja um estado que permite que um povo europeu De que o ser humano vive no tempo para ter tempo e não para
seja vencido depois de ter vencido por meio dele. Os alemães chegar a algum sítio mais depressa com as pernas do que com
foram os que primeiro tiveram de renunciar a si próprios para o coração.
serem o primeiro povo militar da Terra. Que isso não venha a O Optimista: Isso é cristianismo primitivo.
acontecer aos outros, sobretudo aos ingleses, a quem um ins‑ O Eterno Descontente: Cristianismo não é, visto que este não
tinto de preservação mais nobre livrou até agora do serviço foi capaz de resistir à vingança de Jeová. A sua promessa foi
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demasiado débil para conseguir acalmar a voracidade terrena ela vira­‑se contra a humanidade e o soldado profissional já não
que se apodera já aqui na terra do prémio no céu. É que este sabe a que ambições serve de instrumento. Também a Rússia
tipo de humanidade não come para viver, mas vive para comer luta contra a autocracia. Movida por um último instinto cultu‑
e até morre por isso. Bordel e matadouro e, ao fundo, a capela ral, ela resiste ao poder que é mais perigoso para o espírito e a
em que um Papa solitário torce as mãos. dignidade humana, resiste àquela persuasão a que mais facil‑
O Optimista: Quer dizer, numa palavra, a ideia é a luta contra o mente sucumbe o servilismo essencial do pensamento cristão,
materialismo. gerando o mais funesto dos pactos.
O Eterno Descontente: Quer dizer, numa palavra: a ideia. O Optimista: Mas será que os povos heterogéneos que acorreram
O Optimista: Mas então não é o militarismo alemão justamente ao toque a reunir desta guerra têm justamente essa aspiração
aquela instituição conservadora que se opõe às tendências do comum? A autocracia russa e a democracia ocidental?
mundo moderno que o senhor despreza? Admira­‑me que um O Eterno Descontente: É justamente esta antítese que demons‑
pensador conservador se pronuncie contra o militarismo. tra a comunidade mais profunda que vai além dos objectivos
O Eterno Descontente: Eu não me admiro nada que um políticos. E o facto de mesmo os contrastes andarem lado a
defensor do progresso se pronuncie a favor do militarismo. lado prova que a má política da Alemanha, essa impotência
O senhor tem toda a razão: é que o militarismo não é aquilo frente a regras elementares da diplomacia, era expressão de
que eu penso, mas o que o senhor pensa. Ele é o instrumento uma necessidade evolutiva.
de poder que permite à ideologia impor­‑se em cada momento O Optimista: Mas a mescla desses aliados não deixa de ter cores
dominante. Hoje em dia, ele está, tal como a imprensa, ao ser‑ a mais.
viço da ideia da destruição judaico­‑capitalista do mundo. O Eterno Descontente: A mistura demonstra como o ódio é
O Optimista: Mas nas declarações das potências inimigas não genuíno.
se diz senão que elas querem defender a liberdade contra a O Optimista: Mas o ódio serve­‑se dos argumentos mais falsos.
autocracia. O Eterno Descontente: Isso é o que o ódio faz sempre, mas
O Eterno Descontente: Isso agora vem a dar ao mesmo. os seus argumentos falsos só demonstram a verdade do seu
O que vive no instinto da humanidade, mesmo da humani‑ instinto.
dade menos livre, é a aspiração de defender a liberdade do O Optimista: Quer dizer que os alemães têm necessidade de ir
espírito contra a ditadura do dinheiro, a dignidade humana buscar uma renovação cultural nos domínios da mentira?
contra a autocracia do lucro. O militarismo é o instrumento de O Eterno Descontente: Necessidade têm, mas uma vitória
poder desta ditadura, em vez de, no seio do Estado, ser utili‑ ia­‑lhes fazer parecer isso supérfluo. Seria impossível curá­‑los
zado como ferramenta contra ela, o fim para que foi criado por das suas verdades mais problemáticas. É que, seja como for,
natureza. Desde que a arma mortífera é um produto industrial, é duvidoso que as “mentiras do estrangeiro”, dando de barato
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que também elas não sejam made in Germany, não contenham O Eterno Descontente: A cultura alemã não é um conteúdo,
mais seiva vital do que uma verdade da Agência Noticiosa é um adorno caseiro que o povo dos juízes e dos verdugos usa
Wolff.76 Naquelas, pode distinguir­‑se a mentira, que brota de para ornamentar a sua vacuidade.
uma disposição natural, da verdade, que brota de um juízo do O Optimista: O povo dos juízes e dos verdugos? É assim que
entendimento; aqui, até a verdade é pronunciada com quan‑ chama aos alemães? O povo de Goethe e Schopenhauer?
tos dentes eles têm na boca e tudo brota do papel. Nos países O Eterno Descontente: Ele pode designar­‑se assim a si pró‑
latinos, a mentira é uma embriaguez; aqui, ela é uma ciência prio, porque é um povo culto, mas, em boa justiça, deveria ser
e, por isso, é perigosa para o organismo. Eles além são artis‑ punido por isso pelo tribunal do universo ao abrigo do artigo
tas da mentira, eles próprios não acreditam nela, mas querem mais popular do seu Código Penal, o artigo que pune a pertur‑
ouvi­‑la, porque a mentira exprime com mais clareza aquilo bação da ordem pública.
que sentem: a sua verdade. Aqui, eles não mentem nem mais O Optimista: Mas então porquê?
um milímetro do que é estritamente necessário para atingir O Eterno Descontente: Porque Goethe e Schopenhauer adu‑
o objectivo: são engenheiros da mentira, é através dela que ziriam com mais justificação contra o estado actual do povo
garantem a mentira da sua guerra e da sua vida. alemão tudo aquilo que traziam no peito contra os alemães do
O Optimista: Mas há­‑de convir que as acusações de que os ale‑ seu tempo, e com mais violência do que o Matin.77 Poderiam
mães fazem a guerra como bárbaros são demasiado patetas. dar­‑se por satisfeitos se, com o ferrete de indesejáveis, conse‑
O Eterno Descontente: Admitamos com Deus que os alemães guissem passar a fronteira. Goethe já não conseguiu extrair mais
não são mais bárbaros a fazer a guerra do que os outros, excep‑ do que uma sensação de vazio do estado de frenesim em que
tuando algumas medidas utilizadas apenas como represálias, o seu povo se encontrava durante a Guerra de Libertação, e a
que, por acaso, atingem sempre a população civil, e excep‑ linguagem coloquial e da imprensa alemã poderia dar graças a
tuando casos como o do Lusitania, a que a bonomia chama Deus se se encontrasse hoje ainda no mesmo nível que provo‑
“incidentes”. Mas quando os outros dizem que os alemães são cou o desprezo de Schopenhauer. Nenhum povo vive mais longe
bárbaros a fazer a guerra, o que eles sentem, com razão, é que a da sua língua, quer dizer, da sua fonte vital, do que os alemães.
conduta dos alemães em tempo de paz foi bárbara. E de certeza Qualquer pedinte napolitano está mais perto da sua língua do
que foi, já que, de outra forma, ela não teria sido baseada ao que um professor alemão da dele. Pois, mas não há outro povo
longo de gerações no pensamento de preparar a conduta alemã que tenha tanta cultura, e como os seus doutores, sem excepção,
em tempos de guerra. quer dizer, quando não encontram agasalho num departamento
O Optimista: Mas, no fim de contas, os alemães são também o de imprensa, manejam bombas de gás, ele dá logo o título de
povo dos poetas e dos filósofos. Então a cultura alemã não des‑ doutor aos seus cabos de guerra. O que teria dito Schopenhauer
mente o materialismo que o senhor está a afirmar? de uma Faculdade de Letras que concede a sua distinção máxima
232 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 233
a um organizador da morte mecanizada? Lá cultos são, isso a O Optimista: E, na sua opinião, as outras línguas estão muito
inveja britânica tem que admitir, e estão sempre bem informa‑ abaixo da alemã?
dos. A língua serve­‑lhes justamente para isso, para informar. O Eterno Descontente: Mas os falantes delas estão acima.
Este povo escreve hoje a algaraviada gasta do caixeiro­‑viajante O Optimista: Mas o senhor está então em condições de estabele‑
universal e se, por acaso, não resgatar a Ifigénia78 traduzindo­‑a cer uma relação palpável entre a língua e a guerra?
em esperanto, vai deixar a palavra dos seus clássicos à mercê da O Eterno Descontente: Por exemplo, a seguinte: que aquela
barbárie impiedosa de todos os reimpressores e compensar isso, língua que mais se cristalizou na frase feita e no lugar­‑comum
numa época em que já ninguém pressente e vive o destino da também tem a tendência e a disposição para, com ares de per‑
palavra, com edições de luxo, bibliofilia e demais obscenidades feita convicção, achar irrepreensível em si própria tudo aquilo
de um esteticismo que é um estigma tão autêntico de barbárie que, nos outros, é digno de reparo.
como o bombardeamento de uma catedral. O Optimista: E chama a isso uma qualidade da língua alemã?
O Optimista: Ah, ah, mas a catedral de Reims era um posto de O Eterno Descontente: No fundamental. Ela própria é hoje
observação militar! aquele produto acabado cuja colocação no mercado constitui
O Eterno Descontente: Isso não me interessa. A própria a razão de existir dos seus actuais falantes, e ela já tem a alma
humanidade é um posto de observação militar… quem me daquele honrado burguês que nem por sombras tinha tempo
dera que ela fosse bombardeada a partir das catedrais. para cometer uma acção reprovável, porque a sua vida só foi
O Optimista: Mas esse arrazoado sobre a língua alemã não o dedicada e gasta no negócio e, se não foi bastante, fica uma
entendo bem. O senhor é uma pessoa que é como se esti‑ conta a descoberto.
vesse desposado com a língua alemã e que, no escrito contra O Optimista: Não acha que essas ideias são um bocado deslo-
o heineísmo,79 lhe concedeu primazia relativamente às línguas cadas?
românicas. Agora, pelos vistos, já não pensa assim. O Eterno Descontente: O mais deslocadas possível, é à língua
O Eterno Descontente: Só um alemão é que pode achar que já que as vou buscar.
não penso assim. Penso justamente assim por a ter desposado. O Optimista: E os outros não andam atrás dos negócios?
E também lhe sou fiel. E sei até que ponto esta guerra o vai O Eterno Descontente: Mas a vida deles não se esgota neles.
confirmar e de que modo uma vitória, de que Deus nos livre, O Optimista: Os ingleses fazem negócio com a guerra e, aliás,
seria a traição mais consumada ao espírito. sempre puseram mercenários a combater por eles.
O Optimista: Mas o senhor considera que a língua alemã é a mais O Eterno Descontente: É que os ingleses não são idealistas,
profunda, não é verdade? não querem pôr a vida em jogo pelos seus negócios.
O Eterno Descontente: Mas os falantes de alemão estão muito O Optimista: “Mercenário” vem directamente de “mercê”, quer
abaixo dela. dizer, de recompensa, aí tem o senhor a sua língua!
234 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 235
O Eterno Descontente: Um caso claro. Mas “soldado” ainda Mas para manter uma ligação espiritual ao mundo, o aumento
tem uma etimologia mais directa. A diferença, é verdade, é que das exportações não é de nenhum modo um factor propício.
o soldado recebe menos soldo e mais honra, quando vai mor‑ Os ingleses têm direito a isso, sem prejuízo para a alma exígua
rer pela pátria. que julgamos discernir neles. Eles podem, sem perigo, permitir­
O Optimista: Mas os nossos soldados lutam justamente pela ‑se tanto o necessário como o luxo do ornamento e suportam
pátria. o curso dos negócios tão bem como a Monarquia. No carácter
O Eterno Descontente: É verdade, é isso mesmo que eles alemão, que, ao que dizem, vai ser a salvação do mundo,80 tudo o
fazem, e felizmente por entusiasmo, porque, de outro modo, que é heterogéneo combina­‑se de imediato numa união funesta.
era preciso obrigá­‑los. Os ingleses não são idealistas. Pelo con‑ Os ingleses têm cultura, porque sabem separar estritamente o
trário, eles têm a decência de, quando querem fazer um negó‑ pouco que têm de vida interior dos problemas do consumo. Eles
cio, não lhe chamarem pátria, parece que não têm uma palavra não querem ser obrigados por nenhum concorrente desleal a
para isso na língua deles, eles deixam os ideais em paz quando trabalhar mais do que seis horas, para reservar o resto do dia
a exportação está ameaçada. àquelas ocupações para as quais Deus criou os britânicos: Deus
O Optimista: São comerciantes. ou o desporto, sendo que a dedicação a Deus seria um assunto
O Eterno Descontente: Nós somos heróis. íntimo mesmo que fosse só hipocrisia, já que, assim como assim,
O Optimista: Pois, mas o senhor não diz que os ingleses comba‑ é uma ideia que conduz para bem longe dos afazeres quotidia‑
tem por um ideal coligados com todos os outros? nos. E é isso que importa. Ao passo que o alemão trabalha 24
O Eterno Descontente: O que eu digo é que eles são capazes horas por dia e leva a cabo no âmbito do trabalho as obrigações
de o fazer com os pretextos mais reais, ao passo que nós neces‑ anímicas, espirituais, artísticas e outras que, se seguisse aquela
sitamos de pretextos ideais para irmos atrás de um negócio. repartição, iria descurar, utilizando o conteúdo respectivo delas
O Optimista: O senhor acha que impedir os alemães de fazer logo como ornamento, como marca comercial, como embala‑
negócio é um ideal? gem. Ele não quer perder pitada. E esta mistura das coisas ínti‑
O Eterno Descontente: Claro que sim, é justamente o que con‑ mas com as necessidades da vida, esta consideração dos meios
sideramos inveja de concorrente. Na verdade, trata­‑se de saber de subsistência como fins da existência e a utilização simultâ‑
a quem é que uma ampliação do estabelecimento, do ponto de nea dos fins da existência ao serviço dos meios de subsistência,
vista cultural, vai fazer bem e a quem é que não vai. Há povos que como por exemplo “a arte ao serviço do comerciante” – este é
não podem comer muito porque têm uma digestão cultural difí‑ o elemento fatal no qual o engenho alemão floresce e definha.
cil. A vizinhança nota logo isso, e de maneira mais desagradável É isto e nada mais, o espírito maldito da eterna combinação, do
do que eles próprios. O comércio mundial isolaria para sempre virar do avesso, da encenação, que é o problema da guerra mun‑
o espírito alemão, que a cultura alemã há muito perdeu de vista. dial. Nós somos comerciantes e heróis numa única firma.
236 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 237
O Optimista: O problema da guerra mundial, como é sabido, é em tirar qualquer direito de voto. Agora do que se trata é da
que a Alemanha queria ter o seu lugar ao sol.81 personalidade dos povos.
O Eterno Descontente: Isso é sabido, mas o que ainda nin‑ O Optimista: E qual é que triunfará?
guém sabe é que, se esse lugar fosse conquistado, o sol iria pôr­ O Eterno Descontente: Na qualidade de eterno descontente,
‑se. Ao que, é verdade, a Norddeutsche Allgemeine82 responde‑ estou obrigado a ver tudo negro e recear que vença aquela que
ria que, nesse caso, combateríamos na sombra. E até à vitória tenha preservado menos individualidade, quer dizer, a alemã.
final e para além dela. Dentro dos limites espirituais do cristianismo europeu, é assim
O Optimista: O senhor é um eterno descontente. que, nas minhas horas sombrias, vejo as coisas acontecerem.
O Eterno Descontente: É verdade, sou, se bem que não me A morte da alma por inanição virá a seguir.
custe admitir que o senhor é um optimista. O Optimista: É este o resultado da guerra mundial?
O Optimista: Não foi o senhor que noutros tempos cantou loas O Eterno Descontente: Da guerra europeia, e até à decisão a
à organização alemã e a preferia, pelo menos em comparação que a verdadeira guerra mundial contra a Europa unida em
com o caos latino? espírito obrigaria. A sublevação eslavo­‑latina, apoiada por povos
O Eterno Descontente: Noutros tempos e ainda agora. aliados, permanecerá um episódio até que toda a Europa tenha
A organização alemã – admitindo que ela resista a esta guerra suficiente moral alemã, bombas de mau cheiro e serviço militar
sem freio – é um talento e, como todo o talento, é mundano obrigatório para receber uma lição da Ásia. É isso que receio
e circunstancial. É prática, subalterna e tem mais valor para a por vezes. Mas, na maior parte das vezes, sou um optimista e
personalidade que se serve dela do que o ambiente caótico em um optimista muito diferente do senhor. Nessas alturas, tenho
que também o ser subalterno tem personalidade. Mas até que plena confiança de que tudo acabará em bem e vejo que todas
ponto tem um povo de se ter despojado da sua personalidade estas vitórias e mais vitórias não são senão uma nefanda perda
para adquirir a capacidade de organizar de modo tão fácil o de tempo e de sangue para ampliar o prazo da inevitável derrota.
curso da vida material! O meu reconhecimento nunca foi um O Optimista: Cuidado com o que diz!
cumprimento e, na decisão entre valores humanos, que, antes O Eterno Descontente: Mas eu só o digo a si e em público.
da guerra, não tinha sido exigida, as necessidades nervosas do O senhor não vai dizer a ninguém e o carrasco não entende o
homem individualista não contam para nada. Numa vida má meu estilo. Gostava de ser mais claro. Mas deixo os prussianos
e, mais ainda, no caos a que esta vida má está condenada no darem tudo por tudo e vou pensando cá com os meus botões.
nosso país, era lícito ansiar pela ordem; neste estado de emer‑ O Optimista: Mas o senhor também se contradiz naquilo que
gência, ele podia usar a técnica como pontão para chegar a si guarda para si.
próprio; dava­‑se por satisfeito por a humanidade em seu redor O Eterno Descontente: Mas é uma contradição, eu recear a
já só consistir em motoristas, a quem aliás não teria hesitado nossa vitória e ansiar pela nossa derrota?
238 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 239
O Optimista: E então não há contradição entre o seu louvor do O Optimista: Vejo no que diz quase um elogio da guerra a tomar
carácter alemão e a sua censura? corpo.
O Eterno Descontente: Não, não há contradição entre o louvor O Eterno Descontente: Não, é apenas um elogio do esforço.
de uma civilização que facilita a vida material, substitui a porcaria Do corpo! A morte volta a anular os benefícios conseguidos.
das ruas por asfalto e, em vez de uma essência sem valor, oferece O Optimista: Isso é verdade. Mas os especuladores morrerem
quimeras à fantasia desejosa de completar­‑se, e, por outro lado, deve ser coisa que não lhe suscita problemas.
a censura a uma cultura que se volatilizou devido, justamente, O Eterno Descontente: Os especuladores não morrem.
a essa facilidade, essa agilidade e essa destreza. Não é uma con‑ E, sobretudo, o brilho de ter enfrentado a morte que eles se
tradição, é uma tautologia. Num mundo generalizadamente às arrogam compensa o valor do exercício físico. O heroísmo sem
avessas, onde eu me sentia melhor era lá onde ele está bem orde‑ legitimidade é a visão mais horrenda desta guerra. Ele há­‑de
nado e a sociedade se esvaziou suficientemente para me propor‑ um dia vir a ser o pano de fundo sobre o qual se destacará
cionar figurantes que se parecem todos uns com os outros e, por de maneira mais pitoresca e mais bem conseguida a baixeza
isso, a memória não é sobrecarregada com fisionomias. Mas eu acrescentada ou inalterada.
não desejo que seja essa a condição da humanidade, estou longe O Optimista: Mas o caso é que se morre mesmo. Veja a rubrica
de colocar o meu conforto acima da necessidade de boa fortuna diária da imprensa, “Morte heróica”.
da nação e considero errado que esta se deixe pôr em formatura O Eterno Descontente: Sim, claro, é a mesma rubrica em
como um batalhão de pãezinhos berlinenses. que dantes se anunciava a concessão do título de conselheiro
O Optimista: Então esclareça­‑me também a contradição de ter comercial. Mas este acaso infeliz de um estilhaço de granada
considerado o tipo militar como, em termos relativos, o mais também há­‑de proporcionar uma auréola aos representantes
impoluto na vida do Estado. sobreviventes dos interesses comerciais pelos quais os outros
O Eterno Descontente: Há tão pouca contradição nisso como morreram.
no caso anterior. Entre todos os tipos de mediocridade dis‑ O Optimista: Está a referir­‑se aos que ficaram em casa?
poníveis no caos de um mundo em paz, o tipo militar era o O Eterno Descontente: Sim, sim, estes hão­‑de ressarcir­‑se da
mais útil. O serviço militar é uma barreira aos desmandos da obrigação a que aqueles sucumbiram, da obrigação de ter de
insignificância. Disciplina, cumprimento do dever pelo dever morrer ao serviço de uma ideia alheia chamada serviço militar
é a decência da banalidade. Isto como bitola para o campo de obrigatório.
visão de uma burguesia do dinheiro. Mesmo o especulador O Optimista: Os combatentes que regressarem hão­‑de saber
que é obrigado a prestar serviço militar, em vez de dar ordens, como se opor a essa arrogância.
regressa com um comportamento social melhor, menos inco‑ O Eterno Descontente: Os combatentes que regressarem
modativo, menos viscoso. vão invadir a retaguarda e é lá que irão dar início à guerra.
240 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 241
Apossar­‑se­‑ão pela força dos êxitos que lhes foram negados e, O Optimista: Ora, mas é com a fantasia que se faz a guerra?
comparada com a paz que se irá então desencadear, a essência O Eterno Descontente: Não, porque se ainda se tivesse fantasia
vital da guerra, composta pelo assassínio, o saque e a violação, já não se fazia a guerra.
será uma brincadeira de crianças. Que o deus das batalhas nos O Optimista: Porque não?
preserve da ofensiva que então estará iminente! Uma activi‑ O Eterno Descontente: Porque, nesse caso, a sugestão de uma
dade terrível, liberta das trincheiras, já não sujeita a nenhuma fraseologia herdada de um ideal caduco não teria espaço de
voz de comando, lançará mão em todas as circunstâncias da manobra para enevoar os cérebros; porque as pessoas seriam
vida, das armas e dos prazeres e o mundo irá ver mais mortes capazes de imaginar mesmo as atrocidades mais inimaginá‑
e doenças do que a guerra alguma vez lhe impôs. Deus proteja veis e saberiam de antemão como é rápido o caminho que vai
as crianças dos sabres, convertidos em instrumentos de castigo do lugar­‑comum pitoresco e de todas as bandeiras do entu‑
doméstico, assim como da granada trazida da guerra e trans‑ siasmo à miséria cinzenta dos uniformes de combate; porque
formada em brinquedo! a perspectiva de morrer de disenteria ou ficar com os pés con‑
O Optimista: Não há dúvida que é perigoso as crianças brinca‑ gelados pela pátria já não mobilizaria nenhum pathos; porque
rem com granadas. pelo menos se partiria para a guerra com a certeza de apanhar
O Eterno Descontente: E os adultos, que fazem o mesmo, piolhos pela pátria. E porque as pessoas saberiam que o ser
nem sequer se coíbem de rezar com granadas! Eu vi uma cruz humano inventou a máquina para ser dominado por ela e por‑
feita de uma granada. que as pessoas não sobreporiam à loucura de a terem inven‑
O Optimista: Isso são consequências secundárias. A verdade é tado a loucura ainda mais grave de se deixarem matar por ela;
que o senhor nem sempre manifestou um desprezo tão con‑ porque o ser humano sentiria que tem de defender­‑se de um
victo pela guerra. inimigo do qual não vê senão um fumo a subir e pressentiria
O Eterno Descontente: A verdade é que eu nem sempre que ter representação própria de uma fábrica de armamentos
encontrei em si alguém que me interpreta mal de modo tão não oferece protecção suficiente contra os produtos da fábrica
convicto. A guerra era dantes um torneio da minoria e cada de armamentos inimiga. Se, portanto, se tivesse fantasia, saber­
caso tinha a sua força própria. Hoje em dia, é um risco mecâ‑ ‑se­‑ia que é um crime expor a vida ao acaso, que é um pecado
nico para todos e o senhor é um optimista. rebaixar a morte à condição de acaso, que é tontice construir
O Optimista: A questão é que o desenvolvimento das armas não couraçados quando se constroem torpedeiros para se superio‑
pode, de modo nenhum, ficar atrás das conquistas técnicas da rizarem a eles, construir morteiros quando se cavam trinchei‑
época moderna. ras como protecção contra eles, nas quais só está perdido quem
O Eterno Descontente: Não, mas a fantasia da época moderna puser primeiro a cabeça de fora, e encurralar a humanidade,
ficou atrás das conquistas técnicas da humanidade. em fuga das suas próprias armas, em buracos de ratos e, desde
242 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 243
esse momento, deixá­‑la desfrutar a paz apenas debaixo da capaz de imaginar e a terrível maldição da reprodução devolve­
terra. Se, em vez dos jornais, as pessoas tivessem fantasia, a téc‑ ‑as à palavra, obrigada a gerar sempre e sempre o mal. Tudo o
nica não seria um instrumento para tornar a vida mais difícil e que acontece acontece para os que o descrevem e para os que
a ciência não teria o fito de destruir a vida. Ah, a morte heróica não o vivem. Um espião conduzido ao patíbulo é forçado a
paira numa nuvem de gás e as nossas vivências estão vincu‑ ir por um caminho longo, para que os que foram ao cinema
ladas à notícia de jornal. Quarenta mil cadáveres russos que tenham alguma distracção, e tem de fixar ainda outra vez
deram o último suspiro no arame farpado foram apenas uma a máquina fotográfica, para que no cinema todos fiquem
edição especial que uma soubrette leu no intervalo à escória da satisfeitos com a expressão da cara. Não me faça prosseguir
humanidade, para que fosse chamado ao palco o libretista que esta linha de pensamento até ao patíbulo da humanidade…
transformou “dei ouro por ferro”, o lema do espírito de sacrifí‑ e, contudo, tenho de fazê­‑lo, porque eu sou o seu espião
cio, na infâmia de uma opereta. A quantidade que se devora a agonizante e porque a minha experiência aflitiva é o horror
si própria só deixa sensibilidade para aquilo que sucede ao pró‑ perante o vácuo que esta indescritível sucessão de aconte‑
prio e porventura a quem esteja próximo, aquilo que se pode cimentos encontra nas almas, nas máquinas.
ver, entender, apalpar directamente. Mas não se sente como O Optimista: A sujidade que acompanha as grandes coisas é
em toda esta companhia de teatro, em que, à falta de um herói, uma consequência secundária inevitável. É bem possível que o
todos são heróis, cada qual se esgueira dali para fora com o mundo não se tenha transformado na noite de 1 de Agosto de
seu destino individual? Apesar de toda a exuberância, jamais 1914. E a fantasia também não me parece pertencer na verdade
houve tão pouca comunidade como agora. Jamais o formato àquelas características humanas que encontram serventia na
do mundo foi de uma tão gigantesca pequenez. A realidade guerra. Mas, se estou a compreendê­‑lo bem, o senhor pretende
não tem mais do que a dimensão da notícia de jornal, que pro‑ negar de todo em todo que uma guerra moderna deixe espaço
cura chegar junto dela com uma arfante clareza. O mensageiro, para as qualidades humanas.
que, junto com os factos, traz logo a fantasia, colocou­‑se diante O Eterno Descontente: O senhor compreendeu­‑me bem: a
dos factos e tornou a fantasia inimaginável. E o seu papel de guerra não deixa esse espaço pelo simples facto de que a rea‑
substituto tem um efeito tão sinistro que eu estava capaz de ver lidade da guerra moderna vive da negação das qualidades
em cada um daqueles vultos lastimáveis que agora nos asse‑ humanas. Estas não existem.
diam com o pregão “Edição especiaal…”, um pregão inescapá‑ O Optimista: Mas o que é que existe então?
vel, infligido para todo o sempre ao ouvido humano, o autor O Eterno Descontente: Há quantidades que se vão reduzindo
responsável desta catástrofe universal. E não será o mensageiro mútua e uniformemente, ao procurarem demonstrar que não
simultaneamente o culpado? A palavra impressa induziu uma são capazes de competir com as quantidades convertidas em
humanidade esvaziada a cometer atrocidades que ela já não é energias mecânicas; demonstrar que os morteiros também
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conseguem dar conta de grandes massas. Só aquela falta de mento bélico nasce da natureza da guerra dos nossos dias.
fantasia que, justamente, restou da transformação da humani‑ Só a mixórdia de uma cultura que ergueu templos com velas
dade em energias mecânicas é que possibilitou e achou neces‑ de estearina e colocou a arte ao serviço do comerciante é que
sária a apresentação desta prova. deseja que os mercados se transformem em campos de batalha
O Optimista: Se as quantidades se vão reduzindo mútua e uni‑ e estes se transformem de novo naqueles. Mas a indústria não
formemente, quando é que chegaria então o fim? tem que dar emprego a artistas nem que fornecer inválidos.
O Eterno Descontente: Quando só restarem as caudas aos O falso princípio de vida prolonga­‑se num falso princípio de
dois leões. Ou, no caso de, excepcionalmente, isto não ocor‑ matança, os meios divergem de novo dos fins. Se duas coope‑
rer: quando restar uma vantagem à maior quantidade. Aterra­ rativas de consumo estão engalfinhadas, a mais ética é a que
‑me ter de alimentar esta esperança. Mas aterra­‑me ainda faz impor a ordem, não pelos próprios consumidores, mas por
mais ter de recear que reste uma vantagem à quantidade mais uma polícia por si contratada, e o comportamento mais ético
fundamental. que pode ter é limitar­‑se a afastar clientes ou então a liqui‑
O Optimista: E qual seria essa? dar mercadorias. Já sem falar de que o bloqueio não é mais do
O Eterno Descontente: A menor, precisamente. A maior que a advertência às Potências Centrais para que poupem os
poderia perder forças devido a restos de humanidade que seus súbditos a esse mesmo bloqueio, pondo fim a uma guerra
tenha preservado. Mas a menor combate com a crença fervo‑ insensata. Se o contabilista não caiu já antes nos braços do
rosa num deus que desejou que as coisas evoluíssem assim. cavaleiro, deveria justamente fazê­‑lo, num momento em que
O Optimista: Do que precisávamos era de um Bismarck. Ele mesmo esse cavaleiro já consegue reconhecer com clareza que
havia de pôr termo a tudo antes disso. o que está em jogo não é um torneio, mas sim o algodão.
O Eterno Descontente: Não pode haver um Bismarck. O Optimista: Esta guerra tem servido…
O Optimista: Porque não? O Eterno Descontente: Pois, pois, esta guerra tem servido!
O Eterno Descontente: Se o mundo chegou ao ponto de fechar Mas a diferença é a seguinte: uns pensam em exportação e
os seus balanços com bombas, não pode surgir um Bismarck. dizem ideal, os outros dizem exportação e esta simples sin‑
O Optimista: Como é que nos poderemos então defender do ceridade, esta simples separação, basta para permitir o ideal,
plano infernal de nos obrigarem à rendição pela fome? mesmo que este não existisse já.
O Eterno Descontente: O plano infernal de nos obrigarem à O Optimista: Não me venha dizer que, para eles, se trata de um
rendição pela fome, numa guerra que gira em torno dos bens ideal!
supremos da nação, isto é, fazer dinheiro e encher a pança, é O Eterno Descontente: De modo nenhum, eles querem só
um meio muito mais ético, porque mais harmónico, do que roubar­‑nos esse ideal e, precisamente dessa forma, reconquistá­
o uso de lança­‑chamas, minas e gases. Nesse plano, o instru‑ ‑lo de novo para nós, curando a humanidade alemã da
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tendência anticultural de o utilizar como embalagem dos seus lização do aborto teria ido ao encontro daquelas preocupações
produtos acabados. Para os alemães, os bens ideais são um de maneira mais suave do que uma guerra mundial, sem pro‑
bónus quando fazem expedir os outros bens pelas empresas vocar esta.
de transporte. Eles julgam que, quando constroem um metro‑ O Optimista: A moral dominante jamais consentiria nisso!
politano, as coisas não vão para a frente sem Deus e a arte. O Eterno Descontente: Isso foi coisa que também nunca ima‑
É um cancro. Numa papelaria de Berlim, vi um rolo de papel ginei, já que a moral dominante só consente em que pais que
higiénico em cujas folhas se explicava o sentido e o humor da o acaso não conseguiu matar de todo se arrastem pelo mundo
situação respectiva através de citações de Shakespeare nelas como inválidos, e que mães tenham filhos para que estes sejam
impressas. Shakespeare, assim como assim, é um autor ini‑ feitos em pedaços pelas bombas dos aviões.
migo. Mas também Schiller e Goethe eram chamados a dar O Optimista: Mas não quer com isso dizer que essas coisas acon‑
o seu contributo, o rolo abrangia toda a cultura clássica dos tecem de propósito!
alemães. Nunca antes tive tanto a impressão de que se trata do O Eterno Descontente: Não, pior do que isso: acontecem por
povo dos poetas e filósofos. acaso! Ninguém tem a culpa de que aconteça, mas acontece
O Optimista: Muito bem, o senhor vê actuar na guerra dos outros intencionalmente. Com muita pena, mas acontece. Uma expe‑
um instinto cultural; na guerra alemã, o interesse da expansão riência bastante rica neste domínio poderia ter conscienciali‑
económica. Mas o bem­‑estar económico não seria, justamente, zado finalmente aqueles que planeiam o assassínio pelos ares e
para a vida intelectual alemã… os que estão encarregados de o executar de que, com a inten‑
O Eterno Descontente: Não, não seria, pelo contrário. O pres‑ ção de atingir um arsenal, eles acabam sempre por atingir um
suposto destes esforços foi a ausência total dessa vida intelec‑ quarto de dormir em vez disso e, em vez de uma fábrica de
tual. A auto­‑redução pela fome, que faz pressagiar o sucesso munições, uma escola para raparigas. A repetição devia ter­
desses esforços, não estaria ao alcance de nenhuma fantasia, ‑lhes ensinado que é este o êxito daqueles ataques que recor‑
mesmo que ainda existisse alguma. dam mais tarde, afirmando encomiasticamente que bombar‑
O Optimista: Mas o senhor mesmo não está convencido da neces‑ dearam com sucesso um determinado ponto.
sidade da guerra enquanto tal quando fala de uma guerra das O Optimista: Uma coisa vai com a outra, trata­‑se de um instru‑
quantidades? A verdade é que está a admitir implicitamente mento bélico legítimo e uma vez que, assim como assim, os
que a guerra também resolve por algum tempo o problema da ares foram conquistados…
sobrepopulação. O Eterno Descontente: …esse canalha chamado ser humano
O Eterno Descontente: Resolve, e de maneira radical. É pro‑ aproveita logo a oportunidade para tornar também a terra
vável que as preocupações com a sobrepopulação venham a insegura. Leia a descrição da subida de um balão no Vale de
dar lugar às preocupações com o despovoamento. A despena‑ Campan, de Jean Paul. Estas cinco páginas já não podem ser
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escritas nos nossos dias porque o hóspede dos ares já não traz O Eterno Descontente: Os governos das Potências Centrais
consigo nem conserva o respeito perante o céu que se tornou são livres de poupar este destino aos seus bebés, desabituando
mais próximo, antes, como assaltante dos ares, usa a distância os seus adultos da cartilha patriótica. Mas admitamos mesmo
segura em relação à terra para um atentado contra esta. Os que os governantes inimigos são tão culpados pelo bloqueio
seres humanos não partilham de nenhum progresso sem se como os nossos: bombardear os bebés inimigos como repre‑
vingarem por isso. Viram de imediato contra a vida justamente sália… eis um raciocínio que faz todas as honras à ideologia
aquilo que era destinado a vir em auxílio dessa vida. Fazem alemã, um reduto mental em que eu, valha­‑me o Deus alemão,
uma complicação justamente daquilo que se destinava a facili‑ não gostaria de morar.
tar a vida. A subida do balão é um acto de devoção, a subida de O Optimista: O senhor quer cortar na casaca da estratégia bélica
um aeroplano é um perigo para os que ficam em terra. alemã e não toma em consideração que os outros se servem do
O Optimista: Mas a verdade é que é um perigo também para o mesmo instrumento de guerra.
próprio aviador que lança as bombas. O Eterno Descontente: Tomo em consideração, sim, e não
O Eterno Descontente: Tem razão, mas não o perigo de ser me passa pela cabeça isentar da infâmia humana os aeropla‑
morto por aqueles que quer matar e ele escapa mais facilmente nos franceses, que estão ao serviço mais ou menos das mesmas
às metralhadoras que estão de atalaia à sua espera do que as pes‑ canalhices heróicas. Parece­‑me, todavia, que a diferença, para
soas indefesas escapam a ele. Escapa também mais facilmente além da prioridade, está numa maneira de ser que, num dos
ao combate leal entre dois assassinos com armas iguais, leal na lados, participa no horror, sabendo ou esquecendo o que ele
medida em que a violação do elemento em que se desenrola significa, e uma outra que não se satisfaz com lançar bombas,
permite esta avaliação. Mas a bomba aérea, mesmo que seja o mas as faz acompanhar também por piadas e apresenta mesmo
“audaz” a manejá­‑la, significa sempre o armar da cobardia, tão “votos natalícios” aos habitantes de Nancy nessa embalagem.83
infame como o submarino, que representa o princípio da perfí‑ Também aqui, mais uma vez, a mistura execrável entre o
dia couraçada, aquela perfídia que permite que o anão triunfe objecto de uso, a bomba, e a vida anímica, a piada, e mesmo
sobre o gigante armado. Mas os bebés que o aviador mata não a mistura da piada com o que é sagrado… uma mistura que é
estão armados e mesmo que estivessem dificilmente poderiam o pior dos horrores, aquela falta absoluta de moral com que
atingir o aviador com tanta segurança como este os atinge a eles. uma vida empobrecida pelos regulamentos se refresca, a com‑
De todas as infâmias da guerra, a maior é que aquela invenção pensação orgânica pela disciplina, o treino constante e os bons
singular que aproximou os seres humanos das estrelas apenas costumes. É o humor do carrasco, é a liberdade de uma moral
tenha servido para confirmar mesmo nos ares a sua mortal mes‑ que pôs o amor em tribunal.
quinhez, como se não tivesse na terra espaço bastante para isso. O Optimista: Compensação pela disciplina? Mas o senhor não via
O Optimista: E os bebés que são mortos à fome? esta com bons olhos como barreira contra a insubordinação?
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O Eterno Descontente: Mas não como alavanca do poder! Sedan, não se apresentar como triunfo do espírito, mas sim na
Antes o caos do que a ordem à custa da humanidade! O mili‑ forma da proliferação das chaminés de fábrica. Nietzsche era
tarismo como aula de ginástica e o militarismo como estado um pensador que tinha “imaginado as coisas de outra forma”.
mental… não acha que há uma diferença? A essência do mili‑ Por exemplo, o renascimento espiritual de 1870. No renasci‑
tarismo está em ser um instrumento. Quando, sem ele próprio mento de 1914 talvez não tivesse chegado sequer a acreditar
se dar conta, se transformou em instrumento de poderes con‑ e já não teria tido de se deixar espantar pela vitória das suas
trários à sua essência e quando se apresenta como um fim em próprias ideias. E talvez tivesse mesmo renegado o conquis‑
si mesmo perante a humanidade ameaçada por esses poderes, tador que vai para a guerra com A Vontade de Poder e outro
então existe uma inimizade inconciliável entre ele e o espírito. equipamento cultural na mochila.
O seu código de honra tornou­‑se, em conluio com uma técnica O Optimista: Se a guerra não traz benefícios culturais, não os
cobarde, numa bagatela, no quadro da coacção generalizada, traz para nenhum dos povos envolvidos. A menos que, por
o seu dever auto­‑imposto degenerou em mentira. Ele não é uma questão de princípio, o senhor esteja porventura decidido
senão a desculpa e a compensação de uma escravatura que, a só admitir possibilidades culturais lá onde franco­‑atiradores
protegida pela máquina, demonstra a si própria a miséria do assassinam soldados que estão a dormir.
seu poder. Os instrumentos transformaram­‑se de tal modo O Eterno Descontente: Não vou de certeza admiti­‑las lá onde
num fim em si próprios que, em tempo de paz, já só pensamos existe uma Agência Noticiosa Wolff expressamente para afir‑
em termos militares e o combate não é senão um meio de con‑ mar isso. Mas, mesmo no estado actual da humanidade, seria
seguir novas armas. Uma guerra para maior glória da indústria coisa inaudita os aviadores que lançam bombas sobre bebés
de armamentos. Nós não queremos apenas mais exportação e, estarem a servir­‑se de um instrumento de guerra legítimo à luz
por isso, mais canhões, queremos também mais canhões pelos do direito internacional e os franco­‑atiradores que cometem
canhões: e é por isso que estes têm que disparar. A nossa vida um assassínio para vingar um assassínio não poderem fazê­‑lo
e o nosso pensamento estão subordinados aos interesses do pela simples razão de não possuírem licença, por não assassina‑
grande industrial; é um fardo pesado. Vivemos sob o canhão. rem integrados numa cadeia de comando, mas por uma outra
E como o industrial se aliou a Deus, estamos perdidos. É este compulsão irresistível, não por dever, mas por desvairamento,
o estado de coisas. quer dizer, por aquele único motivo que desculpa de alguma
O Optimista: Mas podia­‑se também ver o estado de coisas do maneira o assassínio; por serem assassinos não autorizados,
ponto de vista de um ideal nietzschiano e, nesse caso, chegar­ que não estão em condições de se identificar pelo traje corres‑
‑se­‑ia a uma perspectiva fundamentalmente distinta. pondente nem pela pertença a um destacamento de reserva
O Eterno Descontente: Pois podia­, é verdade, e sentiríamos do distrito, a um quadro, a um corpo de reserva ou lá como
a surpresa de Nietzsche por A Vontade de Poder, depois de se chama essa infâmia. Não me faça julgar a diferença moral
252 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 253
entre um aviador que mata uma criança adormecida e um civil O Eterno Descontente: Quando a justiça é picante, acontece
que mata um soldado adormecido. Decida o senhor, tendo em que lhe seja feita. A título de curiosidade – porque a intelectua‑
consideração apenas o perigo e não a responsabilidade, qual é lidade centro­‑europeia não será capaz de deixar escapar uma
a escolha mais corajosa: atacar um soldado adormecido ou um verdade sobre o povo mais caluniado da Europa –, a título de
bebé acordado? curiosidade, poderia contar­‑se que, por altura do Natal cató‑
O Optimista: Nisso é capaz de ter razão, mas vai ter de procurar lico, os russos não dispararam, mas, em vez disso, deixaram
à lupa traços de humanidade no lado inimigo. nas suas trincheiras votos de paz e de bênção para o inimigo.
O Eterno Descontente: Vou ter vou, se os procurar nos nossos O Optimista: E os austríacos de certeza que corresponderam.
jornais. O Eterno Descontente: Claro que sim, por exemplo, o dou‑
O Optimista: Basta que tenha presente a rubrica: “Como os rus‑ tor Fischl, que, até 1 de Agosto, era estagiário de advocacia e
sos devastaram a Galícia”. depois, na grande época, se alistou, mandou imprimir um pos‑
O Eterno Descontente: A verdade é que não consegui depreen‑ tal de campanha onde está escrito: “Amanhã é a vez de os rus‑
der dessa rubrica se os castelos da Galícia foram saqueados sos festejarem o seu Natal – vamos fazer­‑lhes cócegas a sério.”
por camponeses polacos ou por soldados húngaros. Mas, sem O Optimista: Isso foi uma brincadeira.
dúvida, houve ocasiões em que, sob esse título, como se tivesse O Eterno Descontente: Tem toda a razão, foi uma brincadeira.
escapado à obrigação da mentira, apareceu a história de um O Optimista: Não se pode generalizar.
acto nobre dos russos. O Eterno Descontente: Eu generalizo. Pode confiar na minha
O Optimista: Não está a referir­‑se à notícia sobre uma violação? parcialidade. Se o militarismo servisse para combater a suji‑
O Eterno Descontente: Bem, saber se os nossos Honveds84 dade na nossa terra, eu seria patriota. Se ele incorporasse
e Deutschmeister,85 de chapéu na mão, terão pedido um copo ao serviço os que não têm préstimo, se fizesse a guerra para
de água às mulheres do seu próprio país, já para não falar das entregar a escória humana à potência inimiga, eu seria milita‑
do país inimigo, decidir­‑se por esta ou pela outra conjectura rista! Mas ele sacrifica o que tem valor e glorifica a escumalha,
é uma coisa que deixo ao seu optimismo, cuja base inabalá‑ fazendo com que esta continue a triunfar sobre o seu próprio
vel parecem ser as informações do nosso Departamento de poder, mesmo se as coisas correm mal lá fora. Só esta perspec‑
Imprensa Militar. tiva é que, de todo em todo, pode explicar a paciência com que
O Optimista: Não acha que, apesar de tudo, também entre nós se a massa humana suporta um insulto à natureza como o serviço
faz justiça ao inimigo? militar obrigatório. A escória sabe que ela própria é a ideia pela
O Eterno Descontente: Sim, por vezes as pessoas dão­‑se por qual combate e, nesta convicção, chega mesmo a combater pela
satisfeitas com o humor de postais idiotas. pátria, uma ideia que lhe é estranha em primeira e última aná‑
O Optimista: Não, por vezes faz­‑se justiça ao inimigo. lise, mesmo que toda a ideologia da cartilha patriótica estivesse
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a funcionar para lhe inculcar essa ideia todos os dias. Se não O Eterno Descontente: Isso o que lhe permite é poupar
fosse assim, não teriam eles de sentir de alguma maneira a obri‑ esforço mental; por uma vez, pode descontrair­‑se. Não pre‑
gação de morrer por uma ideia estranha como uma servidão cisa de quebrar a cabeça antes que o inimigo se encarregue
mil vezes mais opressiva do que a mais reaccionária essência do disso, coisa que já não consegue imaginar por já não ter fanta‑
czarismo maldito? Mas, no fim e ao cabo, trata­‑se de uma ideia sia que chegue. É que a guerra transforma a vida num quarto
deles próprios. De outra forma, como é que pessoas que nunca de crianças, em que foi sempre o outro que começou, em que
gozaram os privilégios da profissão militar se deixariam obri‑ há sempre um a vangloriar­‑se dos crimes que assaca ao outro
gar a partilhar os riscos dessa profissão? Deixarem­‑se arrancar e em que a pancadaria assume a forma do jogo de soldados.
à sua profissão, ao seu ganha­‑pão e à família para primeiro Quando há guerra, aprende­‑se a menosprezar o jogo de solda‑
serem tratados a pontapé nos quartéis e, a seguir, morrerem dos das crianças. É uma preparação demasiado precoce para a
pela defesa da Bucovina? A verdade é que o facto de que, se se infantilidade dos adultos.
recusassem a morrer pela Bucovina, serem já antes fuzilados O Optimista: Pelo contrário, o jogo de soldados das crianças está
é um motivo imediato que constitui em si mesmo uma expli‑ agora a beneficiar de novas sugestões. O senhor conhece o jogo
cação suficiente. Mas a instituição não teria podido nascer se “Brincamos à Guerra Mundial”?
as massas não soubessem que é ela, vítima aparente de apeti‑ O Eterno Descontente: É o reverso igualmente abjecto da
tes autocráticos, que, em última análise, sairá vitoriosa sobre o situação séria: brincamos ao quarto de crianças. O que esta
vencedor. Está a ver, também eu sou um optimista. Não con‑ humanidade merecia era que os seus bebés começassem com
sigo decidir­‑me a considerar a humanidade uma canalha tão sucesso a matar­‑se à fome uns aos outros ou a bombardear­‑se,
irrecuperável que, por mor de uma vontade alheia, se entrega ou pelo menos a deixar as amas sem clientela.
ao perigo e à morte e a tanta imundície. O Optimista: Se dependesse de si, a humanidade já teria sido
O Optimista: Mas o que é certo é que o entusiasmo provocado posta em vias de extinção por uma guerra mundial. Mas, gra‑
pelo apelo da pátria é uma explicação mais convincente do que ças a Deus, ela está sã da cabeça aos pés…
a obrigação ou o interesse. O Eterno Descontente: Quer dizer, armada da cabeça aos pés.
O Eterno Descontente: A pátria? É verdade, entre todos os O Optimista: Ela evolui de geração para geração. O senhor
encenadores, é este pregoeiro que continua a ter o maior poder referiu­‑se a cinco páginas de Jean Paul que hoje já não pode‑
de sugestão. Mas a embriaguez que embala o suicídio militar riam ser escritas. Mas o que eu penso é que a invenção do
obrigatório não obteria efeito junto dos intelectuais mais lúci‑ conde Zeppelin de modo nenhum rouba à Alemanha a pos‑
dos se, neste aspecto, não existisse também o sentimento de que sibilidade de produzir poetas. Também hoje em dia há poetas
uma vitória os converterá, justamente, em senhores da vida. que não são menosprezáveis.
O Optimista: Uma vitória, mas não a guerra. O Eterno Descontente: Mas eu menosprezo­‑os, mesmo assim.
256 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 257
O Optimista: E precisamente agora, na guerra, a poesia alemã melhor do que a época já vivida, que uma ponderação ainda
recebeu um impulso revigorante. mais madura teria possibilitado evitar este horror indescritível.
O Eterno Descontente: Devia era ter recebido bofetadas. Mas tal como a linha se apresenta, isolada, parece um poema, e
O Optimista: O senhor diz grosserias, mas não diz verdades. Seja talvez ainda mais se lhe colocarmos um raciocínio como pano
o que for que pense a respeito da guerra, as criações dos nossos de fundo. Ora veja, aqui… ainda pode sentir­‑lhe o efeito a par‑
poetas assimilaram alguma coisa do sopro ardente com que tir desta coluna publicitária.
esta grande época, queira­‑se ou não, varreu o nosso quotidiano. O Optimista: Onde?
O Eterno Descontente: Entre o sopro ardente e o quotidiano O Eterno Descontente: Ah, que pena, justamente a parte
surgiu de imediato uma coisa em comum: o lugar­‑comum, que do manifesto onde vem a linha está tapada pela cara do Wolf
os nossos poetas, dóceis como eles são, adoptaram sem delon‑ de Gersthof. Está a ver, ele é o autêntico Tirteu desta guerra!
gas. Eles alinharam com mais pontualidade do que a clientela E agora é que é mesmo um poema.
atónita teria exigido. Os poetas alemães! O senhor é um opti‑ O Optimista: Eu conheço a sua perspectiva exagerada. Para si
mista consumado, mas o seu optimismo ficaria reduzido a não há acasos. Mas a verdade é que o Wolf de Gersthof, por
uma simples laracha se me quisesse recomendar essas criações quem eu próprio, diga­‑se, não tenho nenhuma simpatia…
como prova da grandeza da época. Assim como assim, eu faço O Eterno Descontente: Não tem mesmo?
uma diferença de alguns graus na escala ética entre uns tristes O Optimista: …a verdade é que se trata apenas de um cartaz
filisteus que a obrigação convoca do escritório para as trin‑ publicitário como qualquer outro, ainda por cima um car‑
cheiras e os plumitivos miseráveis que ficaram em casa e que, taz velho, que, justamente, foi feito antes da guerra. Pronto,
indignados, se entregam a coisas piores do que troçar, nomea‑ o espaço foi alugado, pode ser, o estabelecimento ainda está
damente a editoriais ou a rimas, conferindo a um gesto em aberto, não sei, isso não se pode mudar de um dia para o outro,
décima mão, que já era falso em primeira mão, e a um sopro tudo isso são coisas superficiais, mas estou convencido…
ardente da boca da opinião pública uma eficácia indigna. Não O Eterno Descontente: É claro que está convencido.
encontrei nessas criações um único verso ao qual, já no tempo O Optimista: …pois estou, estou convencido de que os vienen‑
da paz, não virasse a cara com uma expressão que deixaria pres‑ ses, que, na verdade, se transformaram de um dia para o outro
supor mais a vontade de vomitar do que o sentimento de estar em gente circunspecta e que, como a imprensa disse com toda
a participar de uma revelação. A única linha digna com que me a justeza, “sem nenhuma soberba e nenhuma fraqueza” com‑
deparei está no manifesto do imperador, uma linha que deve ter preenderam a gravidade da situação, estou convencido de que,
sido escrita por um estilista com sensibilidade, capaz de sentir daqui a um ano, eles já não vão ter vontade de participar nessas
por dentro o estado de alma de um velho. “Tudo maduramente coisas, quer a guerra tenha já acabado quer não. Disso estou
ponderei.” A época que aí há­‑de vir vai de certeza mostrar, ainda convencido e bem convencido!
258 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 259
O Eterno Descontente: Está a ver, eu não tenho nenhumas logo ao pé do Wolf de Gersthof! Mas que desenho esquisito é
convicções e considero que é absolutamente indiferente se vai este? Um vitral? Se a minha miopia não me engana… um obus
ser assim ou não, se as pessoas aprovam ou, como o senhor, de morteiro! Será possível? Mas quem é que conseguiu con‑
censuram que o forrobodó continue. Diferentemente do ciliar os dois mundos? Mozart e morteiro! Que programa de
senhor, eu até era capaz de aprovar. concerto! Quem é que faz combinações tão felizes? Não, não
O Optimista: Então não estou a compreendê­‑lo. é preciso chorar por isso. Diga­‑me apenas se na cultura dos
O Eterno Descontente: Do que estou convencido, veja o negros do Senegal, que o inimigo convocou para o ajudarem
senhor, a única coisa de que estou convencido é que não é isso contra nós, seria possível um sacrilégio assim! Está a ver, essa
que importa. Mas ouça o que lhe digo: daqui a um ano, o Wolf é que é a guerra mundial contra nós.
de Gersthof, que não é um salão com orquestra, mas um sím‑ O Optimista: (Depois de uma pausa.) Acho que tem razão. Mas
bolo, há­‑de ter ainda crescido, correspondendo às exigências Deus sabe que só o senhor é que vê isso. A nós, escapa­‑nos, e
da grande época, e há­‑de tapar tudo por essas esquinas fora, a por isso vemos o futuro em tons cor­‑de­‑rosa. O senhor vê­‑o e
linha “Tudo maduramente ponderei” e tudo o resto que dantes por isso existe. Os seus olhos convocam­‑no e depois vêem­‑no.
ainda encontrava lugar junto ou debaixo dele, e há­‑de produzir O Eterno Descontente: Porque são míopes. Percebem os con‑
a verdadeira perspectiva de uma vida falsa. E daqui a um ano, tornos e a fantasia faz o resto. E o meu ouvido ouve ruídos
quando na frente de batalha um milhão de homens tiver sido que outros não ouvem e esses ruídos perturbam­‑me a música
enterrado, as famílias vão fitar o Wolf de Gersthof olhos nos das esferas, que outros também não ouvem. Pense nisso, e se,
olhos e verão nesse rosto um olhar ensanguentado como um mesmo assim, não conseguir chegar sozinho a uma conclusão,
rasgão no mundo, no qual se poderá ler­que os tempos são chame­‑me. Eu gosto de conversar consigo, o senhor dá­‑me as
difíceis e hoje há um grande concerto duplo! deixas para os meus monólogos. De bom grado me apresen‑
O Optimista: É de cortar o coração ouvi­‑lo falar assim… isso é taria consigo perante o público. De momento, só posso dizer
mesmo considerar pequena uma época que mesmo aos mais a este que fico em silêncio e, se possível, o que é que passo em
míopes não pode deixar de parecer grande. Se alguma coisa silêncio.
esta época nos trouxe, foi a refutação da sua perspectiva. O Optimista: O quê, por exemplo?
O Eterno Descontente: Deus queira! O Eterno Descontente: Por exemplo: que esta guerra, se não
O Optimista: Que Ele lhe conceda pensamentos mais elevados. matar os bons, poderá muito bem proporcionar uma ilha
Talvez esses pensamentos lhe ocorram amanhã, no Requiem moral àqueles que também sem ela eram bons. Que, porém, a
de Mozart, vá comigo ouvir, o lucro reverte a favor da Benefi‑ guerra transforma todo o mundo em redor num grande hinter­
cência de Guerra… land de falsidade, de tibieza e da mais inumana impiedade,
O Eterno Descontente: Não, a mim basta­‑me o cartaz… ali porque o mal, agindo para além dela e através dela, engorda
260 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO I 261
por trás da fachada dos ideais e medra com as vítimas. Que CENA 30
nesta guerra, na guerra de hoje, a cultura não se renova, antes De noite, no Graben.
se salva do carrasco suicidando­‑se. Que esta guerra foi mais
do que pecado: que foi mentira, mentira diária, de que escor‑ Dois traficantes: (Com as acompanhantes, todos de braço dado,
ria tinta de impressão como se fosse sangue, alimentando­‑se já um tanto tocados, trauteando.) Astrónomo… astrónomo…
mutuamente, ramificando­‑se, um delta a desaguar no oceano abre­‑me esses olhos…87
da loucura. Que esta guerra de hoje não é senão uma erupção Um ardina: Ediçãããospeciaaal… 40 mil russos mortos frente a
da paz e que o seu verdadeiro fim não deveria ser a paz, mas Przemysl…!
a guerra do cosmos contra este planeta raivoso. Que inumerá‑ Um dos traficantes: …astrónomo… astrónomo…
veis seres humanos foram sacrificados,86 não dignos de lástima O outro: …abre­‑me esses olhos… (Saem de cena.)
porque uma vontade alheia os arrastou para o matadouro, mas
trágicos, porque tiveram de expiar uma culpa que não conhe‑
ciam. Que, para alguém que sente em si próprio como uma
tortura a injustiça inaudita que o pior dos mundos inflige a
si mesmo, não resta senão uma última missão ética: passar a
dormir, sem compaixão, este inquieto tempo de espera, até que
o verbo o salve, ou a impaciência de Deus.
O Optimista: O senhor é um optimista. Crê e espera que o
mundo vai acabar.
O Eterno Descontente: Não, ele segue apenas o seu curso
como meu pesadelo, e, quando eu morrer, tudo terá passado.
Durma bem! (Saem.)
(Muda a cena.)
ACTO II

CENA 1
Viena. Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk.
O público consiste, na esmagadora maioria, em refugiados
da Galícia, traficantes, oficiais de licença, oficiais que estão
no comando de um hospital ou que prestam serviço mais leve
na retaguarda, e em civis aptos para o serviço militar que
souberam desenrascar­‑se.

Um judeu polaco: Ediçomspeciaaal… comprem­‑me a mim,


senhoras e senhores…
Um agiota local: Só nos faltava esta, vir­‑nos cá parar esta gen‑
talha… pra onde quer que se olhe, é só judeus! Que é que eles
vão fazer? Ficar cá e fazer os negócios que são nossos!
Um agente: Por enquanto, não me posso queixar. Embora nem
de longe possa dizer que as coisas me correm tão bem como
ao Ornstein.
O agiota: Qual Ornstein? Ornstein, o que ficou isento?
O agente: Evidentemente. No sábado passado, ganhou oito
milenas e meia num negócio de mochilas com um simples
telefonema. Isso é que é ter garra!
O agiota: Também ouvi falar. Que é que ele fazia antes da guerra?
O agente: Antes da guerra, atão não sabe? Fósfaros! Era repre‑
sentante da Lauser & Löw. Agora, está por conta própria. Ele
disse­‑me que também me há­‑de arranjar. Tem grandes amiza‑
des com um major ou coisa assim.
(Um ferido grave de muletas passa arrastando­‑se, com movi‑
mentos convulsivos dos membros.)
264 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 265

O agiota: Pois é, agora é preciso é aguentar a pé firme. boas massas pròs nossos bravos soldados e se fica c’uma recor‑
Um ardina: Ediçããão especiaaal…! Neue Freie Presse! Ganda dação da grande época. Olhe, sabe… (Passa uma dama vestida
vitória dos alemães na Galícia! Inimigo rechaçado em san‑ de maneira vistosa, os dois param.)
grento corpo a corpo! Ambos: Nada mal!
O agiota: O Knöpflmacher também já deve ganhar umas boas O agente: Você ouviu falar de como o Raubitschek e o Barber
massas. Você já sabe que o Eisig Rubel não passa um dia sem ir andam a pavonear­‑se com a medalha da Cruz Vermelha?
à Central do Álcool? Que me diz a isto? Está­‑se a desenrascar O agiota: Está boa, está. Por quanto é que lhes ficou?
e bem! Mas o que eu queria dizer é que ontem o artigo sobre a O agente: Por uma bagatela. Mas também teriam pagado pela
elevação espiritual estava bem jeitoso. grande, se lhe pudessem chegar. Essa é só por mérito. Custa
O agente: Olhe, hoje ouvi dizer que vão aumentar o couro 50 uma batelada!
por cento. O agiota: Pois é, quem é que tem dinheiro pra isso, e os que têm
O agiota: Não me diga! Agora é que o Katz se vai expandir, dinheiro antes querem títulos. Eduard Feigl, o Feigl das con‑
há­‑de chegar ao ponto de não saber pra onde se virar, vai ver, servas, o Grande, parece que vai ser barão. Mal chegue a paz.
inda acaba por arranjar um título de nobreza. Cá a gente faz a O agente: Quem é que pensa agora na paz, agora temos mais em
coisa por menos. Sabe que é que eu gostava de fazer? Gostava que pensar.
uma vez de espetar um prego no Guerreiro que está ao lado O agiota: Mas que é que lhe deu pra ficar de repente tão beli‑
do Hotel Imperial, só prò gozo, vamos lá, mas que é que lhe cista? Quer­‑me parecer que tem uma coisa das grandes em
importa, tá­‑se em boa companhia, que é que lhe importa, uma perspectiva? Atão, acertei ou não?
c’roa e recebe­‑se uma folha de papel com o nome registado O agente: Uma coisa das grandes, você sempre me saiu cá um
pràs gerações futuras, pròs anais! velhaco, uma coisa das grandes. A gente vai­‑se safando como
O agente: Deixe­‑me, não me venha com essas maluqueiras. pode.
O agiota: Ali vem o Bermann! Ficou isento! O agiota: Tem toda a razão. Cá por mim, como eu sempre digo,
Bermann: Ora vivam! guerra é guerra. Olhe, que os jovens partam o pescoço a andar
O agiota: Quer vir comigo espetar um prego no Guerreiro, ó de automóvel ou que o partam logo em prol da pátria… senti‑
Bermann? mentalismos desses não são cá comigo.
Bermann: Já espetei. (Sai.) O agente: É a pura da verdade. Já estou até ao pescoço com isso de
O agiota: Tá bem, vou sozinho. andarem constantemente a dizer mal da guerra. É certo que mui‑
O agente: Eu cá não gosto dessas baboseiras. tas coisas encareceram… mas isso faz parte! O que lhe asseguro é
O agiota: Mas que baboseiras? Basta ver o género de pessoas que muitos dos que hoje andam nessa inda hão­‑de torcer a orelha,
que… foi uma ideia e peras! É da maneira que entram umas e de que maneira, quando ouvirem dizer que está a chegar a paz.
266 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 267
O agiota: Pois é, hoje estamos empenhados de corpo e alma… O agiota: E olhe, não tem comparação com Manobras de
O agente: E agora a meio, justamente agora que se está a ganhar Outono.1 E que é que me diz à Princesa das Czardas… o banzé
é que há­‑de acabar de repente? que as pessoas fazem! Já viu O Filho do Príncipe?2
O agiota: Ora pois, os nossos valentes soldados. O agente: O Filho do Príncipe, é claro que vimos! Nessa é que…
O agente: (Desatando a rir a bandeiras despregadas.) Essa é espere… é nessa que há aquela piada fantástica que põe a casa
de primeiríssima!… O que é que você julgou que eu estava a a rebolar­‑se de riso, “acabaram de ver os pântanos da lamúria”,
dizer? Estou a falar dos negócios e você… (Ri­‑se e tosse.) Mas em vez de “da Masúria”.3 A casa vem abaixo com a maneira
que poeirada está hoje outra vez, é escandaloso!… Vou man‑ como ele diz isto, o Marischka… (Saem.)
dar isto pròs jornais, prà rubrica “O Homem do Estrume de Um oficial: (Para três outros.) Ora viva Nowotny, ora viva,
Ferro”… mas que é que estou a dizer, “O Guerreiro e a Mosca”… Pokorny, ora viva, Powolny, olha lá… tu que sabes de política,
não, é melhor… então que é que dizes da Itália?
O agiota: Eu também já contribuí c’o meu óbolo, é que diante da Segundo oficial: (De bengala.) Sabes que mais, digo que é uma
nossa casa está há três meses bem batidos… traição, é o que é.
O agente: Olha, olha, veja você quem ali vem, o Weiß, de uni‑ O terceiro: Ora, e que é que queres que esses comedores de
forme! Olha que esta! (Weiss pára, com ar mal­‑humorado.) macarrão façam senão isso… pois claro.
Atão… foste incorporado? O quarto: É exactamente a minha opinião… ontem andei na
Weiss: Ao tempo, já nem vale a pena falar disso. (Sai.) farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta!
O agente: Mas o que acontece às pessoas! Quem o teria dito O primeiro: Sabes o que é que gostava de fazer depois deste
ainda há um ano… se me tivessem contado… o Weiß fica! Um tempo todo, gostava de ir outra vez ao Gartenbau.
homem a quem dei dinheiro a ganhar! O segundo: Não me digas, mas tu estás ferido?
O agiota: É pena ele estar de tão mau humor. O terceiro: Ferido como?
O agiota: Não tinha onde cair morto. Agora anda vestido c’o O quarto: Mas ele não está ferido.
uniforme imperial. É verdade, esta é uma grande época. O primeiro: Mas eu não estou ferido.
O agente: Sabe, parece impossível, ouça o que eu lhe estou a O segundo: Então vocês não sabem que o Gartenbau agora é um
dizer: faz oito dias que ando a telefonar ao Kehlendorfer para hospital? (Riem todos.)
arranjar bilhetes prò Sangue de Hussardo. Está esgotado pràs O primeiro: Pois é, um hospital… (Depois de reflectir um bocado.)
próximas quatro semanas. É o que lhe digo, a guerra há­‑de aca‑ Sabes, juro pela vida que me tinha esquecido… a guerra já dura
bar sem termos chegado a ver o Sangue de Hussardo! A minha há tanto tempo… (Passa um soldado de muletas.)
mulher não me deixa em paz… O segundo: Achas que o mande parar, o tipo fez uma continên‑
Um ardina: Assalto repeliiido!… Todas as posições tomadas! cia esparvalhada…
268 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 269
O primeiro: Não arranjes cenas. A propósito, que é que se passa cómica, e ele faz gluglu e gluglu, que é quando eles se estão a
com a Cruz de Mérito Militar? afogar. É o que lhes digo, e ainda mais a cara de maganão que
Um ardina: Olhò ataque rechaçado em sangrento corpo a corpo! ele faz, o Salzer, com os olhinhos… vale bem o dinheiro.
O segundo: Deram o meu nome… é chato é o tempo que aquilo O terceiro: Pst… olhem… vêm aí soldados! (Param.)
leva. O segundo: (Com unção.) De armadura resplandecente!
O terceiro: É tudo uma pandilha! O primeiro: Pois é, os alemães.
O quarto: Mas que é que quereis, guerra é guerra! Hoje não há (Entram em cena um após outro três granadeiros alemães,
gajas. cada qual acompanhado por um vereador da Câmara de
O primeiro: Vocês sabem que mais? Vamos ao Hopfner! (Saem.) Viena, de casaca e cartola.)
Um intelectual: (Para o acompanhante.) É o que lhe digo, Primeiro vereador: Além é a Ópera, agora vamos entrar na
enquanto a mentalidade dos nossos inimigos… (Saem ambos.) Kärnterstraße, onde lhe vou mostrar o Cepo de Ferro, o maior
Poldi fesch: (Para o acompanhante.) Hoje vou prà farra c’o Sas‑ símbolo que a gente tem em Viena, erguido em memória dos
cha Kolowrat… (Saem.) aprendizes que ao passar pregavam todos um prego, a mesma coisa
(Ouve­m‑se soldados que passam a cantar: “E de volta à pátria que viu no Guerreiro de Ferro. Depois vem a chamada Coluna da
amada nos iremos reencontrar…” Três traficantes de palito Peste, porque nessa altura a peste grassou na cidade de Viena e
na boca saem do restaurante do Hotel Bristol.) atão ele fez voto de erigir naquele sítio um grande monumento.
Primeiro traficante: Olhem, ontem fui ouvir o Marcell Salzer. Primeiro granadeiro: Safa! Com mil raios!
E digo­‑vos, meus senhores, que é coisa a não perder. Segundo vereador: Além é a Ópera, agora vamos percorrer a
Segundo traficante: É assim tãão boom? Kärnterstraße para vermos o chamado Cepo de Ferro, que é
Primeiro traficante: É! Sabem, ele recita­‑vos um poema, de um símbolo porque os aprendizes ao passar por ali pregavam
um tal poeta, famoso, mas como raio é que se chama… espe‑ todos um prego. Depois vou­‑lhe mostrar a Coluna da Peste, a
rem… já sei… Ginzkey! história é que ele fez um voto porque nessa altura a peste gras‑
Terceiro traficante: Tapetes. sava, a mesma coisa que com o Guerreiro de Ferro, e por isso é
O primeiro: Parece que até é da mesma família. Portanto, o que se erigiu um monumento naquele sítio.
poema fala do Tannenberg, com o Hindenburg a atirá­‑los para Segundo granadeiro: Magnífico! Com mil raios!
os pântanos… vocês devem ter lido nos jornais na altura, a Terceiro vereador: Além é a Ópera. Mas agora vem já a seguir
descrição empolgante… a Kärnterstraße, onde vamos ver o Cepo de Ferro, nesse cepo
O segundo: Ainda me lembro do título: “Tropas russas cercadas os aprendizes ao passar pregavam um prego, a mesma coisa
pelo exército alemão e atiradas para os pântanos da Masúria”. que fazem agora no Guerreiro de Ferro. Depois vou levá­‑lo ao
O primeiro: Pois, isso vem lá exactamente, mas de maneira mais Graben para ver um monumento, o maior símbolo que a gente
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tem, porque grassou a peste ali naquele sítio, e então ele fez um na vossa querrida Viena, como cidadão alemão já aqui me
voto e foi assim que, como é sabido, nasceu o Cepo de Ferro. acontecerram coisas do arrco da velha, aqui uma pessoa
Terceiro granadeiro: Com mil raios! Coisa fina! habitua­‑se ao típico desmazelo vienense, não há dúvida que
Um repórter: (Para um outro repórter.) Está a ver, assim é vocês são cá um povinho catita, mas duma coisa assim é que
que se vê o que quer dizer ombro com ombro. não se está à esperra, uma coisa assim só mesmo em Viena,
O segundo: Eles parecem entender­‑se bem, mas não se consegue nã, isto de uma população ao lado de quem lutamos ombrro
ouvir a conversa. com ombrro admitirr uma parrvoíce destas é inaudito, a vós
O primeiro: Ele está­‑lhe a dar explicações. vienenses nem vos passa pela cabeça que estais em guerra, porr
Um traficante berlinense: (Muito depressa, para um moço isso é que passado um ano também já estais feitos num oito,
de recados.) Venha cá e corra ali ao restaurrante do outrro enquanto no meu país se pode dizerr que a atmosferra gerral
lado da rua, veja se está lá um senhorr à esperra ou vá terr é grrave, mas auspiciosa, aqui, pelo contrrárrio… pois é, isto
com o porrteirro ou com o crriado e perrgunte pelo chefe de devia erra chegarr aos ouvidos do Hindenburrch, não vou dei‑
secção Swoboda, que tem um encontrro marrcado aqui com xarr de o pôrr completamente a parr da situação…
o senhorr Zadikowerr de Berrlim centrro, um dos homens Gritos da multidão: Mas então que é que se passou?
mais influentes, senão o mais influente, que tendes agorra em O traficante: Que é que se passou? Então ainda perrguntam?
Viena, ele que esperre mais um bocado e que lhe dê o númerro Que povinho estrrambótico! Aquele homem ali, estava par‑
da mesa, a agenda das marrcações deve estarr no balcão de rado na rua como um típico moço de recados vienense, quer‑
entrrada, se eu estiverr impedido, encontrro­‑me com ele ao ria mandá­‑lo ao restaurrante ali do outrro lado da rua com
jantarr, mas ainda tenho um negócio parra fazerr, no caso, uma mensagem imporrtante parra um chefe de secção a quem
prreste atenção, de ele não poderr, ele que vá terr à noite ao mandei virr encontrarr­‑se comigo, e ele… uma destas, agorra,
Mulén Ruche ou como é que se chama agora a casa, sabe, onde em plena guerra…
dança a Mizzal, uma das raparrigas mais chiques, senão a mais A multidão: E então, mas que é que ele fez?
chique, que tendes agorra em Viena, eu chego à meia­‑noite O traficante: …e ele responde­‑me em inglês!
menos um quarrto, vamos lá a verr, perrcebeu tudo? (O moço (Afasta­‑se, muito irritado. A multidão olha interrogativamente
de recados olha espantado para o forasteiro sem dizer uma para o moço de recados, que, pela sua parte, esteve ali o tempo
palavra.) Mas, homem, você não perrcebe alemão? todo como que paralisado e que agora se afasta todo ancho.)
O moço de recados: Homessamasafinalquéquevocêquer… A multidão: Deus castigue a Inglaterra!
O traficante: (Dirigindo­‑se indignado aos transeuntes, que for‑ Um ardina: Ediçããão especiaal…! Ganda vitória das nossas for‑
mam um grupo.) Carramba, esta agorra, olhe lá, mas desculpe ças aliadaaas!
lá, isto é um escândalo descomunal, as coisas que acontecem (Muda a cena.)
272 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 273
CENA 2 O Optimista: O senhor quer dizer que, por exemplo, o funcio‑
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. nalismo alemão, com o seu comprovado sentido do dever,
alguma vez poderia ceder ou mesmo corromper­‑se?
O Eterno Descontente: O senhor acha concebível, no plano O Eterno Descontente: Há pouco, deparei­‑me na fronteira
das possibilidades orgânicas, que um esquimó e um negro do suíço­‑alemã, como símbolo da evolução da Alemanha, com
Congo possam entender­‑se um ao outro por muito tempo ou um funcionário uniformizado dos caminhos­‑de­‑ferro que,
mesmo combater juntos ombro com ombro? Cá para mim, só junto à caixa, me propôs em segredo um câmbio de divisas
mesmo se se tratar de uma aliança contra a Prússia. A união mais favorável do que o oferecido pela companhia.
entre um berlinês de Schöneberg e um vienense de Grinzing O Optimista: Onde o senhor vê decadência moral, eu vejo…
parece­‑me impraticável. O Eterno Descontente: Elevação espiritual. Esta visão não
O Optimista: Mas então porquê? deixará de contribuir para estimular aquela realidade. Sob a
O Eterno Descontente: Narram sagas antigas,4 às quais se égide da mentira belicista que se engana a si própria, o caos
pode fazer remontar a união dos Nibelungos, maravilhas sem há­‑de tornar­‑se infinito. A quantidade posta em movimento
conta. Mas o que são elas em comparação com as inauditas, há­‑de descarrilar.
fantásticas ligações de um presente tão vivo que espirra san‑ O Optimista: E nós na Áustria?
gue? É que, veja: ainda nem sequer ser capaz de telefonar e não O Eterno Descontente: Praticamente não teremos necessi‑
ser capaz senão de telefonar… isso resulta certamente em dois dade de descer mais baixo. No nosso país, já no tempo da paz
mundos distintos; mas será que permite uma ligação espiri‑ havia guerra e qualquer final de concerto era uma retirada em
tual entre eles, quando uma ligação telefónica é praticamente desordem. Nós o mais provável é aguentarmos a pé firme.
impossível? Será que podem pensar­‑se dois seres ombro com O Optimista: Na nossa aliança não há rivalidades. Ela deu boas
ombro, quando um deles tem a desordem como conteúdo vital provas até ao momento e havemos de lutar juntos até ao fim.
e só por desmazelo não deixou ainda de existir, e o outro vive O Eterno Descontente: Também creio. A única coisa é que, na
exclusivamente na e pela ordem? confusão comum, as línguas hão­‑de ser diferentes.
O Optimista: O exemplo do nosso aliado, cuja organização com‑ O Optimista: A língua da espada é comum. Estamos unidos aos
provada no tempo da paz… alemães para a vida…
O Eterno Descontente: Ela não deixaria de relaxar­‑se perante O Eterno Descontente: …e para a morte!
o exemplo do desmazelo, se não estivesse destinada de qualquer (Muda a cena.)
forma a desmoronar­‑se nesta guerra. A ordem externa e interna
do mundo alemão é uma capa que não tardará a romper­‑se.
Nessa altura, tudo fracassará junto connosco, ombro com ombro.
274 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 275
CENA 3 O Assinante: Quer dizer que também por causa de Ivangorod?
O Assinante e o Patriota em conversa. O Patriota: Sim, também por causa de Ivangorod, dirigiu ao
Comandante Supremo do Exército, o marechal­ ‑de­ ‑campo
O Assinante: O senhor viu no jornal que o burgomestre, o Dr. arquiduque Friedrich, um telegrama de homenagem…
Weiskirchner, mandou ao almirante Haus um telegrama de O Assinante: E depois?
parabéns por motivo do brilhante feito do submarino U­‑5, e O Patriota: …e recebeu a seguinte resposta: “Sua Alteza Impe‑
que ele já respondeu? rial e Real o Sereníssimo Comandante Supremo do Exército
O Patriota: E o que é que ele respondeu? Arquiduque Friedrich…”
O Assinante: “Peço­‑lhe que aceite os meus mais sinceros agrade‑ O Assinante: Ah, ah, já sei: “…agradece muito penhorado a
cimentos pelos seus amabilíssimos votos de parabéns.” manifestação patriótica. Por ordem de Sua Alteza, o ajudante­
O Patriota: Mas o senhor já sabe que o director da assistência espi‑ ‑de­‑campo coronel von Lorz.”
ritual militar judaica, o rabino militar Dr. Frankfurter, pronun‑ O Patriota: Como é que sabe?
ciou um discurso patriótico por ocasião das festas da Páscoa? O Assinante: Ora, e ainda lhe posso dizer mais. Refiro­‑me ao
O Assinante: Não me diga! Escapou­‑me! E então? texto da resposta do rei Ludwig da Baviera, é que só a li depois,
O Patriota: O texto foi entregue pelo comando militar de Viena quer dizer, o rei Ludwig da Baviera dirigiu ao rabino distrital
ao arquiduque Friedrich e ao arquiduque Karl Franz Josef. Benzion Katz de Borszczow, que presentemente se encontra
O Assinante: E então? em Franzensbad, a seguinte resposta ao telegrama de parabéns
O Patriota: Ambos os arquiduques enviaram agradecimentos que este lhe enviou por ocasião da conquista de Varsóvia: “Os
ao rabino militar. meus melhores agradecimentos a si e a todos os compatriotas
O Assinante: Está a ver, fico contente com isso. Mas, em compen‑ que se encontram em Franzensbad pelos votos de parabéns
sação, posso contar­‑lhe que o rei Ludwig da Baviera mandou por motivo da libertação de Varsóvia. Ludwig.”
expressar por via telegráfica os seus agradecimentos ao rabino O Patriota: É uma pena que só se saiba sempre as respostas e
distrital Benzion Katz de Borszczow, que presentemente se não se chegue a saber o texto do telegrama de Benzion Katz.
encontra em Franzensbad, pelo telegrama de homenagem que O Assinante: Santo Deus, é que agora há tanta coisa, uma pes‑
este lhe enviou por ocasião da conquista de Varsóvia. soa nem sabe por que é que se há­‑de interessar primeiro, a
O Patriota: Isso eu sei e sei ainda mais. propósito, o senhor já sabe quem é que participou no Hospital
O Assinante: Sou todo ouvidos. de Reserva n.º 9 (anteriormente Hospital Imperial e Real da
O Patriota: Benzion Katz, rabino distrital de Borszczow, presen‑ Administração) sob a direcção do encenador Franz Brunner?
temente em Franzensbad, por ocasião da conquista de Varsó‑ O Patriota: A senhora chefe de secção Jarzebecka, Rosa Kunze,
via e Ivangorod… Helene Gad, Marta Seeböck, Elsa von Konrad, Marta Land, a pro‑
276 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 277
fessora Felsen, Gusti Schlesak, Henriette Weiß, Mizzi Ohmann, O general: (Depois de pensar um pouco.) Recordamos… com
Christine Werner e os senhores Ernst Salzberger e Viktor Springer. saudade… os nossos entes queridos… lá em casa… que nos…
O Assinante: Não há dúvida, uma lista imponente. No Hospital enviam… recordações… e se recordam… de nós… com fidelidade.
de Reserva n.º 5 (Hospital Rothschild), que eu saiba, só cola‑ O jornalista: Muito e muito obrigado, Excelência, não deixarei
boraram: a senhora Anna Kastinger, a menina Finni Kauf­ de transmitir imediatamente esta significativa declaração de
mann (ao piano, Hela Lang), a menina Ila Tessa, Adolf Raab, um dos nossos gloriosos comandantes… (Saem ambos.)
a menina Karla Porjes, o quarteto folclórico Uhl e o quarteto (Entram um outro jornalista e um outro velho general.)
Edelweiß sob a direcção do maestro E. Bochdansky, com os O jornalista: Estará Vossa Excelência, senhor general, em con‑
senhores I. Michl, G. Steinweiß e I. Zohner. dições de me disponibilizar, para o meu jornal, informações
O Patriota: Assim é. Mas o senhor sabe que no Hospital da autênticas sobre a actual sequência de acontecimentos, tanto
Apostelgasse, por sugestão do inspector da zona escolar Homo‑ quanto os cuidados que se impõem o permitam?
latsch, se interpretou “A canção alemã em palavras e imagens, O general: Nã sei… só ouvi… que agora… vêm aí os prussia‑
com coro e orquestra”? nos… os prussianos… depois… ora depois… vamo­‑nos ver
O Assinante: Não, fico espantado, mas uma coisa eu sei, que outra vez… à rasca… estes… estes… prussianos dum raio…
E. Koritschoner, Praga, e Minna Husserl, Mährisch­‑Trübau, O jornalista: Interessante. Será que Vossa Excelência sabe
ficaram noivos no dia 15 deste mês. alguma coisa sobre o destino da terceira brigada de artilharia a
O Patriota: Exactamente. Pois é, pois é, há grandes coisas a acon‑ cavalo, que nos preocupa muito em especial?
tecer. O senhor leu “A aliança dos quatro desespera da vitória”? O general: A… ceira… a cavalo… arti… caca… tati… ti… ticati…
O Assinante: Li, li, parece confirmar­‑se, creio que vai rebentar O jornalista: Muito obrigado, Excelência, não deixarei de trans‑
na aliança dos quatro um desespero da vitória como o mundo mitir esta tão significativa declaração de um dos nossos vitorio‑
jamais viu. sos comandantes… (Saem ambos.)
O Patriota: Logo veremos. (Saem.) (Muda a cena.)
(Muda a cena.)
CENA 5
CENA 4 Frente sudoeste.
Sede do Estado­‑Maior. Uma rua. Entram em cena um
jornalista e um velho general. Uma voz dos bastidores: Não avance de mais, Excelência, não
avance de mais!
O jornalista: Estará Vossa Excelência, senhor general, em condições Uma segunda voz dos bastidores: Não vá mais adiante,
de me dar alguns apontamentos sobre a situação do momento? Excelência, o local está à vista do inimigo, tenha isso ao menos
278 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 279
em vista, não vá mais adiante! CENA 7
(Entra em cena um velho general. Está imerso em pensamentos. Junto à bateria.
Um soldado siciliano aproxima­‑se dele e apanha­‑o com um laço.
O soldado leva o general preso.) Um oficial de artilharia: Ora vejam, o nosso bom capelão
Um membro do Departamento de Imprensa Militar: veio da posição da infantaria pra nos visitar. Que simpático!
(Repara na cena e grita.) Não é verdade!… Vi­‑o com os pró‑ O capelão Anton Allmer: Salve­‑vos Deus, meus valentes!
prios olhos!…Vai ser um pratinho para eles!… Invenções da Deus abençoe as vossas armas! Atão e estais a bombardear os
imprensa italiana!… Dispensam­‑se comentários. inimigos como Deus manda?
(Muda a cena.) O oficial: Tudo sobre rodas, reverendíssimo padre.
O capelão: Deus seja louvado se não gostava de experimentar
CENA 6 também uma peça uma vez.
Um regimento de infantaria a 300 passos do inimigo. O oficial: À vontade, reverendíssimo padre, espero que acerte
Violento combate de artilharia. nalguns russos.
(O capelão dispara uma peça.)
Um oficial de infantaria: Ora olhem ali pra trás, o nosso O capelão: Pumba!
bom capelão veio­‑nos visitar. Que simpático! Gritos: Bravo!
O capelão Anton Allmer: Salve­‑vos Deus, meus valentes! O oficial: (Para os seus homens.) Este é que é um bom padre, um
Deus abençoe as vossas armas! Atão e estais a bombardear os padre a valer. E um filho da nossa bela Estíria. Tenho de escrever
inimigos como Deus manda? ao Grazer Volksblatt5 a contar isto! (Para o capelão.) O regi‑
O oficial: Os meus cumprimentos, Excelência Reverendís‑ mento da nossa terra alegra­‑se e está orgulhoso do seu capelão
sima… temos orgulho em ter um capelão tão intrépido que se e valoroso camarada de armas, que vai à frente a dar o exemplo.
aproxima da nossa posição de artilharia, apesar da ameaça do Gritos: Viva!
fogo inimigo, desdenhando do perigo iminente. O oficial: Só agora, depois de o reverendíssimo padre ter dispa‑
O capelão: Olhai lá, deixai­‑me dar também uns tiritos. rado, é que as nossas armas estão abençoadas!
O oficial: Todos nos regozijamos por ter um capelão tão valente! (A Schalek aproxima­‑se.)
(Passa­‑lhe uma espingarda. O capelão dispara alguns tiros.) A Schalek: Mas então que posição é esta? Chamam a isto uma
O capelão: Pumba! posição? Já tenho visto posições melhores!
Brados: Bravo! Isto é que é um padre a valer! Viva o nosso que‑ O oficial: Peço­‑lhe que compreenda… com a pressa…
rido capelão! A Schalek: Olhe, ó senhor primeiro­‑tenente, sabe que mais,
(Muda a cena.) apetecia­‑me dar uns tirinhos.
280 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 281
O oficial: De bom grado, menina, mas de momento isso infe‑ Um representante da Agência Notíciosa Wilhelm:6
lizmente é impossível, é que podia excitar o inimigo. Estamos (Para o colega.) Entre as personalidades militares e civis via­‑se,
justamente numa pausa do combate e damo­‑nos por felizes… nomeadamente…
A Schalek: Ora, ora, não me venha cá com histórias… então o O colega: (Escrevendo.) Angelo Eisner von Eisenhof, Flora Dub,
capelão pode e eu não?… Olhe que eu vim de propósito para o conselheiro Schwarz­‑Gelber e esposa…
isso… como sabe, só descrevo o que vivi pessoalmente… não O representante: Mas não estou a vê­‑los…
se esqueça de que eu tenho sem falta que completar a descri‑ O colega: Ora, mas eu sei.
ção… é para a edição de domingo! O representante: Chiu. Procede­‑se à abertura oficial. Escreva:
O oficial: Bem… pois… é que eu não posso assumir a às seis em ponto procedeu­‑se.
responsabilidade… Voz do Arquiduque Karl Franz Josef: Vim com todo o
A Schalek: Mas posso eu! Dê cá. Então, como é que se dispara? gosto para ver a trincheira. Afinal, eu próprio sou soldado.
O oficial: Assim… (A Schalek dispara. O inimigo responde.) O público: Viva! Viva! Viva!
Pronto, temo­‑la feita! A esposa do Conselheiro Schwarz­‑Gelber: (Para o marido.)
A Schalek: Mas que é que quer? Eu acho isto interessante! Aqui não se vê nada, anda, além podem ver­‑nos melhor.
(Muda a cena.) (Seguem­‑se algumas demonstrações. O público concentra­‑se e a
seguir dispersa­‑se. Formam­‑se grupos.)
CENA 8 O senhor tenente que preferiu ficar anónimo e que
A Feira Popular no Prater. A cena representa uma trincheira na Farmácia Schaumann, em Stockerau, ofereceu a
em que actores de província fazem exercícios de tiro, falam importância de uma coroa para ajuda da Cruz Ver‑
ao telefone, dormem, comem e lêem o jornal. A trincheira melha: (Para um cavalheiro.) É de esperar que também esta ses‑
está adornada com bandeiras. O público, aos milhares, são, que seguramente deve a sua existência a uma ideia ou uma
está postado em frente em filas compactas, com um grande sugestão, vá trazer à boa causa uma soma jeitosa. Eu interesso­
número de funcionários, dignitários e repórteres em ‑me por todas as iniciativas destinadas a apoiar a assistência de
primeiro plano. guerra, a verdade é que o senhor tem à sua frente nem mais nem
menos do que o dador da importância de uma coroa entregue
O empresário: …e assim confio a trincheira, que visa mostrar na Farmácia Schaumann, em Stockerau, para ajuda da Cruz Ver‑
ao distinto público com total fidelidade a vida numa trincheira melha por um senhor tenente que preferiu ficar anónimo, a soma
autêntica, à meritória finalidade da assistência patriótica de total perfaz 1091 coroas em dinheiro e duas mil coroas em títulos
guerra e dirijo humildemente a Sua Alteza Imperial o pedido do tesouro, a que acresce o saldo anterior de 679.253 em dinheiro,
de declarar aberta a trincheira. perfazendo um total de 680.344 coroas em dinheiro e…
282 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 283
O Doutor Kunze: O quê!? Tanto? Não há dúvida de que é uma bela soma, mas, é claro, compa‑
O senhor tenente que preferiu ficar anónimo e que rada com o resultado… (Saem conversando.)
na Farmácia Schaumann, em Stockerau, ofereceu a O Patriota: Em Londres, eles têm assim uma espécie de entre‑
importância de uma coroa para ajuda da Cruz Ver‑ tenimento, uma trincheira. Estava muito boa a notícia há dias
melha: Ah, pois, a verba vai crescendo. Hesitei por muito na Presse: “O Príncipe de Gales na trincheira”. É claro, ali é que
tempo sobre se havia de vir a público com o meu nome, mas ele passa o tempo, na frente de combate é que nunca esteve!
como, quando se trata de fins de beneficência, sou um inimigo O Assinante: Eles andam a brincar com a guerra.
declarado de toda a publicidade, decidi manter­‑me incógnito. (Muda a cena.)
E o anonimato pela metade… acaba por vir a dar na benefi‑
cência pela metade. Ora veja aqui, Otto Ni., de Leitmeritz, e CENA 9
Robert Bi., de Theresienstadt, dão os parabéns a Rusi Ni., de Semmering.7 Terraço do Hotel Südbahn. Arrebol alpino.
Viena, por um feliz sucesso familiar: “Acabou tudo em bem, Jovens e velhos, grandes e pequenos estão reunidos.
não se passou nada.” – duas coroas e sete cêntimos, mas se se Distinguem­‑se chacais e hienas. Uma dama acabou de recitar
adicionar o saldo anterior, perfaz apenas 576.209 coroas e 52 Heine com profundo sentimento e recebe um farto aplauso.
cêntimos. A minha atitude é completamente diferente, mesmo Os incondicionais do Semmering estão mergulhados
abstraindo do facto de que estava sozinho e não precisei de numa contemplação silenciosa.
forma nenhuma do pretexto de um parto feliz para…
O Doutor Kunze: Tenho inveja de si. Eu fiz mais, mas, no fim Jovem: Weiß é o rei dos turistas. Anda a passo, anda a trote ou,
de contas, não foi nada. O senhor tem à sua frente nem mais quando não há tempo, também anda a galope. Nunca perdeu
nem menos do que o homem que propôs, num grupo de caça‑ o comboio dos sábados, o dos jogos de cartas.
dores, que cada um dos participantes contribuísse com o óbolo Velho: Um arrebol alpino de primeira classe. Vejam o director­
de duas coroas para a assistência de guerra. Eu próprio, evi‑ ‑geral ali à janela, tem o rosto radiante.
dentemente, fui o primeiro a contribuir e, como os outros não Dangl: (Chega esbaforido.) Meus caros hóspedes, acaba de vir
tardaram a associar­‑se ao meu exemplo, fiquei em condições um telefonema de Viena, Durazzo caiu… Grandes êxitos em
de mandar a notícia para o jornal. Hesitei durante muito tempo Verdun!
sobre se devia manter o meu nome incógnito, mas como, Todos: Viva Dangl!
quando se trata de dar o exemplo, sou um inimigo declarado Grande: Está cá a querer­‑me parecer que o céu está iluminado
de todo o anonimato, decidi­‑me a revelá­‑lo. Está a ver que por causa de Durazzo.
nesse ponto as minhas ideias são muito diferentes das suas. Pequeno: Hoje podemos desfrutá­‑lo! Hoje estão todos reunidos,
Ao todo deu então 26 coroas, porque o nosso grupo era de 13. os admiradores inveterados do Semmering e os incondicionais.
284 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 285
Algaraviada: Onde está Weiß?… Por favor, não grites, o Stukart CENA 10
está a ouvir… Ouvistes a notícia de Durazzo? Uma bagatela! O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
A vista era fantástica… Estou com curiosidade de ver se ele
hoje chega a tempo… Não há cá coisas, Heine é e há­‑de ser O Optimista: Isso é uma coisa que eu posso verdadeiramente afir‑
sempre o maior poeta alemão, mesmo que eles se mordam mar com a consciência tranquila: desde a declaração de guerra,
todos… Eu cumprimentei o chefe de secção, ele também cum‑ ainda não encontrei nenhum jovem em Viena que ainda aqui
primentou… Vai ver, ele vai ficar nos anais… Ele disse que estivesse e, quando ainda aqui estava, que não estivesse a ferver
ia subir ao Sonnwendstein… Eles não entrarão em Verdun!… de impaciência por já cá não estar.
Será que o senhor é uma pessoa que come muito? É que eu O Eterno Descontente: Eu é raro ver gente. Mas tenho um
sou uma pessoa que come muito… A vista era fantástica… telefone partilhado. Já no tempo da paz. Por isso, sem me esfor‑
É o que eu te digo, a passo, ele tem tempo… Deve ter havido çar e sem ter de me pôr às pancadas no disco preto, já no tempo
baixas exorbitantes!… Aquele de certeza que ganha umas boas da paz estava ao corrente de todas as conversas do bairro, sobre
massas… A maneira como ela declamou, eu fiquei mesmo uma partida de póquer planeada, sobre um negócio previsto
empolgado… Querem apostar que ele hoje vem a trote… e sobre um coito desejado. As minhas únicas ligações com o
O doutor disse que as coisas lá em baixo estão a correr às mundo exterior são as ligações erradas. Desde que rebentou
maravilhas… Ainda arranjo três vagões… Ele baptizou­‑se e a guerra mundial, sem que isso melhorasse em nada o tele‑
ela pediu o divórcio… Hoje ele vai mesmo perder o comboio, fone da pátria, as conversas giram em volta de um outro pro‑
é o que vos digo… Se quereis partir­‑vos a rir, tendes de ir ao blema e, dia após dia, sempre que sou chamado ao telefone
Teatro da Josefstadt… Que é isso de transportes de tropas? para ouvir outras pessoas a falar umas com as outras, quer
O comboio dos jogadores circula sempre!… A vista era fantás‑ dizer, pelo menos dez vezes ao dia, escuto conversas como:
tica… Além vem ele a correr, que vos dizia eu, Weiß a galope! “O Gustl foi lá acima e desenrascou­‑se.” “Então o Rudi, como é
(A sociedade recolhe­‑se.) que está?” “O Rudi também foi lá acima e também se desenras‑
Um incondicional do Semmering: (Ao sair.) Deixai­‑o dor‑ cou.” “E o Pepi? Será que já está na frente de combate?” “O Pepi
mir, ele está em cuidados por causa do fornecimento de metal. está com lumbago. Mas mal consiga levantar­‑se, vai lá acima
O director­‑geral: (Dormindo, com o gesto de uma súbita ins‑ desenrascar­‑se.”
piração.) É enterrá­‑los! (Acorda.) O Optimista: Tenha cuidado.
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: Porquê? Eu tenho provas. Ainda há
juízes na Áustria.
O Optimista: A verdade é que, da sua perspectiva, o senhor devia
congratular­‑se com cada um que fica isento.
286 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 287
O Eterno Descontente: Pois é, com cada um. Eu mantenho a O Optimista: Ora veja o caso de Kernstock…
minha perspectiva. Mas a pátria não partilha a minha perspec‑ O Eterno Descontente: Não tenho nenhum gosto em ver.
tiva e aqueles que querem ficar isentos professam o ponto de vista O Optimista: Um poeta da clemência cristã, até sacerdote de
da pátria, e não o meu. Eu considero uma infâmia a obrigação profissão.
de morrer, mas mover influências para não morrer parece­‑me O Eterno Descontente: É verdade, admito, ele foi temperado
uma situação que agrava a infâmia até ao ponto de se sentir que, como o aço de uma maneira extraordinária. Estou sobretudo a
nesta terra, só se pode continuar a viver como suicida. É o último pensar nos versos em que ele incita os seus rapazolas da Estíria
recurso do voluntário frente ao serviço militar obrigatório. a fazer o vinho sair bem tinto de sangue italiano.
O Optimista: Mas, no fim de contas, tem de haver excepções. Por O Optimista: Ou pense no caso do Irmão Willram…
exemplo, a literatura. A pátria não precisa só de soldados… O Eterno Descontente: Infelizmente, a minha memória não
O Eterno Descontente: …mas também de poetas que insu‑ me falha. Esse é o poeta cristão, não é verdade, para quem o
flem aos soldados a coragem que eles próprios não possuem. sangue é uma flor vermelha e que sonha com uma Primavera
O Optimista: Mas não se pode negar que os poetas cresceram sangrenta? O senhor está porventura a aludir ao lema deste
com a elevação dos desígnios. O senhor não pode negar que a pastor de almas que reza: “Na luta com dragões e com lagartos,
guerra também os temperou como aço. apunhalai até ficardes fartos”? Ou: “Malhar no inimigo a bom
O Eterno Descontente: Para a maior parte, a guerra só mobi‑ talante, trespassá­‑lo com o chumbo sibilante.”
lizou o desejo de ganhar dinheiro; para os poucos que têm O Optimista: Não, estou a referir­‑me à sua proclamação: “E eis que
carácter, só mobilizou a estupidez. abriu a caça à italiana má raça.” Ou os versos em que o seu ginete
O Optimista: Um homem como Richard Dehmel, que se apre‑ relincha com força e resfolega cheio de nobre coragem, levando­‑o
sentou como voluntário, deu um exemplo… no meio das hostes inimigas por entre riachos rubros de sangue.
O Eterno Descontente: …cujo valor destruiu com a sua poe‑ O Eterno Descontente: Mas o que é certo é que a cavalaria já
sia bélica. Ele chamou música das esferas ao matraquear das anda desmontada e mesmo o fiacre da taberna de Innsbruck
metralhadoras e, ao reclamar os “cavalos alemães” para a causa para casa custa hoje em dia os olhos da cara.
nada santa da pátria, submeteu às ideias patrióticas aquelas O Optimista: Não subestime o poder da ilusão poética, sobre‑
criaturas que ainda estão mais indefesas ante o serviço militar tudo no poema em que ele pede a Deus, Nosso Senhor, que
obrigatório do que o ser humano. abençoe de tal maneira os inimigos que até o diabo fique hor‑
O Optimista: Pois, em tempos assim, a verdade é que todos os rorizado quando estivermos a banhar­‑nos em sangue.
poetas se deixam arrastar… O Eterno Descontente: E o que é que faz o diabo? Fica tanto
O Eterno Descontente: …a emprestar palavras aos actos dos mais horrorizado quanto menos o padre se horroriza.
que profanam a criação. O Optimista: Ou vejamos o caso de Dörmann.
288 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 289
O Eterno Descontente: Mas esse não é padre. O Optimista: Vêm­‑me à cabeça Schönpflug, que desenhou tan‑
O Optimista: Mas é um poeta! Como nos deixámos em tempos tos tipos militares divertidos, e Hans Müller, cujas crónicas
fascinar pelas suas palavras: “Amo os esbeltos e inquietos…”! luminosas são verdadeiramente reconfortantes e que tanto têm
Agora, com mais 25 anos de idade, ele evoluiu de uma sensi‑ contribuído para que resistamos a pé firme.
bilidade anémica, que, graças a Deus, todos superámos, para O Eterno Descontente: Também eu ficaria muito espantado se
uma concepção mais vital e sanguínea… um escritor que foi recebido por Wilhelm II no Palácio Impe‑
O Eterno Descontente: Está a esquecer­‑se de que já os narcisos rial de Viena, que, na sequência disso, ainda não foi fechado,
esbeltos e inquietos tinham os lábios rubros como o sangue. não fosse um dia libertado do serviço esgotante no Arquivo de
O Optimista: Que importa! O que é isso comparado com os ver‑ Guerra Imperial e Real.
sos com que ele agora empolga toda a gente: “Os russos e os O Optimista: Tem toda a razão. Através da sua própria obra,
sérvios de caminho, vamos fazê­‑los já em picadinho!” Como homens assim demonstram da maneira mais cabal como são
ele fez das fraquezas força, como este poeta, outrora decadente, imprescindíveis. Mas, ao lado deles, tem de haver também
amadureceu e atingiu tanta determinação e energia. Como escritores e correspondentes de guerra: eles estão isentos do
tem de ser forte o efeito de uma época capaz de transformar serviço na linha da frente para…
assim um amoroso dilecto das Graças, de lhe dar sentimentos O Eterno Descontente: …fazer os outros tomar o gosto de ir
tão inexoráveis e uma tal força de realização! para a linha da frente.
O Eterno Descontente: Foi mais forte do que ele. O Optimista: À sua maneira, eles dão tão boa conta de si como
O Optimista: E o senhor não poderá negar as vantagens que a adap‑ os médicos militares que…
tação da produção literária às necessidades da pátria tem tanto para O Eterno Descontente: …são tanto mais inaptos quanto mais
esta como last not least para o próprio interessado. Além disso, gente declaram como apta e têm tanto mais garantias de con‑
numa época em que todos cumprem o seu dever para com a pátria, servar a vida…
também a pátria tem oportunidade de se recordar das obrigações O Optimista: …quanto mais feridos devolvem à vida…
que tem para com os seus melhores filhos. Estou a pensar sobretudo O Eterno Descontente: …para que esses possam vir a perdê­
num homem como Lehár. Ninguém estranhou que o criador da ‑la. Ao passo que, por outro lado, os juízes militares têm tanto
Marcha de Nechledil tivesse ficado isento de todo o serviço militar. mais garantias de conservar a vida quanto mais são os homens
O Eterno Descontente: Devido à surdez, Beethoven teria saudáveis a quem a tiram.
ficado isento do serviço activo e, por via disso, teria apenas O Optimista: Não se pode generalizar.
sido obrigado a tocar piano em farras nas messes de oficiais. O Eterno Descontente: Pode­‑se fazer tudo, só não se pode
Que representantes da pintura e da literatura lhe pareceriam generalizar.
merecer uma atenção semelhante? O Optimista: A pátria precisa de soldados, mas também precisa
290 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 291
de correspondentes de guerra. Afinal, estamos em guerra, e a O Eterno Descontente: Isso mesmo, têm de ir, o serviço
função deles é dizer­‑nos isso. militar obrigatório transformou a humanidade numa forma
O Eterno Descontente: passiva. Dantes, ia­‑se para a guerra, agora tem de se ir para a
Como? Estamos em guerra? Aquela gente o diz, guerra. Só na Alemanha é que já se ultrapassou esse estádio.
que o seu Eu abjecto ainda conserva, pra narrar O Optimista: Como assim?
com que disposição foi de visita à guerra? O Eterno Descontente: Em Karlsruhe, li num grande cartaz:
Um cavalo de guerra não se rebaixaria “Libertai os soldados!” E, por sinal, no portão do quartel­‑general.
com o casco traseiro esquerdo a dar um coice O Optimista: Como é que é possível, mas isso é revolução, como
nesses narigudos e os que têm poder é que o quartel­‑general de Karlsruhe…
recebem­‑nos e de tudo lhes dão conta, O Eterno Descontente: Pois, o que acontece é que são precisos
agasalham à sua própria mesa escrivães para os serviços de secretaria e o que se pretende é
a escória? Como, o que aconteceu não foi que se apresentem civis, para que os soldados que ainda traba‑
violento que bastasse pra esmagar o inimigo interno? lham na secretaria fiquem livres para ir para a frente. Portanto:
Ele avança até à frente, ganha louros pra o jornal? “Libertai os soldados!” Entre nós dir­‑se­‑ia também: “Mobili‑
Põe­‑nos a guerra à frente, põe­‑se em frente da guerra? zai os soldados!”, no que, na verdade, se exprimiria suficiente
Jamais sucumbirá? Vive? Não combate? livre­‑arbítrio. Julgo, contudo, que o cartaz alemão produz
Não tem de treinar­‑se, essa escumalha? efeito de qualquer modo. Porque se ele não produzir efeito, a
Isto é uma guerra? Parece mais a paz. administração militar alemã tem meios para assegurar que os
Os melhores vão­‑se e ficam os piores. lugares de escrivão vagos sejam preenchidos. Só haveria falta
Estes não têm que morrer. Escrevem bem. de interessados se todos os soldados que entram em linha de
(Passa uma coluna de recrutas de barbas grisalhas.) conta fossem já soldados libertos.
O Optimista: Olhe, mobilizados! O Optimista: O seu constante azedume não respeita sequer uma
O Eterno Descontente: É bem verdade, mobilizados. proclamação do quartel­‑general de Karlsruhe.
O Optimista: Como assim? O Eterno Descontente: Diga­‑se de passagem que vi ainda
O Eterno Descontente: Foram mobilizados, é assim que se outra proclamação lá na Alemanha. Numa esquadra de polícia
diz, e com razão. Outra forma verbal manifestaria um acto está pendurado um cartaz cujo texto me ficou no ouvido. Reza
de vontade e, por isso, tem mesmo de se usar o particípio assim:
passado. Foram, portanto, mobilizados. Em breve terão sido Espancai esse bando, essa canalha,
mobilizados. Até chegar ao Etna, sem falha,
O Optimista: Bem, é verdade, têm de ir para a guerra. E do Vesúvio os lançardes na gorja!
292 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 293
Malhai sem piedade nessa corja! de regressar a casa e assustar­‑se­‑ia de novo se um saco de papel
Malhai sem quartel nesses bandalhos, rebentasse.
Malhai até fazê­‑los em frangalhos! O Optimista: Não o compreendo. Na guerra, há boas e más pes‑
Perdão é palavra pra abater soas. Não é o senhor que diz que a guerra se limitou a acentuar
Pois essa raça falsa há­‑de morrer! os contrastes?
Dinamite nos vales instalai, O Eterno Descontente: Com certeza, também os contrastes
Esses traidores vis exterminai, entre mim e o senhor. O senhor já no tempo da paz era um
Lançai­‑os a todos prò entulho optimista e agora…
E de “bárbaros” ser senti orgulho. O Optimista: O senhor já no tempo da paz era um eterno des‑
O Optimista: Uma coisa assim também seria possível nas outras contente e agora…
nações. O Eterno Descontente: Agora até culpo os lugares­‑comuns
O Eterno Descontente: Não se pode generalizar. Mas o senhor pela mortandade.
é capaz de ter razão. Até poderia ser possível entre os ingleses se O Optimista: Sim, por que razão é que a guerra havia de o ter
eles mantiverem o serviço militar obrigatório por mais alguns libertado da sua ideia fixa?
anos. Pouco a pouco, todos os povos irão compreendendo que O Eterno Descontente: É bem verdade, a guerra até reforçou
os vales só existem para serem enchidos com dinamite. Só o em mim essa ideia. Os desígnios mais elevados tornaram­‑me
verso “Malhai até fazê­‑los em frangalhos!”… este verso, está a mais mesquinho. Vejo gente que foi mobilizada e sinto que isso
ver, tem cor local. é contrário à língua. Os restos ensanguentados da natureza
O Optimista: Uma simples alarvidade. Não se pode generalizar. pendem do arame farpado.
O Eterno Descontente: Claro que não, uma coisa dessas seria O Optimista: Então é assim, é com a gramática que quer fazer a
impossível tanto entre os ingleses brancos como entre os de guerra?
cor. O Eterno Descontente: Isso é um erro, a mim não me inte‑
O Optimista: Também na Alemanha é um caso isolado. ressam os regulamentos, interessa­‑me o sentido vivo do todo.
O Eterno Descontente: Que, no entanto, só é possível na Ale‑ Na guerra, está em jogo a vida e a morte da língua. Sabe o que
manha. E o fulano que o escreveu está sentado num gabinete e aconteceu? Já não é possível saber se quando se diz escudo se
assusta­‑se se um saco de papel rebenta. alude a uma moeda ou a uma arma de guerra e todos os que
O Optimista: Ora, justamente… se limitavam a ganhar uns escudos hão­‑de ganhar no futuro
O Eterno Descontente: E o mesmo fulano, se for para a um escudo. Assim se confundem as esferas e o novo mundo é
frente, converte­‑se num assassino encarniçado, revira a faca mais sangrento do que o velho, porque o terrível sentido novo
no corpo de um moribundo, contá­‑lo­‑ia com orgulho depois torna­‑o mais terrível através das formas antigas de que não
294 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 295
conseguiu libertar­‑se no plano do espírito. Cartilha e lança­ O Eterno Descontente: Que se traz ao peito. Eu trago­‑a às
‑chamas! Estandarte e papel! Porque lançamos mão da espada, costas.
temos de lançar mão da bomba de gás. E travamos este com‑ O Optimista: Mas não estará a exagerar?
bate de navalha nos dentes. O Eterno Descontente: Olhe, por exemplo: um povo, digo
O Optimista: Isso, para mim, é demasiado rebuscado. Atenhamo­ eu, está acabado quando continua a arrastar consigo os seus
‑nos à simples realidade. Esta guerra tem servido… lugares­‑comuns numa situação da vida em que revive o con‑
O Eterno Descontente: Pois, pois, esta guerra tem servido! teúdo deles. Isso é então a prova de que ele já não é capaz de
O Optimista: Se os combatentes não fossem guiados por um viver esse conteúdo.
ideal, não iriam para a guerra. Não é de palavras que se trata. O Optimista: Como assim?
É por os povos serem guiados por ideais que vendem a pele… O Eterno Descontente: Um comandante de submarino ergue
O Eterno Descontente: Ao desbarato! bem alto a bandeira, um ataque aéreo afundou­‑se. A vacui‑
O Optimista: Pois precisamente na linguagem dos nossos dade ainda é maior quando a metáfora é apropriada à maté‑
comandos militares o senhor deveria reconhecer um traço ria em causa. Quando, em vez de uma operação militar em
que se distingue nitidamente da prosa trivial do mundo dos terra, acontece ser um empreendimento marítimo a naufragar.
negócios que despreza. Quando o êxito nas posições que agora ocupamos era à prova
O Eterno Descontente: E reconheço, na medida em que essa de bomba e o bombardeamento de uma praça caiu como uma
linguagem não revela senão uma relação com o negócio do bomba.
entretenimento. Foi assim que pude ler numa ordem assinada O Optimista: Pois é, essas expressões radicam todas na esfera
pelo alto­‑comando de uma divisão: “… que, no que toca a bélica e agora vivemos precisamente no seio dela.
heroísmo, coragem e espírito de sacrifício com desprezo pela O Eterno Descontente: Não vivemos. Se vivêssemos, a crosta
morte, deram o máximo que companhias de primeira classe da linguagem teria caído sozinha. Li há dias que a notícia de
podem dar…” De certeza que o general comandante de divi‑ um incêndio em Hietzing se tinha propagado como um rasti‑
são tinha em mente uma daquelas companhias de primeira lho de pólvora. Com a notícia da conflagração mundial acon‑
classe que tantas vezes costumava apreciar no tempo da paz. teceu o mesmo.
Os negócios puros e duros manifestam­‑se mais na confusão O Optimista: Não é por isso que deixa de arder!
permanente entre o escudo e os escudos. O Eterno Descontente: Pois não. O papel arde e pegou fogo
O Optimista: Está a dizer isso em sentido literal? ao mundo. Folhas de jornal serviram para atiçar a conflagração
O Eterno Descontente: Estou a dizê­‑lo respeitando o espírito mundial. A única coisa de que se tem noção é que chegou a
e a letra, ou seja, em sentido literal. última hora. Pois que os sinos de igreja são transformados em
O Optimista: Isto da língua é uma autêntica cruz. canhões.
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O Optimista: As próprias igrejas não parecem levar isso muito um editorial a favor da guerra? E como só há sermões a favor
para o trágico, já que, em muitos casos, oferecem os sinos da guerra…
voluntariamente. O Optimista: Com isso estou de acordo, em Belém a salvação do
O Eterno Descontente: Seja a guerra o seu repique final.8 Afi‑ mundo tinha sido decidida de outra maneira.
nal, o parentesco entre o Requiem e o obus de morteiro vai­‑se O Eterno Descontente: Belém na América corrige o erro
revelando a pouco e pouco. cometido há 19 séculos.
O Optimista: Em todos os Estados a Igreja roga a Deus que ben‑ O Optimista: Na América? O que é que está a querer dizer?
diga as suas armas… O Eterno Descontente: Belém é o nome da maior fundição de
O Eterno Descontente: …e trata de aumentar ainda mais canhões dos Estados Unidos. Entre nós, cada igreja oferece o
o número dessas armas. É verdade que não se pode pedir à seu Belém, contribui com o seu óbolo para Belém.
Igreja que rogue a Deus que bendiga as armas inimigas, mas O Optimista: Uma coincidência de nome.
ela poderia, de qualquer modo, ter feito um esforço para amal‑ O Eterno Descontente: Homem sem fé. Então se calhar tam‑
diçoar as suas próprias. Se fosse assim, as Igrejas dos Estados bém não sabe o que é um Paternoster?
beligerantes ter­‑se­‑iam compreendido melhor umas às outras. O Optimista: Uma oração.
Agora é possível o Papa lançar o anátema sobre a guerra, mas, O Eterno Descontente: É um elevador. Seu optimista!
apesar disso, falar de “legítimas aspirações nacionais” e, no O Optimista: Ah, pois, é claro. Mas essa história de Belém…
mesmo dia, o arcebispo primaz de Viena abençoar a guerra, Então é esse o nome do sítio a partir do qual os inimigos da
que é travada para conter “pérfidas aspirações nacionais”. Pois Alemanha são abastecidos com armas?
é, se as inspirações tivessem sido mais fortes do que as aspira‑ O Eterno Descontente: Por alemães.
ções, não haveria estas aspirações nem haveria guerra. O Optimista: Está a brincar. Quem dirige a corporação do aço é
O Optimista: Não há dúvida de que o fracasso da internacional Carnegie.
negra ainda foi maior do que o da vermelha. O Eterno Descontente: É Schwab.
O Eterno Descontente: Só deu boa conta de si aquela interna‑ O Optimista: Ah, bem, então os germano­‑americanos abastecem
cional que pôs tudo preto no vermelho, a imprensa… agora os inimigos…?
O Optimista: …ainda bem que reconhece o poder da imprensa… O Eterno Descontente: Os alemães do Reich!
O Eterno Descontente: …embora eu exagere a influência O Optimista: Quem é que diz isso?
dela. O que é Benedikt contra… O Eterno Descontente: Quem sabe. O Wall Street Journal,
O Optimista: O que é que o senhor tem contra… que, no que toca a questões financeiras, parece ter pelo menos
O Eterno Descontente: Estou a referir­‑me é ao Papa. O que tanta autoridade como a nossa imprensa especializada, cons‑
é que pode conseguir um sermão pela paz em confronto com tatou que 20 por cento das acções da corporação do aço se
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encontram em mãos alemãs, mas não germano­‑americanas, visto o anúncio. Um espírito maligno tinha feito olvidar o
antes, sim, de alemães do Reich. Mais do que isso. Ora leia o que duplo sentido da terceira palavra.
vem num jornal socialista alemão: “Ao mesmo tempo que se O Optimista: Franca perfídia!
soube que muitos fabricantes genuinamente anglo­‑americanos O Eterno Descontente: É isso mesmo, franca perfídia! Feliz‑
recusaram encomendas dos governos francês e inglês, o jornal mente, contudo, um revisor consciencioso tinha pelo menos
socialista Leader, publicado em Milwaukee, citou os nomes de feito uma modificação à mão pondo uma cedilha no “c”. Assim,
vários germano­‑americanos que se manifestam publicamente, fez honras à verdade e deu à palavra um sentido claro.
alto e bom som, pela causa alemã… O Optimista: O senhor continua fiel ao seu hábito de considerar
(Passa um grupo de rapazes com lampiões a cantar a canção: que um lapso de linguagem…
“Pátria querida, está tranquila.”)9 O Eterno Descontente: …é o texto autêntico.
…enquanto as fábricas que dirigem produzem cartuchos, O Optimista: Essa fidelidade…
espingardas e outro material de guerra para a Inglaterra e a O Eterno Descontente: …franca perfídia!
França. E ainda há pior: há nos Estados Unidos filiais de O Optimista: Bem, no que toca aos mapas italianos e aos postais
empresas alemãs que participam neste negócio! Que direito franceses, poderia dizer­‑se que só abona a favor da eficiência
temos de protestar contra a estranha neutralidade da América dos alemães…
que, no fim de contas, não tem nenhum motivo para renunciar O Eterno Descontente: …o facto de os inimigos serem obri‑
a esses lucros colossais só pelos nossos lindos olhos?” gados a importar o seu ódio da Alemanha, mesmo que a raiva
O Optimista: Incrível… mas o senhor tem que admitir que os os faça trepar pelas paredes! O que representa uma humilha‑
alemães têm olho para o negócio. ção não tanto para os alemães, mas para os inimigos, não é
O Eterno Descontente: Bom olho, olho leal, e o coração, esteja verdade?
onde estiver, sempre no sítio! O senhor sabe que os mapas da O Optimista: Não, não é isso que eu digo, o que digo é que o
Áustria italianos, em que aparecem satisfeitas as aspirações senhor se agarra a excrescências.
irredentistas e que agora estão expostos nas nossas livrarias O Eterno Descontente: Um tronco saudável não tem
como prova da desfaçatez inimiga, foram feitos na Alemanha? excrescências.
E que os postais franceses em que surge ilustrada a origem da O Optimista: Porque é que não pensa antes no facto de os alemães
Marselhesa foram impressos em Dresden? Eu vi o anúncio de terem erigido na América bastiões da idiossincrasia nacional.
um filme com o título emocionante Fidelidade Alemã, Franca O Eterno Descontente: O que eu penso é que, nesses bastiões,
Perfídia. eles fabricam munições contra os seus compatriotas.
O Optimista: Mas o quê, então não está bem? O Optimista: Bem, business is business.
O Eterno Descontente: Não seria dessa opinião se tivesse O Eterno Descontente: Não, negócios são negócios.
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O Optimista: Em política, o que eu digo é: quem tem sucesso, O Eterno Descontente: Eu também não, só de uma perspec‑
tem sucesso. Por isso, o afundamento do Lusitania de certeza tiva criminal.
que não vai deixar de causar grande impacto. O Optimista: As pessoas tinham sido avisadas.
O Eterno Descontente: Esse impacto já ele causou. Em todo O Eterno Descontente: O aviso do perigo era a ameaça de um
o mundo, sempre que ele ainda é capaz de sentir repulsa. Mas crime, o que quer dizer que o assassínio foi precedido de chan‑
também em Berlim. tagem. O chantagista não pode nunca invocar como factor
O Optimista: Até em Berlim? atenuante a circunstância de ter ameaçado antecipadamente
O Eterno Descontente: Isso é outra coisa que só se pode causar o dano que causou. Se eu o ameaçar com a morte no
demonstrar com provas. (Lê.) “No momento em que o vapor se caso de o senhor fazer ou deixar de fazer uma coisa a que eu
afundou, centenas de pessoas saltaram para o mar. A maioria delas não tenho nenhum direito, sou um chantagista, e não alguém
foi arrastada pelo turbilhão. Muitas pessoas se agarraram a peda‑ que avisa e, depois, sou um assassino, e não um executor.
ços de madeira, que a explosão tinha soltado… Em Queenstown, É permitido fumar. A pátria querida que experimente conti‑
puderam testemunhar­ ‑se cenas trágicas. Mulheres procura‑ nuar tranquila, quando pensar nos cadáveres das crianças!
vam os maridos, mães chamavam pelos filhos, mulheres idosas O Optimista: O submarino não podia senão…
vagueavam por ali com cabelos desgrenhados a pingar água, O Eterno Descontente: Substituir o icebergue, que alguns
jovens mulheres giravam sem destino com os filhos apertados ao anos antes abalroou o Titanic como a ira de Deus abalroou o
peito. Cento e vinte e seis cadáveres estavam já ali amontoados; delírio da desmesura técnica, para que ela ensinasse a huma‑
entre eles, havia mulheres, homens e crianças de todas as ida‑ nidade a temer mais do que a venerar. Agora é a própria téc‑
des. Duas pobres criancinhas estavam abraçadas fortemente na nica que se encarrega do tribunal penal e tudo está em ordem.
morte. Era um espectáculo lastimoso e inolvidável.” – Ora aí tem. Mas, naquele momento, ainda se invocou o nome de Deus, que
O Optimista: Sim, mas em Berlim? foi o responsável. O herói deste submarino não o menciona a
O Eterno Descontente: Em Berlim? Num teatro de varieda‑ história universal. O relatório oficial não indica o seu nome.
des local passou, logo no dia a seguir à catástrofe, um filme A afirmação dos inimigos de que esse homem recebeu uma
que mostra isto tudo e na folha do programa podia ler­‑se: medalha é qualificada como mentira pela Agência Noticiosa
“O afundamento do Lusitania. Tirado ao natural. Nesta parte Wolff. E com tal indignação que desmascara definitivamente o
do programa, é permitido fumar.” próprio acto por detrás do tom autocomplacente característico
O Optimista: Não há dúvida que isso é de mau gosto. dos lugares­‑comuns bem pensantes.
O Eterno Descontente: Não, tem estilo. O Optimista: A verdade é que ele não aspira a figurar entre heróis
O Optimista: Bem, eu não posso ver o caso do Lusitania de uma como Weddigen…
perspectiva sentimental. O Eterno Descontente: Mas porque não? A acção não é
302 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 303
glorificada? Porque é que ela não é silenciada da mesma Primeiro polícia: Arriscam­‑se a ser presos por resistirem à
maneira que silenciam o autor? autoridade!
O Optimista: A acção não foi gloriosa, mas foi útil. O Lusitania Gritos: Fora! Pão!
transportava armas a bordo que se destinavam aos corpos de Segundo polícia: A gente põe­‑vos atrás das grades!
soldados alemães. Gritos: As grades devia ele abrir!
O Eterno Descontente: Armas alemãs! Segundo polícia: Daqui a uma semana vão­‑vos dar as senhas.
(Muda a cena.) Quarta mulher: Ai, ai, daqui a uma semana já fomos desta pra
melhor.
CENA 11 Primeiro polícia: Agora a palavra de ordem é aguentar a pé
Rua nos subúrbios. Diante de uma mercearia, uma multidão firme!
de proletários faz bicha. Há polícias a manter a ordem. Uma mulher de idade: (Afasta­‑se abanando a cabeça.) Virgem
Vê­‑se pendurar um cartaz com os dizeres “pão esgotado”. Santíssima, que desgraça! Os homens, matam­‑nos a tiro, e as
A multidão não sai do sítio. mulheres, deixam­‑nas morrer à fome!
Primeiro polícia: Não há senão um remédio… dispersar!
Um polícia: Atão não vedes que já tá tudo vendido? Terceiro homem: Prontos, a gente vai esperar p’las senhas. Atão,
Uma mulher do meio da multidão: Desde as duas da madru‑ e quando houver senhas, adonde é que a gente arranja pão?
gada que aqui estou! Quarto homem: Ora, onde o diabo o amassou!
Segundo polícia: Vamos, dispersar! Quinto homem: Pois, onde o diabo o amassou! (Risos. A multi‑
Uma segunda mulher: Mas isto é que é justiça? Faz oito horas dão retira­‑se com gritos os mais variados.)
que a gente aqui está e agora vêm dizer que está tudo vendido! O merceeiro: (Abre a porta a uma mulher mais bem vestida que
Um homem: Façam­‑lhe a casa em fanicos! se deixou ficar para trás.) Entre, depressa…
Um segundo: Pois! Atreve­‑te! Se lhe fores agora praguntar se (Muda a cena.)
tem pão, ele manda­‑te uma chapada qu’inté vês tudo a andar
à roda! CENA 12
Terceira mulher: A gente também paga impostos, não são só Kärntnerstraße. Um homem que come muito
os judeus, também queremos comer! e um homem que come normalmente encontram­‑se.
Quarta mulher: A culpa é dos judeus!
Gritos: Queremos pão! O homem que come normalmente: Então, que tal vai
Segundo polícia: Se não dispersarem, vão ter que arcar co’as andando, como é que vai aguentando a guerra mundial?
consequências. O homem que come muito: Olhe, é melhor nem perguntar,
304 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 305
dê­‑me mas é alguns dos seus cartões de racionamento, ando a os clientes habituais se familiarizavam com o novo sistema…
juntar os que posso. O homem que come normalmente: …os criados do Wein‑
O homem que come normalmente: Nem pensar, eu próprio gartl não tinham mãos a medir…
não tenho que chegue. E sou uma pessoa que come normal‑ O homem que come muito: …para responderem às perguntas
mente! Mas faço ideia de como o senhor deve estar furioso. dos curiosos. Mas parece que houve uma coisa que se repe‑
Ainda ontem disse à minha mulher, isto para o Tugendhat não tiu em todos os estabelecimentos, nomeadamente que mal o
dá, sabe­‑se como o Tugendhat é uma pessoa que come muito. empregado da caixa tirava a tesoura do bolso…
É que tínhamos acabado de ler na Presse aquela reflexão inte‑ O homem que come normalmente: …se formavam grupos à
ressante de que quem come muito vai precisar de mais do que volta dele. Não admira, com uma revolução destas proporções!
quem come normalmente, uma vez que já quem come nor‑ O homem que come muito: Sim, é terrível o que aqui temos
malmente precisa de mais do que quem come pouco. que aguentar.
O homem que come muito: O senhor é uma pessoa que come O homem que come normalmente: Bem, pelo menos os que
pouco? estão nas trincheiras não têm que ter inveja de nós.
O homem que come normalmente: Bem, nem por isso, O homem que come muito: De facto, tenho que admitir que
médio, sou uma pessoa que come normalmente. Mas para no primeiro dia do cartão de racionamento… me senti como
mim também não é bastante. Se isto assim continua, quero que se fosse o meu baptismo de fogo. A única diferença é que no
a guerra se vá mas é lixar. baptismo de fogo uma pessoa pode­‑se safar. Agora no que toca
O homem que come muito: Mas isto também não vai poder ao cartão de racionamento… Mas diga­‑me, você é uma pessoa
manter­‑se assim. Toda a gente sabe que eu sou uma pessoa que come muito?
que come muito, eu poderia ter dado indicações às autoridades O homem que come normalmente: Médio. Sou uma pessoa
sobre quanto é que é preciso por dia. que come normalmente.
O homem que come normalmente: Mas uma coisa temos O homem que come muito: Pois é, mas eu, que toda a gente
de admitir, o cartão de racionamento foi uma sensação neste sabe que como muito, olhe, o que lhe digo é… sabe… em Viena
primeiro dia. É certo que uma pessoa só pode tirar conclusões todos me perguntam, toda a gente tem curiosidade em saber o
da sua própria experiência, mas, se lermos a Presse, fica­‑se com que é que eu vou fazer…
uma ideia do que para aí se passou. O homem que come normalmente: Posso imaginar, uma
O homem que come muito: Sim, o jornal não poupou nos por‑ pessoa que come muito como o senhor, se eu próprio, que sou
menores. Mandou um cento de repórteres a todos os estabeleci‑ uma pessoa que come normalmente…
mentos de comes e bebes. Mas as coisas passaram­‑se de maneira Um homem faminto: (Aproxima­ ‑se deles, estende a mão.)
diferente conforme os sítios. Enquanto, por exemplo, no Leber Tenham dó, senhores, não tenho nada pra comer…
306 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 307
O homem que come muito: …e como toda a gente sabe que Não é clássico? Tudo se ajusta na perfeição, a única coisa que
sou uma pessoa que come muito… (Saem conversando.) eu fiz foi pôr Hindenburg em vez dos pássaros e depois, é claro,
(Muda a cena.) o final com Varsóvia. Se sair no jornal, não há mas nem meio
mas, vou mandá­‑lo ao Hindenburg, sou um especial admira‑
CENA 13 dor dele.
Florianigasse. Entram em cena o conselheiro jubilado Tibetanzl: Bolas, é mesmo clássico! Queres saber que eu ontem
Dlauhobetzky von Dlauhobetz escrevi o mesmo poema? Queria mandá­‑lo à Muskete, mas…
e o conselheiro jubilado Tibetanzl. Dlauhobetzky von Dlauhobetz: Tu escreveste o mesmo
poema? Essa agora!
Dlauhobetzky von Dlauhobetz: Estou com curiosidade de Tibetanzl: Mas mudei muitas mais coisas que tu. O título é: “Na
ver se amanhã, na Mittagszeitung10 – sabes, é o meu jornal pre‑ Padaria.”
ferido –, quer dizer, se aparece amanhã o meu poema, mandei­‑o Por todos estes brioches reina paz,
ontem prò jornal. Queres ouvir? Espera… (Puxa de um papel.) Em todos estes fornos a custo sentirás
Tibetanzl: Fizeste outra vez um poema? Sobre quê? Sequer um fumo leve…
Dlauhobetzky von Dlauhobetz: Já vais ver sobre o que é. Dlauhobetzky von Dlauhobetz: Mas isso é uma coisa muito
“Canção Bélica do Peregrino”. Tás a perceber, é em vez de diferente, é mais cómico!
“Canção Nocturna do Peregrino”…11 Tibetanzl:
Por todos estes montes reina paz, Os padeiros dormem no bosque,
Em todas estas frondes a custo sentirás Ora espera, também
Sequer a brisa leve… Vais passar fome em breve.
Tibetanzl: Mas olha lá… isso é clássico… mas isso fui eu que escrevi! Dlauhobetzky von Dlauhobetz: Caramba, é autêntica trans‑
Dlauhobetzky von Dlauhobetz: O quê? Tu? É clássico, é missão de pensamentos!
de Goethe! Mas presta atenção, vais já ver a diferença. Agora Tibetanzl: Pois, mas agora tive a trabalheira toda para nada.
tenho de começar outra vez do princípio. Agora tenho de esperar a ver se o teu sai no jornal. Se publi‑
Então por todos estes montes reina paz, carem o teu, não posso mandar o meu à Muskete. Senão, inda
Em todas estas frondes a custo sentirás julgam que te andei a parodiar! (Saem ambos.)
Sequer a brisa leve… (Muda a cena.)
O Hindenburg dorme no bosque,
Ora espera, também
Varsóvia cai em breve.
308 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 309
CENA 14 estava ainda ausente por falta de comparência. A cavalo é difí‑
Um clube de caçadores. cil apanhar esses labregos, e eles têm um medo infernal dos
tiros. Depois de uma marcha interminável, já estava completa‑
Von Dreckwitz: Ora, deixem­‑me em paz com a vossa conversa mente escuro, chegámos ao aquartelamento. Safa, foi mesmo
de caçadores. O meu ano na Rússia vale três vezes mais do imponente! Quem não conhece uma daquelas barracas rus‑
que todos os vossos frouxos anos de paz. Em terra inimiga não sas não tem a mínima noção de tudo o que existe no mundo.
faltava nunca a boa caça. Eram dias soberbos, quando íamos, É impossível descrever, tem de se ver e sentir. Entretanto, os
vitoriosos, no encalce do inimigo batido, sem lhe dar tréguas, cossacos tinham conseguido ganhar coragem e barraram­
até que ele, mortalmente exausto, se rendia ao vencedor. Não há ‑nos a passagem por uma ponte. Aliás, havia também grossa
dúvida de que a guerra é a ocupação mais natural do homem. infantaria. Um esquadrão nosso estava já ao ataque, mas ficou
Mas naquela altura havia também um bálsamo milagroso que debaixo de um fogo doido, que assobiava pela noite escura de
tudo compensava, que eu mal ousara sonhar… a Cruz de Ferro maneira bastante horripilante. Ao romper da manhã, o regi‑
sem cinta! De vez em quando, sempre se tinha que meter o mento atacou então em massa e desbaratou os tipos. Um de
velho cantil de campanha entre os dentes para aquecer pelo nós levou um tiro de raspão na cabeça que os pedacinhos de
menos um bocadinho por dentro. Em momentos desses, uma osso até voaram. Chegando­‑nos à socapa, já tínhamos liqui‑
pessoa fica pensativa. Eu pensava na bela e galharda guerra dado as guardas avançadas. Pum, soou um disparo, pum, pum,
contra a França, nós a empurrarmos a cavalaria inimiga para segundo, terceiro! E então começou uma chamuscada que só
o charco sempre que assomava nem que fosse uma perna de visto. Catapum!, fala o nosso canhão; catrapás!, as granadas de
cavalo, para, finalmente, deixarmos os nossos corcéis à von‑ mão que os patetas dos russos acharam por bem atirar das jane‑
tade na Champagne soalheira. Ficava­‑se com um nó suspeito las. Toda a espécie de gente corre pela rua, mas, na escuridão,
na garganta quando se pensava em todo o bom champanhe não há maneira de distinguir a que lado pertencem. Bem, nós
que na altura nos tinha escorrido pela gorja. Com um pequeno encostámo­‑nos a um grande edifício, para ver em que paravam
salto, os pensamentos levavam­‑nos mais além a um novo país as modas e a quem é que a deusa da vitória iria hoje sorrir.
inimigo: a Bélgica! Campos férteis, cidades prósperas coladas Mas o escândalo não parava e a situação bélica não parecia
umas às outras nos esperavam nesse país. Na altura, pude ins‑ clarificar­‑se minimamente. Se alguém não queria dar espaço,
crever no meu livro de troféus um gurkha azul celeste e dois levava um pontapé e pronto. Eu seria um mentiroso descarado
ciclistas belgas. E depois… varrer as barreiras da fronteira com se dissesse que a situaçãozinha era especialmente agradável e
a Polónia! E em nome do grande Zeus, as nossas escopetas e amena, mas nós conseguimos furar e, mais tarde, viu­‑se que
lanças também aqui não haviam de encontrar descanso! tinha valido a pena. A 150 passos da cidade, enterrámo­‑nos a
De momento, não havia, porém, nada para balear. O inimigo toda a pressa até aos colarinhos. Ficámos à espera, numa alegre
310 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 311
excitação das coisas e dos russos que aí viriam. Nós, oito susto. Aí a pandilha ganhou vida, eles só pareciam era não
homenzinhos, éramos de momento, pelos vistos, os únicos saber para onde ir. O russo seguinte, o n.o 4, apanhou uma bala
aqui que sabiam cantar “A Guarda do Reno”. E ali ficámos dei‑ que não acertou em cheio. Se calhar foi bom para mim, porque
tados, caladinhos como ratos, de dedo no gatilho. Eu tinha bas‑ o tipo pôs­‑se a gritar que até arrepiava. Eu tinha pegado sem
tante confiança na minha peonagem. Nenhum ia fazer o gosto demora na carabina do meu acompanhante e mandei as cinco
ao dedo sem a voz de fogo. Ao meu lado, um jovem volun‑ balas seguintes na direcção da massa compacta junto à cerca
tário matraqueava descaradamente com os dentes. Ainda tive do jardim. Alguns gritos mostraram que também estas balas
tempo de lhe enfiar um murro nas costelas. “Fogo à vontade!”, não tinham sido disparadas em vão. A verdade é que estes
ordenei então com voz estridente, para que os tipos do outro últimos disparos foram um bocado lixados para mim, sobre‑
lado tivessem oportunidade de ouvir o som harmonioso de tudo porque não tinha a mínima sensação de perigo, porque
uma voz de comando prussiana. E tive mesmo que gritar alto, os russos não pensavam de modo nenhum em disparar. Mas
porque à primeira salva soou do outro lado uma berraria tão que queriam que eu fizesse? Cada qual trata de si e não fui eu
horrível, tão lancinante, que se me puseram os cabelos em pé quem começou a guerra! O flanco estava limpo; regressei satis‑
e, quando as nossas escopetas dispararam alegremente sobre feito para junto dos meus rapazes. Os oficiais russos ficaram
essa massa de homens, eles precipitaram­‑se para a retaguarda, de cara à banda quando nos viram ali, os seis homenzinhos.
caindo sobre os mortos e os feridos… e os gritos de agonia não Mas o meu comportamento amável dissipou as suas reservas.
paravam! E nós já íamos atrás deles berrando hurra! Demos um aperto de mão cordial, eu com um sorriso vitorioso
Como animais, um grupo inteiro ficou aglomerado na porta complacente. Fosse como fosse, foi um momento simpático e
da primeira casa. Podíamos tê­‑los despachado a tiro com toda o êxito militar não há dúvida de que foi extraordinariamente
a calma. Eles ainda estavam todos como peças de caça encur‑ belo. A dois de fundo, marchámos para o mercado, onde
raladas e com tanto medo que não conseguiam emitir um som. havia russos por todo o lado. Agradeci ao capitão de artilha‑
A história parecia que ia ficar por ali. A única coisa de que ria os shrapnels certeiros, depois tive de ir à divisão apresen‑
sentíamos a falta era de uma bebidinha. tar o meu relatório. Satisfação geral. Os meus seis soldados
Mas eu ainda tinha assim a sensação de que eles estavam a receberam acto contínuo a Cruz de Ferro, sem mais aquelas.
preparar uma bestialidade qualquer. Queria examinar mais de A mim propuseram­‑me para a primeira classe, o que, contudo,
perto o inimigo que tinha ficado para trás. Neste particular, só decorrido um ano é que se concretizou. – E agora julgai
só algumas balas certeiras podiam ajudar. Pus a carabina à vós mesmos, meus caros, se sois capazes de me impressionar
cara, um toque no gatilho: pimba, o primeiro tipo foi ao chão! com as vossas histórias de caçadores! Tendes de admitir que o
Repeti rapidamente e voltei a premir o gatilho. Os n.os 2 e 3 que eu vivi lá para a banda dos russos é de primeira! A nossa
caíram como sacos, sem tempo para recuperarem do primeiro revista especializada, Caça e Cães,12 fez­‑me chegar um convite
312 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 313
honroso para redigir um relato sobre as minhas caçadas bem Posso depressa informar
sucedidas na Rússia. Vou corresponder ao convite. E, depois, Sobre a sorte da contenda.
boas montarias na França e na Itália! Mas, antes disso, vamos À frente, heróis a lutar,
ainda abrir tranquilamente umas garrafas de champanhe. Ora E eu ponho logo na agenda.
então à nossa! Té à vitória final
Todos: À sua saúde, Dreckwitz! E boa caça! Ficarei, pois meu é o ganho.
(Muda a cena.) Com o que escrevo no jornal,
O inimigo leva um banho.
CENA 15
Secretaria de um destacamento militar. E digo em quinto lugar,
Estou como na água o peixe.
Hirsch: (Entra a cantar. Melodia do Perdulário.)13 A nossa gente a lutar,
Eia lá! Feliz vou indo Sem que eu nunca me desleixe.
Não me dá a guerra cuidado, Em sexto e sétimo e adiante,
As crónicas vão­‑me saindo Estando ao abrigo da metralha,
Pra repórter sou fadado. Vou vivendo radiante
Mesmo com as costas boas Dos proveitos da batalha.
Eu prà tropa não servia (Gritando para dentro.) Senhor Major, se vir o general, diga­‑lhe
E assim ganho umas coroas que lhe vou fazer uma entrevista a ele e a todo o Estado­‑Maior!
No campo da valentia. Hoje ninguém vai poder pôr­‑se nas encolhas! (Sai.)
Roda Roda: (Entra a cantar. Segundo uma melodia conhecida.)
Mas aqui na retaguarda O Rosenbaum,14
A vida anda sem sabor. O Rosenbaum
Por isso vesti a farda Escreve pròs melhores jornais.
E conto a guerra ao leitor. Na retaguarda
Mas também lá na trincheira Não lhe sai nada,
Tudo é tão chato afinal, Na frente é que se inspira mais.
Assim, à boa maneira,
Meu serviço é no jornal. Vou visitar
Pessoalmente
314 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 315
E assim sei tudo sem falha. Eu sou chamado,
Se houver azar, Querem ver os nomes no jornal.
Infelizmente
Sou apanhado pela metralha. À tropa estou
Habituado;
Esposa, filhos, Para os meus textos de jornal,
Não contam nada,15 De um lado vou
De que é que vale a vida minha? Prò outro lado
Sem empecilhos, E faço história universal.
Está preparada
Uma trincheira maneirinha. Eu hoje estou
Lá na Polónia
Frente ao inimigo, E no Isonzo amanhã.
Em vez de arengar Famoso sou,
É ir pra uma trincha abrigada. É coisa idónea,
Não sou amigo Onde chegarei, sabe­‑se lá.
De entrevistar,
A mim não me vão contar nada! O brigadeiro
Fez­‑me saber
Já trabalhei Que o inimigo vai soçobrar.
No mesmo ramo Mas se primeiro
E conheço aqui toda a gente. Formos nós a perder,
Já muito andei Faço­‑nos na mesma triunfar.
E proclamo:
Hoje sou um correspondente! Longe da frente
Não acho bom,
Disseram que era Gosto mais de andar nesta roda.
Um reformado. Eu sou parente
Era uma vergonha mortal! Do Rosenbaum,
Na nova era Mas o meu nome é Roda Roda.
316 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 317
(Gritando para dentro.) Senhor Major, se vir o general, diga­‑lhe está bem… Quê, não pode ser? Porque se for assim então repara­
que o coronel tem de ser transferido… ele não me quis dar um ‑se que não havia mantimentos… o quê… e porque depois se
passe para o Forte 5 em Przemysl. Parece que não sabia quem objecta, porque é que não havia mantimentos bastantes? Pois
eu sou. Mas isso não o desculpa, pelo contrário. Esses cavalhei‑ muito bem, não evitas a questão e dizes: é impossível amontoar
ros já vão ver o que é a disciplina… entendido? (Sai.) tantos mantimentos como seria necessário, porque depois o que
(Muda a cena.) acontece é que ficam nas mãos do inimigo quando este conquis‑
tar a fortaleza… Como é que ele então a teria conquistado? Pela
CENA 16 fome? Não, então é evidente que tinha que ser pela força, já não te
Uma outra secretaria. chegam as perguntas? Mas então não percebes, pois se ele então
conquista a fortaleza pela força e a gente tem mantimentos, o
Um oficial do Estado­‑Maior: (Entra e dirige­‑se para o tele‑ que ele faz é ficar também com os mantimentos. Por isso é que
fone.) Viva, então já acabaste o relatório sobre Przemysl?16 Ainda não podemos ter mantimentos, porque então ele não fica com
não? Ah, tás de ressaca?… Vê lá, põe­‑te a toques, senão chegas os mantimentos, conquista a fortaleza pela fome, mas não pela
outra vez tarde pròs copos. Ora ouve lá… O quê, esqueceste­‑te força. Bem, tu lá te hás­‑de desenrascar, adeusinho, tenho que ir
de tudo outra vez?… Isto é que é uma gente… Presta atenção, à messe, não tenho intenções de me render pela fome… É tudo!
vou­‑te fazer as recomendações outra vez… Pontos de vista fun‑ (Muda a cena.)
damentais: primeiro, a fortaleza não valia um caracol. Isto é o
mais importante… Quê? Não se pode… Quê? Não se pode fazer CENA 17
esquecer que a fortaleza foi desde sempre o orgulho… Não há Restaurante de Anton Grüsser.17 Em primeiro plano,
nada que não se possa fazer esquecer, meu caro amigo! Portanto, um cavalheiro com uma senhora. Um homem que
ouve bem, a fortaleza não valia um caracol, era um traste velho faz vénias constantes sem dizer uma palavra anda de mesa
a cair… Quê? Canhões dos mais modernos? Estou­‑te a dizer, em mesa. Em primeiro plano, à esquerda, sentado a uma mesa,
um traste velho a cair, estamos entendidos? Ora bem. Segundo, o Eterno Descontente.
presta atenção: não foi pela força inimiga, mas pela fome! Enten‑
dido? E nada de sublinhar demasiado o aspecto da falta de abas‑ Criado: Faz favor, o senhor já pediu?
tecimentos, sabes como é, disfarçar o melhor possível o desleixo, Cavalheiro: Não, traga­‑me a ementa. (O criado sai.)
a bandalheira, etc. Estes aspectos saltam facilmente aos olhos, Segundo criado: Faz favor, o senhor já pediu?
mas tu hás­‑de saber como fazer as coisas. O principal é a fome. Cavalheiro: Não, traga­‑me a ementa. (O criado sai.)
Orgulhosos da fome, entendido? Não foi a fome, mas a força, Um criado jovem: Alguma coisa para beber, cerveja, vinho…
ah, mas que digo eu, não foi a força, mas a fome! Bem, assim Cavalheiro: Não. (O criado jovem sai.)
318 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 319
Terceiro criado: Faz favor, o senhor já pediu? Criado: É um entercô com sôce holandése.
Cavalheiro: Não, traga­‑me a ementa. (Para um criado que Cavalheiro: Cinquenta e duas coroas, é carito, é carito.
passa a correr.) A ementa! Criado: Bem, o cavalheiro não se esqueça de que estamos em
Segundo criado jovem: Cerveja, vinho… guerra e hoje é dia de interdição de carne.
Cavalheiro: Não. Cavalheiro: Bem, tanto dá, traga isso. (O criado sai.)
Quarto criado: (Traz a ementa.) O senhor já pediu? Senhora: Estás a ver, devíamos ter ido ao Sacher, lá uma coisa
Cavalheiro: Não. Você acaba de me trazer a ementa. O que é dessas só custa 50.
que há já feito? Um Criado: Faz favor, o senhor já pediu?
Criado: O que está na ementa. Cavalheiro: Sim.
Cavalheiro: Na ementa vem “Deus castigue a Inglaterra”. É coisa Segundo Criado: Faz favor, o senhor já pediu?
que eu não como. Cavalheiro: Sim.
Criado: Talvez alguma coisa acabada de fazer? Talvez o Um Criado jovem: Cerveja, vinho?
cavalheiro… Cavalheiro: Não.
Cavalheiro: Há roast beef? Terceiro Criado: Faz favor, o senhor já pediu?
Criado: Lamento, hoje é dia de interdição de carne. Talvez a Cavalheiro: Sim.
senhora queira um belo escalopezinho ou um assadito de lombo Quarto Criado: (Regressando.) Sinto muito, já se esgotou. (Risca
ou porventura um pouquinho de ganso… quase todos os pratos.)
Cavalheiro: Primeiro uma entrada. O que é que é isto: pão Cavalheiro: Mas você…
apetitoso (fatias divinais)? Criado: Pois é, hoje com a interdição de carne não admira… Mas
Criado: É pão para abrir o apetite. o cavalheiro mande fazer dois ovos ao desespero, talvez com
Cavalheiro: A mim já mo tirou. Bem, talvez. O que é que é isto: molho picante.
molho de ovos e azeite à marinheira? Cavalheiro: Ovos ao desespero? Mas o que é isso? Quem é que
Criado: É uma maionese de peixe. os pôs desesperados?
Cavalheiro: O que é que é o pastelão oco de massa de manteiga? Criado: (Em voz baixa.) Antes da guerra chamavam­‑se ôf póchés.
Criado: É um volován. Cavalheiro: Ah, bem, e acham que é assim que se vai ganhá­
Cavalheiro: O que é que é o prato misto? ‑la?… Não, espere… Massa à traidor… mas o que é isso?
Criado: Um rakú. Criado: Ora, macarrão!
Cavalheiro: Bem, traga isso, santo Deus… e depois, espere… Cavalheiro: Ah, bom, está bem… Salada malandra, o que é isso?
o que é que é o lombo duplo à general com obstáculos e molho Criado: Salada à italiana.
holandês? Cavalheiro: Ah, bem, está claro, sem dúvida. Então… traga:
320 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 321
dobrada fina à casa com batatas a murro e ovos ao desespero, já ouviu a anedota mais recente? Qual é a diferença entre um
mais uma macedónia picante, a seguir um puré e duas doses refugiado da Galícia e… (Diz­‑lhe a continuação ao ouvido.)
de bolo de natas à Grüßer. Como é que este se chamava antes? O cliente: (Cada vez mais risonho, dá uma gargalhada repen‑
Criado: Torta Grüßer à la crème. tina.) Fantástico! Mas você já sabe qual é a diferença entre uma
Cavalheiro: Porquê Grüßer? enfermeira da Cruz Vermelha e… (Diz­‑lhe a continuação ao
Criado: Ora, é o nome do patrão! (Grüsser aproxima­‑se da ouvido.)
mesa, cumprimenta e sai.) Um criado: (Com 18 taças.) O molho, com licença…! (Salpica a
Cavalheiro: Quem é o patrão? senhora.) Oh, pardon, foi sem querer!
Criado: Ora, o patrão! (Sai.) Terceiro cliente: Quem é que está a dizer pardon? Olhe lá,
O criado­‑chefe: O senhor já pediu? senhor Grüßer, num estabelecimento alemão como o seu há
Cavalheiro: Já. um criado a dizer pardon!
Um ardina pigmeu: (Balança de mesa em mesa.) Vitórias e mais Grüsser: O senhor von Wossitschek nem calcula as dificuldades
vitórias! Edição especiaaal! Pesada derrota dos italianos! Vitó‑ que temos agora com o pessoal. Se se lhes diz alguma coisa,
rias e mais vitórias! põem­‑se a andar, dizem que empregos é o que não falta. É um
Duas raparigas: (De mesa em mesa com postais e insígnias autêntico calvário, os melhores foram mobilizados e o que
da beneficência de guerra.) Um óbolo para a beneficência de resta são estes sujeitos incultos…
guerra, se faz favor… O cliente: Está bem, está bem, mas…
Um criado jovem: Deseja pão? Dê­‑me a carta, por favor. Grüsser: Pardon, senhor von Wossitschek, tenho pessoas para
Cavalheiro: (Faz menção de lhe entregar a ementa.) …ah, estou cumprimentar. (Vai cumprimentar.)
a ver, não tenho. O cliente: Pardon, pardon, esteja à vontade.
Duas mulheres: (De mesa em mesa com postais.) Para a benefi‑ Cliente habitual: Ora viva, Grüßer, como é que tens andado?
cência de guerra, por favor… Então que dizes, o Leberl tá metido numa boa alhada…
O vendedor de flores: (Dirige­‑se à mesa em passo apressado.) Grüsser: Ora, com os preços que ele faz! E depois o tipo não
Deseja flores…? tem muita gente que o aprecie. Eu, que sou aqui uma persona‑
A vendedora de flores: (Dos bastidores.) Olhàs lindas viole‑ lidade, nunca tive o mínimo dissabor.
tas… para a senhora? Cliente habitual: Senta­‑te aqui um poucachinho, Grüßer.
Uma vendedora de jornais: Edição especiaaal! Grüsser: Daqui a pouco, com todo o gosto, é que tenho ainda
Um cliente: (Chamando o chefe de mesa.) Faz favor, senhor pessoas para cumprimentar. (Vai cumprimentar.)
ministro das Finanças…! Bambula von Feldsturm: (Aos gritos, batendo na mesa.) Rais‑
O chefe de mesa: (Inclina­‑se para um cliente.) O senhor doutor parta isto, então hoje não se é atendido? Você aí, já em sentido!
322 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 323
Um criado: É só um minuto, Senhor Major. Grüsser: O que é que pediu, Senhor Major?
Grüsser: Que deseja, Senhor Major? Bambula von Feldsturm: Nada, o que eu queria era uma
Bambula von Feldsturm: Ó patrão, mas o que é isto? Então carne assada, mas com alguma gordura…
hoje ninguém nos atende? O serviço já não é como dantes, Grüsser: Tenho muita pena, hoje é dia de interdição de carne.
desde há um ano que ando a reparar nisso, onde é que estão Bambula von Feldsturm: O quê? De interdição de carne! Mas
então os criados? que modas novas são essas agora?!
Grüsser: Foram mobilizados, Senhor Major. Grüsser: Pois, é que estamos em guerra, Senhor Major, e então…
Bambula von Feldsturm: O quê? Mobilizados? Mas então Bambula von Feldsturm: Não me venha cá com histórias!
porque é que foram todos mobilizados? Sempre gostava de saber o que é que a falta de carne tem que
Grüsser: Ora, porque estamos em guerra, Senhor Major! ver com a guerra! Dantes também não era assim!
Bambula von Feldsturm: Mas já desde há um ano que ando Grüsser: Pois, mas a verdade é que agora estamos em guerra,
a reparar nisso. Tirando estes quatro, você já não tem criados. Senhor Major!
Para um estabelecimento deste tamanho! Já desde há um ano Bambula von Feldsturm: (Levantando­‑se de um salto em
que ando a reparar nisso. estado de extrema agitação.) Não esteja sempre a esfregar­‑me
Grüsser: Pois é, desde que começou a guerra, Senhor Major! isso na cara… não se cala com a sua guerra, eu já dei pra esse
Bambula von Feldsturm: O quê? Isto é um escândalo! Para peditório! Não volta a ver nenhum de nós, camaradas, no seu
que saiba, os camaradas queixam­‑se todos, já não querem cá restaurante… vamos antes ao Leberl! (Sai precipitadamente.)
voltar se isto continua assim! Estão todos furiosos. O capitão Grüsser: Mas Senhor… Major… (Abanando a cabeça.) Estranho!
Tronner, o Fiebinger von Feldwehr, o Kreibich, o Kuderna, o Terceiro cliente: (Para um criado.) Então não há nada?
coronel Hasenörl, todos estão furiosos, ainda ontem dizia o Nem sequer sobremesa?
Husserl von Schlachtentreu do 66 que se isto continua assim… Criado: Empadas vienenses, folhados de anis, tarte de amêndoa
Grüsser: Pois, Senhor Major, o desejo de todos é que as coisas à inglesa…
acabem e venha a paz… O cliente: O quê? À inglesa? Em plena guerra?
Bambula von Feldsturm: O quê, a paz… acabe lá com o seu Criado: Ainda são do tempo da paz.
choradinho pela paz… eu estive nas manobras imperiais… se O cliente: Vá espetar essa a outro, traga mas é a conta!
o nosso comandante supremo o ouvisse… agora trata­‑se de Criado: A conta!
resistir a pé firme, meu caro amigo… e não há mas nem meio Segundo criado: A conta!
mas! (Um criado passa apressado.) Você aí, olhar à direita! Terceiro criado: A conta!
Grande malandro, espera aí que o vou mandar mobilizar… Quarto criado: A conta!
Olhe lá, mas que serviço é este…?! Um criado jovem: (De si para si.) A conta!
324 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 325
Grüsser: (Acercou­‑se da mesa do Eterno Descontente, cumpri‑ CENA 18
menta e diz, inclinando­‑se para ele, com um olhar fixo que lhe dá Schottenring. Entram em cena a senhora Pollatscheck
a expressão do anjo da morte, só pouco a pouco se tornando mais e a senhora Rosenberg.
animado.) De acordo com o último diagnóstico mineralógico,
parece que o tempo vai melhorar e a afluência terá também Senhora Rosenberg: Estimada colega, não há desculpas para
tendência para aumentar… andou certamente em viagem, está a nossa entrada em cena. Esperamos que nós, donas de casa
muito bem, está muito bem – pois, hoje em dia não falta que austríacas, continuemos a resistir a pé firme com a disciplina
fazer, Santo Deus, a guerra, a miséria, vê­‑se em toda a parte no de que já demos provas brilhantes e só às quintas e sábados
comércio como as classes médias estão a sofrer… ainda não procedamos à compra de carne de porco. Os nossos agrupa‑
é possível prever as influências… também um cavalheiro dos mentos locais saberão erguer bem alto esta bandeira. Mesmo
jornais, um doutor que é o braço-direito no ministério, disse no tocante à banha de porco!
ele próprio… estranho… hum… mas dá­‑me a impressão de Senhora Pollatschek: A ROHÖ18 autoriza a compra de carne
que hoje não está com apetite, logo hoje, que pena, um pedaço e banha de porco às quintas e sábados!
da pá, todos os cavalheiros acham boa, bem, em compensação, Senhora Rosenberg: É isso mesmo! Nós, donas de casa aus‑
da próxima vez, como pitéu, um pedacinho especial do corte tríacas, temos o dever de dizer uma palavrinha decisiva sobre
à Grüßer, Poldl, limpa aqui a mesa, está outra vez a dormir o esta questão, que toca os interesses mais vitais. Nós, da ROHÖ,
marmanjo, bem, os meus respeitos, os meus respeitos… não podíamos ficar de braços cruzados a ver como é que se
(O cavalheiro e a senhora em primeiro plano adormeceram.) formam os preços e ficar só a olhar para estas maquinações,
Criado: (Aproxima­‑se, apressado.) Tenho muita pena, já não há sobretudo no tocante à carne da pá!
serviço. Senhora Pollatschek: O que agora faz mais falta é a unidade. Pela
O cavalheiro: (Despertando, sobressaltado.) Isento… do ser‑ unidade à pureza é o meu lema, nomeadamente para a vaca cozida!
viço?… Ah, bom. Bem, então vamos embora. (Levanta­‑se com Senhora Rosenberg: E gostaria de acrescentar, se é que a minha
a senhora.) Adieu. opinião a respeito deste assunto pode fazer pender o prato da
Criado: Pardon, desculpe eu chamar a atenção, para a próxima balança, que não nos deixaremos intimidar por nenhum terro‑
vez, a gente somos um restaurante alemão e não é permitido rismo. Per aspera ad astra, é o que eu digo, pelo menos no que
falar francês… (Limpa a testa com o guardanapo.) concerne ao bife de alcatra. Nós, da ROHÖ…
O cavalheiro: Ah, bom… Senhora Pollatschek: Sabe quem é que ali vem? A Bachstelz
Grüsser: (Atrás deles.) Osmeusrespeitosàssuasordensparaoser‑ e a Funk­‑Feigl do GEKAWE.19 Eram capazes, as duas, de me
vircumprimentoscomtodaaconsideraçãotéàpróxima! envenenarem com uma colher de sopa.
(Muda a cena.) (Cumprimentos.)
326 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 327
Senhora Bachstelz: Ora pois, estimadas colegas, estamos atenção! Nós não somos daqueles que se entregam a activi‑
mesmo a vir do mercado, gostava que tivessem visto o que se dades separatistas. Se alguém pertence à ROHÖ, tem de lhe
passa por lá, sobretudo com os produtos de primeira. pertencer de corpo e alma, o nosso órgão é Der Morgen e os
Senhora Funk­‑Feigl: É que nós precipitámo­‑nos para lá de tempos são demasiado graves, ouça bem, hoje em dia a solida‑
peito feito, no interesse da causa geral, pois que agora cada qual riedade é meia vitória!
tem que contribuir com o seu óbolo e a situação é grave, por‑ Senhora Funk­‑Feigl: Vocês é que nos vão ensinar a ser sólidas?
que sabemos onde há que travar o combate, diferentemente de Tenham santa paciência…!
certas outras pessoas a respeito das quais só tenho uma coisa a Senhora Bachstelz: É a ROHÖ chapada! Calúnias pelas cos‑
dizer: se se trata assim o lenho verde,20 então, minhas senho‑ tas! Nós esfarrapamo­‑nos para dar bom exemplo!
ras, só posso dizer… Senhora Funk­‑Feigl: Se não se tivessem posto com intrigas,
Senhora Rosenberg: Lamento muito, cara senhora… ainda hoje estaríamos na ROHÖ. Puseram­‑nos a faca ao peito,
Senhora Funk­‑Feigl: Para si, não sou senhora, sou membro da até que fomos obrigadas a criar o GEKAWE. Eu andei de Anás
administração do GEKAWE e tenho tanto direito como seja para Caifás. Agora, é o que lhe garanto, as coisas vão entrar
quem for da ROHÖ! É fácil cozinhar decretos quando as coisas nos eixos, e, ouçam bem o que lhes digo, se quiserem começar
estão verdes, mas depois? Como dizia Schiller, ora descei ao a atribuir a si próprias os nossos êxitos, vão ter um osso duro
fundo da vida humana plena…21 de roer!
Senhora Rosenberg: Só quis observar, lamento muito, que está Senhora Bachstelz: Nós tiramos o pão da boca…
a deixar­‑se arrastar para questões pessoais, sei muito bem que Senhora Pollatschek: Pois, para comprar plumas de garça!
a sua carta de hoje na Presse tem uma farpa indesmentível con‑ Senhora Bachstelz: Tem provas disso?
tra a ROHÖ, ainda por cima escrita numa altura em que ainda Senhora Pollatschek: No sábado, na estreia do Volkstheater,
estava na ROHÖ… viram­‑na com plumas de garça.
Senhora Funk­‑Feigl: Não é verdade, vou dizer ao meu marido Senhora Bachstelz: Infâmia! Está a afinar pelo diapasão do
e ele move­‑lhe um processo! cavaleiro do Império Hohenblum, devia ter vergonha!
Senhora Rosenberg: Cá por mim! Eu posso provar o que disse! Senhora Rosenberg: Provas? Mas que provas? As provas trá­
Hei­‑de demonstrar em tribunal que você só pensa nos seus ‑las a senhora no chapéu!
interesses! Ao menos vão ouvir a verdade uma vez! Você intri‑ Senhora Bachstelz: O chapéu é do ano passado, está farta de
gou contra a ROHÖ quando ainda lá estava dentro! saber isso!
Senhora Funk­‑Feigl: Isso vai ter que provar! Senhora Rosenberg: É a política da avestruz!
Senhora Pollatschek: A si digo­‑lhe na cara, ouça o que lhe Senhora Funk­‑Feigl: E então? Da avestruz é essa coisa que traz
digo, agora o importante não é satisfazer a vaidade, preste bem na cabeça!
328 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 329
Senhora Rosenberg: É do ano passado, está farta de saber isso! Senhora Rosenberg: Pois, teve quem lhe pusesse a mão por
Eu trago uma blusa de guerra vestida! baixo, e então? Você trepa pelas paredes por ele estar bem rela‑
Senhora Funk­‑Feigl: E então? cionado. Ele é unha com carne com a SAWERB.27 Espere só,
Senhora Bachstelz: A minha blusa e a sua blusa.… é como o vou pôr tudo em pratos limpos na reunião do comité, pode
dia e a noite! Fomos nós que demos os primeiros passos para estar certa de ter um voto de desconfiança na assembleia­‑geral!
criar uma moda vienense! Senhora Funk­‑Feigl: A senhora é que vai ficar em pratos lim‑
Senhora Pollatschek: A senhora? Com essa figura! Fantás‑ pos, a ROHÖ vai pô­‑la no olho da rua, é o que lhe garanto, vai
tico! O meu bom gosto e o seu bom gosto! ver do que o GEKAWE é capaz… eu tenho relações, vou lá
Senhora Bachstelz: (Aos gritos.) Olha quem fala! Se a época acima à Presse…
não fosse tão grande, era capaz de lhe ir à cara! Senhora Pollatschek: No próximo Morgen vai poder ler…
Senhora Rosenberg: Deixemos estas autopropagandistas, feliz‑ espere só, nós da ROHÖ…
mente, nesta hora grave, há interesses mais vitais e nós, se cer‑ Senhora Funk­‑Feigl: Não se atreva a meter­‑se connosco, olhe
rarmos fileiras, podemos dar ao desprezo este alarido impo‑ que nós do GEKAWE…
tente. Estamos fartas de saber de onde é que vem essa fúria toda. (Todas as quatro gritam em grande confusão – no meio do
Senhora Bachstelz: Olhe lá, se volta a repetir essa calúnia…! barulho, só se conseguem distinguir as palavras “ROHÖ” e
Senhora Rosenberg: Que é que está a querer dizer? Mas eu “GEKAWE” – e saem de cena gesticulando com veemência. Um
disse alguma coisa? Olhe, lá porque ontem o inspector esteve a inválido de muletas passa a coxear. Entra uma mendiga, com
conversar mais tempo connosco do que convosco na cozinha um rapaz pela mão e um bebé nos braços.)
comunitária, não tem que ficar logo cheia de nervos, minha A mendiga: Edição especiaal… olhò jornal!
querida…! O rapaz: Olho… anal…
Senhora Bachstelz: (Num estado de paroxismo.) Vai­‑me pagar O bebé: Al… al… al…
essa insinuação infame… espere só… vai ter de se haver com o (Passa uma mulher grávida.)
meu marido… vai ver, quando tiver toda a OEZEG em cima!22 O Eterno Descontente:
Senhora Rosenberg: O meu marido vai dar conta dele e dos Ó comovente oferta em plena mortandade!
outros todos, não se preocupe! Ele tem toda a MIAG23 a apoiá­ Não, este interlúdio vale mais que no­‑lo tirem.
‑lo! Basta ele acenar e caem mais a UFA24 e a WAFA25 em cima Os últimos traços da natura nos recorda
de si… o meu marido faz parte da administração! que esta raça inumana não pôde inda abandonar,
Senhora Bachstelz: Ai é? Então o meu marido chama o que a morte decide sem que a vida negar possa.
IWUMBA!26 O meu marido é conselheiro imperial! Toda a Mas raro se segue uma coisa melhor. Desviai então os olhos,
gente sabe como é que o seu marido ficou livre do serviço militar! o que resta de humano nessa estirpe que hoje
330 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 331
persegue outros fins tem algo lancinante. com menos dor por ti que pela nova vida
Sinistro é pensar que a mulher além que a maldição materna mobiliza pra a morte antiga
que assim se mostra, com passos tranquilos a esp’rança por ter nascido, o maior dos sacrifícios. Vai, torna­‑te apta.
traz pra o seio da vida, tão plena de missão sagrada, Espera pelo ano da classe dele. Voluntária, que nos trazes?
que é dor e é bênção a um tempo, nas próximas horas Fica­‑te em casa, os dias são iguais, a morte
poderia parir um fornecedor do exército. é sempre igual à morte. Vai! E surpreende­‑nos!
O orgulho materno, sempre outrora tão grande, (Muda a cena.)
pra recusar da simpatia o excesso desmedido,
era bom que fosse assim, pra aos olhos importunos CENA 19
não mostrar a harmonia da criação de que só ele Belgrado. Casas destruídas. Entra em cena a Schalek.
sabia. Mas frente a esta humanidade disforme,
perdeu justificação. Que ele próprio desvie o olhar, A Schalek: Consegui abrir caminho até aqui. O que me interessa
que o orgulho seja de novo vergonha. Desvia ora o olhar, ó mãe, é, como sempre, sobretudo o elemento humano geral. Mas
sozinha és fraca de mais, mesmo que animosa; chamam a isto uma cultura? Estas casas podem comparar­
é um bondoso ensaio, mas também um apelo ‑se com os estabelecimentos comerciais mais decadentes do
de cem mil mães que o vêem e sabem, bairro de Fünfhaus, o bombardeamento foi, assim, justificado.
pois que dor maior já sofreram do que O lugar é tão desolado que nem há que pensar num registo
a que a outra inda espera. Vai pra casa, fotográfico. Mas o que continua sempre a indignar­‑me é que
porque trazes teu fardo ao mercado, como se fora a cidade nem sequer estivesse pavimentada. Talvez isso tenha
o que ao mundo tens para dar muito melhor ajudado a tomar a decisão de a arrasar. Nem sequer o Konak28
que o que ele perdeu, não, mais, como se agora, tem alguma coisa para oferecer. Das coisas que levámos como
pra todo o sempre, nascesse a nova, última salvação, recordação nem vale a pena falar. Mas que rei é esse que tem
como se fora um Sócrates o minúsculo dom um serviço de porcelana de Wahliß!29 Ainda existe uma jus‑
que aqui se prenuncia? Fizemos demasiadas tiça do destino que tudo compensa. Esta ideia persegue­‑me
experiências nefastas. E mesmo no melhor dos casos, por toda a cidade de Belgrado. Gostava de saber se estas são as
já não somos curiosos e desejamos que tuas casas daqueles que inventaram o fanatismo nacional? Formei
esperanças sejam só teu assunto de mãe, em mim a convicção de que numa cidade assim é impossível
tão casto como merece, até que um dia a consumação que vivessem individualidades.
mereça o olhar do mundo. Vai pra casa, nós viremos (Entram em cena algumas mulheres sérvias, que riem na direc‑
quando for tempo, o teu sofrer, mãe, até lá partilhando, ção dela. Uma delas acaricia com carinho a face da Schalek.
332 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 333
Depois, trava­‑se uma rápida conversa tu cá, tu lá entre elas e de horror que me retiro, e o riso ecoa longamente dentro de mim.
novo todas riem, com um riso sonoro, claro e alegre. A Schalek, (As mulheres sérvias saem de cena na direcção oposta, ouve­‑se
à parte.) ainda o seu riso.)
Este riso, cuja causa não posso inquirir, contende­‑me com os (Muda a cena.)
nervos, uma vez que hoje são pensáveis todas as possibilidades
na escala dos sentimentos humanos, até, justamente, o tipo de CENA 20
riso a que a Belgrado bombardeada não oferece qualquer ensejo. Rua nos subúrbios. Um carro de mão pesadamente carregado,
(Uma das mulheres sérvias oferece, rindo, um frasco de compota puxado por dois cães de guerra extremamente fracos, esfomeados.
à Schalek.)
Um enigma irritante. Uma mulher de idade: (Grita.) Isto é um escândalo! Devia­‑se
(Entra em cena um intérprete.) é fazer queixa às autoridades!
O intérprete: (Depois de ter falado com as mulheres.) Elas dizem Um primeiro­‑tenente: Alto! Os seus documentos! Isso é um
que se trata apenas de aguentar alguns dias terríveis. Os belgra‑ insulto ao exército!
denses consideram a conquista da sua cidade um intermezzo. A multidão: (Vai­‑se juntando.) Olha a parva da velha!… Vá mas
Acreditam que não tardaremos a ir daqui para fora e é por isso é pentear macacos! Mas que é que foi?… Nada, alta traição, foi
que elas se riem, cheias de malícia. o que foi!… É bem feito, está­‑se a preocupar c’os bichos e não
A Schalek: Isso não pode ser o único motivo. Pergunte­‑lhe o que tem uma migalha pra comer!
é que lhe vai no sentir e porque é que me dá compota. (Muda a cena.)
O intérprete: (Depois de ter falado com a mulher.) Ela diz que
não há nada que possa pôr em causa a hospitalidade sérvia. CENA 21
A Schalek: Mas porquê justamente compota? Uma casa nos subúrbios. Pendurado de uma correia, meio despido,
O intérprete: (Depois de ter falado com a mulher.) Ela diz que está um rapaz de uns dez anos com o corpo cheio de vergões,
elas querem mostrar que são mulheres, e a compota é o pelouro pisaduras e nódoas negras. Tem um aspecto de total abandono
das mulheres. e parece meio­‑morto de fome. O rapaz chora. Uma vizinha está
A Schalek: (Aceita o frasco de compota.) Não quero voltar a ver à porta, suplicante. O pai (de uniforme) está sentado no sofá.
estas mulheres, não quero assistir à desilusão horrível que vão
ter, porque pior do que casas destruídas e ruas bombardeadas, A vizinha: (Para a mãe, que está a pôr uma panela ao lume.)
pior do que a expulsão do exército e a tomada de assalto da Mas, senhora Liebal, como é que vocês podem pôr o rapaz
cidade… o pior para os sérvios ainda está para vir. (As mulhe‑ neste estado? Se eu for fazer queixa disto ao tribunal, vocês
res sérvias riem­‑se. A Schalek, ao sair.) É com estremeções de levam uma reprimenda!
334 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 335
A mãe: Sabe, senhora Sikora, o rapaz é teimoso até mais não esquerda um homem corpulento já de idade, de patilhas e monó‑
poder. Imagine que quer um pequeno­‑almoço quente! culo, com um bastão de marechal em cada mão.)30
O pai: Mas porque é que está com pena desse mariola? Hoje ele até “É possuídos de admiração e amor que contemplamos aqueles
nem está muito mal. Mas outro dia agarrei nele e dei­‑lhe uma que foram chamados a decidir a sorte das batalhas, numa luta
surra com a baioneta que até pensei que dava cabo dele. E tá a acesa e incansável semelhante à dos heróis da primeira linha de
ver como ele já está outra vez pronto pra outra! combate…”
A vizinha: Senhor Liebal, senhor Liebal, isto não são coisas com O jornalista: Um momento, os cabos de guerra valem, por‑
que se brinque, veja lá, ainda acaba por levar uma reprimenda! tanto, exactamente o mesmo que os heróis da primeira linha
(Muda a cena.) de combate, que decidem a sorte das batalhas, mas como é que
é isso?
CENA 22 O capitão: Não se ponha com piadinhas, se não quer que eu o
Sede do quartel­‑general. Uma rua. mande prà linha da frente.
Vê­em‑se fornecedores do exército, oficiais, prostitutas, jornalistas. O jornalista: Você… a mim?
Entram em cena um capitão do Departamento O capitão: Tenha calma, homem. Se o folheto sair bonito, fico eu
de Imprensa Militar e um jornalista. livre de perigo. Preste atenção, doutorzinho. “A admiração e a
gratidão mais sincera erigirão a estes heróis…”
O capitão: Bem, o folheto para a obra Os Nossos Cabos de O jornalista: Aos que guiam as batalhas na primeira linha?
Guerra… preste atenção, doutorzinho, não esteja aí sem‑ Ah, bom, estou a entender, agora está outra vez a referir­‑se aos
pre a comer esse mulherio com os olhos, agora estamos em cabos de guerra.
guerra… portanto, o folheto está pronto e agora cabe­‑lhe a si O capitão: Vá mangar com outro, portanto “…um monumento
dar­‑lhe uma revisão para o caso de ainda haver erros. (Lê em nos nossos corações e os farão viver sempre ali como exemplo
voz alta.) “Quando um dia as vagas alterosas da guerra mun‑ do supremo cumprimento do dever e do mais alto sacrifício
dial se tiverem aquietado, quando o tempo que tudo consola para bem da pátria”. A negrito ainda mais carregado.
tiver sarado as feridas, tiver secado as lágrimas, será altura de (Vê­‑se em pano de fundo a atravessar o palco da esquerda para a
lançarmos um olhar lúcido para trás, para os dias gloriosos em direita o homem corpulento já de idade, de patilhas e monóculo,
que punhos de ferro forjaram os destinos do mundo!” Agora com um bastão de marechal em cada mão.)
linhas em separado, ora ouça… “E, acima de tudo o resto, sur‑ Preste atenção, doutorzinho, não esteja aí sempre a comer esse
gem os vultos daqueles homens que, nesta época, encarnaram mulherio com os olhos! “O pintor Oskar Brüch ofereceu, com
o nosso destino e o da nossa pátria.” A negrito! grande nobreza, uma forma tangível a este monumento. O seu
(Vê­‑se em pano de fundo a atravessar o palco da direita para a estilete captou os traços deles com realismo e carácter e criou
336 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 337
assim uma obra, Os Nossos Cabos de Guerra, de importância (Vê­‑se em pano de fundo a atravessar o palco da esquerda para a
histórica, que está destinada, não apenas a transmitir os nomes direita o homem corpulento já de idade, de patilhas e monóculo,
e os retratos dos grandes da nossa época…” A negrito o mais com um bastão de marechal em cada mão.)
carregado possível! (Muda a cena.)
(Vê­‑se em pano de fundo a atravessar o palco da direita para a
esquerda aquele homem corpulento já de idade, de patilhas e CENA 23
monóculo, com um bastão de marechal em cada mão.) Centro da cidade. Um soldado cego sem braços nem pernas,
“…à posteridade, mas também a servir de adorno em qualquer empurrado num carrinho por um outro inválido.
biblioteca e qualquer casa…” Agora só falta acrescentar alguma Esperam, porque um jornalista de uma folha sensacionalista
coisa sobre o significado histórico de cada um dos retratados… está a conversar com um agente no passeio estreito.
ora abóbora, lá está ele a virar­‑se outra vez. Olhe lá, meu caro,
estamos aqui no Alto-Comando do Exército, não estamos O inválido: Com licença…
num bordel, está a entender? O jornalista: Mas que quer que lhe faça, na passada segunda­
O jornalista: Olhe lá, aquela não era a Kamilla do tenente­‑coronel? ‑feira cortaram­‑me 80 linhas.
O capitão: Se lhe caiu no goto, mando­‑lha para que lhe faça a O agente: Do artigo contra Budischkovsky e Ca., por causa da
inspecção, mas tem que me rever o folheto. encomenda?
O jornalista: Combinado. O jornalista: Desse mesmo… dantes, quando o artigo já estava
O capitão: E depois vem qualquer coisa sobre o estojo, uma composto e depois não era publicado, ganhava­‑se na mesma.
apresentação extraordinariamente distinta, de gosto requin‑ E se não se ganhasse, então o que se fazia era publicar e da vez
tado, condições de pagamento suaves, assinatura Ministé‑ seguinte de certeza que se ganhava. Agora não publicam um
rio da Guerra Imperial e Real. Ponto final. Atão que me diz, ataque e uma pessoa não lucra absolutamente nada com isso.
doutorzinho? O agente: Budischkovsky sabia?
O jornalista: Senhor capitão, tenho que lhe dar os cumprimen‑ O jornalista: Sim… mas hoje em dia as pessoas confiam na
tos, a maneira como maneja a língua, um jornalista profissional censura. Bem, espere só até as coisas mudarem, vai ver como
não teria sido capaz de redigir isso de maneira mais marcante. lhes saem as contas furadas e bem furadas. Até lá, a censura
O capitão: Acha? Ah, é verdade, na parte da frente do folheto que brinque connosco à vontade. Vai ver, a próxima vez que eu
pomos como exemplo de ilustração, para que se fique logo tire a viola do saco, vai ser de arromba… olá se vai!
com uma ideia dos destinos do mundo e do supremo sacrifí‑ O agente: Estou curioso de ver.
cio, o retrato daquele homem que encarna para nós tudo isso O jornalista: Vou cair em cima da censura. Vou demonstrar como
de maneira absolutamente exemplar! este comportamento do governo é pouco sensato, o governo
338 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 339
protege os fornecedores contra nós, mas precisa mais de nós que A Niese: (Lê em voz alta, enquanto o público ouve numa enorme
dos fornecedores. Nós já não conseguimos sobreviver. Durante a tensão.) “… graças à incomparável bravura das nossas valoro‑
guerra, a imprensa cumpriu o seu dever de forma absolutamente sas tropas, Czernowitz foi tomada!” (Aplausos estrondosos.)
exemplar, é o que vou expor, o nosso serviço é de tanta responsa‑ O público: Viva! Viva! Viva a Niese!
bilidade como o dos soldados, é o que vou expor, nós resistimos (Muda a cena.)
a pé firme como os que estão nas trincheiras, e sem ganhar nada!
O inválido: Com licença… CENA 25
(Muda a cena.) No Wolf de Gersthof. Ao fim do dia em que Czernowitz voltara
a ser conquistada pelos russos. A uma mesa está sentado
CENA 24 o inspector­‑geral da Cruz Vermelha, o arquiduque Franz
Durante a representação num teatro dos subúrbios. Salvator, o seu administrador do palácio, dois aristocratas
Em cena estão a Niese e um comparsa. e a Putzi. Música e canto: “Jasus, senhor, tudo vai bem,
na massa do sangue isso já nos vem.”
A Niese: (Seguindo o papel.) O quê, quer que lhe dê um beijinho?
Você, um simples soldado? Ele há cada uma! Sim, eu gostava Um cliente: (Para Wolf.) … é mesmo o Salvator ou alguém
de dar um beijinho a vós todos juntos, ó bravos soldados… muito parecido?
mas a um sozinho? Oh, não! Só a todos de uma vez (pensando Wolf: Não, não, é ele, o cavalheiro pode ter a certeza.
melhor) ou… vendo bem, a um no lugar de todos!… Gosta‑ O cliente: Mas uma coisa assim… e logo hoje? O genro do
ria de dar um beijinho a um único soldado! Gostava de lho imperador?
pespegar de tal maneira que a cidade de Viena estremeça e a Wolf: Em pessoa!
torre de Santo Estêvão se ponha aos saltos. E esse soldado, esse O cliente: O que é casado com a Valerie?
único soldado… é… (aproximando­‑se do proscénio, comovida Wolf: Esse mesmo.
em extremo) o nosso querido… o nosso bom… velho senhor O cliente: Diga­‑me uma coisa, esses senhores estão aqui por
de Schönbrunn!31 Mas, infelizmente… ele… justamente ele… casualidade?
é inacessível! Wolf: Não, vêm cá muitas vezes, mandaram reservar pelo tele‑
(Violenta tempestade de aplausos. Um auxiliar de cena aparece fone já esta tarde. Desculpe, tenho…
em palco e entrega à actriz a edição especial de um jornal.) (Wolf e dois outros cantores populares tomam posição
A Niese: Dê cá! O que a Gerda Walde é capaz de fazer, eu também junto da mesa das senhorias, a música entoa a melodia de
sou! “O Bom Velhinho”.32 Os cantores populares, ao ouvido do
O público: Bravo, Niese! arquiduque.)
340 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 341
Lá no parque de Schönbrunn O Assinante: O quê? Mas então a Alemanha estava preparada?
Um bom velho está sentado, O Patriota: Como?
O coração traz pesado… O Assinante: Vamos a ver se mete isto na cabeça de uma vez por
(Muda a cena.) todas. Toda a gente sabe que a Alemanha foi atacada de sur‑
presa, já em Março de 1914 regimentos siberianos…
CENA 26 O Patriota: Pois é claro.
O Assinante e o Patriota em conversa. O Assinante: Portanto, a Alemanha estava inteiramente prepa‑
rada para uma guerra defensiva, que já há muito queria fazer,
O Patriota: Então, que me diz agora? e a Entente há muito que queria desencadear uma guerra ofen‑
O Assinante: Que é que quer que lhe diga? Se por acaso está a siva, para a qual, contudo, não estava preparada.
querer referir­‑se à doença dos olhos de Sir Edward Grey, o que O Patriota: Está a ver, agora fica esclarecida para mim a aparente
eu digo é que isso devia acontecer a eles todos! contradição. Às vezes, acredita­‑se que uma coisa é verdade e
O Patriota: Também, mas que é que diz ao amordaçamento da afinal é mentira.
opinião pública em Inglaterra? O Assinante: Na Presse isso vem frequentemente muito claro,
O Assinante: Sei, sei, o director do Labour Leader33 foi convocado em duas colunas lado a lado, e isso tem a vantagem de que se
ao tribunal de polícia porque certas notícias que o jornal publicou pode ver com toda a nitidez a diferença entre nós e eles.
violam a lei de defesa do Império. Por causa de uma coisa dessas! O Patriota: Ouça, você leu isto? Pilhagens e destruições dos sol‑
O Patriota: Ora, e a França não conta? Que me diz sobre a dados italianos! Em Gradiska, levaram nada menos de 500 mil
França? Sabe o que é que lá há? coroas de uma caixa­‑forte e, além disso, mais 12 mil de uma
O Assinante: Penas de prisão pela difusão da verdade em França. outra caixa!
Você está a querer referir­‑se à senhora que disse… O Assinante: Li, li. Uma cáfila! Que me diz você ao triunfo colos‑
O Patriota: Também, mas agora houve um senhor que disse… sal dos alemães?
O Assinante: Claro, um senhor disse que a França está sem muni‑ O Patriota: Não li, onde é que isso vem?
ções e por causa disso espetam­‑lhe com 20 dias de cadeia. Ele disse O Assinante: Olha que pergunta! Logo na coluna ao lado. Está­
que os Aliados estão em má situação e que a Alemanha estava pre‑ ‑me a parecer que você não lê como deve ser…
parada para a guerra… O Patriota: Logo na coluna ao lado? Deve­‑me ter escapado
O Patriota: Por favor, explique­‑me isso, a verdade é que eu completamente! Onde é que foi o triunfo?
não entendo estes casos, então é mentira dizer que a Alema‑ O Assinante: Em Novogeorgievsk. O título era “Ouro no saque
nha estava preparada ou é verdade dizer que a Alemanha não de Novogeorgievsk”.
estava preparada… O Patriota: E então que é que dizia a notícia?
342 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 343
O Assinante: Dizia que entre o espólio conquistado em Novo‑ Um tenente prussiano: (Surge à porta e grita para trás.) Esses
georgievsk se encontravam também dois milhões de rublos em russos dum raio que esperem, vão já ver o que é bom! (Entra
ouro. de supetão na sala, sem fazer continência, dirige­‑se directamente
O Patriota: Fantástico! Isso é que é ter unhas…! ao general e grita, fitando­‑o fixamente nos olhos.) Olhe lá,
(Muda a cena.) Excelência, vocês, os austríacos, não são capazes de se desen‑
vencilhar sozinhos deste Uzsok de pacotilha?
CENA 27 O general: (Que ficou atónito por um pedaço.) Mas… mas o que
Posição nas proximidades do desfiladeiro de Uzsok. foi isto? (Virando­‑se para os circunstantes.) Estais a ver, meus
senhores… lá garbosos são eles, e o que é mais importante…
Um general austríaco: (No círculo dos seus oficiais.) … Meus têm organização, pronto!
senhores, a guerra não deixou nenhum de nós intocado, pode‑ (Muda a cena.)
mos dizer que alguma coisa aprendemos. Mas, meus senhores,
estamos longe de ter acabado… inda temos muito pra fazer, olá CENA 28
se temos! As nossas bandeiras estão coroadas de vitórias, belas Quartel­‑general. Sala de cinema. Na primeira fila está sentado
vitórias, isso não há inveja que nos tire, mas é indispensável o comandante­‑em­‑chefe do exército, o arquiduque Friedrich.
que, para a próxima guerra, introduzamos a organização no Ao lado, o seu convidado, o rei Ferdinand da Bulgária. Está
nosso exército. É verdade que temos talentos pra dar e pra ven‑ a ser passado um filme das Produções Sascha, que mostra
der, mas falta­‑nos a organização. Cada um de nós devia ter a imagem após imagem os efeitos de morteiros. Vê­‑se subir fumo
ambição de introduzir a organização no nosso exército. Estais e soldados a cair. A sequência repete­‑se 14 vezes durante hora
a ver, meus senhores, podeis dizer o que quiserdes contra os e meia. O público, composto por militares, olha com atenção
alemães… há uma coisa que não há inveja que lhes tire, eles profissional. Está tudo em absoluto silêncio. Apenas se ouve,
têm organização, e pronto… eu digo sempre e reafirmo: se a vinda da primeira fila, de cada vez que aparece uma imagem
gente tivesse cá um pedacinho de organização, tudo corria nas do momento em que o morteiro produz os seus efeitos, a
palminhas… mas assim, o que nos falta é mesmo a organiza‑ palavra:
ção. Nisso os alemães ganham­‑nos vantagem, não há inveja Pumba!
que valha. É claro que nós também ganhamos vantagem a eles (Muda a cena.)
em muitas coisas, por exemplo, aquelas coisinhas, a arte de
viver, aquele não sei quê, a placidez, isso não há inveja que
nos tire… mas quando estamos metidos até ao pescoço numa
alhada, os alemães aparecem com a sua organização e…
344 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 345
CENA 29 vivo na fórmula convencional. Uma princesa bávara man‑
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. dou os parabéns a um parente por o filho deste ter morrido
como um herói. Em tão altas esferas da sociedade existe uma
O Optimista: Mas então que seria para si morrer como um herói? certa obrigação de assumir um comportamento de megera.
O Eterno Descontente: Um lamentável acaso. O chefe do nosso Estado­‑Maior não apenas aceita condolên‑
O Optimista: Se a pátria pensasse dessa maneira, as coisas haviam cias como se lamenta repetidamente pela crueldade do destino.
de estar bonitas! O homem que, sem dúvida, está mais próximo justamente deste
O Eterno Descontente: A pátria pensa desta maneira. destino do que o resto da companhia, mais próximo do que
O Optimista: O quê, a pátria acha que morrer como um herói é os soldados, a quem tal destino pode colher, e do que os pais
um acidente, um acaso? dos soldados, que podem lastimar­‑se por ele… o homem que,
O Eterno Descontente: Mais ou menos, chama­‑lhe um duro se não é o autor desse destino, é pelo menos o seu encenador
golpe do destino. ou, digamos, o director de cena responsável ou, se não isso, no
O Optimista: Quem? Onde? Não há um único necrológio militar mínimo o contra­‑regra, é precisamente esse homem que fala de
onde não se diga que foi concedido a um soldado morrer pela um cruel golpe do destino. E ele diz a verdade e os outros todos
pátria e não há uma única participação de falecimento em que o são obrigados a mentir. Com a sua dor privada, ele encontrou
mais humilde cidadão, que noutras circunstâncias talvez tivesse o bom caminho para se salvar do dever do heroísmo. Os outros
falado de um duro golpe do destino, não anuncie em palavras continuam presos neste. São obrigados a mentir.
singelas e de certo modo com orgulho que o filho morreu como O Optimista: Não, eles não mentem. O povo encara a morte de
um herói. Olhe, aqui, por exemplo, na Neue Freie Presse de hoje. herói de um modo absolutamente apaixonado, e a perspectiva
O Eterno Descontente: Estou a ver. Mas ande umas páginas de morrer no campo da honra tem, em muitos sentidos, algo
para trás. Isso. Aqui, o chefe do Estado­‑Maior, Conrad von de inebriante para os filhos do povo.
Hötzendorf, agradece ao burgomestre pelas condolências que O Eterno Descontente: Infelizmente, também para as mães,
exprimiu “por ocasião do cruel golpe do destino” que o atingiu que renunciaram ao poder que teriam de salvar esta época da
com a morte do filho em combate. Também na participação vergonha.
de falecimento ele se exprimiu assim. Você tem toda a razão, O Optimista: Pois é, elas ainda não estavam maduras para ideias
não há comerciante de fiados cujo filho tenha morrido que destrutivas como as suas. E muito menos o estava a pátria
não assuma a pose de pai de um herói prescrita pelo Estado. enquanto tal. Que os membros das altas camadas tenham que
O chefe do Estado­‑Maior renuncia à máscara e regressa ao pensar como pensam é a pura evidência. O caso que você adu‑
velho e humilde sentimento que, perante uma morte destas, se ziu é uma casualidade. O barão Conrad limitou­‑se a escrever
justifica mais do que perante qualquer outra e que permanece uma coisa convencional. Foi um simples deslize…
346 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 347
O Eterno Descontente: Pois, um sentimento. O Optimista: …em vez de os compensarem tirando­‑os final‑
O Optimista: De qualquer modo, o caso não prova nada. Uma mente da fábrica…
outra coisa que lhe quero mostrar prova mais e corrobora O Eterno Descontente: Sem dúvida.
inteiramente a minha maneira de ver. Mesmo o senhor vai ter O Optimista: …e dando­‑lhes a oportunidade de testarem final‑
de se render à evidência… mente também na frente as munições que, na fábrica, se limi‑
O Eterno Descontente: De quê? tam a produzir! Esses valentes de certeza que estão inconsolá‑
O Optimista: Da concórdia absolutamente prodigiosa, desta veis por só esperarem deles que apoiem os seus compatriotas
solidariedade perante um sofrimento comum em que todas as e companheiros de classe com o esforço das suas mãos e não
classes competem entre si… lhes consentirem que se lhes juntem, por sua vez, com bravura
O Eterno Descontente: Vamos ao assunto! e desprezo pela morte. A oportunidade de ir para a linha da
O Optimista: Ora cá está… espere, tenho que lhe ler isto em frente, a maior distinção a que um mortal…
voz alta para ter a certeza de que não lhe escapa uma única O Eterno Descontente: Ser mortal parece que é o principal
palavra: “Comunicado do Ministério da Guerra. Informam as requisito do certificado de qualidade. O senhor acha então que
agências: O Ministério da Guerra Imperial e Real autoriza que ser enviado para a linha da frente é sentido como a máxima
o próximo dia 18 de Agosto seja dado como feriado especial a recompensa, quer dizer, por parte dos que a recebem?
todos os trabalhadores das fábricas de produção e preparação O Optimista: Exacto, é isso mesmo.
de munições, bem como de produção de material de aprovisio‑ O Eterno Descontente: Pode ser que sim. Mas o senhor acha
namento. O Ministério da Guerra não pode deixar de aprovei‑ igualmente que isso é concedido como recompensa máxima?
tar esta ocasião para sublinhar o particular sentido do dever e O Optimista: Mas isso sem dúvida! Parece que você ficou sem fala.
o zelo incansável de todos os trabalhadores que, com o esforço O Eterno Descontente: É verdade, e por isso, em vez de o fazer
das suas mãos, ajudaram as nossas tropas, cuja coragem não com palavras minhas, só estou em condições de retribuir com
tem igual, a conquistar os augustos louros da vitória pela sua o texto de um comunicado. Vou ler­‑lho em voz alta, para tam‑
bravura e desprezo pela morte.” Então, que é que me diz? bém eu ter a certeza de que não lhe escapa uma única palavra.
(O Eterno Descontente mantém­‑se calado.) O Optimista: É de um jornal?
Parece que ficou sem fala? A imprensa social­‑democrática O Eterno Descontente: Não, é um comunicado que dificil‑
publica a notícia com o título ufano: “Reconhecimento do mente poderia ser publicado. Ficaria a parecer­‑se mais com
contributo dos trabalhadores”. E quantos destes trabalhadores uma mancha em branco.34 Contudo, ele está afixado naquelas
não estarão insatisfeitos por receberem como paga só um dia, empresas industriais que, graças ao favor de terem sido colo‑
mesmo sendo o dia do aniversário do imperador… cadas sob protecção do Estado, souberam livrar­‑se da insatis‑
O Eterno Descontente: Certamente. fação dos trabalhadores.
348 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 349
O Optimista: De certeza que lhe chegou aos ouvidos que os tra‑ O Eterno Descontente: Não é bem assim. “Os trabalhado‑
balhadores apoiam a causa com entusiasmo e, quando muito, res obrigados a serviço militar que, por ocasião de distúrbios
estão insatisfeitos por não poderem colaborar de outra forma. sujeitos a moldura penal, sejam identificados como cabecilhas
Quando até o próprio Ministério da Guerra reconhece a não deverão, depois de concluído o procedimento judicial e
dedicação… de cumprida a pena, ser de novo integrados na empresa, antes
O Eterno Descontente: O senhor parece querer substituir a fala devem ser entregues pela direcção militar das empresas em
sem a qual eu fiquei. Deixe lá o Ministério da Guerra tomar a pala‑ questão ao comando do distrito de recrutamento mais próximo,
vra! “14/6/15. Chegou ao conhecimento do Ministério da Guerra com vista à incorporação nas unidades militares competentes.
que a atitude dos trabalhadores, em numerosas empresas indus‑ Nas unidades, esses homens devem de imediato ser submeti‑
triais que foram objecto de requisição ao abrigo da Lei da Produ‑ dos à instrução e ser incorporados no primeiro batalhão que
ção de Guerra, deixa extremamente a desejar do ponto de vista siga para a linha da frente. Se o trabalhador incorporado em
disciplinar e moral. Actos de rebeldia, faltas de respeito, insubordi‑ questão estiver classificado como apto apenas para serviço de
nação contra os capatazes e os mestres, resistência passiva, danos guarda, tomar­‑se­‑ão medidas para que, concluída a instrução,
intencionais em máquinas, abandono dos locais de trabalho sem ele seja colocado num corpo de guarda que preste serviço na
autorização, etc., são delitos contra os quais mesmo a aplicação de área do exército ou perto dela. Pelo ministro: Schleyer.”
processos criminais se revela em muitos casos ineficaz…” (O Optimista ficou sem fala.)
O Optimista: Manifestamente, essas pessoas já estão impacientes Parece que ficou sem fala? Está a ver, gente que anseia pelo
por partir para a linha da frente. Esta distinção é­‑lhes negada… favor de ir para a linha da frente é, em vez disso, mandada para
O Eterno Descontente: Não, é­‑lhes oferecida: “O Ministério a linha da frente como castigo.
da Guerra vê­‑se, pois, obrigado a determinar que esses casos O Optimista: Pois é… e até como agravamento da pena!
sejam sujeitos sem excepção a procedimento judicial. As penas O Eterno Descontente: Exactamente, a pátria considera que a
previstas para estes casos são pesadas e podem receber uma oportunidade de morrer pela pátria é um castigo e, ainda por
forma ainda mais pesada através de agravamentos adequados, cima, o mais pesado de todos. O cidadão sente­‑a como a honra
além disso, o condenado, enquanto estiver preso, não recebe máxima. Quer morrer como um herói. Em vez disso, vai para
salário, de modo que a condenação judicial se revelará por a instrução e é incorporado no primeiro batalhão a seguir para
certo, justamente nesses casos, um meio de dissuasão e de cor‑ a linha da frente. Quer ingressar nas fileiras e, em vez disso,
recção altamente eficaz…” obrigam­‑no a ingressar nas fileiras.
O Optimista: Pois é, são penas severas e, além disso, gente como O Optimista: Não posso crer… um castigo!
essa perdeu também toda a esperança de alguma vez ser man‑ O Eterno Descontente: Há várias gradações. Primeiro,
dada para a linha da frente. punição disciplinar, segundo, condenação judicial, terceiro,
350 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 351
agravamento da pena de prisão e, quarto, o agravamento mais mulher contra homem! Não as venceu
severo da pena de prisão: a linha da frente. Os incorrigíveis da máquina o acaso, a que escapar
são enviados para o campo da honra. Os cabecilhas! Se hou‑ só podem os que a sorte protege,
ver vários antecedentes penais, a sentença é morrer como um foi de olhos nos olhos, pelo próprio querer,
herói. Para o chefe do Estado­‑Maior, morrer como um herói, uma contra todos, que elas tombaram,
quando quem morreu foi o filho, é um duro golpe do destino, sob o fogo da moral inclemente.
e o ministro da Guerra chama­‑lhe castigo. Ambos têm razão… Honra àquelas que da honra morreram,
isto e aquilo… as primeiras palavras verdadeiras que se ouvi‑ mártires heróicas, sacrificadas
ram nesta guerra. à mátria maior, a natureza!
O Optimista: Pois é, consigo é difícil ser optimista. (Muda a cena.)
O Eterno Descontente: Ora essa! Então não estou a admitir
que também se ouvem palavras verdadeiras em plena guerra? CENA 30
Sobretudo quanto ao essencial. Por pouco, não me esquecia do Algures no Adriático.
mais verdadeiro de tudo. No hangar de um esquadrão de hidroaviões.
O Optimista: E isso é o quê?
O Eterno Descontente: Uma coisa que quase poderia A Schalek: (Entra e olha em redor.) Entre todos os problemas
reconciliar­‑nos com a obrigação de ingressar nas fileiras, a desta guerra, o que me dá mais que pensar é o da coragem pes‑
compensação pela degradação da humanidade transformada soal. Já antes da guerra meditei muitas vezes sobre a questão
em material humano: a passagem ao activo pelo período da do heroísmo, porque conheci bastantes homens que jogavam
MOB. Depois de FLAK e KAG e RAG e todos os outros horro‑ à bola com a vida – cowboys americanos, pioneiros das selvas
res, uma pessoa por uma vez fica satisfeita com estas abrevia‑ e das florestas virgens, missionários do deserto. Mas a maior
turas da língua e da vida. Pois é, estamos todos no activo pelo parte das vezes eles tinham o aspecto que se espera de um
período da MOB!35 herói, todos os músculos tensos, como que forjados em ferro.
O Optimista: A sua maneira de proceder faz desbotar todas as Como são diferentes os heróis com que nos defrontamos agora
bandeiras da pátria. Tudo mentira, tudo prostituição? Onde é na guerra mundial. São pessoas propensas às piadas mais ino‑
que existe verdade? fensivas, que lá no íntimo são doidos por chocolate com natas e
O Eterno Descontente: Nas prostitutas! que, pelo meio, vão narrando experiências que podem contar­
Ai do que ouse agora desprezar ‑se entre as mais espantosas da história universal. E contudo…
a memória dessas que caíram! O Departamento de Imprensa Militar está agora aboletado
Um inimigo maior enfrentavam, num vapor vazio ancorado numa baía. À noite há grandes
352 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 353
banquetes, está tudo animadíssimo ao som da música: se se estão indefesos – à nossa inteira mercê. Ninguém pode fugir,
fechasse os olhos… uma pessoa quase poderia julgar­‑se a revi‑ ninguém pode salvar­‑se ou encontrar abrigo. Tem­‑se poder
ver uma alegre noite de casino. Bem, vamos lá a ver como é que sobre tudo. É uma sensação majestosa, tudo o resto passa para
esse tenente de fragata… ah, cá está ele! (O tenente de fra‑ segundo plano, deve ter sido algo semelhante que Nero sentiu.
gata entrou.) Não tenho muito tempo, seja breve. O senhor é A Schalek: Compreendo os seus sentimentos. Já alguma vez bom‑
bombardeiro, então o que é que sente quando lança bombas? bardeou Veneza? O quê, o senhor sente escrúpulos? Olhe, vou­‑lhe
O tenente de fragata: Normalmente, voa­‑se em círculos uma dizer uma coisa. Veneza como problema merece uma longa medi‑
meia horita por sobre a costa inimiga, deixa­m‑se cair algumas tação. Nós fomos para esta guerra cheios de sentimentalismos…
bombas sobre os alvos militares, fica­‑se a ver como é que elas O tenente de fragata: Quem?
explodem, fotografa­‑se o espectáculo e volta­‑se para casa. A Schalek: Nós. Tínhamos planeado travá­‑la com cavalhei‑
A Schalek: Também já esteve em perigo de vida? rismo. Pouco a pouco, e depois de uma dolorosa aprendizagem
O tenente de fragata: Já. da realidade, libertámo­‑nos dessa ideia. Qual de nós ainda há
A Schalek: O que é que sentiu nesses momentos? menos de um ano não teria estremecido à ideia de serem lan‑
O tenente de fragata: O que é que senti nesses momentos? çadas bombas sobre Veneza? E agora? Pelo contrário! Se dis‑
A Schalek: (À parte.) Ele examina­‑me com um ar um bocado des‑ param de Veneza sobre os nossos soldados, então também os
confiado, avaliando de forma semi­‑inconsciente em que medida nossos devem disparar sobre Veneza, com tranquilidade, aber‑
terei capacidade para entender sentimentos ainda não amadu‑ tamente e sem sentimentalismos. A verdade é que o problema
recidos. (Para o tenente.) Nós, não­‑combatentes, cunhámos só vai tornar­‑se agudo quando a Inglaterra…
conceitos tão esmagadoramente categóricos de coragem e de O tenente de fragata: Mas a quem o diz! Tranquilize­‑se, eu
cobardia que o oficial de primeira linha tem sempre receio de bombardeei Veneza.
não encontrar em nós sensibilidade para a gama infinita de sen‑ A Schalek: Muito bem!
sações intermédias que nele alternam sem cessar. Adivinhei? O tenente de fragata: No tempo da paz eu passava a vida a ir
O tenente de fragata: O quê? A senhora é não­‑combatente? a Veneza, gostava muito da cidade. Mas quando a bombardeei
A Schalek: Não se ofenda com isso. O senhor é um combatente lá do alto… não, não senti em mim nem uma gota de falso
e eu gostava de saber que experiências tem tido. E, sobretudo, sentimentalismo. E depois voámos todos felizes para casa. Foi
como é que se sente a seguir? o nosso dia de glória… o nosso grande dia!
O tenente de fragata: Pois, é uma coisa estranha… é como se A Schalek: Não preciso de mais nada. Agora tenho à minha
um rei se transformasse subitamente em mendigo. É que uma espera o seu camarada do submarino. Espero que ele se com‑
pessoa quase se julga um rei, quando se paira a uma altura tão porte tão galhardamente como o senhor! (Sai.)
inacessível sobre uma cidade inimiga. Os que estão lá em baixo (Muda a cena.)
354 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 355
CENA 31 CENA 32
Num submarino que acabou de vir à superfície. Uma fábrica submetida à Lei da Produção de Guerra.

O cabo da marinha: Eles já aí vêm! O director militar: Algemas, vergastadas, prisão, bem, e
O oficial: Depressa, submergir outra vez!… Não, demasiado mobilização forçada… mais não temos, é tudo o que há. Que
tarde. é que se há­‑de fazer?
(Entram em cena os membros do Departamento de Imprensa O industrial: (Em cujo braço baloiça uma chibata.) Tanto
Militar, com a Schalek à cabeça.) quanto possível, procuro resolver as coisas a bem. (Aponta
O oficial: Meus senhores, os senhores são as primeiras caras que para a chibata.) Mas que é que querem que uma pessoa faça,
vemos. É uma sensação estranha, ter sido devolvido à luz. se esses cães dos sindicatos não param com as suas provoca‑
Os jornalistas: Olhe, e lá no fundo como é que é? ções… discussão sobre a situação dos trabalhadores, questão
O oficial: É medonho. Mas aqui em cima…36 alimentar… assim como é que querem que a gente aguente a
Os jornalistas: Dê­‑nos pormenores. pé firme… situação jurídica e condições de trabalho, reforma
O oficial: Aqui o cabo já lhos dá, sim senhora… do direito do trabalho em tempo de guerra…
Os jornalistas: À senhora? Só a ela? Então e nós? (Depois de O director militar: A quem o diz! É mobilizá­‑los à força e, se
esclarecido o equívoco, os jornalistas caem em cima do cabo.) possível, os senhores deputados também. A verdade é que nós
Então isso são os tubos de lançamento? esprememos a Lei da Produção de Guerra e a Lei da Mobiliza‑
O cabo da marinha: Não, são os cartuchos de potássio. ção Geral o mais que pudemos. Não temos aí nada de que nos
Os jornalistas: Aquilo não são os motores diesel? recriminarmos. O mais bonito foi o que aconteceu em Agosto
O cabo da marinha: Não, são os tanques de água. de 14 com os metalúrgicos e os mecânicos. De manhã, ainda
O oficial: (Vira­‑se para a Schalek.) A senhora não diz nada? ganhavam as suas seis coroas trabalhando à peça, ao meio­‑dia
A Schalek: Tenho a sensação de ter perdido a língua. Permita­ foi a inspecção e ficaram a saber que agora eram soldados, foi
‑me que aborde um problema difícil. O que eu gostaria de limpinho, e à tarde já eles trabalhavam que era uma beleza no
saber era o que é que o senhor sentiu quando fez mergulhar no mesmo posto e com as mesmas tarefas por salários de soldado.
túmulo húmido e mudo aquele gigantesco colosso com tantas Não se ouviu nem um pio. Mas sabe o que lhe digo? A verdade
pessoas no bojo. é que um recrutamento assim é inútil…
O oficial: Primeiro, senti uma alegria indescritível… O industrial: Homessa!
A Schalek: Isso para mim chega. Acabo de chegar a uma conclu‑ O director militar: Quer dizer, o que se devia ter feito em
são. O Adriático não sairá das nossas mãos! toda a parte foi o que nós fizemos em Klosterneuburg no depó‑
(Muda a cena.) sito de material de aprovisionamento, o que eu lhes disse foi
356 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 357
simplesmente: “A partir deste momento pertenceis à máquina de comarca condena o Lenz. Estão os dois, encantados da vida,
militar e, sendo assim, só tendes direito ao pré e mais nada.” a sair do edifício do tribunal…
O industrial: Ah, bem! O director militar: Conheço o caso… vêm dois polícias e
O director militar: Uma vez, eles queixaram­‑se por causa do levam­‑nos para a fábrica. Lá, o meu colega espeta­‑lhes com
tratamento contra as regras da civilidade ou coisa que o valha. dez dias de detenção e toca a continuar a trabalhar. Pois é, os
Mandei­‑os apresentarem­‑se e perguntei­‑lhes quem é que os tribunais são uma linda instituição do Estado, não há dúvida!
tinha posto ao corrente das normas. Responde­‑me o tipo: “Nós Por sorte, o Lenz é burgomestre, assim ele próprio tem poder
somos trabalhadores sindicalizados e dirigimo­‑nos aos nossos para ordenar medidas de detenção. Foi o que fez com as traba‑
sindicatos para sermos esclarecidos, os sindicatos indicaram­ lhadoras que mandou as patrulhas ir buscar no dia a seguir ao
‑nos dois deputados!” “Tá bem”, digo eu, “hei­‑de mandar vir Natal, para o trabalho e depois ala prà prisão!
esses senhores, ponho­‑os aqui à vossa beira e eles vão ter que O industrial: Uma vez, foram­‑se queixar de mim ao sindicato
trabalhar em vez de andarem a espalhar o descontentamento.” por os tratar mal e não lhes pagar o suficiente. Uma destas…
Replica o tipo: “Nós somos trabalhadores sindicalizados, e eu a pagar entre 38 e 60 cêntimos à hora! Pois bem, mandei
cumprimos o nosso dever perante o Estado, mas procuramos um cabecilha vir falar comigo e digo­‑lhe assim: “Vocês foram­
também a protecção da nossa organização.” Eu… ‑se queixar, mas é para isso que serve a chibata.” E aponto para
O industrial: Quer dizer, e há­‑de uma pessoa prescindir da chi‑ o meu braço. Diz o fulano: “Nós não somos cães.” Então o
bata. O que é que o senhor primeiro­‑tenente… que eu faço é apontar para o meu coldre e digo­‑lhe: “Para si,
O director militar: O que é que eu fiz? “Vós não passais de além disso, ainda tenho um revólver!” Ele… ele pôs­‑se para
traidores à pátria”, disse­‑lhes eu, “e para vos fazer perder a von‑ ali a falar da dignidade do ser humano ou coisa assim. Bem, o
tade de vir reclamar outra vez, ides apanhar 30 dias de deten‑ fulano tanto andou, tanto andou que as autoridades disseram
ção, ponto final e acabou­‑se a história.” que os salários eram demasiado baixos!
O industrial: Fico espantado com tanta benevolência. Num O director militar: Mas de certeza que ele foi logo…
caso de traição à pátria! O industrial: Pois é claro, foi logo mobilizado, o seu antecessor
O director militar: Pois, sabe o que é, não convém esticar nessas coisas era muito atencioso. Um, que também se quei‑
demasiado a corda. O que é triste é que os tribunais civis ainda xou uma vez do salário, levou com a chibata e o seu antecessor
por cima dão razão a essa cáfila. pregou­‑lhe por causa disso com três semanas de detenção.
O industrial: Conheço um caso desses. Na empresa Lenz, de O director militar: Você vai ver que também não terá razões
Traisen, onde um tipo assim ganhava de qualquer modo 25 de queixa minhas. Se quer que lhe diga, essa cambada devia era
coroas por dia, há dois que vão para tribunal para rescindir o estar contente por não ter que trabalhar nas minas.
contrato, alegando que anteriormente ganhavam 44. O tribunal O industrial: Sei, sei, o comando militar de Leitmeritz
358 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 359
melhorou substancialmente a situação dos proprietários das Josefstadt37 para se apresentarem e perdem metade da jorna,
minas. O que se fez foi simplesmente chamar a atenção dos mais o salário que deixam de receber enquanto estão detidos
trabalhadores para que estão vinculados por juramento à legis‑ e outras coisas assim, e o principal, mesmo que só para os
lação militar e que apresentar queixas pode eventualmente ser casos graves… mobilização forçada! Está a ver, não diga que
interpretado como crime de sedição, caso em que os cabecilhas os senhores têm razões de queixa!
e os agitadores podem ser condenados à morte pelo tribunal O industrial: Mas, por favor, já cá não está quem falou. E eu sou
marcial. Pois é, os proprietários das minas… conhecido por só sobrecarregar as autoridades militares em
O director militar: Na mina de antracite de Eibiswald, na caso de absoluta necessidade. Prefiro resolver as coisas sozi‑
Estíria, eles têm que fazer turnos dominicais, depois das oito da nho. O que eu digo é, se as coisas se podem resolver a bem…
noite não há tabernas nem cafés. Em compensação, em cinco (Aponta para a chibata.)
dias de detenção, três são de jejum. Levam­‑nos sob escolta (Muda a cena.)
da mina para a prisão local, um caminho longo. Em Ostrau,
logo no começo da guerra começaram com castigos corpo‑ CENA 33
rais, mas de maneira sistemática! Em cima do potro na sala da Quarto em casa do conselheiro Schwarz­‑Gelber.
guarda, agarrados por dois soldados. O fulano que depois foi Altas horas da noite. Entram o conselheiro
com histórias pra um deputado, o que aconteceu foi que levou Schwarz­‑Gelber e a esposa.
outra vez. Quem vier cá com queixas… ala prà linha da frente,
mesmo que nunca tenha estado na tropa. Assim é que é! Ele: (Respirando pesadamente.) Bendito e louvado seja Deus, cá
O industrial: (Suspirando.) Pois é, os proprietários das minas estamos… puh…
é que estão cheios de sorte! Esses é que podem aguentar a pé Ela: Também, francamente, grande mártir me saíste.
firme! Ele: Foi a última vez… a última vez… não tenhas a mínima
O director militar: Bem, mas os outros empresários hoje dúvida!
em dia também não estão completamente desprotegidos! Os Ela: E eu contigo também! É tão certo como a morte! (Começa a
capatazes também já não andam a dormir. Dão bofetadas pela despir­‑se. Ele deixa­‑se cair numa cadeira, apoia a testa na mão,
medida grande. Para quem está detido, destinei sempre seis levanta­‑se de novo num salto e anda às voltas pelo quarto.)
horas por dia algemados. Bem, e levá­‑los do trabalho pelas Ele: Porquê… só peço que me digas porquê… porquê, responde­
ruas escoltados de baioneta calada, só isso já serve de exemplo! ‑me só a isto, porque é que Deus te deu de castigo a mim… logo
Sem se poderem lavar antes, cabelo rapado na casa de detenção, a mim?… Logo eu é que tenho de levar uma vida destas… por‑
mesmo os que só apanharam 24 horas, os custos da alimenta‑ quê… não podia ter sido um outro?! Esfalfei­‑me… até ao cair
ção deduzidos do salário… basta terem de ir de Floridsdorf à da noite… por ti… tu dás cabo de mim com a tua beneficência
360 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 361
de guerra… comités de apoio e delegações e que mais sei eu, Ele: Pois claro que sou!
concertos e salões de costura e salões de chá e reuniões onde Ela: Ora, ora! Não posso nem ver­‑te à minha frente! Tu sabes
se fica pra ali especado, e todos os dias hospitais… Santo Deus, melhor que todos que és um mentiroso! Meu Deus, como tu
mas que vida esta… (atirando­‑se a ela) que… que queres tu ficavas à nora, quando eu não estava hoje aqui e amanhã ali…
ainda de mim… ainda não te chega… eu… eu… não tenho empurravas­‑me, era o que era… se o Grünfeld dava um con‑
saúde… eu não tenho… saúde… certo, eu é que tinha de falar… o que eu suportei… já nem sabia
Ela: (Aos gritos.) Mas porque é que te pões aos berros comigo? se estava numa reunião em casa da Berchtold ou num chá em
Eu obrigo­‑te? Tu é que me obrigas a mim! Como se me des‑ casa da Bienert, julguei que o dia das flores era para o patrocí‑
ses um dia sequer de descanso! Eu… não fui eu que tive de te nio dos soldados em vez de para os refugiados, ele era estreia do
ajudar, escada acima, escada abaixo… até eles dizerem, pra ver Korngold, enterros sem parar, corridas de cavalos, o Guerreiro
se finalmente os deixavas em paz, e passaste a vice­‑presidente! de Ferro e o escudo de guerra, quando eles vieram com a ideia
Julgas que é pelos teus lindos olhos? A mim é que tu tens de do cálice de guerra tu ficaste logo todo excitado, eu conheço­
agradecer… se não tivesse passado a vida atrás dele, do Exner… ‑te muito bem, mas assim como agora nunca te vi, não podias
meu Deus, as voltas que tive de dar… Eu já te digo o que é que deixar de estar presente, porquê, sem ti nada feito, eu disse­‑te
tu és! Um idealista é o que tu és! Estás convencido que se não pra me deixares de fora, mas não, tu não me largavas, atiraste­
fosse assim tinhas chegado onde chegaste! Com base em quê? ‑me literalmente para os chás e os comités, atormentaste­‑me
Na tua cara, se calhar? No teu charme, se calhar? Pois fica­‑me por causa dos louros para os nossos heróis, corri pra aqui, corri
a saber, a mim é que tu tens de agradecer toda a tua carreira, a pra ali, acções de beneficência umas atrás das outras; em favor
mim, a mim, a mim… o Liharzik morreu… hoje podias estar disto, em favor daquilo, em favor de quem, pergunto eu, senão
no lugar dele, podias estar em toda a parte… um lorpa é o que de ti? De mim é que não! Do dia de hoje não me vou esquecer
tu me saíste! Achas que as coisas te vão cair do céu, logo a ti… tão cedo… meu Deus… uma pessoa tem que se arrastar dum
eu a empurrar e tu não sais do sítio… lá querer querias muita hospital pra outro… e que é que se ganha com isso? Que é que
coisa, não tens é genica pra nada! se ganha? Ingratidão!
Ele: Por amor de Deus… cala­‑te… na minha posição… já arrisco Ele: Pelo amor de Deus, pára com isso! Se alguém te ouvisse falar
que chegue… havia de ficar com uma linda ideia do teu amor ao próximo, é
Ela: Estou­‑me nas tintas prà tua posição, se não passamos da cepa de ficar transtornado…
torta. Posição! Olha quem fala! Foi porque eu andei a gastar Ela: Por tua causa! Que culpa tenho eu que eles hoje não tenham
as solas que tu tens uma posição! Fartei­‑me de correr! Foi pra reparado em ti? Posso jurar que falei com o delegado, disse­‑lhe
mim que andei a correr? Foi pra mim que andei a bater às por‑ que quando eles chegassem, foi o que lhe disse, ele que tratasse
tas? Ora responde, se és capaz! de nos pôr bem à frente, porque da última vez tivemos azar, no
362 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 363
último momento ainda lhe dei uma cotovelada, ele sabe que Ele: (Mais brando.) Ida… mas que mal te fiz eu… olha… vamos
tenho influência sobre o Hirsch, já há muito tempo que o Hirsch ser razoáveis… olha… por amor de Deus… que… que é que
não menciona o nome dele… fiz tudo o possível, pus­‑me quase sou… conselheiro… eu… ridículo… um judeu é o que eu
ao lado da Blanca, quando ela estava a dizer ao cego que é pela sou!… (Deixa­‑se cair soluçando sobre a cadeira.) O que eu
pátria… é em mim que queres descarregar a tua fúria? Eu tenho tenho que suportar… mas isto… é vida… isto é vida… sem‑
culpa que no último momento se tenha apresentado o Angelo pre atrás… sempre muito atrás… dos outros… ter que depen‑
Eisner com aquele colosso com quem anda, que tapa tudo? der do Hirsch… na última… na última… batida… corrida…
Tu tens azar por ele ser maior e quem paga sou eu! É a mim… nem… repararam… em nós… (mais sereno) ainda te dei uma
a mim… que fazes censuras… eu… eu… sabes o que tu és, sabes cotovelada… a Wydenbruck reparou… pôs­‑se com comentá‑
o que tu és… eu… uma Bardach (aos guinchos) sou boa de mais pra rios… e hoje… o escândalo!… As pessoas falam… estou arrui‑
gente como tu… (atira­‑lhe com o espartilho) tu… tu, zé­‑ninguém! nado… o Spitzy riu­‑se…
Ele: (Atira­‑se a ela e segura­‑a.) Tuuuu!… tu não me provoques… tu Ela: Não me venhas com o Spitzy! Esse bem pode falar! O Spitzy
não me provoques, ouviste?… Eu deixo de ter mão em mim… só começou a trepar com a guerra mundial. Antes disso não
olha que não sei o que é que te faço!… Mas que… que… que‑ se via o nome dele em parte nenhuma. E agora? Não passa um
res tu de mim? És mesmo um nojo… porque é que não falas dia que não dê vontade de vomitar, com páginas e mais páginas
de ti?… A tua ambição ainda me vai levar à cova!… Se tivesses de Spitzy!
filhos, ao menos distraías­‑te… olha… pra mim… por tua culpa é Ele: De Spitzy!? Mas ele não foi… era só o que faltava!
que fiquei com cabelos brancos… (soluçando) eu… fui… consul‑ Ela: Estou a dizer é que tanto Spitzy até dá vómitos.
tar… o Hochsinger… o coração já não… está… lá muito bem… Ele: Ele sabe imiscuir­‑se nas mais altas esferas.
a culpa é tua… (Aos berros.) Mas agora vais ouvir a verdade… Ela: Como se fizesse lá falta! O que me parece é que ele está con‑
tudo por não teres conseguido… ser uma Flora Dub!… Só em vencido que é o Spitzer.
chapéus tinha sido uma fortuna… onde é que… queres que vá Ele: Anda com a medalha de ouro em mira.
buscar… que é que querem de mim… Ela: Eu tive uma conversinha com o delegado. Ele disse que não
Ela: (Em paroxismo.) Com… a Flora… Dub!… Tu atreves­‑te!… há nada a fazer, cá está uma coisa tipicamente vienense, disse
a misturar­‑me… Flora… a mim com a Dub… eu… da família ele, está a ver, o Spitzy, o Spitzy tem a imprensa do seu lado e
Bardach! Sabes o que é que tu és? És um arrivista, mais nada! além disso contribui para as próteses.
Vieste da ralé! Fica­‑te bem o apelido. És amarelo da ambição! Ele: Olha que rico delegado!
Ficas negro sempre que o teu nome não é mencionado!38 Quando Ela: Estou furiosa com ele até mais não.
pensas no Eisner, dás voltas na cama! Que culpa tenho eu de ele Ele: Que diferença entre o Gartenbau de agora e de quando a
ser um aristocrata! Vai ao Fürstenberg e pede­‑lhe que te adopte! guerra começou, é como do dia prà noite! Quando me lembro
364 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 365
daquela vez durante a batalha de Lemberg, não te recordas, não digas a ninguém, ele deixou cair um comentário deprecia‑
quando a Presse festejou o aniversário e o Weiskirchner lhe deu tivo sobre o Hirsch!
os parabéns, ainda há pouco disse ao Sieghart… Ela: Vê lá, por favor, não te ponhas agora com coisas! Vê lá no que
Ela: Tu, ao Sieghart? te metes! Eu também podia, julgas que não tenho de me conter,
Ele: Tu… já não… te lembras da vez que falei com o Sieghart? a Dub disse qualquer coisa sobre a Schalek… que ela se põe
Estás a ver, que coisa! Todos viram… não te lembras? A vez com bazófias no meio da batalha e coisas assim… eu podia dar
em que ele veio com a história de nos convidar a fazer parte do a entender algo à Odelga, ela no domingo deve vir ao chá dos
subcomité da secção de apoio… lembras­‑te de certeza, ele teve inválidos… Sigmund… ouve o que te digo… sabes que mais…
a ideia de se fazer uma colecta, “caviar prò povo”,39 embora na não fiques nervoso… tu andas esgotado… confia em mim,
verdade a ideia tenha sido do Kulka… pois digo eu então ao nós havemos de conseguir! Recompõe­‑te… queres apostar, na
Sieghart, “Excelência”, digo eu, “o delegado não me agrada lá sexta­‑feira temos uma oportunidade como nunca tivemos…
muito e o médico­‑chefe não me agrada e não me agrada todo sabes, a merenda pròs nossos prisioneiros da Sibéria Oriental.
este monte de baboseiras.” Ele fica calado, mas eu vi que estava Ou, olha, espera, ainda vem mais a propósito, no sábado, para
a reflectir. Digo­‑lhe então, “Excelência, os tempos que correm os guerreiros alemães! Vais ver, põe­‑te a toques que ta vão dar!
são demasiado sérios”. Olha, e o que te posso dizer é que ele Se não for a primeira, dão­‑ta a segunda. Garanto­‑te. Não vamos
não disse que não. “Mas porque é que é assim?”, pergunto eu. esperar pelo cabaré do Círculo Naval! Agora mostra do que és
Ele encolhe os ombros e diz, “Guerra é guerra”. Foi o que bas‑ capaz. Segue o exemplo do Haas, dele, não dela… vês, ele não
tou para saber com o que podia contar. Agora só preciso de… passa de um gói, mas tem cá uma genica… safa! Agora é que
Ela: Se naquela altura, quando foi da assembleia constituinte da tudo se vai decidir. Não me fiques outra vez para ali feito mudo,
Walhalla, não tivesses ficado pra ali feito paspalho, já a coisa estás a ouvir? Eles só estão à espera de que tu abras a boca. À fé
estava resolvida. de quem sou… é mais forte do que eu… mas tenho a sensação
Ele: Dás­‑me licença, é justamente em situações dessas que eu evito que de qualquer maneira já nos trazem debaixo de olho…
dar nas vistas. Todos se puseram em bicos dos pés quando che‑ Ele: Achas mesmo que sim… mas isso era… ao tempo que anda‑
gou o tipo da Agência Noticiosa Wilhelm… mos já a suar as estopinhas… mas porque é que achas isso?
Ela: E eu a fazer­‑te sinais para te pores também! Ela: Acho? Mas que é isso? Eu sei! Tu tens a ideia de que já foi tudo
Ele: Não, digo­‑te eu! Parece que não me conheces! Directamente por água abaixo. Pois o que eu te digo é que não foi nada por
não dá resultado, ouve mas é o meu plano. O Eisner, vais ver, água abaixo! Tu sempre foste um pessimista no que toca à guerra.
ele é bem capaz um belo dia de ir lá acima e desenrascar­‑se. Eu não te posso dizer tudo, mas a Frankl­‑Singer, a do Sonn
Mas eu tomei uma firme decisão… só estou agora à espera… da und Mon,40 como tu sabes ela dá­‑se muito com a Lubomirska,
próxima vez… sabes, podia armar­‑lhe uma das boas… ele, mas e mais não me perguntes. Havias de ter visto a cara da Dub,
366 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 367
quando me viu a falar com ela. É o que te digo, até espumava. caracol, mas mal também não faz. Assembleia constituinte do
Até o Siegfried Löwy abanou a cabeça, foi o que bastou para eu comité executivo do piquenique dos convalescentes do Bata‑
perceber tudo. Vai ser talvez um dos maiores sucessos, se eu lhão de Caçadores Tiroleses… bem, sou a patrona, não posso
conseguir. Só é preciso é que ninguém fique a saber de nada faltar. Mas olha, espera lá, Departamento de Assistência Militar,
lá na sopa dos pobres, senão as patronas vão aos arames, diz o chá com música, o Fritz Werner vai cantar, vou falar com ele de
Polacco. Mesmo hoje, tive a sensação de que já não pode demo‑ certeza, ele também está a ter uma influência cada vez maior…
rar muito. Sabes, foi quando houve o rebuliço… quando foram Ele: Isso é o que tu dizes!
todos para a outra sala… onde estava o soldado moribundo… Ela: Mas se sou eu que te digo!
mas claro que te lembras, aquele que entrou em delírio porque Ele: Influência, dá vontade de rir…
julgava que a mãe estava lá em baixo, a ela não a deixaram subir, Ela: Ai sim? Pois olha, ainda há pouco ele teve de Lhe mandar
é proibido por causa da disciplina, o Hirsch ainda disse que ele uma fotografia. Ele é um grande admirador. Já viu o Sangue de
há­‑de permanecer nos anais da história, ele próprio o vai pôr Hussardo 50 vezes.41
lá… nessa altura tive a sensação… quer dizer, da maneira que Ele: Por acaso, ele só o conhece de raspão.
eles ali estavam… pus­‑me com o máximo de atenção, olhei para Ela: Se achas que estás mais bem informado que eu! Bem, vamos
aquele lado e reparei claramente que a dama do palácio olhava supor que o Fritz Werner não tem influência, mas, agora ouve
pra nós, é o que te digo, todos apontavam pra nós… ainda quis bem, então e o Spitzer? Posso não confiar em ninguém, mas no
chamar­‑te a atenção… mas nessa altura não podia tirar os olhos Spitzer confio! Basta ver as reacções, como tudo se põe a dar
daquele fulano alto, a ver se ele não ia à frente… e depois eles ares mal ele aparece! O Spitzer hoje em dia é determinante, não
inda se puseram a conferenciar… foi justamente na altura em se fala senão da carreira do Spitzer. É o que te digo, é preciso
que o Hirsch tomava nota do ambiente que eles estiveram a malhar o ferro enquanto nos dão ouro em troca. Não pode é
conferenciar por causa do concerto para as viúvas e órfãos… haver descuidos! Olha, ouve… de que é que serve… agora vê se
nessa altura voltei a ter a sensação… é mais forte do que eu… ganhas coragem, vê se és um homem! Torna­‑te benquisto! Que
(colada a ele, com voz sibilante) agora vê lá mas é se não te pões é que estás para aí a meditar? Então até aqui não te saíste bem?
outra vez com modéstias!… Não é altura pra isso! Cá por mim, Porque é que não há­‑de continuar a ser assim? Ora pronto!
sempre que queiras, mas por amor de Deus, agora não! Agora é preciso é aguentar a pé firme!
Ele: (Em tom decidido, depois de reflectir durante um bocado.) Ele: (De testa apoiada na mão.) As coisas hoje foram demasiado
Que é que temos amanhã? rápidas. Nem deu para uma pessoa se concentrar. Hoje não
Ela: (Põe­‑se precipitadamente a tirar para fora os convites.) Viena estava nos meus dias. Pois foi, tive logo a sensação que alguma
ajuda Ortelsburg… estou­‑me nas tintas, vamos, mas não é obri‑ coisa não estava bem. Reparei logo desde o princípio que eles
gatório. Merenda dos soldados feridos em Thury, não vale um não estavam a reparar em nós, e no fim, aí é que eles estavam
368 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 369
mesmo a reparar em nós, estava distraído e não reparei. É o que estou cheio dele até aos cabelos, estás a ver que eu sei! Só não…
te digo, é o coração… o Hochsinger é da opinião terminante de onde é que eles estavam? A situação… nós não conseguimos
que tenho que me poupar. “Poupar­‑se”, diz ele, “poupar­‑se ao passar, até aí sei eu… tivemos de voltar pra trás…
máximo.” Mas como é que uma pessoa há­‑de… meu Deus… Ela: Não te lembras? Eu até parece que estou a ver a cena! Junto
olha, diz­‑me lá, como é que foi afinal, naquela altura em que à cama do soldado…
estavam todos a falar com o Spitzer, em que ele… Ele: Junto à cama… do da história da mãe?
Ela: Com o Spitzer? Mas isso não foi hoje! Foi no domingo! Ela: Bolas, isso foi hoje!
Ele: Santo Deus… que calvário… domingo… mistura­‑se tudo na Ele: Espera… o cego!
cabeça… está bem… era pior se me tivesse esquecido de falar Ela: O cego da Blanca? Mas isso foi hoje!
com o Sieghart, Deus me livre! Como, ora pois, diz­‑me lá então… Ele: Mas quando o Salvator…
que se passou com o Spitzer, gostava de saber… Ela: O cego do Salvator… mas isso foi terça­‑feira, na policlínica!
Ela: No domingo? Pois, por pouco não tinha já chegado ao ponto O cego, parece que estou mesmo a vê­‑lo! Lembras­‑te, daquela
de o delegado… eu já pensava… não acreditavas? Ora essa, vez… o Hirsch tomou nota…
olha lá, mas isso é mais claro do que a água!? Se não se tivesse Ele: Desculpa, mas isso foi nos caminhos­‑de­‑ferro, quando ser‑
intrometido a enfermeira, aquela escanzelada, tu sabes quem viram os refrescos! Daquela vez que a Löbl­‑Speiser, a que é
é, a que tem a cisma de andar o dia todo a tratar dos doentes, divorciada, se meteu à frente de todos…
uma que toda a gente sabe que é uma excêntrica, justamente Ela: Nada disso, justamente dessa vez é que estava tudo a correr
quando eu queria aproximar­‑me da cama, que azar, lá vem ela, muito bem, se tivesses feito o que eu te disse, eu ainda te reco‑
eu estava a um passo… mendei, atrela­‑te ao Stiasny.
Ele: Um momento! Isso… espera… onde é que eles estavam nesse Ele: Ao Stiasny? Mas isso foi no Guerreiro de Ferro! Estás a ver,
momento? Não foi quando se estava a falar de fazer mais uma agora és tu que estás a fazer confusão!
colecta, assim um dia das gardénias ou coisa parecida, e eles Ela: (Mais alto.) Eu faço confusão? Tu é que fazes confusão! No
acabaram por optar pela moda vienense no lar ou… Guerreiro! Mas quem é que está a falar no Guerreiro?
Ela: Claro, o Trebitsch ainda contou que tinha dado mil coroas Ele: Espera lá… junto à cama… mas porque é que te pões com
anonimamente… charadas, diz­‑me que soldado foi e pronto.
Ele: É um presunçoso de marca, anda agora a fazer­‑se passar por Ela: Pois isso é que não! Estás a ver, se não fosse eu com a minha
amigo íntimo dos Reitzes… estás a ver, agora eu, espera aí… memória…
pois claro que sei! Não me interrompas, foi na altura, eu já te Ele: (Mais alto.) Deixa­‑me em paz com a tua memória! De que é
digo, foi na altura em que se falou também das filmagens no que me serve a tua memória! Bah!… isto tudo não serve pra
hospital, para o filme das Produções Sascha, esse também já nada!
370 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO II 371
Ela: Tu martirizas­‑me… tenho os pés em sangue… e ainda que‑ Ele: Ena! Então junto à cama… o que me parece é que estás a
res que te ajude a lembrares­‑te! imaginar coisas…
Ele: Não grites… eu mando tudo às urtigas… amanhã não vou… Ela: Pela minha saúde! Junto à cama do soldado, quando o
vai tu sozinha à sopa dos pobres… estou farto… estou­‑me nas médico­‑chefe mostrou tudo…
tintas para a guerra!… Era o que nos faltava… como se dantes Ele: Ah… já sei! Porque é que não dizes logo? Aquele dos pés que
não houvesse já correrias que chegassem… sai mas é da minha tinham gelado!?
vista… já não tenho mais pachorra!… Cá por mim, que vá Ela: Pois… e da medalha de valor e mérito!
tudo…
Ela: (Aos gritos.) Pões­‑te a gritar comigo porque não te consegues
lembrar de nada! Já nem sabes a quem é que cumprimentas!
Cumprimentas pessoas que não era preciso e as que é preciso,
não cumprimentas! Sempre que passamos pelo Graben tenho
que te mandar cotoveladas! Eu trabalhei pra ti… tu… tu sabes
o que és sem mim? Sem mim, não passas dum zé­‑ninguém
para a sociedade!
Ele: (Tapando os ouvidos, de olhos no tecto.) Que ordinarice…!
(Depois de um intervalo, durante o qual andou de um lado para
o outro.) Queres então fazer agora o favor?… Será que já te
acalmaste? Então diz­‑me…
Ela: Não digo nada… no domingo, quando eles estavam todos à
volta da cama… eu adiantei­‑me… eles todos…
Ele: Um momento! Deixa­‑me acabar… Em toda a enfermaria…
Ela: (Aos gritos.) Tu dás cabo de mim… agora fazes de conta de
que nem sabes contar até três… tenho os pés em sangue…
ando de Anás para Caifás…
Ele: Eu sei dar valor a isso. Fácil não é.
Ela: Então deixa­‑me em paz e não me moas o juízo… para que
saibas duma vez por todas e não voltes a perguntar… quem
tem razão sou eu e não tu… eu disse­‑te que no domingo repa‑
raram em nós quando estavam junto à cama…
ACTO III

CENA 1
Viena. Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk.
Carrancas e lémures. Formam­‑se grupos.

Um ardina: Edição especiaaaaaal…! Veneza bombardeada!


Pesada derrota dos italianooos!
Um fornecedor do exército: Se tivesse lido o Abendblatt,
você não duvidaria nem por um momento.
Segundo fornecedor do exército: Vinha como notícia
autêntica?
Segundo ardina: Edição especiaaaaaal…! Olhàs 100 mil baixas
italianas…!
Primeiro fornecedor do exército: Mas se lhe estou a dizer,
textualmente: “Kramer vai estar a actuar em Marienbad a par‑
tir do dia 1.”
Terceiro ardina: Kragujevac conquistadaaa!
Segundo fornecedor do exército: Graças a Deus, assim a
minha mulher fica lá mais tempo.
Primeiro: A dilecta esposa?
Quarto ardina: Segunda edição do Tagblaaatt! Olhò comuni‑
cado alemão!
Um oficial: (Para três outros.) Ora viva Nowotny, ora viva
Pokorny, ora viva Powolny, olha lá… tu que sabes de política,
então que é que dizes da Roménia?1
Segundo oficial: (De bengala.) Olha, cá a meu ver, é mas é uma
traição como a da Itália.
O terceiro: Pois… pois é claro.
374 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 375

O quarto: É exactamente a minha opinião… Ontem andei na nobres virtudes humanas, conquista prometeicamente a luz e
farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta! a claridade.
Uma rapariguinha: Oito mil russos por dez cêntimos! O segundo: A guerra é uma verdadeira dadora de vida e porta‑
Uma rapariga: (Meneando as ancas, de si para si.) Ganda bitória dora da luz, uma poderosa admoestadora, proclamadora da
italiana! verdade e educadora.
Uma mulher: (Afogueada, em passo de corrida.) Veneza O primeiro: Que tesouro de virtudes, que julgávamos já afogadas
bombardeada! no pântano do materialismo e do egoísmo da nossa época, não
O terceiro oficial: Que é que ela está a gritar? Veneza…? foi já trazido à luz por esta guerra!
O segundo: Também apanhei um susto… um susto como tu… O segundo: Já subscreveste o empréstimo de guerra?
sabes, não é a nossa, é a outra.2 O primeiro: E tu?
O terceiro: Ah, bom. Ambos: Já nos conformámos com as exigências que Marte nos
O quarto: Ora essa, mas então acreditaste que os nossos… impõe. (Saem.)
O segundo: Não, pensei que aviadores italianos, ora porque é Um velho assinante da neue freie presse: (Em conversa
que… com o mais velho assinante.) Interessante, o que vem hoje
O primeiro: Sempre me saíste um cagarola! Sabem que mais, no jornal, a edição de amanhã do jornal oficial húngaro vai
ontem recebi um postal de campanha! anunciar a concessão do título de conselheiro real ao gerente
O segundo: Aposto que do Fallota! da Ignaz Deutsch & Filho em Budapeste.
O terceiro: Olha, e que é que ele tem andado a fazer, o Fallota, O mais velho assinante: Ele agora passa­‑se cada uma! (Saem.)
continua assim uma espécie de pensador? Ou já vai tendo Um aleijado: (Dois cotos e uma boca aberta, numa das mãos
experiência vivida? Eu cá por mim, agora, no Ministério da atacadores de sapatos, na outra jornais, num tom surdo como
Guerra, também já tenho vivido muitas experiências. um rufar de tambor.) Ediçãospeciaaal! Metade da Sérvia toda
(Entram dois admiradores da reichspost.) ocupada!
O primeiro admirador da reichspost: Já nos conformámos O terceiro oficial: Toda a Sérvia…?
com as exigências que Marte nos impõe. Até agora, temos sido Poldi Fesch: (Para um acompanhante.) Hoje tinha combinado
capazes de suportar os seus fardos e estamos firmemente decidi‑ ir prà farra c’o Sascha Kolowrat, mas… (Saem.)
dos a continuar a suportá­‑los de boamente até ao venturoso final. O quarto: Mas isso inda não é nada, vocês não ouviram falar, 100
O segundo admirador da reichspost: A guerra também tem mil comedores de macarrão mortos foram feitos prisioneiros!
as suas bênçãos. É uma severa preceptora dos povos sobre os (Dois inválidos passam a coxear.)
quais brande a sua férula. O segundo: Isto está cheio por todo o lado de gente que se safou da
O primeiro: A guerra também é benfazeja, desperta as mais tropa, pessoas como nós até já têm vergonha de estar em Viena.
376 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 377
(Passa um grupo de soldados mobilizados, já de meia­‑idade. Ouve­ (O artilheiro olha com ar embasbacado.)
‑se cantar: “E de volta à pátria amada nos iremos reencontrar…”) Pois, que ensinamentos é que tira daí? Veja bem, você é um
O terceiro: Sabeis que mais, vamos ao Hopfner! homem simples, um homem anónimo, há­‑de…
O quarto: Isto hoje está muito morto. Sempre as mesmas gajas… (O artilheiro fica calado, com ar embaraçado.)
O primeiro: (Enquanto vão saindo.) Sabes, a história da Romé‑ O que eu quero dizer é, em que é que pensa quando dispara o
nia… olha que não é caso pra rir… sabes, mas eu acho é que os morteiro, em alguma coisa há­‑de pensar, diga­‑me lá, em que é
alemães de certeza que nos… que pensa?
Quinto ardina: Ediçãããospeciaal…! Bitória em todas as linhas! O artilheiro: (Depois de uma pausa em que examina a Schalek
O avanço dos romenos! da cabeça aos pés.) Em nada!
(Ouve­‑se a voz de um cocheiro: “Em tempo de guerra cobro dez A Schalek: (Afastando­‑se, desiludida.) E quer isto ser um homem
vezes mais!”) simples! Pois é simples, não vou mencionar o homem! (Prosse‑
(Muda a cena.) gue a sua inspecção da frente.)
(Muda a cena.)
CENA 2
Diante das nossas posições de artilharia. CENA 3
Frente do Isonzo. Num posto de comando.
A Schalek: Aquele além não é um homem simples, um homem Entram em cena os primeiros­‑tenentes
anónimo? Ele há­‑de saber dizer­‑me em palavras singelas tudo Fallota e Beinsteller.
o que interessa à psicologia da guerra. A sua missão é puxar
o cordão do morteiro… parece um serviço sem dificuldades Fallota: (A comer.) Olha, tou a comer um bolo, queres um
e, no entanto, que imprevisíveis consequências, tanto para pedacito?
o insolente inimigo como para a pátria, estão ligadas a este Beinsteller: (Aceita.) Ah, então um bolo, dou­‑te os parabéns,
momento! Será que ele tem consciência disto? Será que tam‑ seu sibarita.
bém no plano espiritual está à altura desta missão? É certo que Fallota: Sabes uma coisa, eles podem dizer o que quiserem, mas
os que estão instalados na retaguarda, e tudo o que sabem do no nosso país a arte tá protegida, pra que não aconteça nada
cordão é que não falta muito para que se esgote, não fazem aos monumentos e a raridades assim. Tava mesmo a ler no
também a mínima ideia das possibilidades heróicas de que Deutsches Volksblatt, olha aqui, o “Departamento de Imprensa
justamente o homem simples que está na frente e que puxa o Militar comunica: Na imprensa italiana e francesa está a ser
cordão do morteiro… (Volta­‑se para um artilheiro.) Ora divulgada a mentira tendenciosa de que as nossas tropas e
diga­‑me lá, o que é que sente quando puxa pelo cordão? as tropas alemãs estão a transformar lugares sagrados grego­
378 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 379
‑ortoxo… dodoxos, como igrejas e conventos, em restauran‑ bacano: “Petições como esta poderão ser justificadas quando
tes, cafés e cinemas. Esta afirmação é uma calúnia inteiramente a Entente ocupa territórios. No nosso país, são dispensáveis.
inventada. É do conhecimento geral que as nossas tropas – e o Pois nós somos um povo de cultura.”
mesmo pode afirmar­‑se dos nossos aliados – poupam sempre Beinsteller: Claro que a gente semos um povo de cultura, mas
com o máximo respeito as igrejas e conventos em território de que é que isso serve… por mais que lho digamos cem vezes,
inimigo. No nosso exército, o respeito pelos lugares destinados continuam a berrar que a gente semos bárbaros.
a fins sagrados é um facto indesmentível, que também nesta Fallota: Sabes que mais, não perdem pela demora, já lhes vamos
guerra não foi violado por nenhum dos nossos soldados.” – enfiar isso na tarraqueta. Quando chegarmos a Veneza arma‑
Ora aí está, preto no branco. dos em turistas!
Beinsteller: Dá pra ver a quantidade de mentiras que há na Beinsteller: (Canta.)
guerra. Em Veneza vencedores vamos entrar,
Fallota: Olha, eu próprio sou testemunha, sabes, na Rússia Onde há estátuas e quadros a fartar.
estive eu próprio uma vez num cinema que tinha sido uma C’os belos quadros o lume acendemos
igreja… sabes o que te digo, não se nota nada, nenhum sinal E dum Ticiano a tenda fazemos.
de destruição, impecável! Tchim! Pum! Rataplã! Granadas pra cá!
Beinsteller: Bem, alguns cemitérios judaicos… isso eu vi… Fallota: Mas que cantiga é essa, é fantástico…
nesses sítios houve alguma barafunda, e as lápides funerárias Beinsteller: Não conheces? Mas é a “Canção da Ofensiva” que
foram à vida. Mas o que é que acontece na Grécia aos lugares os voluntários dos Fuzileiros Imperiais cantam. Ainda há mui‑
sagrados ortodoxos, não estive lá, não saberia dizer. tas mais estrofes, cada qual mais bonita que a anterior, tenho­
Fallota: Olha, se em toda a parte fossem tão escrupulosos com ‑as aí em qualquer sítio, vou­‑te fazer uma cópia.
as obras de arte, podiam dar­‑se por contentes. Estava a ler no Fallota: Então vou retribuir. Conheces a “Marcha dos
jornal, olha aqui, “A redacção do Journal de Genève…”3 Macarrões”?
Beinsteller: Da terra da boa genebra. (Risos.) Beinsteller: Já ouvi falar, saiu no jornal de guerra do 10.º
Fallota: “…está a reunir assinaturas de todos os cidadãos suíços Exército Imperial e Real, logo junto com a partitura… mas,
para uma petição a Sua Majestade em que se apela à bene‑ infelizmente, o número está esgotado.
volência e magnanimidade dela para garantir a protecção das Fallota: Calma, eu sei a marcha de cor, ora ouve. Sabes o que é
obras de arte…” “tchif e tchef ”?
Beinsteller: A defecção das obras de arte. (Risos.) Beinsteller: Claro que sim, é o ruído de quando se recarrega a
Fallota: “…nos territórios de Itália ocupados pelas tropas espingarda.
coligadas.” Há uma nota da redacção a propósito… olha que Fallota: Então e “tchou”?
380 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 381
Beinsteller: É a detonação final da espingarda Mannlicher. E pràs bandas do Tirol,
Fallota: Bem, se já sabes isso… ora então ouve: Vão ficar sem ver o sol.
Tchif, tchef, tchou, o macarrão já se lixou, Tchif…
Tchif, tchef, tchou, o macarrão já se lixou.
Niente per Villaco,
Uns ao chão caíram, Suas caras de macaco.
E os outros fugiram. Tchif…
Tchif, tchef, tchou, o macarrão já se lixou.
E toda essa ralé
Queriam fazer­‑se engraçados, Corre­‑se a pontapé.
Mas saíram chamuscados. Tchif…
Tchif…
E a toda essa canalha,
O Annunzio e o Sonnino Não há nada que lhe valha.
Vamos picá­‑los bem fino. Tchif, tchef, tchou, o macarrão já se lixou.
Tchif… Beinsteller: (Que acompanhou todas as estrofes com gestos e
interjeições, entusiasmado.) Tchif, tchef, tchou! Olha lá, mas
Ao Vittorio Emanuele isso é fantástico! Ah! ah! ah!, estupendo! Sabes, um humor
Vamos­‑lhe curtir a pele. destes só é possível em alemão, eles não têm uma coisa assim
Tchif… na língua de trapos deles, não conseguem!
Fallota: Ora, e o humor na frente de batalha… no número…
Vão levar na tarraqueta olha, tens que ler.
Té que se ponham na alheta. Beinsteller: Calma… já conheces isto? Sabes, é que eu colec‑
Tchif… ciono. (Saca de um caderno de notas.) Olha, isto é do jornal
de guerra do grupo de exércitos Linsingen: “Um homem feliz.
E em lugar de Trieste, Um soldado raso (cuja amada aceitou o pedido de casamento):
Leva na fuça essa peste. Acredita, minha querida, não me sentia tão feliz desde a vez
Tchif… em que me despiolharam.”
Fallota: (Torce­‑se de riso.) Olha, já conheces o livro que acabou
de sair, O Piolho Triunfal?
382 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 383
Beinsteller: Claro. CENA 4
Fallota: Um momentinho… já conheces isto? Sabes, é que eu colec‑ Em Jena. Dois estudantes de Filosofia encontram­‑se.
ciono. (Saca de um caderno de notas.) Olha, isto é do jornal de guerra
do 2.º Exército: “Prossiga! Um recruta que chegou à frente de batalha O primeiro estudante de Filosofia: Ah, meu velho, ouve
só há algumas semanas tem que fazer as suas necessidades…” o que te digo, não há dúvida que a vida é bela, o vencedor de
Beinsteller: Esse está mas é com pressa, não podia esperar, o Skagerrak5 é doutor honoris causa pela nossa faculdade!
cabrão. O segundo: Manifestamente, por causa das suas opiniões sobre
Fallota: Ouve lá, a piada vem a seguir. Tem, portanto, que fazer Goethe.
as suas necessidades e dirige­‑se a uma latrina mesmo junto à O primeiro: Como assim?
rua da aldeia. Eis que passam dois tenentes. O nosso recruta O segundo: Caramba, então não sabes que ele fez uma interven‑
começa por não saber bem o que fazer. Finalmente, levanta­ ção sobre o poema do submarino de Goethe?
‑se e faz a continência regulamentar em sentido. A rir­‑se, res‑ O primeiro: Como, Goethe reconheceu de maneira profética…?
ponde um dos oficiais: “Sentado, prossiga!” Olha, isto era uma O segundo: Nã, não foi Goethe em pessoa, estou­‑me a referir ao
coisa boa pra contar na Tia Fanni.4 famoso poema:
Beinsteller: (Torce­‑se de riso.) Um momentinho… já conheces Por sob estas águas ronda um ás.
isto? Olha, é do jornal de guerra do 10.º Exército, sabes, é mais Da frota inglesa a custo sentirás
uma anedota inocente, coisa de crianças, mas com graça. Ora Sequer a brisa leve…
ouve: “A voz da inocência. Eu uso barba completa. Um dia, vou O meu barco foi ao fundo com fragor.
passear e encontro­‑me com um petiz amoroso de uns três ou Ora espera o pior,
quatro anos. Olho para o senhorito… ele olha para mim. De Ao fundo irás em breve!6
repente, estende a mão: ‘Homem’, diz ele, ‘porque é que tens O primeiro: Divino!
tantos cabelos na cara?’” Zois. O segundo: Bem, na aparência quem diz o texto é um capitão
Fallota: (Torce­‑se de riso.) Pois, o Zois tem cá um humor! inglês, mas o poema, na verdade, é de Goethe, não é assim?
Beinsteller: Ele redige­‑te o jornal de guerra de uma maneira O primeiro: Ora, e então Scheer?
que dá gosto. Já o nome é tão divertido – barão Michelangelo O segundo: Scheer exprimiu­‑se com entusiasmo sobre o poema,
Zois… Michelangelo… acha que ele é de trás da orelha e deseja que o receio do capitão
Fallota: Sabes, esse tipo é um pintor, assim um italiano, mas inglês não demore a tornar­‑se realidade.
sabes, o Zois não é da família. O primeiro: Hurra! Pois, agora percebo porque é que justamente
Beinsteller: Pois não, ora essa, da família dum macarrão! uma faculdade tão clássica como a da nossa Jena… Schiller
(Muda a cena.) de certeza que ia ficar contente.7 Muito pouco antes, o nosso
384 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 385
reitor tinha lido a um desses pacifistas de caca a proibição do jornal) “Em Kiel, por ocasião do Pentecostes, reuniu­‑se em
comando geral que trocou as voltas a esse sujeito. Tu leste o congresso a Sociedade Schopenhauer, que tomou por missão
discurso que o nosso reitor pronunciou na Semana de Filosofia divulgar e gravar na consciência das pessoas as ideias deste
de Lauterberg? Coisa fina. É o que te digo, isto vai de vento em tão popular quanto ignorado filósofo. O congresso culminou
popa. Como disse Kluck, “O nosso objectivo é atingir a cabeça na visita ao porto militar, altura em que a Marinha Imperial,
do inimigo no coração!” Pois é, pois é, então agora Scheer é representada pelo capitão de corveta Schaper, esclareceu os
doutor por Jena. participantes, tanto através de uma palestra como de demons‑
O segundo: Schiller era cirurgião militar. Em contrapartida, trações práticas, incluindo repetidas imersões, sobre os segre‑
Hindenburg não tem, infelizmente, nenhumas ligações com dos de um submarino da classe superior.”
as belas letras. O segundo: Não sabia que Schaper era schopenhauriano.
O primeiro: Nã. Desde que, naquela altura em que ele mandou (Muda a cena.)
a russalhada para o charco, Königsberg o fez doutor honoris
causa em Filosofia… bem, era a única coisa decente que se CENA 5
podia fazer, mas tirando isso? Nunca se lhe ouviu sequer uma Hermannstadt. Diante de uma livraria alemã encerrada.
palavra…
O segundo: Bem, de quando em vez, de qualquer modo, uma Um mosqueteiro prussiano: (Bate na porta.) Abra, se não
sentença como “Força neles!” ou “Avante!”. quer que lhe façamos o estaminé em fanicos… nós, alemães,
O primeiro: Ah, se calhar isso não é da autoria dele. estamos famintos de livros.
O segundo: Mas agora mesmo ele cunhou a sentença: “Cuidado O livreiro alemão: (Abre.) É pela alegria de ouvir esta ameaça,
com os derrotistas.” não por medo, que lhe obedeço. A minha ambição como
O primeiro: Aí, só se fosse a Universidade de Berlim… a frase livreiro alemão é poder abastecer de livros alemães o maior
não tem o mínimo traço alemão. número de irmãos alemães. Pois nós, alemães, só nos satisfaze‑
O segundo: Então como é que ele devia ter­‑se exprimido? mos com o melhor. O quê, estais admirados, irmãos alemães,
O primeiro: Como? É muito simples: “Um derrotista é um filho por encontrar uma loja cheia de bons livros alemães tão longe
dum cabrão!” da pátria alemã? Matai aqui sem cerimónias a vossa fome de
O segundo: Bem… de facto, só a marinha é que parece estar cultura genuinamente alemã, enquanto eu me vou sentar sem
ancorada na filosofia. mais, para relatar ao Boletim dos Livreiros Alemães este epi‑
O primeiro: Ou vice­‑versa. sódio alemão.
O segundo: Como assim? (Muda a cena.)
O primeiro: Bem… ora ouve lá: (lê em voz alta uma notícia de
386 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 387
CENA 6 embora. Já estou farto. A uma gentinha miserável assim, eu
Na mercearia de Vinzenz Chramosta. não vendo nada! (Os presentes afastam­‑se resmungando. Entra
em cena um inspector dos mercados.)
Chramosta: (Para uma mulher.) O queijo de barrar? Cem gra‑ O Inspector: Inspecção!
mas, quatro c’roas!… Quê, é muito caro? Prà semana vai cus‑ Chramosta: (Atónito.) Inspecção?
tar seis, se não está contente, vá à casa ao lado e compre uma O Inspector: Mostre­‑me a factura da alface.
porcaria qualquer, vai ver como lhe fica mais barato, tenha um Chramosta: (Anda à procura durante um bom bocado, entrega
bom dia!… (Para um homem.) Que é que vossemecê quer? a factura, hesitante.) Bem… isso… não… faz fé. Inda tive que
Quer provar? Olhe, meu caro senhor, mas julga qu’isto é o quê? pagar por cima prà conseguir.
Tamos em guerra! Se gosta mais de porcarias, então prove­ O Inspector: (Toma nota.) Preço de compra, quatro coroas e 50.
‑as!… (Para uma mulher.) Pra qu’é que estais aí aos empurrões, Qual é o preço de venda?
chega a vez a todos! Que é que vossemecê quer? Um pepino? Chramosta: Bem… oito! Não sabe ler? Atão julga que nos dão
É ao peso, mas digo­‑lhe já, duas c’roas o mais pequeno!… os produtos de graça? Olha que esta… os preços quem os fixa
(Para um homem.) Quê? Um chouriço? Ponha­‑se a andar, seu é a gente, meta isso na cabeça! Aí quem é competente é a gente!
pateta, onde é que a gente agora arranja chouriços… as pes‑ Se os meus fregueses estão de acordo, as autoridades não têm
soas têm cada ideia, é mesmo fantástico!… (Para uma mulher.) que meter o nariz! Estamos em guerra!
Qu’é que está pr’aí a olhar? Tá bem pesado, o papel também O Inspector: Tenha cuidado e não continue nesse tom! Vou par‑
conta! Tamos em guerra! Se não gosta, deixe ficar, mas não ticipar de si por especulação!
me apareça cá mais, sua sonsa, é o que lhe digo!… (Para um Chramosta: O quê? Seu cachorro miserável! Quer dar cabo
homem.) Olhe aí, não me fazem cá falta os seus comentários, de mim? Eu é que lhe dou cabo do canastro! (Atira contra o
julga que eu não ouço? Hoje não lhe vendo népias… de fregue‑ inspector, sem o atingir, uma taça de porcelana com 12 quilos
ses como você já tenho o saco cheio, ponha­‑se mas é no olho de queijo para barrar que estava em cima do balcão.)
da rua!… (Para uma mulher.) A alface são 12 c’roas!… O quê? O Inspector: Vai ter que assumir as responsabilidades por este
O que está escrito? Pois, está escrito oito c’roas, tá bem, mas o comportamento!
preço são 12, e pronto. São os preços máximos e não faço nem Chramosta: O quê? Eu…? Mas, ó cavalheiro, por acaso ofendi­‑o?
um tostão furado de desconto! Se hoje não quer levar, venha Ora pois! Meu caro senhor, inda tem que comer muita broa!
amanhã, o preço vão ser 14, muito bom dia, seu espantalho, e Mas que é que você é? Eu já lhe digo quem é que eu sou e quem
então adeuzinho, tá bem? (Resmungos entre a clientela.) Que é que você é! De mim não vai participar… não vai, não! Eu
ouço eu? Protestos? Se ouço mais um murmúrio, mando tudo subscrevi empréstimos de guerra, sabe o que isso quer dizer?
prà choldra! Esta agora! Por hoje, andor, podem­‑se ir todos E afinal… porque é que se vem meter comigo aqui? Eu sou
388 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 389
contribuinte, é bom que saiba! Tou­‑me a cagar pra si! Já tou O segundo: Não sabe?… espere… mas é aquela… do balé, como
farto que me venham pr’àqui meter o nariz nos preços… seu é que ela se chama… a Speisinger! Sabe, a que anda com o
ordinário, devia ter vergonha… se não sair já da minha loja, Pollack, o ruivo!… A propósito, que é que me diz, o velho
inda lhe faço alguma! (Pega em duas facas.) Biach está com psicose de guerra!
O Inspector: (Retirando­ ‑se na direcção da porta.) Estou a O primeiro: Não me diga! Como é que isso se manifesta?
avisá­‑lo! O segundo: Uma palavra em duas que ele diz é tirada do edito‑
Chramosta: O quê? Inda me avisa? Seu funcionariozeco! Seu rial… anda com os nervos em franja.
unhas­‑de­‑fome! Vou dar cabo de si! (Atira­‑lhe com um cesto de O primeiro: Com os nervos em franja sempre ele andou. Esfarrapa­
avelãs.) Grande paspalho! ‑se todo pela lealdade dos Nibelungos. É de ideias fixas!
(Muda a cena.) O segundo: Está bem, mas como agora? Fica em polvorosa
quando uma pessoa não se lembra logo. Imagina que as indi‑
CENA 7 rectas da Entente são a pensar nele. Além disso, constataram­
Dois conselheiros comerciais a sair do Hotel Imperial. ‑se indícios de mania das grandezas.
Um inválido passa a coxear. O primeiro: Como é que isso se revela?
O segundo: Ele imagina que é Ele.8
Primeiro conselheiro comercial: (Olhando em volta.) Não O primeiro: Que coisa triste.
há carros? É um escândalo! O segundo: Então e como é que estão as coisas, sempre conse‑
Ambos: (Apontando com as bengalas para um automóvel que guiu pôr o seu rapaz naquela coisa… no Arquivo Militar?
passa.) Táxi…! O primeiro: Sim, mas como tem uma hérnia, espero que eles o dei‑
O primeiro: (Gritando a um cocheiro.) Olhe lá, está livre? xem sair em breve. Ele tem ambições mais altas, sabe como é, Ben
O cocheiro: (Encolhendo os ombros.) Estou ocupado! Tiber quer dar­‑lhe um lugar de dramaturgista. Ele tem uma hérnia.
O segundo: A única coisa que nos resta é que ainda vamos O segundo: O meu mais novo tem talento. Também estou com
arranjando que comer… (São rodeados por mendigos de todos esperança… Mas agora estou ansioso é por que me saia bem
os tipos.) O jovem Rothschild também vai envelhecendo. No a coisa com o Leopold Salvator, tenho audiência marcada para
máximo, terá… há quanto tempo é que foi, espere… amanhã… a minha mulher vai ter um casaco de astracã de prenda.
O primeiro: Está a ver esta atmosfera em Viena? Sabem o que é (Uma mendiga com uma perna de pau e um braço amputado
que as pessoas têm? Eu digo­‑lhe o que é que as pessoas têm. está parada na frente deles.)
Estão cansadas da guerra! Até um cego vê isso! (Um soldado Ambos: (Apontando com as bengalas para um automóvel que
cego está parado à frente deles.) Rápido, olhe, quem é aquela passa.) Táxi…!
que vai a entrar? (Muda a cena.)
390 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 391
CENA 8 escapa nada, aquele seu artigo sobre Roosevelt estava escrito
Entra o velho Biach, pensativo. com muita verve, um bocadinho de elogios a mais, veja lá então
se me entrega rapidamente o artigo “O que é que esperamos
O velho Biach: O nariz de Cleópatra era um dos seus maio‑ do nosso príncipe­‑herdeiro”!12 Você exagerou um pedaço no
res encantos. Sibila era filha de operário. (Olhando cautelosa‑ seu apoio aos americanos, mas isso não há­‑de ser coisa que lhe
mente em redor.) Tell diz, cada qual vai à sua vida e a minha é venha a trazer problemas. – E você, que é que se passa com
o assassínio.9 (Depois de uma pausa, decidindo­‑se bruscamente a águia bicéfala, então ainda não está pronta? Faça soprar um
e com um movimento impetuoso.) A primeira coisa agora tem vento novo pelas asas férreas da águia bicéfala! – Ó homem,
de ser o caixeiro­‑viajante esticar as antenas e sondar a clien‑ mas então que é que se passa consigo, meu caro? Desde que
tela. (Satisfeito.) Ivangorod já está no estertor da agonia. (Com regressou do quartel­‑general você passa a vida a mandriar!
satisfação malévola mal disfarçada.) Poincaré está abalado e Habituou­‑se lá a uma rica vidinha! Mas vou­‑lhe dizer uma
Lloyd George humilhado. (Com garra.) Ingleses e alemães vão coisa. Você pode achar que é suficiente Sua Alteza Imperial,
encontrar­‑se em Estocolmo. (Sai.) o Ilustríssimo Arquiduque Friedrich, ter ficado entusiasmado
(Muda a cena.) com os seus poemas de guerra, mas pra mim não basta, nem
de longe nem de perto! Pois então veja se entrega depressinha o
CENA 9 hino aos exércitos coligados, se não quer ser chamado à ordem!
Arquivo Militar. Um capitão. Os literatos. – Então, Werfel, como é que vai o manifesto por Gorizia? Não
o faça muito bombástico, ouviu? Tudo com conta e medida!
O capitão: Você aí, você vai então redigir as propostas de lou‑ Você tem sentimento a mais, isso é mais próprio para a vida
vor, como crítico teatral do Fremdenblatt10 não há­‑de ser coisa civil. – Ah, pois, você aí, pois é claro! Pois é, você é um expres‑
que lhe apresente dificuldades. – Ora bem, e você, bem, o seu sionista ou coisa que o valha, precisa sempre de um tratamento
artigo sobre a escultora francesa, Auguste, como é que ela se especial. Mas isso não lhe vale de nada, eu espero justamente
chama, qualquer coisa parecida com Rodaun,11 o artigo estava de si que deite mãos de uma vez por todas ao estudo “Até ao
muito giro, quer dizer que com uma pena como a sua não lhe último hausto de homens e cavalos” de que o encarreguei, com
há­‑de custar escrever o prefácio para a nossa publicação funda‑ mil raios! A verdade é que “A investida de Gorlice” não lhe saiu
mental, Sob o Pendão dos Habsburgos, mas, sabe, tem que ser nada mal! (Para um ordenança que acaba de entrar.) – Mas que
coisa empolgante, uma coisa que cale bem fundo nas pessoas, é que foi agora? Ah, está bem. (Recebe algumas fotografias.) Isto
e veja lá, é claro, se não se esquece de Sua Alteza Imperial, a tem força! Sabem, são as fotografias da execução de Battisti. Ah,
IIustríssima Senhora Arquiduquesa Maria Josefa! – E você, ó ah, mas Lang, o nosso carrasco, ficou mesmo bem! Ora bom,
Robert Müller, então que é que se passa consigo, a mim não me isto é para si aí, para arrumar no arquivo! Escreva as legendas
392 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 393
e junte às outras, as dos legionários checos e dos ucranianos e os cozinheiros tenham ficado zangadíssimos, mas Sua Alteza
assim. – E isto? Pois, onde é que se há­‑de classificar isto? Sabem, Imperial divertiu­‑se imenso. Pois, e quando a seguir regressam
é aquele magnífico poema sobre a farra na casa de Sua Alteza às suas posições, ai Jesus…
Imperial, o Ilustríssimo Senhor Arquiduque Max, no monte Com tamanhas carraspanas
Fae, isto vem mesmo a calhar para os nossos poetas, ora ouçam: Ficou tudo de pantanas.
Lá em Fae o comandante, Estavam todos c’umas caras! – Ora bem, este poema interessa
Sua Alteza mui galante, ao Arquivo Militar, desde logo, bom, é claro, não apenas pelo
Aos convivas em redor humor na frente de combate e por celebrar a hospitalidade de
Serve o bom e o melhor. Sua Alteza Imperial, mas também por se tratar de uma rari‑
A porta tem franqueada, dade! É que ele foi impresso na tipografia de campanha sob um
Pra cada um, farta pratada. fogo cerradíssimo de artilharia, é de se lhe tirar o chapéu, bem,
Ai Jesus, mas depois a coisa corre mal. A seguir vem aquela parte e há que admitir que está impresso com muito bom gosto.
muito pândega em que eles vão enchendo o bandulho cada vez – Olhe lá, ó cabo Dörmann, isto que lhe sirva de exemplo, veja
mais até que há alguém que, é claro, já não aguenta mais… se esporeia o seu corcel das musas, desde aquela altura em que
Todo se desabotoa, espetou nos sérvios e nos russos a ponta dos chuços, você anda
Camisa, calças, à toa. muito calado. Mas que é que se passa? A força que aquilo tinha:
Pois, e no fim, é claro, temos vomitanço. Que pândego! E as Levam valente apertão
coisas que ainda lá acontecem! O francês e o bretão.
O ordenança, que doideira, Nessa altura sim, você era um autêntico Dörmann de ferro!13
Toma­‑o pela camareira… E nós vamos, sem apelo,
E é com terno desejo Chegar­‑vos a roupa ao pêlo.
Que o belisca sem pejo. Fanfarrões da vossa igualha
Mas sobre isso é de razão Corremos nós à metralha.
Pôr o véu da discrição. Ora pois… corra­‑os à metralha! Mas porque é que está com
Muito bom! No dia seguinte, pois é claro, continua tudo nos copos. um ar tão macambúzio? Pois é, não me custa a perceber que, é
Do barril o fundo alcança. claro, preferia estar em acção na linha da frente em vez de aqui
O que, para encher a pança, dentro. É contra a sua natureza!
Cada qual juntou ao pão Dörmann:
Para alegrar a refeição… Invejo a quantos tombaram na luta.
Pois, não é difícil de imaginar, bem, é claro que não admira que Só o dever me separa da meta absoluta!
394 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 395
O capitão: Muito bem, isso é que é dar um bom exemplo. – Ora de ser engolido pelas goelas da multidão… eis senão quando
pois, e você, ó Hans Müller, você não precisa de incitamentos, vejo um cortejo de gente simples, com a nossa boa bandeira
você é um tipo trabalhador. O quê, fez outra vez um trabalho amarela e negra à frente, a movimentar­‑se direito à Porta de
extra? Olha, olha, “Três Falcões sobre o Lovcen”! Muito bem! Brandeburgo. A multidão canta o nosso amado hino nacional.
Não deixarei de falar de si ao brigadeiro. Eu, sem pensar duas vezes, ponho­‑me a cantar também. “Deus
Hans Müller: Nós reconhecemos que o dever é mais doce, nós mantenha, Deus proteja”, canto bem alto, passando à estrofe
destruímos sob os nossos passos cadenciados uma vida inútil seguinte. Então, um homem que marchava a meu lado olha
que estava mais próxima de uma aparência ilusória do que da um segundo para mim, com ar cordial, depois enfia o braço
realidade. debaixo do meu, aperta­‑o contra si em jeito de camaradagem…
O capitão: É isso mesmo. Mas sabe o que é que me interessa? O que O capitão: Ah, ah, ombro com ombro.
eu queria agora era ouvir da sua boca um relato autêntico sobre a Hans Müller: …e entoa a mesma letra que eu estou a cantar,
maneira como se comportou à altura quando rebentou a guerra. lendo­‑a nos meus lábios. Este bravo homem – era um fulano de
Bem, aquele artigo maravilhoso sobre “Cassiano na Guerra”, sabe, bigode, não propriamente bonito e também não o que costuma
aquele em que você encosta o lóbulo da orelha à estepe russa, bem, chamar­‑se muito elegante –, este homem beijei­‑o na boca em
esse sabe­‑se, esse é claro que você o escreveu em Viena, ficámos frente da embaixada da Áustria­‑Hungria.
todos abananados com a perfeição do retrato. Mas quando reben‑ O capitão: Não me diga! Ora, se o Szögyény o viu da janela, deve
tou a guerra… estava você em Berlim pessoalmente, não estava? ter tido cá uma destas alegrias!
Então, portanto, é claro que você andou às beijocas nos nossos alia‑ Hans Müller: Provavelmente, assim contada, a cena tem um
dos… sabe, é que há gente que desconversa, dizem que também sabor patético…
fez isso em Viena, na Ringstraße, o Kraus da Fackel e gente assim, O capitão: Ora essa!
sabe, há pessoas que só abrem a taramela pra dizer mal. Mas diga­ Hans Müller: …e de certeza que não me vale o aplauso dos ultra­
‑me então agora como é que as coisas se passaram, se você naquela ‑estetas… (Resmonear entre os literatos, gritos de desaprovação.)
altura estava em Berlim ou se estava só em Viena… é que isso é O capitão: Silêncio!
uma coisa que é importante para o Arquivo Militar, claro. Hans Müller: Mas eu sei que, se a Gioconda alguma vez des‑
Hans Müller: Meu capitão, com sua licença, toda a gente sabe cesse da sua moldura e me oferecesse o sorriso sem igual dos
que, efectivamente, vivi o rebentar da guerra em Berlim e que seus lábios, o seu abraço não me faria tão feliz nem me abalaria
as coisas se passaram exactamente como as descrevo no meu no mais íntimo de mim como o beijo fraternal nos lábios desse
artigo “A Alemanha levanta­‑se”, de 25 de Agosto de 1914. Está‑ maravilhoso homem alemão.
vamos, sem esperar nenhum ataque, na Neustädtische Kirch­ O capitão: (Comovido.) Muito bem! Olhe, e que outras coisas é
straße, um espião russo, ainda estou a ver a cena, tinha acabado que você viveu naquela grande época?
396 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 397
Hans Müller: Meu capitão, com sua licença, o que me vai ficar mente comigo. E sabe o que é que alvoroça o coração daquele
para sempre gravado na memória é aquele meio­‑dia de Verão pobre convidado, sem espírito militar, no meio deles? Por
em que homens e mulheres se acercaram do altar da basílica entre o véu das lágrimas que rebentam abruptamente, vejo ao
real para invocar o Deus das armas alemãs. No coro alto da lado do seu nobre senhor um outro, o meu próprio imperador,
basílica está já sentado o Kaiser, aprumado, de elmo na mão. o meu cavalheiresco e idoso e bondoso senhor…
A seus pés, o mar negro… O capitão: Nada de lamechices, Müller!
O capitão: Ah, bom, então ele estava já em Constantinopla. Hans Müller: …e do mais fundo da minha alma misturo agora
Hans Müller: …dos fiéis. O órgão retumba sonoramente lá fraternalmente a minha prece com a deles: “Ó Deus, que estais
do alto, o Sol penetra pelas janelas e tal um grito sagrado sobre as estrelas, abençoai nesta hora também Franz Joseph I,
ergue­‑se… abençoai a minha velha, querida pátria, para que se mantenha
O capitão: Bem, bem, sabe, a descrição de ambientes interessa­ forte e floresça… pelos séculos dos séculos… abençoai os meus
‑me menos do que o que você fez naquela altura pessoalmente. irmãos que agora partem para o combate pela nossa honra, ao
Hans Müller: Homens e mulheres dão­‑se as mãos, o órgão encontro das tribulações e da morte, abençoai­‑nos a todos, o
retumba… nosso futuro, o nosso punho, o nosso destino… Senhor Deus,
O capitão: Vamos ao que importa! que tendes na vossa mão a sorte dos homens e dos povos, do
Hans Müller: Às suas ordens. Um nó ardente sufoca­‑me a fundo do mais ardente, mais fervoroso amor à pátria, clama‑
garganta, ainda consigo controlar­‑me, pois estou no meio de mos todos, todos a vós…” Senhor capitão, com sua licença, o
tantos homens valentes e contidos, e nestes dias não podemos artigo acaba assim.
dar parte de fraco. Mas agora olho para o Kaiser Wilhelm que, O capitão: O artigo está ainda imbuído dum sentimento autên‑
como num indescritível excesso de emoção, inclina profunda‑ tico. Mas diga­‑me, o que é que os jornais pagam agora por uma
mente a cabeça pálida, deixa os sons impressionantes passar­ prece… ah… quer dizer, por um artigo.
‑lhe pela fronte… Hans Müller: Meu capitão, com sua licença, 200 coroas, mas,
O capitão: Ah, olha que uma destas! em verdade lhe digo, também o teria feito só pela bênção de
Hans Müller: …com um gesto de fervor aperta o elmo bem de Deus! Eia!
encontro ao peito. Nessa altura, já não tenho mais remédio… O capitão: Não, você ganhou mais que isso, a si foi­‑lhe conce‑
O capitão: Ora, mas então que é que lhe aconteceu? dida a honra mais elevada a que pode aspirar um homem da
Hans Müller: …desato alto aos soluços… imprensa – o imperador alemão recebeu­‑o em audiência no
O capitão: Não me diga! palácio imperial de Viena, ele é um admirador da sua musa,
Hans Müller: …e eis que os homens valentes ao meu lado, enca‑ não estou a trair nenhum segredo, até se diz por aí que você
necidos e contidos, todos eles soluçam sem vergonha junta‑ passou as palhetas ao Lauff. Aproveito a oportunidade para lhe
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dar os meus parabéns. Olhe, como é que foram as palavras de Alemanha, em que este pede que não se roube o poeta dos Reis
boas­‑vindas de Sua Majestade, você descreveu isso tão bem… à sua actividade criadora com as tarefas que tem atribuídas no
Hans Müller: O Kaiser vem ao meu encontro até junto da Arquivo Militar Imperial e Real. (Resmonear entre os literatos.)
porta, estende­‑me a mão, olha­‑me com os seus olhos grandes Silêncio! – Adeus, Müller! Mas sabe que mais? (Comovido.) Os
e brilhantes e o mais benévolo dos sorrisos e diz: “O senhor três falcões sobre o Lovcen… acabe ainda de nos escrever isso!
brindou­‑nos na guerra com um tão belo poema… o que é que E quando puder então trabalhar outra vez para si e, é claro,
podemos esperar de si na paz?” se sintonizar com a produção de tempos da paz… não há­‑de
O capitão: Um entremez desbragado – era o que você devia ter deixar às vezes de relembrar as horas que passou durante o seu
dito. serviço militar e poderá dizer: apesar de tudo, foram tempos
Hans Müller: Meu capitão, com sua licença, perante aquela voz bons… e, espero, sentir­‑se ainda ligado ao Arquivo Militar.
toda a vergonha se desvanece de imediato… mas mesmo assim Hans Müller: Para a vida e para a morte!
não consegui arranjar coragem, meu capitão! (Muda a cena.)
O capitão: Pois é, é uma situação delicada. Mas agora diga­‑me
só, o que é que o impressionou mais no imperador alemão? CENA 10
Hans Müller: Meu capitão, com sua licença… tudo! Um laboratório químico em Berlim.
O capitão: Mais nada?
Hans Müller: Ainda estou tão abalado que não seria capaz de Professor Delbrück, conselheiro privado do governo:
descrever o poder mágico da personalidade, toda aquela dig‑ (Meditando.) Os jornais ingleses desde há algum tempo que
nidade natural, o brilho daqueles olhos, que não nos largam andam a divulgar toda a espécie de notícias sobre o estado de
e que, como o espelho de uma natureza sem mácula, ética no nutrição pretensamente mau da população alemã. Não fala
sentido mais profundo… muito a favor do grande espírito combativo do povo inglês ter
O capitão: Já chega! Pois é, sabe… que o imperador alemão se que estar constantemente a reforçar o seu moral com a divul‑
deixe levar por um judeu de Brünn, é claro que, no fim de con‑ gação de notícias destas, todas elas em contradição aberta com
tas, não é caso para admirar. Mas que um judeu de Brünn se os factos. Pela parte médica, houve uma confirmação expressa
deixe levar pelo imperador alemão – isso é que é inacreditá‑ da boa qualidade da actual dieta de guerra, à qual ficamos a
vel! (Chega um ordenança com uma carta.) Mas que é que foi dever que as doenças, tanto em homens como em mulheres,
agora? (Lê.) Olha que esta! É a seu respeito, Müller. (Müller estejam em permanente retrocesso. Já sem falar nos bebés, que
apanha um susto.) O nosso brigadeiro ordena a sua dispensa são cuidados de forma completamente adequada e exemplar.
imediata do Arquivo Militar. (Müller empalidece.) Rece‑ Até a Agência Noticiosa Wolff se vê forçada a admitir que,
bemos uma carta pessoal de Sua Majestade, o imperador da em tempo de guerra, os nossos hospitais estão muito menos
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lotados do que no tempo da paz e que a forma de vida mais amassado e cozido, e uma apetitosa salada! Ó altiva Vindo‑
simples teve para muitas pessoas um efeito directo na pro‑ bona, junto à provecta torrente dos Nibelungos, até chegar esse
moção da saúde. E agora tenho a intenção de explicar na 66.ª dia há que aguentar a pé firme! (Gritos: “Bravo!”) A magnífica
assembleia­‑geral da Associação dos Destiladores da Alemanha investida contra os latinos, que esperamos vá expulsar de vez
que ficamos a dever este sucesso em primeira linha à levedura essa corja dos Abruzos das eternas montanhas tirolesas, foi um
mineral. (Coloca­‑se em atitude de orador.) O teor de albumina êxito! (Gritos: “Hedl!”) Esperamos confiantes que também o
da levedura mineral, que determina o seu valor nutritivo, urso moscovita volte para casa de rabo entre as pernas, com
consegue­‑se preferencialmente pela utilização de ureia. Meus as patas a sangrar e moribundo! E atrás deles os nossos cohen­
senhores! Estamos a assistir ao triunfo do puro espírito sobre ‑patriotas15 mais o seu cheiro a alho! Heil! (Gritos: “Bravo!”
a matéria bruta. A química produziu o milagre! Um processo “Hedl!” “Viva Teut!” “Viva Pogatschnigg!”)
iniciado já em 1915 foi retomado com grande sucesso: a subs‑ Uma voz: Marranos! (Risos.)
tituição do amoníaco sulfúrico por ureia na produção da leve‑ A senhora Pogatschnigg: (Toma a palavra.) “Pedra roliça não
dura. Meus senhores! Se a ureia se pode utilizar desta maneira, cria bolor”, assim reza um bom adágio alemão. Como disse Bar‑
coloca­‑se também a possibilidade de utilizar com o mesmo fim bara Waschatko, a mais alemã das alemãs, na Ostdeutsche Post,16
a urina e o estrume liquefeito. (Sai de cena.) “findamos o ano velho a fazer malha e começamos o novo a
(Muda a cena.) fazer malha”. Nunca os nossos pensamentos estiveram mais
com os que estão lá fora na frente de batalha do que agora que a
CENA 11 neve alterna com a chuva e o gelo, e nós nos perguntamos o que
Reunião da Liga dos Queruscos em Krems.14 será mais duro para os nossos valorosos combatentes: a esfera
vermelha do Sol que pende em Fevereiro de um céu gélido ou
Pogatschnigg, mais conhecido por Teut: … Wotan é a água que, melancolicamente, goteja sem cessar para as trin‑
minha testemunha, já não vêm longe os tempos em que abun‑ cheiras – tuc, tuc, tuc? (Gritos: “Hedl!” “Bravo!”) Mas em nós,
darão de novo a comida e a bebida, em que de novo nos delei‑ mulheres, a verdade é que os sorrisos se misturam facilmente
taremos com um belo pedacinho de perna de um porco bem com as lágrimas e, mesmo no meio da dor, mostramos ainda
cevado e tostadinho, com batatas douradinhas, fritas a res‑ o desejo de ser belas. Não se enfeitou também Cleópatra para
cender em verdadeira e autêntica manteiga, com os graciosos morrer? (Gritos: “Isso mesmo!” “Bravo!” “Hedl, grande senhora!”)
pepininhos que brotam abençoados dos campos venturosos de Winfried Hromatka: (Sócio honorário.) Nobres companheiros
Znaim, acompanhados com um sumo escuro de cevada das e companheiras! Como representante das Juventudes, o meu
comarcas bávaras de Kulmbach… (gritos de “Heil”, que soam dever não é apenas renovar o voto de fidelidade que nos vincula
como “Hedl”) um suculento pão de centeio, saborosamente a prosseguir o combate que nos foi imposto até à vitória final,
402 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 403
scilicet até ao último hausto de homens e cavalos. (Gritos: “Hedl!”) espírito de sacrifício. E assim concluo, pois, com uma exortação
Pois, nobres companheiros e companheiras, uma paz alemã não a que se aguente a pé firme, que deixei expressa num poema de
é uma paz branda, como tão certeiramente disse o nosso grande minha própria autoria. (Gritos: “Silêncio!” “Ouçam!”)
mestre Hindenburg. (Gritos: “Hurra!”) Não, também é nosso Bom é no sabão poupar.
dever lembrarmo­‑nos das nossas valquírias, consolador amparo (Gritos: “Boa!” “Bravo Kasmader!”)
dos heróis, cuja mais distinta representante quero aqui saudar na E inda melhor não fumar.
pessoa da nobre oradora que me precedeu. (“Hedl!”) Não demos (Gargalhadas.)
tréguas ao inimigo, mas do belo sexo sejamos abrigo! Viva a Mas usar roupas folgadas,
nossa grande senhora! (Gritos: “Hurra!” “Hedl, grande senhora!”) (gritos: “Irra!”)
Kasmader: (Levanta­‑se.) Nobres companheiros e companheiras! Colarinhos às carradas,
Pudemos hoje escutar palavras alemãs que calam verdadeira‑ Altos sapatos de couro,
mente bem fundo. Como representante dos carteiros alemães, (gritos: “Que vergonha!” “Costumes latinos!”)
gostaria de dar um alvitre respeitante à autocontenção, pois, É inútil sorvedouro!
cercados como estamos pela inveja britânica, o ódio dos países (Gritos: “É assim mesmo!”)
latinos e a perfídia eslava, estamos cada vez mais dependentes da O que assim não se gastar
auto­‑suficiência dos lares alemães. (Gritos: “Bravo!”) Gostaria a À pátria se deve dar.
este respeito de fazer a proposta de libertar do serviço doméstico (Gritos: “Hedl! Hedl!” O orador é cumprimentado.)
as serviçais alemãs, como modo de disponibilizar combatentes Übelhör: (Levanta­‑se e lê de uma folha de papel.)
alemães para o exército e ainda de conquistar novos recursos Se pudesse algo pedir,
para óbolos patrióticos. Além disso, todas as mulheres e raparigas Era fácil decidir!
alemãs não deixarão certamente de devolver aos heróis regressa‑ Uma almôndega divina
dos os lugares ocupados no tempo da guerra, de tanto mais bom De pão da massa mais fina!
grado quanto essas mulheres e raparigas têm a este respeito de (Risos. Gritos: “Nós também!” “Hedl! Hedl!”)
lhes estar infinitamente gratas pela protecção dos lares alemães. Homolatsch: (Levanta­‑se, olha fixamente em frente através dos
(Gritos: “Bravos!” “Hedl!”) Só quando eles não forem suficientes seus óculos dourados e diz de indicador espetado.)
é que se deve recorrer neste particular a mão­‑de­‑obra feminina. Minha esposa alemã… filho meu… meu lar…
Elas, por seu lado, encontrariam a melhor paga no sentimento São as coisas… que eu sinto… mais amar.
exaltante de também terem contribuído na retaguarda com o seu (Senta­‑se rapidamente outra vez. Gritos: “Hedl!” “Bravo, Homo‑
óbolo para o êxito conquistado. Porque não há deveras quem latsch!” “Hedl!”)
não participe no combate aqui na retaguarda com o mais elevado (Muda a cena.)
404 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 405
CENA 12 decidiu­‑se, pois, pela condenação da baronesa arguida. Foi­‑lhe
Festa dançante. aplicada uma pena de prisão de cinco meses. Por haver perigo
Um cavalheiro e uma senhora do Báltico em conversa. de fuga, ordenou­‑se a prisão imediata da ré. Nos consideran‑
dos da sentença sublinhava­‑se que o modo de defesa esco‑
Cavalheiro: Menina. lhido na audiência (acusação ao prisioneiro pela prática de um
Senhora: Diga. crime), bem como a posição social e a educação da ré, eram
Cavalheiro: Não está a dançar. circunstâncias agravantes, enquanto o facto de ter um cadastro
Senhora: Nã. absolutamente limpo e a sua ignorância em matérias sexuais
Cavalheiro: Porquê? foram apresentados como circunstâncias atenuantes. – Ilustre
Senhora: Se danço, suo. Se suo, cheiro mal. Se não dançar, não tribunal! Perante a benevolência desta sentença, que brada aos
suo nem cheiro mal. céus, não serão precisas muitas palavras. No plano material, os
(Muda a cena.) factos, as relações contranatura com um prisioneiro de guerra,
estão suficientemente esclarecidos. Será supérfluo assinalar
CENA 13 os efeitos imorais decorrentes de um exemplo tão revoltante.
Audiência para apreciação de recurso Não tenho dúvidas de que o ilustre tribunal partilhará comigo
no Tribunal de Comarca de Heilbronn. o sentimento de estar a um passo de um abismo, do qual a
moralidade ultrajada não poderá salvar­‑se senão reconhe‑
O procurador da Coroa: … Em Junho deste ano, a ré deu à cendo onde iria parar a pátria se todas as donas de casa alemãs
luz uma criança cujo pai é um prisioneiro de guerra francês. descessem tão baixo! (Agitação.) Neste sentido, peço ao ilustre
O francês, de profissão empregado de mesa, foi aprisionado tribunal que rejeite o pedido de anulação da defesa e, pelo con‑
logo em 1914. Do final de 1914 até 1917, viveu na propriedade trário, aumente a pena para dois anos.
senhorial. Aqui, ocupava­‑se com os mais diversos trabalhos, (O tribunal retira­‑se para deliberar.)
sobretudo a tratar dos campos e do jardim. A baronesa arguida Alguém de entre a assistência: (Estende o jornal a um vizi‑
tomava regularmente parte nesses trabalhos. Na audiência do nho.) “Êxitos colossais dos nossos bombardeiros a noroeste
tribunal correccional, a ré tentou acusar o pai francês do seu de Arras e por trás da frente da Champagne. Ao todo, foram
filho de a ter violado. Mas o tribunal não deu qualquer crédito lançados durante os últimos três dias e três noites 25.823
a esta acusação. Era manifesto que era a primeira vez que a ré quilogramas de bombas.”
apresentava esta defesa. A alegação caía por terra pelo simples O vizinho: Os efeitos morais seguramente não foram inferiores
facto de o prisioneiro francês ter trabalhado no castelo mais aos materiais.
seis meses completos depois do início da gravidez. O tribunal (Muda a cena.)
406 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 407
CENA 14 diabólico que pode ser investigado nos laboratórios, ainda se
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. há­‑de ir mais longe. Os tanques e os gases, uma vez que os
inimigos se tenham superado incessantemente uns aos outros
O Optimista: O progresso do armamento que levou até ao gás, neste domínio, hão­‑de ceder o campo às bactérias, e não se
aos tanques, aos submarinos e ao canhão de 120 quilómetros poderá já derrotar a ideia salvadora de usar logo as epidemias
de alcance chegou ao ponto… como instrumento de guerra, em vez de, como até aqui, as
O Eterno Descontente: …de que o exército devia ser expulso utilizar apenas como consequência da guerra. Mas como os
das forças armadas por cobardia ante o inimigo. Se se levasse à homens, mesmo então, não serão capazes de prescindir dos
letra o conceito de honra militar, o mundo ganharia paz para pretextos românticos para a sua maldade, o comandante, cujos
todo o sempre. Porque a única coisa que ainda não se desco‑ planos serão postos em prática pelo bacteriologista como o são
briu é o que é que a inspiração de um químico, que por si só hoje pelo químico, continuará a usar uniforme. Aos alemães
já desonra a ciência, há­‑de ter a ver com a bravura e como é talvez venha a atribuir­‑se a honra da descoberta; aos outros,
que a glória das batalhas pode ficar a dever­‑se a uma ofensiva a infâmia do seu aperfeiçoamento, ou vice­‑versa… como o
cloriosa sem sufocar no próprio gás da vergonha. senhor achar mais promissor.
O Optimista: Mas então não é indiferente qual a arma que causa O Optimista: A verdade é que, com a sua técnica militar ultra­
a morte? Até onde é que o senhor está ainda disposto a acom‑ ‑desenvolvida, os alemães demonstraram…
panhar o desenvolvimento técnico das armas? O Eterno Descontente: …que as guerras de conquista e as
O Eterno Descontente: Até nenhum sítio, mas, se tiver mesmo expedições triunfais de Hindenburg se distinguem com van‑
que ser, o máximo que vou é até à besta. É claro que, para uma tagem das de Josué. O método mais recente adapta­‑se melhor
humanidade que acha que o fundamental da vida é matarmo­ ao objectivo da destruição e do extermínio do inimigo, e um
‑nos uns aos outros, é indiferente a maneira como trata da rompimento das linhas depois do “gaseamento” de três briga‑
questão, e a liquidação em massa é mais prática. Mas a neces‑ das italianas suplanta qualquer daqueles decisivos feitos mila‑
sidade de romantismo que ela tem é desiludida pelo progresso grosos de Jeová.
técnico. Essa necessidade só se satisfaz com o combate homem O Optimista: Mas o senhor então quer afirmar que o ímpeto de
a homem. A coragem que a arma faz crescer no homem talvez conquista neo­‑alemão e o vetero­‑hebraico são idênticos?
esteja ainda à altura do grande número; degenera em cobar‑ O Eterno Descontente: São idênticos mesmo na semelhança
dia quando o homem já não é visível para o grande número. de Deus! Entre os povos que desempenharam um papel
E torna­‑se de todo em todo numa coisa lastimável quando histórico­‑universal, estes são os únicos que se consideram
também para o homem o grande número já não é visível. dignos da honra de terem um deus nacional. Enquanto, hoje
E foi a este ponto que chegámos. Mas, graças àquele desígnio em dia, todos os povos que se enfrentam uns aos outros nesta
408 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 409
terra endoidecida só têm em comum a cegueira de quererem sacrifício os bens de outros povos. Kant: que censurou a invo‑
vencer em nome do mesmo Deus, os alemães, como outrora os cação do Senhor dos Exércitos pelo vencedor como um cos‑
hebreus, muniram­‑se ainda, além disso, do seu Deus particu‑ tume tipicamente israelita e que meteu antecipadamente na
lar, ao qual são oferecidos os mais terríveis holocaustos. O pri‑ ordem aquele Wilhelm a quem deu na cabeça invocar de um
vilégio de ter sido eleito parece em absoluto ter passado para só fôlego Kant e o Senhor dos Exércitos. Vou experimentar em
eles e, entre todas as nações a quem a ideia de ser uma nação breve num auditório em Berlim, sob o título “Um Kantiano e
pôs a cabeça a andar à roda, eles constituem aquela que mais Kant”,17 uma contraposição entre a maneira como este kan‑
vezes se identifica a si própria, designando­‑se sem cessar como tiano pretende apoiar­‑se à prova de bomba no seu aliado lá do
a nação alemã, e mais, julgando que “alemão” é um adjectivo céu e como Kant o exorta a deixar­‑se de tal prática, que está em
que pode ser usado no grau superlativo. Mas a relação entre tão grande contradição com a ideia moral do pai dos homens,
a forma de vida e o sentido da expansão à custa da existên‑ e a invocar antes o céu pedindo perdão pelo enorme pecado da
cia alheia, próprias da tendência pan­‑alemã e da hebraica, barbárie da guerra… vou experimentar este efeito de contraste
poderia ainda ser acrescentada e aprofundada. A diferença é demolidor e absolutamente arrasador.
que os antigos hebreus pelo menos tinham como lema o seu O Optimista: O que pode acontecer­‑lhe é ser posto na fronteira,
“Não matarás!” e era para maior glória de Deus que caíam na qualidade de estrangeiro indesejável.
numa contradição tão horrenda, mas sempre e sempre sen‑ O Eterno Descontente: Isso também eu sou no meu país.
tida e lamentada, com os mandamentos de Moisés, ao passo E continuaria convencido de que, depois de tudo por que pas‑
que os alemães modernos reclamaram o imperativo kantiano sámos, “o Senhor nosso Deus tem decididamente ainda planos
sem mais aquelas como justificação filosófica de “Força neles!”. para o nosso povo alemão”. E continuaria convencido de que a
A verdade é que, na ideologia prussiana, o Senhor dos Exércitos afinidade dos dois “povos eleitos” poderia observar­‑se mesmo
degenerou, através de um imbróglio conceptual costumeiro, nas mais extremas circunstâncias da vida, iluminadas pelo
no comandante e senhor supremo de Wilhelm II. espírito unificador, próprio das duas culturas, de uma visão
O Optimista: Na verdade, ele não é mais do que o aliado deste. do mundo marcada pelo romantismo do dinheiro. Poderia
Mas quem, a não ser o senhor, teria a ideia bizarra de descobrir observar­‑se, por assim dizer, até à terceira e à quarta geração.
uma ligação espiritual entre Hindenburg e Josué? Porque, tanto aqui como ali, ambos constroem a obra de arte
O Eterno Descontente: Schopenhauer: que diagnosticou já total de uma concepção da vida segundo a qual o que é do
como partilhada por ambos a instituição do Deus separado, mundo é regido pelo que é do espírito, de modo que as guerras
que oferece de presente ou “promete” os países vizinhos cuja são conduzidas como os livros de deve­‑haver, quer dizer, “com
posse pode então ser adquirida pelo roubo e o assassínio, a a ajuda de Deus”.18 E poderia demonstrar­‑se, até ao ponto da
instituição do Deus nacional, a quem têm de ser dados em sua aplicação literal, que o preceito do Velho Testamento, “olho
410 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 411
por olho, dente por dente”, é o motivo condutor da estratégia não é válido para a hora do combate. O mandamento do amor
de guerra neo­‑alemã e certamente não foi por acaso que há aos nossos inimigos deixa de ter qualquer significado para nós
pouco tempo, numa proclamação oficial do nosso Departa‑ no campo de batalha. Matar, neste caso, não é pecado, é um ser‑
mento de Imprensa Militar, que aprende com tanta facilidade viço prestado à pátria, é um dever cristão, mais, é um serviço
como um burro velho aprende línguas, aquela fórmula pôde a Deus! É um serviço a Deus e um dever sagrado punir todos
servir para justificar os ataques aéreos. Na verdade, ela põe em os nossos inimigos com uma violência terrível e, se for preciso,
devido realce o conceito de “represálias”. E quem, a não ser o destruí­‑los! E assim vos repito, enquanto nesta guerra mundial
senhor, poderia deixar de detectar a monotonia caracteristica‑ trovejarem os canhões, o mandamento de Jesus “Amai os vos‑
mente bíblica com que esta vontade de retaliação e de destrui‑ sos inimigos!” deixa de se aplicar! Fora com todas as dúvidas
ção se exprime nos comunicados diários da frente do Sinai?19 de consciência! Mas dizei­‑me: porque é que as balas deixaram
O Optimista: Frente do Sinai? Mas a respeito desta é raro o dia tantos milhares de homens aleijados? Porque é que tantos cen‑
em que há alguma notícia! tos de soldados ficaram cegos? Porque Deus queria salvar­‑lhes
O Eterno Descontente: Todos os dias! as almas por esse meio! Olhai à vossa roda e orai, em vista dos
(Muda a cena.) milagres do Senhor: dai­‑nos, Senhor, a vida eterna!
(Muda a cena.)
CENA 15
Uma igreja protestante. CENA 16
Uma outra igreja protestante.
Superintendente Falke:20 … Esta guerra é um castigo apli‑
cado por Deus aos pecados dos povos e nós, alemães, somos, Conselheiro consistorial Rabe:21 … Por isso, mais aço no
junto com os nossos aliados, os encarregados de executar a sangue! E os timoratos que ouçam: é não apenas um direito
punição divina. Não restam dúvidas de que, através desta mas, em certas circunstâncias, um dever para com a nação
guerra, o reino de Deus irá ser enormemente impulsionado considerar, depois de começada a guerra, que os tratados e
e aprofundado. E aqui é preciso reconhecer de modo claro e seja mais o que for são pedaços de papel que se rasgam e se
determinado: o mandamento “Amai os vossos inimigos!” foi atiram ao lume, se for essa a maneira de salvar a nação. É que
dado por Jesus apenas para o convívio entre os homens, mas a guerra é a ultima ratio, o último meio na mão de Deus para
não para as relações entre os povos. Na luta das nações entre trazer os povos à razão pela força, quando, de outra forma, eles
si, o amor ao inimigo deixa de ter lugar. Neste ponto, nenhum já não querem deixar­‑se conduzir e ser levados para o cami‑
soldado precisa de ter remorsos! Enquanto ruge a batalha, o nho querido por Deus. As guerras são juízos de Deus e sen‑
mandamento do amor de Jesus está inteiramente suspenso! Ele tenças de Deus na história universal. Mas por isso é também
412 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 413
vontade de Deus que, na guerra, os povos usem em plenitude que tenha eco entre os vizinhos ainda viciados na dúvida. Por
todas as energias e as armas que Ele lhes pôs na mão, para todo o lado, nas províncias alemãs, despertam os espíritos,
fazer justiça entre os povos. Por isso, mais aço no sangue! Tam‑ prontos a ganhar adeptos para a nossa causa justa, a animar os
bém as mulheres e as mães alemãs dos heróis que tombaram frouxos, a converter os apóstatas e a conquistar novos amigos
já não conseguem suportar uma forma sentimental de encarar para nós. Numa antevisão sábia, o nosso governo percebeu que
a guerra. Quando os seus entes mais queridos estão na linha a Suíça não é apenas importante como estação de passagem
da frente ou morreram em combate, elas não estão dispostas a para os nossos transportes de bombas, mas também só tem que
ouvir lamentações choramingas. Deus quer agora inculcar­‑nos agradecer a possibilidade de conhecer, por palavras e imagens,
uma férrea energia da vontade e a mais firme aplicação das os métodos da nossa estratégia de guerra. O afundamento de
nossas forças. Por isso, digo uma vez mais: mais aço no sangue! incontáveis toneladas de alimentos pelos nossos submarinos,
(Muda a cena.) mostrado em filme, tem um efeito de tal modo impressionante
que o público neutral, sobretudo as mulheres, em si mesmas
CENA 17 particularmente sensíveis à perda de tais tesouros, desmaia e,
Uma outra igreja protestante. pouco a pouco, vai­‑se firmando a ideia de que o prejuízo que
estamos a infligir aos nossos inimigos é, em última análise,
Pastor Geier:22 … E olhai em volta: feitos gloriosos do espírito incomensurável! A palavra alemã de modo nenhum fica para
de iniciativa alemão foram­‑se sucedendo de enfiada como as trás nesse processo. “A Batalha da Champagne” é o título de
pérolas de um colar resplandecente. Esse espírito criou a mara‑ uma brochura da responsabilidade do Secretariado da Obra
vilha que é o submarino. Produziu aquele canhão fabuloso, Social Estudantil de Estugarda, que se destina em primeira
cujo obus se eleva às regiões etéreas do oceano aéreo para levar linha aos intelectuais suíços. Tomai a peito as palavras do
a destruição às fileiras inimigas a uma distância de mais de 100 magnífico poema, a oração do soldado, que encontrei nesta
quilómetros! Mas o espírito alemão não nos abastece apenas excelente obra de propaganda, que o nosso governo já enviou
com armas, ele não se cansa de laborar também nos baluartes para os países neutrais para difundir neles o conhecimento da
do pensamento. Posso hoje informar­‑vos de que Schulze, em identidade alemã, gerar compreensão pelo carácter alemão e
Hamburgo, está a escrever, por solicitação do nosso Ministério assim, pouco a pouco, contribuir para fazer desaparecer o ódio
dos Negócios Estrangeiros, um trabalho científico fundamen‑ com que nos perseguem:
tal sobre “Profanações de cadáveres e túmulos por ingleses e Ouvis rezar os soldados?
franceses”, um trabalho que irá ser divulgado com fins de pro‑ Nosso Deus – nosso dever!
paganda internacional, que nos irá conquistar a simpatia dos É das bocas dos canhões
países neutrais e ao qual temos de desejar de todo o coração Que se ouve o nosso querer.
414 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 415
Sobem alto as munições CENA 18
“Pai Nosso” mal disparadas, Santuário.
Com uma cruz nos seus brasões:
“As baionetas caladas!” O sacristão: Aqui podem ver uma interessante oferenda ao
nosso santuário trazida por dois soldados de Lana: um rosá‑
Vossas balas, camaradas, rio cujas contas foram feitas com balas de shrapnel italianas.
Como água benta aspergi, O material para o fio provém do arame farpado. A cruz foi cor‑
Larguem incenso as granadas, tada da manilha de uma granada italiana explodida e tem três
Vossos pecados carpi: balas de espingarda italiana a servir de pingentes. O Cristo foi
São pecados de omissão talhado numa bala de shrapnel. No verso da cruz está gravado:
As minas não disparadas; “Em sinal de gratidão. Recordação da guerra italiana, Cima
Se desfaz mil a explosão, d’Oro, 25/7/1917. A. St. e K. P., de Lana.” Este rosário pesa mais
As culpas são perdoadas. que um quilograma, para uma reza mais prolongada é preciso,
assim, ter mão forte. Suas senhorias querem experimentar?
Trazei granadas de mão O forasteiro: (Experimenta.) Uff!… Não, nada feito.
Como rosários ao peito, (Toca o sino.)
Co’ essas contas rebentadas, O sacristão: Ouça! É a última vez! Vai ser desmontado já de
Fica o inimigo desfeito. seguida. Fazem­‑se rosários de balas de shrapnel e, em compen‑
“A Guarda do Reno” cantai, sação, fazem­‑se canhões de sinos de igreja. Damos a Deus o
Da nossa ira a oração, que é de César e a César o que é de Deus. Ajudamo­‑nos mutua‑
Mãos postas garras tornai, mente como podemos.
Rasgai do gurkha o coração. (Muda a cena.)
É certo, sicários somos
E eleitos do Senhor! CENA 19
Olhai, pois, em volta e orai, em vista dos prodígios do Senhor: Constantinopla. Uma mesquita.
levai­‑nos, Senhor, ao Paraíso! Ouve­‑se rir alto por detrás da cortina da entrada.
(Muda a cena.)
Uma das vozes: Quê, a gente tem que calçar estas grandes cha‑
natas de palha? Caramba, isto é divinal!
Segunda voz: Olha ali aquele mameluco…
416 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 417
(Dois jovens, representantes de casas de comércio berlinenses, e ensinar um pouco de disciplina. Enquanto há vida, há espe‑
entram a fazer muito barulho. Não tiram os chapéus da cabeça. rança. Havemos de desenrascar a coisa. (Risos em voz alta.
Atrás deles, o imã, caminhando sem ruído, de cabeça inclinada Cumprimenta na paródia o imã, que se mantém a alguma dis‑
e as mãos metidas nas suas largas mangas.) tância.) Ora viva!
O primeiro: Tás a ver, uma mesquita é assim… vê lá se te portas O primeiro: Boas! (O imã tenta repetidas vezes chamar­‑lhes com
direitinho e se respeitas os costumes da casa! (Risos.) gestos a atenção para os chapéus.) Olha ali… mas que é que o
O segundo: Ora então tamos numa mesquita, com um imã a paspalho quer?
sério e tudo… divinal! O segundo: O homem é surdo­‑mudo… (Riem­‑se e dão cotovela‑
O primeiro: Grande pinta! das um ao outro.)
O segundo: Que cangalhada maluca! (De mãos nos bolsos, fazem O imã: (Para a senhora.) Diga­‑lhes que estão numa casa de
uma espécie de jogo de patinagem, deslizando nos seus chinelos oração.
de palha, que perdem continuamente, o que os faz sempre reben‑ A senhora: (Aproximando­‑se deles.) O imã está a pedir­‑me para
tar em alto riso.) lhes dizer que estão numa casa de oração; não querem fazer o
O primeiro: Sabes que mais, é só a gente estabelecer­‑se aqui a favor de tirar os chapéus?
sério, e esta barafunda toda entra logo nos eixos… vamos pôr O primeiro: Mas claro que sim, se lhe dá prazer… Boas! (Cum‑
tudo como deve ser! (Dá um encontrão ao outro.) Fritz, não primentam e riem­‑se.)
caias… A senhora: Eu aconselhá­‑los­‑ia a fazer um pouco menos de baru‑
O segundo: Bem, não se pode dizer que a tasca seja muito con‑ lho; numa igreja os senhores também não se ririam tão alto.
corrida, o metro tem mais gente. Só uma pessoa aqui em toda O segundo: (Rindo­‑se com força.) Mas que é que isto aqui tem
a volta, e mesmo essa é do sexo feminino… (aponta para uma que ver c’uma igreja?
senhora e dá um encontrão ao outro) falhaste!… Zequinha A senhora: É uma casa de Deus.
perna­‑longa! (Risos.) O primeiro: Divinal… um estaminé maluco como este?
O primeiro: (Trauteando.) O Bósforo ir visitar, dá alegria a A senhora: Então ao menos não fira os sentimentos das pessoas
fartar… para quem esta casa é o que têm de mais sagrado!
O segundo: (A pontos de rebentar a rir.) Nem fazes ideia… O segundo: Ora, pra esses mouros é tudo igual ao litro. Bem,
Jesusjesusjesus… Homem, vê se te comportas! sendo assim, bom dia! (Saem, rindo alto e com grande alvoroço.)
O primeiro: Olha lá, hoje é lua cheia ou quarto crescente? (Ambos O imã: (Para a senhora.) Não fiques pesarosa com a insensatez
rebentam a rir.) desses moços; Deus de certeza que sorri por causa deles,
O segundo: Isto é um povinho agradável… só um bocadinho façamos nós o mesmo.
sorna, um bocadinho sorna… bem, a gente vai­‑lhe dar a mão A senhora: Eles não fazem por mal.
418 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 419
O imã: Deus deu aos europeus a ciência e aos orientais a majes‑ E sabe Deus, cá a gentul
tade. Eles não chegarão onde chega quem caminha na sombra Somos parvos chapadul,
do Altíssimo. Num dia em altivo ginetescu
(Muda a cena.) No outro a levar no rabuscu!
A arr… te para mim é muu… sa e dá­‑me ao mesmo tempo a
CENA 20 maan… teiga para o pão. Por isso, nunca temi a suspeita de que
Redacção em Berlim. os pés dos meus verr… sos não estejam laa… vados. E assim
nasceu a minha no… meada e também a minha canção romena.
Alfred Kerr: (Sentado à secretária, escrevendo uma “Canção Todos os dias Kerrul
Romena”.) Estou… pronto. Quer dizer: a minha canção romena. faz trovas para Scherul,
(Lê em voz alta.) mas não é nenhum parvul
Pràs bandas do sol postescu e volta para o Mossul.23
Chegou o bago do russescu, Ecco.
Contentes logo traímussul… (Muda a cena.)
Os politescus encheram­‑se de massul.
CENA 21
Os povos se espantarul Consultório médico em Berlim.
Com tamanha canalhicul,
Hungria, Transsilvanêscu Professor Molenaar: (Para o doente.) Pois é, o senhor tem
Queremos pôr de joelhescu. uma doença de coração. Assim, pouca esperança pode ter de
ser declarado apto. Linda história. Está a ver o que acontece
Alaridos de triunful quando se é fumador! Apesar de todas as proibições do Alto­
No corrupto pantanul, ‑Comando, continua a fumar­‑se nessas províncias. Não há a
Na capital Bucarés mínima dúvida de que, em geral, com o hábito excessivo de
Onde ninguém lava os pés. fumar e, em particular, com os jovens a fumar como chami‑
nés antes do tempo, perdemos nesta guerra, até ao momento,
Mas ai que chega o apertão no mínimo dois corpos de exército. É terrível verificar quan‑
Do búlgaro e do alemão, tos homens relativamente jovens estão doentes do coração e,
Que tomaram Dobrujul assim, são excluídos do serviço militar, do casamento e da pro‑
E Tutrakan está perdidul. criação. No interesse da manutenção das nossas reservas, seria
420 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 421
urgentemente desejável que o fumo fosse proibido entre nós. CENA 22
Não vamos discutir se, na própria guerra, por exemplo, durante Secretaria de um destacamento militar.
uma investida, o tabaco é mais útil do que prejudicial, mas o
que é certo é que centenas, senão milhares, de não­‑fumadores Um oficial do Estado­‑Maior: (Ao telefone.) … Viva, então
aguentaram tão bem as canseiras do serviço na frente como já acabaste o relatório sobre Przemysl?… Ainda não? Ah, não
os fumadores. Afinal, durante milénios fez­‑se a guerra sem dormiste que chegasse… Vê lá, põe­‑te a toques, senão che‑
se conhecer o tabaco. Ora bem, então porque é que na altura gas outra vez tarde pròs copos… mas é que hoje vamos pròs
tudo funcionava? A quantidade de fumo que há agora nos copos… Ora ouve lá… O quê, esqueceste­‑te de tudo outra
campos de batalha é indescritível! Tem que ser assim? É sabido vez?… Presta atenção, pontos de vista fundamentais: enquanto,
que generais ilustres como o conde von Haeseler, Conrad von como é sabido, a nossa guarnição foi a fome… agora uma coisa
Hötzendorf e Mackensen são inimigos jurados do tabaco. inteiramente diferente… o inimigo cedeu ante a nossa força…
E eles não aguentaram as canseiras do serviço na frente tão bem portanto, de modo nenhum obrigado à rendição pela fome,
como os fumadores? Estou a pensar em Falkenhayn, Borojević o inimigo nunca passou fome! Tás a perceber? Só nós é que
e Hindenburg. A experiência mostra que a morte pela pátria passámos! Os russos estiveram sempre bem abastecidos…
rouba muitos jovens ao serviço militar, razão pela qual é de não puderam foi aguentar­‑se contra o élan das nossas valentes
lamentar, justamente no interesse da manutenção das reservas tropas, evidentemente… a violência do nosso ataque… Além
assim como da procriação, em que aquela assenta, que o vício disso: a fortaleza passou para as nossas mãos absolutamente
de fumar ainda contribua para piorar as coisas. Caro jovem, o intacta, sem ter sofrido quaisquer danos… canhões dos mais
senhor contraiu uma doença de coração, pelo que pouca espe‑ modernos… O quê? Não se pode fazer esquecer? Um traste
rança pode ter de ser declarado apto. Não leve isso demasiado a velho a cair? Mas não, agora é claro que já não! Não há nada
peito. As coisas podem melhorar. Guerras há­‑de haver sempre. que não se possa fazer esquecer, meu caro amigo! Bem, ouve
Se bem que, na verdade, também os seus pulmões não pareçam lá e não te ponhas com confusões… fortaleza das mais moder‑
estar muito bem. Respire fundo! (Ausculta.) Nã, nada a fazer. nas… velho orgulho da Áustria… reconquistada intacta. Não
No máximo, para serviço na retaguarda. São 20 marcos. foi a força, mas a fome, ah, mas que digo eu, não foi a fome,
(Muda a cena.) mas a força! Bem, tu lá te hás­‑de desenrascar… desde que seja
claro para as pessoas… agora também não é difícil… então
adeusinho! É tudo! (Sai.)
(Entram em cena dois velhos generais.)
O primeiro: Pois é, os alemães! Agora fizeram doutor o Falken­
hayn! Tás a ver, a nós é que nunca nos toca a vez.
422 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 423
O segundo: Desculpa lá, o Borevitsch…24 continua a percorrer a fila, até se fixar num outro.) E… aquele
O primeiro: Tá bem, tá bem, mas a nós é que nunca nos toca ali… também é… um Buquoy! Também… tem… uma meda‑
a vez. lha! (Pausa para reflectir.) Agora… há… dois Buquoys… com
(Passa um jornalista.) uma medalha!
O primeiro: Salve, senhor doutor! O ajudante: (Dirige­‑se ao comandante do exército e comunica­
O jornalista: Excelência, ainda bem que o encontro, preciso de ‑lhe.) Alteza Imperial, o reitor da Universidade de Viena, com
si como de pão para a boca… que é que se passa com Brody?25 o director e o vice­‑director da Faculdade de Letras, aguardam
O primeiro: Brody? Mas então que é que se há­‑de passar com submissamente a autorização para conceder a Vossa Alteza
Brody? Imperial o doutoramento honoris causa da Faculdade de Letras.
O jornalista: Ora, estou a falar da batalha de Brody! (Muda a cena.)
O primeiro: Ah, então há uma batalha em Brody? Caramba!
O segundo: Jesus! CENA 24
O primeiro: Então uma batalha? Olha que esta! Ora, então e o Entram em cena dois admiradores da reichspost.
senhor quer saber… (Depois de pensar um bocado.) Olhe, sabe
que mais? A gente cá se há­‑de arranjar! O primeiro admirador da reichspost: Já leste o livro A Nossa
O jornalista: (Apressadamente.) Posso então anunciar que Dinastia nos Campos de Batalha? É de se lhe tirar o chapéu!
Brody ainda está nas nossas mãos…? Ou não, sabe que mais, já O livro mostra a participação directa que os membros da nossa
sei, vou anunciar que Brody foi praticamente libertada! (Sai.) dinastia reinante têm nesta guerra, apresenta­‑nos numa série
(Muda a cena.) de atraentes ilustrações todos os soldados de sangue real, que
partilham lá na frente de combate os trabalhos e os perigos do
CENA 23 homem comum em plena camaradagem. A série começa com
Quartel­‑general. o Comandante Supremo.
O segundo admirador da reichspost: Não me digas! Sua
Arquiduque Friedrich: (Lendo.) … E assim… concluo com Majestade, o nosso augusto…?
as palavras: três vivas a Sua Majestade, o nosso Comandante O primeiro: Mas deixas­‑me acabar ou não? É certo que a idade e
Supremo: viva, viva… (virando a página) viva! (Vivas. Depois os cuidados de saúde não lhe permitem permanecer montado
de uma pausa em que, com um riso de troça e mostrando os a cavalo junto aos seus soldados, como dantes tanto gostava…
dentes, passa revista à fila de jovens oficiais à sua frente, num O segundo: Não me digas! Mas então quando?
dos quais se fixa o seu olhar.) Ah… mas é… o Buquoy! Já… O primeiro: Mas deixas­‑me acabar ou não? Como dantes tanto
tem… uma medalha! (Depois de uma pausa, em que o seu olhar gostava de fazer nas manobras. Mas ninguém pode estar mais
424 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 425
intimamente ligado a esta guerra do que este supremo e pri‑ O segundo: Chamam­‑lhe o pai dos soldados, pois então, como é
meiro soldado do Império, cujo amor e cuidados estão dia e que haviam de lhe chamar?
noite nos acampamentos militares lá da frente, junto do seu O primeiro: É verdade. O autor do livro A Nossa Dinastia nos
exército, que em todo o seu esplendor e força combativa é, fun‑ Campos de Batalha… sabes, ele passou cá por cada uma! Eu
damentalmente, obra sua. Mas também os seus soldados, os estava por acaso nas proximidades, diz ele, num pequeno
seus valentes, têm todos total consciência disto, em pleno fer‑ grupo abrigado por detrás de uma colina, na companhia, diz
vor da batalha eles sentem como uma bênção a proximidade ele, de um velho representante daquela geração quase extinta
da sua solicitude paternal. Portanto, estás a perceber, ele par‑ dos veteranos curtidos em muitas campanhas, estás a enten‑
tilha os trabalhos e os perigos do homem comum lá na frente der? Também ele observava o generalíssimo lá ao longe. Notei
de combate em plena camaradagem. Ou será que és tão tapado nos seus traços rudes…
que não percebes isto? O segundo: Olha, mas essa agora é de mais…
O segundo: Bem, e então o príncipe­‑herdeiro? Que é que o autor O primeiro: Mas quem notou foi ele, não fui eu…
tem para contar de Sua Alteza? O segundo: Pois, mas quem é que tem traços rudes?
O primeiro: Episódios extremamente sugestivos. Permaneceu O primeiro: Ora, o velho veterano!
impávido e sereno numa elevação varrida pelo fogo da artilha‑ O segundo: Ah, bom, o velho veterano, isso já é outra coisa!
ria inimiga, falando sorridente com os soldados e examinando O primeiro: Portanto, o autor do livro A Nossa Dinastia nos
o mapa. Campos de Batalha notou nos traços rudes do velho veterano
O segundo: O seu humor e a sua boa disposição tiveram um uma comoção que ele visivelmente tentava conter. Depois, ele
efeito como que electrizante nos que o rodeavam. passou a luva impermeável de cavaleiro pelos olhos, em que
O primeiro: No ambiente bélico da linha de fogo a sua boa dispo‑ havia um brilho suspeito…
sição decuplica­‑se. Uma corrente de alta tensão a que nenhum O segundo: Olá, sinais de luzes ou coisa parecida, politicamente
estimulante se pode comparar. suspeito!
O segundo: E que se passa com o nosso generalíssimo, o arqui‑ O primeiro: Mas deixas­‑me acabar ou não… põe­‑te em sentido!
duque Friedrich? E disse com uma emoção que nunca ninguém notara antes
O primeiro: O pensador das batalhas? Que passa noites inteiras nele: “O pai dos soldados…” (Soluça.)
com o chefe do Estado­‑Maior, o barão Conrad, inclinado sobre O segundo: (Igualmente comovido.) Ora bem, e que é que se diz
os mapas? As tropas têm uma confiança ilimitada nele. “Com o do Josef Ferdinand?
nosso marechal tudo se há­‑de arranjar!”, dizem eles. O primeiro: O seu coração pertence a cada um dos seus soldados
O segundo: Claro, com ele tudo se há­‑de arranjar. e todos os corações de soldado lhe pertencem. Um general de
O primeiro: Sabes como é que lhe chamam? fama incomparável e, para os soldados, um camarada simples,
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leal e idolatrado. É assim que a sua imagem irá ficar para sem‑ organização da Cruz Vermelha, fala­‑se do exemplo sublime
pre nos anais imperecíveis desta guerra. dado à beneficência pública pelas arquiduquesas Zita, Marie
O segundo: Muito bonito. E o Peter Ferdinand? Valerie, Isabella, Blanka, Maria Josefa, Maria Theresia, Maria
O primeiro: Pois olha… magnífico. A maneira como ele precipita Annunziata e muitos outros membros da dinastia reinante.
o inimigo do alto das montanhas, como fica indomitamente de A actividade benfazeja, abnegada e heróica da arquiduquesa
guarda no meio da tempestade de neve… bem, são episódios Isabella Maria merece palavras de ardente admiração.
de uma força e uma grandeza arrebatadoras. O segundo: E do Leopold Salvator, que é que se conta?
O segundo: Então e o arquiduque Josef, esse não conta? O primeiro: Que prestou serviços assinaláveis!
O primeiro: O homérico! Os soldados contam que ele é O segundo: Ainda te esqueceste de alguns.
invulnerável. O primeiro: O arquiduque Karl Stephan desenvolve uma acti‑
O segundo: Ora, ora… Pois é, por isso é que ele julgou que os vidade incansável, o arquiduque Heinrich Ferdinand realiza
soldados também eram invulneráveis e vai daí mandou pôr as extenuantes percursos como mensageiro a cavalo, o arqui‑
metralhadoras atrás deles a… duque Maximilian foi mobilizado e, tal como os arquiduques
O primeiro: Cala a caixa. E todos o adoram, húngaros e suabos, Leo e Wilhelm, Franz Karl Salvator e Hubert Salvator, foi de
romenos, sérvios… todos os que pr’àli há. imediato promovido a tenente e todos são homens indómitos.
O segundo: O quê, também os sérvios? O segundo: Não há dúvidas, é um rico ramo de louros.
O primeiro: E de que maneira! Diz­‑se que se passaram cenas de O primeiro: O livro, que não pretende ser exaustivo, há­‑de ocu‑
rasgar o coração. Mas o melhor é nem falar disso. par um lugar de honra na literatura desta guerra.
O segundo: Bem, e o que é que dizem do Eugen? O segundo: (Soluça.)
O primeiro: O nobre cavaleiro! O primeiro: Mas que é que tens?
O segundo: Então e o Max? O segundo: Estou a pensar no hospital ortopédico.
O primeiro: Ora, é cá um camaradão! O primeiro: Ora, só por isso não é caso para chorar, a guerra é a
O segundo: E o Albrecht? guerra, meu caro…
O primeiro: Jovem como é, partilha já com os soldados todas as O segundo: Mas isso sei eu… também não é por causa disso, é
pesadas dificuldades, caminhos enlameados, roupas ensopadas, por causa…
maus alojamentos, pão bolorento, tudo ele partilha com eles. O primeiro: Por causa de quê? Mas que é que tens?
O segundo: Esses são os heróis da acção. E os heróis da O segundo: (Chorando.) Mas deixas­‑me acabar ou não? É que não
misericórdia? me sai da cabeça a visita da arquiduquesa Zita ao hospital orto‑
O primeiro: Fala­‑se aqui da glória imortal que o arquiduque pédico! O dia 8 de Maio foi para os feridos um dia de alegria,
Franz Salvator conquistou com a sua monumental obra de para compensar tantas horas de dor. Quantas vezes não me soou
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aos ouvidos: “Se ao menos a arquiduquesa Zita cá viesse!”… O primeiro: Sei bem o que é que eles sentiam. A verdade é que
“Quem me dera ver a arquiduquesa Zita!” Finalmente, chegou o uma guerra assim é uma paixão. Se alguém tem a sorte de ser
dia ansiado. O edifício grande e luminoso vibrava numa alegre mandado para o hospital ortopédico e calha acontecer que Sua
excitação. Às dez menos um quarto da manhã, chegou o carro Alteza Imperial lhe…
imperial, de que se apeou a arquiduquesa. Tinha acabado de O segundo: Pois é, alguém assim pode dar­‑se por feliz… mas
chegar um novo transporte de feridos. (Soluça.) sabes, seja como for, não deixa de ser uma simples compensa‑
O primeiro: Ora, mas só por isso não é caso… a guerra é a guerra, ção. É que, quando não se tem a sorte de morrer pela dinastia
meu caro… reinante…!
O segundo: Isso sei eu… mas é só por causa da Zita… Bem… O primeiro: Pois é, meu caro, isso não é para todos! Não se pode
A jovem arquiduquesa dirigia a palavra a cada um dos recém­ ter demasiadas pretensões! Que é que a gente há­‑de dizer?
‑chegados com incomparável graciosidade. Aqueles rostos (Muda a cena.)
tostados do sol, em que o sofrimento e a dor traçaram tantas
rugas, brilhavam e iluminavam­‑se. Alemães e húngaros, pola‑ CENA 25
cos e checos, romenos e rutenos sentiam­‑se outra vez mais Em frente do Ministério da Guerra.
intimamente unidos por laços renovados.
O primeiro: Pois é, não há dúvida que as próteses são uma bela coisa. Um homem jovem: Ora viva! Onde é que vais?
O segundo: Uma mesma alegria fazia­‑lhes bater os corações mais Um segundo: Vou lá acima.
depressa. A nobre senhora, em que todos reconheciam a mãe O primeiro: Que fazer?
da pátria comum, dedicava a cada um deles interesse caloroso, e Segundo: Ver se me desenrasco. E tu?
quando trouxeram doentes a quem tinham sido substituídos os Primeiro: Eu também.
pés por próteses, com as quais se deslocavam agilmente… (Chora.) Segundo: Olha, vamos juntos. (Saem.)
O primeiro: Deixa­‑te disso, a guerra é a guerra! (Muda a cena.)
O segundo: Mas isso sei eu… é por causa da Zita! Ora bem, o
olhar da arquiduquesa seguia­‑os enquanto se deslocavam agil‑ CENA 26
mente e via­‑se um brilho de alegria nos seus olhos. E todos Ringstraße.
esqueceram as suas dores, o seu sofrimento, tinha irrompido
ali a Primavera, a esperança, a alegria. Quando a arquiduquesa Cinquenta que escaparam à tropa: (Entram em cena, apon‑
Zita saiu do hospital cerca da uma da tarde, ainda a luz e o tando uns para os outros.) Aquele é que devia ir!
brilho permaneciam nos rostos, ainda permanecia uma orgu‑ (Muda a cena.)
lhosa alegria nos corações.
430 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 431
CENA 27 nos termos dos § 30, § 32 (por ser agricultor) e § 82 da Lei de
Em frente ao Ministério da Guerra. Recrutamento (§ 32 da Lei de Recrutamento de 1889), sendo
que as regalias atrás definidas – as regalias nos termos dos § 30
Um homem jovem: Ora viva! Onde é que vais? e § 32, com os efeitos correspondentes à prova da persistência
Um segundo: Vou lá acima. das condições apresentada dentro dos prazos, nos termos do
O primeiro: Que fazer? § 108 I, 2.ª secção, do Código Militar – devem ser consideradas
Segundo: Importação. E tu? em vigor.” Prontos, está a ver… agora vai mas é desculpar­‑me,
Primeiro: Exportação. há mais gente à espera, não é? Então passe bem, passe bem.
Segundo: Olha, vamos juntos. (Saem.) (O civil faz uma vénia e sai.)
(Muda a cena.) (Muda a cena.)

CENA 28 CENA 29
Ministério da Defesa. Um capitão está sentado a uma Innsbruck. Um restaurante. Numa mesa estão sentadas três
secretária. De pé, diante dele, um civil. senhoras a falar sueco. Vindo de uma mesa ao lado, um
coronel de rosto ao rubro precipita­‑se na direcção delas.
O capitão: Ora atão, isso de estar isento ou não, o mais sim‑
ples é consultar o decreto, vou­‑lhe fazer o jeito pra que você O coronel: Proíbo­‑as de falar inglês aqui! (A esposa puxa por
veja com os seus próprios olhos, ouça lá atão: “O Ministério ele para que volte a sentar­‑se.) Dás­‑me licença… eu, na quali‑
da Defesa Imperial e Real dispôs com o despacho n.º 863/XIV, dade de cunhado do chefe do Estado­‑Maior…
de 12 de Julho de 1915, em consonância com o Ministério da A esposa do coronel: Mas o que elas estão a falar é sueco!
Guerra Imperial e Real, que, tendo em vista o presente estado O coronel: Ah, bem… (Senta­‑se.)
de guerra… por analogia com o já em devido tempo determi‑ (Muda a cena.)
nado pelo despacho do mesmo Ministério Imperial e Real de
13 de Janeiro de 1915, dep. XIV, n.º 1596 ex 1914, cf. despacho de CENA 30
18 de Janeiro de 1915, l. 1068, relativo ao tratamento preferencial Praça do mercado de Grodno.
nos termos dos artigos 31 e 32 da Lei de Recrutamento… (como A população está reunida, com um grupo de raparigas à frente.
pai de família) também fica sem efeito até provisão em contrá‑
rio o certificado a apresentar em Junho de 1915, nos termos do Um funcionário do comando militar da cidade: (Faz
art. 109 I, 1.ª secção, § 118 I e § 121 I do Código Militar, Livro I, uma proclamação.) A pedido do chefe da administração
relativo à persistência das condições que justificam as regalias alemã, correspondendo a um desejo enunciado pelo senhor
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comandante do 12.º Exército ao abrigo da sua disposição Um segundo sargento: O meu sincero agradecimento por
n.º 6106, de 29 de Abril de 1916, o comandante militar da A Bênção da Tempestade, que me refrescou e reconfortou.
cidade determina que as raparigas recebam indicações para O diabo leve todos os derrotistas e eternos descontentes!
cumprimentar, fazendo uma mesura, os oficiais e funcio‑ O livro exprime o mais íntimo sentir, meu e de todos os que
nários alemães, bem como as pessoas de respeito da cidade. vestem uniforme.
(As raparigas fazem mesuras. Passam pessoas de respeito.) Cum‑ Um sargento: Hoje é Domingo de Páscoa. De tarde, vamos visi‑
primentar! (As raparigas fazem uma mesura. Passam funcioná‑ tar abrigos subterrâneos das vizinhanças e, para festejar o dia,
rios alemães.) Uma mesura mais pronunciada! (As raparigas vai ser lido em voz alta o seu “Domingo de um Alemão”. Não
fazem uma mesura mais pronunciada. Aproximam­‑se oficiais vai haver festas da Páscoa mais bonitas!
alemães.) Agora uma mesura o mais pronunciada possível! Um soldado da milícia territorial: Nas horas livres, há
(As raparigas fazem uma mesura o mais pronunciada possível.) uma autêntica competição de leitura. Todos querem ser os
(Muda a cena.) primeiros a ler este ou aquele dos seus livros e como, até ao
momento, recebemos três exemplares, a espera não é pequena
CENA 31 até que um camarada tenha levado o livro até ao fim.
Censura postal num sector alemão da frente. Guarnição dos canhões de 9 cm, dita “coluna de
assalto”: (Em uníssono.) O nosso serviço nem sempre per‑
O oficial censor: Caramba, isto hoje vai ser uma trabalheira mite que todos participemos juntos, de maneira que preferi‑
dos diabos! Desde as nove da manhã, censurei 1286 postais e mos ler o seu romance em separado.
519 cartas e a maior parte era dirigida ao Otto Ernst. Quem Dezasseis condutores: Dezasseis condutores do 10.º Exército
ainda quiser ser despachado hoje que me leia em voz alta sem o leram fascinados a sua “Carta Aberta a d’Annunzio”… a carta
remetente nem o destinatário. Tenho os olhos feitos num oito. exprime em palavras tudo o que sentimos!
(Vão lendo um atrás do outro e obtêm o carimbo da censura.) Um primeiro­‑tenente: Cada linha animosa inflama como uma
Um capitão: As suas obras são uma graça de Deus, uma bên‑ granada que explode no momento exacto.
ção inestimável para nós, alemães, neste momento difícil! Para Um observador da aviação: Precisamente o senhor, que
mim, o senhor é a confirmação, a encarnação da viril crença demonstrou afirmar os valores da vida, redime­‑nos da estupi‑
alemã do presente. Por isso, não posso evitar, tenho que lhe dez da monotonia quotidiana.
dizer a si, precisamente a si, tudo o que me vai na alma. Um tenente: Mais uma vez me diverti sinceramente com o seu
Um aviador: Sem querer estar com rodriguinhos: o seu livro foi humor e espero que ele continue a fazer efeito mesmo debaixo
a coisa mais bela, mais profunda e mais exaltante que li nos do fogo das granadas.
últimos anos. Um músico militar: Espero que as suas obras maravilhosamente
434 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 435
salutares e consoladoras ajudem a minha querida, pobre, infe‑ shrapnel contra o inimigo. Dei­‑me conta da inquietação da
liz noiva a suportar o tempo da separação. nossa gente; o inimigo, em parte, chegara já ao arame farpado.
Um cabo: O senhor pode ser mais útil à nossa pátria com a sua Entre os meus homens havia muitos combatentes jovens que
pena abençoada por Deus do que com a baioneta. estavam hoje pela primeira vez debaixo de fogo. Como coman‑
Um soldado: Os seus poemas, tão edificantes para qualquer dante de pelotão, que podia eu fazer senão gritar­‑lhes para
coração valente, hão­‑de subsistir enquanto a lealdade alemã e fazerem fogo com calma? Nesse momento, pensei nas palavras
a falsidade inglesa existirem no mundo. da advertência dos “Sovinas do Tempo”: “Caaalma, vaaamos
Um médico do estado­ ‑maior: Li a sua “Carta Aberta a com caaalma!” Rastejando agachado de homem para homem,
d’Annunzio”. Tirou­‑me as palavras da boca! Eu luto com o bis‑ de grupo para grupo, fui­‑lhes gritando a frase. O efeito não
turi, o senhor com a pena, cada qual dá o que pode. O principal tardou a fazer­‑se notado. Os inimigos, que já estavam a ponto
é que rompamos as linhas. Deus castigue a Inglaterra! de transpor o nosso arame farpado, foram abatidos pelos ati‑
Um artilheiro: Dei voltas à cabeça para ver como é que lhe pode‑ radores, que agora faziam fogo com calma evidente. O ataque
ria exprimir os meus agradecimentos com feitos concretos. foi rechaçado sem custo; nós só tivemos poucas baixas. Assim
Um comandante de companhia: O seu humor fantástico conseguimos dar mais uma lição ao inimigo graças à nossa
ajudou­‑nos a suportar muitos momentos tristes e estimulou o vigilância e à calma dos atiradores a disparar que, por sua
espírito de iniciativa. vez, devo em primeira linha ao seu relato. Este teve um efeito
Um oficial delegado: Estávamos na trincheira. Ninguém imprevisto!
podia dizer se ainda era de esperar um ataque; apesar disso, Um soldado de engenharia: Do campo de batalha, envio­‑lhe,
estávamos em alerta máximo. Para acalmar um pouco os nos‑ grande mestre e amigo da juventude, as minhas mais cordiais
sos nervos, que, mais uma vez, já tinham a sua dose, enfiámo­ saudações! Que em breve nos seja dado ver aos nossos pés em
‑nos no abrigo subterrâneo, onde, para nos distrair os pensa‑ estertor o inimigo que já sangra de muitas feridas. Glória ao
mentos, tive que ler alguma coisa em voz alta. Escolhi a sua artista cujo espírito inflamado combate pela honra do seu povo!
charla “Aos Sovinas do Tempo”, que foi muito bem recebida. Um voluntário: Na cabina do telefone está um livro de Otto
Estava para começar com a “Anna Menzel”, quando nos cha‑ Ernst. As manchas de sol brincam por sobre as páginas. A ale‑
maram para os nossos pelotões com a comunicação de que gria que o senhor me deu, foi uma tal alegria hoje de manhã
tinham sido avistados atiradores inimigos na orla do bosque. que tenho que dar largas a todo o meu entusiasmo primaveril.
A dança começou. Do bosque saíam cada vez mais atacantes. Quem me dera escapar daqui, correr pelo bosque, correr pelo
A nossa metralhadora, que se encontrava entre o meu pelotão e mundo! Raios, isso era o que eu queria se não tivesse de estar
o primeiro, começa agora também a intervir. Também a nossa no meu posto! Que fazer então? Cantar! Pois claro, isso ajuda
artilharia estivera em alerta e mandava agora as suas salvas de sempre! Mas não me estou a lembrar do que é que seria melhor
436 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 437
agora para dar trabalho aos pulmões. Hop… uma ideia fulgu‑ O segundo: É o que parece. Silêncio! Todos os que o ouvem irão,
rante… upa, aqui está o bloco das ordens! Venha o lápis… uma incendiados pela sua chama, transmitir um dia de mil maneiras,
saudação para Otto Ernst! Bom dia, Otto Ernst! Será que sabe como professores, aquilo que receberam e os corações de uma
que é um velho conhecido meu? Sim senhor, senhor Sempre­ nova juventude hão­‑de ser embebidos daquilo que este homem
‑jovem, um velho conhecido! descobriu num trabalho de décadas, na sua fortaleza solitária
(Entra em cena um major­‑general.) rodeada do sussurro dos bosques.
O oficial censor: Ah, o senhor também, meu general? O primeiro: É bem verdade, o pároco de Festenburg é um homem
O major­‑general: (Lê.) Ontem deliciei­‑me com a sua “Festa de que sabe louvar, com uma língua ardente e inspirada, todas as
Natal”. Infelizmente, não consegui saber pelos seus livros se, belezas vivas da criação. Silêncio!
quando precisa de ganhar forças para trabalhar, prefere vinho O segundo: Chiu… parece que lhe chegou a inspiração. Será um
tinto ou branco. (Risos.) A ajuizar pelos seus esplêndidos tra‑ poema ou uma prece?
ços de carácter e pelo seu humor, eu (como homem do Meck‑ Kernstock: (Murmura.)
lemburgo!) apostaria no tinto! Mas uma coisa eu sei: se no céu Cruéis hordas estrangeiras
houver lugares de primeira, tem um garantido para si! Trazem teu povo acossado;
(Entram em cena cada vez mais oficiais e soldados de todos os Com astuciosas maneiras
ramos.) Têm grande incêndio ateado.
O oficial censor: Já chega, rapazes, amanhã também é dia! O primeiro: Ei, mas eu conheço isto. É a oração antes da batalha
(Muda a cena.) contra os Hunos.
Kernstock: (Murmura.)
CENA 32 Senhor, p’lo sol da tua graça,
Um pacífico retiro de poeta nos bosques da Estíria. Livra­‑nos dessa vil raça.
Kyrie eleison!
Um admirador de Kernstock: Chiu… silêncio… ali está ele O segundo: Não admira que ele tenha aceitado a nomeação para
sentado, completamente absorto… Viena. Enobrecido pela vocação sacerdotal, também a sua
Um segundo admirador de Kernstock: É daqui que ele personalidade humana exerce seguramente o efeito mais pro‑
envia as suas canções para toda a parte, canções de índole fundo e duradouro nos seus jovens ouvintes.
enérgica, mas, ao mesmo tempo, contemplativa e muitas vezes Kernstock: (Murmura.)
de indescritível delicadeza, canções… Vai connosco o exército celestial,
O primeiro: Eia, não me admirava nada que ele, neste preciso São Miguel é o nosso marechal.
momento… O primeiro: De certeza que o pároco de Festenburg hesitou por
438 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 439
um momento em trocar o seu pacífico, sonhador retiro poé‑ CENA 33
tico nos bosques da Estíria pela balbúrdia da grande cidade. Num posto de comando de sector.
Apenas por um momento…
Kernstock: (Murmura.) A Schalek: Quando atingimos ontem as posições vindos do
Acenou Deus – chegou seu campeão Departamento de Imprensa Militar, tive uma experiência estra‑
Pra brandir o gládio da vingança nha. Todas as noites, os velhos trabalhadores marcham com os
E deitar a afogar no lamarão seus animais de carga pela linha de fogo para trazer os abas‑
Todos os que escaparem à matança. tecimentos aos diferentes postos. Estava precisamente absorta
O segundo: Mas, depois, seguramente que foi mais forte nele o a contemplar a cena. Nesse momento, o comandante inter‑
reconhecimento da insigne vocação que aqui se lhe propor‑ rompeu o meu encanto fervoroso com um brado tonitruante:
ciona, das novas possibilidades de acção ética, artística, cultural, “Seus imbecis, cambada de cabrões! Vamos a separar! Quereis
que se lhe oferecem em Viena. E a voz desse reconhecimento que uma granada vos limpe o sebo a todos duma vez?” Claro
não tardará a sobrepor­‑se ao sussurro sedutor das matas de abe‑ que isto não se dirigia a nós, do Departamento de Imprensa
tos que rodeiam Ferstenburg. Militar, mas aos velhos trabalhadores e ele desculpou­‑se logo
Ambos: Silêncio! a seguir, porque nos cumprimentou a rir­‑se com as palavras:
Kernstock: (Como que extasiado.) “Desculpem a recepção temperamental!” Com toda a com‑
Lenhadores da Estíria, abatei de enfiada paixão que tenho por aqueles pobres velhos heróis, não posso
Os sérvios malditos, tudo à coronhada! senão constatar que é impossível negar a minha admiração
Caçadores da Estíria, boa montaria, pelo brio e a amabilidade dos oficiais. Uma cena inesquecível
Aos ursos da Rússia fazei pontaria! se nos apresentou. Todos os cavalheiros estavam reunidos para
Vinhateiros da Estíria, o vinho deste ano nos receber. Normalmente, cada qual está bem abrigado ou
Que saia bem tinto de sangue italiano! está a dormir, evitando, em todo o caso, o mais possível vir
O primeiro: Já não é novidade, mas continua sempre a arrebatar­ passear para aqui em campo aberto. Mas como foi anunciada
‑nos. Chegou o momento. Se lhe pegarmos agora na palavra e a vinda do primeiro correspondente de guerra, os cavalheiros
lhe estendermos os nossos álbuns de autógrafos como se fôs‑ estão sentados tranquilamente à nossa espera como se estives‑
semos dois jovens entusiastas, ficamos com uma recordação sem num bar. Mais do que isso. Adiou­‑se o bombardeamento
para o resto da vida. até termos chegado cá acima, já que, se não fosse assim, o fogo
O segundo: Isso mesmo, é o que vamos fazer! de represália poderia ter tornado o nosso percurso altamente
(Muda a cena.) desconfortável. Esta forma de actuar ofereceu assim a vanta‑
gem, não apenas para nós, da imprensa, mas também para os
440 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 441
oficiais, de poderem por uma vez aparecer ao ar livre e teria o resultado da guerra só pode ser a paz, uma paz que nos traga
afinal também garantido aos pobres velhos trabalhadores uma o alargamento das nossas fronteiras a oriente e a ocidente e no
marcha sem perigos, se tivessem acompanhado o passo do ultramar, onde chegou a hora da política mundial alemã.
Departamento de Imprensa Militar e não tivessem chegado O professor convidado: É bem verdade, o orgulho imperia‑
com os abastecimentos depois de nós. Mas posso retirar daí lista inglês tem de ser quebrado e quem tiver dúvidas sobre o
a conclusão de que, com alguma organização, se todos os dias nosso espírito pacífico vai ver com quem se mete! O alemão
houvesse visita da imprensa às posições, tudo lhes correria não aspira senão a ficar no seu país e alimentar­‑se honesta‑
pelo melhor, e que, nesse caso, os perigos da guerra para os mente das suas colónias. Afinal, damos ao mundo a nossa cul‑
oficiais, os membros do Departamento de Imprensa Militar tura em compensação!
e last not least para o homem comum ficariam consideravel‑ O deputado nacional­‑liberal: Pois é, até este momento, o
mente reduzidos. mundo pouca compreensão tem mostrado pela nossa identi‑
(Muda a cena.) dade cultural e é altura de lhe meter isso à força na cabeça.
O professor convidado: Até isso acontecer, ainda vai demo‑
CENA 34 rar, infelizmente, e a culpa disso é exclusivamente da América.
Berlim, Tiergarten. Moltke disse ao tal americano que a guerra iria durar até a Amé‑
Entram em cena um professor convidado rica deixar de fornecer armas e munições aos nossos inimigos.
e um deputado nacional­‑liberal. Moltke admite, está claro, que esses fornecimentos são obra de
uma empresa privada, mas está admirado por, em troco de van‑
O professor convidado: Estamos a travar uma guerra defen‑ tagens materiais, tantos americanos estarem dispostos a fazer
siva. Moltke disse a um observador americano que o nosso negócios que violam a neutralidade e por o governo não pôr fim
Estado­‑Maior jamais alimentou os planos rapaces de con‑ a isso. Ele disse que o facto de as próprias fábricas de armamento
quista militar de que os nossos inimigos passam a vida a palrar. alemãs, no tempo da paz, terem feito vendas aos nossos inimigos
Como é que, disse ele, poderíamos ter desejado frivolamente era uma coisa completamente diferente. Isso é o que faz a indús‑
uma guerra contra forças tão superiores como as dos nossos tria de armamento em toda a parte. Estávamos, pois, na mesma
mais poderosos vizinhos de terra e mar! situação que os nossos oponentes, a diferença é apenas que nós,
O deputado nacional­‑liberal: É bem verdade, e nós temos diz Moltke, fomos obrigados a desenvencilhar­‑nos sozinhos,
a vontade férrea de obter desta guerra o que os nossos exér‑ enquanto os nossos inimigos puderam contar, além dos nossos
citos e os nossos rapazes de azul26 puderem obter e não des‑ fabricantes de armas, também com a indústria americana.
cansar até que o orgulho imperialista da Inglaterra tenha sido O deputado nacional­‑liberal: Pois, li isso no jornal. No
completamente subjugado. Hoje, chegou o momento em que mesmo número, comenta­‑se também a chamada “revelação” do
442 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 443
World,27 de que nós teríamos feito igualmente tentativas para Se já houvesse paz, uma pessoa podia ao menos trocar outra
receber munições da América. E esses inocentes chamam a isso vez de casaca e tudo entraria nos eixos.
“revelação”! Divino! Como se não fosse uma coisa evidente. O deputado nacional­‑liberal: Vá lá, acalme­‑se. As coisas
O professor convidado: Pois claro, e como não recebemos estão de maneira que há limites para tudo. O debate prova‑
nada, ninguém pode negar que temos o direito sagrado de, velmente não tarda a ficar ultrapassado. Por sorte, a América
pelo menos, nos queixarmos da violação da neutralidade! vai de certeza entrar na guerra e então os nossos compatriotas
O deputado nacional­‑liberal: Pois claro, e tanto mais quanto de lá, quer queiram quer não, vão ter de cair em si e fornecer
essa violação não existe. É que, está a ver, os Estados Unidos armas à América, em vez de aos nossos inimigos.
declaram expressamente que, dada a natureza da sua neutrali‑ O professor convidado: Assim seja!
dade, nos venderiam armas e munições com tanto gosto como (Muda a cena.)
aos nossos inimigos. E por que razão não havíamos de fazer uso
dessa neutralidade se as fábricas querem fornecer­‑nos? É tam‑ CENA 35
bém esse o raciocínio da Frankfurter Zeitung,28 que comenta a Auditório em Berlim.
famosa revelação do World. O que é lamentável, justamente, é
que não possamos comprar as munições que queremos obter O poeta:
da América às fábricas alemãs locais que fornecem os nossos … Mesmo se carne humana se pisar,
inimigos, seja às que pertencem a alemães de lá, seja às que são Metralha e arame farpado:
propriedade de alemães do Reich. A linha marcada hemos de alcançar
O professor convidado: Como? São empresas alemãs, genui‑ E de actos heróicos cale­‑se o brado!
namente alemãs? Não são inglesas? É nosso dever, isso é quanto basta.
O deputado nacional­‑liberal: Isso sim, parece que várias (Gritos: “Muito bem!”)
das inglesas se recusaram. Bem, o mais provável é que também Sobre a voz de comando justiceira
não nos fornecessem a nós. O azar é mesmo esse, as fábricas Lançam os canhões sua fagueira
inimigas não nos fornecem e as alemãs já estão comprometi‑ Música das esferas.
das com os nossos inimigos. É claro, uma fábrica enquanto tal (Gritos: “É isso mesmo!”)
não tem de respeitar o princípio da neutralidade. Os fabrican‑ É marchar, grita Deus, por nosso chão,
tes alemães é que de certeza não o violam quando fornecem A pátria dos filhos protege a vossa mão!
armas aos nossos inimigos! (Aplauso entusiástico.)
O professor convidado: Nã. Mas… bem… vamos a ver… ai, Nossos barcos pardos
mas que confusão! Nesta guerra, as ideias estão todas trocadas. Têm dentes afiados.
444 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 445
Mordem todo o malfeitor CENA 36
Que ataque o nosso imperador Auditório em Viena.
Sob os céus alemães.
(Tempestade de aplausos. Bravos.) O Eterno Descontente: “De relógio na mão.”
O Kaiser que criou a armada “Um dos nossos submarinos afundou em 17 de Setembro, no
De Deus é aliado, ao fim e ao cabo… Mediterrâneo, um vapor de transporte de tropas inimigo com
(Gritos: “É isso mesmo!”) a lotação completa. O navio submergiu em 43 segundos.”
Pois a Alemanha pra isto foi fadada: Eis aqui frente a frente a técnica e a morte.
Pôr na ordem esses filhos do diabo. Entre bravura e poder já não há sintonia.
Os nossos rapazes O tempo chega ao fim, a noite vence o dia.
São os mais audazes; Salva­‑nos, Deus da guerra, de tão infeliz sorte!
Assobiam p’lo cano do canhão
E o inferno ao inimigo abre o portão De ti, surdamente da máquina saído,
Sob os céus alemães. vítima não foi, mas da máquina invencível!
(Tempestade de aplausos.) Aqui esperava, vencedor impassível,
Prà frente! Avante! Pra fora saltar! um altivo aparelho, de alma desprovido.
Força! Força! A barreira destroçar.
A cotovia canta no azul. Olha um morteiro além. Foge­‑lhe o desgraçado
Hurra! Hurra!, cala­‑te, lamúria! que o inventou. Busca abrigo na cova.
A carne inimiga apunhalar com fúria. Porque anões os gigantes superaram na prova,
A cotovia canta no azul. olhai, o relógio o tempo tem parado.
(Aplausos atroadores.)
Cantemos juntos, camaradas de guerra: Pra a cama, ide dormir. Buscai paz e perdão.
Santificado seja o terror sobre a terra! Senão inda um dia dais emprego a um maneta
(Aplausos intermináveis. Gritos: “Viva Dehmel!”) que, pra que os juros subam, pisa na palheta,
(Muda a cena.) pois Londres inda agora ardeu numa explosão!

Que horas eram, quando foi daquele agora?


Dos gases venenosos está a vista turvada.
Mas os ouvidos ouvem, é a final badalada.
446 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 447
Chega um tempo sombrio, eis a última hora. O Patriota: É bem feito pra eles, esses porcos imundos, o gozo
que isso me dá.
Se tudo se resume a tão confusa história, O Assinante: E, é preciso ver, não é como no nosso país, por
Deus permita que Deus tal coisa nunca leia! causa da guerra… não, eles lá foram deixando ficar essa nojeira
Na prótese o progresso ajeita o pé­‑de­‑meia, durante mais de 100 anos!
de relógio na mão, e na alma a glória. O Patriota: Asquith viveu lá nove anos com a família.
Um ouvinte: (Para a esposa.) Podem dizer dele o que quiserem… O Assinante: Pois, quer dizer que durante nove anos nunca
mas lá que tem jeito pra escrever, tem! tomou banho, ele e a família toda.
(Muda a cena.) O Patriota: Bem, isso é que não se pode dizer. Talvez tenham
frequentado os banhos públicos.
CENA 37 O Assinante: Ora essa, isso nunca veio nas notícias! Ou alguma
O Assinante e o Patriota em conversa. vez viu no jornal…
O Patriota: Que me lembre, não.
O Patriota: Em Downing Street não há casa de banho! Então O Assinante: Está a ver!
que é que me diz a esta? O Patriota: Mas sabe o que é capaz de ser possível? Está bem,
O Assinante: Que é que eu hei­‑de dizer, os muros estão a deixar não há casa de banho em Downing Street. Está bem, está pro‑
passar água. vado que eles também nunca frequentaram os banhos públi‑
O Patriota: Em Downing Street não há casa de banho! cos… mas não se pode concluir daí que, durante 100 anos, eles
O Assinante: Pois, e a quem é que temos de agradecer esta des‑ não tomaram nem um único banho.
coberta surpreendente? A ele! O Assinante: Como assim? Quer­‑me cá parecer que você se está
O Patriota: Claro, mas a verdade é que quem fez esta desco‑ a armar em céptico!
berta surpreendente foi a senhora Lloyd George, temos que o O Patriota: Ora veja, a senhora Lloyd George descobriu,
admitir. escreve ele, quando a família se mudou pra lá. Ora, se ela
O Assinante: Está bem, mas ele é que publicou a notícia! descobre uma coisa destas… que é que ela vai fazer de
O Patriota: Pois, e sabe o que é que se conclui daí em toda a boa futuro?
lógica? O Assinante: Sei lá! Estou cá pouco ralado!
O Assinante: Ora, ele escreve expressamente que os primeiros­ O Patriota: Ela vai fazer, presumivelmente, o que também é
‑ministros britânicos, que há cento e tal anos residem em mais que provável que a Asquith tenha feito…
Downing Street, de duas uma, ou renunciaram ao luxo de um O Assinante: E então que é que ela fez?
banho ou foram forçados a frequentar os banhos públicos. O Patriota: Que é que ela fez? Ela fez, presumo eu, o que é mais
448 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 449
que provável que tenham feito todos os que lá moraram desde O Assinante: A quem o diz! Mas não é das canalizações! Em toda
há 100 anos. a Entente, ao que ouço, não há uma casa de banho.
O Assinante: E então que é que eles fizeram? O Patriota: Bem, isso é um exagero, não viu no jornal, a czarina
O Patriota: Que é que eles fizeram? Ora, em Schönbrunn há na banheira?
uma casa de banho? O Assinante: Está bem, mas toda a gente sabe que ela tinha de a
O Assinante: Não há? Mas então que é que há?! partilhar com o Rasputine!
O Patriota: Bem… ao que me disseram… quer dizer, não está O Patriota: Sabe o que é que tenho curiosidade em saber?
cá quem falou… mas admitamos… portanto, o imperador O Assinante: O quê? Estou curioso.
desde há 100 anos nunca tomou banho ou acha que ele vai aos O Patriota: Se em Downing Street há uma retrete! Ou se, desde
banhos públicos? há 100 anos, eles são forçados ou a prescindir desse luxo ou a
O Assinante: Lindo patriota você me saiu! Mas o que é que isso frequentar os sanitários públicos. Deus castigue a Inglaterra.
tem a ver, diga antes o que é que eles faziam em Downing Street. O Assinante: Vamos a ver. (Saem.)
O Patriota: Que é que eles faziam? Mesmo o simples leigo é (Muda a cena.)
capaz de perceber… mandavam uma criada ir buscar água e
diziam­‑lhe para trazer uma tina e tomavam banho lá dentro! CENA 38
O Assinante: (Tapa os ouvidos.) Não posso ouvir uma coisa Num compartimento de caminho­‑de­‑ferro.
dessas! Você rouba a última ilusão a uma pessoa!
O Patriota: Bem, sabe, isto é só uma suposição. Eu, por mim, Um caixeiro­‑viajante: É deliciosa a nova opereta, Tive um Dia
até estou mais inclinado a acreditar que ele tem razão… quer um Camarada.
dizer, que eles ou não tomavam banho de todo ou eram força‑ Segundo caixeiro­‑viajante: Conheço. Eu sou representante
dos a frequentar os banhos públicos. do papel mata­‑moscas Hindenburg. Lema: “Outro melhor não
O Assinante: E o que eu lhe digo é que eles não tomavam banho há.” E o senhor?
de todo. Ponto final! Poincaré está abalado e Lloyd George O primeiro: Chocolate de guerra Diana. Embalagem com os
humilhado. Ingleses e alemães vão­‑se encontrar em Estocolmo. retratos dos nossos generais. Ora prove lá… (Abre a maleta
O Patriota: Mas o que é isso? Que é que tem a ver uma coisa com das amostras.) Antes disso, fui campeão de vendas em vários
a outra? Você já me parece o Biach. ramos.
O Assinante: Pois olhe, você devia saber isso, é assim que ter‑ O segundo: Então, se me dá licença. (Come.) Extraordina‑
mina um editorial! riamente saboroso. Diga­ ‑se de passagem que eu também
O Patriota: Pois claro… eu sei! Sabe o que é que eu acho? Os represento preparados da indústria alimentar. Por exemplo,
muros estão a deixar passar água. Hygiama.
450 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 451
O primeiro: O quê, o senhor é representante da Hygiama? Mil Os versos não são menos suculentos que a mercadoria. Estu‑
cumprimentos! penda apresentação! Por mais que eles se mordam, nós, ale‑
O segundo: (Abre a maleta das amostras.) Ora prove… mães, somos mesmo o povo dos poetas.
O primeiro: Com sua licença. Ah, vem com instruções de uso. O segundo: Então não é? Pois, eles que tentem imitar­‑nos, com
(Come e vai lendo.) aquela alma de merceeiro britânica! Isto é made in Germany,
Se os franceses tens encurralados, mesmo que não venha aqui indicado. Não falta nada, numa
É sacudir­‑lhes bem esses costados, combinação atraente. Pela pátria e pelos negócios, e quando do
Se encontrar um bretão é o que te calha, que se trata é de ir avante, põe­‑se a arte ao serviço do comer‑
Corre­‑me a pontapés esse canalha, ciante! Está a ver, até eu arranjei agora uma bela rima.
Se vês ao longe um russo a espreitar, O primeiro: Não me diga que estes deliciosos versos são seus!
Não percas tempo, fá­‑lo baquear. O segundo: Nã, que ideia, a minha firma só emprega poetas de
(Fica­‑te a distância bem segura primeira classe. Assim de repente, nem estou sequer em con‑
Dos piolhos da imunda criatura.) dições de lhe poder responder.
Boa! O primeiro: Serão de Presber, ou de Bewer?
Mas se queremos que haja heroicidade, O segundo: De verdades não sei dizer­‑lhe. Seja como for, a nossa
Não pode o corpo passar necessidade. malta de cotim fica contente. O alemão leva as coisas a sério,
Se falhar a ração do regimento, mas nem por isso o humor deixa de afirmar os seus direitos.
Terás isto como último alimento, Assim dispara­‑se de alma mais leve e vai­‑se mantendo a saúde.
Estas tabletes, que são pra guardar, Na sua firma já houve alguma baixa?
Da negra fome te poderão salvar. O primeiro: Claro que sim, o nosso patrão jovem tombou no
Usa­‑as só em caso de aflição, altar da pátria. Aqui tem o anúncio.
E nunca queiras delas fazer pão, O segundo: (Lê.) “A sua ampla visão comercial cedo lhe deu
Depois de devagar as saborear, consciência dos grandes objectivos do prélio e foi com alegria
Mais força hás­‑de ter pra disparar. que partiu para a linha da frente, pro gloria et patria. E eis que
Come com tento e verás que, sem custo, a Norna lhe barrou os caminhos que um amor constante lhe
Voltarás vencedor, são e robusto. aplanara em trabalho infatigável.” Com mil raios! Soberba
E nós te agradecemos satisfeitos, apresentação!
Se nos chegar notícia dos teus feitos. (Muda a cena.)
Sociedade de produtos alimentares do
Dr. Theinhardt Stuttgart­‑Cannstatt.
452 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 453
CENA 39 CENA 40
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. As termas alemãs de Groß­‑Salze. Em primeiro plano, um
parque de brincadeiras infantil. Avista­‑se uma alameda, em
O Optimista: Em que é que está a pensar? Num problema de cuja entrada, à direita, está um letreiro “Libertai os soldados!”
linguagem? e, à esquerda, um letreiro “Proibida a entrada a feridos”.
O Eterno Descontente: É verdade. Li hoje que os alemães con‑ À esquerda, a vila Wahnschaffe, um edifício adornado com
quistaram as posições avançadas inimigas. Aí, ocorreu­‑me que ameias, pináculos e torreões, em cujo frontão ondeiam ao vento
eles também conquistaram as suas próprias e as inutilizaram uma bandeira negro­‑vermelho­‑dourada e uma negro­‑branco­
completamente. O que ficou são crateras. ‑vermelha.29 Sob o frontão, uma inscrição com as palavras
O Optimista: Em que sentido diz isso? Em sentido concreto ou “De todo o coração, com todas as forças, por Deus, Imperador
literal? e Pátria!” Um jardinzinho anterior modesto com figuras
O Eterno Descontente: Em ambos, quer dizer, em sentido de corças e gnomos e, no meio deles, uma velha armadura
literal. Creio que Schopenhauer teria reflectido sobre o mundo de cavaleiro. Frente à entrada, à direita e à esquerda, dois
como vontade de poder e representação alemã. modelos de obus de morteiro, um com a inscrição “Força
O Optimista: Ora, e então Nietzsche? neles!”, o outro com “Resistir a pé firme!” As janelas em ogiva
O Eterno Descontente: Teria retirado com pesar a vontade de da fachada têm vidros tipo fundo de garrafa.
poder como representação equivocada. O conselheiro comercial Ottomar Wilhelm Wahnschaffe
(Muda a cena.) sai da vila e canta o seguinte couplet, em que as últimas notas
de cada estrofe são acompanhadas por um coro invisível,
que representa as gargalhadas dos países estrangeiros.
454 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 455
No mar ou no céu distante, Digo com a mão no coração:
quem foge à luta é um tratante. nós precisamos de exportação.
Eu, que de mil coisas trato, E pra um lugar ao sol ganhar
recebi outro mandato, lá prà trincheira vamos marchar.
luto e estou sempre em guarda, Morar em tal fraca habitação
resisto na retaguarda, vai garantir­‑nos a expansão.
e os meus tratos constantes Dantes vantagens não queria, não,
enfurecem os tratantes. é um herói, o novo alemão.
Força neles! Alemão sou! O novo alemão é alemão!

Já era um escravo na paz, Armas sem conta a guerra nos traz,


fez­‑me a guerra mais tenaz. a sorte ajuda quem é audaz.
Andei sempre numa fona, O nosso fim é alimentar­‑nos
mas a guerra é que me apaixona. e para tal no esterco espojar­‑nos.
Antes já a vida era trabalho, A prece e o negócio misturamos,
meu lucro ora na frente amealho. a arte pra dar lucro utilizamos.
Ser besta de carga é boa cartada, Era uma vez, mas ora ’stá acabado,
às ordens da indústria pesada. Walhalla é a praça do mercado.
Viva Krupp e a guerra, alemão sou! Pròs ideais vive o alemão!

O meu empenho é total, Nesta enorme caldeirada


dia ou noite, tanto vale, a vida é mansa, mas enleada.
está firme a guarda do Reno, Faltando o que pôr na mesa,
se meu descanso foi pequeno. a bela vida vira tristeza.
Antes da guerra lutei por cem, Quando se vive da mão para a boca,
por isso há guerra e estamos bem. a energia da vida é pouca.
Batemo­‑nos como valentes Como, porém, nem só o pão alenta,
e arrasamos os concorrentes. a pátria alemã a pé firme aguenta.
Prò que der e vier: alemão sou! De ideais vive o alemão!
456 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 457
Em nome deste salutar preceito E mil diabos que houvesse na terra,30
está o mundo em sangue desfeito. diz a cartilha: bem­‑vinda é a guerra.
Pra pôr o metal sonante a circular, Por isso a Alemanha, sem hesitar,
a humanidade o sangue tem de dar. acaba por tudo à frente levar.
Veneno por pão, ouro por ferro é dado Somos um povo sempre garboso
e o Deus alemão seja louvado! e o mundo todo está invejoso.
Dai sangue – já o sabíeis com certeza! – Deus sabe como nós somos valentes,
por marcos: vale a pena a despesa! oxalá ele à Inglaterra parta os dentes.
Do lucro está à espera o alemão! Pelo Deus alemão, alemão sou!

E se a nossa causa mostra má tendência, Louvamos Deus à moda da terra,


a verdade quem nos dá é Wolff, a agência. ao preço antigo de antes da guerra.
E se a verdade outra vai escasseando, De Deus, o justo, pra maior glória,
do que há em casa vamos manducando. ganhamos à sombra nossa vitória.
Se “sucedâneo” é forma estrangeira, Se só houvesse a luz do sol,
isso aos alemães não dá canseira. a vida não valia um caracol.
Dizemos logo, em substituição, Somos felizes só a disparar,
“Ersatz”, que é do melhor alemão. e gaudeamus igitur vamos cantar.31
Em alemão: alemão sou! É um tipo bacana o alemão!

Matar­‑nos à fome – é só pra rir, Mas há uma verdade pura e dura,


que é vontade de poder nosso porvir. nós, alemães, temos bem mais cultura.
Lá no submarino, à gargalhada, De tudo aquilo que nos coube em sorte,
dizemos apenas: não escapa nada a cultura é que nos dá o norte.
ou só n.e.n. pra tempo poupar. Adoramos os nossos generais,
No Spree é que se aprende a navegar, mas somos o povo dos intelectuais.
de que serve ao inimigo a confiança, Schiller, e Goethe até, nós veneramos,
se é com esterco que enchemos a pança. “ele era nosso”32 é o que mais rezamos.
A guerra não dobrará o alemão! A cultura alegra a casa do alemão!
458 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 459
Alemães são a mente e o coração, A honra é tudo que nos interessa.
com Deus, por Krupp e pela nação! Não, a Bélgica é pra nós, ora essa!
Hindenburg as fronteiras nos guarda, A honra é a nossa veste pura,
e eu cá defendo a retaguarda. é a coisa que temos mais segura.
Nós, alemães, somos gente de sorte: A vitória final vai dar­‑nos razão:
se ocupamos nosso próprio forte, o mundo todo vamos ter na mão!
ao retirarmos modestamente, E assim venderemos por bom dinheiro
há festa rija pra toda a gente. toda a nossa tralha de bufarinheiro.
Hurra! Diz então o alemão. Sim, made in Germany é o alemão!

Inimigos mil? Tanto melhor! Só porque de sol um dia precisámos,


Pão já só há do que tem bolor. o mundo todo em noite mergulhámos:
E sendo assim, sem hesitar, com fumo e vapor e com gás letal,
o mundo vamos bombardear. vamos lutar té o Juízo Final.
A ciência alemã dá­‑nos a mão Enquanto não soa de Deus o trovão,
e Deus, que pune o infame bretão serve de Ersatz o nosso canhão.
e que o homem criou para mais nada Pois que sempre e sempre em todo o lado,
senão a vida passar à pancada. troveja bem alto o nosso brado.
Porque a imagem de Deus é só o alemão! Prático, não, da parte do alemão?

Inda mais que no inimigo malhar, Pôs a ferro e fogo o inteiro globo
malhemos no slogan que nos faz juntar. a agência Wolff, de dentes de lobo.
A verdade no fim será encontrada: Mentre outros povos inda houver também,
até ao fim será a guerra travada! ao nosso ninguém quererá bem.
Ficará pra sempre a nossa bandeira É que só quem nas armas tudo aposta
lá em Briey na bacia mineira. na verdade de nossos feitos gosta.
É que a paz só nos pode interessar Deseja o mundo andar descansado
se o mundo pudermos anexar. e de trovão é o nosso brado.
Esse ao menos pertence ao alemão! Assim em toda a parte se ouve o alemão!
460 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 461
Finda a guerra, trabalho vai haver Wahnschaffe, com os filhos, que desaparecem de imediato no
e inda mais guerra e penas pra sofrer. parque de brincadeiras para se entregarem a um jogo bélico.)
Como me alegro já de antemão, Senhora Wahnschaffe: Só tenho dois filhos que, infelizmente,
nunca por nunca se acaba a paixão. ainda não têm idade para o serviço militar, tanto mais que,
Ah, se ao menos já tivéssemos paz, para desgosto nosso, um deles é uma menina. Assim, tenho
porque estar farto dela é que me apraz! que remediar­‑me com um sucedâneo, entregando­‑me à ideia
A técnica é preciso melhorar. de que o meu rapaz já esteve na linha da frente, mas, evi‑
No submarino pode­‑se confiar. dentemente, encontrou já uma morte de herói, eu morria de
Como ama o progresso o alemão! vergonha se não fosse assim, se, por exemplo, ele me tivesse
regressado a casa sem ter sido ferido. De maneira nenhuma
Vai redobrar o serviço militar, ele poderia ficar nas linhas da retaguarda, embora também aí
pròs bebés lançar chamas ensinar. seja fácil haver uma bala perdida. Esta ideia, que é o melhor
Mas também para os mais crescidos consolo que eu tenho e que defendo contra todas as dúvidas,
todos os deveres vão ser mantidos. rechaçando sem custo essas dúvidas, esta ideia vou­‑a conso‑
Para as lições não se desaprender lidando enquanto o meu Ottomar querido está no trabalho.
é mister os quartéis fazer crescer. Quer dizer que estou sempre ocupada, tirando a meia hora que
Pra nos livrar da paz, esse veneno, o meu maridinho, que foi agora mesmo para a labuta, tira para
firme e leal ’stá a guarda do Reno. comer. E no que toca a esta comida, também aqui, enquanto
Com a história aprende o alemão! diligente dona de casa, me remedeio com ideias. Hoje estive‑
mos bem abastecidos quanto a este ponto. Houve de tudo um
E mil diabos que na terra houvesse, pouco. Tivemos um saboroso caldo de cubos Hindenburg­
se nela enfim já gente não vivesse, ‑cacau­‑natas marca Excelsior, um apetitoso sucedâneo de
e tudo enfim estivesse acabado lebre com sucedâneo de nabo, bolinhos de batata de parafina e
com o inimigo todo exterminado, um puré caseiro, tudo, é claro, feito na frigideira Obu, e, para
e o futuro risonho e promissor finalizar, sucedâneo de bolos de massa folhada com chantili
pois o prussiano é rei e senhor… que nos soube pela vida. Uma dona de casa alemã conhece os
Nessa não caímos, o povo é sereno! deveres que tem para com o marido nesta época grave, mas
Está firme e leal a guarda do Reno! grande. É certo que o maridinho fez fita por não lhe darem
E vai guerreando e vencendo o alemão! a sua deliciosa massa de ovos caseira. Não há: que remédio
(Depois de ele sair de cena, aparece a esposa, a senhora Auguste teve ele senão conformar­‑se. Do que de início sentíamos muito
462 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 463
a falta era do sucedâneo de margarina, mas como temos uma Sempre o Melhor. O maridinho teve a sua água de bolotas, que
Obu, agora não nos falta nada. Na associação das donas de casa, é quase tão saborosa como o café Tutti­‑Gusti da marca Trin‑
decidimos há pouco por unanimidade que a levedura mineral cheiras, que agora está esgotado. Infelizmente, porém, tivemos
cujo teor de albumina se obtém basicamente da ureia é equiva‑ de nos arranjar sem sacarina líquida, de modo que a seringa
lente em valor nutritivo à levedura de cerveja e, por isso, deveria ficou de lado, vazia. Obedecendo a uma súbita inspiração, eu
deixar de ser distribuída exclusivamente às cozinhas popula‑ queria enchê­‑la com um sucedâneo de hidrogénio líquido,
res. Hoje, está na moda condescender com as amplas cama‑ para o maridinho poder manter a ilusão; mas isso teria sido
das da população. Esta preferência unilateral tem que acabar. enganar o esposo e quando se dá um mau passo, o segundo
Os círculos burgueses também querem viver. Os derrotistas, vem logo a seguir. Assim, acabei por não fazer nada. É ver‑
que mesmo neste ponto encontram que dizer, objectam que a dade, foram­‑se os belos tempos em que tudo era ainda fácil
coisa cheira a arenque e tem sabor a petróleo e, assim, é sus‑ e bastava apertar a seringa para adoçar o sucedâneo de café
ceptível de provocar náuseas. Mas nós, donas de casa alemãs, é de guerra. Mas como, se não fosse assim, não chegaríamos a
que sabemos e esperamos que estas peculiaridades se dissipem ter consciência de que agora do que se trata é de resistir a pé
por completo durante a cozedura, mais do que isso, estamos firme, não nos importamos de pagar o preço destas pequenas
convictas de que a levedura mineral confere aos alimentos um privações. Tanto mais que a verdade é que agora não há mais
sabor requintado. Depois do almoço, volta de novo a preocu‑ nada por que se possa pagar, de maneira que podemos aforrar
pação com o jantar. Para o jantar há hoje, como sempre, um sem mais o dinheirão que o meu maridinho ganha. Não tarda
cozido, mas, para variar, também pasta de fígado à base de cola está aí a paz podre, em que se poderá outra vez gastar dinheiro
de amido e legumes tingidos de vermelho e, como sucedâneo em ninharias. Mas esperemos que a guerra dure ainda tempo
de queijo, coalhada berlinense com sucedâneo de pimentão, e suficiente para que as coisas melhorem também nesse sentido.
hoje vamos também experimentar aquele Tudoemum de que No último congresso do Partido Patriótico,33 o meu maridi‑
toda a gente fala como sucedâneo de ovos Dottofix à base de nho fez a proposta de que a guerra que a inveja britânica, a
carbonato de cálcio com fermento e um pouco de Salatfix, um sede de vingança francesa e a cobiça russa nos impuseram
ingrediente delicioso que eu prefiro de longe ao Salatin e ao seja prosseguida mesmo depois do acordo de paz, e conseguiu
Salatol. É que, para a mesa da família alemã, tem de ser tudo do uma maioria esmagadora a favor. Agora do que se trata é de
bom e do melhor, e há de tudo, não somos nenhuns pelintras. resistir a pé firme, e quanto mais tempo, melhor. Nós vamos
Para a merenda, ontem experimentámos o Teefix de Deutscher conseguir. Não passa um dia sem que venha uma notícia que
com aroma de rum e tivemos uma surpresa muito agradável. faz palpitar o coração. Nas palavras de Emmi Lewald: “Três
É certo que os miúdos fizeram barulho por não lhes darem mil ingleses mortos na linha da frente! Nenhuma sinfonia me
as suas granadas de rum da marca Para os Nossos Guerreiros seria agora tão grata ao ouvido! Como corre agradavelmente
464 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 465
pelos nervos, alegre, esperançosa. Três mil ingleses mortos na de “Túmulo Doméstico do Herói”, ao mesmo tempo relicário e
linha da frente!… ecoa mesmo nos meus sonhos e sussurra porta­‑retratos, oferecendo, assim, não apenas uma requintada
como uma sedutora melodia em torno à cabeça.” É na editora decoração para a casa, mas também edificação religiosa. Fico
Velhagen & Klasing que ela proclama isto. Eu também sinto melancólica de pensar que nós próprios, infelizmente, não
assim. E como amo a maravilhosa Anny Wothe, que faz a mag‑ temos serventia para um culto dos mortos tão moderno no
nífica mulher de soldado do seu livro anunciar ao marido o quarto. Os meus filhos, que não têm idade para morrer já pelo
nascimento de um rapaz saudável: “Graças a Deus, mais um imperador ou se sacrificarem de outra maneira pela pátria,
soldado! O menino há­‑de chamar­‑se Wilhelm, há­‑de vir a ser têm infelizmente também a desvantagem de não terem nas‑
tão forte como o nosso imperador e há­‑de dar­‑lhes em cima cido só depois do eclodir da guerra. Se não fosse assim, o rapaz
até os fazer em fanicos! Os outros rapazes, esses rezam todos chamava­‑se Varsóvia e a rapariga Vilna, ou ele Hindenburg e
os dias pra que tu mates muitos franceses. Eu também rezo, ela Zeppeline! É que o rapaz chamar­‑se Wilhelm era evidente
mas não pela tua vida. Essa está nas mãos de Deus. Eu rezo mesmo antes da guerra, não vejo nisso uma especial home‑
pra que cumpras o teu dever como deve ser, pra que não estre‑ nagem patriótica. Ah, ali vêm eles a correr, os meus queridos!
meças quando chegam as balas e pra que morras tranquilo, se Que se passa? Então não estão a brincar à guerra mundial?
tiver de ser, pela nossa pátria e o nosso imperador, sem pensar Willichen: (A chorar.) Mamã, a Mariechen não quer estar morta!
em nós. E se puderes morrer pelo teu capitão, também não Mariechen: Estivemos a brincar aos cercos, depois à guerra
penses em nós. Os cinco mais eu mandam­‑te saudades. No mundial e agora…
baptizado do Wilhelm, eles querem cantar ‘Glória a Ti, Lau‑ Willichen: (A chorar.) Mas eu só queria um lugar ao sol e
reado Vencedor’,34 com o que me assino a tua fiel esposa!” então…
– Ah, Deus sabe que a única razão por que não posso escre‑ Mariechen: Ele está a mentir!
ver também assim ao meu marido é ele, infelizmente, não Willichen: Eu bombardeei com êxito a posição dela e ela agora
estar na frente, porque, felizmente, é imprescindível e, além não quer estar morta!
disso, só ter um filho, já que o mais pequeno, como já disse, é, Mariechen: (A chorar.) Nã, nada disso, é uma mentira inimiga,
desafortunadamente, uma rapariga. O sacrifício de não poder típica notícia da Reuter! Primeiro ele conquistou a minha
fazer sacrifícios pela pátria tem de ser compensado pelos êxi‑ posição e agora vem pelo flanco! Eu repeli o ataque sem custo
tos nos negócios. Wahnschaffe acaba de criar uma novidade e agora ele diz…
bélica verdadeiramente interessante, que já está protegida por Willichen: A Mariechen está a mentir! O contra­‑ataque dela
patente na Alemanha e na Áustria­‑Hungria, que combate ao soçobrou sob o nosso fogo. Agora, os últimos ninhos de ingle‑
nosso lado ombro com ombro, e cuja distribuição é confiada a ses estão a ser limpos. Cinco dos nossos não regressaram.
cavalheiros zelosos a troco de uma comissão elevada. Trata­‑se Mariechen: Aumentam os combates em Smorgon.
466 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 467
Willichen: Fizemos prisioneiros. Mariechen: E depois? Dois civis e uma mulher. Os danos milita‑
Mariechen: Capturámos um certo número de prisioneiros. As res são insignificantes. É sempre a mesma coisa.
vagas de ataque repelidas pelo nosso fogo tiveram de regredir Willichen: Ela não respeitou a bandeira da Cruz Vermelha.
em desordem, deixando muitos cadáveres no nosso terreno. É sempre a mesma coisa.
Willichen: É esse o método implacável dos russos, que, nas suas Mariechen: Ele também não! É sempre a mesma coisa.
ofensivas, empurram as massas para a frente. As posições per‑ Willichen: Quem é que começou?
maneceram nas nossas mãos. Conseguimos acertar em cheio Mariechen: Eu também não!
no alvo. Senhora Wahnschaffe: (Que, até este momento, esteve a ouvir
Mariechen: Eu passei à ofensiva. de olhos brilhantes.) Mariechen, vê se estás quieta, o pai disse
Willichen: Eu preparo­‑me para uma terceira campanha de que podeis brincar à guerra mundial, mas que tendes de res‑
Inverno. peitar os limites da humanidade. O Willichen não faz mal a
Mariechen: Genial! És um gabarola! uma mosca, está a proteger as suas possessões como pode. Está
Willichen: Já vais ver, eu luto até à última gota de sangue! empenhado numa guerra sagrada de defesa.
Mariechen: Seu inglês preto e francês! Willichen: (A chorar.) Eu não quis isto.35
Willichen: O russo conseguiu firmar­‑se nas nossas trincheiras Mariechen: Então quem quis?
da primeira linha, mas um contra­‑ataque executado por nós Willichen: Força neles! (Bate­‑lhe.) Acertei em cheio no alvo.
ao romper da alva… Mariechen: (Bate­‑lhe.) Ora chega­ ‑te à minha posição de
Mariechen: …expulsou­‑o de novo. barreira!
Willichen: Vários contra­‑ataques que o inimigo tentou durante Senhora Wahnschaffe: Deixa­‑o, minha bonequinha.
a tarde… Willichen: Esperem só, vou buscar o meu lança­‑chamas!
Mariechen: …foram frustrados por um ousado golpe de mão. Senhora Wahnschaffe: Meninos, brincai, mas respeitai os
(Bate­‑lhe.) limites! Se o Willichen continuar a ser tão valente, o papá vai­
Willichen: Ela está a mentir! Aliás, trata­‑se dos típicos êxitos ‑lhe trazer a Cruz de Ferro do escritório.
iniciais de toda a ofensiva. (Bate­‑lhe.) Willichen: Hurra! Aí tens o teu penhor belga! (Lança­‑se sobre
Mariechen: É preciso cuidado para não exagerar as previsões Mariechen e dá­‑lhe uma tareia. Mariechen chora.)
optimistas sobre a ofensiva. Senhora Wahnschaffe: Willichen, sempre com humanidade.
Willichen: No último ataque aéreo à fortaleza de Londres… Não te esqueças da tua educação! (Aproxima­‑se de Mariechen
Mariechen: …exerci de imediato represálias! Karlsruhe… com um lenço.)
Willichen: Sim, morreram três civis, entre os quais uma criança. Meninos, de volta prà trincheira,
Os danos militares são insignificantes. É sempre a mesma coisa. Mas não sem antes o nariz te limpar.
468 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 469
Mariechen: (A chorar.) (Hans Adalbert, três anos, encontra­‑se com Annemariechen,
O puto faz­‑me a fábrica em poeira dois anos e meio.)
E gases letais está a usar! Hans Adalbert: Ouvi dizer que subscreveste o empréstimo de
(Levanta­‑se e põe Willichen em fuga.) guerra.
Willichen: A retirada é apenas estratégica. (Enquanto corre.) Na Annemariechen: É verdade, achei que tinha esse dever. Pelas
expectativa deste ataque, há anos que o abandono do saliente conversas dos adultos, percebi toda a grandeza do significado
exposto a um movimento envolvente por ambos os flancos do empréstimo de guerra e vai daí insisti (bate com o pé no chão
tinha sido equacionado e desde há dias que fora iniciado. Por e gesticula com veemência) em não brincar apenas ao emprés‑
isso, não levámos o combate até final e executámos as movi‑ timo de guerra, mas também levá­‑lo a sério. Ante os meus
mentações programadas. O inimigo não conseguiu impedi­ pedidos insistentes, os pais retiraram todo o conteúdo do meu
‑las. (À distância.) Hurra, vou ocupar a posição Siegfried! mealheiro, 657 marcos, e…
(Dois inválidos passam a coxear, em direcção à alameda.) Hans Adalbert: Com ou sem garantia?
Senhora Wahnschaffe: Bem, agora tenho que ir ver se tudo Annemariechen: Com garantia, é claro!
está em ordem. Hoje vamos fazer as limpezas com o sucedâ‑ Hans Adalbert: Caramba!
neo de sabão Filho da Guerra. (Avista os inválidos.) Outra Annemariechen: Que sirva de exemplo para ti e para todos.
vez! Isto começa a ser de mais! Se eles não repararem agora no Hans Adalbert: Quem pensar o contrário é um canalha! (Saem.)
letreiro, vou­‑me queixar ao regedor. (Entram August e Guste.)
(Os dois param em frente ao letreiro e dão meia­‑volta.) Guste: Dentro de dois meses, a Inglaterra vai estar de joelhos.
Um: Então para onde? August: Achas que sim? Eu não sou um derrotista, mas que me
O outro: Voltamos para a linha da frente. Para aí deixam­‑nos ir. dizes tu da América?
(Saem a coxear.) Guste: Ora, esses pássaros já a gente conhece.
(Entra uma criada com um rapaz de três anos de dedo no nariz.) August: O nosso estado de ânimo é grave…
A Criada: Fritz, não tens vergonha? Espera aí que eu vou dizer Guste: …mas confiante! (Saem.)
ao Hindenburg! (Entra uma criada com uma rapariga de três anos de dedo no
(Fritz, assustado, tira o dedo do nariz.) nariz.)
(Hänschen encontra­‑se com Trudchen.) A criada: Mieze… espera aí, olha se o grande Estado­‑Maior vê isso!
Hänschen: Deus castigue a Inglaterra! (Mieze, assustada, tira o dedo do nariz.)
Trudchen: (Olhando­‑o com firmeza.) Deus a castigue! (Klaus encontra­‑se com Dolly.)
(Saem de cena ombro com ombro, cantando o “Cântico de Ódio” Klaus: A gente estávamos cercados, qualquer criança é capaz de
de Lissauer.) reconhecer isso hoje.
470 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 471
Dolly: Inveja britânica, sede de vingança francesa e cobiça russa… A mãe: Mas que mentalidade estranha tem a criança. Mas então
fica­‑se esclarecido. A questão da culpa pela guerra responde­‑se porquê?
por si. A Alemanha queria um lugar ao sol. A filhinha: É nisso que somos superiores aos ingleses e é por
Klaus: A Europa era um barril de pólvora. isso que eles têm inveja de nós.
Dolly: O tratado belga era um pedaço de papel. (Saem.) A mãe: Ah, está a ouvir? Então o quê, filha minha? Porque é que
(Walter encontra­‑se com Marga.) os ingleses têm inveja de nós… Ora diz lá isso ao tio, Elsbeth!
Marga: O meu pai assinou o protesto dos 93 intelectuais.36 Mas A filhinha: Os ingleses têm inveja de nós porque nós estamos
disse que não o tinha lido, queria assinar de cruz. E o teu pai? em processo de ascensão e eles de decadência. Isso porque os
Walter: O meu pai leu o manifesto. alemães, depois do trabalho, continuam a trabalhar, enquanto
Marga: E o que é que disse? os ingleses se divertem com jogos e com o desporto.
Walter: Que sim, que ia assinar. (Saem.) A mãe: Palavras que valem quanto pesam, Elsbeth. Nã, tu não és
(Paulchen encontra­‑se com Paulinchen.) mesmo obrigada a brincar mais, Elsbeth. Uma criança assim
Paulchen: Aparentemente, Bethmann Hollweg está a favor de até nos faz corar.
uma paz com cedências. O cavalheiro: Sabedoria infantil.
Paulinchen: O Tirpitz está­‑se nas tintas pra isso. A mãe: Vou mandar uma carta à Berliner Zeitung!
Paulchen: Eu também. E tu? O cavalheiro: Não, é melhor mandar para a colectânea
Paulinchen: Era o que faltava! Só se for pra rir! (Saem.) A Criança e a Guerra, sentenças infantis, redacções, descrições
(Entram Jochen e Suse.) e desenhos. (Saem.)
Jochen: Do que mais precisamos é do ultramar. É o que te digo, (Um pai com o filhinho.)
se não fizermos progressos no comércio mundial, a guerra cor‑ Filho: Papá, no Berliner Tageblatt vem uma notícia da Agência
reu mal à Alemanha. Wolff a dizer que, devido à guerra, se verificou uma agradá‑
Suse: Cambada de palermas. Temos de anexar territórios no vel descida da mortalidade infantil, pelo menos nas cidades
continente. Precisamos da Bélgica como base para a aviação e alemãs, para os campos não estão disponíveis as estatísticas
além disso, por exemplo, da bacia de Briey, de outro modo… correspondentes, pois, e é fácil de imaginar que a situação
Jochen: O que tu dizes é o mínimo. (Saem.) nessas áreas ainda seja mais favorável. A guerra, diz a notícia,
(Uma mãe com a filhinha, com um cavalheiro ao pé.) tornou­‑se de todo em todo numa fonte de rejuvenescimento.
A mãe: Então, Elsbeth, não queres brincar? Papá, eu entendo que com a guerra os bebés não se esgotaram,
A filhinha: Nã. porque ainda não têm idade para se tornarem úteis à pátria,
A mãe: Mas brinca, minha filha. mas explica­‑me, papá, como é que a guerra faz baixar a mor‑
A filhinha: Nã. talidade infantil?
472 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 473
Pai: A diminuição do número de nascimentos provocada pela CENA 41
guerra… O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
Filho: Ah, não venhas com conversas, nesse caso devia era haver
menos bebés e não mais… O Optimista: A Neue Freie Presse dá destaque, com razão, ao
Pai: Cala a caixa. A diminuição do número de nascimentos provo‑ nobre gesto do conde Berchtold de partir agora em pessoa
cada pela guerra foi, em qualquer caso, pelo menos parcialmente, para a frente de combate para, de sabre em punho, defrontar
compensada pela melhor assistência aos recém­‑nascidos. cara a cara aquele inimigo ancestral que causou as maiores
Filho: Ah, que idiotice, então na guerra não reina uma econo‑ dificuldades à sua política.
mia de miséria, como é que os recém­‑nascidos podem ser mais O Eterno Descontente: O senhor está a referir­‑se ao traiçoeiro
bem tratados do que no tempo da paz? Onde é que ides então aliado que o Conrad já há anos queria atacar sem aviso? Bem,
buscar o leite? no que toca ao Berchtold, é uma atitude verdadeiramente leal
Pai: Vê lá se te calas, seu meia­‑tigela! e as coisas agora podem de facto virar a nosso favor, embora,
Filho: Não calo nada! E não me chames mais isso… como o senhor sabe, eu tenha uma opinião muito pessimista
Pai: Vê lá se queres… então porque não? sobre a possibilidade da utilização de sabres nesta guerra.
Filho: Meia­‑tigela! Pois é, caramba, é que, com a idade que tenho, Porém, se, contra o que poderia esperar­‑se, o Berchtold não
nunca vi uma tigela cheia! tiver oportunidade de se encontrar cara a cara com o inimigo
(O pai dá­‑lhe uma bofetada. Saem.) ancestral, porque o dito não é convidado para as comezainas do
(Um outro pai com o filhinho.) Estado­‑Maior do Exército Imperial e Real, de qualquer modo
Pai: Pois é, meu rapaz, força… como é que diz Schiller? “À tua cara o nosso antigo ministro dos Negócios Estrangeiros cumpriu
pátria te apega!”37 o seu dever; ninguém poderá dizer que ele não se apresentou.
Filho: Papá… O Optimista: Estou a ver que o senhor permanece fiel ao seu
Pai: Que é? hábito de deitar tudo abaixo, mesmo perante os exemplos
Filho: Papá, então a pátria agora também ficou mais cara? heróicos da nossa belicosa época. Aqui tem, na Woche, o conde
Pai: Proibitiva, meu filho, proibitiva! Berchtold em uniforme de campanha. Esta fotografia…
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: …é a causa da guerra.
O Optimista: Como assim? Não vê que a fotografia foi tirada
depois do ultimato?
O Eterno Descontente: Com certeza que sim, um rosto aus‑
tríaco antes do facto, um outro que aponta para o facto consu‑
mado;38 e contudo, eles são idênticos. Os sérvios não podiam
474 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 475
aceitar o ultimato porque lhes surgia na ideia esta fotografia. Mas, ante este uniforme singelo, fica­‑se convencido de que o
O receio que a Áustria sentia de, apesar de tudo, eles poderem homem também se daria por contente na trincheira. Um sim‑
aceitá­‑lo não tinha qualquer fundamento. Também uma “loca‑ ples, embora animoso, comandante de pelotão, um gabiru vie‑
lização” da guerra, em que a Áustria tinha depositado esperan‑ nense que, de mãos nas ancas, piscando o olho, diz “olha bem
ças, porque queria zurzir a Sérvia sem o mundo a incomodar, prà minha cara!” ao inimigo ancestral, que só deve chegar­‑se
era impensável, porque o mundo via esse rosto em sonhos. cá se for homem. O homem de Estado comum na linha da
O Optimista: Mais uma vez, não o entendo. frente, sem brincos nas orelhas mas com relógio de pulso, em
O Eterno Descontente: Faz muito bem. Mas o planalto de vez do sabre, eventualmente uma bengala, em vez do charuto,
Doberdo, onde 100 mil vidas se fanaram e se putrefizeram, não o Tosão de Ouro, o qual, porém, como já se disse, provém do
deixa de ser uma Freudenau!39 autêntico cordeirinho. A intenção dele não era essa, mas, se
O Optimista: Não o entendo. Quer dizer que esta fotografia lhe diz… for preciso, comporta­‑se à altura e, como se sabe, graças à sua
O Eterno Descontente: …que um janota das corridas levou o própria decisão de Agosto de 1914, é mesmo preciso. Tudo
mundo à morte! somado, tão longe da soberba como da fraqueza, mais longe
O Optimista: Agora começo a entendê­‑lo. Mas ele não tinha do que da linha da frente, não um cobarde, mas um pândego.
plena consciência do que estava a fazer! O Optimista: Esta fotografia…
O Eterno Descontente: Não, senão não seria um janota e O Eterno Descontente: …foi tirada do álbum dos criminosos
não o teria feito. O que é aterrador é que ele não tinha plena da história universal e há­‑de prestar bons serviços quando se
consciência. E que este argumento seja uma circunstância ate‑ tratar de identificar os responsáveis pela guerra na sessão do
nuante para homens de Estado e para chefes de Estado que, Juízo Final. O original evidentemente que vai ser absolvido por
já por força da lei, não podem ser responsabilizados pelos irresponsabilidade ou por não ser inteiramente imputável.
seus actos. Nenhum deles tinha plena consciência. A Áustria O Optimista: Como é que essa irresponsabilidade vai ser
não tem culpa! Ela limitou­‑se a deixar que a Alemanha lhe demonstrada?
insuflasse a coragem de arrastar a Alemanha para a guerra. E a O Eterno Descontente: Entre outros aspectos, vai provar­‑se
Alemanha empurrou a Áustria para uma guerra que esta não que o inofensivo proprietário de uma coudelaria tinha escon‑
queria. Eles lá são a inocência perseguidora e nós somos uns dida entre os seus programas das corridas a proposta de Grey
autênticos cordeirinhos. Nenhum dos dois tem culpa. à monarquia austro­‑húngara de ocupar Belgrado e diversas
O Optimista: Este rosto dá testemunho verdadeiro de uma cons‑ outras localidades sérvias, como modo de obter a satisfação
ciência tranquila. que pretensamente desejava. Porque a Inglaterra queria ver‑
O Eterno Descontente: Que daria o melhor dos travesseiros, dadeiramente a “localização” que a Áustria esperava de outra
se no quartel­‑general isso fosse coisa de que houvesse falta. maneira, razão pela qual pôs o cognome de “Grey das Mentiras”
476 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 477
ao único homem honrado desta guerra. A fotografia vai con‑ de o pai dos soldados ter empurrado os filhos para a frente à
tribuir para abonar em favor do criminoso, mas também para força de metralhadora, ainda vai a correr visitar os homens
provar a culpabilidade de todos os seus compatriotas. Ela jus‑ antes que chegue a morte de herói e lhes fica na ideia como sím‑
tifica na sua perfeita sem­‑vergonha as intenções agressivas bolo de um abnegado amor à pátria. Contra este agravamento
dos nossos inimigos, para o caso de termos verdadeiramente do dever de morrer pela causa húngara não há protecção e é
conduzido uma sagrada guerra de defesa. Pois mesmo que um espectáculo do qual, é certo, o génio da humanidade, se é
estivesse provado que tínhamos o direito de acometer a Sérvia que ainda existe, desvia o olhar, mas com que a indústria de
porque os porcos húngaros tinham roubado o mercado aos postais obtém lucros.
porcos sérvios, este documento haveria ainda de erguer­‑se e O Optimista: A actividade devotada das enfermeiras da Cruz
de testemunhar contra nós! Vermelha tem por principal objectivo o de, antes da operação
O Optimista: Mas por favor… uma fotografia! Um retrato de de um ferido grave…
acaso! Olhe que na guerra tivemos oportunidade de ver foto‑ O Eterno Descontente: …tirar uma fotografia com ele.
grafias muito piores. O Optimista: Essas fotografias são poses estudadas!
O Eterno Descontente: Está a querer referir­‑se a todos os O Eterno Descontente: Nesse caso, tanto melhor captam a
outros que sorriram durante a guerra mundial. Os generais indignidade. Também o retrato de Berchtold foi uma pose
que sorriram solicitamente perante as feridas dos seus homens. estudada, para mostrar bem o vazio abismal desta cara… o
Ah, estes sorrisos na guerra eram mais impressionantes que as vazio em que todos nos despenhámos e que nos engoliu.
lágrimas! O fotógrafo nem precisava de lhes dizer para fazerem O Optimista: O senhor exagera. Admito que seja verdade que
um sorrisinho, eles de qualquer modo achavam que o mundo esta fotografia não é lisonjeira para nós…
andava direito. O arquiduque Friedrich, inofensivo, como se O Eterno Descontente: Exposta frente aos campos semeados
não fosse capaz de contar até três cadafalsos; Karl Franz Josef, de cadáveres, o fundo que o simpático modelo se encarregou
o sorridente da frente de batalha, que não é capaz de ficar zan‑ de fornecer, ela atinge­‑nos mortalmente. Eu concebo­‑a como
gado com a morte de herói e para quem a grande época vai a única imagem luminosa nestas trevas indizíveis e tenho a
passando como um sonho de valsa; o príncipe­‑herdeiro ale‑ consoladora certeza de que estes traços do rosto austríaco são
mão, apreciado em toda a parte como o “mosquito sorridente”, os últimos. Que tal seria, se a confrontássemos com a imagem
e todos os outros especialistas do sorriso. Dêem­‑me a lousa, daqueles inúmeros mártires que estão à espera na Sibéria ou
tenho que tomar nota de que há quem seja capaz de sorrir, de são maltratados em fábricas de munições francesas, que vivem
sorrir sem parar, e contudo ser um general!40 E então as damas em Asinara ou jazem putrefactos na berma da estrada, sucum‑
que abrilhantaram este baile na frente de combate! Por exem‑ bidos à marcha mortífera do cativeiro sérvio para o cativeiro
plo, a arquiduquesa Augusta, a mãe dos soldados, que, depois italiano. Um deles já tem a forma de esqueleto e abre ainda a
478 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 479
boca, como um pássaro morto à fome. Esta imagem foi vista os mandássemos para a linha da frente, isto é, lá para onde o
por um olhar humano e eu vejo­‑a outra vez. Que tal seria se Berchtold e os seus pares nunca terão de ir. Mas ainda mais
a mostrássemos a este sorridente Berchtold, junto com todo distantes do que eles estão da frente, estamos nós de uma orga‑
o horror de uma evacuação e todos os que foram enterrados nização da vida do Estado semelhante à dos espartanos, que,
vivos e queimados vivos, e as violações de mulheres semi­ como é sabido, eram gente que caprichava em aguentar a pé
massacradas, que assassinos mais compassivos teriam matado firme como nós. Eles expunham os seus cretinos no monte
a tiro! Para a revista Welt und Haus não se fotografaram coisas Taigeto, enquanto nós os colocamos nos cumes do Estado e
destas? E Berchtold, sorridente, foi apanhado na fotografia nos postos diplomáticos de responsabilidade.
quando se preparava para medir forças com o inimigo! O Optimista: A verdade é que nesses lugares, em muitos casos,
O Optimista: Mas não se esqueça, ele não é responsável… eles são…
O Eterno Descontente: Não, só nós é que somos, nós que tor‑ O Eterno Descontente: …irresponsáveis!
námos possível que patifes destes não sejam responsáveis pelas (Muda a cena.)
suas jogadas. Nós é que somos, nós que suportámos respirar
num mundo que faz guerras pelas quais ninguém pode ser res‑ CENA 42
ponsabilizado. Somos responsáveis pela única coisa pela qual Durante a Batalha do Somme. Portão do parque de uma mansão.
tem verdadeiramente de se assumir responsabilidade: pelo Passa uma companhia marchando para as trincheiras da
poder sobre a vida, a saúde, a liberdade, a honra, a propriedade primeira linha, rostos marcados pelo pressentimento da morte.
e o destino do nosso próximo. É que maiores cretinos do que
os nossos homens de Estado… O príncipe­‑herdeiro: (Ao portão, com equipamento de ténis,
O Optimista: …são os dos nossos inimigos? acena­‑lhes com a raqueta.) Força, rapazes!
O Eterno Descontente: Não, somos nós próprios. Com os (Muda a cena.)
nossos inimigos só partilhamos a estupidez de responsabilizar
um e o mesmo Deus pelo resultado da guerra, em vez de nos CENA 43
responsabilizarmos a nós próprios pela decisão de a travar. No Ministério da Guerra. Uma sala do lado que dá para
que toca aos homens de Estado dos inimigos, eles não podem a Ringstraße. Um capitão está sentado a uma secretária.
ser mais estúpidos do que os nossos, porque tal coisa não existe De pé, em frente dele, está um civil de luto carregado.
na natureza.
O Optimista: Relativamente aos nossos pode, de qualquer modo, O capitão: Mas atão que é que o senhor quer mais? Em casos
ter­‑se a percepção… destes não há qualquer possibilidade de ter uma lista. Como
O Eterno Descontente: …de que evitaríamos as guerras se é que havemos de saber se alguém morreu ou está ferido ou
480 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 481
ficou prisioneiro? Pra isso tem que ir é ao Ministério da Guerra CENA 44
italiano, meu caro! Está a ver? O que é que a gente há­‑de fazer Kastelruth. De madrugada, depois de uma festa de despedida
mais? É simplesmente incrível o que as pessoas exigem de nós! dos oficiais de uma unidade de metralhadoras.
O civil: Sim… mas… Alguns estão estendidos debaixo da mesa.
O capitão: Meu caro senhor, mais não lhe posso dizer. Além
disso, são quase três horas, as pessoas têm que perceber, o O tenente Helwig: Mais… qualquer coisa… de comer! Venha
horário de expediente já acabou. É verdadeiramente fantás‑ mais vinho!
tico!… Mas atão que é que quer?… Pois, olhe, há uma coisa A criada de mesa: Já são quase duas horas, senhor tenente, a
que lhe posso dizer em particular: já faz seis semanas que não cozinha…
tem notícias do seu filho, não tenha problemas em partir do O tenente Helwig: Venha mais vinho… já disse!
princípio de que ele está morto. A criada de mesa: Já são horas de fechar, senhor tenente… já
O civil: Sim… mas… não há mais nada!
O capitão: Não há mas nem meio mas. Onde é que iríamos O tenente Helwig: Ó aspirante, chega aqui! (Tira a pistola ao
parar, se nestes casos… não está a ver que casos destes são aos aspirante de serviço e dispara sobre a criada, matando­‑a.)
milhares? Agora estamos em guerra, meu caro senhor! Num A criada de mesa: Jesus, Maria! (Tomba para o chão.)
momento assim o cidadão tem também que dar algum contri‑ Um outro tenente: Mas, Helwig… que é que estás a fazer?
buto! Olhe pra nós, que estamos aqui sentados! Mantemo­‑nos Que fulano mais imprudente! Arriscas­‑te a apanhar detenção
aqui a pé firme no nosso posto! E além disso, caro senhor… domiciliária!
bem, não é nada que o senhor não saiba… mas digo­‑lhe outra (Muda a cena.)
vez em particular e sem qualquer compromisso… o senhor
sabe que pra um soldado não pode haver maior ambição nem CENA 45
maior recompensa que morrer pela pátria. Atão passe bem, Um bar nocturno vienense. Na noite a seguir à segunda
passe bem… conquista de Czernowitz pelos russos. Oficiais, criadas de mesa,
(O civil faz uma vénia e sai.) folgazões, cavalheiros da Cruz Vermelha, legionários polacos,
(Muda a cena.) pessoal, comparsas. A orquestra de salão Nechwatal
e a orquestra cigana Miskolczy Jancsi.

Rolf Rolf, o poeta repentista: (Está neste momento ocupado,


cantarolando, a compor um poema, baseado em citações clássi‑
cas a granel e em homenagens às armas presentes.)
482 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 483
… Os legionários deram o litro, à melodia: “O Bom Velho de Schönbrunn.”)
É assim que eles são, está dito. Um comerciante de gado húngaro: (Para o proprietário do
(Gritos: “Bravo, bravo!”) bar.) Mas o programa aqui é fantástico!
E é ver… se penso nisso… O dono do bar: Pois, orgulho­‑me de ter uma companhia de
É um peso que me sai de cima… primeira classe. Qualquer dos meus clientes terá de admi‑
Se digo… àquela dama… tir que o título do cartaz, “Programa de Calibre 42”, não era
Guarda bem as jóias da tua estima! exagerado.
E digo a este soldado alemão: O comerciante de gado: Mas não, comparado com um pro‑
Dois granadeiros pra França marcharam grama destes, um morteiro de 42 é uma brincadeira de crianças.
Mas hoje… sai­‑me do coração… O dono: Mesmo o inimigo teria de admitir que este programa cai
As coisas… parece… muito pioraram. como uma bomba.
(Risos. Gritos: “Oh, oh! Bravo! Bravo!” À entrada de dois oficiais, O comerciante de gado: Quais bombas! Bombas são umas
a orquestra começa a tocar: “Somos do Imperial e Real Regimento coisas fraquitanas comparadas com estas canções da moda!
de Infantaria n.º 4.” Todos acompanham.) O dono: Senhor conselheiro comercial, em sinal de gratidão
Frieda Morelli, a cantora: (Entra e canta, ora com as mãos pelas observações tão lisonjeiras, vou­‑me permitir de imediato
junto ao peito, ora estendendo­‑as na direcção do público.) oferecer uma homenagem em separado.
Sim, meu coração a Viena está preso! (A música toca a “Marcha de Rakoczy”,41 para, depois de o
Mas por Berlim tenho um amor aceso! comerciante de gado ter dado cabo de uma garrafa de cham‑
Pois, vejam lá, assim um tenente… panhe, passar à “Marcha de Radetzky”,42 enquanto um dos
(Acariciando o lábio superior.) oficiais parte uma garrafa de champanhe, na sequência do que
Homem charmoso e tão valente, se toca a “Marcha do Príncipe Eugénio”, para passar depois
Com gosto lhe arrastaria a asa, ao hino nacional. Todos os clientes e as acompanhantes do
Mas antes quero… ficar em casa. bar levantam­‑se dos lugares e ficam de pé também durante
Pois ai, pois ai, pois ai, ai, o “Glória a Ti, Laureado Vencedor”, que se segue imediata‑
Em tentação qualquer uma cai. mente, e, a finalizar, “A Guarda do Reno”. O pessoal do vestiá‑
Por isso digo, meu coração a Viena está preso! rio e a senhora dos lavabos aparecem na sala e participam na
Mas por Berlim tenho um amor aceso! homenagem.)
(Gritos: “Bravo! Bravo!”) Um comerciante de cereais: (Grita para a sala.) Vivà leal‑
Uma voz: Rosa, vamos pra Lodz! dade dos Nibelungos!
(A música toca esta melodia, para, algum tempo depois, passar Todos: Hurra! Hurra! Hurra!
484 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 485
O dono: (Para um cliente habitual.) Conhece aquele senhor “Apto!” É escrito e escarrado! Tanto mais quanto agora não
que acaba de dar o brado? podemos ficar abaixo dos 50 por cento e isso eo ipso fica mais
O cliente habitual: Claro que sim, é o conselheiro da câmara difícil com as excepções. Sobretudo com a comissão dos nove
Knöpfelmacher! do conselho de revisão.44
(O dono precipita­‑se para a orquestra cigana, que começa O médico de regimento: Olha, estava para te contar. Ontem
agora a tocar “Tive um Dia um Camarada”.) foi cá um rebuliço no hospital! É que a irmã Adele continua a
Um funcionário da Cruz Vermelha embriagado: Olhe ter medo de mim que se pela e pronto, deixa cair a arrastadeira
lá… traga­‑me ainda um whisky com soda e um cha… charuto de um bósnio com uma bala na bacia. Havias de ver como os
com boquilha. Olha… (Arrota.) outros se fartaram de gozar. Foi risota e mais risota! Bem, até
Um colega: Mas que é que tu tens! que eu intervim! É preciso impor respeito ao mulherio. Ontem
O funcionário: Estou a ver ali um ferido dos nossos… vou tivemos mesmo um dia daqueles…
mandar o homem amanhã para Neuhaus…43 vou mandar o O colega: Connosco é a mesma coisa. Não entendo como uma
homem amanhã a uma segunda inspecção… aristocrata assim pode ser tão ambiciosa. As outras tratam das
O outro: Vá lá, deixa lá o homem! roupas. Servem e coisas assim. Mas elas esgadanham­‑se todas
O funcionário: Dás­‑me licença… era o que faltava… vou pelas arrastadeiras.
mandá­‑lo para a… (arrota) frente! O médico de regimento: Confesso que, de início, isso me dava
Um oficial: (Para um outro.) Que é que vem hoje no comunicado? pica, ver raparigas assim tão finas… mas uma pessoa acaba por
O segundo: Nada de novo. ficar insensível também a isso. Já tenho pensado… porque é que
O primeiro: Está bem, mas Czernowitz! elas fazem isso? Bem, claro, querem colaborar… patriotismo e
O segundo: Ora, isso não é nada de novo. essas coisas. Onde é que eu li que precisamente nós, médicos,
Um médico de regimento: (Para um outro.) Eh lá, olha para nos deveríamos opor, por causa do choque que o sistema ner‑
ali, aquele tipo ali no segundo camarote. Ontem classifiquei­‑o voso feminino sofre e porque elas depois já não servem para o
como apto só para serviço na retaguarda. Hoje já anda na farra. casamento? Problemas! É preciso ser marado para andar preo‑
Gandulo dum raio, mas quem me dera ter tantas notas de dez cupado com problemas em plena guerra. Nós, da clínica geral…
como o velhote dele tem de mil. O colega: Estava para te dizer, ontem tivemos um daqueles dias
O colega: Não te percebo, nesse ponto eu sou muito diferente. em que dava mesmo para acreditar que não se estava num hos‑
De mim não vai ninguém a uma segunda inspecção. É claro pital, mas num manicómio. Tudo coisas urgentes! Mandei para
que se podem abrir excepções. Mas, em geral, é assim como a frente cinco casos de delirium tremens.
que uma sensação que se tem quando se vê os tipos a tremer O médico de regimento: E eu, cinco quistos intestinais e três
à nossa frente. Quando algum começa a tremer, grito logo anemias. Digo­‑lhes a todos na cara: tretas! E como não podem
486 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 487
responder, fica demonstrado que era uma treta. (A orquestra O médico de regimento: Sei, sei: “Remetente fuzilado em con‑
começa a tocar a “Marcha do Príncipe Eugénio”.) formidade com a lei marcial.” Connosco aconteceu pior.
O colega: Agora ando a apanhar outros ainda, são sobretudo os O colega: E connosco? Eu não olho para a direita nem para a
típicos ferimentos da mão esquerda… A verdade é que tam‑ esquerda, olho em frente! Senão dava vontade de uma pessoa
bém não sei que outra coisa se pode fazer quando o médico­ se matar. Mas nós queremos viver.
‑chefe anda a chatear­‑nos a molécula o dia inteiro e, por sua (Toda a gente se levantou das cadeiras. A orquestra toca “Ó Tu,
vez, o Teisinger sempre em cima dele. Áustria Minha”, para passar logo a seguir para a melodia “Dou­
O médico de regimento: Pois, é um calvário. Ontem declarei ‑vos o Último Tostão”.)
apta uma nefrite estupenda com insuficiência cardíaca aguda. O médico de regimento: O bar hoje está muito animado.
Bem, o que eu verdadeiramente nunca vi foi eles marcha‑ O colega: Pois, provavelmente por causa de Czernowitz.
rem para a guerra cantando e pulando. O bar hoje está muito O médico de regimento: Como assim? Porque os russos…
animado… O colega: Sim… não… ou talvez sim. Ou… não entendo… Olha
O colega: Mais ou menos. É inacreditável como uma pessoa fica ali a Paula, com o tenente dos Deutschmeister. Essa alistava­‑a já.
embrutecida. Na prática, já não se consegue ser humano. O médico de regimento: Andas de olho nela?
O médico de regimento: Um bom médico tem de ser antes (Gritos: “Tango!” Gritos contra: “Fora! Abaixo o tango!” “Valsa!
de tudo uma boa pessoa, era esse o lema para quem seguia as Isto é um bar alemão!” Alguém grita: “Uanstep!” Resposta: “Vai
aulas de Nothnagel. Pois é, é uma coisa que se desaprende por tu prà estepe!”)
completo, confesso­‑o abertamente, e é a primeira coisa que se Um bêbedo: Deus… castigue… É tocar uma valsa, seus cabrões,
desaprende na guerra. Pelo contrário, um bom médico militar estemos em Viena!
não pode ser uma boa pessoa, senão vai fazer carreira é para O dono: (Dirigindo­‑se ao cliente habitual.) Sabe quem é o
as trincheiras. Bem, de mim o Teisinger não poderá este mês alferes que acaba de entrar? Está a ver, não sabe. É aquele de
ter razões de queixa. Forneço­‑lhe material sem ele ter de pedir. que veio agora a notícia no jornal que soldados russos o sal‑
Cá por mim! varam de um pântano com escadas de corda. Agora vem cá
O colega: Ouve lá, quando, lá em cima, se viu uma manhã alguns todas as noites!
centos de rutenos a balançar na ponta de uma corda e, cá em (Muda a cena.)
baixo, alguns centos de sérvios, uma pessoa habitua­‑se a tudo.
Que é que vale a vida de um único indivíduo? Tu conheces o
caso daquele que escreve aos pais que não estejam preocupa‑
dos, em caso de necessidade ele anda sempre com um pano
branco… a carta chega com a nota…
488 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO III 489
CENA 46 que só ele ficou de tudo o resto,
De noite. O Graben. Chove. Não se avista vivalma. para a morte está­‑se marimbando,
Diante da Coluna da Peste. Vê­‑se o começo de uma travessa. quer saciar seu desejo mais fundo,
da vida sua a marca vai ficar
O Eterno Descontente: (Entra em cena.) e esta é a coroa da sabedoria.45
Noto outra vez que a chuva vem de baixo. Ávido ouço sua última vontade,
De sono e lama é o velho desmazelo, ao cosmos inda tem algo a dizer…
que fala o dialecto amolentado O bêbedo: (Sempre sem mudar de posição, vai repetindo à guisa
do último vienense, misturada de acompanhamento rítmico.) Que bom!… Que bom!… Que
que é de um vienense e um judeu. bom!…
Eis o âmago de Viena, e no âmago
de Viena está a Coluna da Peste.
(Pára diante da Coluna da Peste.)
É de ouro puro o coração vienense,
pudera eu trocá­‑lo pois por ferro!
Ó mundo extinto, a uma noite assim,
só o Juízo Final pode seguir­‑se.
A harmonia eterna das esferas
desta hecatombe abafa a dissonância.
O último vienense estertora a compasso
e a alma, em sussurros de humana volúpia,
rasgando a última chuva deste mundo,
deixa verter­‑se na húmida calçada.
(Olha para a travessa e vê um bêbedo a satisfazer uma
necessidade no meio da rua.)
Ele aqui está, coluna de si próprio,
em colossal imutabilidade!
Ele não vai ao fundo, ele sobrevive,
símbolo da mentira que nasceu
do pó, ao fim da criação e sabe
ACTO IV

CENA 1
Viena. Picadeiro da Ringstraße. Esquina da Sirk. Carrancas
e lémures. Todos entram em cena de braço dado, em grupos de
cinco. Uma alegria gratuita alterna com um silêncio apático
e ensimesmado. Vê­‑se um grupo enovelado de carneiros
defrontando­‑se dois a dois, olhando fixamente uns para os
outros, unidos entre si como que por um segredo. Quando
está em movimento, a massa avança entre duas alas de
gente à civil, aleijados e inválidos cujas cabeças e membros
são permanentemente sacudidos por convulsões, mutilados
e monstros de todos os tipos, mendigos e mendigas de todas
as idades, cegos e videntes que contemplam com um olhar
apagado aquele agitado vazio. Pelo meio, vultos agachados
que esquadrinham o passeio à procura de beatas.

Um ardina: Edição especiaal…! Derrota arrasante dos italianoos!


Segundo ardina: Edição especiaaal…! Olhà nota amaricana de
Vilson!
Um oficial: (Para três outros.) Ora viva Nowotny, ora viva
Pokorny, ora viva Powolny, olha lá… tu que sabes de política,
então que é que dizes da América?
Segundo oficial: (De bengala.) Um bluff!
O terceiro: Pois… pois é claro.
O quarto: É exactamente a minha opinião… Ontem andei na
farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta!
O primeiro: Vocês sabem, eu acho que é só propaganda ameri‑
cana ou coisa assim.
492 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 493

O quarto: O que eles querem é fazer negócio, é o que vem hoje Os outros: (Gritam­‑lhe.) Vai então depois ter ao Hopfner!
no jornal. É tudo prò bisiness! Terceiro ardina: Tagblaatt! Avanço irresistível das nossas
O terceiro: Vocês sabem, se eles estão a preparar­‑se prà guerra, tropaaas!
é contra a China. Uma condessa: (Reparando num dos oficiais, para a acompa‑
O segundo: Ora, ora, é mas é contra o Japão! nhante.) Olha para aquelas medalhas todas, de certeza que
O terceiro: Ou contra o Japão, é claro, vem a dar no mesmo, aquele se bateu com bravura. Fico doidinha quando os homens
sabes, eu confundo sempre os dois. se batem com bravura. (Entra um soldado cego de uniforme
O segundo: É um bluff, digo­‑vos eu. Primeiro, por causa dos sub‑ esfarrapado em cima de uma carreta.) Quando eu estava no
marinos eles não podem… Hospital Palffy…
O quarto: Claro, inda pra mais agora que os intensificaram. Um intelectual: (Para o acompanhante.) É o que lhe digo,
O segundo: Sabes que mais, e mesmo que eles atravessem prò enquanto os nossos inimigos tiverem uma mentalidade…
lado de cá – basta um regimento dos nossos pra dar conta nas (Saem ambos.)
calmas das divisões deles, mas nas calmas, meu caro… zás, (Um automóvel pára diante do Hotel Bristol. Lá dentro, recos‑
catrapás, vai tudo prò galheiro! tado, um bebé gigante.)
O terceiro: Já era mais que tempo de haver paz. Poldi Fesch: (Aparece junto à porta do carro.) L’exactitude la poli‑
O segundo: Que é que estás a dizer? tesse des rois. Olha, espera um minuto, eu cá tenho as minhas
O terceiro: Ora, pra se poder ir outra vez ao Gartenbau. razões.
O segundo: Ah, bem, isso é outra coisa. O bebé gigante: Quantos talheres? Ela sempre vem?
O primeiro: Olha lá… tu que sabes de política, portanto, vem Poldi Fesch: Qui vivra verra. Hoje estou cá c’uma genica, apesar
sempre no jornal que eles tão a fazer um bloqueio, mas que é de ontem ter perdido… no Chapeau… que estupidez… olha,
que é isso? desde a vez que apanhei aquela valente banhada lá na frente
O segundo: Sabes, é assim… quer dizer, nós e os alemães somos um sudoeste que não me acontecia uma coisa destas.
bloco que eles nunca conseguirão vencer, pois, e em compensação O bebé gigante: O que não consigo perceber é como te podes
o que eles fazem é cortar­‑nos os mantimentos e coisas assim. meter com gente dessa… gente sem classe nenhuma!
O primeiro: Ah, então é isso… olha, é verdade que os súcias é Poldi Fesch: Ora essa! Em compensação, amanhã vai­‑se prà
que têm a culpa da alta traição dos checos?…1 Sabes, quer­‑me farra c’o Sascha Kolowrat… além disso… inda tens muito que
parecer… mas olha, eu conheço aquela gaja… ouve, mas afinal aprender antes de me vires com… quantos anos é que tu tens?
o que é que são os tais “assuntos”? O bebé gigante: Vinte e dois.
O segundo: Olá… é a de ontem… granda brasa… esperem, eu… Poldi Fesch: Estás a ver, mais valia era estares calado… Uma
(Sai de cena.) espelunca de primeira, é o que eu te digo! Enquanto tiver que
494 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 495
estar para aqui metido, não tenho outro remédio! Mas podes Um passeante: Se uma pessoa não cumpre as normas, é preciso
ter a certezinha que só estou à espera do momento em que pagar. Mas se se cumprem as normas, fica­‑se condenado à morte.
seja assinada a paz, é evidente que a coisa vai ficar empatada… Um segundo: Como assim?
seja como for, qualquer que seja o desfecho, eu hei­‑de ser o O primeiro: Então não viu hoje no jornal, uma notícia interes‑
primeiro a chegar a Paris com o Expresso do Oriente!… Agora sante, um professor da universidade que morreu de fome?
já podemos entrar, ó maganão… (Faz um aceno. O paquete do O segundo: Um professor como?
hotel abre a porta do carro.) O primeiro: Classe média. Não pôde abastecer­‑se no mercado
O bebé gigante: Sabes, ando perdidinho pela Lona, achas que negro, foi vivendo com o que davam as senhas de racionamento.
há alguma hipótese? O segundo: Mas que mentecapto! (Saem.)
Poldi Fesch: Qui vivra verra. (Saem.) Primeiro admirador da reichspost: Quando vier a ofen‑
(Passam homens de idade a marchar. Ouve­‑se cantar: “E de siva, já vais ver… zás, catrapás, vai tudo prò galheiro!
volta à pátria amada nos iremos reencontrar…”) Segundo admirador da reichspost: E depois, os judeus…
Um exportador berlinense: (De charuto de importação na vai tudo raso! (Saem.)
boca, para o acompanhante.) Ah, os nossos rapazes superam Um excêntrico: Está a ver, ontem comi aqui optimamente na
essas impressões quase sem dar por isso. Um dos nossos mais sala de grelhados. Mas quando é que esta designação “Bristol”
ilustres lentes comprovou que a adaptação psicológica começa desaparece de vez? A nossa língua tem que ser depurada destes
logo na retaguarda. A verdade é que vocês aqui no hinterland nomes estrangeiros! Dantes, bem, dantes levava dez pour cent,
estão com um aspecto mais pindérico do que nós na linha da agora tenho por norma não levar menos de 40 por cento.
frente. Nã, meus filhos, aqui na vossa terra isto não tem ares de O acompanhante: Tem toda a razão. Olhe… já viu aquela ali?
caminhar para uma paz vitoriosa! Então que ambiente é este O excêntrico: Bem, se acha que ela tem chic, perdão, se a acha
que reina na vossa querida Viena? Quem sabe fica espantado e atraente, vá atrás dela, pode ser que lhe dê o endereço. (Saem.)
quem não sabe admira-se. Nã, eu não fazia ideia que isto fosse (Uma dama corpulenta de lorgnon com um uniforme da Cruz
assim. A algazarra que vocês fazem pela paz, como se não vis‑ Vermelha desce de um eléctrico.)
sem chegar a hora, cambada de madraços…! (Sai.) Lenzer von Lenzbruck: (Vestido de capitão de cavalaria.)
(Um transeunte dirige­‑se de mãos erguidas a outro e aponta Beijo­‑lhe as mãos, caríssima senhora conselheira comercial!
para o cigarro no fim que este tem na boca.) Então, ainda não foi a ares? Que sensação para Viena! Não
A esposa de um oficial: (Para o acompanhante.) Já ali estão tenho palavras para dizer como o traje lhe vai a matar!
a fazer bicha para amanhã. Cá por mim, a guerra ainda podia A senhora Back von Brünnerherz: Ora, e a si também! Vai
durar mais dez anos, o meu marido manda­‑me tudo o que eu entrar para tomar o pequeno­‑almoço? O meu marido está à
preciso… (Saem.) minha espera.
496 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 497
Lenzer von Lenzbruck: O dilecto esposo? Mas vem mesmo a A senhora Back von Brünnerherz: Como assim?
calhar! Sabe, isso de a senhora se ter decidido a servir de enfer‑ Uma vendedora de flores: Violetas!
meira está a fazer a máxima sensação em Viena! Lenzer von Lenzbruck: É que o conselho de administração
A senhora Back von Brünnerherz: Estou muito satisfeita, não deixa! O barulho que eu já fiz… (Saem ambos.)
assim podemos ficar com o carro, o meu marido andou dois Um cavalheiro: Pois é, diga­‑me lá, como é que está o seu amigo,
anos a lutar por ele, de modo que acabei por me decidir a ir o pintor? Com certeza que tem deveres mais aligeirados?
para a Cruz Vermelha. A si posso dizer­‑lhe, é mais um pró­ Um segundo cavalheiro: Bem, de facto é verdade. Primeiro,
‑forma e para não parecer mal. Olhe, eu trato… desenhava cruzes para os túmulos…
Lenzer von Lenzbruck: Está a ver que sim! O primeiro: Está a ver!
A senhora Back von Brünnerherz: Pois quê, eu trato de O segundo: Mas lá chegou a altura em que acabou-se o que era
ir lá só quando me apetece. Agora que a guerra de qualquer doce e ele chegou a estar destinado a marchar para a linha da
modo se aproxima do fim, também já pouco importa. Ontem, frente…
a Annunziata dirigiu­‑me a palavra… O primeiro: Ó diabo, e então…?
Lenzer von Lenzbruck: (De mãos postas.) Por favor, por favor, O segundo: Então, as coisas acabaram em bem. Veio a revelar­‑se
conte, baronesa…! que o capitão tinha sensibilidade artística.
A senhora Back von Brünnerherz: Eu não gosto de me pôr O primeiro: E depois?
com alardes, o meu marido que lhe conte. A propósito, vi no O segundo: E depois, agora ele desenha mulheres nuas para o
jornal que foi promovido a capitão de cavalaria, os meus para‑ capitão.
béns! Sabe que fica com um ar muito mais janota do que à O primeiro: Ora está a ver!
civil? Provavelmente, é por isso que agora anda a passear­‑se de (Entra Storm.)
uniforme! Então, adivinhei? Estes homens! A menina Löwenstam: Ali vem o Storm!
Lenzer von Lenzbruck: (Lisonjeado.) Acha? A menina Körmendy: E ainda por cima de uniforme!
A senhora Back von Brünnerherz: E a Cruz de Mérito! (Um cavalheiro desce de um fiacre.)
A Sigilaudis!2 Olha, olha! O cocheiro: (Estendendo a mão.) Mas, meu querido senhor, que
Lenzer von Lenzbruck: (Com um gesto de recusa.) Uma coisa é que me está a dar? (Virando a mão.) Olhe aqui… veja estas
sem importância. cicatrizes!
A senhora Back von Brünnerherz: Já só falta… ora, o (Muda a cena.)
senhor ainda acaba por ir para a frente de combate! Já lá esteve
alguma vez?
Lenzer von Lenzbruck: Mas então, como é que eu posso?
498 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 499
CENA 2 ela não é apenas um motivo fundamentado para partir…
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. O Optimista: Mas também?
O Eterno Descontente: Para emigrar.
O Optimista: O senhor vai outra vez em breve para a Suíça? O Optimista: Então o senhor não há­‑de ter dificuldade em arran‑
O Eterno Descontente: Teria todo o prazer, embora se possa jar um motivo. Com a sua dialéctica, há lá alguma coisa para
ter a certeza de encontrar lá o público de que aqui se foge. Bem, que não encontre um motivo fundamentado!
pelo menos não perco inteiramente de vista o ambiente quando O Eterno Descontente: Para regressar.
trabalho no drama desta hecatombe. Em Berna é como se se esti‑ (Muda a cena.)
vesse em Viena, um Estado em putrefacção exporta os produtos
da sua podridão, vigaristas e diplomatas, traficantes e escribas, CENA 3
que, evidentemente, podem viajar sem restrições e se encarre‑ Uma estação de caminhos­‑de­‑ferro em Viena.
gam também de fazer propaganda, na Suíça, ao carácter odioso Um rebanho com 500 cabeças está há duas horas
deste Estado execrando. Mas nós outros não encontramos tantas em frente da bilheteira fechada.
facilidades e as formalidades que são necessárias para sair do
país impedem­‑me de o fazer. Um vienense: Faltam dez minutos pra ele chegar.
O Optimista: Pois é, as histórias com os passaportes. Uma repartição Um segundo vienense: (Para o porteiro.) Faz favor, quando
não sabe o que a outra exige. Mas, no fim de contas, a guerra é… é que ele chega?
O Eterno Descontente: …a guerra, claro, isso sabe­‑se. Mas O porteiro: Bem, lá por essas sete é que ele acostuma vir.
este Estado permitir­‑nos alguma coisa é ainda mais penoso do Um terceiro: Ora, mas já são oito menos um quarto.
que proibir­‑nos alguma coisa. E depois, é claro, é preciso indi‑ O porteiro: Chiça, é verdade! Bem, hoje o comboio traz duas
car um “motivo fundamentado”. horas e meia de atraso. Aliás, está ali escrito.
O Optimista: Bem, e o senhor não tem nenhum? O Eterno Descontente: E a informação é de confiança?
O Eterno Descontente: Uma quantidade deles. Não quero adu‑ O porteiro: (Irritado.) Olha qu’essa, que é que quer que lhe diga,
zir a perspectiva de conseguir na Suíça um pão com manteiga. eles não fazem a mais pequena ideia e se soubessem não iam
Prefiro aduzir a soma de todos os motivos: a consciência de agora espetá­‑lo nas fuças do público.
viver na Áustria. As autoridades poupariam muita papelada se, O Eterno Descontente: Mas porque não?
antes da partida, fosse preciso indicar um motivo fundamen‑ O porteiro: Porque eles próprios não fazem a mais pequena ideia.
tado para permanecer aqui. Mas a simples pergunta sobre se se O Eterno Descontente: Mas está ali escrito.
tem um motivo fundamentado para partir é já em si um motivo O porteiro: Ora, ali escrito, ali escrito, mas lá por causa disso
fundamentado para desaparecer daqui. A verdade, aliás, é que não quer dizer que não chegue com mais atraso.
500 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 501
O Eterno Descontente: É a regra? CENA 4
O porteiro: Bem, regra não é bem, mas só muito por acaso é que Kohlmarkt. Em frente da montra de uma galeria de arte.
ele ia chegar pontualmente com o atraso previsto.
O Eterno Descontente: Está bem, mas então porque é que Margosches: Uma das nossas lojas mais selectas para as artes e
anunciam o atraso? coisas assim.
O porteiro: Porque vá lá a gente saber, ora essa. Lá de fora não Wolffsohn: Magnífico! (Observa a montra.) O que me parece
comunicam nada à gente e cá de dentro não dão pio. simpático na vossa querida Viena é que mesmo no quarto ano
Um quarto: Parece que está mesmo a chegar! de guerra vos mantendes fiéis aos símbolos da lealdade dos
O porteiro: Ora tá a ver, é puramente pura casualidade. Nibelungos. É que por toda a parte se vê o vosso bom velho
O Eterno Descontente: Mas então como é que é possível? imperador ombro com ombro com o nosso; ele não quer
O porteiro: Meu caro senhor, não precisa de ficar descontente, separar­‑se porque não pode, eles são inseparáveis. Ah, e ali está
tem que perguntar a outro. Os atrasos são assim, prontos! Nós S.M. no Reichstag, a sessão histórica em que ele desembainha
cá dentro não comunicam nada à gente e lá de fora não dão a espada. Só lhe digo, meu caro conselheiro comercial, que dia
pio… com o tráfego que há agora, a gente não pode fazer nada, aquele! – Mas quem é aquele gordalhão ali?
estamos em guerra! Margosches: É o arquiduque Friedrich, ora essa!
Um quinto: O comboio está a chegar! Wolffsohn: Homem muito capaz!
Um sexto: O bilheteiro tá a dormir! Margosches: Veja, está ali toda a casa hereditária!
Gritos: Mas que é isto?!… Abram!… (O Eterno Descontente Wolffsohn: Ora sim, tudo cabeças imponentes, cada qual tem
bate com a bengala na bilheteira.) É assim mesmo! que se lhe diga. Ah, e ali tendes mesmo aquela bonita pintura
(A bilheteira abre­ ‑se. Aparece o rosto austríaco. Está com o nosso imperador a chorar.
extraordinariamente subnutrido, mas saciado de um prazer dia‑ Margosches: Ora, e a pintura com o nosso imperador a chorar?
bólico. Um indicador esquelético que oscila para um lado e para Além!
o outro parece tirar toda a esperança.) Wolffsohn: Não, não, aquilo é só uma cena típica, ele podia
O rosto austríaco: Não há bilhetes! Não há bilhetes! estar a rezar. Mas o nosso está na linha da frente junto dos seus
(Resmungos que vão em crescendo até se transformarem em soldados e o pintor pintou lágrimas mesmo autênticas.
tumulto. Formam­‑se grupos.) Margosches: Aquela ali é uma das pinturas mais grandiosas,
Um iniciado: Venham, eu mostro­‑vos uma porta traseira. Assim A Grande Época.3 Ali se vê também o nosso imperador no
não são precisos bilhetes! (Saem todos pela porta traseira.) meio da batalha!
(Muda a cena.) Wolffsohn: Pois, parece que sim. É montes de interessante. Ali
vão todos a cavalgar em força, o vosso velho imperador e S.M.,
502 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 503
o nosso Hindenburg e o vosso Hötzendorf… isto podia servir oficial de todas as mentiras e calúnias com que governantes
de exemplo a muitos cagarolas. indignos e jornalistas dos países da Entente enganaram, enve‑
Margosches: Conhece este aqui, senhor conselheiro comercial? nenaram e transviaram os seus próprios povos e o mundo.
Disseram­‑me que é de Theodor Körner. (Strobl aperta­‑lhe a mão em silêncio. Vão­‑se afastando.)
Wolffsohn: Mas sim. É famoso! Um quadro expressivo, um (Muda a cena.)
moço fantástico. (Lê.) “Pai, a ti clamo, esta luta não é por bens
terrenos!”4 (Enquanto saem de cena.) Pois é, é o que lhe digo, CENA 6
temos de vencer, de vencer! Nessa altura o valor da moeda vai Festividade académica.
trepar sozinho por aí acima! Cerimónia de homenagem a Hindenburg.
(Muda a cena.)
Um antigo estudante: … Estimados irmãos na cerveja! Tomai
CENA 5 a peito o que a Deutsche Korpszeitung5 vos recomenda. (Lê.)
Dois escritores em conversa. E é também indispensável manter a possibilidade de beber muito
e deixar beber muito. Se proibirmos que se beba até à última
O poeta Strobl: … E todo o verde embebido em luar, derra‑ gota, a qualquer momento um caloiro que seja bom bebedor
mado por esses longes, até casas longínquas de um branco pode arrasar por completo qualquer colega mais velho que
reluzente e montes escuros, como o entre todos encantador aguente menos, e lá se foi a autoridade, ou então suprimimos o
poema da noite de Verão de Eichendorff… (Fica absorto em código de honra da cerveja e, assim, a base de toda a convivia‑
fantasias.) E quando volto a sair da sala escura para o terraço, lidade de taberna. Se proibirmos o escorripichar até à última,
o alferes tem a sua grande navalha na mão, corta um pedaço de estamos a privar­‑nos de um instrumento educativo. (Gritos:
carne fumada e diz como quem não quer a coisa: “Foi com esta “É isso mesmo!” “Tempus para lugar e produto!”6) Peço que estas
faca que cortei o pescoço a uns quantos macarrões.” (Depois de palavras não sejam citadas fora do contexto. A nossa vida de
uma pausa, meditabundo.) Era um moço valente! corporação deve representar uma cadeia de esforços educativos.
O poeta Ertl: Que experiência! Tenho inveja de si. (Reflecte.) E qualquer membro da corporação poderá confirmar que nunca
Congeminei um plano. Vou propor que o sétimo empréstimo mais voltou a ouvir a verdade de maneira tão clara, tão crua, por
de guerra se chame “empréstimo da verdade”. vezes tão incrivelmente brutal como na corporação. E o que é que
O poeta Strobl: Uma ideia deveras sensata. Mas porquê? explica que ele tenha consentido nisso? Por mais ridículo que
O poeta Ertl: Porque a nossa vitória não pode deixar de fazer, possa parecer: graças à taberna! A taberna é para nós o mesmo
e fará, justiça à verdade! Porque a condição de negociações de que o tão caluniado treino de pátio de quartel e que a marcha
paz bem­‑sucedidas tem de ser a verdade, ou seja: correcção em parada são para os soldados. (Gritos: “Hurra!”) Tal como, no
504 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 505
quartel, o mil vezes repetido “Flexões!” supera sucessivamente a Todos: Hindenburg, hurra! Hurra! Hurra! Entornar copos!
preguiça, a indolência, a rebeldia, a cólera, a lassitude e o esgo‑ (Muda a cena.)
tamento e faz nascer a disciplina perante o superior, vencendo
o sentimento de impotência sem forças e a completa apatia… CENA 7
(Gritos: “Hurra!”) assim, entre nós, o “Entornar copos!” oferece Congresso médico em Berlim.
sempre ao mais velho perante o mais jovem uma possibilidade
de mostrar a sua absoluta superioridade, de punir, de manter as Um psiquiatra: … Meus senhores! Este homem é o caso mais
distâncias, de preservar a atmosfera que é um requisito indis‑ estranho com que me deparei até hoje! Uma sorte propícia
pensável da permanente acção educativa da corporação, se não trouxe­‑o até mim, vindo da prisão preventiva. Como, pelos
quisermos transformar­‑nos num clube. (Gritos: “Nem pensar!”) vistos, não existem tantos anos de penitenciária como os que
O “Entornar copos!”, evidentemente, nem sempre é indicado este homem teria de esperar pelos seus crimes, foi forçoso ape‑
nem serve para todos, mas deve pairar sobre a taberna como o lar nolens volens para a psiquiatria. Temos aqui um caso em
“Flexões!” sobre todos os pátios de quartel. que não é preciso perguntar se o criminoso é subjectivamente
Todos: Hurra! Hurra! Hurra! (Brindam.) Entornar copos! responsável pelo crime, pelo contrário, é o próprio crime que
Um caloiro: (Agita o número sobre Hindenburg da Jugend7 constitui a prova da não aplicação do princípio da responsa‑
e canta segundo a melodia “Quando os Romanos se Atreveram”.8) bilidade. Para, meus senhores, vos transmitir desde logo toda
Então sem hesitação a dimensão da inimputabilidade do doente, limitar­‑me­‑ei a
O plano pôs em acção, sublinhar que este homem afirmou coram publico a opinião
Ia inda na carruagem, de que a Alemanha está numa situação alimentar precária!
Disse: “A eles, coragem!” (Comoção.) Mais do que isso: este homem duvida da vitória
final da Alemanha! (Agitação.) Mas isto ainda não é bastante –
E mal ele lá chegou, este homem afirma o carácter inadequado da intensificação da
Os russos logo afogou, guerra submarina, e mesmo simplesmente da guerra subma‑
Nos peixinhos foi seu fim. rina… porque eu fiquei com a imediata convicção de que ele
Pois, Hindenburg era assim! rejeita essa arma enquanto tal, e não por a considerar inade‑
quada, mas por a considerar nem mais nem menos que imoral!
Três vezes na água profunda (Exclamações irritadas.) Meus senhores, nós, como homens
Os lançou a grande tunda. de ciência, temos a obrigação de manter o sangue­‑frio e de
Os charcos e lodaçais defrontar o objecto da nossa indignação apenas como objecto
Ruços ficaram sem mais. da nossa investigação, sine ira, mas cum studio. (Risos.) Meus
506 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 507
senhores, estou aqui a cumprir o triste dever de vos traçar o O psiquiatra: Espero bem, meus senhores, que interpretem
quadro completo do desvario mental do doente e tenho de vos esta erupção menos como um insulto do que como um sin‑
pedir que não assaqueis responsabilidades nem a este infeliz toma. Eu próprio, como todos sabeis, fui um dos signatários
nem a mim próprio, a quem quis o acaso que coubesse fazer a daquele protesto, que há­‑de perdurar nos anais como marco
demonstração de uma forma repulsiva de loucura. A respon‑ de uma época grandiosa, e tenho orgulho nisso. Peço agora ao
sabilidade dele está derrogada pela doença; a minha, pela ciên‑ estimado colega Boas que leve a cabo uma experiência com o
cia. (Gritos: “Muito bem!”) Meus senhores, este homem sofre doente.
da ideia fixa de que a Alemanha está a ser empurrada para O Professor Boas: (Avança.) Já tive repetidamente oportunidade
a ruína por uma “ideologia criminosa”, como ele chama ao de declarar, e afirmo mais uma vez, que o racionamento dos
sublime idealismo dos nossos governantes, ele acha que esta‑ bens alimentares não afectou a nossa saúde pública. (Gritos:
remos perdidos se, no auge da nossa marcha triunfal, não nos “Ouçam! Ouçam!”) É um facto provado que fomos capazes de
declararmos vencidos, que o nosso governo, os nossos chefes viver, sem prejuízo para a nossa energia e capacidade de traba‑
militares – e não, de modo nenhum, os ingleses (gritos: “Olha, lho, com metade da porção de albumina anteriormente consu‑
olha!”) – são culpados por os nossos filhos terem de morrer! mida, mais do que isso, que conseguimos mesmo aumentar de
(Gritos de repulsa.) A simples afirmação de que os nossos filhos peso e melhorar o nosso bem­‑estar físico.
têm que morrer, que, portanto, a nossa situação alimentar é O louco: Provavelmente, o senhor abastece­ ‑se no mercado
precária, basta para demonstrar à saciedade a perturbação negro! (Exclamações irritadas.)
mental deste homem. (Gritos: “Muito bem!”) Expus­‑vos o O psiquiatra: Meus senhores, tenham em consideração o estado
caso, digníssimos colegas da Medicina Interna, para que ten‑ mental… por favor, caro colega, qual é a situação da mortali‑
teis influenciar o doente comunicando as vossas experiências dade infantil, um ponto que reaparece constantemente na fan‑
relativas ao estado de saúde da população alemã em tempos de tasia do nosso doente?
guerra. Observando a sua reacção, tenho esperança de poder O Professor Boas: Provou­‑se que não se pode dizer que as
completar o quadro clínico, quando não de corrigi­‑lo no sen‑ condições alimentares tenham tido um efeito negativo sobre
tido de talvez poder achar a prova da responsabilidade crimi‑ a mortalidade infantil.
nal, já que não podemos deixar de tentar tudo… na esperança, O louco: …não se pode porque é proibido, meu caro senhor!
portanto, de que o doente, sob o efeito das vossas doutas expo‑ (Gritos: “Bico calado!”)
sições, se deixe levar a afirmações que nos facilitem a decisão O psiquiatra: O que é que espera, caro colega, da continuação
num sentido ou noutro. (Um grito: “Vamos já dar conta disto!”) da guerra?
O louco: Se estiver aqui presente um dos 93 intelectuais, aban‑ O Professor Boas: Com o crescente bem­‑estar e uma alimenta‑
dono a sala! (Gritos: “Olha, olha!”) ção cada vez mais refinada, andámos a abusar da nossa saúde;
508 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 509
agora, sob o peso das privações, milhões de seres humanos trabalho alemã, o mais precioso dos bens nacionais, sofreu o
aprenderam a reencontrar o caminho para a natureza e para mínimo que seja devido à alimentação.
um modo de vida simples. Cuidemos de que as lições que hoje O Professor Zuntz: Não se pode falar de uma diminuição da
nos dá a guerra não se percam de novo para as nossas gerações capacidade de trabalho devido à alimentação actual. Todavia,
futuras. (Gritos: “Bravo!”) amplas camadas sofrem de subnutrição por as pessoas não
O louco: O homem tem toda a razão… antes da guerra, a gente terem vontade de ingerir quantidades suficientes dos alimen‑
do Kurfürstendamm comia de mais. Mas ainda agora continua tos vegetais pouco concentrados.
a comer de mais. Neste caso, a situação alimentar de facto não O psiquiatra: Se bem percebo o estimado colega, a culpa é então
piorou. Mas, no que toca à geração futura do resto da popu‑ da própria população, já que não existem objectivamente cau‑
lação, aqueles círculos que não vão à consulta de obesidade sas de subnutrição?
de Boas – no que toca à geração futura da Alemanha, vejo­‑a O Professor Zuntz: Não.
vir raquítica ao mundo! Crianças que são inválidos! Felizes os O psiquiatra: Mas a subnutrição, nos casos em que se produz,
que morreram na guerra… os que nasceram na guerra usam ou melhor, se for o caso que se produza, não tem consequên‑
próteses! Profetizo que a loucura do aguentar a pé firme e o cias prejudiciais?
desgraçado orgulho pelas baixas dos outros, que distingue os O Professor Zuntz: Não.
homens alemães tanto como as megeras alemães se distinguem O psiquiatra: (Para o louco.) Sempre quero ver se você tem
pelo entusiasmo perante a morte heróica dos filhos… profetizo resposta para isto.
que este perverso estado mental de uma sociedade que respira O louco: Não.
uma glória organizada e se nutre das ilusões sobre si própria O psiquiatra: Normalmente, é um desbocado, mas agora cala­‑se
há­‑de deixar como herança uma Alemanha estropiada! (Gri‑ embaraçado! Agradeço ao estimado colega Zuntz e peço agora a
tos de repulsa.) Quanto a este Boas, desafio­‑o a negar que, até Rosenfeld­‑Breslau, a quem temos a honra de saudar como convi‑
ao momento, morreram de fome 800 mil civis, apenas no ano dado da Faculdade de Berlim, para levar a cabo uma experiência.
de 1917 mais 50 mil crianças e 127 mil velhos do que em 1913; O Professor Rosenfeld­‑Breslau: Apesar da subnutrição, a nossa
que, no primeiro semestre de 1918, morreram mais alemães de população tornou­‑se mais saudável e o grande receio da subnutri‑
tuberculose – mais 70 por cento – do que naquele ano inteiro! ção revelou­‑se infundado. Pelo contrário: a sobrealimentação dos
(Gritos: “Basta! Basta!” “Infâmia!”) tempos da paz representa um perigo maior para a vida do que a
O psiquiatra: Estão a ver, meus senhores, em que estado está escassez de comida dos anos da guerra. As estatísticas mostraram
este homem. Agradeço ao nosso estimado colega Boas e peço que, na população feminina, quase todas as doenças provocaram
agora ao colega Zuntz que leve a cabo uma experiência. Peço menos óbitos nos anos da guerra do que no tempo da paz. Em
ao estimado colega que se pronuncie sobre se a capacidade de todo o caso, podemos resumir as nossas observações dizendo que
510 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 511
a dieta de guerra não diminuiu de modo minimamente perceptí‑ O louco: O aumento da mortalidade cifra­‑se só em 37 por cento!
vel a capacidade de resistência do povo nem contra a esmagadora (Gritos: “Bico calado!” “Traidor à pátria!”)
maioria das doenças, nem contra as infecções, nem contra a fadiga. O presidente do Colégio Médico da Grande Berlim:
O louco: Só contra as imposturas dos lentes! (Gritos de viva A mortalidade infantil diminuiu. Ainda há pouco, um dos
indignação.) nossos maiores especialistas provou que a saúde das crianças
Uma voz: Grande inútil! de mama nunca esteve tão boa como agora. (Gritos: “Muito
Segunda voz: Rua com ele! bem!”) Os hospitais estão menos superlotados do que dantes.
Terceira voz: Chamem a polícia! O louco: Porque morreu tudo! (Alarido.)
O presidente do Colégio Médico da Grande Berlim: Uma voz: Ele que o prove!
Aproveito a oportunidade deste escândalo para erguer a minha O louco: Os relatos de muitos médicos hospitalares têm um tom
voz num apelo veemente. Colegas! Vós sois os confessores dos de desespero quando descrevem a fome dos doentes interna‑
nossos doentes, tendes o dever patriótico de, num sentido de dos, que procuram ingerir talos de couve deitados ao lixo e
informação e de esclarecimento, os animar oralmente e de todas toda a ordem de coisas indigestas, só para acalmarem as ânsias
as outras formas a aguentar a pé firme! Deveis fazer frente aos da fome. O relatório pedido a um hospício diz laconicamente:
pusilânimes sem contemplações! Rejeitai os boatos contra nós, “Os internados morreram todos.” Mas os que estão vivos e
sem fundamento e muitas vezes espalhados por má­‑fé ou levian‑ estão aqui reunidos receberam ordens para elaborarem pare‑
dade! Nós, os que ficamos em casa, podemos, devemos e iremos ceres e, só depois do inevitável colapso da mentira e do Reich,
aguentar a pé firme! Colegas! O modo de vida e alimentação encontrarão coragem para dizer a verdade! Mas nessa altura já
simples, o consumo moderado de proteínas e gorduras, foi bom será tarde e nenhuma confissão poderá poupar­‑lhes o desprezo
para a saúde de muitos! do resto do mundo. Porque a ciência alemã é uma prostituta e
O louco: Dos usurários e dos médicos! (Gritos: “Que descara‑ os homens de ciência são os proxenetas! Tudo o que aqui está
mento!” “Rua com ele!”) reunido, para, ao serviço da grande mentira do Estado­‑Maior,
O presidente do Colégio Médico da Grande Berlim: negar a mortalidade infantil e dizer que o negro é branco, tem
Os médicos escolares verificaram, sem possibilidade de mais sangue nas mãos do que os que as tingiram de vermelho!
contestação… Os 93 intelectuais que um dia exclamaram “Não é verdade!”
O louco: …que o bombardeamento da Alemanha com mentiras e “Nós protestamos!”, que inauguraram o pathos da mentira
teve pleno êxito! (Gritos de repulsa.) com o seu protesto contra a honra alemã, e os que se junta‑
O presidente do Colégio Médico da Grande Berlim: ram a eles, afastaram mais a cultura alemã de Goethe e Kant
…que os adolescentes não revelam uma saúde mais debilitada e de todos os bons espíritos da Alemanha do que mesmo os
do que anteriormente. incendiários românticos, a cujo mando dizem mentiras! Sob a
512 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 513
mão de tais médicos, seguramente que o mundo, que receia ser cobiça russa nos impuseram. O que aqui temos perante nós é
infectado com o carácter alemão, não há­‑de achar cura neste um caso típico. Não posso deixar de sublinhar que este homem
– e que, com tantos lentes, a pátria está perdida, há uns ver‑ já de antemão me parecia um caso suspeito e agora adquiri
sos alemães que dizem isso mesmo!9 (Ergue­‑se um gigantesco a convicção de que estamos perante um criminoso de alto
alarido. Ouvem­‑se os gritos: “Não é verdade!” e “Protestamos!” gabarito. Um demente não fala assim, meus senhores, quem
Alguns lentes querem atirar­‑se ao louco e são impedidos de o fala assim é um traidor à pátria! Posso além disso revelar­‑vos,
fazer por outros.) meus senhores, que este homem suscitou a atenção dos mais
O psiquiatra: Meus senhores! Acabámos de testemunhar a mais altos círculos pelo seu comportamento impenitente durante a
brutal irrupção de ódio à pátria, que é impossível que tenha prisão preventiva, em que prosseguiu os revoltantes ataques
crescido em solo alemão. A reacção do doente às experiên‑ contra tudo o que é sagrado para os alemães, e chegou mesmo
cias dos distintos colegas Boas, Zuntz e Rosenfeld­‑Breslau, e, a atrever­‑se a um comentário depreciativo sobre a Agência
nomeadamente, à exposição substancial e lúcida do distinto Noticiosa Wolff… (agitação) de tal modo que mesmo uma
presidente do Colégio Médico da Grande Berlim, pela qual personalidade que todos veneramos… (os presentes levantam­
não posso deixar de exprimir ao distinto colega os meus mais ‑se) o nosso príncipe­‑herdeiro, manifestou que o fulano preci‑
calorosos agradecimentos, demonstrou­‑me com clareza que sava era de levar duas no focinho. (Gritos: “Hurra!”) Ficará ao
este homem não tem perturbações mentais, mas é, sim, pago critério da máxima autoridade competente se se há­‑de aplicar
pela Entente! Estamos a braços com um caso agudo de pro‑ uma tal medida, que poderia perspectivar­‑se porventura como
paganda à Northcliffe; evitar a sua propagação crónica é jus‑ agravamento da pena. A nós, meus senhores, cabe declarar­
tamente o dever da comunidade médica da Grande Berlim. ‑nos como totalmente incompetentes, já que a ciência médica
O veneno do pacifismo já conseguiu entrar mesmo em cére‑ nada tem que ver com este caso, entregando­‑o à custódia das
bros sãos, e o idealismo exagerado dos opositores à guerra instâncias próprias da polícia criminal. (Abre a porta e chama.)
encoraja os poltrões e os refractários a adoptarem um compor‑ Guarda!
tamento que representa o pior mal que aflige o corpo nacio‑ O guarda Buddicke: (Entra.) Em nome da lei… ora vamos,
nal alemão. Se acrescentarmos ainda a isto uma propaganda venha daí! (Sai com o louco. Os presentes na assembleia
criminosa, não tarda a estar criada uma situação susceptível levantam­‑se e entoam “A Guarda do Reno”.)
de paralisar o nosso espírito empreendedor mesmo à beira da (Muda a cena.)
vitória final. É o espírito do derrotismo, que vem respaldar o
inimigo e a nós nos corta as asas, numa guerra defensiva que
a inveja britânica (aparte: “Alma de merceeiro britânica!”), a
sede de vingança francesa… (aparte: “E a cobiça russa!”) e a
514 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 515
CENA 8 CENA 9
Weimar. Clínica ginecológica. Numa divisão de reserva alemã.

Professor Henkel: Não há aí mais nada para operar? Sua Alteza Um coronel: (Dita.) O cabo Bitter, observador de trincheiras da
não tarda aí e eu prometi­‑lhe… queria dar­‑lhe oportunidade 7.ª Comp., Reg. Inf. R. 271, abateu com três tiros dois homens
de assistir a uma operação. Então? de um pelotão de sapadores francês na barreira da quadrícula
Professor Busse: Não temos nada. 4674. Exprimo ao cabo Bitter o meu louvor pelo bom trabalho
Henkel: Mas temos ainda que operar qualquer coisa. realizado.
Busse: Não há nada. (Muda a cena.)
Henkel: Mas você ainda tem aí um caso. Vamos lá, traga­‑o.
Busse: Mas… a doente acabou de tomar o pequeno­‑almoço. CENA 10
Henkel: Não faz mal. (Trazem a doente. Para um assistente.) Frente do Isonzo. Num comando de brigada.
Prepare o caso e faça­‑lhe uma lavagem ao estômago. Depois da refeição.
A doente: (Defende­‑se em grande agitação.) Não… não… não
quero. A Schalek: (De pé, rodeada por oficiais.) Passo a passo, per‑
Henkel: Deixe­‑se de histórias! Ainda acaba por me deixar ficar corri agora a frente do Isonzo ao longo do sector de Gorizia.
mal perante Sua Alteza! (Entra o príncipe zu Lippe com o seu Mostraram­‑me tudo! As coisas por que ali passei! Os que estão
séquito. Cerimónia de cumprimentos. Inicia­‑se a operação.) Está refastelados na retaguarda não fazem a menor ideia do que
a ir na perfeição, Alteza… ora… muito bem. isso é. Depois de muito pedir, recebi então autorização para ir
Uma enfermeira: (Puxa pela bata do assistente.) Ai… meu também. Senti como uma pessoa oferecer­‑se voluntária torna
Deus… o fardo mais pesado. Não ser obrigada a ir é que provoca o con‑
Henkel: Que é que se passa? (O assistente dá uma injecção de flito interior. À hora marcada, às cinco da tarde, apresento­‑me
cânfora.) ao general pronta para marchar. Peço autorização para acom‑
O assistente: Senhor professor… panhar um oficial que teria de qualquer modo de ir ocupar
Henkel: (Com um gesto evasivo.) Chiu… hoje o seu posto. Que ninguém a quem o serviço o não exige se
O príncipe zu Lippe: (Para Henkel.) A operação correu mag‑ veja posto em risco por minha causa! Um tenente muito novo,
nificamente, vou comunicar isso imediatamente à minha irmã. que está deliciado com a possibilidade de variar da rotina, vira
(Muda a cena.) comigo no sopé da montanha, que contornamos para a atacar
depois de flanco. Antes, recebo a ordem de estar de regresso ao
lugar de partida pontualmente às nove horas. Tiu, tiu, tiuuu…
516 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 517
chega até nós, vindo do lado. E, em amena cavaqueira, lá che‑ Ordem: “Apresentar­‑se às nove horas.” Pela primeira vez, sinto­
gámos ao destino noite dentro, ao luar. Mas a seguir! Estive ‑me capaz de partilhar inteiramente os sentimentos dos solda‑
sentada junto do observador de artilharia de Podgora, espe‑ dos. Que alívio, é uma ordem! É com maravilhosa facilidade
rando, de respiração sustida, o que sucederia no seu sector. que se passa através do fogo, quando a ordem assim exige.
É preciso ver que reina agora uma afirmação dos instintos, um Abençoado o povo a quem fosse dado viver na obediência
acentuar da personalidade, que dantes jamais poderia ter­‑se de uma ordem, confiado, crente de que a ordem é mesmo a
manifestado. Sobre o muro do parque do palácio fui alvo de ordem correcta, concebida pelos melhores entre os melhores;
tiroteio. Ali estamos, sem um movimento. O inimigo que nos tal como é aqui a ordem de Isonzo, que obriga a avançar e não
veja, se quiser! Ainda não dissemos uma palavra. Agora olho permite qualquer retrocesso, que protege o que é nosso! Somos
para ele. É magro e pálido. Não tem muito mais de 20 anos. alcançados por alguns feridos… Um deles ficou surdo­‑mudo.
Algo estranho se passa em mim. Olho para o tenente; é profes‑ Acena e dá a entender o que lhe aconteceu… Os automóveis
sor primário numa aldeia húngara. E, como uma luz ofuscante, estão à espera e em breve estamos no aquartelamento. A mesa
desperta em mim uma clara percepção. Durante o fogo cerrado está posta e a refeição é servida em terrinas fumegantes. Não
sobre o San Michele, uma nova maneira de ver ilumina cada há olhos que não brilhem ainda com o reflexo do que acabou
circunvolução do meu cérebro. O tenente não tem consciência de se viver. Mas comemos à valentona e dormimos magnifi‑
do efeito que a sua atitude tem sobre as minhas ideias. Olha camente e ao meio­‑dia do dia seguinte a banda militar toca
para mim e sorri. Sente que estou a pensar com ele, durante o durante o almoço dos oficiais. Não é verdade que temos a trin‑
fogo de metralha os nossos nervos balançam ao mesmo ritmo. cheira de que precisávamos? Come­‑se ao ar livre, os espargos
Soa como um solo de orquestra… Tac, tac, tac… é assim que estão esplêndidos e doces melodias de valsas rivalizam com o
começa… O primeiro som é de manhã, quando me levanto às cuco e com o pica­‑pau… Em Roma, Salandra de certeza não
três e meia para me dirigir à minha posição… Tiu, tiu, tiu… tac, fica a saber senão que perdeu hoje uma trincheira. Bom, o fogo
tac, tac… quings!… Mas a nenhum de nós dois passa sequer cerrado do Monte San Michele tinha ficado para trás. Mas no
pela cabeça a ideia de desobedecer, de não respeitar a ordem. dia seguinte voltámos a sair para campo aberto. São interes‑
Sinto agora na própria carne a tremenda força impulsionadora santes, as colunas de feridos. Os que têm ferimentos mais
de uma ordem. O tenente pára. Um rouxinol chama e o aroma leves ainda se põem em sentido e fazem a continência, outros
das acácias é entontecedor. É verdade que agora o fogo vem erguem um olhar baço e esforçam­‑se por chegar com a mão à
do outro lado; já não tão fustigante e apressado, mas rugindo boina, muitos, porém, jazem imóveis, têm o capote a tapar­‑lhes
devagar, cantando quase com sarcasmo. O tenente puxa­‑me a cara e não vêem nem ouvem nada… A batalha terminou.
de encontro à parede. Vu… vu… vu… Era uma granada que Vamos então embora. No dia seguinte, pensei, sabes que mais,
não explodiu… Nem pensar em parar ou em procurar abrigo. hoje deixa lá o Monte San Michele. Hoje o caminho leva­‑me à
518 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 519
divisão vizinha, às tropas húngaras do exército. Sobre a estrada
paira um cheiro a cadáver. Nenhum picadeiro de uma grande
cidade é tão animado como esta estrada varrida pelas grana‑
das. Aqui, desde há oito ou dez meses que jazem entre as linhas
cadáveres completamente mumificados, todos esburacados…
As trincheiras são estreitas, quase só da largura de um homem,
e os homens dormem no fundo delas, estendidos ao comprido.
Passa­‑se por cima deles, mas eles não acordam… Contamos
seis impactes e conseguimos tirar uma rápida fotografia.…
Deixam­‑me olhar para fora através de um escudo blindado
e admirar a cratera… O comandante do batalhão oferece­‑me
um cálice de aguardente de ovos. É reconfortante. É que os
nervos ainda vibram dos estrondos constantes a toda a volta.
“Ponha a mesa com folhas novas de jornal”, grita o hospitaleiro
oficial. (Manifestamente, uma galanteria em minha intenção.)
Seis tiros… seis impactes em cheio… Encho chapa após chapa
com imagens para o futuro… E depois, de volta para aqui. Nos
alojamentos do brigadeiro espera­‑nos um pequeno­‑almoço; Tempo de valsa
aceito­‑o com gratidão. Mas que pequeno­‑almoço…! Porque
Cadorna hoje foi de novo indulgente para mim, porque a gra‑
nada chegou de novo precisamente um quartinho de hora
tarde de mais, houve uma garrafa de champanhe autêntico e,
como prémio especial, uma lata de caviar verdadeiro. Crois‑
sants estaladiços e flores coloridas, rabanetes e uma toalha de
damasco… contrastes assim só os há na frente!
Os oficiais: Porque Cadorna hoje foi de novo indulgente para
ela, porque a granada chegou de novo precisamente um quar‑
tinho de hora tarde de mais…
520 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 521
houve flores, croissants e caviar, no San e acabámos na mesma por ter de desistir de forçar a
assim é que é, não há que hesitar. passagem do rio. Estamos agora na situação em que estávamos.
O Mata­‑caçadores­‑imperiais:10 Eles têm que aguentar dê por
Do Estado­‑Maior somos a nata, onde der.
essa honra ninguém nos arrebata. O comandante: Excelência, as tropas morrem de frio nos bura‑
cos gelados cheios de água vinda do subsolo.
Lá na trincha não há quem nos apanhe; O Mata­‑caçadores­‑imperiais: Que número provável de bai‑
pra essas bandas nunca há champanhe. xas estima você?
O comandante: Quatro mil.
Em vez de caviar numa torrada, O Mata­‑caçadores­‑imperiais: As tropas devem ser sacrifica‑
só sai morte de herói – bem aviada. das conforme as ordens.
O comandante: Quando de lá saírem, vão patinhar na neve até
Nós comemos, el’s pagam: bom critério, aos joelhos, ao mesmo tempo que investem contra uma posi‑
que tombar pela pátria é refrigério. ção inimiga situada numa cota superior.
O Mata­‑caçadores­‑imperiais: Então eles não têm um cape‑
E hoje todos sabem de ginjeira: lão para lhes dar ânimo? A ofensiva não pode sofrer atrasos a
nós pra tombar, só c’uma borracheira. nenhum preço!
O comandante: Excelência, é que há tanta neve no solo que um
De novo Cadorna foi indulgente. regimento inteiro vai ser aniquilado.
Ora, contrastes assim só os há na frente! O Mata­‑caçadores­‑imperiais: Um regimento? Mas que dife‑
(Muda a cena.) rença me faz um regimento!
O comandante: Os homens estão no meio da água de estômago
CENA 11 vazio. Lutam desesperados contra os violentos e incessantes
Posto de comando de uma divisão. ataques dos russos.
(O Mata­‑caçadores­‑imperiais é chamado ao telefone.)
Um comandante: Excelência, precisamente esta operação, fal‑ O Mata­‑caçadores­‑imperiais: O quê? Querem ser rendidos
tando como faltava a artilharia apropriada, não tinha qualquer ou receber reforços? Senhor major, as suas ordens são para
hipótese de sucesso. O inimigo montou um autêntico tiro ao aguentar até ao último homem, não tenho pessoal disponível
alvo sobre os pontões que foram lançados e as respectivas e retirar não é palavra do meu vocabulário, custe o que custar!
guarnições. Centenas de cadáveres afundaram­‑se naquele dia O quê? Quer um dia de descanso para secar as roupas? Que é
522 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 523
que está a dizer? Os seus pobres, valentes tiroleses jazem mortos CENA 13
a tiro na terra de ninguém e andam a boiar na água? (Aos ber‑ Hospital junto ao posto de comando de uma divisão.
ros.) Para levar tiros é que eles aí estão! Ponto final!… Pronto, e a Ouve­‑se a banda do regime tocar melodias alegres.
si não tenho mais nada para lhe dizer. As tropas têm que manter
as suas posições, é a minha carreira que está em jogo! (Sai.) Um ferido grave: (Geme.) Não toquem… não toquem!
Um major: (Para o comandante.) Não há nada a fazer, é que Um enfermeiro: Bico calado! É a música de Sua Excelência,
Sua Excelência costuma empregar as suas tropas de elite, o marechal­‑de­‑campo von Fabini. Achais que ele vai mandar
devido às suas qualidades excepcionais, justamente nas tare‑ parar a música por vossa causa?
fas mais difíceis. Sua Excelência é um general extremamente (Abre­‑se a porta. Ouve­‑se cantar: “Antes uma carraspana do que
enérgico, decidido, impulsivo, que é rigoroso nas exigências de a febre ou a esgana.”)
serviço, é dotado de coragem pessoal e requer dos seus subor‑ (Muda a cena.)
dinados um incondicional espírito de sacrifício.
(Muda a cena.) CENA 14
Numa divisão de reserva alemã.
CENA 12
Retirada. Uma povoação. Um coronel: (Dita.) … E agora a parte final da ordem do dia.
Aviso! O senhor general von Schmettwitz recebeu devolvidos
O Mata­‑caçadores­‑imperiais: (Para um coronel.) Ninguém sai da Lavandaria da Masúria, em Lötzen, três colarinhos brancos,
das fileiras e ninguém compra nada! (De uma loja sai um soldado de marca Maingau, tamanho 42, sem monograma, que não lhe
esfomeado com um pedaço de pão na mão. O Mata­‑caçadores­ pertencem. Em contrapartida, faltam três colarinhos brancos,
‑imperiais fustiga­‑o com o chicote de montar.) Senhor coronel, tamanho 43, dois deles com o monograma v. Sch., e todos com
mas que bando de porcos é que tem aqui, mande atar ao poste três uma bordadura cinzenta na casa de trás. Solicita­‑se a troca.
horas todos os homens que tenham saído das fileiras! Faça saber (Muda a cena.)
que se disparará sobre os soldados que durante o avanço ou a reti‑
rada vão comprar pão e leite aos camponeses! (Retira­‑se a cavalo. CENA 15
Aqui e ali, soldados abandonam a formação. Os oficiais disparam O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
sobre os seus homens. Pânico. Gritos de terror: “Vêm aí os russos!”)
Primeiro­‑tenente Gerl: (Assumindo uma posição marcial.) Podeis O Optimista: Há uma coisa contra a qual quero preveni­‑lo:
espichar de fome que eu hei­‑de ter sempre alguma coisa que comer! generalizar.
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: Quer dizer que eu deveria evitar
524 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 525
tomar qualquer canalha por um general? a Cruz de Mérito por roubar, assassinar e violar e com a Ordem
O Optimista: Não, não deve é ignorar os exemplos inumeráveis de Maria Theresia por ordenar esses actos.
de cumprimento de dever e de espírito de sacrifício… também O Optimista: Não se pode generalizar. Ainda hoje li que, através
entre os oficiais… de uma camaradagem que muitas vezes se transforma em ami‑
O Eterno Descontente: Não se pode generalizar. Mas como zade, a tropa e os oficiais, que oferecem à pátria o seu sangue
esses exemplos, por serem inumeráveis, aparentemente não jovem, formam um vínculo…
se podem ignorar, não há outro remédio senão fixar o olhar O Eterno Descontente: …a que a tropa se sente presa.
nas excepções. Se, em vez disso, quiséssemos chamar a aten‑ (Muda a cena.)
ção para aqueles que não perderam a sua honorabilidade na
guerra, estaria a sublinhar­‑se o evidente e a ofender seriamente CENA 16
a instituição, ao dar a impressão de que a honorabilidade é Estação de mercadorias de Debreczin.
excepcional. Precisamente ao apontar para os canalhas é que Um vagão, vigiado por sentinelas. Tem escrito a giz:
se fica a salvo da acusação de estar a generalizar, que apenas “Quarenta homens, seis cavalos”.
os atingidos, mas não os restantes, podem formular. Não pre‑ Em redor, um grupo de curiosos.
tendo ofender ninguém, apenas a instituição no seu conjunto,
ao aceitar mais facilmente, em seu desfavor, que ela trans‑ Uma sentinela: (Para a população.) Andor, fora daqui!
forme um débil num canalha do que, em seu favor, que não Primeiro­‑tenente Beinsteller: Há quanto tempo é que eles
corrompa um homem honrado. Não julgue que eu considero estão presos lá dentro?
tiranos convictos esses filisteus cobardes que agora aproveitam Tenente Sekira: Só há hora e meia.
a oportunidade de terem poder para vingar nos seus homens Beinsteller: Quer dizer, falta ainda meia hora! Quantos são?
o que lhes falta a eles como homens. Eles só derramam sangue Sekira: Vinte.
porque não são capazes de ver sangue e nunca o viram, eles Beinsteller: Quer dizer que ainda lá cabiam mais 20! Estes
agem na embriaguez de se verem de repente como chefes de cabrões lá da frente levam uma vidinha regalada.
si próprios e poderem fazer coisas para que não encontram Sekira: Já mandei fazer­‑lhes a barba a seco e depois dei­‑lhes
a indispensável “cobertura” na sua personalidade, mas tão­ umas bofetadas. Se proibirem deixá­‑los ficar amarrados, já sei
‑somente na oportunidade. E a maior parte destes biltres nem o que hei­‑de fazer. Meto­‑os dentro duma guarita… e depois
sequer poderá um dia ser apanhada, porque, nas suas acções, enfio lá pra dentro tanto arame farpado à roda que o gajo só
eles estão protegidos por aquele código que lhes permite e lhes pode ficar de pé em sentido!
ordena tudo aquilo que antes o Código Penal lhes proibia: o (Muda a cena.)
regulamento. Grande foi a época em que alguém escapou com
526 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 527
CENA 17 à repartição encarregada da consignação de bens alimentares
Repartição municipal em Viena. racionados. Na estância termal, caldas ou local de veraneio, as
pessoas interessadas apresentar­‑se­‑ão, tanto à chegada como
O funcionário: (Para uma pessoa de pé diante dele.) Ora bem, à partida, na repartição responsável pelos cartões de racio‑
atão se o senhor quer ir a ares… vamos já dar conta disso, só namento, apresentando aí o certificado de cancelamento do
precisa de se guiar pelo seguinte regulamento, preste lá atenção: cartão de racionamento. (A pessoa desaparece.) A entrega de
(lê, sublinhando uma certa expressão de modo particularmente cartões de racionamento, tanto no local da estadia de férias
vivo, mas executando sem cessar com o indicador da mão direita como, depois do regresso, no local de residência habitual, far­
um movimento que parece rejeitar toda a esperança) “As pessoas ‑se­‑á apenas contra a apresentação do certificado de cancela‑
que, no ano de 1917, mudem o seu domicílio provisoriamente mento do cartão de racionamento autenticado pelos carimbos
para uma estância termal ou, por um período mínimo de qua‑ respectivos. As autoridades locais foram autorizadas a racionar
tro semanas, para umas caldas ou um local de veraneio devem, a compra de bens alimentares por forasteiros e, além disso, a
o mais tardar até 1 de Junho, fazer na repartição de bairro do seu regulamentar o serviço de comidas nos estabelecimentos de
domicílio habitual, utilizando o formulário oficial aí disponí‑ restauração das estâncias termais, caldas ou locais de veraneio.
vel, uma participação de que conste o nome, o domicílio habi‑ Os restaurantes só têm direito a uma atribuição adicional de
tual, o local da estadia de veraneio, o dia de chegada previsto, bens alimentares para poderem servir os hóspedes das estân‑
o número de acompanhantes e a duração prevista da estadia; cias termais e das caldas, bem como dos veraneantes em geral,
um segundo exemplar, idêntico, desta participação deve ser se provarem o aumento das necessidades através da entrega
enviado à repartição de bairro do lugar de estadia escolhido. dos talões de racionamento recebidos dos seus clientes. Para
Ainda antes da partida, as pessoas devem levantar na repar‑ excursionistas que visitam estâncias termais, caldas ou locais
tição responsável pelo seu cartão de racionamento o certifi‑ de veraneio apenas por um período de tempo limitado, não
cado de cancelamento do cartão de racionamento e, em con‑ poderão tomar­‑se medidas de aprovisionamento especiais.
formidade, cancelar a aquisição de bens alimentares de venda Para além disso, as autoridades locais, para impedir o açam‑
racionada no estabelecimento onde costumam abastecer­‑se, barcamento de bens alimentares, foram autorizadas a proibir
contra confirmação no certificado de cancelamento do cartão a compra directa ao produtor de certos bens alimentares por
de racionamento. O vendedor de bens alimentares raciona‑ parte dos hóspedes de estâncias termais, caldas ou locais de
dos tem de ter uma lista onde será registado o nome, morada, veraneio.” Ora ’tá a ver, agora já sabe, agora pode… (Levanta os
dia da partida e número de acompanhantes das pessoas que olhos.) Mas adonde é que ele se meteu? (Procura no chão.) Olhe
dêem baixa, bem como a quantidade de bens alimentares a lá, espere pelo certificado de cancelamento do cartão de racio‑
serem abatidos; esta lista deve ser apresentada semanalmente namento! (Abanando a cabeça.) Que tipo estranho. Ao que as
528 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 529
pessoas se atrevem! (Continua a procurar. Depois levanta­‑se.) CENA 20
Não teve paciência pra esperar. Querem ver que já está a ares! Sófia. Um banquete de redactores­‑em­‑chefe alemães e búlgaros.
(Muda a cena.)
O embaixador alemão, conde Oberndorff: (Levanta­‑se.)
CENA 18 Caríssimos convidados! Alegro­‑me sempre quando me é dado
Casa da família Durchhalter.11 reunir nesta casa, sobre a qual ondula o estandarte negro­
‑branco­‑vermelho, amigos alemães e búlgaros para uma cor‑
A mãe: Em casa tirainde as sandálias, uma pessoa nem ouve o dial troca de ideias. Mas hoje alegro­‑me muito em especial.
que diz! Porque aos senhores, caros representantes da imprensa alemã
Um filho: Mãe, atão hoje não há outra vez nada pra comer? e búlgara, posso dar as boas­‑vindas… como colegas.
A mãe: Grande atrevido, espera aí que já te ensino… (Faz menção Gritos: Bravo! Cá vai à sua, caro colega!
de se atirar a ele. Tocam à porta.) É o pai. Ele foi prà bicha dos O embaixador alemão: Pois é, mesmo que, por vezes, tenha‑
nabos, oxalá… mos algo a criticar uns aos outros, como é normal que acon‑
(Ouve­‑se o matraquear de sandálias. O pai, vestido com um fato teça entre membros da mesma corporação, a diplomacia e a
de papel, aparece à porta.) imprensa estão intimamente unidas.
Os filhos: Pai, pão! Gritos: Bravo! Bravo!
O pai: Meus filhos, a Rússia está a morrer à fome! O embaixador alemão: Sem sensibilidade diplomática, nin‑
(Muda a cena.) guém pode ser bom jornalista e ninguém pode ser um diplo‑
mata aceitável que não tenha sido ungido com uma boa gota
CENA 19 de tinta de imprensa como viático para entrar na profissão.
O Assinante e o Patriota em conversa. Gritos: Magnífico!
O embaixador alemão: Eu digo profissão, mas a palavra não chega.
O Assinante: Ora pois, agora não tarda temos aí o trigo da Ucrânia. É uma arte, uma grande arte, a que exercemos, e o instrumento
O Patriota: O Czernin tem cá uma genica! Agora conseguimos com que tocamos é o mais nobre imaginável, é a alma dos povos!
a paz do pão! E agora eles que experimentem fazer­‑nos render Gritos: É assim mesmo!
à fome! O embaixador alemão: Esta guerra mundial mostrou­‑nos do
(Muda a cena.) que a diplomacia e a imprensa são capazes quando se unem.
Gritos: Exactamente!
O embaixador alemão: Temos que aprender com o inimigo. Se
passarmos em revista as sumidades diplomáticas da Entente e
530 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 531
ouvirmos nomes como Times e Reuter, Matin, Havas, Novoje Steinecke­‑Hannover: É um dos melhores oradores que temos
Vremja,12 já sem falar nos pequenos satélites em Roma, Buca‑ agora. A verdade combate nas nossas fileiras… como é simples
reste, Belgrado, temos de confessar que aqui entrou em cena uma e verdadeiro ao mesmo tempo!
aliança que pode exibir êxitos, êxitos na mentira e na impostura… Kleinecke­‑Berlin: Pois, desde o dia em que pudemos informar
Gritos: É verdade! que aviões franceses tinham bombardeado Nuremberga. Foi aí
O embaixador alemão: …na raiva e no ódio, como o mundo que tudo começou.
nunca tinha visto. Sim, é uma aliança poderosa e de aspecto Steinecke­‑Hannover: Pois, desde essa altura que estamos em
terrível e, no entanto, não passa de um colosso artificialmente luta contra as mentiras dos nossos inimigos.
insuflado, que um dia há­‑de estourar. Pois falta­‑lhe o espírito Kleinecke­‑Berlin: Esta guerra mundial, que a inveja britânica,
que dá vida e sustenta a vida, o espírito da verdade. Esta é nas a sede de vingança francesa e a cobiça russa nos impuseram,
nossas fileiras que combate. mostrou­‑nos do que a diplomacia e a imprensa são capazes
Gritos: Exactamente! quando se unem. Palavras que valem quanto pesam.
O embaixador alemão: É com ela e por ela que vós, meus senhores Steinecke­‑Hannover: Faz lembrar as palavras certeiras de
da imprensa búlgara e alemã, combateis, com a consciência altiva de um colega eminente. Como é que disse Ernst Posse? “A guerra
que todas as vitórias que a verdade consegue representam também revelou o poder que o jornalista moderno tem nas suas mãos.”
vitórias da nossa causa comum. Sim, no dia em que os povos que “Imagine­‑se”, diz Ernst Posse, “se se conseguir, esta revolta inter‑
são impelidos contra nós numa luta vã abrirem finalmente os nacional das almas sem o jornal; será que, sem ele, a guerra teria
olhos, no dia em que eles reconhecerem a nossa verdadeira força… de todo em todo sido possível, possível nas causas que a gera‑
Gritos: Hurra! ram, possível também na forma como tem sido conduzida?”
O embaixador alemão: …como estamos armados por dentro Kleinecke­‑Berlin: É bem verdade! Ernst Posse até exclui a
e por fora de uma couraça invencível, nesse dia, a guerra mun‑ diplomacia.
dial vai acabar! (Senta­‑se. Todos brindam.) Steinecke­‑Hannover: Bem, é que ele está a falar na qualidade
Gritos: Hurra!… À sua, caro colega!… Saúde, senhor conde! de jornalista. Oberndorff é um diplomata e dá, portanto, à
Kleinecke­‑Berlin: Quer­‑me parecer, caro colega, que os tipos imprensa o que é da imprensa.
dos Balcãs estão a pôr­‑se nas encolhas. Reparou? Nem abriram Kleinecke­‑Berlin: Mas diga­‑me lá, caro colega, esta cambada
a boca…! dos Balcãs…
Steinecke­‑Hannover: Dei­ ‑me conta, sim. Ora, tanto faz. Steinecke­‑Hannover: Ah, não vamos agora importar­‑nos com
Oberndorff esteve magnífico. isso. Olhe, Oberndorff está a brindar à nossa saúde…
Kleinecke­‑Berlin: Um ponto alto atrás do outro. É verdade, o Ambos: Saúde, senhor conde!
homem foi ungido com uma bela gota de tinta de imprensa. (Muda a cena.)
532 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 533
CENA 21 muito estranho, meio orgulhoso, meio melancólico – o senhor
Ministério dos Negócios Estrangeiros. sabe como é – e disse, estendendo­‑me a mão profundamente
comovido: “Acabámos de declarar guerra à Sérvia.”
Haymerle: (Para um redactor.) Se o finado pudesse ver que estou a O redactor: O senhor conselheiro de embaixada então ainda
escrever um artigo sobre o aniversário da sua morte para a Neue não sabia de nada às oito e meia da noite? Mas parece que a
Freie Presse… como teria ficado contente! Presentemente, estou na população já estava informada?
frente e vim de propósito para aqui… é que lá não tenho sossego Haymerle: Espere. Literalmente no mesmo momento, ressoou
para escrever. Mas assim até prefiro ditar­‑lhe o artigo. Ora bem… na Moltkestraße (que fica entre o palácio da embaixada e o
lembro­ ‑me como se fosse hoje. Então… ficar­ ‑lhe­‑ia grato se Ministério da Guerra prussiano) um “Viva!” estrondoso e repe‑
pudesse acolher as linhas que se seguem no seu prestigiado jornal. tido e, logo a seguir, o nosso amado hino nacional foi entoado
Tive a honra de servir sob as ordens de Sua Excelência, o conde por centenas de pessoas de todas as classes sociais – oficiais,
Szögyény­‑Marich, desde os finais de Janeiro de 1914, na quali‑ cavalheiros de chapéu alto, senhoras com vestidos de noite…
dade de conselheiro da Embaixada Imperial e Real em Berlim. O redactor: Interessante, então as pessoas já se tinham ajuntado.
Não é meu intuito debruçar­‑me sobre o período imediata‑ Haymerle: Mulheres do povo, operários, soldados e crianças…
mente anterior à irrupção da guerra mundial, e também não O redactor: O quê, crianças também?
tenho legitimidade para isso; o que eu gostaria é de mencionar Haymerle: Naturalmente. Oh, a miudagem muitas vezes é
um episódio que é característico e, ao mesmo tempo, honroso esperta como o alho! Ele, em particular, sempre foi um grande
para o grande homem de Estado. amigo das crianças! Então onde é que íamos… foi entoado e
Foi na noite do dia da declaração de guerra entre a Sérvia e a toda a gente chamou a uma só voz pelo embaixador. “À janela”,
Monarquia Imperial e Real. “à janela”, “ele que apareça”, “queremos vê­‑lo!”.
Eram oito e meia da noite quando desci dos escritórios para O redactor: Manifestamente, o povo agiu não tanto com base
solicitar uma assinatura a Sua Excelência. em informações, mas por instinto.
O embaixador estava justamente a regressar da sala de jantar Haymerle: Evidentemente. O que é certo é que o povo alemão
para o quarto de dormir. sentiu já nesse momento, com a intuição própria das grandes
Quando me viu, perguntou­‑me, fiel ao seu hábito de ser sem‑ massas, como os dois impérios iam unir­‑se intimamente um
pre ele o primeiro a perguntar aos seus visitantes ou funcio‑ ao outro nos bons e nos maus momentos.
nários se havia novidades, mesmo quando queria ele próprio Sua Excelência ficou tão emocionada que só a custo consegui
comunicar uma coisa importante: “Que novidades é que há?” convencê­‑la a chegar à janela do seu gabinete.
Perante a minha resposta de que não tinha conhecimento O conde Szögyény ficou tão abalado que só foi capaz de exprimir
de nada importante, o velho senhor fitou­‑me com um olhar o seu agradecimento à multidão com um aceno de mão. Mas
534 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 535
havia lágrimas a correrem­‑lhe pelas faces. E não me envergo‑ A senhora Wahnschaffe: (Com um gesto modesto de recusa.)
nho de confessar que também a mim… (com a voz embargada Ah, isso era só para os mortos. Mas agora, o meu maridinho
de lágrimas) que, postado atrás, pude partilhar este momento inventou a almofada dos heróis, o mais belo presente para os
exaltante, correram lágrimas grossas. nossos combatentes de regresso a casa, para descansarem dos
Para o embaixador foi, sem dúvida, o momento maior e mais seus feitos. Contém: 1) A inspirada alocução: “Combatentes
belo da sua vida tão marcada pelo destino, o momento em que, gloriosos”. 2) A Cruz de Ferro. 3) O nome do combatente, cer‑
pouco antes de abandonar as funções que desempenhava há 22 cado por uma coroa de folhas de carvalho como símbolo da
anos, pôde ainda testemunhar que frutos inestimáveis para a força alemã. 4) Bandeirinhas alemãs e austríacas como sinal da
nossa querida pátria… (A emoção impede­‑o de continuar a falar.) lealdade dos coligados…
O redactor: (Comovido.) Senhor conselheiro de embaixada, A senhora Pogatschnigg: Belo!
ânimo, nós, homens da imprensa, partilhamos inteiramente A senhora Wahnschaffe: 5) Bem­‑vindo à pátria! Três marcos
os seus sentimentos! O resto escrevo eu na redacção. Vejo e meio.
pela sua descrição emocionada que já antes de a guerra mun‑ A senhora Pogatschnigg: Não é nada caro. E quanto a livros e
dial começar se derramaram lágrimas. Mesmo se, felizmente, jogos para crianças, que novidades é que vocês têm lá no Reich?
eram lágrimas de alegria, a diplomacia, mesmo assim, mostrou A senhora Wahnschaffe: Nós brincamos à guerra mundial.
intuitivamente o que iria ser a missão dos povos. Mas acredite­ A senhora Pogatschnigg: O quê?
‑me, senhor conselheiro de embaixada… o jornalismo não A senhora Wahnschaffe: Nós Brincamos à Guerra Mundial,
ficou indiferente, à margem. Sendo, por natureza, uma profis‑ um livro ilustrado actual para a nossa pequenada. Bom, e
são liberal, ele, pelo contrário, fez tudo ao seu alcance para dar quanto a jogos mesmo… pois, o canhão de 42 cm, mas esse
livre curso às lágrimas que correram desde aquele momento não é nosso, é vosso… deixe ver… ah, sim, vocês conhecem
grandioso. “A Partilha do Saque”?
Haymerle: (Comovido.) Ficamos­‑lhes muito gratos. A senhora Pogatschnigg: Conhecemos, mas, não sei como é,
(Muda a cena.) esse no nosso país não tem deixado as pessoas muito satisfeitas.
A senhora Wahnschaffe: Ah, mas é um jogo fantástico! Os
CENA 22 meus catraios estão maravilhados. Sim, nós, alemães, só nos
Na sala de visitas da família Wahnschaffe. contentamos…
A senhora Pogatschnigg: …com o melhor. Em compensa‑
A senhora Pogatschnigg: Olhe, o que eu posso dizer é que o ção, nós temos agora “A Morte dos Russos”, um artigo de pri‑
“Túmulo Doméstico do Herói” tem sido largamente difundido meira classe.
entre nós e que toda a gente está entusiasmada. A senhora Wahnschaffe: Deve ser coisa fina.
536 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 537
A senhora Pogatschnigg: “A Morte dos Russos”, uma invenção A senhora Wahnschaffe: Bem, eu não devia gabar o que é
engenhosa da condessa Taaffe, é um jogo de paciência interes‑ obra de Wahnschaffe – sabe como é, elogio em boca própria…
sante para grandes e pequenos, e é fabricado pelos feridos do hos‑ – mas não posso deixar de lhe recomendar muito vivamente
pital da Cruz Vermelha na Kleinseite, em Praga, onde a condessa o novo pião de jogar à guerra. Este novo jogo não pode faltar
presta serviço voluntário como enfermeira­‑chefe. Num ovo da em nenhuma casa alemã e proporciona a grandes e pequenos,
Páscoa executado com muito bom gosto, aparece uma fortifica‑ em qualquer família, em qualquer reunião social, em qualquer
ção militar com obstáculos de arame farpado e um pântano, e oportunidade, um passatempo emocionante. Primeiro, cada
ainda, em pleno combate, soldados russos e da nossa coligação. jogador deposita a sua aposta na caixa. Depois, o pião é posto
Agitando o ovo, tem que se fazer entrar os soldados coligados a girar à vez com os dedos por cada jogador. As letras e núme‑
para dentro da fortificação e atirar os russos para o pântano. ros têm o seguinte significado: R. g. n.: Rússia – ganha nada;
A senhora Wahnschaffe: Ena! I. p. 1/1: Inglaterra – perde tudo; F. p. 1/2: França – perde
A senhora Pogatschnigg: “A Morte dos Russos” constitui metade; T. g. 1/3: Turquia – ganha um terço da caixa;
uma prenda de Páscoa apropriada não só para a juventude, A. g. 1/2: Áustria – ganha metade da caixa; A. g. t.: a Alemanha
mas também para os soldados que estão nos hospitais, aos acima de tudo – ganha a caixa inteira.
quais oferece uma distracção agradável e um passatempo A senhora Pogatschnigg: Bravo! Mas se a Áustria ganhou
emocionante. O ovo de Páscoa “A Morte dos Russos”, com um metade da caixa, como é que a Alemanha pode meter tudo ao
elegantíssimo acabamento de seda negra­‑amarela, custa três bolso? Será que a Alemanha também fica com…
coroas e 60 e pode ser adquirido em Praga, no posto de venda A senhora Wahnschaffe: Pois, pois é, vocês, austríacos, gran‑
central do Departamento de Beneficência de Guerra. des madraços, isso agora é que já não vos convém! Então é
A senhora Wahnschaffe: Que coisa catita! E com que delica‑ assim que agradecem por nós vos termos safado tantas vezes
deza a nobre samaritana teve em consideração o gosto dos sol‑ de apuros! A vossa última ofensiva deu outra vez num belo
dados feridos! Pois é, a nobreza austríaca! Não há dúvida, pode descalabro!
estar caduca, mas há nela mais graça do que na nossa, isso até A senhora Pogatschnigg: (Aperta­‑lhe a mão.) A senhora
eu tenho que concordar. Como é que é então, cara senhora convenceu­‑me. A Áustria só ganha metade da caixa, é verdade,
Pogatschnigg? Agita­‑se o ovo e aí os nossos valentes têm que mas… eu sou uma dona de casa alemã! (Saem ombro com
entrar para dentro da fortificação, mas os russos vão para o ombro, cantando “A Alemanha, a Alemanha acima de tudo”.)13
pântano… ena! Mas isso é o ovo de Colombo! (Muda a cena.)
A senhora Pogatschnigg: Desde que inventou isto, a condessa
tem vindo a merecer manifestações de apreço da sociedade.
E vós, no Reich… não tendes nada de semelhante a contrapor?
538 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 539
CENA 23 Os amotinados bloquearam o Tamisa com 26 vasos de guerra.
Três senhoras janotas alemãs O Patriota: Ora, ora, mas onde é que vem isso, mas que motim
folheando uma revista de moda alemã. foi esse?
O Assinante: O motim parecia o prelúdio de uma revolução.
Primeira senhora janota alemã: Olha aqui, 4393, conjunto O Patriota: Não me diga! Mas que revolução, que motim?
“Ninfa com Campânula” de seda violeta-claro. Saia tufada com O Assinante: Que motim? O motim que é lembrado pelo nosso
pregas; chapéu em forma de campânula… já sei como me vou estimado correspondente!
vestir no Carnaval! O Patriota: Ah, pois… mas quando é que foi isso?
Segunda senhora janota alemã: Mas não, 4389, conjunto O Assinante: Nos últimos anos.
“Obus de Morteiro” de cetim liso, com aplicações de morteiro; O Patriota: Mas uma pessoa nunca ouviu falar de tal coisa! Agora
chapéu em forma de grande motivo de morteiro… este é que é que vem a lume? Mas diga­‑me lá, quando é que foi isso?
eu vou vestir! E o que é certo é que estamos em pleno Carnaval! O Assinante: Em 1797.
Terceira senhora janota alemã: Faz­‑se ainda mais. Faz­‑se O Patriota: Bem… mas isso não foi nos últimos anos!
um sacrifício. Transforma­‑se um conjunto em forma de cam‑ O Assinante: Então não foi? Nos últimos anos do século XVIII!
pânula num conjunto em forma de morteiro. O Patriota: Bom, mas que é que isso nos aproveita?
(Muda a cena.) O Assinante: Ora… a história vai­‑se espalhando.
O Patriota: Pois é, e se ainda por cima é verdade! Sabe, se isso
CENA 24 influencia os estados de espírito da Entente, fico satisfeito,
O Assinante e o Patriota em conversa. especialmente se, por exemplo, em França…
O Assinante: Ora, mas que é que quer… em França rebentou a
O Patriota: Que me diz você ao exagero com que, nos países Revolução Francesa!
inimigos, foi avaliada a tentativa de motim de três, veja bem, O Patriota: Não me diga… mas onde é que vem isso?!
três marinheiros alemães? (Muda a cena.)
O Assinante: Isso só pode ter uma resposta: grande motim na
esquadra inglesa. CENA 25
O Patriota: Onde, como? Almoço com Hindenburg e Ludendorff.
O Assinante: Em Spithead in the Nore.
O Patriota: Olha que essa… houve lá um motim? Hindenburg: (Aperta a mão a Paul Goldmann.) Ah, aí está o senhor.
O Assinante: E que motim! Motim nem é maneira de dizer! Paul Goldmann: (À parte.) Uma manápula de leão. Ele cumpri­
O motim alastrou a quase toda a esquadra do general Duncan. menta­‑me com a bondade cativante que lhe é própria.
540 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 541
Ludendorff: (Aperta a mão a Paul Goldmann.) Ah, aí está o Paul Goldmann: (Para si.) Os pormenores do que na sequência
senhor. se conversou sobre a paz não podem ser publicados. O máximo
Paul Goldmann: (À parte.) O seu aspecto é o mesmo de há um, que talvez possa ser divulgado é que Hindenburg e Ludendorff
há dois, há três anos, só a sua cabeça marcante tem um ar ainda desejam uma paz que gere uma situação tanto quanto possível
mais espiritual. sólida e estável, uma paz que possa trazer­‑nos fronteiras segu‑
Hindenburg e Ludendorff: (À parte.) Ele está na mesma. ras e a liberdade de comércio no mundo e nos oceanos.
(Sentam­‑se nos seus lugares, com Goldmann no meio. Vão­‑se Ludendorff: Continue!
dirigindo a ele alternadamente da direita e da esquerda.) Paul Goldmann: Permita­‑me ainda…
Hindenburg: (Suspirando.) Agora o que é preciso é aguentar a Ludendorff: Ah, bom… Hindenburg, continuemos!
pé firme. Hindenburg e Ludendorff: Sou de parecer que as opiniões
Ludendorff: (Suspirando.) É difícil, mas temos de conseguir. sobre a paz não podem ser imutáveis, uma vez que dependem
Hindenburg: Tudo vai bem. da situação militar.
Ludendorff: A situação consente o maior optimismo. Hindenburg: Também sobre a situação na frente ocidental
Hindenburg: Vai ser preciso passar o Inverno, claro. posso…
Ludendorff: É evidente que não podemos determinar a data Ludendorff: …pronunciar­‑me com toda a tranquilidade.
da paz. Paul Goldmann: O que é que pode esperar­‑se do Conselho
(Goldmann vai acenando para os dois lados e vai tomando notas.) Supremo de Guerra que a Entente se prepara agora para ins‑
Paul Goldmann: (Para si.) Dar indicações precisas sobre o tituir? (Para si.) Hindenburg ri­‑se. (Anota isto e põe depois o
“quando” da paz é, evidentemente, impossível. Mas talvez dedo na questão da Alsácia­‑Lorena.)
sobre o “como”…? Vou fazer agora uma pergunta que segura‑ Ludendorff: Para os franceses poderá existir uma questão da
mente preocupa todos os que ficaram na pátria. (Em voz alta.) Alsácia­‑Lorena…
Quais são os meios mais seguros para conseguir a paz? Hindenburg: …para a Alemanha essa questão não existe.
Hindenburg: A paz há­‑de ser conseguida tanto mais cedo… Paul Goldmann: Bem, e quanto à América?
Ludendorff: …quanto mais favorável for a nossa situação mili‑ Hindenburg: A campanha publicitária…
tar. Por enquanto, ainda os actos valem mais… Ludendorff: …com que a América anuncia os seus feitos
Hindenburg: …do que as palavras. bélicos…
Ludendorff: Por isso é que não deveríamos… Hindenburg: …é impressionante e é digna de um país que
Hindenburg: …falar agora da paz. O primeiro passo… produziu…
Ludendorff: …parece que são os russos que querem dá­‑lo. Ludendorff: …um Barnum. Agora vamos é esperar para ver…
(Faz­‑se uma pausa, durante a qual Goldmann toma notas.) Hindenburg: …se os próprios feitos vão ser tão impressionantes.
542 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 543
Ludendorff: Ora, e se forem… em primeiro lugar, os america‑ Diga isto na Áustria­‑Hungria, junto com as saudações cordiais
nos têm o exército mobilizado contra o Japão… da minha parte!
Hindenburg: …segundo, não têm tonelagem suficiente… (Goldmann levantou­‑se e fica hesitante à espera.)
Ludendorff: …terceiro, nós temos os submarinos. Ludendorff: (Aproximando­‑se dele e acentuando cada palavra.)
Hindenburg e Ludendorff: Em suma, o grande exército ame‑ Esta talvez tenha sido a última vez que nos veio visitar.
ricano ainda está a uma distância nebulosa. Paul Goldmann: (À parte.) As palavras de despedida do quartel­
Paul Goldmann: Estou preocupado com uma pergunta que tem ‑mestre­‑general aludem ao facto de, em todos os Outonos de
que ver com o problema da guerra submarina. guerra até ao momento, me ter sido concedida a honra de me
Ludendorff: Olhe, Hindenburg, não quer responder sozinho? sentar uma vez à mesa do marechal­‑de­‑campo.
Hindenburg: Nã. (Muda a cena.)
Ludendorff: Nós nunca pensamos que os nossos submarinos
iriam fazer a Inglaterra render­‑se à fome no prazo de alguns CENA 26
meses. O nosso objectivo não era fazer a Inglaterra render­‑se à Semmering. No caminho da montanha.
fome, mas predispô­‑la mais à paz.
Paul Goldmann: Muito bem, falemos então agora um bocado O conselheiro imperial: … Mas que é que quer que lhe diga, os
das operações na Itália. dez vagões caíram­‑me nos braços assim sem mais. Em Marien‑
Hindenburg: Em emulação dos nossos alemães, os soldados bad, que é que quer que lhe diga, arranja­‑se tudo, só que, claro,
austro­‑húngaros bateram­‑se… 15 vezes mais caro, mas que mal é que tem? Foi cá uma cena…
Ludendorff: …com valentia. chego eu à Estação do Sul, estava tudo a rebentar pelas costuras,
Paul Goldmann: Já falámos de todos os teatros de guerra, só já soldados e tal por toda a parte, era cá uma gritaria e um aperto,
dou pela falta dos Balcãs. que quer que lhe diga, uma coisa nunca vista… mas que é isto,
Hindenburg: (Tranquilizando­‑o.) A situação nos Balcãs… não vou arranjar lugar, pois que é que quer que lhe diga, fui
Ludendorff: …não sofreu alterações. por ali a direito pelo meio, e volta pela frente, volta por trás,
Paul Goldmann: (Para si.) Fiquei tranquilizado. O almoço foi o revisor disse para estar descansado que ele trataria de mim,
de frugalidade militar, embora o café fosse genuíno. dei a bagagem a um soldado, pois que é que quer que lhe diga,
(Hindenburg e Ludendorff levantam­‑se. Paul Goldmann um compartimento só para mim até lá cima ao Semmering,
deixa­‑se ficar sentado.) as pessoas ficaram de pé no corredor como arenques… uff, o
Hindenburg: (Despedindo­‑se do convidado, meio virado para calor que estava… (Tira um saquinho do bolso.) Barato…! É do
Ludendorff.) Com um pouco mais de força e paciência, have‑ rei das guloseimas! A duas coroas a unidade, um preço de fazer
mos de levar tudo a bom termo. (Virando­‑se para Goldmann.) cair o queixo. Que é que me diz do comunicado de hoje?
544 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 545
O velho Biach: É coisa que não vai deixar de repercutir­‑se no O velho Biach: Sentimos nas palavras do Departamento de
moral da Entente. Imprensa Militar o sopro da história. Agora eles vão gritar pelo
O conselheiro imperial: Não sei… é mais forte do que eu… o apoio americano, por esse fogo­‑fátuo da Entente que ela per‑
comunicado de hoje… então que é que me diz a Luzk?14 segue e a faz afundar­‑se cada vez mais no pântano, na derrota
O velho Biach: Crescente sensação de debilidade na Entente. e na perdição.
O conselheiro imperial: Como assim? O conselheiro imperial: Evidentemente, mas…
O velho Biach: A Entente continua a esconder­‑se por detrás O velho Biach: Mas sentimos já o espírito da vitória…
de palavras altissonantes, mas já está a sentir a sua debilidade. O conselheiro imperial: Pois é claro. Quer dizer… lá em
O conselheiro imperial: Sim, mas então Luzk? baixo! Mas em cima?
O velho Biach: A paz garante­‑nos um pequeno­‑almoço sem a O velho Biach: (Explodindo.) A primeira coisa agora tem de ser
Rússia. o caixeiro­‑viajante esticar as antenas e sondar a clientela.
O conselheiro imperial: Explique lá… O conselheiro imperial: Para mim isso faz sentido, mas…
O velho Biach: Não podemos calcular isso em biliões. Mas há O velho Biach: Se traçarmos o balanço, o resultado mesmo
biliões que não é possível contar. assim ainda é de uns 40 mil homens a nosso favor.
O conselheiro imperial: Querer é poder. O conselheiro imperial: Lá em baixo! Mas em cima…?
O velho Biach: Cem biliões de marcos por ano são um monstro O velho Biach: Ouve­‑se o troar dos canhões e sabe­‑se quantos dos
digno de Leviatã, em que nada é pequeno. mortos, feridos e prisioneiros há que registar na coluna do deve.
O conselheiro imperial: Onde é que vai buscar os biliões? O conselheiro imperial: Bem, mas suponha que…
Nos tempos que correm? O velho Biach: Londres e Paris devem estar hoje de muito mau
O velho Biach: Os tempos são duros. humor. Os valores consolidados bateram no fundo.
O conselheiro imperial: E que conclusões tira daí? O conselheiro imperial: Pois é, a guerra…
O velho Biach: Kerenski disse que a Rússia está esgotada. O velho Biach: A guerra castiga os povos de três maneiras: má
O conselheiro imperial: Pois. Mas Luzk…? moeda, carestia e preços astronómicos.
O velho Biach: A batalha no Alto Isonzo só começou hoje de O conselheiro imperial: Nesse ponto… se nós…
manhãzinha e não queremos fazer previsões sobre a maneira O velho Biach: Quem se puser no lugar dos italianos…
como vai correr. O conselheiro imperial: Então o quê?
O conselheiro imperial: Mas eu estou­‑me a referir a Luzk…! O velho Biach: O terror já deve ter alastrado entre os habitantes.
O velho Biach: Não queremos regalar­‑nos com sonhos futuros, O conselheiro imperial: Receio bem que sim.
mas as provas que temos justificam a aposta. O velho Biach: Sem analisar as possibilidades já neste momento,
O conselheiro imperial: Luzk…! antes de a obra estar terminada, nos pormenores e nos detalhes…
546 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 547
O conselheiro imperial: Que me diz das conferências em O velho Biach: Nas ruas de Paris vêem­‑se mulheres de olhos
Roma? chorosos.
O velho Biach: Recepção fria em Paris. O conselheiro imperial: Bem, a gente também não tem motivo
O conselheiro imperial: O senhor ainda se lembra… naquela para rir.
altura… quando foi do caso do Lusitania… O velho Biach: (Arrebatado.) Soam hinos nos corações. O filó‑
O velho Biach: (Abanando a cabeça contrariado.) Um caso tra‑ sofo Fichte tinha­‑se alistado nas milícias territoriais.
tado com muito exagero. O conselheiro imperial: Mas a que propósito vem isso?
O conselheiro imperial: Sabe o que é que nos ia fazer bem? O velho Biach: (Fantasiando.) Ele fez o seu treino militar junta‑
Como dantes, quando se dizia… meu Deus, aquilo é que eram mente com Buttmann, Rühs e o teólogo Schleiermacher. Butt­
tempos… tropas russas cercadas pelo exército alemão… mann e Rühs não foram capazes de aprender a distinguir a
O velho Biach: (Raivoso.) …e lançadas nos pântanos da Masúria. direita da esquerda. Essa época, que é tão semelhante à nossa,
O conselheiro imperial: E então a Roménia? desperta a curiosidade e talvez o passado possa responder à
O velho Biach: Havia senhoras bem arranjadas sentadas às mesas pergunta: como é que decorrem as crises económicas suscita‑
dos salões bem iluminados dos hotéis de Bucareste. Podemos das por uma guerra? A comparação leva a coincidências notó‑
imaginar… rias até aos últimos pormenores. Não estamos nós a testemu‑
O conselheiro imperial: Então o quê? nhar agora o milagre da criação na indústria do azoto?
O velho Biach: As senhoras maquilhadas de Bucareste O conselheiro imperial: Estou a entender. Mas o senhor sabe
empalidecem. o que nos falta?
O conselheiro imperial: Isso são balelas. O velho Biach: (Impetuoso.) Homens fortes, capazes de se
O velho Biach: O terror alastra pela cidade. As janelas despojar­em de tudo e de se entregarem às pulsões do presente
estremeceram… como a noiva ao noivo.
O conselheiro imperial: Pois é claro. Mas o que é que nós O conselheiro imperial: Conforme.
podemos esperar? O velho Biach: A guerra sofre de certas estagnações de ven‑
O velho Biach: O começo de uma grande época. Os olhares dos das e a paz também, e assim as influências vão oscilando e as
povos virados para ocidente. mudanças exigem uma condução do Estado que ausculte o
O conselheiro imperial: Quando o senhor diz isso, parece que se povo e o saiba ouvir e que, nos momentos tremelicantes dessas
está a ouvir um título e subtítulo dele na edição vespertina. Mas… mudanças da procura e da produção, saiba estar à altura do seu
O velho Biach: As mulheres de Paris têm os ouvidos virados dever. O ano da consumação está próximo.
para leste. O conselheiro imperial: Não estará a exagerar um
O conselheiro imperial: Como assim? poucachinho…?
548 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 549
O velho Biach: (Exultante.) Tudo se tornou magnífico, a terra O conselheiro imperial: É triste.
está liberta, os inimigos foram rechaçados, as tropas sérvias O velho Biach: O actual governador, o senhor von Popovics,
estão aniquiladas, as fortalezas russas, arrasadas. tem um passado que legitima um futuro.
O conselheiro imperial: Bem… bem! Então e Luzk? O conselheiro imperial: Muito bem. Mas porque é que está
O velho Biach: (Deitado abaixo, mas dono de si.) Há que a dizer isso?
pendurar crepes fúnebres nas janelas. Mas para quê tais O velho Biach: Imaginamos o oficial e o soldado que, partindo
formalidades? de Cattaro, por sobre pedregulhos e penedias, nas zonas mais
O conselheiro imperial: O senhor está agora a falar como se altas sobre gelo e neve, sempre ameaçado pelos projécteis do
a gente já… inimigo, subiu até ao Lovcen. De certeza que se tornou numa
O velho Biach: (Aliviado.) A Rússia de joelhos, a Sérvia espe‑ pessoa diferente.
zinhada, a Itália humilhada! A humanidade está liberta de um O conselheiro imperial: Também me parece. Mas o que me
peso para as próximas décadas, já não se vai sentir a crispação impressiona é a sua fantasia exuberante…
dos nervos, e isso de certeza que vai espalhar uma sensação de O velho Biach: A fantasia deleita­‑se ao pensar…
bem­‑estar e ser o prelúdio para etapas em que o espanto pelo O conselheiro imperial: Um momento. O senhor salta para
desenvolvimento económico vai de novo prender­‑nos. o Banco Austro­‑Húngaro e daí para o Lovcen. Mas o que me
O conselheiro imperial: Por falar em prender­‑nos. Em Luzk… interessa é a sua opinião sobre Luzk…
O velho Biach: O historiador irá buscar informações sobre a O velho Biach: (Aliviado.) Não vamos, nas nossas recordações,
maneira como foram recebidas as notícias da vitória na Galícia recuar a Tirteu.
Oriental, vai querer saber se não foram acendidas fogueiras O conselheiro imperial: Mas porque não, não se sinta obri‑
jubilosas nos cumes dos montes, se não foram postas velas ace‑ gado a nada.
sas nas janelas das casas… O velho Biach: (Trocista.) Clemenceau vai ficar admirado.
O conselheiro imperial: Desculpe­‑me uma pergunta de leigo. O conselheiro imperial: Cá por mim!
Onde é que vai arranjar as velas? O velho Biach: (Gracejando.) O poeta russo Púchkin casou
O velho Biach: …se não houve uma música embriagadora a com uma jovem de uma família nobre. Natalie Goncharov era
exprimir os estados de ânimo… coquete e o poeta, ciumento. O filho do embaixador dos Países
O conselheiro imperial: Isso são balelas sobre Tarnopol.15 Baixos em Petersburgo, o barão George Heckeren, despertou
Vamos cingir­‑nos aos factos sobre Luzk! as suspeitas do marido com as suas tentativas de ganhar o favor
O velho Biach: (Meditabundo.) O falecido secretário­‑geral do da bela mulher…
Banco Austro­‑Húngaro, Wilhelm von Lucam, está pratica‑ O conselheiro imperial: Estou recordado. Púchkin foi morto
mente esquecido. num duelo, ora essa. Mas onde é que o senhor quer chegar?
550 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 551
O velho Biach: (Meditando.) A posteridade não o esqueceu e, vida dos povos não há nada que seja inteiramente em linha recta
quando foi descerrado o monumento em sua memória, Dos‑ e que em toda a parte as superfícies de intersecção se cruzam.
toiévski foi convidado a fazer o discurso comemorativo. Ele O conselheiro imperial: Um momento. Os diplomatas da
disse que o pensamento mais íntimo da alma do povo russo Entente…
era: “Resigna­‑te!” O comunicado do Estado­‑Maior alemão O velho Biach: (Vivamente.) Os diplomatas da Entente são como
informa que as baixas do inimigo em Postawy…16 os filhos de Noé, que cobriram a nudez do pai embriagado.
O conselheiro imperial: Pois sim, mas em Luzk eu calculo… O conselheiro imperial: Bem dito. Mas desde que a Roménia…
O velho Biach: Os transeuntes nas ruas miram­‑se de raspão à O velho Biach: (Torrencialmente.) Quando se decidiu a
procura de ler nos olhos o que os outros pensam sobre Durazzo, declaração de guerra em Bucareste, os dirigentes da Entente
Verdun e a Champagne.17 comportaram­‑se como se tivessem inalado vapores de canábis.
O conselheiro imperial: Pois, mas também sobre Stanislau! O conselheiro imperial: Chanfrados. Mas que é que o senhor
O que é que o senhor diz sobre Stanislau?18 espera hoje de Bratianu?
O velho Biach: (Com convicção.) Stanislau é um ponto de excla‑ O velho Biach: Bratianu deve estar agora a passar más noites.
mação que não pode deixar de moderar a arrogância do gene‑ O conselheiro imperial: O que é que o faz pensar isso?
ral Brusilov e de lhe recordar como as conquistas russas neste O velho Biach: Quando uma hélice está orientada para a ofen‑
local têm sido efémeras. siva e tem de ser girada ao contrário para a defensiva, pode
O conselheiro imperial: E que me diz de Brody?19 facilmente partir­‑se.
O velho Biach: (Cabisbaixo.) Brody é uma ferida que dói. O conselheiro imperial: Também acho. Bem, mas em Viena
O conselheiro imperial: Pois, e Gorlice?20 de certeza que hoje se vai fazer alguma coisa…!
O velho Biach: Gorlice é um arranhão. O velho Biach: Há de certeza muita gente a passear neste
O conselheiro imperial: Acredite no que lhe digo, as coisas momento pelas ruas de Bucareste com a dúvida nos corações.
acontecem sempre de maneira diferente do que imaginamos. O conselheiro imperial: Dê­‑me licença, nós podemos…
O velho Biach: As linhas e superfícies não podem, na realidade, O velho Biach: Nós podemos imaginar a repercussão no povo
ser separadas do corpo e, não obstante, a inteligência trabalha romeno.
com elas e constrói proposições absolutamente verdadeiras, O conselheiro imperial: Pois, mas isso agora pertence tudo ao
embora negligencie a largura e a profundidade. As batalhas do passado… agora a gente tem mas é mais com que se preocupar…!
Somme são uma das piores desilusões. O velho Biach: (Abatido.) Começam outra vez as preocupações.
O conselheiro imperial: Mas bem vistas as coisas… as pes‑ O conselheiro imperial: Olhe lá, mas ouça…!
soas têm que saber o que querem, não é assim!? O velho Biach: Agora eles já ouvem o troar dos canhões de
O velho Biach: Talvez se vá reforçar a ideia de que também na Tutrakan e Silistria21 nas ruas de Bucareste.
552 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 553
O conselheiro imperial: Mas isso já está resolvido…! O conselheiro imperial: E depois?
O velho Biach: Assim se conclui o primeiro capítulo de uma O velho Biach: (Pensativo.) Talvez houvesse também homens
guerra cuja desmesura é inteiramente desproporcionada nas mais jovens e mais velhos de Hessen nas trincheiras que Maria
causas e nas formas. Feodorovna viu durante a visita ao campo de batalha; talvez
O conselheiro imperial: Ouça o que lhe digo, o que o senhor um acaso tenha querido que se tratasse de amigos da juven‑
pensa, isso… tude, filhos ou esposos das suas companheiras de brincadeira,
O velho Biach: (Em tom decidido.) Isso não pode deixar de cau‑ filhos de vizinhos seus…
sar impressão na Inglaterra. O conselheiro imperial: Talvez. Mas era preciso que fosse um
O conselheiro imperial: E pronto! Hoje temos mais com que acaso muito especial!
nos preocuparmos do que Tutrakan, não acha!? A vitória búl‑ O velho Biach: …e, em qualquer caso, compatriotas e alemães.
gara causou sensação naquela altura… O conselheiro imperial: Bem, alemães sem qualquer dúvida.
O velho Biach: (Vibrante.) …porque foi conseguida do pé para Mas logo filhos e esposos das suas companheiras de brincadeira?
a mão com uma tal facilidade. Olhe, não pense que essa gente se ia pôr justamente na primeira
O conselheiro imperial: Hoje o que importa… é Luzk! linha das trincheiras… e filhos de vizinhos foi coisa que ela pro‑
O velho Biach: (Em tom de gracejo.) Enquanto munge a vaca, vavelmente não teve, e se os teve, e se eles por acaso estavam
Vroni pensa se não seria bonito… mesmo na primeira linha das trincheiras, diga­‑me lá como é que
O conselheiro imperial: Deixe­‑me em paz! ela havia de os reconhecer depois de tantos anos e àquela distân‑
O velho Biach: (Absorto.) O nome de solteira da imperatriz cia? Mas… porque é que o senhor toma isso tão a peito?
Maria Feodorovna é Alix von Hessen. Ela ainda estava no O velho Biach: (Em tom elegíaco.) Alix ficou na borda do arame
viveiro da vida e já tinha a casca marcada. farpado russo a olhar para o outro lado, para prados e campos
O conselheiro imperial: Biach, mas que é que tem? que só distavam dela alguns metros…
O velho Biach: (Melancólico.) Que terá sido feito de Alix, a O conselheiro imperial: Ainda por cima! Iam deixá­ ‑la
quem também não deixam rezar como a falecida mãe lhe ensi‑ aproximar­‑se tanto! E onde é que estão os prados e campos,
nara, depois de ter sido lançada no sombrio abandono ao lado como é que o senhor imagina isso?! Onde…
de um trono de czar. O velho Biach: (Sonhador.) …onde uma rabanada de vento podia
O conselheiro imperial: Que é que isso me importa? E que trazer até junto dela sons que, mau grado todas as mudanças, de
mossa é que isso lhe faz? certeza lhe seriam familiares.
O velho Biach: A razão desta pergunta é a notícia estranha O conselheiro imperial: Biach, mas que fantasista me saiu!
de que a imperatriz avançou até às primeiras linhas da frente O velho Biach: (Insistindo.) Alix vive ainda na imperatriz Maria
russa, já à vista das posições alemãs. Feodorovna.
554 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 555
O conselheiro imperial: Mas diga­‑me, por favor, apesar de tudo, da efervescência do sucesso. O czar dá­‑lhe ouvidos e Alix,
o senhor é uma pessoa sensata… que é que lhe importa Alix? arrancada à sua fé, vale mais para ele do que Maria Feodorovna.
O velho Biach: (Compassivo.) Ela é uma mulher infeliz, aba‑ O conselheiro imperial: Mas porque é que ela deixou que
tida, sempre atormentada por um desgosto que não lhe larga a arrancassem à sua fé? Pronto, está bem, se isso o faz feliz,
a cabeça. ponha­‑se a imaginar.
O conselheiro imperial: Mas diga­‑me, santo Deus, que é que O velho Biach: (Decidido.) Imaginemos o quartel­‑general do
isso lhe importa? czar no momento em que chegam as notícias.
O velho Biach: Retorcendo as mãos, ela lançou um grito ao céu. O conselheiro imperial: Mas de que é que isso lhe serve?!
O conselheiro imperial: Como assim, que é que lhe aconteceu? Olhe, quanto a Alix tenho que lhe fazer notar… ela não se
O velho Biach: (Em tom dolorido, mas com uma energia con‑ chama nada Maria Feodorovna!
tida.) Os russos puderam tirar­‑lhe o nome como se não fosse O velho Biach: (Picado.) Isso são quezílias.
mais do que um vestido. Puderam meter­‑lhe nas mãos à força O conselheiro imperial: À fé de quem sou, ela chama­‑se, mas
um livro de orações, mas não conseguiram arrancar­‑lhe a alma como é que ela se chama, ela chama­‑se Alexandra Feodorovna!
alemã. Devem existir ainda traços de Alix. O velho Biach: (De mau humor.) É uma gralha.
O conselheiro imperial: Bem, é o que o senhor supõe! Mas O conselheiro imperial: A propósito, que me diz de Nikolaievitch?
como é que sabe o que se passa no íntimo de Alix? As coisas para ele também estão feias.
O velho Biach: (Perdido.) E olhou para os alemães do outro O velho Biach: (Com malevolência.) Aparecem as picadas no fígado
lado, em quem também corre sangue precioso, e pensou talvez e eis que se anunciam os sintomas de uma vesícula arruinada.
na sua avó. O conselheiro imperial: Isso também são quezílias. Mas de
O conselheiro imperial: Talvez. Mas então porque é que ela que é que serve isso tudo… Brusilov está de boa saúde!
não lhes diz para pararem com a guerra? O velho Biach: (Transfigurado.) A conquista de Bucareste
O velho Biach: (Amargamente.) Porque a imperatriz Maria oferece­‑nos um daqueles raros momentos em que julgamos
Feodorovna não pode conceder demasiado a Alix. Ela olhou ouvir rumorejar sobre nós as asas do talento.
para o outro lado e, nos seus lábios cerrados, talvez pairasse a O conselheiro imperial: Mas qual talento, aquilo foi sim‑
palavra “paz”. plesmente genial! Bem, mas… Brusilov não conta para nada?
O conselheiro imperial: Mas o senhor acredita mesmo que a Quanto não daríamos hoje…! Bem, se a notícia…
levaram directamente para o meio da batalha? Talvez… O velho Biach: (Em êxtase.) Quando chegar a notícia de que as
O velho Biach: (Meditabundo.) Talvez tenham montado para ela vitórias na Roménia levaram as tropas coligadas até às grandes
uma cena de uma guerra de salão. O lento dissipar da crise não avenidas de Bucareste, inclinar­‑nos­‑emos em sinal de respeito
terá porventura sido ainda reconhecido em Petersburgo depois perante o espírito humano.
556 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 557
O conselheiro imperial: Pois é, naquela altura eles ficaram O conselheiro imperial: A sua?
bem liquidados, o rei da Roménia e ela. O velho Biach: A dele!
O velho Biach: (Fantasiando.) Quem é que está a falar dos desa‑ O conselheiro imperial: A dele?
parecidos, e talvez o único rasto que deles resta seja um per‑ O velho Biach: De Tell!
fume que ainda permanece no revestimento das paredes dos O conselheiro imperial: Mas de Tell, como?
quartos, um qualquer indício disperso do luxo e da arrogância O velho Biach: Da Inglaterra!
de outrora. O conselheiro imperial: Mas a Inglaterra é Tell? Pelo contrá‑
O conselheiro imperial: Quero lá saber. A vitória… rio, a Inglaterra é Geßler e a Alemanha é Tell! Tell diz: “Eu vivia
O velho Biach: (Decidido.) A vitória satisfez uma necessidade. tranquilo e sem fazer mal a ninguém.”
O conselheiro imperial: Deixe lá, o que é que hoje gostaríamos… O velho Biach: O senhor?
O velho Biach: (Circunspecto.) Hoje gostaríamos de falar com O conselheiro imperial: Ele!
os poderosos cavalheiros do Conselho dos Quatro.22 O velho Biach: Ele?
O conselheiro imperial: E é o senhor que os vai convencer? O conselheiro imperial: Tell!
Tem cada ideia! O velho Biach: Mas Tell como?
O velho Biach: (Insinuante.) Não gostaríamos… O conselheiro imperial: Ora, a Alemanha! Em veneno de
O conselheiro imperial: Se o senhor gostaria ou não é coisa dragão lhe converteram o leite, é o que é!24
que põe o Conselho dos Quatro a trepar pelas paredes. O velho Biach: (Amargurado.) Que iniquidade.
O velho Biach: (Em tom apologético.) Porque eles não pouparam O conselheiro imperial: Lá nisso tem razão.
as fantasias e os estados de ânimo e tornaram o ar irrespirável com O velho Biach: (Surdamente.) Podemos imaginá­‑lo sentado
as suas provocações. A cobiça, contudo, também nos cálculos… além no banco do governo, no palácio de Monte Citorio,25 um
O conselheiro imperial: Bem, veja lá, ainda acaba em homem sombrio e taciturno.
Constantinopla. O conselheiro imperial: Quem? Mas nem pensar!
O velho Biach: (Com paixão.) A Hagia Sophia é a fata morgana O velho Biach: Notam­‑se traços de abatimento. Os neutrais
da política expansionista russa. A promessa de ajuda para con‑ começam a reflectir.
cretizar essa miragem é a argola do nariz com que a política O conselheiro imperial: Está muito bem. Mas talvez…
inglesa conduziu e continua a conduzir o urso russo. O velho Biach: Talvez já comece a falar­‑se na sociedade inglesa
O conselheiro imperial: Olhe lá, quer­‑me cá parecer que o que a guerra já não compensa. A política do cerco está falida.
senhor tomou a Inglaterra de ponta. O conselheiro imperial: Disso estou convencido. Mas Lloyd
O velho Biach: (Categórico.) A Inglaterra não está ameaçada. George…
Tell diz que “cada qual vai à sua vida e a minha é o assassínio”.23 O velho Biach: Lloyd George, todavia, com a sua política…
558 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 559
O conselheiro imperial: Dê­‑lhe bons conselhos. Que me diz O velho Biach: Podemos imaginar a impressão que causaria
à Rússia? em Viena se houvesse uma grande batalha em Gloggnitz ou
O velho Biach: (Em tom grave.) A asa está ferida. Neunkirchen.
O conselheiro imperial: De que é que isso me serve? O conselheiro imperial: Deus nos proteja. Mas o que é que
O velho Biach: (Mais para si.) Que tempos terríveis! acha de…
O conselheiro imperial: A quem o diz! O velho Biach: (Misterioso.) Os muros estão a deixar passar água.
O velho Biach: Pode­‑se imaginar as bombas a caírem com O conselheiro imperial: Também já me soou. Mas o que eu
estrondo. quero dizer é: o que é que acha de Luzk?
O conselheiro imperial: Está bem. Mas de que é que isso nos O velho Biach: (Abatido.) Temos que nos pôr no lugar da Rússia.
serve? O conselheiro imperial: Mas o que é que vai sair daí? Está a
O velho Biach: (Satisfeito.) Descontentamento na Entente. ver, Luzk…
O conselheiro imperial: O senhor está a aludir ao facto de O velho Biach: (Fogoso.) A psicologia da batalha ofensiva é
que Lloyd George está pior do que estragado com Clemenceau. importante.
Se a Alemanha conseguir… muito bem. Mas… O conselheiro imperial: Onde é que isso está escrito?
O velho Biach: (Com algum charme.) Podemos imaginar Lloyd O velho Biach: (Malicioso.) Há um soldado de guarda nas
George a erguer­‑se do seu banco de igreja e começar a pregar, montanhas de Asiago.
porque, como se lê nos Evangelhos, o espírito do Senhor des‑ O conselheiro imperial: E depois?
ceu sobre ele. Com Clemenceau isso é impensável. O velho Biach: (De mau humor.) É a decadência.
O conselheiro imperial: Vamos lá a falar de coisas concretas… O conselheiro imperial: Como assim? A Entente…
O velho Biach: O presidente Wilson disse uma vez: “Eu encosto O velho Biach: (Irritado.) A Entente quer ofender.
o ouvido ao chão e escuto os desejos do país.” O conselheiro imperial: Como é que posso entender isso?
O conselheiro imperial: O senhor? Ah, está bem, Wilson! O velho Biach: (Suspirando.) O que é que a Monarquia fez a
Ora, mas de que é que isso lhe serviu? Wilson para ele…
O velho Biach: (Encolhendo os ombros.) Wilson talvez seja um O conselheiro imperial: Um momento…
caixeiro­‑viajante que perdeu o comboio. O velho Biach: (Com um suspiro.) O que é que a Monarquia fez
O conselheiro imperial: A firma vai ficar aborrecida com à Inglaterra para ela…
isso. O conselheiro imperial: Mas agora do que se trata é…
O velho Biach: (Insistente.) Contudo, Lloyd George tem um O velho Biach: (Aos gritos.) O que é que a Monarquia fez à
motivo para a sua política que não é menos importante. Sérvia para ela…
O conselheiro imperial: Pode­‑se imaginar. O conselheiro imperial: Vá lá, veja se se acalma!
560 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 561
O velho Biach: A Entente sabe que não pode vencer­‑nos pelas O conselheiro imperial: Esteja atento, é o que lhe digo, vai ver
armas, mas (piscando o olho) dá­‑nos alfinetadas. que a situação…
O conselheiro imperial: Isso há­‑de valer­‑lhe de muito. Sabe o O velho Biach: (Áspero.) É como içar a bandeira da peste, da
que é que se pode dizer já hoje? bancarrota.
O velho Biach: (Decidido.) Provável morte heróica da guarni‑ O conselheiro imperial: Olhe, que me diz de termos sido
ção de Kiautchau.26 repelidos?
O conselheiro imperial: Isso já foi! Muito interessante o que O velho Biach: Eles andam a brincar com a guerra.
vem hoje no jornal: “Desenlace iminente da crise”. O conselheiro imperial: Pelo contrário, parece que a tomam
O velho Biach: Provavelmente amanhã. mortalmente a sério… Quando se pensa na nossa situação…
O conselheiro imperial: Olhe, e viu no jornal: “Partida do hoje estamos sem…
conde Czernin para Bucareste”? O velho Biach: Sem nenhuma soberba e sem nenhuma fraqueza.
O velho Biach: Depois de amanhã, sábado. O conselheiro imperial: Mas isso era logo ao princípio!? Meu
O conselheiro imperial: Sabe o que é que isso significa? A paz Deus, isso é que eram tempos, nem vale a pena a gente pensar…!
está mais próxima. Ora e como? O velho Biach: (Firme.) Um fato custa dois mil rublos, uma
O velho Biach: Através da nota diplomática hoje transmitida. locomotiva, 60 mil.
O conselheiro imperial: O que eu constato é: “Ligeira disten‑ O conselheiro imperial: Aqui…? Mas isso é barato! Mas
são da crise”. diga­‑me só, quem é que agora precisa de locomotivas? Do que
O velho Biach: Nos jornais londrinos de ontem. precisamos é de vagões!
O conselheiro imperial: Tempos agitados. O velho Biach: Perguntas de leigo e respostas de leigo.
O velho Biach: Cujos traços aparecem nas notícias disponíveis. O conselheiro imperial: Por favor, não venha agora lembrar!
O conselheiro imperial: Estou precisamente a ler o artigo O velho Biach: (Implacável.) Se se assinar o tratado de paz sepa‑
“A Evacuação de Asiago”. Sabe quem foi evacuado? rado, Lloyd George está perdido e talvez também Clemenceau.
O velho Biach: A população civil. O conselheiro imperial: Pois é, e nós?
O conselheiro imperial: O principal é o subtítulo, porque é O velho Biach: (Conciliador.) Temos de nos pôr no lugar da
por aí que se fica a saber com clareza. Mas às vezes basta uma Entente.
frase… O conselheiro imperial: Grande coisa. Imaginemos que…
O velho Biach: (Em tom de gracejo.) Sibila era filha de operário. O velho Biach: (Com satisfação.) Imaginemos que os prisionei‑
O conselheiro imperial: Olhe, se soubesse como me sinto ros regressam, um milhão, talvez mais…
deprimido. O conselheiro imperial: Mas, pelas minhas contas, são no
O velho Biach: (Irritado.) É remexer numa ferida aberta. máximo 15 mil!
562 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 563
O velho Biach: (Ufano.) …na maioria jovens, curtidos pelo O velho Biach: (Irritado.) Não sabe? Não sabe? Então não leu o
clima da Sibéria. começo do editorial de ontem…
O conselheiro imperial: E de que maneira! Mas por agora O conselheiro imperial: Santo Deus, claro que li, era emocio‑
vamos concentrar­‑nos em Luzk… o comunicado de hoje… nante até mais não… mas… não me agrada a história de Luzk!
vamos lá a ver se se pode trocar duas palavras sensatas consigo… Claro que é uma retirada estratégica de trás da orelha… mas…
O velho Biach: (Tacteando.) Aqui, o que nos chama sobretudo O velho Biach: (Conciso.) Um povo tem que comer.
a atenção é a palavrinha “ainda” e os olhos cravam­‑se literal‑ O conselheiro imperial: É evidente, mas que é que isso…
mente no comunicado e pode­‑se imaginar… O velho Biach: (Irritado.) Não sabe? Não sabe? Então não leu o
O conselheiro imperial: Pela minha rica saudinha, foi essa fim do editorial de hoje…
a primeira coisa que lhe disse esta manhã, ela ainda estava O conselheiro imperial: Santo Deus, claro que li…
deitada e disse­‑me: “Fala com o Biach!” Está a ver, também o O velho Biach: (Amargurado, mas com nobreza e dignidade.) Já
senhor se transformou num pessimista. Na minha opinião… muitas vezes coube em destino ao jornal ver as personalidades
que é que quer que lhe diga… Luzk… no fim de contas… bem, que lhe estão ligadas, os colaboradores e correspondentes,
mas o que é que acha? serem atingidas directa e pessoalmente pelos efeitos dos acon‑
O velho Biach: (Com simplicidade.) A família Brodsky é uma tecimentos mundiais.
das mais ricas de Kiev. (Explodindo.) O que eu acho é isso e não O conselheiro imperial: Embora, evidentemente, o jornal
vou mudar de opinião! fique sempre a ganhar, e bem, com isso. Mas, quando se olha
O conselheiro imperial: Um momento. Que é que tem a ver para a situação actual, sabe qual é a ideia que se impõe mesmo
uma coisa com a outra? ao simples leigo? Do que precisávamos era dum Bismarck!
O velho Biach: (Irritado.) Não sabe? Não sabe? Então não leu o O velho Biach: (Em tom categórico.) Do que precisávamos era
começo do editorial de hoje… dum Demóstenes que fizesse ver as coisas com sensatez e cla‑
O conselheiro imperial: Santo Deus, claro que li… mas assim, reza. Esperamos que o nosso Ministério dos Negócios Estran‑
fora do contexto, estranhei um bocado… sei as frases todas de geiros proteja com firmeza os súbditos da Monarquia.
cor… a maneira que ele tem de entrar nos estados de ânimo… O conselheiro imperial: Um momento. Se ainda…
hoje ele dá­‑lhes a valer, dá alfinetadas em Wilson e graceja com O velho Biach: (Resignado.) Se ainda houvesse espaço para um
Czernin. Mas para falar com franqueza… a história de Luzk Gentz na sociedade de hoje, tão profundamente transformada,
não me cheira nada bem. ele sorriria com malícia.
O velho Biach: (Entusiasmado.) O nariz de Cleópatra era um O conselheiro imperial: Interessante. Mas porque é que não
dos seus maiores encantos. há­‑de haver espaço?
O conselheiro imperial: Tirou­‑me as palavras da boca. O velho Biach: (Em tom resoluto.) Um talento há­‑de sempre
564 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 565
encontrar espaço. Beethoven também participou com uma Padde: Vamos a isso. Que me diz do Hias?28 O Hias, um drama de
cantata no Congresso, o momento mais glorioso de Viena. soldado em três actos, foi ontem à noite estreado no Berliner Thea‑
O conselheiro imperial: Mas de que é que serve tudo isso se ter sob o estrondo de todas as armas de fogo e dos gritos de batalha.
estamos feitos num oito! A folha de sala não mencionava o nome do autor; mas parece que a
O velho Biach: (Erguendo os olhos ao céu.) Onde há hoje um peça foi escrita por um soldado e os actores eram soldados (oficiais
Fichte27 capaz de levantar de novo os ânimos destroçados e ser e contingentes de tropas de reserva berlinenses e bávaras, entre os
ao mesmo tempo mestre e guia do povo alemão? quais, seguramente, alguns com experiência de palco). Para os
O conselheiro imperial: Mas é a pura da verdade! (Olhando papéis femininos, disponibilizaram­‑se mulheres da aristocracia.
para o relógio.) Meu Deus, já são sete e meia! Kladde: Bravo!
O velho Biach: (Ao sair, surdamente.) Ivangorod já está no Padde: A peça deu oportunidade de apresentar com um naturalismo
estertor da agonia. espantoso a vida nos acampamentos e combates sangrentos.
(Muda a cena.) Os soldados autênticos actuaram no palco como se estivessem na
linha da frente. Nos momentos em que acontecimentos bélicos
CENA 27 não estavam ao alcance das possibilidades técnicas do teatro…
Tiergarten em Berlim. Kladde: …interveio o cinema.
Padde: Ora está a ver, também sabemos como se faz! E a máquina
Padde: A batalha filmada, a majestade da agonia e da morte posta projectou (no último acto) uma série de cenas de combate
em filme! Já sabemos que os ingleses são uma sociedade igno‑ habilmente inseridas na acção da peça. O efeito foi intensifi‑
rante e inculta; mas este caso mostra também a que grau de cado pelo barulho das metralhadoras e das granadas de mão e
insensibilidade podem levar a inveja e a mentira. pelos gritos e gemidos dos caídos.
Kladde: Não seria desejável mostrar também aos alemães que Kladde: Um escândalo cultural de primeira ordem…
estão longe da frente essas imagens verídicas dos mais recentes Padde: O quê?
acontecimentos? De certeza que não faltam oportunidades a Kladde: …é a medalha inglesa comemorativa da batalha naval
proporcionar cenas próprias para serem filmadas. Na verdade, de Skagerrak.
os feitos dos nossos soldados, mostrados no ecrã, dariam maté‑ Padde: Ah, bem.
ria suficiente para mais do que um filme e o povo, que por vezes Kladde: Depois de, no papel, os ingleses terem pouco a pouco
adere mais à imagem do que à palavra, mostraria um interesse transformado a pesada derrota de Skagerrak numa vitória,
enorme por essas projecções, mesmo que prescindamos de vêm rematar este embuste cunhando uma medalha comemo‑
bom grado dos arrebiques ao serviço da exaltação da própria rativa da batalha naval. “À memória gloriosa dos que tomba‑
nação de que os ingleses e franceses talvez tenham necessidade. ram naquele dia!”
566 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 567
Padde: Pois é, eles não têm mesmo tino. Nós, alemães, não preci‑ de Sua Majestade, sulcado profundamente pelos cuidados dos
samos de medalhas comemorativas! anos de guerra, está animado por um sorriso alegre.
Kladde: Em comparação com as mais recentes medalhas come‑ Kladde: Olha que esta!… Bem, seja como for, um instantinho
morativas alemãs, esta medalha inglesa pode considerar­‑se animador.
pouco imaginativa e sem valor artístico. O texto, que não fala Padde: A sua augusta pessoa ajuda, com as suas próprias mãos, a
da vitória, é bastante modesto à escala inglesa. Parece que as recolher para o seu povo a bênção “vinda do alto”.
medalhas estão à venda… a de ouro, a 230 marcos, e que o total Kladde: Tal senhor, tal servo. Os acompanhantes, altos senho‑
apurado se destina às famílias dos marinheiros mortos. Por res e oficiais, imitam o imperador. “Não estás a ver ali o nosso
mais desprezível que seja esta falsidade inglesa, não se pode chanceler a trabalhar também no campo?” – “É verdade, é ele.”
negar que ela está bem pensada e de certeza que vai ter sucesso, Padde: Deixe­‑me continuar a mim. Num trabalho assim, o suor
já que não restam dúvidas de que há uma quantidade de súbdi‑ seguramente escorre da fronte em brasa. O povo em volta vê,
tos de países neutrais que vai cair nesta esparrela inglesa. surpreendido, Sua Majestade limpar uma e outra vez com a
Padde: Marca Grey­‑das­‑Mentiras. Nós teríamos, agora, oportunidade manga da camisa as gotas de suor que lhe caem da fronte; é que
para uma medalha comemorativa! O imperador Wilhelm como carregar carroças com o ancinho à torreira do sol faz suar… e
trabalhador do campo. Como é sabido, o imperador deslocou­‑se faz sede!
à frente oriental. Sua Majestade deu uma grande alegria às suas Kladde: Deus sabe que sim.
tropas silesianas manifestando­‑lhes o reconhecimento pessoal e a Padde: E, assim, cá temos a bela cena: Sua Majestade, no meio do
gratidão pela sua valentia. Toda a Silésia ficou radiante com isso. seu povo leal da Alta Silésia, preso…
Mas toda a Silésia ficou também radiante com outra coisa. Kladde: Como?
Kladde: Sei, sei. Deixe­‑me contar a mim. Porque é que o povo vai Padde: …preso no amor do seu povo, tomba…
a correr, porque é que a multidão se precipita para os campos Kladde: Como?
ceifados? Para ver o imperador. São entre as cinco e as sete da Padde: …sobre um valado e bebe água fresca de um cântaro vulgar.
tarde. Alegre, o povo traz os preciosos feixes de espigas para as – Então? É de uma pessoa se benzer com a mão canhota. Isto é
carroças que estão a postos. De repente, todas as mãos ficam que era um modelo pra uma medalha comemorativa!
quietas, faz­‑se silêncio, todas as boinas saltam das cabeças, o Kladde: …que os ingleses nos poderiam fazer… quer dizer, con‑
assombro apodera­‑se de todos: vem aí o imperador! trafazer! Se fossem capazes!
Padde: Ele já chegou, despe o casaco e eis senão quando o chefe Padde: Qual medalha comemorativa! Devia era ser filmado!
supremo do Reich alemão, em mangas de camisa, deita mãos Kladde: Claro, tem razão, ouça, nos próximos dias vai ser apre‑
à obra no trabalho do campo. Sobre o solo lavrado e juncado sentado ao público nos cinemas o interessantíssimo filme
de dourados feixes de espigas da nossa querida pátria, o rosto A Batalha do Somme, o maior acontecimento desta guerra.
568 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 569
Padde: De facto, pode considerar­‑se este filme o maior aconteci‑ CENA 28
mento desta guerra. É a primeira e também a última filmagem Sala de cinema. No programa: Ai, Amália, que Foste Tu Fazer!
que o arquivo do Estado­‑Maior autoriza a mostrar ao público. e o policial de sucesso A Mim Ninguém me Escapa.
O filme foi feito no pleno tumulto da batalha. As filmagens cus‑ A música toca “Tesouro, Luz dos Meus Olhos”.
taram a vida a quatro operadores, mas houve sempre novos ope‑
radores para tomarem o seu lugar até estar finalmente terminada O realizador: (Entra em cena.) Segue­‑se agora a primeira exi‑
a grande obra, que há­‑de proclamar aos nossos descendentes a bição do grande filme do Somme. Neste filme, podem ver­‑se
glória dos heróicos combatentes. É numa tensão febril que assis‑ os heróis do Somme, jovens na flor da idade e homens enca‑
timos à destruição à bomba e ao assalto a um forte e, depois de necidos, todos igualmente curtidos pelas tempestades e tem‑
fogo cerrado de artilharia, a uma investida de pôr os nervos em perados pelas batalhas, lançar­‑se em frente e saltar, atacar e
franja. Estamos mergulhados nos tremendos repuxos de terra, lutar, por entre a profusão das chamas e a saraivada das balas
causados pela explosão das minas e dos projécteis de enorme e num terreno inseguro, pulverizado pelas minas, na oficina
calibre, e na fumarada branca das granadas de mão e quase admi‑ arrasadora da guerra fragorosa e invisível. As cenas da terrível
ramos mais do que o valor supremo das tropas… o homem ou batalha do Outono de 1916, que sepultou a grande esperança
os homens que, no meio da saraivada de balas e do fogo intenso, dos inimigos, desenrolam­‑se em três partes. Ressoa impo‑
tiveram calma suficiente para, na primeira linha, obedecer com nente, a perder de vista, a marcha dos reservistas alemães.
um férreo sentimento do dever à ordem de fazer girar a manivela Os combatentes alemães, solicitamente, põem em segurança
do aparelho cinematográfico. Vemos em todos os lados a concen‑ mulheres, anciãos e crianças franceses, sob o fogo dos próprios
tração máxima de todas as forças, o aproveitamento, mas tam‑ compatriotas. Onde antes se estendiam aldeias florescentes,
bém o desgaste da energia humana… vemos a morte vitoriosa! onde velhas cidades pitorescas deleitavam o olhar com a sua
Kladde: Este filme vai seguramente obter um grande êxito em todos beleza histórica – Bapaume e Peronne, e nomes assim –, só há
os cinemas da Alemanha. O que é que dizia ainda há pouco de agora montes de ruínas, destruídos e feitos em pó pelo fogo
maneira tão pertinente um comunicado oficial dos nossos irmãos das baterias da Entente. E é então que um exemplo sublime
coligados austríacos? As nossas tropas de assalto avançam… de exactidão bem dirigida reluz em imagens trémulas, graças
Padde: …logo seguidas pelas nossas equipas de filmagem. Assim à bravura incomparável dos corajosos operadores de câmara,
é que deve ser! A morte vitoriosa! Sempre quero ver se os do quatro dos quais encontraram uma morte de herói durante
outro lado do Canal são capazes de uma coisa assim! É de uma as filmagens, no fiel cumprimento do dever: “O comando da
pessoa se benzer… divisão determinou a dinamitagem e o ataque para as oito
Kladde: …com a mão canhota. horas e 30 minutos!”… Tudo está a postos… As tropas de
(Muda a cena.) assalto ardem de impaciência… As monstruosas máquinas de
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guerra modernas abrem as fauces reluzentes, as mais terríveis alegar em favor da Alemanha senão que foi no seu chão que
armas da nossa era técnica fazem ouvir a sua música – mas por cresceu o poema “Por Todos estes Montes Reina Paz”, o ver‑
trás estão os corpos humanos que infundem vida às máquinas dadeiro prestígio, que, no fim de contas, é mais importante
inertes. Por sobre campos de minas, obstáculos, ao longo de do que aqueles preconceitos transitórios para cujo reforço se
caminhos da morte prenhes de explosivos, até chegar à feroz fazem as guerras, havia de sair indemne de toda esta história.
luta corpo a corpo!… A granada de mão ceifa!… De trincheira O que é susceptível de pôr em risco a nossa posição perante
em trincheira até à posição principal! A nossa artilharia inspira o tribunal universal é um único facto revelado pelo acusador.
fundo e semeia o terror entre as reservas inimigas, trincheira O facto de que esta época, que deveria ser abandonada e pura e
após trincheira é conquistada. Este filme conta­‑se entre os mais simplesmente riscada da história como uma era nauseabunda
belos, os mais impressionantes da presente guerra mundial. para tornar de novo a língua alemã grata aos olhos de Deus,
Uma voz de mulher: Emil, tá queto! não se satisfez com entregar­‑se à produção literária sob o efeito
(Muda a cena.) de uma técnica mortífera, mas também violou ainda por cima
as relíquias da sua cultura extinta, para, parodiando o que era
CENA 29 sagrado, se regozijar com o triunfo da sua desumanidade. Em
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. que região de uma humanidade, que, assim como assim, resiste
em toda a parte com a boca contra uma barbárie de que a mão
O Optimista: Quer dizer que as paródias inofensivas a “Por Todos se torna culpada, seria possível um satanismo que entregou à
estes Montes”, de Goethe, que estão agora em voga entre nós e canalha o mais sagrado poema da nação, uma jóia imperial,
na Alemanha, na Alemanha por causa dos submarinos e entre cujos seis versos sublimes deveriam ser protegidos do mínimo
nós por causa dos brioches… basta isso para o pôr fora de si? sopro de vulgaridade? Em que lugar do mundo seria possível
O Eterno Descontente: Pois basta. Com a poesia bélica, uma ter tão pouco respeito e transformar com tal escárnio o último
pessoa pode conformar­‑se. A besta de hoje, ao lançar mão e mais profundo suspiro de um poeta neste medonho estertor?
tranquilamente à máquina mortífera, lança também mão ao A perversidade de uma ideia que representa a vitória da tendên‑
verso, para glorificar essa máquina. Os versos atamancados cia iniciada com a impressão de citações dos clássicos em papel
na mais imbecil das épocas… tudo junto dava um milhão de higiénico ultrapassa tudo o que a retaguarda espiritual desta
toneladas de espírito afundado por dia, que algum dia vamos guerra nos mostrou no tocante a desumanização. Por Goethe!
ter de devolver ao génio lesado da humanidade; e, neste ponto, É altura de fazer de uma paródia um grande poema de despedida.
a culpa não foi só dos muitos escribas que especularam com O Optimista: Acredite no que lhe digo, dois dias sem carne por
a bandeira da bestialidade, mas também dos poucos poetas semana são um mal maior e, todavia, também tem que se
que se deixaram arrastar por ela. Mas veja: se não se pudesse aguentar isso.
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O Eterno Descontente: É verdade. Mas sete dias sem espí‑ O Eterno Descontente: Pois fomos. Mas esta falta de talento
rito… isso é coisa que não aguento! E não vejo nenhuma saída tem um significado mais profundo. Estamos suspensos no ar
para esta subnutrição. O embrutecimento bélico da humani‑ quando pensamos ter os pés na terra e estamos parados quando
dade, a compulsão que leva os adultos a regressarem àquele julgamos que estamos a avançar. A bonomia frívola que torna
quarto de criança em que lhes acontece, ainda por cima, a esta forma de vida neo­vienense tão popular como as figuras
experiência terrível de já não encontrarem crianças… sim, a daquele demoníaco antitalento, a funda incapacidade de estar
evolução trouxe­‑nos até onde queria que estivéssemos, a nós de pé no espaço que faz coincidir plenamente a arte mais vil e a
aqui, habitantes do laboratório do apocalipse. vida mais mesquinha, essa rigidez cadavérica da vivacidade…
O Optimista: Enquanto houver guerra, toda a força do espírito é isso que transforma a nossa ruína em motivo permanente
deve concentrar­‑se nela. do falso humor colorido. Eu traço uma linha directa entre
O Eterno Descontente: Essa força o mais que faz é permitir­‑nos uma vida enrodilhada, entre um momento da evolução em
compreender na sua profundidade abismal os conceitos “mate‑ que sons de Lehár e cores de Schönpflug nos ameaçam, e um
rial humano”, “aguentar a pé firme”, “óbolo”, “açambarcar”, “con‑ ultimato com que um cretinismo insondável exige ao mundo
vocar para inspecção”, “convocar para nova inspecção”, “refractá‑ que se desembarace da esterqueira real e imperial em nome
rios”, “mobilizado”, em resumo, todo o catálogo da nossa aptidão, de cujo prestígio partiu para a guerra. E não posso esperar a
sem, no entanto, podermos medir a total inutilidade dos actos hora em que isso esteja feito… mesmo que depois a consciên‑
a que nos deixámos condenar dentro deste mecanismo. Mas os cia mundial que foi desafiada triunfe como a careta do poder
cobardes assassinos de secretária que sacrificaram o nosso futuro justamente daquele delírio triunfal que destruiu aqui as nossas
em nome do seu ideal de cartilha… vidas. É possível que o crime centro­‑europeu tenha sido sufi‑
O Optimista: Quer dizer que o senhor acredita mesmo que a cientemente grande para corromper o mundo que foi para a
guerra mundial foi decidida por uns quantos malvados? guerra para o punir. Aconteça o que acontecer… ser austríaco
O Eterno Descontente: Não, esses foram simples instrumentos era insuportável!
do demónio que nos levou à ruína e, através de nós, levou à ruína O Optimista: A monarquia austro­‑húngara é uma necessidade
a civilização cristã. Temos, porém, que nos ficar por eles, já que histórica.
não podemos agarrar o demónio que nos infligiu a sua marca. O Eterno Descontente: Talvez, já que toda esta tralha de fan‑
O Optimista: Mas que aspecto teríamos nós se tivéssemos sido caria que nos lançou no opróbrio cultural e na miséria material
marcados por um demónio! tem de ser conservada nalgum canto maldito da Terra. Mas esta
O Eterno Descontente: O aspecto de um desenho de necessidade vai diminuir com todas as tentativas revolucioná‑
Schönpflug. rias e bélicas para eliminar essa tralha e, se não se conseguir isso
O Optimista: Mas então fomos marcados com tão pouco talento? agora, se a ideia real e imperial se mostrar para já inerradicável,
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há­‑de haver novas guerras. Por motivos de prestígio, há muito imperial. Ela era o desmazelo hereditário, que tinha escolhido
que esta monarquia se devia ter suicidado. o “ora aí está” como fundamentum regnorum, era a fatalidade
O Optimista: Se tivesse sido concedida uma vida mais longa ao cinzenta que se arrasta pelos tempos como um catarro cró‑
imperador Franz Joseph, a coesão… nico. Um demónio da mediocridade decidira o nosso destino.
O Eterno Descontente: Um temor reverencial faz­‑me recuar Só ele defendia essa pretensão de importunar o mundo com a
a tremer ante a consequência desta ideia, ainda o senhor não a nossa fúria assassina nacional, fundada na origem divina da
pensou até ao fim. Mas está a esquecer que, de facto, foi conce‑ balbúrdia sob o ceptro dos Habsburgos, cuja missão parecia
dida ao imperador uma vida bastante longa e que, apesar disso… ser pairar sobre a paz mundial como uma espada de Dâmocles.
O Optimista: Mas o imperador morreu no ano passado…! Ele tornou possível esse conglomerado assente em orçamentos
O Eterno Descontente: Como é que sabe? provisórios, cujo eterno problema das nacionalidades apenas
O Optimista: Não estou a compreendê­‑lo… mas ele viveu até… podia resolver­‑se, “na medida do possível”, recorrendo à lin‑
O Eterno Descontente: Como é que sabe? guagem oficial interna do jargão e cuja forma de comunicação
O Optimista: Estou a ver, o senhor deve estar a aludir às anedo‑ tinha de lançar mão de uma algaraviada como a época escar‑
tas tão populares na Entente, segundo as quais existe na Áus‑ ninha nunca antes ouvira. Setenta anos de amolecimento dos
tria uma criação de imperadores todos parecidos uns com os cérebros e do carácter dos povos que só a esse preço podiam
outros… ser unidos, se é que podiam, é o conteúdo dos dias desse
O Eterno Descontente: Pode haver alguma verdade nisso. governo, uma trivialização, desmazelamento e corrupção de
Sabe, mesmo que eu conseguisse decidir­‑me a acreditar na todos os valores nobres de um povo, que não tem precedentes
morte de Franz Joseph, não acredito de modo nenhum que ele na história e tanto mais não tem precedentes devido à hipocri‑
tenha vivido. sia com que, graças ao único progresso desta época, a técnica
O Optimista: Ora essa! Não vai agora negar esses 70 anos! jornalística avançada, se ocultou a monstruosidade sob um
O Eterno Descontente: De maneira nenhuma, esses anos são véu de aparências e se pôde difundir a lenda da cordialidade
um pesadelo em que entra uma harpia que, em paga de nos para recobrir a mortal realidade do vazio. Que rectificação
ter chupado toda a seiva da vida e, depois, ainda os bens e o implacável e, mesmo assim, que confirmação de um pensa‑
sangue, nos presenteou com a sorte de nos embrutecermos por mento orientado entre a cartilha e a imprensa, o facto de um
completo idolatrando uma barba imperial. Nunca antes na his‑ fanal sangrento estar erigido tanto no começo como no fim
tória universal uma mais forte não­‑personalidade impôs a sua desta cordial majestade!
marca a todas as coisas e formas, de tal modo que, em tudo o que O Optimista: Como? O imperador da paz katexochen, que, na
se atravessava no caminho, em todas as misérias, obstáculos ao sua afabilidade proverbial, fez tudo pelas crianças, o monarca
trânsito, no perfil de todos os azares, reconhecíamos essa barba cavalheiresco, o bom velho de Schönbrunn, a quem nada foi
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poupado… é assim que fala dele, e ainda por cima agora que àquele demónio sanguinário da sua maldita dinastia cujo
está morto? poder, ora aí está, se manifestou nessa barba imperial e numa
O Eterno Descontente: Está morto? Bem, independente‑ bonomia que fez correr justamente o sangue que não podia
mente de, mesmo que eu soubesse isso, não acreditar, tenho ver. Eu não sei quem nos governou, só sei o que é que nos
de lhe dizer desde já que, perante o tribunal universal, não há governou; e que este Estado de lémures ofereceu ao mundo
cá verdadeiramente batatinhas; que lá as cunhas não funcio‑ durante sete decénios o espectáculo de uma cadeira sanitária
nam, mas também não há piedade; que ali não há mesmo nin‑ disfarçada de trono sobre a qual se estendia a longevidade len‑
guém que consiga desenrascar­‑se e, sobretudo, que ali o facto dária de uma não­‑existência. Dele in persona apenas sei que
de se ter morrido não é tanto um motivo para se ser ilibado era medíocre e cristalizado em formalidades. Mas eram jus‑
como o pressuposto da sentença. Além disso, quero crer que tamente estes dons que, aliados aos venenos letais da época e
é mais grato aos olhos de Deus mostrar respeito pela majes‑ deste país desnorteado pela ideia nacional, não podiam deixar
tade da morte junto aos túmulos de dez milhões de jovens e de de provocar uma catástrofe inaudita. O sombrio Franz Ferdi‑
homens, de centenas de milhares de mães e bebés obrigados nand, cuja vontade teria evitado essa catástrofe – pois que, para
a morrer de fome… do que perante aquele túmulo na Cripta suster este caos, o que contava não era o que alguém queria,
dos Capuchinhos que cobre, justamente, esse velho que tudo mas simplesmente o facto de alguém querer alguma coisa –,
maduramente ponderou e tudo provocou com uma só penada; estava apenas destinado a acender, com a sua morte, as chamas
e que, perante aquela instância, também o rosto torturado da malignas do pandemónio do caldeirão monárquico. Se não se
humanidade sobrevivente não pode deixar de testemunhar tivesse enganado este Franz Joseph, a quem nada foi poupado
implacavelmente contra aquele único morto. Pois que esse com excepção da personalidade, levando­‑o à guerra mundial,
fulano, com a sua sangrenta bonomia, a quem nada foi pou‑ ele teria morrido feliz e contente dos efeitos deste vale de lágri‑
pado e que, justamente por isso, não queria poupar nada ao mas real e imperial tão bem conservado. Podia­‑se confiar em
mundo, ora aí está, eles que se lixem… decidiu um dia a morte que o herdeiro o pusesse nos eixos sem derramamento de san‑
do mundo. gue. Isso acabou por lhe ser poupado – graças às medidas de
O Optimista: Mas não me diga que acredita que o imperador segurança previstas para as viagens do herdeiro do trono. Pre‑
queria a guerra? Segundo parece, ele próprio afirmou que feriu acabar definitivamente com ele através da guerra mun‑
tinha sido enganado! dial e de uma derrota inevitável.
O Eterno Descontente: Assim é. São coisas que acontecem. O Optimista: Não teve outra solução.
Não me estou a referir a ele, que conseguiram enganar. Refiro­ O Eterno Descontente: Claro que não, foi enganado, ao passo
‑me à possibilidade, que leva até ao fim a insânia destes mundos que o papel mais activo do coligado o levou a arruinar­‑se com
monárquicos, de ele e nós termos sido enganados. Refiro­‑me toda a firmeza.
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O Optimista: A que é que está a aludir com a sua observação O Optimista: Mas não me vai de certeza agora negar as qualida‑
sobre as medidas de segurança previstas para as viagens do des pessoais do monarca…
herdeiro do trono? O Eterno Descontente: Essas qualidades interessam­ ‑me
O Eterno Descontente: Estou a aludir ao facto de que todos pouco. Sem dúvida que ele era apenas um pedante e não um
estavam seguros do resultado da viagem a Sarajevo. tirano, que era apenas frio e não cruel. Se o tivesse sido, talvez,
O Optimista: Isso são lendas. É verdade que espanta como é que mesmo em idade avançada, tivesse tido discernimento sufi‑
o homem mais poderoso da Monarquia não conseguiu impor ciente para não se deixar enganar e, em vez disso, saber o que
uma protecção reforçada para esta viagem, mas… é que podia arriscar. Ele limitou­‑se a contar os botões do uni‑
O Eterno Descontente: …é compreensível. É que, quando forme… e justamente por isso o uniforme tinha que ser posto
tentou, já não estava no mundo dos vivos. Um poderoso que à prova. Era um trabalhador incansável e, entre as ordens de
se finou não tem nenhuma influência. execução, houve uma vez em que assinou também uma que
O Optimista: Mas ele só foi assassinado depois de… arrasou a humanidade. Nenhum desses senhores quis isto.
O Eterno Descontente: …as suas tentativas não terem obtido Mas como nós outros é que de certeza não o quisemos, temos
êxito, exactamente. Portanto, já que insiste na cronologia: um que nos cingir a eles. É que a profissão de imperador implica,
poderoso pode tudo, só não pode evitar que o matem. justamente, pormos toda a responsabilidade à luz do tribunal
O Optimista: Com certeza não pretende afirmar que Franz universal em cima de alguém que quer que o deixem em paz e,
Joseph, a quem nada foi poupado, mandou afastar do caminho por isso, começa uma guerra mundial, mais, implica que con‑
o sobrinho. Contra isso, pode seguramente demonstrar­‑se que sideremos que um carteiro de província reformado que, por
ele recebeu a notícia do assassínio… acaso, se entrega à actividade de vampiro é uma simples más‑
O Eterno Descontente: …com um olho choroso e um olho riso‑ cara. Um cristão moribundo não pode achar que o perigo de
nho. Devido à necessidade de descanso de Sua Majestade, as ceri‑ perder as suas prebendas é um mal maior do que pôr em perigo
mónias fúnebres foram limitadas e inaugurou­‑se a guerra mun‑ todos os seus próximos e não pode sobrecarregar a salvação da
dial. A humanidade teve direito a um funeral de primeira classe. sua alma com a perdição de todos. É assim que acredito, pelo
O Optimista: Mas o assassínio de um herdeiro ao trono é razão menos, que o génio da sua dinastia participou nesta decisão e,
suficiente… com toda a certeza, na possibilidade de uns canalhas despro‑
O Eterno Descontente: …para juntar o agradável ao útil. vidos de fantasia o fazerem assinar aquele manifesto que, num
O facto de a especulação ter falhado e de a Áustria, à procura estilo perfeito, permite atribuir um acontecimento sangrento
do prestígio perdido, ter acumulado perdas é um capítulo à da velhice a um idoso amante da paz que não encontra outra
parte. No tribunal universal, ainda se julga de acordo com o solução. Aquele que foi enganado tudo maduramente ponde‑
dolus eventualis. rou. Não há dúvida, é mesmo um azar austríaco o facto de o
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monstro que ia provocar esta catástrofe ter os traços de um sobre uma esposa perdida na histeria… a morte saldaria todas
bom velho. Ele tudo maduramente ponderou, mas não tem as contas e o resto seria silêncio. Na história universal, não há
culpa disso: e esta é, justamente, a última, a mais horrível tra‑ nenhum momento em que a responsabilidade se extinga e aí
gédia que não lhe foi poupada. Eu fiz a partir daí uma canção até o melhor dos velhos tem de aparecer, mesmo depois da
que é tão comprida como a sua vida, uma melodia interminá‑ morte, na forma a que o condenou a maldição da sua dinastia.
vel que lhe ponho na boca quando ele entra em cena no meu Eu não ponho em cena Franz Joseph, mas o demónio habsbúr‑
drama sobre a guerra mundial. Escrevi este couplet trágico, tal gico em carne e osso. O que nos aparece em sonhos a nós e a
como uma grande parte do drama, em 1915, quer dizer, ainda si próprio é um lémure. Setenta anos cantam o seu miserere e,
em vida dele… se é que o senhor, que é um fantasista, quer no fim e ao cabo, isso inclui todos os antecessores, o canalha
mesmo achar que quem agora nos governa é um Karl, e já não chamado Franz29 – o carcereiro de Spielberg – e assim por aí
um Franz Joseph. fora toda a galeria dos antepassados, até ao castelo de origem,
O Optimista: Mas não lhe vai ao menos fazer justiça como de onde nunca se devia ter autorizado essa linhagem a sair para
monarca cavalheiresco e amigo das crianças? vir para a Áustria.
O Eterno Descontente: Não, porque a cena em que ele, ao O Optimista: Quando é que vai ser publicado o seu drama?
ter de suportar pela primeira vez num banquete da corte a O Eterno Descontente: Quando o inimigo estiver vencido.
vizinhança da esposa de Franz Ferdinand, lhe vira as costas e, O Optimista: Como? Mas o senhor ainda acredita…
quando a filha o exorta a que se vire também para a esquerda, O Eterno Descontente: …que, daqui a um ano, a Áustria já
pelo menos para salvar as aparências, torna a situação ainda não existe! Eu tinha trazido o manuscrito para o país de ori‑
mais clara com um brusco repelão e porque sim: esta cena não gem dos Habsburgos, para a Suíça…
aparece no drama. Também não aparece a cena em que, em O Optimista: Para o pôr em segurança?
Weißenbach, escuta umas palavrinhas de boas­‑vindas da boca O Eterno Descontente: Não, para trabalhar nele. Trouxe­‑o
de um petiz encantador de quatro anos e depois… outra vez para cá; é que não receio o inimigo. Com a sua ges‑
O Optimista: …como um bisavô exemplar, mas com passo elás‑ tão sanguinária, ele deixou que se instalasse um tal desma‑
tico, vai ter com o miúdo e lhe dá um beliscão na bochecha? zelo que eu já consegui passar duas vezes a fronteira com este
O Eterno Descontente: …não, se vira fazendo a continência, manuscrito e trazê­‑lo de novo. Seja como for, neste momento
sim, fazendo mesmo a continência: esta cena não aparece. Só ele não pode ser publicado. Isso de certeza custaria ao autor
aparece o couplet. Mas pode estar completamente descansado. a liberdade e, se a essa cáfila de generais ainda lhes apete‑
Se ele fosse um particular a quem pudessem ser assacados os cesse uma ditadura antes do fim do espectáculo, custar­‑lhe­
mais repugnantes traços de carácter, por exemplo, alguém cuja ‑ia mesmo aquela cabeça que ele conservou ao longo de uma
companhia tivesse pesado uma vida inteira como uma cruz guerra de quatro anos, apesar das ofensivas da imbecilidade.
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Há­‑de ser publicado quando esta aventura tecno­‑romântica em responsável pela guerra mundial. Não é mais do que um direc‑
que a humanidade se vê desafiada pela quantidade for asfixiada tor de jornal e, apesar disso, triunfa sobre a nossa dignidade
por uma quantidade ainda maior. Quando o glorioso desva‑ intelectual e moral. A sua simples melodia custou mais vítimas
rio que, no momento em que falamos, transforma milhares de do que a guerra, que ela fomentou e alimentou. O tom estri‑
seres humanos em cadáveres ou aleijados em nome de nada, dente do banqueiro das batalhas, que lançou a mão ao bolso e
completamente de nada, tiver acabado e já não for protegido à garganta do mundo, é o acompanhamento elementar desta
pelo estupidificante olhar de basilisco de um Departamento de acção sangrenta. Mesmo o leitor pouco familiarizado com o
Segurança Militar. Em resumo, quando a Schalek tiver dito a espaço e o tempo irá sentir que sofremos aqui algo muito espe‑
última palavra. cial. Eu faço um velho assinante morrer desta linguagem, em
O Optimista: O que é que tem contra a Schalek? que o sentido vetero­‑judaico da acção neo­germânica se afirma
O Eterno Descontente: Nada, a não ser que a guerra mundial raivosamente. Ela subjuga a vida e eis que surge então a apo‑
a obrigou a ser sobrevalorizada por mim. Assim, sou forçado a plexia libertadora.
considerá­‑la o fenómeno mais singular deste apocalipse. Mas O Optimista: Para perceber isso, tenho que esperar pela sua tra‑
quando o carnaval trágico tiver passado e eu der com ela algu‑ gédia. Quer dizer que ela vai sair…
res na retaguarda, na ressaca da nossa jornada, vou considerá­ O Eterno Descontente: …quando a outra tiver terminado.
‑la uma mulher. Antes disso, não é possível. Também ela ainda não está pronta
O Optimista: A verdade é que o senhor tem a funesta capacidade e a verdade é que preciso da cabeça para a concluir.
de converter a coisa mais pequena… O Optimista: Num caso desses, só a sua liberdade estaria
O Eterno Descontente: Pois é, tenho. ameaçada.
O Optimista: E de certeza que foi assim que nasceu todo o drama. O Eterno Descontente: Enquanto Viena ficar na retaguarda.
A partir desta tendência desgraçada de relacionar os pequenos Alta traição, crime contra a nação em guerra, ofensa à majes‑
fenómenos com os grandes factos. tade, ofensa a especuladores de legumes secos e demais perso‑
O Eterno Descontente: Em plena sintonia com a fatalidade nalidades, que só podem ser objecto e nunca sujeito de uma
satânica que nos levou dos pequenos factos aos grandes fenó‑ acção dolosa e que, na prática dos seus negócios usurários,
menos da tragédia real. Na minha tragédia, as formas e sons estão protegidos pelas leis contra a difamação… bem, no
de um mundo fazem­ ‑nos sucumbir juntamente com ele. fim de contas, a majestade suprema que existe na Áustria é o
O senhor não me vai ficar a dever a pergunta de o que é que patíbulo! Mas este não é apenas uma peça de inventário do
tenho contra o Benedikt. cerimonial espanhol, mas também um importante adereço da
O Optimista: E o senhor não me vai ficar a dever a resposta. minha acção cénica. Tenha em conta que, apenas no âmbito do
O Eterno Descontente: Ele não é mais do que o redactor comando supremo do arquiduque Friedrich – que considero
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um espectro ainda mais fecundo do que a Schalek –, foram zero à esquerda torna­‑se uma tortura de todas as horas e saber
erguidas 11.400 forcas ou, numa outra versão, 36 mil. Alguém dessa mesquinha forma de vida, que, levando uma bela vida ao
que não era capaz de contar até três! E uma figura bélica perante mais alto nível, escarnece da humanidade sofredora, torna­‑se
cujos feitos gloriosos Napoleão parece o maior dos derrotis‑ em cumplicidade. Amantes e porteiras podiam conversar sobre
tas… tanto no aspecto marcial como erótico, uma personagem a secreta influência que tinham enquanto os homens indefe‑
afim e aliada daquele imperador monstruoso e bárbaro, o impe‑ sos se deixavam arrastar até perderem toda a vontade de viver,
rador da era intelectual da almôndega de batata, que não era enquanto laços sagrados entre corações puros eram rasgados
capaz de deixar incólume nenhuma quantidade de carne e san‑ de maneira sangrenta e inocentes, na última hora antes da
gue, enquanto dava palmadas nas coxas e fazia ouvir o seu riso execução, tremiam na esperança de um olhar misericordioso.
tonitruante de lobo: era assim que ria o lobo Fenris30 enquanto O senhor sabe o que é que estamos agora a expiar? O respeito a
o mundo explodia em chamas. Entre tijolos assírios e mapas que figuras como essas nos obrigaram!
do Estado­‑Maior,31 entre toda aquela pseudo­ciência que tor‑ O Optimista: Mas o rosto austríaco, mesmo assim, é diferente
turava constantemente o séquito, obrigado a ficar horas de pé, do prussiano.
com piadas obscenas sobre a aparência física. Deliciando­‑se O Eterno Descontente: O rosto austríaco é o rosto de um
com o embaraço do interlocutor quando, durante a caça ou em qualquer. Está à espreita atrás da bilheteira do comboio da vida.
ocasiões oficiais, o surpreendia com uma palmada no traseiro, Sorri e choraminga conforme o tempo que faz. Mas esse olhar
com um pontapé na perna, com uma pergunta sobre as prefe‑ de górgone teve poder para transformar em sangue ou lama
rências sexuais. Esses eram os senhores do sangue. Um, à altura tudo o que fitava. Onde é que não teríamos podido vê­‑lo? Não
do sentido estéril deste mundicídio, responsável pelos actos; o estava ele à frente daquele que vinha a uma repartição tratar do
outro, chapinhando com uma satisfação inocente na banheira seu caso e era tratado com descaso? Terei que ir à procura dele
de um mar de sangue. Este herói, que gritava “pumba!” quando nas retretes dos tribunais criminais vienenses, nos calabouços
via soldados morrer no cinema, este doutor honoris causa de cheios de percevejos e bacilos das prisões militares vienenses,
Filosofia, este cretino era o marechal da nossa fatalidade. Tão nas camas desmazeladas dos hospitais, onde carcereiros
diferentes os dois, mas amigos do peito, encontrando­‑se como diplomados e carrascos académicos davam choques eléctricos a
conhecedores, na partilha de impressões gastronómicas, suspi‑ soldados com doenças psíquicas, passando para eles a suspeita
rando pelos bons velhos tempos quando se tratava das formas de quererem escapar à linha da frente. Não estava esse rosto em
da Germânia e da Áustria. Uma coisa assim saiu, da cabeça toda a vergonha e grosseria de qualquer acto oficial e, sobretudo,
aos pés, directamente da vestimenta bélica para a roupagem nas prerrogativas daqueles tribunais marciais, um dos quais fez
histórico­‑cultural, e aponta para a quantidade do tempo, em a exigência, ainda mais imoral do que o assassínio judicial, de
alegrias e tristezas; e a consciência de ser governado por um tal que o cidadão austríaco tinha a obrigação de se dirigir às suas
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autoridades, a estas autoridades, “com respeito e amor”? E este O Optimista: Mas as testemunhas da execução de certeza que
rigor era ainda agravado pela certeza de que isto era obra, não da não se fizeram fotografar de propósito?!
ingenuidade, mas de um “porque sim” da canalhice, e traduzia o O Eterno Descontente: Formaram­‑se grupos. E não apenas
prazer diabólico de uma última prova de esforço à nossa paciência. para estar presente numa das execuções mais bestiais, mas tam‑
A experiência da Gruta do Cão,32 há muito proibida pelo governo bém para ficar presente; e todos fizeram um sorrisinho. Este
italiano, foi imposta pelo governo austríaco quotidianamente rosto, o austríaco, também aparece noutro postal, que, entre
a milhões de pessoas, e o rosto piscava o olho cada vez que o muitos outros parecidos, possui uma importância histórico­
divertimento tinha êxito, para resplandecer em toda a santidade ‑cultural que não é inferior, aparece em numerosos tipos de
uma vez consumada a asfixia. Durante os últimos quatro anos, soldados que, ombro com ombro, entre duas mulheres rutenas
vimos tantas vezes este rosto austríaco, a piscar o olho esquerdo, enforcadas, esticam os pescoços para não deixarem de ficar
ombro a ombro com outro mais marcial, que vão de certeza ser no documento. Deus sabe por que satânica flatulência de um
precisos 40 anos de paz para nos livrarmos dessa recordação. general terão morrido essas infelizes, talvez um incidente num
Não, ele não é como o prussiano, apesar de ser parecido com qualquer bacanal o tenha inspirado a despachar raivosamente
qualquer outro e de ser tudo, salvo, justamente, aquilo que can‑ um “execute­‑se!”.
tam e dizem os jornais. Em todo o caso, é o rosto do carrasco. O Optimista: Pois é, um dia há­‑de­‑se aplicar a si aquele dito que
Do carrasco vienense, que, num postal onde aparece Battisti um pássaro que o próprio ninho…
morto, tem as patas por cima da cabeça do executado, um títere O Eterno Descontente: …destrói em vez de construir um
triunfante da bonomia satisfeita, cujo nome é “a gente somos ninho alheio, pois, já sei. Uma opinião dessas acerta de certeza
quem somos”. Caras escarninhas de civis e de gente para quem em cheio no pássaro. Mas injustamente, já que ele agiu preci‑
a última coisa que importa é a honra apertam­‑se em torno do samente no cumprimento do dever moral de varrer diante da
cadáver, não vá algum ficar de fora do postal. própria porta. Este mundo sujo acusa aquele que lhe limpa o
O Optimista: O quê? Há um postal assim? lixo de o ter trazido. O meu patriotismo – que, justamente,
O Eterno Descontente: O postal foi feito com carácter ofi‑ é diferente do dos patriotas – não suportaria deixar o traba‑
cial, foi difundido no local do crime, na retaguarda íntimos lho para um autor satírico inimigo. Foi isso que determinou
mostravam­‑no a “pessoas de confiança” e hoje está exposto nas a minha atitude durante a guerra. Eu aconselharia a um autor
montras de todas as cidades inimigas como retrato de grupo da satírico inglês, que com toda a razão nos achasse insuportáveis,
imperial e real humanidade, como monumento ao humor pati‑ que se ocupasse satiricamente dos assuntos do seu próprio
bular dos nossos carrascos, transmutado em escalpe da cultura país. Mas o facto é que não há nenhum autor satírico inglês.
austríaca. Talvez tenha sido a primeira vez desde a criação do O Optimista: Shaw.
mundo que o diabo gritou que aquilo metia nojo ao diabo. O Eterno Descontente: Ora aí tem. Mas mesmo ele cultiva
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aquele patriotismo autêntico que prefere censurar os compa‑ aliás, a Inglaterra não transformou numa romaria. Mesmo na
triotas a enganá­‑los. Mas quem dá mais importância aos inte‑ pátria dos ingleses negros, deve ser difícil encontrar fotografias
resses gerais do que aos estatais tem que dar forma à vileza que não apenas perpetuam em triunfo um enforcamento, mas
das coisas, à abominação deste mundo da guerra, servindo­‑se também a bestialidade da assistência, fotografias que mostram
dos exemplos mais à mão e o testemunho de alguém que vivia um carrasco radiante num círculo de oficiais entusiasmados
muito perto desses exemplos estará acima de toda a suspeita. ou de olhar transfigurado. Mas eu gostaria especialmente de
O Optimista: Não há dúvida de que o senhor é um acusador prometer um prémio pela identificação desse bruto horrendo,
público implacável. um primeiro­‑tenente imperial e real que se pôs mesmo em
O Eterno Descontente: Contra esse tipo de Estados. frente de um cadáver de enforcado e ofereceu ao fotógrafo as
O Optimista: Se dependesse de si, há muito que a Áustria teria fronhas de inútil, e também daqueles janotas imundos que,
sido condenada à morte. alegres como se estivessem na esquina da Sirk, se juntaram ou
O Eterno Descontente: Infelizmente, ela só o será depois de se apressaram a vir com as suas Kodaks para ficarem, não ape‑
ter condenado à morte os austríacos, e não antes. Aqui, estou nas numa pose de fotografados, mas de fotógrafos, na imagem
a pensar nos austríacos que sobreviveram e que, sendo súb‑ em que também não pode faltar o chamado pastor de almas no
ditos da Monarquia, vão ao encontro de um destino que não meio de um círculo de 100 participantes ansiosos. É que não
mereceram enquanto povo. Relativamente aos outros, que se se enforcou apenas, também se prepararam as cenas; e não se
revoltaram contra essa condição de súbditos ou, na maioria fotografaram só as execuções, mas também os espectadores e
dos casos, nem isso fizeram, há muito que a própria Áustria, mesmo até os fotógrafos. E, agora, o efeito especial da nossa
antes de morrer, lhes aplicou a pena de morte. ignomínia é que aquela propaganda inimiga que, em vez de
O Optimista: E o senhor acha que entre os inimigos não aconte‑ mentir, se limitou a reproduzir as nossas verdades, não pre‑
ceram coisas dessas? Os ingleses também executaram os seus cisou sequer de fotografar os nossos actos, porque, para sur‑
traidores. Veja o caso de Casement. presa sua, encontrou as nossas próprias fotografias dos nossos
O Eterno Descontente: Relativamente a este caso, não tenho actos logo no local do crime, isto é, apanhou­‑nos “de corpo
nenhum postal. Independentemente do facto de Casement inteiro”, em toda a nossa inocência – nós, que não tínhamos
ter sido condenado à morte por um tribunal e, na sequência noção de que nenhum crime nos poderia desmascarar aos
disso, ter sido fuzilado, enquanto a Battisti fizeram um pro‑ olhos do mundo como a nossa confissão triunfante, como o
cesso sumário, prendendo­‑o e enforcando­‑o depois de, como orgulho do criminoso que, ainda por cima, se deixa fotografar
agravamento da pena de morte, o terem de resto obrigado e faz um sorrisinho, porque a verdade é que não cabe em si de
a ouvir de pé o “Deus mantenha”… não parece que tenham contente por se poder apanhar a si próprio em flagrante. É que
sido tiradas fotografias oficiais da execução de Casement, que, não é o facto de ter matado, também não de ter fotografado
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o acto, mas de se ter deixado fotografar e de se ter deixado corde savonée”, essa especialidade, era o único artigo austríaco
fotografar enquanto fotografava… é isso que faz do seu tipo de exportação. Foi in hoc signo que quis vencer! Quem vai
o retrato imorredouro da nossa cultura. Como se aquilo que pagar a última conta ao seu verdugo é a própria Áustria.
fizemos não falasse por si próprio! Os procuradores­‑gerais do O Optimista: Como assim? Quando?
inferno que, com os seus feitos, tal como os poetas da guerra, O Eterno Descontente: Depois de ser executada!
se livraram do dever de morrerem como heróis fizeram, na (Muda a cena.)
verdade, um serviço bem feito. Mas, depois do carrasco, era
preciso que viesse ainda o fotógrafo. Não, os grupos que posa‑ CENA 30
ram para um Arquivo Militar Imperial e Real sujam a memória Tribunal marcial.
da Áustria com uma nódoa de vergonha que nem eternidades
podem apagar. Capitão Dr. Stanislaus von Zagorski, juiz militar: (A ler
O Optimista: De certeza que o imperador Franz Joseph não a sentença. Ouvem­‑se as frases seguintes, que ele pronuncia com
soube nada de tudo isso. um destaque especial.)
O Eterno Descontente: Desde sempre, a única coisa que ele … Tendo em conta que o réu Hryb tem 26 anos de idade e não
soube foi que o seu carrasco representava o último, único e sabe ler nem escrever, não tendo, assim, instrução, e conside‑
verdadeiro bastião do poder central. Ele ali está, como sím‑ rando ainda que, aos olhos do tribunal marcial, a culpa do réu
bolo luminoso e sorridente desse poder, em plena dignidade Hryb é a mais pequena de todas comparada com a dos demais
de dono de café e com a plena bonomia de juiz universal, sem acusados, o tribunal decidiu que o réu Hryb seja o primeiro a
nenhuma soberba e nenhuma fraqueza, porque a gente não vai cumprir a pena de morte pronunciada contra ele nos termos
precisar de um juiz, precisa é de um carrasco. do § 444 do Código Penal Militar.
O Optimista: Ele, como monarca cavalheiresco… … A pena de morte imposta ao réu Struk será cumprida pelo
O Eterno Descontente: …já na juventude se recusou a receber mesmo em segundo lugar, porque a sua culpa é mais flagrante
a delegação das mães, esposas e filhas de Mântua que, vesti‑ do que a do primeiro acusado.
das de luto pelos filhos, esposos e pais, vieram em peregrina‑ … Tendo em conta que o réu Maeyjiczyn manteve contactos
ção pedir­‑lhe que comutasse a pena de enforcamento.33 Mas com os russos durante um longo período, foi decidido que ele
depois elas tiveram de pagar a conta da execução. A memória cumpra a pena de morte em terceiro lugar.
da Áustria, naquela região, permanece indelével até hoje e o … Ao mesmo tempo, foi decidido que este réu, em conformi‑
motivo histórico­‑universal da “deslealdade” talvez se possa dade com o crime que lhe é imputado, cumpra a pena de morte
explicar pelo horror fremente com que ali, ainda hoje, se fala em quarto lugar.
daqueles factos e pela tradição diplomática segundo a qual “la … A pena que lhe foi imposta nos termos do § 444 do Código
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Penal Militar será cumprida pelo réu Dzuz em quinto lugar, O primeiro: Não estás a ver, é que ele é um jurista encartado, não
tendo em conta que a sua defesa cheia de mentiras mostrou é qualquer coisa…
que estava totalmente ao serviço dos russos. Zagorski: Pois, cada sentença de morte tem que ser fundamen‑
… e cumprirá esta pena em sexto lugar, tendo em conta o seu tada com todo o cuidado… não é brincadeira nenhuma.
comportamento. O segundo: Chiça, as chatices que nós já tivemos dantes, no
… O réu Kowal cumprirá a pena de morte em sétimo lugar. tempo do coronel! Ele era inimigo jurado da lei marcial. Dizia
… Dado que o Fedynyczyn é culpado de dois crimes, cumprirá sempre que eram caturrices e minhoquices jurídicas. “É fuzilá­
a pena de morte em oitavo lugar. ‑los e pronto”, era o que ele dizia.
… Tendo em conta a gravidade do crime imputado ao Fedor O primeiro: Ora, isso comparado c’o Ljubicic não é nada, tás a
Budz, o mesmo cumprirá a pena de morte em nono lugar. ver, o Undécimo Corpo, onde eu estava antes. Havia lá o Wild,
… Petro Dzus cumprirá a pena que lhe foi imposta em décimo lembro­‑me que o Wild entre o Natal e o Ano Novo de 1914
lugar, tendo em conta a gravidade da sua culpa. mandou enforcar 12 politicamente suspeitos, seis deles num só
… O tribunal marcial considerou que a sua culpa é a maior dia. Dizia ele que, na qualidade de oficial do serviço de infor‑
de todas e que, por isso, cumprirá a pena de morte que lhe foi mações, não precisava de sentença nenhuma do tribunal. Tam‑
imposta em último lugar. Está encerrada a sessão. bém não foram poucos os que mandou passar à baioneta.
(Os delinquentes são levados embora.) O segundo: E então o Lüttgendorff! Ele também dizia sempre
Um oficial: Parabéns! Foi de fazer crescer água na boca. Vê­‑se que não precisava de tribunal, em vez disso tinha o juízo sumá‑
logo que és advogado. Olha lá, quantas sentenças de morte é rio, era o que ele dizia. Uma vez, mandou o cabo passar três
que já tens no activo? tipos à baioneta por estarem emborrachados. Foi em Schabatz,
Zagorski: É exactamente a centésima… quer dizer, a centésima no dia de aniversário do imperador, lembro­‑me como se fosse
décima. hoje. E que belas bastonadas que havia e umas evacuações que
Os oficiais: Parabéns! Um número redondo! Mas porque é que só visto! Ora, e quando se deitava fogo, era de se lhe tirar o cha‑
não dizias nada? péu! Lembras­‑te daquela vez em Syrmia quando eles queima‑
Zagorski: Obrigado, obrigado! E assisti pessoalmente a todas ram uma casa em cada duas! Pois, uma vez ele decidiu dar uma
as execuções, é com orgulho que o digo. E quantas vezes não lição que servisse de exemplo, evacuaram uma aldeia inteira
dei também assistência a execuções de sentenças de morte de para dar cabo de todos, tás a ver, com mulheres grávidas nos
outros juízes! últimos meses e assim, todos tiveram que ir a pé para Peterwar‑
Segundo oficial: Não me digas. Mas estás a esforçar­‑te dema‑ dein. Não sei se depois os liquidaram a todos. Seja como for,
siado! És demasiado consciencioso. tiveram que ficar toda a noite junto dos fuzilados, os familiares
Zagorski: Pois é, é um trabalho esgotante! próximos e assim, os que escaparam. Tás a ver, os sargentos
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da polícia militar húngara, os comandantes das patrulhas, quando o vi assim ali à nossa frente, fiquei mesmo com uma
preferiam resolver as coisas sumariamente, os corpos ficaram impressão muitíssimo desfavorável. É que já sabia que tinha
todos por ali estendidos, dos professores, sacerdotes, notários sido condenado à morte e disse, mas, tás a ver, sem mostrar
da aldeia, guardas­‑florestais e assim. o mínimo arrependimento, disse simplesmente na tua cara
O primeiro: Ora pois, os internamentos davam mais luta. que não pegava na espingarda mesmo se por causa disso fosse
O segundo: Isso foi mais tarde, quando começaram a extermi‑ fuzilado. Pois claro, assim é evidente que não houve motivos
nar com método. Nesse aspecto, os campos húngaros tinham para comutar a pena, perante uma casmurrice daquelas! Bem,
uma organização de trás da orelha. Fome, pancadaria, febre o Störger­‑Steiner, evidentemente, confirmou a pena, por causa
tifóide… já dá pra conseguir bons resultados com os sérvios! da impressão muitíssimo desfavorável que o homem provo‑
Terceiro oficial: Está bem, mas, vamos lá a ver, isso já não se cou. Mas, espera aí… aí a história complicou­‑se. É que, mais
pode chamar um processo judicial. tarde, o juiz superior, tás a ver, o coronel Barta, disse no relató‑
O segundo: Pois, claro que não, é mais um procedimento admi‑ rio que fez prò Supremo Tribunal Militar… que a sentença se
nistrativo. Mas não queres saber… tás a ver, com o Lüttgen‑ baseou num lapso lamentável. Porque, pelos vistos, a pena de
dorff todos os casos estavam registados numa ficha: “Ordem morte só se aplica em caso de resistência violenta e o Minis‑
de execução!” Sabes, é que o Lüttgendorff era demasiado ner‑ tério da Guerra já tinha disposto em 1914, relativamente aos
voso para aguentar uma sessão de tribunal como as daqui. Ai nazarenos, que fossem colocados na linha da frente sem armas
o que ele insultava os juízes! Era sempre: “Manga de alpaca!”, e só depois da guerra fossem presentes ao tribunal militar. Mas
“Coninhas!”, “Cambada de aselhas!” Tás a ver, o que ele a questão é que esse decreto só nos chegou às mãos depois da
preferia era mandar logo prà forca, é claro que no caso de haver execução, em 1916, que é que se há­‑de fazer? O Barta apanhou
circunstâncias atenuantes, senão na maior parte das vezes o três semanas de detenção.
que fazia era pôr a baioneta a funcionar. O segundo: Isso com o Lüttgendorff não lhe tinha acontecido.
O primeiro: Já alguma vez tivestes um nazareno? Esse, a um nazareno assim… (gesto) pimba, catapimba, meu
O segundo: Que coisa é essa? Mas isso já não existe! caro.
O primeiro: Existe, existe, os nazarenos, tás a ver, são uns tipos Zagorski: Pois, nós, como juristas, não temos as mãos assim
que, por motivos religiosos, se recusam a pegar em armas, já tão livres, estás a entender? Eu vou indo com calma… ora, e
se sabe como é. Uma vez tive um tipo desses, era um lavra‑ mesmo assim, já dei mais bem conta do recado do que o pró‑
dor e deram­‑lhe trabalho de carreiro. Até à altura, a conduta prio Wild!
dele era boa, quer dizer, quanto a comportamento não havia O segundo: Ah, lá isso deste!
nada que dizer e, excepto não querer pegar numa espingarda Zagorski: O meu caso mais interessante foi em Munkacs, foi
na formatura, a verdade é que não havia nada contra ele. Mas no Outono de 1914 – nessa altura, uma pessoa ainda estava
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empenhada de corpo e alma. Havia três refugiados da Galícia, O terceiro: Olha lá, não me digas… que os 11 que condená‑
um pároco, Roman Beresovszki, um certo Leo Koblanski e o mos hoje também são inocentes? É que, bem vistas as coisas, a
Ssemen Zhabjak, é evidente que os condenei à morte e, claro, única coisa que se provou…
mandei executar a sentença… Zagorski: …é que eles são rutenos. Não achas que chega e sobra?
O segundo: E arranjaste tudo tão bem como aqui… por ordem? É uma hora… vamos à messe.
Zagorski: Ora, e como é que podia, os três sabiam ler e escre‑ (Muda a cena.)
ver e, além disso, eram todos culpados por igual… quer dizer,
vendo bem, eram todos inocentes. CENA 31
O primeiro: Eram inocentes… mas como? Palácio de Schönbrunn. Um gabinete de trabalho.
Zagorski: Pois, é isso mesmo que é interessante. É que o caso foi O Imperador está sentado à secretária a dormir.
reaberto pelo tribunal militar de Stryi e descobriu­‑se que eles Dois camareiros, um de cada lado.
eram inocentes.
Os oficiais: Olha que azar! O camareiro da direita: Já está outra vez a trabalhar sem
Zagorski: (Rindo­‑se.) Como assim? O Conselho Nacional ucra‑ descanso.
niano fez queixa de mim junto do Comando Supremo do O camareiro da esquerda: São nove menos um quarto, sete
Exército! Ora, estais a ver… minutos antes das nove e meia começam as audiências, é um
O primeiro: Ah, pois! O que é que tu eras naquela altura? autêntico calvário, lá isso é.
Zagorski: Primeiro­‑tenente. O da direita: Pst… escuta… sua provecta majestade está a dizer
O primeiro: E quando é que passaste a capitão? qualquer coisa…
Zagorski: Ora, quando se descobriu que eles eram inocentes! O Imperador: (Fala a dormir.) Pois isso é que não… porque
O segundo: Tu achas que há então uma relação directa… que te não… não vou fazer a paz com os comedores de macarrão…
quiseram dar assim uma espécie de satisfação? quero é que me deixem em paz… caí na esparrela… gostei
Zagorski: Não posso afirmar assim sem mais, no Comando muito… andor… a casa do segundo botão está um milímetro
Supremo do Exército eles não têm tanto tacto… mas a queixa acima do que devia… quê? O Franz está cá outra vez?… prà rua
fez com que eles atentassem em mim, viram a capacidade de com ele… tive muito prazer… o Rudolf que não ande sempre
trabalho que eu tenho, bem, e depois… quando uma nação por aí com os cocheiros… já se viu uma coisa dessas?… a nada
classificada como politicamente de pouca confiança se queixa escapo afinal… eles que esperem, só começo 13 minutos antes
de nós! Percebes, um ruteno não pode prejudicar­‑nos por se dos três quartos… que dizes, Kathi?34 Fazes bem em não gos‑
queixar de nós, quando muito pode prejudicar­‑nos por ainda tares dos prussianos nem pintados… que desgraça esta… caí
estar vivo. na esparrela… bem, mas que é que se há­‑de fazer… (Acorda.)
598 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 599
Quê… mas qu’é que vocês querem… pronto, pronto, já estou Riedl não pode vir por estar doente.
a assinar. (O camareiro da esquerda estende a caneta. O Imperador: Essa agora! A nada escapo afinal.
O Imperador assina uma série de documentos.) Olha lá, então O da direita: (Para o da esquerda.) Ui, agora vêm aí aqueles ver‑
quem é que vem hoje? sos que nunca mais acabam, já sabemos como é que é.
O da direita: Majestade, vem o Emanuel, visconde de Singer, (O Imperador adormece outra vez. Os dois camareiros
para receber o título de nobreza… afastam­‑se em bicos de pés. Enquanto dorme, canta o seguinte.)
O Imperador: Ah, o Mendl, boa, boa.
O da esquerda: E depois o Riedl, para receber a Ordem de Franz
Joseph.
O Imperador: Ah, o Riedl, fico contente, então como é que ele
vai indo de saúde?
O da direita: Já vai indo muito acabado. Parece que na semana
passada esteve de cama. Não deu a certeza de vir.
O Imperador: O quê, olha que esta, uma pessoa tão jovem!
O da esquerda: Pois é, Majestade, 30 anos mais novo que Sua
Majestade, mas no que toca à frescura física…
O Imperador: Pois, lá nisso tens razão… ó Ketterl, e o Beck,35
que tal vai andando?
O da direita: Ui, Majestade! (Imita os modos de um velho
tremebundo.)
O Imperador: O quê, com 84 anos, o moço devia era ter vergo‑
nha… (Põe­‑se a rir e dá­‑lhe um ataque de tosse, os camareiros
amparam­‑no.) Pronto, pronto. (O camareiro da esquerda
abandona a sala.) Mas então onde vais?
O da direita: Vai só buscar o remédio.
O Imperador: Eu não preciso de remédios, não preciso, pronto!
O da esquerda: (Regressa com o remédio e dá­‑lho.) Disseram­‑me
agora mesmo…
O Imperador: (Toma o remédio.) Caí na esparrela.
O da esquerda: Disseram­‑me agora mesmo, Majestade, que o
600 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 601
No dia em que vim ao mundo, foi só tormento e chatice.
vendo tudo ao deus­‑dará, Filho,38 mulher,39 o Otão,40
resolvi logo bem fundo: eis até hoje em geral,
a mim tanto se me dá. da minha vida a lição:
Armou­‑se ali uma arruaça a nada escapo afinal!
que nunca vi outra igual.
O quê? Mas querem que eu nasça? Só azares na parentela…
A nada escapo afinal? fora amarga a minha sina,
se a não encontrara a ela,
Inda rapaz, fui actor: a tão doce Catarina.
frente ao palco, a barricada.36 Nova não é, convirei,
Tive um papel, ui, senhor, mas somos feliz casal.
na peça A Grande Salsada. Fica­‑me cara, bem sei,
A turba grita possessa, nada lhe escapa afinal!
falta a barba imperial –
tenho o trono sem que o peça: Correu tudo bem, porém,
a nada escapo afinal? co’a Áustria e com esse amor.
O Império não tem vintém,
Paz e descanso almejei, mas tudo se há­‑de compor.
que era grande a minha manha, Na honra há fel que se esconde,
ao sessenta e seis joguei é de ouro a face do mal.
e o da Prússia é que ganha!37 O judeu faço visconde…
Posso dizer com razão esse escapou afinal.
que a sorte só me quis mal.
Deu­‑me a c’roa indigestão Só trabalhos e arrelias,
e a nada escapo afinal! mas que fúrias que me dão
dos judeus as cortesias
De nada me lembro agora lá nas termas, no Verão.
que me em cima não caísse, Pensam só em enriquecer…
quer cá dentro quer lá fora, que esta guerra mundial
602 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 603
a burra lhes vai encher! Ponto final na questão,
E escapam afinal. a morte nos vem salvar.
E para compensação
Festa mesmo, verdadeira, o povo pus a penar.
só me lembra uma ocasião: Não causara essa desgraça
foi mesmo à boa maneira a perspicácia real,
o Este41 cair ao chão. (Acorda.) tinha havido uma desgraça!
Quando a nova transmitiu Assim escapei afinal!
minha gente serviçal,
té o olho me reluziu: E que Deus seja louvado!
deste escapei afinal! Rubra é a cruz enfim na mão,
ouro por ferro é trocado,
Correu tudo bem, dizia, tomam veneno por pão. (Adormece.)
distribuindo cumprimentos, Levada a cruz ao calvário,
contente, chorava e ria, fiz ao reino o funeral.
grato por tão bons momentos. Cumpre o povo o seu fadário,
Que ora sofra, é bem feito, também não escapa afinal.
quem quis meu dia final.
O sovina era suspeito, Não estou arrependido
qu’ria escapar afinal! nem quieto vou ficar.
Já me não sinto tolhido
O enterro a condizer p’lo acordo c’o meu par.
do Fernando, o meu sobrinho, O Guilherme não descansa,
foi momento de prazer a aliança é brutal,
pra mim e prò meu povinho. tenho que andar numa dança,
Ódio houve que bastasse, a nada escapo afinal.
foi um belo funeral…
tudo de terceira classe, Ombro com ombro, o amigo
sempre escapei afinal! prà morte está­‑me a empurrar,
achar graça não consigo
604 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 605
dos Nibelungos ao par. Do prussiano à facada
O destino, é bem sabido, não mais escapo afinal!
foi­‑me madrasto e fatal,
vai o da Prússia bem servido E por mais voltas que dê,
c’o que eu poupei afinal. o montador sabe mais,
e tem­‑me à sua mercê
De que me serve este amigo! em seus giros triunfais.
Cresce co’a glória a aflição, Não me larga o prussiano,
Deus al’mão, penso comigo, lá nisso é­‑me ele leal,
viver assim, nem um cão. do meu trono faz escano,
Sob o pendão da aliança, trata­‑me a coice afinal!
formámos hoste leal.
O meu parceiro enche a pança, Não têm fim os meus ais,
eu roo o osso afinal. não tem fim o meu pesar,
por em meus dias finais
Vai o cavalo aliado ter de hohenzollernar!
a montador desabrido, Porquê, vos pergunto eu,
e pra proteger o gado aceitei conúbio tal?
um alto preço é pedido. E minha voz respondeu:
A plebe prostra­‑se grata a nada escapo afinal?
pela alegria inicial.
A mim fustiga a chibata… Mas que é que vem a ser isso?
não chego ao fim afinal. Isto aqui sou eu que mando!
Mas ou faço um compromisso
Esta conta está mal feita: ou para a rua desando.
c’o da Prússia é só suar. Seguisse eu naquele Verão
O povo os seus vivas deita, do Eduardo o fanal,42
mas o preço é de matar. diz­‑me bem forte a razão:
Não calculava a montada escaparia afinal.
o seu destino final.
606 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 607
Aos vivas se vai andando as contas pagam­‑se aqui.
no meio da chinfrineira. Aos asnos doei comendas,
Vai­‑se o vienense afundando prò povo nem um real.
nesta grande bandalheira. E as partes mais horrendas
Fiquei co’a parte pior escapei­‑lhes afinal.
nesta guerra mundial,
de vitórias tenho um ror, Desde os meus mais tenros anos
mas nunca venço afinal. a nada dei seguimento.
Da guerra o sangue e os enganos
Nos anais vêm narrados olho com contentamento!
todos os azares meus. Inda as forças me não faltam,
Setenta anos passados vem longe a hora final,
num reino só de sandeus! os remorsos não me assaltam,
Para governar eu uso inda escapais afinal!
um jeitinho especial.
Os meus povos eu conduzo… Mais sangue inda quero ver,
são só broncas afinal. que os anos não pesam nada,
e agora é que vou fazer
Não pensem que estou chegado a peça A Grande Salsada!
já ao fim do meu latim. Não mudei, nada quis novo,
Pra desastres fui fadado… de louro é a c’roa real,
não me perguntem a mim. guarde­‑me Deus prò meu povo,
A gente se há­‑de entender que a nada escapa afinal.
finda a viagem fatal.
Com os escombros a arder, El’ me guarde em duras penas!
já o tabaco não faz mal. Inda à hora não cheguei
de dizer: “Graças plenas,
Na história estão registadas sinceramente, gostei.”43
as histórias que eu vivi, Entre o mundo em agonia
voltas mil podem ser dadas… que eu espero, paternal.
608 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 609
No inferno direi um dia Hum… Nesse caso, o que vamos mudar não é a sentença, mas
ao que escapei afinal. a idade. Assim como assim, eles são uns autênticos latagões.
(Molha a pena no tinteiro.) Vamos então escrever, em vez de 18, 21.
E quem sossego só qu’ria (Escreve.) Pronto, agora podem enforcá­‑los à vontadinha.
enfim sossego vai ter. (Muda a cena.)
Mas no meu último dia,
antes de à terra descer… CENA 33
“Tão novo”, digo, “é chegada Esplanada em Ischl.
a minha hora fatal?” Um grupo compassivo rodeia o velho Korngold.
E repito de enfiada:
a nada escapo afinal! O velho Korngold: (Torcendo as mãos.) Mas ele não está bem
(Os dois camareiros aproximam­‑se em bicos dos pés.) de saúde! Não está bem de saúde! (O grupo leva­‑o dali.)
(Muda a cena.) Um aquista: (Dirigindo­‑se a um outro.) Olhe, o senhor de certeza
que me pode informar, uma vez que frequenta o mundo do
CENA 32 teatro, então é verdade o que se diz ou é só um boato?
Kragujevac. Tribunal militar. O outro: O velho Biach?
O primeiro: Não, não, o jovem Korngold!
O primeiro­‑tenente juiz­ militar: (Grita para fora.) Que vão O outro: (Com ar grave.) É verdade.
prò raio que os parta! (Para o secretário.) As três sentenças O primeiro: Não me diga… então o jovem… Korngold… foi
de morte já estão passadas a limpo? As dos três rapazes de Kar‑ mobilizado?
lova que andavam armados? O segundo: É o que lhe digo! Que me conta do Biach? (Saem
O secretário: Sim, meu tenente, mas (hesitante) eu… gostaria ambos.)
de chamar a atenção para uma coisa, é que… eu descobri… Terceiro aquista: (Abanando a cabeça, para um acompa‑
que eles só têm 18 anos… nhante.) Um Mozart! E ainda por cima está a colaborar na
O primeiro­‑tenente juiz­militar: E depois? Que é que quer imprensa!
dizer com isso? O quarto: (Olhando em redor.) Um acto de vingança. (Saem
O secretário: É que… sendo assim… de acordo com o Código ambos.)
Penal Militar, eles não podem ser executados… a sentença (Entram a menina Löwenstamm e a menina Körmendy
tem… que passar para prisão maior… vestidas à tirolesa.)
O primeiro­‑tenente juiz­‑militar: Ora mostre cá! (Lê.) A Menina Löwenstamm: Parou de chover!
610 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 611
a Menina Körmendy: Então como é que é? Ides à tarde passear CENA 34
até ao lago de Nussen? Esquadra de polícia.
a Menina Löwenstamm: Se o tempo aguentar, sim, senão
vamos ao Zauner, claro! E à noite? Vocês vão? Nós temos luga‑ O inspector: Ah, ah! Cá temos mais uma dessas rameiras sifilí‑
res reservados, o maestro é o Schalk, da ópera. (Passa outra ticas! E carregada de piolhos!
rapariga vestida à tirolesa.) Olha… estás a ver aquela…! Um guarda: Já é cá minha conhecida. Tem uma condenação por
a Menina Körmendy: Só queria saber quem é que ela acha que furto e já foi prà choça por vagabundage. E no hospital tam‑
é para se passear assim. bém já esteve.
a Menina Löwenstamm: É que o irmão dela anda a fazer a corte O inspector: Que idade tens? E que é da tua família?
à Wohlgemuth! A rapariga de 17 anos: O meu pai foi mobilizado, a minha
a Menina Körmendy: Vem ali o Bauer com o Lehár. (Saem.) mãe morreu.
Bob Schlesinger: (De jaqueta à tirolesa e joelhos ao léu.) Ele O inspector: Então desde quando é que andas na vida?
há cada uma! Aposto que na semana que vem vão declará­‑lo A rapariga de 17 anos: Desde 1914.
isento! É só eu dar uma palavrinha ao Hans Müller! (Muda a cena.)
Baby Fanto: (Com equipamento de ténis.) Ora, ora! Basta uma
palavra do papá! Toda a gente sabe que o Alto-Comando inteiro CENA 35
é visita da nossa casa de Baden! O Arz torce­‑se de riso quando Um bar nocturno em Berlim.
o Tury conta uma anedota e eu faço a imitação da Konstantin.
(Passa um carro da corte. Eles cumprimentam.) Uma voz aos berros: (Nos bastidores.)
Bob Schlesinger: Acho que ia vazio. Cerveja mijada é mau prà festança,
Baby Fanto: Pareceu­‑me que era o Salvator. (Saem.) Rais parta a zurrapa!
Um velho assinante: Que me diz do jovem Korngold? Se emborcas de mais e enches a pança,
O mais velho assinante: De certeza que isso não vai deixar de Ficas mole como uma lapa!
causar impressão na Inglaterra. (Saem.) Trazei­‑me o Burgeff­‑Grün, cambada de cabrões! Não te vás
(Ouvem­‑se de muito longe os gritos do velho Korngold.) embora, Frieda, minha porquinha querida… deixa­‑te ficar
(Muda a cena.) sentadinha… seus traidores à pátria… o quê… bora prà bata‑
lha do Somme…
Frieda Gutzke: (Cospe­‑lhe na careca.) Pimba, que o papá não
está a ver… (Aproxima­‑se do proscénio.)
(Sally Katzenellenbogen, exportação, Frankfurt an
612 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 613
der Oder, dá pancadinhas no ombro do vizinho, o advogado A voz aos berros: (Nos bastidores.)
Krotoschiner II.) E é tão perfeito este plano
Katzenellenbogen: Como é que é a frase de Nietzsche? Vais Que nos dá sempre o governo
ter c’uma mulher, não te esqueças do chicote! (Frieda Gutzke acompanha)
Krotoschiner II: Ora, ouça lá, deixe­‑me mas é em paz com Um par de cuecas por ano…
esse homem, pra mim o homem não risca nada, toda a gente Ide todos prò inferno!
sabe que acabou mal. Um tipo super­duvidoso, é o que lhe digo. (Muda a cena.)
Conhece a Dolorosa?
Katzenellenbogen: Nã. Mas não é a Hertha Lücke que está ali CENA 36
sentada, do Palais de Danse, Kantstraße, 15, primeiro andar, O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
telefone Kurfürst 854757?
Krotoschiner II: Que parvoíce, pelo contrário, aquela é a Gerda O Eterno Descontente: A isto chamo eu, por uma vez, propa‑
Mücke do Lindenkasino, Leibnizstraße, 59, segundo andar, tele‑ ganda por uma boa e justa causa!
fone Lützoo 957853, com água quente, ascensor, sala de banho em O Optimista: Mas de que é que se trata?
todos os apartamentos, impecável! É uma sedutora de primeira! O Eterno Descontente: Uma proclamação com o título “Fim
Katzenellenbogen: Não há dúvida, é uma das moças mais da subscrição de empréstimos de guerra!” Uma palavra justa
chiques que temos agora em Berlim… e sabe quem é que está no momento justo.
sentado ao lado dela? Motte Mannheimer, não admira, ele trá­ O Optimista: Fico contente por o senhor pensar com tanta sen‑
‑las a todas nas palminhas. satez. A verdade é que todo o palavreado sobre uma paz nego‑
(A música toca a canção “Ah, Boneca, Não Sejas Tão Neutral!”) ciada se revelou ocioso.
Frieda Gutzke: (Passa e diz a Katzenellenbogen.) Olha lá, O Eterno Descontente: É como diz. E torna­‑se cada vez mais
não sejas tão neutral… que é que estais aqui os dois sentados claro que a Alemanha é que está certa: a guerra vai decidir­‑se
feitos sonsos? Vamos lá, hop, hop!… (Para Krotoschiner II.) por meios militares.
Então, boneco? Avozinho de monóculo! O Optimista: E é o senhor quem diz isso? Por uma vez, estamos…
Krotoschiner II: Linda de morrer! Vamos, anda cá. O Eterno Descontente: …inteiramente de acordo.
Frieda Gutzke: Nada a fazer, o fecho é automático… sabes, o O Optimista: Tenho esperança de o converter também às minhas
morgadinho, o garanhão da Pomerânia, sempre de cabeça ver‑ opiniões sobre a educação patriótica da juventude. Neste ponto,
melha, está a olhar pra cá… fica pra outra vez… olha, dá­‑me aí como do que se trata é de concentrar todos os pensamentos
uma nota, quero ir pregar um prego no Hindenburg. (Dirige­‑se na vitória final, tudo o que se faça não é nunca de mais. Mas
para o fundo.) eu trouxe­ ‑lhe o relatório anual da Escola Preparatória do
614 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 615
Imperador Karl, para que possa convencer­‑se de que os alunos O Eterno Descontente: No que respeita ao segundo tema,
de modo nenhum são obrigados a tratar temas bélicos. Pelo con‑ atirava­‑o à cabeça do professor, aconselhava­‑o, para os seus objec‑
trário, pelo menos na maior parte dos casos é­‑lhes oferecida uma tivos pedagógicos, a citar antes Lissauer e provava­‑lhe que tam‑
alternativa. Por exemplo, na 5.ª classe B: “Um passeio de férias” bém conheço a primeira estrofe do poema de Schiller:45 “Ó nobre
ou “Os meios bélicos mais modernos”. Na 6.ª A: “Porque é que amigo! Onde se abre à paz, à liberdade um asilo seguro? Um século
Minna von Barnhelm é uma comédia genuinamente alemã?” ou em tormenta se desfaz e ao que vem já marca o crime escuro.”
“Aguentar a pé firme!” O que é que o senhor escolheria? O Optimista: E o primeiro tema, “Os meus pensamentos ante a
O Eterno Descontente: Aguentar a pé firme! estátua de Radetzky”?
O Optimista: Aqui temos, por exemplo: “Pensamentos depois O Eterno Descontente: Esse tratá­‑lo­‑ia sem problemas e com
da oitava batalha do Isonzo” ou “Passeio no Outono”. A seguir, sucesso, porque ante a estátua de Radetzky tenho cá os meus
“Em que medida é o clima capaz de influenciar o desenvolvi‑ pensamentos. Por exemplo, o pensamento de que já passaram
mento intelectual da humanidade?” ou “A nossa luta contra a em frente dela mais candongueiros do que era absolutamente
Roménia”. necessário para a glória póstuma de Conrad von Hötzendorf.
O Eterno Descontente: Aqui, para seguir o caminho mais O Optimista: Agora é que reparo… o relatório anual traz indicado:
fácil, escolhia os dois temas de uma vez. “Dois exemplares de Schalek, O Tirol em Armas, foram ofere‑
O Optimista: “As personagens principais de Egmont, de Goethe” cidos à biblioteca escolar pela condessa Bienerth­‑Schmerling,
ou “A intensificação da guerra submarina”. um exemplar foi oferecido pela autora à biblioteca dos profes‑
O Eterno Descontente: Eu diria que, se não tivesse aparecido sores.” Bem, a intenção certamente que é boa, mas…
a intensificação da guerra submarina, os alemães teriam posto O Eterno Descontente: O senhor é um eterno descontente.
a Inglaterra de joelhos com o Egmont de Goethe. Nunca é cedo de mais para as novas gerações aprenderem
O Optimista: O senhor é um optimista. Além disso, temos ainda: como é que se varre uma trincheira. Não há aí nenhuma redac‑
“Destino do homem, és bem como o vento! (Goethe)”44 ou ção que aproveite já directamente essas sugestões?
“Nós e os turcos – ontem e hoje”. O Optimista: (Folheia.) Talvez esta aqui, para a 6.ª B: “Qual dos
O Eterno Descontente: Aqui de certeza absoluta que escolhia nossos inimigos me parece mais abominável?”
os dois temas: quer­‑me parecer que justamente dessa combi‑ O Eterno Descontente: O tema é tão atractivo que não preci‑
nação me havia de sair uma redacçãozinha jeitosa. sou de alternativa. Mas ele próprio consente uma, que aliás é
O Optimista: Que é que pensa da alternativa: “Os meus pensa‑ bem difícil.
mentos ante a estátua de Radetzky” ou “A frota de seu tráfico os O Optimista: E qual teria o senhor escolhido?
bretões quais tentáculos ávidos estendem e da livre Anfitrite as O Eterno Descontente: (Reflectindo.) Espere… não, eu não
possessões cerrar como casa sua intendem (Schiller)”? seria capaz de chegar a uma decisão definitiva.
616 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 617
O Optimista: Se se ativer estritamente ao tema de redacção mostrou que o povo alemão tem no Senhor dos Exércitos lá no
proposto aos alunos do 6.º ano da Escola Preparatória do alto um aliado absolutamente seguro. Pode ter nele uma con‑
Imperador Karl… fiança à prova de bomba, sem ele não tínhamos conseguido.
O Eterno Descontente: …diria: a Áustria! Mas, por outro Não sabemos o que temos ainda à nossa frente. Mas todos vós
lado, se olhar para o anúncio que tenho aqui, o militarismo da vistes como nestes últimos quatro anos a mão de Deus gover‑
educação da nossa juventude parece­‑me uma brincadeira de nou de maneira visível, castigando a traição e premiando a
crianças comparado com o modelo adulto. perseverança da coragem, e isso permite­‑nos ter a firme espe‑
O Optimista: (Lê.) “Vendedor de alto calibre, cristão, livre do rança de que o Senhor dos Exércitos continuará a estar do
serviço militar, boa presença, mas discreto, até agora agente nosso lado. Se o inimigo não quiser a paz, então teremos nós
publicitário para a Alemanha Oriental, Ocidental e Berlim, que trazer a paz ao mundo, arrombando com punho de ferro e
com êxitos concretos e só referências de primeira, procura espada flamejante os portões daqueles que não querem a paz.
representação geral de uma empresa em expansão e sólida O juízo de Deus abateu­‑se sobre os inimigos. A vitória incon‑
financeiramente…” – Bem, e depois? dicional no Leste enche­‑me de profunda gratidão. Ela permite­
O Eterno Descontente: Como patriota, fico a saber qual dos ‑nos viver de novo um daqueles momentos em que podemos
nossos inimigos me parece mais abominável! admirar respeitosamente a acção de Deus na história. (Levan‑
(Muda a cena.) tando a voz.) Que grande viragem por vontade divina! Os fei‑
tos heróicos das nossas tropas, os êxitos dos nossos grandes
CENA 37 generais, as admiráveis realizações da pátria, têm as suas raí‑
Quartel­‑general alemão. zes em última análise nas forças morais inculcadas ao nosso
povo numa escola exigente, a do imperativo categórico! E se
Wilhelm II: (Para o seu séquito.) Bons dias, meus senhores. eles acham que ainda não levaram que chegasse, eu sei que
Os generais: Bons dias, Majestade! vós… (O Kaiser faz um gesto marcial, que provoca um sorriso
Wilhelm II: (Em atitude de pose, de olhos fitos no céu.) Não há feroz nos rostos dos seus barões.) O visível colapso do inimigo
qualquer dúvida de que o Senhor nosso Deus tem planos foi um juízo de Deus. A nossa vitória devemo­‑la em parte não
reservados para o nosso povo alemão. Nós, alemães, que ainda pequena às riquezas morais e espirituais que o grande sábio de
temos ideais, estamos destinados a trabalhar para que venham Königsberg ofereceu ao nosso povo. Que Deus nos continue a
tempos melhores. Estamos destinados a lutar pelo direito, a ajudar até à vitória final!
lealdade e a moralidade. Queremos viver em amizade com os (O Kaiser estende a mão direita, os generais e oficiais vão­‑na
povos vizinhos, mas antes terá de ser reconhecida a vitória das beijando à vez. Durante o que se segue, esteja irritado ou divertido,
armas alemãs. O ano de 1917, com as suas grandes batalhas, ele emite um som que lembra o ladrar de um lobo. Nos momentos
618 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 619
de irritação, fica com a cabeça ao rubro, ganha uma expressão de O ajudante: (Saltita embaraçado.) Majestade… Majestade…
javali, com as bochechas inchadas, de maneira que as pontas do Wilhelm II: Ah… bata os tacões! Pronto, está bem, Seckendorff,
bigode se põem completamente espetadas para cima.) só quis chagá­‑lo um bocado. Champanhe!
Primeiro general: Vossa Majestade já não é o instrumento de Um oficial: Às ordens! (Sai.)
Deus… Wilhelm II: Caviar! (Um oficial faz menção de sair.) Ah…
Wilhelm II: (Bufando e resfolegando.) Ah… alto! É indigno do alemão viver na abundância!… Caviar!
O general: …Deus é que é o instrumento de Vossa Majestade! (O oficial sai.)
Wilhelm II: (Radiante.) Bom, está bem. Ah…! Quarto general: Majestade…
Segundo general: Se agora rompemos as linhas com a ajuda de Wilhelm II: Então, que se passa?
Deus e do gás, ficamos a devê­‑lo apenas à genial visão estraté‑ O general: Vossa Majestade… é também o mais requintado
gica de Vossa Majestade. gourmet de todos os tempos!
Wilhelm II: (Aproxima­‑se do mapa do Estado­‑Maior.) Ah… Wilhelm II: (Radiante.) Bem, está bem. (Chegam champanhe e
Daqui até ali são 15 quilómetros, ora bem, vou lançar 50 divi‑ torradas com caviar. Ele bebe.) Mas isto é champanhe francês!
sões no combate! Formidável, não? (Olha em redor. Murmúrio Arre diabo!
de aprovação.) Um oficial: (Cola na garrafa uma etiqueta a dizer “Burgeff
Terceiro general: A perspicácia estratégica de Vossa Majes‑ Grün”.) Não, Majestade, é champanhe alemão!
tade é uma das maravilhas do mundo! Wilhelm II: Mas isto é um champanhe alemão de trás da ore‑
Quarto general: Vossa Majestade não é apenas o maior ora‑ lha!… Ah… Hahnke, você se calhar também quer cham‑
dor, pintor, compositor, caçador, homem de Estado, escultor, panhe…? Hurra! (Entorna o resto para cima do séquito e ri
almirante, poeta, desportista, assiriólogo, comerciante, astró‑ estrondosamente.)
nomo e director de teatro de todos os tempos, é também… Os generais: (Fazendo uma profunda vénia.) Graças pela mercê,
também… (Começa a gaguejar.) Majestade!
Wilhelm II: Então? Wilhelm II: (Raspa com o indicador da mão direita o caviar e
O general: Majestade, sinto­‑me incapaz de esgotar a lista dos a manteiga de uma fatia e passa com o dedo pela boca.) Ah…
títulos de mestria que distinguem Vossa Majestade. Hahnke, você se calhar também quer caviar…? (Atira o pedaço
Wilhelm II: (Acena satisfeito.) Então, e vós outros? (Eles sorriem de pão sem nada para o meio dos generais e ri estrondosa‑
embaraçados.) O quê, seus sacanas, quereis gozar com… ah… mente, batendo com a mão direita na coxa.)
o vosso comandante supremo? Eu já vos… Seckendorff! Os generais: (Fazendo uma profunda vénia.) Graças pela mercê,
(Dirige­‑se a um ajudante­‑de­‑campo e pisa­‑lhe repetida‑ Majestade!
mente o peito do pé.) Wilhelm II: (Virando­‑se para um ajudante.) Ah… Duncker,
620 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 621
ora diga lá, quais são as suas preferências amorosas? Gosta CENA 38
mais das gordas ou das magras? (Duncker sorri embaraçado. Inverno nos Cárpatos. Um homem amarrado a uma árvore.
Wilhelm II para os circunstantes.) Ele é doidinho por gordas.
Gosta de um colchão bem fofo. Comandante de companhia Hiller: Que temperatura está?
Os generais: Delicioso, Majestade! (O Kaiser ri como um lobo.) Um soldado: À volta de um grau negativo.
Wilhelm II: Ah… Krickwitz! (Dando­‑lhe um murro na barriga.) Hiller: Bem, então podeis desamarrá­‑lo. (Os soldados cum‑
Como é que canta o galo? prem a ordem. O homem – o atirador Helmhake – cai des‑
Krickwitz: (Canta.) Quiqueriqui… quiqueriqui… maiado. Hiller dá­‑lhe uma série de murros na cara.) Vamos,
Quarto general: (Para o vizinho.) S.M. é um deus. metam­‑no no buraco aí ao lado! (A ordem é cumprida.) Mas o
Wilhelm II: Ah… Flottwitz… olhe para ali, que é que é aquilo? buraco está mesmo bem húmido e malcheiroso?
(O almirante vira­ ‑se. O Kaiser aproxima­‑se dele sorratei‑ O soldado: Sim, meu comandante.
ramente e dá­‑lhe uma palmada com toda a força no traseiro. Hiller: E ele já está com uma febre valente?
O almirante torce­‑se com dores.) O soldado: Sim, meu comandante.
Wilhelm II: Mas você ficou doido? Veja lá se ainda me mija nas Hiller: Duas sentinelas… andor!… a besta não recebe nem
botas! (Para o médico­‑chefe Martius.) Ah… Martius… olhe comida nem bebida. E também não tem autorização para fazer
para ali, que é que é aquilo? (O médico­‑chefe vira­‑se. O Kaiser as necessidades nem de dia nem de noite. (Rindo.) A verdade
aproxima­‑se dele sorrateiramente, depois lança­‑se sobre ele e é que também não vai precisar! Bem, façam como ontem.
agarra­‑lhe com a mão direita entre as pernas. O médico­‑chefe Se alguém tem objecções, rebento com ele! (Sai com os seus
cambaleia com dores atrozes e segura­‑se a uma cadeira. Está homens. Dois soldados ficam para trás em frente ao buraco.
branco como a cal. O Kaiser rebenta a rir como um doido Ouvem­‑se gemidos.)
e, quando repara no efeito do que fez, afasta­‑se então furioso. O segundo soldado: Não achas como eu que seria mais cristão
De cabeça ao rubro e as bochechas inchadas, bufando e resfo‑ se em vez deste… fosse ele…?
legando.) Estes tipos são uns pascácios… ah… são tipos sem O primeiro: Acho, pois.
sentido de humor. O segundo: Dois já morreram: Thomas, a quem ele obrigou com
Os generais: Delicioso, Majestade, delicioso! um frio como este a despir­‑se por completo, e Müller, que,
O primeiro general: (Para os restantes.) Amor et deliciae mesmo doente, teve de ficar de guarda. Outros cinco ele…
humani generis.46 (Ouvem­‑se queixumes. Soa como “sede!”) Ora… quem quiser
(Muda a cena.) que aguente isto! Vou­‑lhe chegar à boca uma bola de neve.
(Rasteja para dentro do buraco e regressa a chorar.) Ainda nem
tem 20 anos… ofereceu­‑se voluntário…! (Aparece Hiller com
622 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 623
alguns homens.) de combater. Que se há­‑de fazer? Quanto ao Helmhake, posso
Hiller: Estive a pensar melhor no assunto. Vamos a ver… tirem dizer que fiz o possível e o impossível. Vou escrever assim ao pai:
daí o gajo!… Então, é pra hoje? Prezado senhor Helmhake!
O segundo soldado: Ele… se calhar já não consegue, meu tenente. Venho cumprir o penoso dever de o informar do falecimento
Hiller: Mas que é que se passa? Tirem­‑me esse pedaço de esterco súbito do seu filho, o atirador Carl Helmhake. O diagnóstico
cá pra fora! (Alguns soldados puxam Helmhake para fora e médico aponta para uma inflamação hemorrágica do intestino
arrastam o corpo inanimado como um animal.) Então é assim. delgado.
Ah, o cabrão está só a fingir, dêem­‑lhe mas é uma patada no Durante a curta doença, foram prestados ao seu filho os melho‑
rabo! (Bate­‑lhe com o tacão da bota.) Queres andar, meu grande res cuidados pessoais e médicos possíveis.
porco!? Mas este animal ainda não esticou!? Perdemos com o extinto um soldado valente e um bom cama‑
O segundo soldado: (Inclina­‑se sobre o maltratado, toca­‑lhe, rada, cuja perda lamentamos com muita dor. Os seus restos
estende os braços para Hiller como que em atitude de defesa e mortais repousam no cemitério de Dolzki.
diz.) Agora mesmo. (Muda a cena.)
(Muda a cena.)
CENA 40
CENA 39 O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
Mesmo local, no abrigo de Hiller.
O Optimista: Ora leia com que palavras exaltantes foi inaugu‑
Médico­‑ajudante Müller: Morte por hipotermia. Esforços de rado o Congresso Médico da Fraternidade Aliada: “Que seja
reanimação sem resultado. O mais grave é que não recebeu para todos nós um sentimento benfazejo, uma consciência
assistência. de união verdadeira, podermos conferenciar aqui com auto‑
Hiller: Temos que dar um jeito à coisa de tal maneira que nin‑ rização do imperador, enquanto lá fora, nas nossas frentes de
guém nos possa cair em cima. batalha, ruge ainda o combate, sobre a melhor e mais eficaz
Müller: Não há dúvida, o material humano está esgotado e maneira de cuidar dos nossos guerreiros vitoriosos, para eli‑
doente. Só sopa de conserva e essa é prejudicial à saúde. Sur‑ minar de novo, através de um tratamento adequado, os danos
gem manifestações de uma autêntica loucura provocada pelo que sofreu a sua saúde, e para discutirmos como poderemos
esgotamento. Os homens põem­‑se a remexer na neve e a andar dar aos heróis enfermos novas forças para trabalhar, nova
aos saltos como possessos. coragem para viver…”
Hiller: Não me custa a admitir que a fome, as pancadas e o cas‑ O Eterno Descontente: Para morrer!
tigo de ficar amarrado já não bastam para reanimar a vontade (Muda a cena.)
624 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 625
CENA 41 outra vez levantado, pra que se vão habituando antes de serem
Um hospital militar. Reconvalescentes, outra vez mobilizados. Ora prestem atenção! (Lê em voz alta.)
feridos de todos os graus de gravidade, moribundos. “Directiva respeitante às saudações militares:
A saudação militar tem sempre de ser prestada completa‑
Um médico do Estado­‑Maior: (Abre a porta.) Ah, cá estão eles mente em sentido, assumindo­‑se a posição determinada; a
todos em alegre companhia, os senhores que não querem dar o saudação tem de ser prestada a todos os superiores e mais gra‑
corpo ao manifesto. (Alguns doentes ficam em grande agitação duados quando estes se encontrem a não menos de 30 passos
nervosa.) Ora, ora, não é preciso fazer escândalo. Vamos já resol‑ do subordinado ou menos graduado. Deve fazer­‑se erguendo
ver tudo… um momentinho! (Para um médico.) Então como com naturalidade o braço direito na direcção da cabeça, com
é? Onde é que pára hoje o aparelho de alta tensão? Rápido, a a palma da mão virada de tal forma contra o rosto à altura do
ver se detectamos os simuladores e os refractários. (Os médicos olho direito que as pontas dos dedos fechados toquem na pala
aproximam­‑se de algumas camas com os aparelhos. Os doentes do resguardo da cabeça (no caso de gorros sem pala, na orla do
ficam com convulsões.) Aquele além é um caso especialmente gorro). Quando do encontro com o destinatário da saudação,
suspeito, o número cinco! (O doente começa a gritar.) Só há ou se este passar pelo que deve efectuá­‑la, a saudação deve ser
um remédio para isto, só se administra em casos extremos. prestada de maneira a estar feita três passos antes do encontro
Ala para o fogo de barragem! Pois é, o ideal seria pôr todos os com o seu destinatário e acaba quando este se tiver afastado
doentes dos nervos num único vagão blindado e expô­‑los a três passos. Se o soldado trouxer alguma coisa na mão direita,
um belo fogo de barragem. Assim esqueciam as suas penas e fará a continência com a esquerda, se tiver alguma coisa em
tornavam­‑se outra vez soldados aptos para o serviço na linha ambas as mãos, presta a saudação com um movimento marcial
da frente! Já vos passarão as neuroses nervosas! (Fecha a porta da cabeça. Isto aplica­‑se a todas as outras ocasiões em que seja
de repelão. Um doente morre. Entra o comandante, o tenente­ preciso fazer a continência. Ao encontrar um superior ou mais
‑coronel Vinzenz Demmer, barão de Drahtverhau.) graduado, o soldado deve evitar passar a menos de um passo
Demmer von Drahtverhau: Ah, hoje, para variar, a continên‑ dele. Estão estritamente proibidas outras modalidades habi‑
cia é outra vez abandalhada! Pois é, os cavalheiros aqui na reta‑ tuais de saudação, como, por exemplo, levantar a mão direita
guarda aninham­‑se nas camas. Mas é justamente a este pro‑ com a palma virada para fora, para a direita, com os dedos
pósito que vim hoje ver­‑vos. Ó senhor médico do regimento, abertos e tocar a pala com o indicador, às vezes diante do nariz,
veja se põe essa gente mais arrebitada para eles ouvirem, tenho fazer continência com o cigarro ou o charuto (ou o cachimbo
um anúncio importante e exemplar a fazer. Trata­‑se das novas curto conhecido por aquece­‑narizes) na mão erguida para sau‑
disposições sobre a continência, mas não por causa da con‑ dar ou, ainda pior, na boca, e ainda fazer a continência no exte‑
tinência aqui no hospital, mas pra quando o pessoal estiver rior de cabeça descoberta, com o boné na mão, fazendo uma
626 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 627
vénia. Os soldados que não façam continência de acordo com com choques eléctricos, o deixou em condições de ficar apto
o regulamento ou que – seja por que motivo for – não a façam para o serviço sem armas. Ou o Dr. Zwickler! É um homem
de todo, ficam sujeitos a penas severas; os soldados de licença ambicioso, como se sabe, é dele a ideia de aplicar corrente
serão enviados para a frente junto com a competente denúncia farádica nos genitais, o que ele quer é conseguir o máximo de
ao comando de que dependem.” êxitos possível, de forma rápida, e consegue! Que lhe sirva de
Atão não se esqueçam, quem não erguer com naturalidade o exemplo! Agora o que é preciso é dar o litro! Os alemães têm a
braço direito na direcção da cabeça, com a palma da mão virada corrente senoidal… a gente somos uns autênticos cordeirinhos!
de tal forma contra o rosto à altura do olho direito que as pontas Humanidade pra aqui, humanidade pra ali, tudo isso é muito
dos dedos fechados toquem na pala do resguardo da cabeça bonito, mas como é que rima com patriotismo? Agora estamos
(no caso de gorros sem pala, na orla do gorro), pode ser obri‑ em guerra e o dever supremo da classe médica é ir à frente a
gado a fazê­‑lo! Isto que sirva de exemplo! No que respeita às dar o exemplo e ir preenchendo as necessidades de material
outras disposições sobre a continência, nomeadamente as que humano. O médico­‑chefe queixa­‑se de que o senhor dá prio‑
são válidas para o hospital enquanto por aqui estiverdes deita‑ ridade ao ponto de vista clínico. Ele tentou fazer­‑lhe entender
dos, tendes que dar o exemplo e não preciso de vos recomendar de maneira colegial que o lugar de alguém que foi declarado
expressamente que, independentemente das vossas honoráveis inapto para o serviço é nas trincheiras e diz que consigo é tudo
doenças, tendes de fazer a continência de acordo com o regu‑ sempre um bico­‑de­‑obra. Só lhe pergunto uma coisa… será que
lamento sempre que aqui entre um superior. Agora não tendes lhe apetece ser mandado para um hospital para doentes de tifo
gorros, mas cada qual tem uma fronte e, assim, não lhe será na Albânia? Do ponto de vista clínico, o senhor pode ter razão,
difícil levar a mão até à fronte, se tiver mão, entendido? Ora tanto me dá – como o outro dia, quando se pôs com coisas por‑
bem… olhar à direita! Olhe lá, mas que é que se passa ali… o que o tipo é tuberculoso e pai de família e etc. e tal – mas aqui a
da cama cinco… quer­‑me parecer que está ansioso por voltar única coisa que conta é o ponto de vista militar! Quem assume
prò batalhão… (O médico do regimento comunica­‑lhe alguma a responsabilidade somos nós! Ou o doente dos rins – foi um
coisa.) Ah, bem… pois… cá por mim… mas em geral… bem, gozo pegado – não tem nada que levar isso a peito! O homem
que da próxima vez esteja tudo em ordem! Ó senhor médico do que dispare os seus 50 tiros e a seguir que espiche à vontade!
regimento, veja lá se me põe esta gente daqui pra fora! Assim O serviço de Sua Majestade exige que todos os que possam andar
como assim, o senhor não tem a ficha limpa lá em cima… não não continuem para aqui deitados mais tempo do que o estri‑
me venha cá com histórias e não leve a humanidade longe de tamente necessário… guarde os escrúpulos para quando vier a
mais! Um médico patriota tem que ser um fornecedor da linha paz! Enquanto a pátria estiver em perigo, todos têm que perma‑
da frente. Ponha os olhos no Dr. Zwangler, que enfiou um trapo necer no seu posto, como é o meu caso, e não aceito distinções,
na boca dum soldado com tremuras e, com dois tratamentos com mil raios!… Agora os sargentos vão exercitar convosco a
628 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 629
continência e livrai­‑vos de me chegar alguma coisa aos ouvi‑ O Optimista: O senhor acha que na Albânia não há mais nada?
dos… de mim até agora nunca ninguém teve razão de queixa… O Eterno Descontente: Oh, sim, também há febre tifóide.
pois se em vez de mim fosse o Medinger von Minenfeld a man‑ O Optimista: Lá em baixo, porém…
dar aqui ou o Gruber von Grünkreuz,47 Jesus, Senhor! O que é O Eterno Descontente: …tudo é medonho.48
que quereis mais? Tendes que comer, sopas, legumes secos do O Optimista: A Albânia servia­‑nos sobretudo como…
melhor e uma chaveninha de chá pra rematar, inda ninguém se O Eterno Descontente: …colónia penal. “Mandem­‑nos para a
queixou. Pois é, o tempo custa­‑vos a passar até chegar a altura Albânia” era um agravamento da honra de morrer pela pátria.
de irdes outra vez para a frente pra vos baterdes como homens. O Optimista: Se avançarmos para a Albânia, uma coisa é certa…
Mas fazer­‑vos treinar a continência é justamente pra isso! O Eterno Descontente: A morte.
E aqueles a quem está vedado, que já não podem ir para a frente O Optimista: Entre as nossas tropas na Albânia, e basta o nome
pra se baterem como homens, pela pátria, esses a pátria cuida de Pfalzer­‑Baltin para o afiançar, reinava…
deles de maneira exemplar. Seis cêntimos por dia, sem ter de O Eterno Descontente: …a morte em massa.
trabalhar, achais pouco? Pois, e quem se porta como deve ser O Optimista: É sabido que tínhamos interesses políticos ponde‑
recebe mesmo uma prótese e depois, se der um bom exemplo, rosos na Albânia e, além disso…
é reincorporado na sua unidade de reserva. A gente somos uns O Eterno Descontente: …barracões infestados de percevejos.
autênticos cordeirinhos… tendes muita sorte em não estarmos O Optimista: Mas os nossos oficiais estacionados em Skutari parece
na Alemanha, senão eu tinha que vos mandar estar deitados que estavam muito bem instalados e eram conhecidos por…
em sentido. Fazer um bocado de continência antes de marchar O Eterno Descontente: …passarem a vida nos bordéis.
outra vez para a frente nunca fez mal a ninguém. Bem… e basta O Optimista: No que respeita às condições sanitárias na Albânia,
por hoje! (Sai.) que o senhor descreve em tons tão sombrios, ouvi dizer, pelo
(Ao pé de uma cama, o sargento faz exercitar a continência. contrário, que os hospitais de campanha estavam vazios.
Ao pé de uma outra, está ocupado o capelão.) O Eterno Descontente: Porque se deixava morrer os doentes
(Muda a cena.) de malária sem tratamento.
O Optimista: Pelo contrário, o chefe dos serviços de saúde da
CENA 42 divisão da Albânia opôs­‑se…
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. O Eterno Descontente: …a que os doentes fossem evacuados
no Verão.
O Optimista: A conhecida pergunta “que queremos nós da O Optimista: Mas, em compensação, ele era conhecido por…
Albânia?”… O Eterno Descontente: …mandar fuzilar os soldados sãos
O Eterno Descontente: …posso responder­‑lha. A malária. sem julgamento por roubarem latas de conserva.
630 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 631
O Optimista: Seja como for, providenciou­‑se… O Optimista: Como assim?
O Eterno Descontente: …o estabelecimento de um cinema de O Eterno Descontente: Desde Belgrado que a necessidade
campanha para os oficiais. sentida pelos generais austríacos de, além da sua própria estu‑
O Optimista: A evacuação dos doentes de que o senhor está a pidez criminosa, depositarem ainda aos pés de Sua Majestade
falar foi efectivamente realizada, é certo que apenas… uma cidade da qual vão ser de novo obrigados a sair no dia
O Eterno Descontente: …durante a fuga. seguinte tem tido lá em baixo excelentes oportunidades de se
O Optimista: Quer dizer, a retirada estratégica. No que respeita manifestar.
aos meios de transporte utilizados nessa operação, é certo que O Optimista: O senhor parece desconhecer que essas ocasiões
era difícil não reparar nas massas enormes de doentes… são ao mesmo tempo um incitamento e uma recompensa
O Eterno Descontente: …que até aí não existiam. pelo espírito de sacrifício dos combatentes da linha da frente.
O Optimista: Como os poucos navios­‑hospital não eram sufi‑ Mesmo se, no desenrolar de um acontecimento como esse, que
cientes para a evacuação, recorreu­‑se a automóveis… no calendário da pátria está assinalado a vermelho, porventura
O Eterno Descontente: …para transportar a cambulhada dos faltaram meios de transporte, postos de socorro, víveres e alo‑
oficiais. jamentos – guerra é guerra, não pode negar­‑se…
O Optimista: Mas a que é que se está a referir? O Eterno Descontente: …que o aprovisionamento pessoal do
O Eterno Descontente: Aos móveis roubados. comandante do exército se compunha de 25 carroças, sob a
O Optimista: Ah, bem. Os soldados doentes, é certo… responsabilidade de um capitão.
O Eterno Descontente: …foram obrigados a marchar pelo O Optimista: Como é que se sabe isso?
meio da sujidade e da lama. O Eterno Descontente: Pelo diário de um médico que, na
O Optimista: No entanto, era­‑lhes permitido… Albânia, onde não havia um único homem são, não conseguiu
O Eterno Descontente: …ficar deitados na berma da estrada, arranjar doentes para o seu hospital.
à procura de um descanso mais prolongado. O Optimista: A situação não deve ter sido assim tão má, se ele
O Optimista: Isto aconteceu em casos excepcionais, sem que… próprio conseguiu escapar. Mas como é que ele regressou?
O Eterno Descontente: …tivesse ocorrido o aniversário do O Eterno Descontente: Cheio de febre, num camião, empo‑
imperador ou um jubileu comemorativo da subida ao trono. leirado no caixote que continha o piano da messe do batalhão,
Porque a retirada de um exército austríaco, especialmente o roubado em…
horror albanês de uma morte em agonia, multiplicada por mil, O Optimista: Bem, embora também eu tenha infelizmente de
no meio da fome e da lama, costuma estar normalmente asso‑ admitir que a pergunta sobre o que queremos da Albânia foi
ciada a uma data dinástica; como se esse horror não o fosse já respondida pelos acontecimentos num sentido bastante nega‑
em si mesmo. tivo, apesar de ser incontestável que temos na Albânia interesses
632 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 633
políticos ponderosos, o senhor não deveria esquecer­‑se de que teve de lutar e de sofrer. Nos dias soalheiros da reconquista
a última coisa que restou ao oficial do Estado­‑Maior foi…49 de Lemberg, a semente pôde desabrochar livremente. O sen‑
O Eterno Descontente: O piano! timento de uma gratidão infinita pelos heróicos combatentes,
(Muda a cena.) a consciência de, depois de pesadas perdas, ser estritamente
necessário fazer contas a cada soldado, deram o ensejo de agir
CENA 43 com todas as forças e com todos os meios para preservar a
Departamento de Imprensa Militar. saúde e a capacidade física de cada um. A seguir, o senhor
conta como é que debelámos a cólera. Estabeleceu­‑se em toda
Um capitão: (Para um dos jornalistas.) Doutorzinho, hoje não a parte um vínculo muito estreito entre o pensamento e a acção
me venha cá com tretas, hoje o senhor tem que escrever um higiénicos e a actividade médica. Mas agora! Agora vem o ser‑
artigo e peras, concretamente sobre “Considerações higiéni‑ viço de desinfecção! Cada soldado recebia um banho mais ou
cas”. Ora bem, tome lá nota das linhas gerais. (Lê.) menos de quatro em quatro semanas, não, sabe que mais, de
“A campanha triunfal na Galícia e a conquista de Lemberg duas em duas semanas. O trabalho fazia­‑se em toda a parte
foram determinantes para o desenvolvimento da higiene no de forma sistemática. A desinfecção era uma profilaxia con‑
nosso exército.” Mas que é que está pr’aí a olhar! tra as doenças infecciosas transmissíveis por contacto. Fan‑
O jornalista: Mas então Lemberg já está outra vez ainda na tástico, não? A ideia foi de um médico do Estado­‑Maior! Ele
nossa posse? percebe da poda! O banho regular, muitas vezes condimen‑
O capitão: A maneira de desenvolver o tema é lá consigo. tado com sessões de cinema, tinha um grande efeito espiritual
Enquanto durava o duro prélio nos Cárpatos, havia, natural‑ sobre as tropas, aumentava a sua capacidade e o seu desejo
mente, poucas possibilidades de uma organização minuciosa de servir. Um importante passo em frente para a preservação
do trabalho no campo da higiene. Sob o peso esmagador da do soldado. Estou só a dar­‑lhe as linhas gerais, o resto é con‑
situação geral, não se podia dar a importância desejada à preo‑ sigo. Mas não se ficou parado. Com o tempo, a linha da frente
cupação com cada soldado. A palavra de ordem era: aguentar transformou­‑se numa casa de repouso. Muitas vezes ficavam
a todo o preço, sem consideração pelo soldado individual que, numa zona soalheira de floresta, podiam tomar banho ao ar
na linha da frente, só interessava enquanto combatia. Naquele livre e banhos de sol e estava planeado ampliar este programa
período difícil, não podia ser de outra maneira. O resultado também com aulas e música, biblioteca, desporto e teatro, o
era que estavam todos cheios de piolhos. Agora que o pior já que teria dado possibilidade de inculcar na alma do soldado,
passou, pode começar­‑se com a higiene de forma exemplar. que agora está tão sensível e receptiva, diversos problemas
Naqueles dias difíceis lançou­‑se a semente de uma acção importantes de higiene popular, um trabalho social elementar
generosa em prol da protecção do homem que tão duramente de preparação para o futuro. O projecto está ainda a aguardar
634 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 635
realização! Quando vierem tempos mais calmos, vai ser esse o postulado importante para a preservação do povo. A enorme
nosso primeiro trabalho. Este aspecto o senhor tem que o pôr gravidade da situação obriga a intervir energicamente em todo
devidamente em relevo. Vemos que uma parte das medidas o lado, com o máximo de imparcialidade e de rigor possível.
vai no sentido de proporcionar ao soldado da frente um sítio Entre as medidas para a preservação do soldado e, num sentido
onde se sinta como em casa. O contacto permanente, solícito e mais amplo, para a preservação do povo que foram tomadas
amistoso entre os oficiais, os médicos e os soldados prepara o sob a égide do nosso comandante do exército, Sua Excelência o
terreno para um desenvolvimento favorável. brigadeiro von Böhm­‑Ermolli, e que trazem também a marca
O jornalista: Das doenças infecciosas, meu capitão? das personalidades do nosso comandante dos serviços de sani‑
O capitão: Não se ponha com piadinhas. A relação estreita entre dade e do nosso quartel­‑mestre, inclui­‑se, para além das esta‑
oficiais, médicos e soldados não é um problema que porventura ções profilácticas e do hospital central com pessoal de primeira
esteja apenas à espera de realização. O médico já não é apenas classe e equipamento terapêutico, uma instituição através da
o “doutor”; para além da sua actividade puramente médica, ele qual vamos poder contribuir de modo especialmente persis‑
tem a missão de manter o soldado naquele equilíbrio físico e tente para a preservação do soldado e para o refortalecimento
psíquico que oferece a base duradoura da conquista das vitórias do povo, uma instituição que, nos dias soalheiros da reconquista
e da capacidade de sofrimento. Os internamentos por doença de Lemberg, produziu copiosos frutos: estabelecemos – e isto o
infecciosa são, desde há meses, simples casos isolados. Só as senhor pode escrever direitinho como lho estou a dizer e como
doenças venéreas é que continuam ainda a suscitar­‑nos preo‑ mo disse o médico­‑chefe – estabelecemos bordéis com material
cupações. (Risinhos.) O combate com êxito a estas doenças é, em estado impecável e sob o mais rigoroso controlo militar.
em todo o caso, o problema de maior magnitude com que nos (Muda a cena.)
deparámos até ao momento. E, no entanto, a aparente inani‑
dade da luta contra as doenças venéreas não pode levar­‑nos a CENA 44
pousar as mãos no regaço (Hilariedade.) Se considerarmos que, Grupo de Instrução do Exército de Wladimir­‑Wolinsky.
durante esta campanha, um número provavelmente já avultado
de soldados se contagiou com doenças venéreas, se considerar‑ Um capitão: (Dita para um secretário.) Comunique­‑se a todas
mos que, seja como for, a população sofreu directamente com a as tropas em três dias seguidos que as infecções venéreas serão
guerra a perda de tantos soldados que estavam em pleno vigor consideradas automutilações e serão objecto de procedimento
da idade, então é evidente que temos de combater por todos os judicial militar e, para dar força a esta disposição, providencie­
meios os danos causados pelas doenças venéreas. Ainda que o ‑se que os indivíduos doentes se apresentem sem excepção
trabalho realizado para a preservação do soldado já vá redun‑ ao comando de instrução militar. Relativamente aos casos de
dar em benefício do povo, o combate às doenças venéreas é um doença verificados ultimamente, que se provou terem sido
636 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO IV 637
induzidos de modo artificial ou provocados deliberadamente, Uma voz do meio do grupo: Bravo!
ordena­‑se que os indivíduos em questão sejam punidos com Dohna: Mais tarde, pude então neutralizar o Voltaire. Cru‑
castigo corporal; o castigo, que começará com cinco bastona‑ zei depois uns dez dias no Atlântico Norte, mas nos primei‑
das, será aumentado diariamente em uma bastonada e será ros três dias não consegui avistar mais nenhum navio; mais
aplicado até terem desaparecido os sintomas de doença. tarde, porém, pude destruir mais ou menos um vapor por dia.
O primeiro castigo será aplicado hoje, às duas horas da tarde, Os navios traziam todos carga valiosa, em parte material de
aos seguintes soldados. – Tem aqui a lista, copie­‑a. guerra; um deles trazia um carregamento de 1200 cavalos.
O encarregado da execução da sentença será o preboste, à dis‑ Um representante da imprensa: Cavalos mesmo a sério? Mil
posição de quem serão colocados dois homens robustos da e duzentos cavalos, senhor conde?
companhia técnica. Dohna: Mil e duzentos…! (Faz um gesto a indicar o afundamento.)
(Muda a cena.) Os representantes da imprensa: (Atropelando­‑se uns aos
outros.) Com mil raios!… Cavalos a sério!… Hurra!… Que
CENA 45 recorde garboso!… Elegante!
Em casa do conde Dohna­‑Schlodien.
Está rodeado por 12 representantes da imprensa.

Um representante da imprensa: Sentimo­‑nos felizes, senhor


conde, por recolher da boca de um dos nossos heróis mais
imorredouros uma descrição autêntica da gloriosa viagem
ao comando do Möwe, de que os nossos filhos e os filhos dos
nossos filhos irão falar ainda aos netos nos perenes anais da
história. (Põem os lápis em posição.)
Dohna: Meus senhores, eu sou um homem de acção e não sou
de muitas palavras. O essencial que há a registar é o seguinte.
Baseando­‑me nas notícias chegadas dos nossos serviços de
informação, tinha feito um plano bastante preciso para a
minha viagem. E a verdade é que, logo ao primeiro dia, tive a
sorte de avistar um grande vapor. Tratava­‑se, como já é conhe‑
cido, do vapor Voltaire. Deixei passar a noite antes de me apro‑
ximar do Voltaire.
ACTO V

CENA 1
Ao anoitecer. Esquina da Sirk. Está um tempo frio e húmido.
A chuva vem de baixo. O rebanho de carneiros olha fixamente
em silêncio. Os feridos e os mortos formam fileiras.

Voz de um ardina: Olhò Aabeeend, olhò Aachtuhrblaaad!


Um oficial: (Para três outros.) Ora viva Nowotny, ora viva
Pokorny, ora viva Powolny, olha lá… tu que sabes de política,
então que é que dizes da Bulgária?1
Segundo oficial: (De bengala.) Sabes, eu cá digo que o melhor
é não ligar!
O terceiro: Pois… pois é claro.
O quarto: É exactamente a minha opinião… ontem andei na
farra…! Vocês viram o desenho do Schönpflug? Granda pinta!
Voz de um ardina: Iniciativas de paz da Eenteeentee!
O terceiro: Isto hoje está muito morto.
O primeiro: Sabes, o Schlepitschka von Schlachtentreu disse
hoje no Ministério da Guerra que nos aproximamos do gigante
com passos de paz… não, quer dizer, que nos aproximamos da
paz com passos de gigante, olha lá, isso é verdade? Não será
optimismo?
O segundo: É mas é pessimismo.
O primeiro: Pessimismo. Sabes, ele disse que na Turquia há um
homem doente,2 depois é a nossa vez, mas olha lá, como é que
é isso?
O segundo: Ele está a referir­‑se é à situação e coisas assim.
O primeiro: Ah, bem.
640 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 641

O terceiro: Hoje não há gajas. (Dois cotos de pernas metidos num uniforme esfarrapado
O segundo: O Fallota vem hoje. atravessam­‑se no caminho.)
(Passam anciãos a marchar. Ouve­‑se cantar: “E de volta à pátria O segundo: Venham daí, isto está cheio de calaceiros! (Saem.)
amada nos iremos reencontrar…”) Voz de um ardina: Ediçããão especiaaaal…! Os milhões de bai‑
Poldi Fesch: (Para o acompanhante.) Amanhã vamos prà farra xas da Eenteentee!
com o Sascha Kolowrat… (Sai.) Uma voz sussurrante: Chega aqui, vou­‑te dizer uma coisa.
(Ouve­‑se a voz de um cocheiro: “Em tempo de guerra cobro 50 (Silêncio. De repente, um grito estrondeante como um ribombar
vezes mais!”) de trovão: “Vivaaaa!” Depois: “Sleezaaaak…!” O grito parece vir
O quarto: Vocês sabem como é que lá no Ministério da Guerra da zona da Ópera. Ouve­‑se a porta de um carro a fechar­‑se.
chamam ao Fallota? Pois chamam­‑lhe herói. Depois, silêncio.)
O primeiro: Como assim? (Muda a cena.)
O quarto: Ora, então não percebes, é que ele esteve na frente! Ele
diz que preferia lá estar. CENA 2
O primeiro: Pois então que não o retenham. Viver e deixar viver. O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
Não é assim?
(Entram Turi e Ludi.) O Eterno Descontente:
Turi: Olha lá, ó Ludi, o Rudi Nyári só actua no Lurion?3 (Saem.) “Meu Deus, quem pode dizer: pior é impossível?
Fallota: (Entra.) Ora vivam! Pior nunca estivemos
O primeiro: Ora viva, herói! E pode ainda piorar: não é inda o pior,
Todos: Ora viva, herói! Enquanto pode dizer­‑se: isto é o pior.”4
Fallota: Mas herói o quê? Vão espetar essa a outro! Crianças com caras como se tivessem já passado fome desde
Uma florista: Violetas! há uma geração… e nenhum fim à vista! Mas o pior está con‑
O quarto: Então, como é que as coisas correram? Estás contente? tido nesta notícia sobre um hospital psiquiátrico. Há um que
Vem contar prò Hopfner! está ali sentado com uma bata azul às riscas, expiando, com
O primeiro: Pois, pois, anda connosco, és um camaradão… melancolia incurável, a glória de Asiago,5 onde foi soterrado
O segundo: Então como é que te deste por lá? por um obus. Outro tem uma bala alojada na cabeça; para esca‑
Fallota: Foi giro. par às dores enlouquecedoras, teve de se tornar morfinómano.
O terceiro: (Absorto.) As putas praticamente desapareceram. À noite, berra desesperado pela enfermeira e, com a agitação,
O primeiro: Então tu, como é que vai isso? todos se põem a chorar. Há uma criança com uma doença no
Fallota: Vai­‑se andando. cérebro que grita – nasceu dois meses depois da morte de herói,
642 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 643
já esperada pela mãe grávida. Outra, cujos filhos regressaram comunicados do Estado­‑Maior tão importantes, dá, de todo o
sãos e salvos, não conseguiu esperar e enlouqueceu antes disso. modo, que pensar.
Mas quem pode dizer: pior é impossível? O Eterno Descontente: Mas como é que, nos dias em que
O Optimista: Pois, não se pode negar que a guerra interfere nas o jornal traz nas primeiras páginas comunicados do Estado­
condições de vida de todos. Quanto tempo é que acha que ‑Maior tão importantes, se pode ter olhos para um anúncio?
ainda vai durar? O Optimista: Ajuíze por si próprio.
O Eterno Descontente: Em qualquer caso, vamos dizer men‑ O Eterno Descontente: (Lê.)
tiras até ao último hausto de homens e cavalos. Se também “Meu borrachinho!
vamos combater, é outra questão. Parece que estamos a querer Gostas de mim? Muito? Quanto?
esquivar­‑nos à pressão alemã com um pouco de deslealdade Vou esperar até que escrevas ou venhas.
dos Nibelungos. Vamos vingar­‑nos da Alemanha, por ela não Mitzi.”
nos ter impedido de a impelirmos para a guerra, com um peda‑ Está a ver, ainda há amor nesta época. E tinha eu julgado que
cinho de traição. Mas quem não preferiria toda a vergonha da só lhe tinha crescido o ódio e, com ele, a fome. Mas no que toca
pátria à vergonha da humanidade com que esta se cobre a cada à estupidez, ela apenas surge mais clara nas dimensões que há
minuto em que a guerra continua! Por sorte, já não são as nos‑ muito lhe diagnostiquei. Quer ver o rosto austríaco? É verdade
sas vitórias a prolongá­‑la, mas as nossas derrotas a abreviá­‑la. que, por culpa própria, ele está subalimentado, mas espelha­‑se
Não lhe disse eu uma vez que a investida de Gorlice e o conse‑ espiritualmente na almôndega que este postal propõe como
quente prolongamento do prazo da derrocada iriam ser pagos encarnação ideal da fantasia vienense. É a minha vez de o pre‑
com milhões de vidas humanas? Isto outrora era um paradoxo, sentear, o texto é, provavelmente, daquele borrachinho.
mas agora a grande época confirma­‑o.6 O Optimista: (Lê.)
O Optimista: Bem, no que se refere à grandeza desta época, tenho “Se pudesse algo pedir,
que admitir eu próprio que, desde o ultimato à Sérvia, ela não Era fácil decidir!
cresceu significativamente. Neste ponto tem razão, quando diz Uma almôndega divina
que tudo nela é tão pequeno como o senhor sempre viu. Ou, De pão da massa mais fina!”
em vez disso, poderia dizer­‑se que uma grande época encon‑ O Eterno Descontente: Editora Treuland! Fala ao coração e
trou uma estirpe pequena.7 diz mais às pessoas do que “Só quem conhece a nostalgia”.8
O Eterno Descontente: É azar. Mas em que observações é que Em 1914, a população condenou­‑se a si própria a um roman‑
o senhor baseia a sua opinião? tismo do ideal da almôndega e eu poderia provar, segundo as
O Optimista: Não queria dizer­‑lhe, mas descobri hoje um anún‑ regras do tribunal universal, que a época que tornou possível
cio que, nos dias em que o jornal traz nas primeiras páginas um tal postal tem de ser a mesma cujo último bem efectivo
644 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 645
foi a bomba lançada de um avião. Se os poderosos, que, na CENA 4
verdade, são tão amaldiçoados por Deus que a única coisa que Ministério dos Negócios Estrangeiros.
têm é o poder, fossem capazes de entender este tipo de rela‑
ções, a guerra nunca teria sido começada ou já teria terminado Conde Leopold Franz Rudolf Ernest Vinzenz Innocenz
há muito. Maria: (Mira­‑se no espelho de bolso.) Estamos bem, esta‑
O Optimista: Por enquanto, não há perspectivas disso, agora mos. Se tivesse previsto isto, tinha-me manifestado contra
vem aí a quinta inspecção. o ultimato!
O Eterno Descontente: É que, se não fosse assim, o ser humano Barão Eduard Alois Josef Ottokar Ignazius Eusebius
poderia esquecer para que é que Deus o criou. Maria: Mas que é que tens?
O Optimista: Para quê? O conde: Estamos bem, estamos. Quando se quer fazer a guerra,
O Eterno Descontente: Para que se apresente perante a comis‑ era preciso ter previsto isso.
são de recrutamento. Estavam nus e não sentiam vergonha.9 O barão: Não estou a entender­‑te. Mas que é que queres mais?
(Muda a cena.) Acabo de ler que os teutões mandaram outra vez ao fundo
quatro mil toneladas e nós também não estivemos de braços
CENA 3 cruzados. Cinco.
Em frente ao Parlamento. O conde: Mil?
Alguns membros da Câmara Alta acabam de sair O barão: Toneladas!
do Parlamento e estão envolvidos num debate por baixo O conde: Vai contar essa a outro. Se a Suíça não nos safar…
da estátua de Pallas Athena. Parou um eléctrico de ambos O barão: O quê? Ainda tens esperança nos países neutrais?
os lados do qual pendem membros humanos. No meio de um O conde: Nunca esperei o correio com uma tal ansiedade. Estou
tumulto indescritível de insultos estridentes, pragas e sons a morrer de curiosidade.
inarticulados, é puxada do atrelado, através de um novelo O barão: Mas que é que se passa?
de mochilas, sacolas e corpos comprimidos uns contra os outros, O conde: Mas uma pessoa fica para aqui à espera, à espera…
através do curral de uma humanidade subalimentada, suja não se pode mesmo confiar no nosso pessoal de Berna! Santo
e andrajosa, uma mulher que acaba de desmaiar de fome. Deus, se não fosse indispensável aqui, metia­‑me no comboio e
a coisa resolvia­‑se. Ando com essa encasquetada. Está­‑se cons‑
Pattai: Não tiro nem uma vírgula à resposta que lhe dei… pode tantemente a encontrar handicaps. Bela coisa, esta guerra. Mas
mandá­‑la emoldurar, o Lammasch! Nós somos os vencedores garanto­‑te que isto agora vai mudar!
e não prescindimos dos louros! O barão: Tu foste sempre um optimista desenfreado. O que é que
(Muda a cena.) estás a imaginar que eles podem fazer em Berna?
646 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 647
O conde: Ora, mas eu mandei­‑lhes nota exacta de tudo! Mas não, O conde: Ora, não me lembres isso. O ultimato foi uma idiotice.
eles têm que jogar bridge o dia inteiro… e de noite, já se sabe Não podemos continuar a viver assim. Se a Suíça falhar desta
o que é que eles fazem. Aliás, também têm tempo para isso de vez, já não sei… estou desesperado! Vamos a ver se amanhã…
dia. bem, estou à espera do correio com mais ansiedade do que
O barão: Ora, ora, mas tu, assim de repente… Olha, se se manda nunca! (Mira­‑se no espelho de bolso.) Estamos bem, estamos.
para o estrangeiro gente que não é da sociedade, eles nem O barão: Mas, com mil diabos, de que é que estás à espera desta
sequer são capazes de garantir uma representação condigna. vez que é assim tão especial?
O conde: Deixa­‑me em paz… mendigar todas as semanas no O conde: Seu idiota… dum tubo de Colgate…!
Ministério da Guerra por um visto de saída sem restrições (Muda a cena.)
para um judeu, para que eles em Berna tenham quem depenar
ao bridge, pra isso já sirvo! E todas as garinas que tenho que CENA 5
ajudar a sair do país com as minhas cunhas! É o que te digo, Junto a Udine. Entram de dois lados diferentes dois generais,
desde que o Bubi é conselheiro da embaixada, já não serve pra cada qual num automóvel carregado até cima.
nada. Vais ver, quando o Bubi e o Affi vierem a Viena, já lhes
mostro como é que as coisas são. Vou­‑lhes dizer na cara, meus O primeiro general: Esta é a última viagem. Já não há mais
meninos, é o que lhes vou dizer, vocês são muito giros, mas a nada pra trazer.
questão é que, em caso de emergência, ninguém pode confiar O segundo general: Já não há mais nada pra trazer.
em vocês. É ridículo. Só nos faltava a guerra! Sabes que mais, O primeiro: Que pena, uma terra tão rica!
tenho umas ganas irresistíveis de mandar esta história toda às O segundo: Pois é, os alemães!
urtigas. O primeiro: Passaram­‑nos a perna outra vez.
O barão: Mas tu estás com esperanças nos países neutrais! O segundo: Pois é, os alemães!
O conde: Estou­‑te a dizer, os países neutrais são a pior desilusão. O primeiro: Lá práticos são, isso a gente tem que reconhecer,
A Holanda abandonou­‑nos completamente… mesmo que não queira. Têm oficiais de saque, está tudo orga‑
O barão: Não te estou a conhecer. É de morrer a rir. De todos nizado. Com transportes por grosso. Cá a gente tem que andar
nós, tu eras o que estava mais confiante. Desde o primeiro dia. a catar tudo aos bocadinhos.
Quando o Berchtold naquela altura nos disse: “Agora o exér‑ O segundo: A organização que eles têm! Mal chegaram a Udine,
cito tem o que queria!”… os teus olhos ainda brilharam mais dividiram­‑na logo em Udine S e Udine N. Em Udine S havia
do que os dele, por pouco não lhe davas um abraço. O ultimato seda, portanto, ficou pròs alemães.
é de trás da orelha, não dizias outra coisa… faz carradas de O primeiro: Em Udine N não havia nicles. Portanto, ficou pra
sentido… Então não te lembras? nós.
648 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 649
O segundo: E é claro que a gente não está autorizada a atravessar CENA 6
a linha de demarcação. A retaguarda em Fourmies.
O primeiro: Que pena.
O segundo: Que pena. O soldado territorial Lüdecke: Bem, mesmo que os derro‑
O primeiro: Os comerciantes de seda alemães chegaram antes da tistas venham dos dois lados, da frente e do interior do país, nós
nossa vanguarda. na retaguarda não vamos deixar que nos dêem cabo da guerra!
O segundo: E os oficiais de saque alemães são mais lestos do Aqui vamos bebendo e fornicando sem quebrantos, não há nada
que a tuberculose galopante na nossa terra. É de se lhes tirar que aponte para uma paz de renúncia. O príncipe­‑herdeiro tem
o chapéu! um autêntico harém, que teve há pouco um acrescento de pri‑
O primeiro: Pois, mas os nossos inda conseguiram apanhar meira, e os pais, que não estavam pelos ajustes, mandou deportá­
vinho. Até hoje inda não desapareceu. ‑los sem mais. A ocidente, as coisas vão resolver­‑se. E afinal que
O segundo: Em compensação, desapareceram os nossos no é que o interior do país quer? Caramba, nós mandámos para lá o
vinho. Foi uma autêntica morte à russa. que podemos. Ouvi dizer que nos armazéns Wertheim já está à
O primeiro: Conseguiste alguma coisa? Umas coisinhas sem venda o espólio de guerra de Lille. Tenho que escrever para casa
dono? a contar como nos estamos a desenrascar bem aqui. (Escreve.)
O segundo: Nã, não tenho grande coisa, assim umas lembrança‑ 8 de Maio. Caro amigo: fui destacado para o serviço de requisi‑
zinhas da frente, quer dizer, tudo o que não estava bem preso. ções da retaguarda em Fourmies. Tiramos à população francesa
O primeiro: Hoje requisitei três tapetes, 30 quilos de arroz, um todo o chumbo, latão, cobre, cortiça, óleo, etc., lustres, fogões,
bocado de carne, dois sacos de café, três almofadas de porta e tudo o que chega de longe ou de perto marcha para a Alema‑
e quatro retratos de santos, bem pintados, tirados do natural. nha. Muitas vezes é bem desagradável tirar às mulheres jovens
O segundo: Hoje tenho um gramofone, 20 quilos de macarrão, as prendas de casamento, mas a necessidade da guerra a isso nos
um bocado de cobre, cinco quilos de queijo, duas dúzias de obriga. Junto com um dos meus camaradas, fiz recentemente
latas de sardinhas e alguns quadrinhos a óleo! Adeusinho. uma bela presa. Num quarto tapado com um tapume encontrá‑
(Arranca.) mos 15 instrumentos musicais de cobre, uma orquestra inteira,
O primeiro: Adeusinho. – Estou a ver um soldado de infanta‑ uma bicicleta novinha em folha, 150 lençóis e toalhas e seis lus‑
ria nosso ali no campo a apanhar uma maçaroca de milho! tres de cobre com um peso, só eles, de 25 quilogramas; além
Alto aí, com que então a roubar? (Desce do carro e dá­‑lhe uma disso, ainda uma quantidade de outros objectos. Podes imaginar
bofetada.) a raiva da velha bruxa que era dona das coisas; fartei­‑me de rir.
(Muda a cena.) Tudo junto tinha um valor de mais de dez mil marcos. Alguns
fardos de lã e muitos outros objectos. O comandante ficou muito
650 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 651
satisfeito e até falou em recebermos uma recompensa. Talvez a Um descontente: Quero pôr à consideração desta distinta assem‑
Cruz de Ferro, ainda por cima. Além disso, há aqui umas rapa‑ bleia uma única coisa. O ministro das Finanças tentou recente‑
riguinhas que dá gosto desvirgar. Saudações do… mente disfarçar os danos que a guerra provoca no moral da nação
(Muda a cena.) apontando para as brilhantes vitórias do nosso exército. Mas na
Bíblia está escrito: o que seria dele, se ganhasse o mundo inteiro,
CENA 7 mas perdesse a alma! A perspectiva da cultura moderna é conso‑
Circo Busch, comício de massas por uma paz alemã. nante com esta perspectiva da Bíblia, no sentido em que a disso‑
lução moral do corpo da nação pela fraude, o roubo e a mentira
Pastor Brüstlein: (De braço estendido.) A ocidente: Longwy jamais poderá ser encoberta pelo brilho da glória das armas. Gran‑
e Briey! E a costa da Flandres não será devolvida! (Aplauso des instituições do Estado como os correios transformaram­‑se em
ensurdecedor.) A leste, a consabida linha fortificada, que nunca cavernas de ladrões, camadas inteiras da sociedade foram arremes‑
mais deve poder ameaçar a Prússia Oriental, tem de ficar nas sadas para um abismo sem fundo, tudo pela cobiça insaciável do
nossas mãos seja de que maneira for! (Intenso aplauso.) A Cur‑ ganho… (Gritos: “Fora com ele!” O orador é expulso da sala.)
lândia e um pedaço da Lituânia não serão devolvidos! (Aplauso Professor Puppe: Meus caros presentes! Serei breve, porque as
estrondoso.) Associadas à Curlândia estão a Livónia e a Estó‑ directrizes de uma paz alemã estão tão claras diante dos nossos
nia. (Com a mão direita estendida.) Lá tremula a bandeira a olhos que podemos tocar­‑lhes com as mãos. (Faz isso mesmo.)
pedir socorro! O nosso dever é prestar ajuda. Uma reconciliação a bem com a França é impossível. (Gritos:
(Gritos: “Hurra! Hurra! Hurra!” O orador abandona a tribuna. “Impossível!”) Temos que reduzir a França à impotência de tal
A assembleia entoa o cântico “Castelo Forte é o Nosso Deus”.) maneira que ela nunca mais possa atacar­‑nos! (Aplauso ensur‑
Redactor­‑em­‑chefe Maschke: Caros compatriotas! Serei decedor.) Para tal, é necessário fazer avançar a nossa fronteira
breve. Apenas tenho a apresentar uma exigência que nos ocidental, as jazidas de ferro do Norte da França têm de ficar
serve a todos de inspiração: fora com a consciência universal! nas nossas mãos! (Intenso aplauso.) A antiga Bélgica nunca
(Hurras.) Fora com o espírito da fraternidade universal! Que mais deve ser deixada em liberdade, nos planos militar, político
o nosso senhor e guia seja tão­‑somente o espírito de poder e económico. Além disso, precisamos de um grande império
alemão! A sua palavra de ordem é: mais poder! Mais poder colonial em África! (Aplauso ensurdecedor.) Para garantir este
alemão! Quem deixa que a sua consciência universal ou o seu império, precisamos de bases para a nossa marinha! Uma con‑
sentido de responsabilidade perante a humanidade o faça dizer dição indispensável é a expulsão da Inglaterra do Mediterrâ‑
ou escrever uma coisa diferente do que é exigido pela língua neo, de Gibraltar, Malta, Chipre, Egipto e das suas novas con‑
dominadora do gládio alemão, esse é e será um mísero sonha‑ quistas no Mediterrâneo! (Gritos: “Deus castigue a Inglaterra!”)
dor político, um abstruso lunático! (Aplauso ensurdecedor.) A tudo isso há, evidentemente, que adicionar uma indemnização
652 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 653
de guerra… (violentos aplausos) nomeadamente, obrigando cavaleiro obrigou o ginete a fazer uma inversão de marcha com‑
os inimigos a pôr à nossa disposição uma parte considerá‑ pleta. O animal aproximou­‑se do cruzamento a galope, puxando
vel da sua frota mercante, e a fornecer­‑nos ouro, alimentos e a tipóia, que balançava. A aventura ainda poderia ter acabado
matérias­‑primas. (Gritos: “Hurra!”) Além disso… mal se, no cruzamento, um polícia não tivesse agarrado o cavalo
(Muda a cena.) pelas rédeas, fazendo­‑o parar. O polícia puxou o cavaleiro de
novo para o chão. Cocheiro e passageiras respiraram de alívio.
CENA 8 À volta da tipóia juntou­‑se de imediato uma grande multidão.
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. O jovem, que sofre manifestamente de perturbações mentais, foi
levado para tratamento psiquiátrico.”
O Optimista: O que é que está aí a ler? O Optimista: E então? Uma ninharia das páginas locais. Porque é
O Eterno Descontente: Ora ouça. “Um louco montado no que o senhor se ocupa com uma coisa assim? Neste momento,
cavalo da tipóia. Ontem, ao fim da tarde, no cruzamento da há temas seguramente bem mais importantes. Harden…
Alserstraße e da Landesgerichtsstraße, uma emocionante cena O Eterno Descontente: O mais urgente, porém, é a questão
de rua provocou grande agitação entre os muitos transeuntes de saber quando é que chega finalmente o polícia. Quando é
durante um dilatado período de tempo. Cerca das sete e meia, preciso, é claro que nunca há nenhum!
uma tipóia com duas senhoras como passageiras e a respectiva O Optimista: Pois, mas porque é que isso o põe nervoso? Um
bagagem, acondicionada na boleia, vinha pela Universitätsstraße contratempo banal!
em direcção à Alserstraße. Quando, em velocidade reduzida, se O Eterno Descontente: O que eu lhe digo é que nesses aciden‑
dirigia para o cruzamento da Alserstraße e da Landesgerichts­ tes locais não há salvação. O estranho cavaleiro não sai de cima
straße, um jovem com uniforme de infantaria saiu para a rua da montada. A não ser que… chegue o policeman!10
em passo de corrida e lançou­‑se contra o cavalo que puxava a O Optimista: Não consigo entendê­‑lo. O senhor é o protótipo
tipóia; agarrou­‑o pelas rédeas para o obrigar a parar. O cocheiro do rezingão vienense. A política mundial é mais importante.
ficou surpreendido, as duas passageiras ficaram assustadas. O Eterno Descontente: Mas não é o caminho mais directo
O cocheiro bateu com o chicote no cavalo para o lançar num trote para chegar ao fundo das coisas. Coisas como a política mun‑
mais rápido e escapar ao jovem; o cavalo pôs­‑se a andar mais dial estão demasiado longe das minhas preocupações. Quando
depressa, mas, nessa altura, o jovem saltou de novo para junto muito, estou interessado no Japão.
do ginete e lançou­‑se para cima dele. Apenas com a mão, impeliu O Optimista: É muito significativo o que está mais perto das suas
o pobre animal a trotar ainda mais depressa, gritando ao mesmo preocupações. E porquê o Japão?
tempo repetidos hurras. Nesse momento, já o cocheiro tinha O Eterno Descontente: Olhe aqui… ouça… “A convenção mili‑
perdido completamente o controlo sobre o cavalo e o estranho tar sino­‑japonesa. Domínio total do Japão na China. De acordo
654 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 655
com a Shanghai Gazette, as cláusulas secretas da convenção militar vai realizar­‑se a ampliação e aprofundamento da aliança.
recém­‑assinada entre o Japão e a China têm o seguinte teor: a polí‑ O Assinante: Certamente que o desejo dos Estados­‑Maiores de
cia chinesa será reorganizada pelo Japão. O Japão assume a direc‑ ambos os lados será ampliar e aprofundar a vantagem que a
ção de todos os arsenais e estaleiros chineses. O Japão terá o direito Monarquia e a Alemanha detêm graças ao princípio a que,
de extrair ferro e carvão em todas as partes da China. O Japão terá nesta guerra, se chamou ombro com ombro.
todos os privilégios na Mongólia exterior e interior, assim como na O Patriota: Tem informações de fonte segura?
Manchúria. Finalmente, é tomado um conjunto de medidas que O Assinante: Tudo o que lhe posso dizer é que temos de nos
submete o sistema financeiro e alimentar da China à influência manter fiéis à aliança defensiva e limitarmo­‑nos a criar novas
japonesa.” – Oh, sim, eu interesso­‑me pela política mundial! condições para a ampliação e aprofundamento desta aliança.
O Optimista: Pois, mas que é que nós temos que ver com o Japão? O Patriota: (Depois de uma pausa.) Que é que me diz à amplia‑
O senhor acha que as relações entre o Japão e a China se têm… ção e aprofundamento da aliança com a Alemanha?
O Eterno Descontente: …ampliado e aprofundado! O Assinante: A situação criada pelos Impérios Centrais tem de
(Muda a cena.) se converter numa regra para o futuro através da sua amplia‑
ção e aprofundamento.
CENA 9 O Patriota: Basta ir seguindo a evolução da guerra para perce‑
Esplanada em Ischl. O Assinante e o Patriota em conversa. ber porque é que a ampliação e aprofundamento da aliança se
tornou inevitável.
O Patriota: Em total acordo, tomou­‑se a decisão de ampliar e O Assinante: A unidade das Potências Centrais na frente é uma
aprofundar as actuais relações de aliança. razão suficiente para o aprofundamento militar da aliança.
O Assinante: Numa palavra: ampliação e aprofundamento da aliança. O Patriota: Ora, e a ampliação?
O Patriota: Daí resultando um acordo total sobre todas estas O Assinante: O plano de retirar às Potências Centrais as matérias­
questões e a decisão de ampliar e aprofundar as actuais rela‑ ‑primas mesmo depois da guerra tem resposta na notícia sobre
ções de aliança. a ampliação económica da aliança. A ampliação da aliança
O Assinante: Numa palavra: ampliação e aprofundamento das com a Alemanha de um ponto de vista económico…
actuais relações de aliança. O Patriota: A ampliação e aprofundamento da aliança entre
O Patriota: Sob que forma vai realizar­‑se a ampliação e aprofun‑ a Monarquia e a Alemanha está relacionada com a questão
damento da aliança não foi ainda comunicado hoje. polaca. Mas aparecem por aí notícias sobre falsas iniciativas de
O Assinante: A guerra, no entanto, tornou necessária a amplia‑ paz alemãs. Qual é que é a verdade?
ção e aprofundamento da aliança. O Assinante: A verdade é a ampliação e aprofundamento da
O Patriota: No comunicado oficial, não se indica em que direcção aliança entre a Monarquia e a Alemanha. Sou eu que lho digo!
656 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 657
O Patriota: Tirou­‑me as palavras da boca! O senhor parece estar O Patriota: É de supor que agora também se irão iniciar as con‑
a aludir à comunicação oficial de que, aquando do encontro versações sobre os acordos a alcançar no sentido da ampliação
dos imperadores no grande quartel­‑general alemão, se deci‑ e aprofundamento da aliança. No que se refere em especial à
diu a ampliação e aprofundamento da aliança existente entre a ampliação da aliança económica com a Alemanha, ainda agora…
Alemanha e a Áustria­‑Hungria. O Assinante: Por isso há um interesse especial em ouvir o que este
O Assinante: Sabe qual vai ser a consequência? O mundo vai ter membro destacado do governo de Wekerle diz sobre as decisões
de contar com que a Inglaterra, com os seus 400 milhões de relativas à ampliação da aliança económica com a Alemanha.
habitantes, vá ampliar e aprofundar as relações com os Estados O Patriota: Esse? Ora, ele sempre aspirou a um aprofundamento
Unidos, para aumentar a sua superioridade no abastecimento das relações económicas!
de matérias­‑primas. Imitam­‑nos em tudo. O Assinante: O mundo ouviu a proclamação de que se tomou a
O Patriota: Evidentemente. Que influência é que poderiam ter as decisão de ampliar e aprofundar a aliança.
notícias sobre a ampliação e aprofundamento da aliança sobre a O Patriota: Depois da guerra, a Monarquia e a Alemanha vão
política da Entente? Os efeitos vão ser provavelmente duradouros. sentir a necessidade do aprofundamento da aliança.
O Assinante: Justifica­‑se a conclusão de que o objectivo essen‑ O Assinante: Não há volta a dar­‑lhe, só poderá haver segurança
cial da ampliação e aprofundamento foi reconhecido correcta‑ se a aliança for ampliada e aprofundada.
mente pela opinião pública. O Patriota: Sim, mas… o orçamento, os empréstimos e os
O Patriota: Não me diga! Tenho a forte impressão de que nesta impostos não podem esperar até que a aliança com a Alema‑
última hora do encontro entre os monarcas todas as testemu‑ nha tenha sido ampliada do ponto de vista político, militar e
nhas deste acontecimento histórico sentiram que a aliança económico.
entre as duas Potências Centrais foi aprofundada no mais ver‑ O Assinante: A verdade é que, comentando o aprofundamento
dadeiro sentido do termo. Nomeadamente, os fundamentos de da aliança das Potências Centrais, ele declarou…
um aprofundamento substancial… O Patriota: Está a referir­‑se a Friedjung. Mas Friedjung, pelo
O Assinante: A propósito, a ampliação da Universidade Técnica… contrário, terminou com um triplo viva e eljen11 à ampliação
O Patriota: Com a ampliação da aliança, a questão polaca… da aliança de ambas as Potências Centrais com a Turquia!
O Assinante: Com a ampliação da aliança, a Entente… O Assinante: Ora, e então o aprofundamento? A questão princi‑
O Patriota: Nessas circunstâncias, a ampliação e aprofunda‑ pal tinha que ver com o aprofundamento da aliança das Potên‑
mento da aliança não podia deixar de surpreender a Entente. cias Centrais.
O Assinante: Olha que admiração, na Bolsa a grande importân‑ O Patriota: Mas isso é uma coisa diferente! Do que se tratava
cia da ampliação e aprofundamento da aliança foi discutida em era da ampliação da aliança austro­‑húngara­‑alemã no plano
pormenor. Destacou­‑se em especial que o aprofundamento… militar.
658 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 659
O Assinante: Está bem, mas por isso mesmo o aprofundamento O Patriota: É possível. Para já, o que há são negociações que
da aliança também no plano militar é uma necessidade absoluta. partem da ideia de aprofundar as relações de aliança e, de
O Patriota: Só sei que, a respeito do aprofundamento da aliança, momento, essas negociações ainda estão em curso.
Wekerle e Tisza… O Assinante: Em compensação, as medidas de protecção estão
O Assinante: O certo é que uma das partes fez declarações que constantemente a ser ampliadas.
manifestavam reservas quanto a um aprofundamento da aliança. O Patriota: As medidas de protecção contra os roubos nos
O Patriota: A propósito, lembrei­‑me agora, que me diz à amplia‑ correios? Sei, sei! Mas de que é que serve? Justamente agora,
ção da vitória de Noyon?12 nesta era de ampliação e aprofundamento, é que os roubos nos
O Assinante: Olhe, o senhor viu no jornal o que diz Burian sobre caminhos­‑de­‑ferro assumiram tais proporções.
o aprofundamento da aliança? O Assinante: Uma ampliação das normas sobre o seguro das
O Patriota: Olhe, leu o que vinha a respeito das conversações em bagagens é hoje tanto mais urgente quanto…
Salzburgo sobre a ampliação da aliança? (Entra o velho Biach, sem fôlego.)
O Assinante: Ora, a única questão eram as ideias centrais sobre O velho Biach: Sabem o que aconteceu? Ampliada e
o aprofundamento económico da aliança! aprofundada!
O Patriota: O imperador alemão, porém, elogiou o hetman por O Assinante: Ora, mas isso não é novidade nenhuma!
ter já começado a dotar a Ucrânia de uma nova organização O velho Biach: Estou a dizer­‑lhes, a aliança foi ampliada e apro‑
estatal, ordenada e ampliada. fundada! Mas…
O Assinante: Mas olhe, na sequência disso, o hetman formulou O Patriota: Mas que é que se passa? Recomponha­‑se…
de imediato a esperança de que as relações entre o poderoso O velho Biach: Era só o que faltava…
Império Alemão e a Ucrânia se aprofundem cada vez mais! O Assinante: Mas que é que o senhor tem?
O Patriota: Isso é o que ele diz! Sabe, aprofundar acarreta riscos. O velho Biach: Santo Deus… não é assim tão simples…
Não leu a notícia de Berlim de que, segundo uma comunicação ouçam… é que já há interpretações! Já sabem da diferença
vinda de Haia que cita uma notícia de Londres, um telegrama entre a versão de Viena e a versão de Berlim? (Fora de si.) Um
de Turim informa que a Bolsa italiana está em baixa desde o exame atento do texto do comunicado publicado em Viena e
encontro dos imperadores alemão e austríaco e que se julga em Berlim revela uma diferença que salta aos olhos.
que os italianos estão muito desiludidos com a profundidade O Patriota: Como assim?
da aliança? O velho Biach: Sabem, ambos os comunicados são idênticos
O Assinante: E olhe que profundidade não lhe falta! Apesar nas frases, nas expressões e nas escassas informações…
disso, estou convicto, já que fala de Haia, que a instituição dos O Assinante: Ora está a ver!
tribunais arbitrais terá de ser muito ampliada depois da guerra. O velho Biach: …com uma única excepção. (Ofegante.) Em
660 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 661
Viena e Berlim conta­‑se… Em Viena e Berlim informa­‑se… nicado, não chamariam a atenção. Elas só chamam a atenção
Em Viena e Berlim comunica­‑se… Aí há uma identidade total porque num comunicado não vem nada sobre a fidelidade ao
nos conteúdos e na forma… vai ser recebido com satisfação. aprofundamento da aliança e, no outro, nada vem sobre a inter‑
É que nada pode ser mais importante do que o bloco de rocha… pretação idêntica e fidelíssima da aliança actual. Os comunica‑
nada pode consolidar tanto o sentimento de segurança… dos sobre o encontro dos imperadores costumam ser redigidos
O Patriota: Ora então, que é que quer mais? e ser facultados ao público de comum acordo. Sendo assim, o
O Assinante: Está a ver, onde é que está então a diferença… conde Burian esteve de acordo com as referências à interpreta‑
O senhor preocupa­‑se com cada coisa… ção idêntica e fidelíssima da aliança e o conde Hertling concor‑
O velho Biach: (Num paroxismo crescente.) De que é que tudo dou com a constatação de que os dois imperadores se mantêm
isso serve… o comunicado publicado em Viena diz que o fiéis às decisões tomadas em Maio no sentido do aprofunda‑
encontro dos imperadores permitiu constatar também “que mento da aliança. Ambos os homens de Estado se manifestam
os augustos monarcas se mantêm fiéis às decisões tomadas em ambos os comunicados e nenhum deles pode dizer nada
em Maio no sentido do aprofundamento da aliança”. O comu‑ sobre o encontro que não mereça a aprovação do outro.
nicado publicado em Berlim diz que o encontro “permitiu O Assinante: Com certeza.
constatar também uma interpretação idêntica e fidelíssima O velho Biach: Mas a diferença entre as duas versões de certeza
da aliança”. Se a frase sobre a fidelidade às decisões de Maio que, apesar disso, não deixa de ter fundamento. Reconhece­‑se
sobre o aprofundamento da aliança no comunicado de Viena a alusão ao facto de que a Monarquia, ao aprofundar a aliança
for correlacionada com a frase sobre a interpretação idêntica e de acordo com as decisões tomadas em Maio, pretende resol‑
fidelíssima do comunicado de Berlim, o resultado não é uma ver a questão polaca. O conde Burian já em Junho relacionou
contradição, mas apenas o facto de que em cada um dos comu‑ aquelas decisões com isto. Por isso é que, no comunicado de
nicados se fala de uma coisa diferente. Viena, se sublinha o aprofundamento da aliança. O comuni‑
O Assinante: Ora está a ver! cado de Berlim menciona a interpretação idêntica e fidelíssima
O velho Biach: A interpretação idêntica e fidelíssima da aliança da aliança actual. Não quer que a continuidade e os efeitos da
não pode estar em contradição com as decisões de Maio sobre aliança dependam minimamente das questões em aberto da
o aprofundamento da aliança e este seria impensável sem a ampliação e da solução austro­‑polaca.
interpretação idêntica e fidelíssima da aliança actual. O Assinante: Mas isso é claro, o aprofundamento pode ser inter‑
O Patriota: Evidentemente. pretado, mas a ampliação não pode ser aprofundada. Quer
O velho Biach: Mas o público alemão é informado de uma coisa dizer, não entendo porque é que o senhor está preocupado…
que o comunicado de Viena não diz e inversamente. Trata­‑se O velho Biach: Mesmo a interpretação fidelíssima da aliança,
de declarações que, justapostas e publicadas num único comu‑ como diz o comunicado de Berlim, é a mesma na Monarquia
662 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 663
e na Alemanha. O conde Burian quer o aprofundamento da O Assinante: Santo Deus… ele não está bem…
aliança e o conde Hertling também. (Começa a bater com os pés Os aquistas: (Aglomerando­‑se.) Que é que aconteceu? O Biach
no chão.) Mas o chanceler alemão quer a aliança actual, mesmo está indisposto…
que ela não possa ser aprofundada. A Monarquia partilha desta O Patriota: Não é nada… ele enervou­‑se…
opinião. As concepções básicas sobre a causa comum derivam O velho Biach: (Gemendo.) Tudo… debalde…. Não há…
de necessidades. (Já com as forças a faltarem­‑lhe.) A interpreta‑ nenhuma… diferença. Todo… o… esforço…
ção fidelíssima da aliança é o apoio recíproco nas frentes contra O Assinante: Santo Deus… se eu tivesse adivinhado… que
o inimigo. É isso que faz a Entente; é o que as Potências Centrais horror!
deviam fazer. (Esgotado, começa a cambalear. O Assinante e o O Patriota: Ele tomar a coisa assim tão a peito!
Patriota amparam­‑no.) O Assinante: Então que quer, não é ninharia nenhuma.
O Patriota: Mas é o que elas estão a fazer… recomponha­‑se… (Formam­‑se grupos.)
tudo se há­‑de esclarecer… acalme­‑se… logo se verá… Os aquistas: Passa­‑se alguma coisa com o Biach… devia­‑se cha‑
O velho Biach: Há uma diferença… há uma diferença… Os mar o médico… devia­‑se ir buscar a mulher dele… mas ele
senhores se calhar acham que não há diferença, mas digo­‑lhes ontem ainda estava… ainda o conheci numa altura em que…
que há diferença, sim senhor… (Chora.) O Patriota: O senhor sabe o que é que acho? (Olhando cautelo‑
O Patriota: Claro que há uma diferença… por amor de Deus, samente em redor.) É ele quem tem a culpa!13
não se enerve… está­‑se mesmo a ver que há uma diferença! O Assinante: Não diga blasfémias! Ouça, ele está a dizer alguma
O Assinante: Mas porque é que está a enervá­‑lo ainda mais? Não coisa…
há nenhuma diferença! O velho Biach: (Gemendo.) Ampliada… e… aprofundada…
O Patriota: Não há nenhuma diferença? O Assinante: Ouça, ouça…
O velho Biach: (Gemendo.) Não… há… nenhuma… diferença…? O velho Biach: (Transfigurado.) O nariz de Cleópatra… era um
O Assinante: Quer dizer que ainda não sabe? Ora ouça! “Infor‑ dos seus maiores encantos.
mam de Berlim que, contrariamente a certos pontos de vista O Assinante: Está a delirar.
expressos pela imprensa, se sublinha em círculos bem infor‑ O velho Biach: (Erguendo­‑se a toda a altura.) Os… muros…
mados locais que, até hoje, não foi publicado nenhum comu‑ deixam… passar… água.
nicado oficial sobre os pormenores das conversações havidas O Patriota: Está a profetizar.
no Grande Quartel­‑General.” Segundo a notícia, está fora de O velho Biach: (Abate­‑se.) É… o fim… do… editorial.
questão que haja alguma diferença entre o comunicado oficial O Assinante: (Rompendo em soluços.) Biach…!
alemão e o austríaco sobre o encontro. (Morre. Ambos ficam imóveis, abalados. Grupo silencioso dos
(O velho Biach tomba no chão.) aquistas.)
664 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 665
O Assinante: É uma pena. de Julho (Wolff). Seguindo o velho costume praticado também
O Patriota: Já não tem que sofrer mais. na história da Flandres por príncipes e seus representantes, o
(Muda a cena.) governador­‑geral aproveitou o 11 de Julho, o dia da festa nacio‑
nal do povo flamengo, para gravar esse dia na lembrança das
CENA 10 gerações presentes e futuras com um acto de clemência espe‑
Berlim. Restaurante numa galeria. Ouve­‑se um órgão mecânico cial e correspondeu ao pedido de três mil flamengos reunidos
que toca alternadamente as canções: “Emil, És uma Ave Rara” em Antuérpia para a Festa das Esporas de Ouro.”
e “Meu Caro, É um Tratante, um Tra­‑, um Traficante”. Ablass: Ora vejam lá!
O público que passa consiste na maioria em chulos já de Zulauf: “O governador­‑geral, tendo em vista que o dia comemo‑
certa idade com grandes manápulas. Um vendedor de jornais rativo da luta de libertação flamenga se festejava pela primeira
apregoa o Heiratsonkel.14 Um pregoeiro angaria público vez depois da sua entrada em funções, queria conferir­‑lhe este
para o Panóptico de Kastan. ano um significado especial através de medidas para fazer
valer os direitos do povo flamengo.”
(Dois políticos liberais, Zulauf e Ablass, estão sentados a uma Ablass: Boa!
mesa. Ambos têm colarinhos engomados baixos com pontas Zulauf: “Em conformidade, o governador­‑geral comutou em
sobrepostas, laço e monóculo de chifre.) pena de prisão perpétua a pena de morte pronunciada pelo
Ablass: (Ergue o copo.) À reforma da Constituição! Saúde! tribunal marcial da província de Antuérpia contra cinco fla‑
Zulauf: (Ergue o copo.) Saúde! mengos.” – Ora, então que é que diz?
Ablass: Olhe lá, Zulauf, essa palavra “nova orientação” não me Ablass: Fantástico!
agrada mesmo nadinha. Zulauf: Não é? Agora sopram ventos novos. Três mil flamengos
Zulauf: Como assim? indultados a pedido de cinco!
Ablass: Eu sugeriria “nova apresentação”. Ablass: Ora, não pode ser!
Zulauf: Formidável! À sua! Zulauf: Pode. Não… ah, bom… olhe, tanto faz. De qualquer modo,
Ablass: À sua! indulto é indulto. Os tipos agora pelo menos apanham prisão
Zulauf: Olhe lá, Ablaß, já leu o Roter Tag15 de hoje? perpétua. Pois é, agora faz­‑se mesmo valer os direitos do povo.
Ablass: Li. Ablass: Não há dúvida de que isto se vai gravar na memória das
Zulauf: Olhe lá, Ablaß, já leu o B.T.16 de hoje? Olhe aqui, uma gerações presentes e futuras.
notícia da Agência Wolff… (Saca do jornal.) Zulauf: Um belo gesto. E para que fique de lembrança que é o
Ablass: Não. primeiro ano em que se comemora a luta de libertação fla‑
Zulauf: Mas é mesmo muito interessante, ora ouça: “Bruxelas, 23 menga sob o domínio alemão!
666 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 667
Ablass: É grandioso! um partido revolucionário… (gritos de desaprovação) e, por isso,
Zulauf: O quê? Ora… à sua! À liberdade alemã! quando a mudança da situação o exige, tem de quebrar também
Ablass: Acompanho­‑o. À liberdade alemã! Saúde! com as velhas tradições…
Zulauf: (Depois de uma pausa.) Bem, amanhã vamos estar com Um interpelante: Da corte?
Hindenburg e Ludendorff. Schliefke: …estou a referir­‑me às suas próprias tradições! Ele tem
Ablass: Amanhã? Mas amanhã vamos estar com de fazer a revolução nas suas próprias fileiras. Ou não fosse ele
Schneider­‑Duncker! um partido profundamente revolucionário! (Viva aprovação.)
Zulauf: Vamos estar amanhã de manhã com Schneider­‑Duncker? (Muda a cena.)
Ablass: Não, ao fim da tarde! De manhã estamos é com Hinden‑
burg e Ludendorff. CENA 12
Zulauf: É isso, é. Pois, e temos direito cada um a 15 minutos. Bad Gastein. O Assinante e o Patriota em conversa.
Temos de comparecer às 11 em ponto.
Ablass: Traje normal? O Assinante: Estou convicto de que, com a ampliação da aliança…
Zulauf: Não, fraque! O Patriota: Não tenho dúvidas de que então a diminuição do
(Muda a cena.) ódio…
O Assinante: Provavelmente, com o aprofundamento da aliança…
CENA 11 O Patriota: Estou crente de que, assim, um aumento dos preços…
Assembleia­‑geral de guerra da comissão eleitoral O Assinante: Sem dúvida que a diminuição dos preços poderia…
social­‑democrática do mega­círculo eleitoral de O Patriota: Parece­‑me que, em compensação, um aumento do
Teltow­‑Beskow­‑Strokow­‑Charlottenburg da Grande Berlim. ódio…
O Assinante: Creio, contudo, que uma ampliação dos preços…
Camarada Schliefke (Teltow): … Como orador oficial O Patriota: O que me parece é que, assim, um aprofundamento
da assembleia­ ‑geral de guerra da comissão eleitoral social­ do ódio…
‑democrática do mega­ círculo eleitoral de Teltow­ ‑Beskow­ O Assinante: Provavelmente, com um aumento da aliança…
‑Strokow­‑Charlottenburg da Grande Berlim, irei então traçar a O Patriota: Parece­‑me que, assim, uma ampliação do ódio…
seguinte síntese: o facto de social­‑democratas prussianos aceita‑ O Assinante: Por outro lado, estou convicto de que, com uma
rem o convite do Ministério do Interior e de o imperador tomar diminuição da aliança…
parte nessa reunião não viola em nada os princípios social­ O Patriota: …se conseguiria sem dificuldade um aprofunda‑
‑democráticos. Também o camarada David agiu correctamente mento dos preços.
ao aceitar o convite do príncipe­‑herdeiro. A social­‑democracia é (Muda a cena.)
668 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 669
CENA 13 CENA 14
Secretaria de um destacamento militar. Campo de batalha junto a Saarburg.

Um membro do Estado­‑Maior: (Ao telefone.) … Viva… mas Capitão Niedermacher:17 Os nossos rapazes estão sempre
não… sou eu, o Kobatsch… o Peham está de licença… Ora com hesitações. Estão fartos de saber que o general Ruhm­
então ouve … claro, mortos aos montes… obrigado, a vida cá leben, numa reunião sobre a situação militar, deu a ordem bem
vai correndo… Sabes, a respeito do número astronómico de precisa de liquidar à coronhada ou com o revólver os prisionei‑
prisioneiros indicado pelos russos… pois, o que tu tens que ros de guerra, feridos ou ilesos, e de matar a tiro os feridos no
escrever é como é que eles podem saber tão ao certo, uma coisa campo de batalha, como afirma a propaganda mentirosa dos
assim é impossível de contar! O quê?… Bem, pois é, é mesmo nossos inimigos.
difícil fazer as pessoas acreditar nisso. Sabes, o que tens é de Major Metzler: Ruhmleben age no espírito da velha divisa do
dizer que enquanto os números não ultrapassavam limites nosso comandante supremo: “Nada de misericórdia, não serão
modestos, sei lá, uns dez mil por dia, ainda se podia deixar feitos prisioneiros!” Além disso, S.M. deu ordem de afundar
passar, mas quando começam a ser mais de 100 mil, bem, isso os navios‑hospital e nós, que combatemos em terra, não nos
é que já não!… O quê?… Bem, o que tens que escrever é mais vamos deixar ficar atrás!
ou menos que uma coisa assim não dá pra contar, por serem Niedermacher: Transmiti boca a boca à companhia a ordem da
tantos!… O quê? Nós contamos sempre? Pois, está bem, nós, brigada sobre a liquidação dos prisioneiros de guerra. Mas o
nós, mas o inimigo, isso é outra coisa!… O quê? Que é que eles pessoal continua sempre com hesitações.
vão dizer? Que o inimigo, quando começam a ser assim tantos, Metzler: Isso é o que vamos ver, ora aqui está uma oportunidade.
não é capaz de os contar, mas que pra nós é mais fácil contar (Dá com o pé num sargento francês que parece estar morto.)
as nossas baixas…? Alto aí, mais devagar, o que aconteceu foi Ora pois, ele ainda abre os olhos. (Acena a chamar dois solda‑
que nós contámos e, depois de contar com toda a exactidão, dos. Estes hesitam.) Vocês não conhecem a ordem da brigada?
deu­‑nos um número muito mais baixo, estás a entender? (Os soldados disparam.) Ali está um acocorado… até me quer
O principal é tu dizeres sempre: número astronómico de pri‑ parecer que está a beber café! (Acena a chamar um soldado.)
sioneiros… vê lá, o que é muito importante é dizeres isso. Bem, Olha, Niedermacher, faz­‑me o favor de terminar este assunto,
lá te hás­‑de desenrascar… quando vem em cima a dizer “ofi‑ tenho que ir ver como estão as coisas para as minhas bandas.
cial”, só isso já é meia­‑verdade, e a metade que falta acrescenta­ (Sai. O ferido cai de joelhos diante de Niedermacher e levanta
‑la tu, lá esperteza não te falta, bem, adeusinho, adeusinho… as mãos num gesto implorativo.)
É tudo! Niedermacher: (Para o soldado, que hesita.) Não serão feitos
(Muda a cena.) prisioneiros!
670 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 671
O soldado: Ainda agora lhe fiz um penso e lhe prestei assistên‑ filhos!’… matai­‑o, que ele ainda podia vir a ter mais dez.” Só o
cia, meu capitão…! nosso pessoal africano é que é de confiar. As mochilas deles
Niedermacher: A paga dele há­‑de ser arrancar­‑te os olhos e cortar­ com orelhas e cabeças cortadas de que falam os relatos menti‑
‑te as goelas. (O soldado hesita. Em tom furioso.) Eles disparam rosos dos boches são troféus irrefutáveis. Não nos deveríamos
à traição por trás e de cima. “Deitem­‑nos abaixo das árvores a tiro deixar ficar atrás das nossas tropas de apoio. (Sai.)
como pardais”, disse o general. “Quero tudo varrido a tiro”, disse o Capitão de Massacré: Não há maneira de o deixar satisfeito.
general. E tu, tu precisas que te dê uma ordem expressa? Hoje foram Major Meurtrier: O quê? Tão poucos prisioneiros? Vinte? Eu
liquidados 20 e tu pões­‑te com escrúpulos? É isto um homem ale‑ julgava que você tinha uma companhia inteira!
mão? Hás­‑de responder por isto! Mas será que é sempre preciso De Massacré: E tinha. Mas os que faltam espicharam lá em baixo
tratar de tudo pessoalmente em vossa vez, seus cagarolas? Ora olha na trincheira. Dei ordem ao meu pessoal para dar cabo de 180
pra aqui… vê como é que se faz! (Mata a tiro o ferido ajoelhado.) à baioneta. É certo que os bravos rapazes hesitaram, mas eu
(Muda a cena.) fiz­‑lhes ver que não teria contemplações com eles e então foi
um fartar de cortar pescoços e pôr tripas ao sol.
CENA 15 Meurtrier: (Descontente.) Cento e oitenta! É de mais! Mesmo para
Junto a Verdun. Vêem­‑se prisioneiros alemães em formatura. o general isso seria de mais! Aconselho­‑o a não falar desta história,
Sargentos franceses distribuem murros, chibatadas e se não quiser arriscar­‑se a ser cortado da lista da Legião de Honra.
coronhadas. Os prisioneiros vão sendo empurrados para a De Massacré: (Em tom de orgulho.) Pelo contrário, meu major,
frente. Alguns feridos deixam­‑se cair exaustos. A um jorra o estou convencido de que dentro de poucos dias hei­‑de usar a
sangue da boca e do nariz. Depois de passado o cortejo, aparece cruz da Legião de Honra! E depois hão­‑de dar­‑me o regimento
o general Gloirefaisant. Faz um aceno e alguns oficiais da Córsega. Os meus feitos abrem­‑me o caminho e a minha
prisioneiros são obrigados a desfilar perante ele. Um oficial meta será o princípio da gloire.
francês bate com a chibata nas coxas de um deles. (Muda a cena.)

General Gloirefaisant: (Para um capitão.) Demasiados CENA 16


prisioneiros! Os meus nettoyeurs andam a dormir. Faz­‑nos Departamento de Imprensa Militar em Rodaun.
falta um Roland Campbell, esse mestre consumado de treino
de baioneta. Ele faz gelar o sangue da juventude com a forma A Schalek: (Para um colega.) As 208 fotografias de cadáveres
eloquente como fala dos métodos de ataque, para trespassar hão­‑de mais do que legitimar­‑me perante a posteridade; esta
o fígado, os olhos e os rins do inimigo. Como é que ele dizia? não duvidará de que eu estive lá bem no meio da heróica expe‑
“Podeis deparar com um alemão que diga: ‘Piedade, tenho dez riência. Mas para que o senhor possa seguir o exemplo, para
672 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 673
que veja o que é mesmo uma descrição de uma batalha, vou­ O colega: Logo nesse dia.
‑lhe só ler as frases principais do meu próximo artigo. Começo A Schalek: “Será que eles querem poupar o pré ao nosso erário
por descrever como há 70 baterias a fazer fogo em quatro gru‑ público? Estava mesmo para começar o pagamento!”
pos, uma dá uma esfrega na infantaria, a segunda na artilharia, O colega: Humor no campo de batalha.
a terceira nas posições de reserva e a quarta bloqueia as vias de A Schalek: E porque é que ele não havia de reivindicar os seus
acesso, está a perceber, ora então oiça: direitos? Oiça.
A questão principal é: como e onde e quando o acesso pode ser O primeiro­‑tenente Radoschewitz está agora perfeitamente
bloqueado. calmo. A sua crise interior já passou.
As coisas desenrolam­‑se quase como uma peça de teatro O colega: Menciona­‑lhe o nome?
ensaiada. A Schalek: Porque não, se ele fez grandes feitos? Oiça.
Os combates na floresta são o mais horrível dentro do horrível. Que alegria! Há ali um caixote de ovos alemães…
Julgamos que estamos cercados e entretanto, noutro lugar, os O colega: Não me custa a crer!
reforços chegados já “fizeram a limpeza”. A Schalek: Deixe­‑me terminar.
O colega: A limpeza? Que alegria! Há ali um caixote de ovos alemães, o nome que
A Schalek: Oiça… O que morreu morto está. Só o que ficou vivo dão a uns pequenos projécteis que se podem lançar como se
conquista a glória. fossem pedras.
O colega: Brilhante! O colega: Ah, então é isso!
A Schalek: Um obus acerta em cheio numa carroça de munições A Schalek: Um recebeu um tiro num braço, a um rebentaram­‑lhe
puxada por seis cavalos. os tímpanos. O primeiro­‑tenente está como se estivesse surdo.
O colega: Sss…! Cambaleia. Um homem junto dele teve um choque nervoso.
A Schalek: Muitos dos homens voam em pedaços até à copa das O cabo Janoszi berra um discurso.
árvores. O colega: Menciona­‑lhe o nome?
Os inimigos lançam granadas de mão e trava­‑se uma furiosa A Schalek: Porque não, o heroísmo tranquilo do homem
refrega; luta­‑se com punhais, coronhas, facas, com os dentes. comum…? Oiça.
Se as granadas vão cair demasiado longe, acena­‑se com os Cantando, lançam­‑se ao ataque. “Saca­‑o da trincheira à baio‑
bonés e fazem­‑se vénias para os projécteis. neta…”, assim começa a alegre canção que termina em tom tão
O colega: Uma cena pitoresca. melancólico.
A Schalek: “Muito gosto”, gritam atrás delas. E, pelo meio, O colega: Catita!
pragueja­‑se por os russos terem lançado o ataque logo no dia A Schalek: O pessoal precipita­‑se agora sobre a terceira linha,
do pagamento. e é o momento de as tropas de assalto avançarem para os dois
674 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 675
lados e faz­‑se a limpeza da linha. O colega: Ora, mas a essa hora já há­‑de finalmente estar tudo
Os métodos mudam sem cessar e o mais novo entre os mais limpo, não?
novos é o das “tropas de assalto” e da “limpeza de trincheiras”. A Schalek: Que ideia, nem por sombras!
(De olhos a brilhar.) Quem alguma vez viu uma coluna de assalto a São especialmente o tenente Pintér e os cabos Juhasz e Baranyi
sair de noite para o combate não voltará nunca a achar uma expe‑ que cumprem a sua missão com uma circunspecção e um
riência romântica, aventureira, ousada. E quem alguma vez fez parte esmero muito especiais.
de uma coluna dessas não quereria deixá­‑la por nada deste mundo. Mas a limpeza da primeira linha dura ainda três dias. Ao ter‑
O colega: Compreendo os seus sentimentos! ceiro dia, encontram lá um ferido, que só se salvou por a “lim‑
A Schalek: Tem de ser tudo gente nova, solteira, com menos de peza” ter durado tanto tempo. Apanhou um tiro no estômago
24 anos. Esbeltos, ágeis, audazes e sempre prontos para golpes e só os terríveis descanso e jejum de três dias é que o salvaram.
temerários. O colega: Aí é que se vê como a limpeza dá saúde.
O colega: Pois é, a juventude…! A Schalek: Evidentemente.
A Schalek: Instala­‑se na retaguarda um campo de treinos a imi‑ Agora que as tropas de assalto expurgam os seus covis à gra‑
tar exactamente a verdadeira frente e aprende­‑se lá como se faz nada, eles gritam por piedade.
a limpeza debaixo de fogo real. O colega: Mas diga­‑me, por favor, isso tudo viu a senhora com
Se há uma missão especial a cumprir em terreno inimigo, ela os seus próprios olhos…
é ensaiada em todos os pormenores como uma peça de teatro. A Schalek: E há muita coisa que nem lhe conto! Não passe a vida
O mais fácil, evidentemente, é a limpeza normal. a interromper­‑me!
O colega: Evidentemente. Durante os três dias que dura a limpeza lá à frente, o coronel
A Schalek: À frente vão dois lançadores de granadas de mão. Söld, comandante do 308, passa a floresta a pente fino com as
Lançada a granada de mão, o grupo ladeia em corrida a pali‑ tropas que lhe restaram.
çada. A infantaria, que vem atrás, ocupa então as trincheiras O colega: Onde é que estavam os outros?
que foram limpas, quer dizer, conquistadas. A Schalek: Tantos mortos nunca ele viu. Trabalha­‑se dia e noite
As colunas de assalto da Lysonia, sob o comando do primeiro­ para enterrar todos.
‑tenente Tanka, do tenente Kovacs e do alferes Sipos, traba‑ Algumas peruas libertam­‑se da gaiola desfeita e passeiam­‑se
lham como se estivessem na escola. Ardem de entusiasmo e agora bem­‑dispostas no meio da metralha.
estão compenetradas da sua importância. Então, que é que me diz?
A precisão dos seus movimentos, o encadeamento das suas O colega: Estou maravilhado. Se não fosse essa história da lim‑
acções é espantoso, impressionante, portentoso. peza… ninguém notava que foi escrito por uma mulher!
A limpeza dura até às dez horas da noite. A Schalek: Como diz?
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O colega: Quer dizer, a maneira como descreve a limpeza… a artigo sobre o batalhão russo da morte. “Mulheres convertem­
importância que dá ao asseio nas trincheiras… ‑se em hienas.”18
A Schalek: O quê? A Schalek: O que é que está a dizer?
O colega: Ora… a limpeza… a maneira como elogia isso! O colega: Não me interrompa. “Não podemos passar em silên‑
A Schalek: (Lançando­‑lhe um olhar de desprezo.) Mas que maça‑ cio tais aberrações da natureza feminina, porque elas explicam
rico! “Limpar” quer dizer “massacrar”! muito do que é inerente às experiências da guerra. Esta repug‑
O colega: (Recuando estonteado e olhando fixamente para ela.) nante falta de feminilidade, esta insensibilidade exibida em
Olha que esta…! público são sinais de um sério embrutecimento…”
A Schalek: Mas então não sabia? Ricos colegas que eu tenho! A Schalek: Esta agora, olhe lá… mas você ainda agora… que
O colega: Mas… falta de colegialidade… onde é que vem isso?
A Schalek: Tenha calma, à la guerre comme à la guerre. O colega: Vem no artigo, foi ele próprio que escreveu, deixe­
O colega: A verdade é que… nós outros… ‑me acabar… “Também na Inglaterra se pôde confirmar mais
A Schalek: O quê? uma vez que a mulher, por via de regra, quando abandona o
O colega: Rojo­‑me a seus pés! (Depois de uma pausa, em que que é próprio do seu sexo, despojando­‑se da sua delicadeza
olha para ela em êxtase, sem pronunciar uma palavra.) Uma e assumindo uma monstruosa forma andrógina, tende para
coisa assim só é possível na Rússia! Ou na França, com a don‑ uma estranha crueldade.”
zela de Orleães! Como é que diz Salten? “E quando aos homens A Schalek: Ah, bem!
já desfalecia toda a esperança, eis que essa rapariga se ergueu, O colega: “Mulheres convertem­‑se em hienas! As spinsters…”
desperta e ardorosa, arrancada à sua natureza inata pela força A Schalek: Olhe lá, mas a quem é que está a chamar spinster? Eu
da desgraça, e se destacou, para dar ânimo aos homens. É a vou­‑me queixar ao Eisner von Bubna!
figuras singulares como estas que prestamos a nossa admi‑ O colega: Mas oiça… “a spinster não pode ser comparada
ração; elas estão iluminadas pelo clarão da glória, cerca­‑as o com a sua irmã do continente. Esta é por via de regra um ser
halo fascinante da grande valentia e da aventura poética, e é agradável, bondoso e humilde”.
precisamente por poderem ser consideradas excepções raras A Schalek: (Lisonjeada.) Ora, um editorial assim não há hoje
que nos sentimos dispostos a idealizá­‑las tão absolutamente quem seja capaz de escrever como ele.19
que a frieza da razão nem de longe chega a tomar consciência O colega: “O céu seja louvado por a mulher austríaca ter esco‑
das muitas coisas terríveis, feias e brutais que sem dúvida elas lhido o seu lugar na guerra, lá onde há doentes para tratar,
próprias tiveram de fazer ou de testemunhar.” cansados para revigorar e oprimidos para consolar.”
A Schalek: Tem que ser! A Schalek: Mas que é isso? É mesmo isso que está escrito? Sabe… às
O colega: Não, isto não vinha no artigo “Tem que ser”, mas no vezes, não há dúvida que ele se deixa arrastar pelo temperamento.
678 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 679
Não se deve generalizar. Tudo a seu tempo. Não se pode passar a andam a correr boatos. Eles andam mesmo de boca em boca,
vida metida na retaguarda. Toda a gente sabe que fui eu que dei mas ninguém é capaz de nos dizer…
a ideia da Cruz Negro­‑Dourada,20 junto com a Anka Bienerth! O patriota: Não se sabe nada de concreto, são só boatos, mas a
O colega: As pessoas sabem disso, não se enerve… coisa deve ter algum fundamento, se até o governo anunciou
A Schalek: (Lutando com as lágrimas, em tom decidido.) Vou­‑lhe que há boatos a correr.
já mandar o artigo! O Assinante: O governo adverte explicitamente que não se deve
O colega: Mande, pois! Só lhe recomendo que corte a última frase. acreditar nos boatos nem espalhá­‑los, e exorta todos a não
A Schalek: A última frase? (Olha para o manuscrito.) Algumas deixar de participar da forma mais enérgica na supressão dos
peruas libertam­ ‑se da gaiola desfeita e passeiam­ ‑se bem­ boatos. Ora bem, eu faço o que posso, onde quer que vá digo:
‑dispostas no meio da metralha… Isto é para cortar? mas quem é que vai em boatos?
O colega: Sim. O patriota: Pois, o governo húngaro também diz que andam a
A Schalek: Porquê? correr boatos em Budapeste de que andam a correr boatos na
O colega: Porque sim. Hungria, e faz também uma advertência.
A Schalek: Mas diga lá… O Assinante: Numa palavra, parece mesmo que os boatos estão
O colega: (Hesitante.) Mas então não sabe… espalhados por toda a Monarquia.
A Schalek: Não sei o quê? O patriota: Também acho. Sabe, se só tivéssemos sabido atra‑
O colega: …que o Departamento de Imprensa Militar decidiu… vés de boatos, mas a verdade é que o governo austríaco o diz
A Schalek: Mas decidiu o quê? expressamente, e o húngaro também.
O colega: …decidiu acreditar a partir de agora mais algumas O Assinante: Algum fundamento há­‑de haver. Mas quem é que
correspondentes de guerra! vai em boatos?
A Schalek: (Atónita, depois rindo com amargura.) Eis a paga da O patriota: Evidente. Quando encontro algum conhecido, a pri‑
Casa de Áustria!21 (Quer ir­‑se embora, mas não consegue.) meira coisa que pergunto é se já ouviu falar dos boatos, e se
(Muda a cena.) ele diz que não, então digo­‑lhe para não acreditar neles, mas,
pelo contrário, se necessário, não deixar de os contrariar de
CENA 17 imediato da forma mais enérgica possível. É o mínimo que se
O Assinante e o Patriota em conversa. pode exigir… o primeiro dever da lealdade!
O assinante: Algum fundamento há­‑de haver, de outro modo
O Assinante: Então que me diz aos boatos? os três deputados, sabe, os que saem sempre juntos, não teriam
O patriota: Estou preocupado. ido ter com o primeiro­‑ministro Seidler para lhe chamar a
O Assinante: Em Viena anda a correr o boato de que na Áustria atenção para os boatos que andam a circular.
680 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 681
O patriota: Ora está a ver? Mas o primeiro­‑ministro o que disse O assinante: O que eu gostava de saber é que fundamento é que
foi que tinha perfeito conhecimento dos boatos em questão e há nos boatos!
que andam a circular. O patriota: Isso posso­‑lhe eu dizer: não há fundamento nenhum
O assinante: Ora está a ver? Sabe o que é que eu acho? Digo­‑lhe e a melhor prova é que nem sequer se sabe que boatos é que são
aqui entre nós… os boatos são sobre a augusta… (Tapa a boca esses. Sabe que mais?
com o jornal.) O assinante: O quê…?
O patriota: Não me diga! Eu até sei mais que isso. Os que andam O patriota: O que eu gostava de saber é que boatos são esses!
a espalhar boatos querem inquinar a fé que o povo tem nela. O assinante: Então, mas que boatos é que hão­‑de ser! Lindos
O assinante: Olha que esta! E até há quem diga que os boatos, boatos, pois, andam de boca em boca, mas ninguém é capaz
acabados de nascer, podiam sempre ouvir­‑se ao mesmo tempo de nos dizer…
em sítios absolutamente diferentes, razão pela qual… O patriota: Uma pessoa está dependente dos boatos!
O patriota: …é legítimo supor que do que se trata é de uma (Muda a cena.)
organização dos boatos.
O assinante: É o que se diz! Mas, no fim de contas, tudo isso não CENA 18
passa de boatos, quem é que podia determinar isso assim com O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
tanta certeza… ora essa, ao mesmo tempo em sítios diferentes!
O patriota: Não diga isso. O governo pode. Sabe o que é que se O Optimista: Então que me diz aos boatos?
diz? Diz­‑se que a propagação dos boatos é mais um sinal das O Eterno Descontente: Não sei quais são, mas acredito neles.
tentativas de provocar a confusão entre nós vindas das fileiras O Optimista: Ora, ora, as mentiras da Entente…
dos nossos inimigos. Mas eles bem podem esforçar­‑se que não O Eterno Descontente: …não são nem de longe tão graves
vão conseguir nada! como as nossas verdades.
O assinante: Foi também o que eu ouvi. Até há quem diga que O Optimista: A única coisa que na pior das hipóteses poderia
os boatos fazem parte do arsenal dos nossos adversários, que alimentar os boatos seria…
não olham a meios para abalar as estruturas da Monarquia O Eterno Descontente: …o facto de não termos com que nos
bem como para afrouxar os laços de amor e veneração, os laços alimentarmos.
que nos prendem à augusta… (Tapa a boca com o jornal.) (Muda a cena.)
O patriota: Não me diga! Bem… nisso não vão ter sorte
nenhuma!
O assinante: Sabe que mais?
O patriota: O quê…?
682 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 683
CENA 19 destinando­‑os aos trabalhos mais pesados do campo… (Toca o
Michaelerplatz. Passa a banda do Palácio, telefone.) Mas que é que se passa outra vez?… Ah, bem… pois,
com os gabirus atrás. Rufar de tambores. claro… classificado como isento… cinco quilos de feltro…
diz­‑lhe que vou ver o que é que se pode fazer… Toma nota
Coro dos gabirus: de tudo… Olha, espera aí, não te esqueças, lembra ao doutor
Nemfarinhanempão… tabaconãohá … do jornal os bilhetes para o Sangue de Hussardo, telefona­‑lhe,
Nemfarinhanempão… tabaconãohá … estás a ouvir?… Já sabes que vou chegar um pouco mais tarde,
Bolas… bolas… bolas. adeusinho, meu velho!… Então, onde é que íamos?
Áustria minha… pátria querida… O escrivão: …a estada…
(A música afasta­‑se.) O capitão: …tanto quanto oportuno…
O escrivão: …não, tanto quanto possível penosa.
CENA 20 O capitão: Chama­‑se a atenção para o facto de que penas de
Posto de comando militar. privação da liberdade se afiguram em geral pouco apropriadas
para diminuir os casos de fuga, a não ser que sejam aplicadas,
Um capitão: (Dita, lendo um texto.) Confidencial!… Os prisio‑ recorrendo às medidas de agravamento autorizadas, em dias
neiros de guerra fugidos do seu posto de trabalho sem motivo que os regulamentos destinam ao descanso ou que estão con‑
suficiente e que foram de novo capturados serão punidos e ata‑ siderados feriados importantes. – Ora pois… são quase quatro
dos ao poste pelo menos uma vez durante duas horas… (Toca horas! Adeus, senhores, boas noites!
o telefone.) Mas que se passa?… Ah, bem… sim, claro… 20 (Muda a cena.)
quilos de farinha fina… está bem, vou ver… adeus!… Então
onde é que íamos? CENA 21
O escrivão: …punidos e atados ao poste pelo menos uma vez Ministério da Guerra.
durante duas horas…
O capitão: …e, depois de cumprida a pena… se se considerar Um capitão: (Dita, lendo um texto.) Confidencial!… Tendo em
oportuno, analisados os casos especiais… serão devolvidos vista que, no decurso dos próximos meses, quase um milhão
sem excepção, no mais curto prazo possível, ao seu posto de de prisioneiros de guerra russos vão abandonar a monarquia
trabalho anterior. Cabe aos comandos dos campos de prisio‑ austro­‑húngara e regressar a casa, os sentimentos com que
neiros de guerra tornar a estada tanto quanto possível penosa estes prisioneiros de guerra irão recordar o tempo passado na
aos prisioneiros fugidos, recapturados e devolvidos ao campo, nossa pátria têm uma importância primordial. Afigura­‑se, pois,
recorrendo a todos os meios de castigo admissíveis, bem como altamente desejável uma intervenção no momento oportuno,
684 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 685
para, entre as inúmeras impressões e experiências adquiridas afigura­‑se vantajoso, recorrendo de preferência a pessoas idó‑
no cativeiro, atenuar as desfavoráveis, mas avivar e fortalecer neas e também interessadas nesta tarefa de um ponto de vista
as satisfatórias e agradáveis. Os russos regressados ao seu país ideal e prático, elevar esse processo de convencimento a um
não nos recordarão, assim, com uma indiferença apática ou nível tanto quanto possível apartado das formas militares. –
mesmo com um ódio hostil, antes actuarão conscientemente Bem, esta é um bocado forte! – Esta circunstância essencial
e com plena convicção como mensageiros da cultura austro­ obriga, por seu lado, a que, por motivos de disciplina militar,
‑húngara na sua própria pátria. Os meios para conseguir um essa propaganda só se inicie muito pouco antes da partida dos
efeito tão favorável residem no desenvolvimento de uma pro‑ russos prisioneiros de guerra – evidentemente! –, esperando­
paganda política, social e económica adaptada à alma russa, ‑se que eles regressem à pátria com a impressão fresca e directa
generosa, movida por intenções sinceras. O que se pretende é, acabada de receber. – Parágrafo!
pouco antes da evacuação… Aspecto político: com uma convicção nascida da mais profunda
O escrivão: Da evacuação? verdade, pode, justamente na Áustria­‑Hungria, transmitir­‑se
O capitão: …da evacuação dos prisioneiros de guerra russos, aos russos de regresso a casa a garantia sincera de que a nossa
despertar no seio deles uma disposição de espírito favorável à pátria de modo nenhum quis a guerra e de que sempre dese‑
Áustria através da realização de palestras de propaganda sobre jou a paz – bem, é bom ele sublinhar isso, a gente somos uns
temas políticos, sociais e económicos. Independentemente autênticos cordeirinhos…
de todas as eventuais consequências relevantes para a nossa O escrivão: Como? A gente somos…
vida económica, uma tal conversão da alma russa pode levar O capitão: Mas não, isso não é para escrever! – Ora então, sem‑
a desmontar grandemente a propaganda mentirosa difundida pre desejou a paz, de que se lamenta deveras e expressamente
em todo o mundo pelos nossos inimigos. Para produzir uma as agruras indubitavelmente inerentes, para os prisioneiros, à
impressão duradoura nos prisioneiros de guerra russos, a pro‑ sorte do cativeiro e de que todas as inclemências porventura
paganda junto deles não pode, evidentemente, limitar­‑se à rea‑ sofridas pelos prisioneiros – bem, bem! – de maneira nenhuma
lização de palestras, é necessário, mais do que isso, enquanto resultaram de qualquer aversão, menosprezo ou, menos ainda,
não chega o momento da evacuação definitiva, causar tanto ódio contra o povo russo, antes assentaram única e exclusi‑
quanto possível uma boa impressão sobre os prisioneiros de vamente nas dificuldades que se foram avolumando devido à
guerra russos por outros meios. – Faça parágrafo. longa duração da guerra. – Parágrafo!
Tendo em conta as circunstâncias, está à vista que, no entanto, Aspecto social: sem aflorar com uma única palavra a situação
essa propaganda, se ficasse a cargo apenas dos órgãos da admi‑ social presente na Rússia, os russos de regresso podem ser escla‑
nistração militar, perderia sem sombra de dúvida muito do seu recidos de maneira adequada sobre os méritos e particularida‑
valor inicial – pois, tá­‑se a ver – e, em função dos objectivos, des da nossa estrutura colectiva e social, devendo chamar­‑se
686 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 687
especialmente a atenção para o facto de, nesta ordem social, que vivem no campo de que a situação alimentar da população
o bem­‑estar e o progresso não cessarem de crescer, com tanto citadina deixa muito a desejar e de que se impõe fortemente
a colectividade como o indivíduo a retirarem disso vantagens encontrar uma solução recorrendo a importações do exterior.
duradouras. – Bem, lá isso é verdade. Parágrafo! – Parágrafo!
Agora é que chegamos ao busílis da questão. Aspecto econó‑ No caso dos prisioneiros de guerra russos que trabalham em
mico: demonstrando, com base nos factos, que as grandes difi‑ fábricas, na construção, seja ela qual for, e em lugares admi‑
culdades geradas em toda a parte pelo prolongado estado de nistrativos, a situação é, contudo, diferente. Nestes casos, seria
guerra e de agitação apenas podem ser superadas se se aplicar muito apropriado que os patrões assumissem o dever patrió‑
ao máximo toda a mão­‑de­‑obra disponível e se puser em mar‑ tico de aliviar, na medida do possível, os últimos dias de traba‑
cha um intercâmbio comercial organizado de modo ambicioso lho dos prisioneiros de guerra russos entre nós. – Parágrafo!
e para além das fronteiras dos Estados, os russos de regresso Ordena­‑se, assim, a todos os directores militares das firmas
a casa poderão entender plenamente a necessidade estrita do submetidas à lei do serviço militar e das minas sob tutela mili‑
reatar rápido e incondicional das relações comerciais com a tar e a todos os comandantes que visitem ou inspeccionem
Monarquia. Não haverá nenhuma dificuldade em, deste ponto de imediato todos os lugares de trabalho que empregam pri‑
de vista, demonstrar a esses homens, de modo convincente, até sioneiros de guerra russos e que procurem influenciar estes,
que ponto o camponês que esconde as suas reservas e, assim, da mesma forma já exigida aos comandantes dos campos de
as furta ao aproveitamento pelo comércio livre se está a pre‑ acordo com o que a seguir se expõe (nos termos do decreto
judicar a si próprio, uma vez que, justamente devido a esta ministerial n.º 14.169/18). – Parágrafo!
circunstância, não chegará ou só chegará muito tarde a obter O comandante do campo deve visitar alternadamente as uni‑
os artigos de consumo que deseja possuir, já que, como está dades de habitação, as secções destinadas aos oficiais ou os
à vista, a nossa própria população, que trabalha na produção hospitais do campo e estabelecer contactos pessoais com os
dessas mercadorias, não está em condições, por lhe faltar uma prisioneiros de guerra russos. (Em tom caloroso.) Tanto deve
alimentação suficiente, de desenvolver aquelas energias econó‑ procurar saber como se encontram como inquirir sobre os pais,
micas máximas que, em tempo de paz, havendo boa alimen‑ a maneira como são tratados, o correio, o vestuário. Se houver
tação, são indispensáveis para uma exportação sem limites. queixas, deve levar a cabo logo ali um inquérito pormenori‑
– Bem, isso hão­‑de acabar por perceber. Parágrafo! zado, em público, perante todos os prisioneiros de guerra. Deve,
No que respeita às zonas agrícolas, sobretudo no caso dos pri‑ assim, convencê­‑los de que não se poupa a esforços para chegar
sioneiros de guerra que vivem em comunidades rurais, a pro‑ à verdade e, através desta, à justiça. Deve usar as queixas sobre
paganda, em princípio, não é necessária, quando muito uma o tratamento e o vestuário para demonstrar aos russos que não
orientação e convencimento dos prisioneiros de guerra russos somos nós, mas sim os nossos inimigos a ocidente, quem tem a
688 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 689
culpa e que seria com todo o prazer que, se tivéssemos, daríamos entre os prisioneiros de guerra. Estes comerciantes de vão de
mais, especialmente aos prisioneiros de guerra russos. É que escada nem sempre são judeus. Têm fontes fora do campo
eles, os russos, agora já não são nossos inimigos. (Torna­‑se mais onde, quando têm oportunidade, se abastecem, vendendo os
caloroso.) Na verdade, nunca os considerámos nossos inimi‑ artigos comprados no campo aos seus camaradas, os prisionei‑
gos, como provam as muitas guerras anteriores em que os rus‑ ros de guerra, três ou quatro vezes mais caros. Sempre que o
sos e a Áustria­‑Hungria combateram lado a lado com bravura. comandante do campo conseguir apanhar um desses trafican‑
O comandante do campo deve ir aqui e ali à cozinha no momento tes… (enfurecido) mandar despir, revista ao corpo e às malas.
em que esteja já a ser distribuída a carne ou o peixe. Deve filar Muitas vezes, encontrará 500 coroas ou mais na posse dele.
um, dois ou quatro prisioneiros de guerra russos… Confiscar e distribuir entre os restantes prisioneiros de guerra
O escrivão: Filar? a soma cuja origem ele não consiga justificar. – Parágrafo!
O capitão: …no momento em que se dirijam do lugar de distri‑ Presentemente, os prisioneiros de guerra russos estão dispos‑
buição para os seus catres com a ração distribuída. (Com entu‑ tos a ouvir o comandante do campo horas a fio, se ele puder
siasmo.) Pousar a ração em cima da mesa, mandar vir a balança, contar­‑lhes alguma coisa sobre a troca de prisioneiros. Quando
pesar a carne ou o peixe. Quanto mais espectadores tiver, é que chega a nossa vez, quanto tempo é que ainda falta? Se ele
melhor. Depois, pedir o livro de registo da carne, quanto é que estiver em condições de lhes demonstrar de maneira lapidar
se comprou hoje ao todo? Vinte e cinco por cento de ossos, 20 que não somos nós que temos a culpa de que a troca esteja
por cento de perda ao cozinhar, divide­‑se o resto pelo número a decorrer com tantas demoras, os prisioneiros vão mostrar­
de rações e (em tom de ameaça) se faltar nem que sejam dez ‑se outra vez com vontade de trabalhar, ele só não pode é
gramas na ração… isso quer dizer que, em 200 rações, houve falar depreciativamente da Rússia. Isso seria um grande erro.
o roubo de dois quilos de carne ou de peixe. (Em tom severo.) – Parágrafo!
Quem é que fez isso? Comissão do rancho, cozinheiros, oficiais (Com sentimento.) Os corações russos ir­‑se­‑ão enchendo cada
encarregados da inspecção, tudo já aqui! Juízo severo à frente vez mais se ele, o coronel, lhes for contando aqui e ali as notí‑
de todos os prisioneiros de guerra russos da unidade de habi‑ cias mais recentes da Rússia que acabou de ler na edição matu‑
tação. Conclusão: os cozinheiros, a comissão do rancho e todos tina. (Assume uma pose.) Eles far­‑lhe­‑ão a continência com
os que trabalham na cozinha vão para a rua se não se encontrar aprumo e de modo obediente, não há que ter medo da indisci‑
o culpado. – Para a rua… ah, quer dizer, parágrafo! plina quando fala com eles. Como em todas as circunstâncias,
Se o comandante do campo encontrar tabaco, cigarros, pão também aqui ele deve dar o exemplo e fazer ele próprio a con‑
adquirido, chouriço, etc. na posse dos russos, deve informar­ tinência com tanto aprumo quanto a idade e as enfermidades
‑se do preço que o prisioneiro em questão pagou. Não tardará lhe consentirem. (Faz a continência.) Uma visita do coman‑
a descobrir­‑se que há muitos vendedores do mercado negro dante aos hospitais do campo…
690 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 691
Um aspirante: (Entra em cena.) Meu capitão, com sua licença, o do patriotismo, insuflar­‑lhe o conhecimento e o amor à sua
nosso coronel está a pedir o relatório sobre os prisioneiros de pátria no sentido mais estreito e mais amplo e plantar já na
guerra russos. alma infantil todas as sementes das quais virão a nascer aque‑
O capitão: A ordem do dia sobre a propaganda? Estou justa‑ las magníficas qualidades viris que permitirão ao jovem, como
mente a tratar disso. patriota ardoroso, animado pelo amor e lealdade para com a
O aspirante: Não é sobre a propaganda, é sobre os que morre‑ augusta casa imperial e para com a pátria, cumprir de bom
ram de fome. grado e conscienciosamente os seus deveres de cidadão e, se
O capitão: Os que morreram de fome? Mas onde é que eles mor‑ necessário, sacrificar também o amor e a saúde por esses ideais.
reram outra vez de fome? A gente tem esse processo? Infelizmente, pouco se fez na Áustria neste sentido, e parece­
O aspirante: Trata­‑se do caso em que um russo que dormia ‑me ser dever de todas as personalidades destacadas do Impé‑
com outros dois no mesmo catre morreu de fome. Já estava em rio sanar esta omissão e preocupar­‑se com o desenvolvimento
decomposição quando o inspector entrou no compartimento e dos sentimentos patrióticos e dinásticos da geração seguinte,
os outros dois estavam com tão poucas forças que já não con‑ cujos germes, graças a Deus, estão universalmente presentes.
seguiram levantar­‑se nem chamar alguém. Uma revistinha mensal intitulada Mladé Rakousko e escrita
O capitão: Um momentinho… olha, diz ao nosso coronel que num estilo acessível, adaptado à nossa juventude escolar, vai
vou já ver o que é que veio no correio, agora estou ocupado ser divulgada nas nossas escolas primárias e secundárias,
com a propaganda, tás a ver, para se atenuar as impressões des‑ bem como nas escolas profissionais, e considero um dever
favoráveis entre os prisioneiros de guerra, pra nós podermos sagrado dos que compartilham as nossas ideias e a nossa con‑
reatar as relações comerciais e eles nos mandarem depois ali‑ dição social, uma tarefa sublime dos grandes proprietários
mentos, os russos, depois de regressarem a casa e assim. rurais, apoiar a difusão desta revista nas escolas da sua área de
(Muda a cena.) influência económica, assinando um certo número de exem‑
plares para cada uma dessas escolas, para assim possibilitar a
CENA 22 distribuição gratuita da publicação a alunos sem posses, sendo,
Governo Civil de Brünn. anote­‑se, legítimo esperar que, além do efeito produzido sobre
os alunos, seja também exercida influência sobre os membros
O governador: Tenho uma ideia! (Para o secretário.) Escreva: mais velhos da família.
Uma das lições mais importantes que podemos e devemos A revista, cuja assinatura anual custa 2,40 coroas, pode ser
tirar da sangrenta guerra mundial e dos sacrifícios que impôs subscrita em Brünn, Kaiser Franz Josef­‑Platz, n.º 18.
a toda a população é, sem sombra de dúvida, a da importân‑ Possa este apelo…
cia que tem educar a nossa juventude já na escola no espírito (Muda a cena.)
692 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 693
CENA 23 O menino Kotzlik: Os inimigos… os inimigos… minaram o arse‑
Numa escola primária. Algumas carteiras estão vazias. nal… e… e nós não olhamos ao amor… da casa que nos prende…
As crianças sobreviventes estão subalimentadas. O professor: Grande malandro me saíste! Vais ficar aqui e copiar
Todos vestem fatos de papel. dez vezes a frase que te vou ditar. Senta­‑te, madraço! Vós outros,
porém, permanecei firmes. Olhai a este propósito para o exem‑
O professor Zehetbauer: … Tende cautela com os boatos que plo do Guerreiro de Ferro. Ali está ele, como se tivesse sido cons‑
andam para aí e não deixeis de os contrariar. O pérfido plano truído para a eternidade, enquanto a águia bicéfala dos Habs‑
dos inimigos é trazer a perturbação às vossas fileiras, mas não burgos continuar a voar em círculos sobre as nossas cabeças, um
hão­‑de consegui­‑lo. Fechai os ouvidos às coisas que se dizem, símbolo perene. Acreditai, ide lá e pregai lá pregos o mais que
como se não fôssemos capazes de aguentar a pé firme até ao fim puderdes, desde que haja ainda lugar para eles, com a autoriza‑
auspicioso e como se entre nós grassasse a fome. Quem senão ção dos senhores vossos pais ou tutores. No caminho, não deis
os inimigos é responsável por esses boatos? E agora eles andam ouvidos às insinuações, porque eles andam até a espalhar que
a inquinar as águas desenvolvendo uma actividade que… (Um os dias do Guerreiro estão contados e que, em vez dele, vão pôr
menino põe o dedo no ar.) O que é que queres, Gasselseder? um vendedor de salsichas. Graças a Deus que ainda não chega‑
O menino Gasselseder: Ó senhor professor, mas então tam‑ mos a esse ponto e é de boamente que suportamos as privações
bém não se vai poder beber nada? que a pátria nos impõe, enquanto o combate não estiver defini‑
O professor: Senta­‑te, és um tonto, não estou a falar em sentido tivamente resolvido, mas continuar a balançar para um e para o
figurado, mas sim literal. O inimigo, como não é capaz de nos outro lado. Seja como for, se nós… (Um menino põe o dedo no
bater em campo aberto, quer desgastar a nossa resistência na ar.) O que é que queres, Zitterer?
retaguarda. Por isso, tende cautela com os boatos! Contribuí o O menino Zitterer: Senhor professor, eu queria a paz!
mais energicamente que puderdes para os sufocar. Eles fazem O professor: Senta­‑te, grande malandro! O que eu te vaticino é
parte do arsenal dos nossos inimigos… (Um menino põe o dedo que ainda vais acabar no cadafalso, quando um dia saíres para
no ar.) O que é que queres, Anderle? a vida. Vê se tens vergonha na cara! Mas o que é aquilo ali na
O menino Anderle: Senhor professor, mas então os nossos ini‑ terceira carteira? Com que então, Merores, a dar à língua!
migos também têm um arsenal? O menino Merores: O papá disse que não entende porque é que
O professor: Pois claro que têm, mas a única coisa que lá está as pessoas andam tão agitadas por causa da paz, diz que por ele
guardada são os boatos, e eles lá não olham a meios para minar pode esperar, pelo contrário, eu acho que ele até nem ia gostar,
as estruturas da Monarquia, e mais, para afrouxar os laços de ele ganhou bom dinheiro, pois, e se vier a paz, acabou­‑se.
amor e veneração que nos prendem à augusta casa reinante. O professor: Merores, é bonito que o teu pai aguente a pé firme
Kotzlik, estás­‑te a portar mal, repete o que acabei de dizer. com tanta galhardia e que dê um bom exemplo, mas tu estás a
694 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 695
falar sem teres sido interrogado e isso é um sinal de que, graças tudo o que vos tenho passado a vida a dizer? Espero bem que
às intrigas dos inimigos, a disciplina já anda muito relaxada. não!
Não quero admitir sem mais que vós estais ao serviço da pro‑ A turma: Embora a rude tempestade da guerra varra os nossos
paganda inimiga, que tem por toda a parte as antenas em acção, territórios e o nosso augusto monarca tenha chamado às armas
mas devo dizer que um tal comportamento, agora que tudo está milhares e milhares dos nossos filhos e irmãos, neste momento
prestes a decidir­‑se, não deixa de me parecer muito suspeito. já são perceptíveis os primeiros indícios de um aumento do
A única coisa que vos posso inculcar sem desfalecimentos é: turismo. Por isso, nunca percamos de vista este ideal e vamos
permanecei firmes para sempre! Que sucederia se também vós entoar hoje a velha canção que aprendemos outrora no tempo
começásseis a vacilar? Os inimigos invadiriam o nosso país e da paz: “Cuidai do Turismo!” (Cantam.)
então ai de vós, ai das vossas irmãs e das vossas noivas, ai dos A a a, o turista já cá está.
senhores vossos pais e tutores! (Um menino põe o dedo no ar.) Chega de o cinto apertar,
O que é que queres, Sukfüll? O turismo já está a dar,
O menino Sukfüll: Ó senhor professor, mas e os estrangeiros! A a a, o turista já cá está.
O meu pai disse que não quer resistir mais tempo a pé firme, já A a a, o turista já está cá.
não aguenta, já era mais que tempo de virem aí os estrangeiros! (Muda a cena.)
A turma: Sim, cuidai do turismo!
O professor: Mas não! O significado disso era diferente! CENA 24
O turismo é uma plantinha muito delicada, que tem de ser Na Delegação Regional de Turismo.
bem resguardada. Sentis a falta dos comedores de macarrão?
A turma: Sim! Queremos ter que comer! O redactor: … para pedir algumas declarações sobre a forma
O professor: Que vergonha! Corja de malandros! Tende ver‑ que o turismo irá assumir depois da guerra, quer dizer, se é que
gonha na cara! O que é que há­‑de pensar de vós o saudoso já existem de todo em todo planos a este respeito.
e augusto monarca cujo retrato outrora vos contemplava do O funcionário: Naturalmente que existem. Como se sabe,
alto? Como é que ele poderia ter imaginado que uma degrada‑ realizou­‑se recentemente, na sequência do congresso das sec‑
ção destas seria a consequência, quando se viu forçado a come‑ ções médicas das armas coligadas, uma troca de ideias entre
çar uma guerra defensiva malevolamente provocada e a puxar representantes dos comités de especialidade para o turismo da
da espada contra forças superiores? Ai de vós, se os inimigos coligação militar entre a Alemanha, a Hungria e a Áustria.
invadirem o nosso país! Haveriam de instalar­‑se nos melhores O redactor: É certamente de esperar que, depois da guerra, o
hotéis, não teríeis motivos para rir e as nossas mulheres, as guar‑ problema do turismo venha a ser considerado de perspectivas
diãs do lar, é que teriam de pagar as favas. Então esquecestes inteiramente novas?
696 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 697
O funcionário: Sem dúvida. O redactor: Se bem o entendi, o senhor é, portanto, de opinião
O redactor: Será que poderia ter a amabilidade de começar por que será sobretudo o mercado alemão que virá a ser impor‑
me indicar qual o sentido que vai tomar depois da guerra a tante para o nosso turismo.
situação dos nossos irmãos de armas com respeito ao turismo? O funcionário: Pois claro.
Não há certamente a mínima dúvida de que os nossos inimigos O redactor: Mas agora vamos ao principal. Que atracções
vão sofrer perdas também quanto a este ponto. poderemos nós oferecer depois da guerra aos estrangeiros que
O funcionário: É evidente que tudo aponta para que os centros nos visitem, ou melhor, que outras atracções poderemos nós
turísticos franceses e belgas não venham a ser visitados pelos oferecer em substituição daqueles monumentos que porven‑
alemães. tura tenham sido destruídos pela guerra? O senhor formulou
O redactor: O senhor quer dizer que os alemães não vão poder com razão um prognóstico favorável para o Adriático. Mas que
ou não vão querer visitar esses centros? teremos nós para oferecer além disso?
O funcionário: Quero dizer que os alemães não vão poder que‑ O funcionário: Além disso, as regiões alpinas, com as suas
rer visitar esses centros. extraordinárias recordações da guerra, vão constituir um ponto
O redactor: Sendo assim, os alemães certamente vão procurar de atracção para o mercado turístico da Europa Central.
alternativas? Quero dizer, alternativas dentro do próprio país? O redactor: Em que género de recordações da guerra se está a
O funcionário: A costa alemã oferece alternativas suficientes às pensar neste aspecto?
praias do Mar do Norte. O funcionário: Nós alimentamos a esperança de que a pere‑
O redactor: Mas onde irão os alemães procurar alternativas grinação às campas dos heróis e aos cemitérios militares vá ter
para a Riviera francesa? Sem dúvida nas nossas praias, não? como resultado um intenso movimento turístico. A verdade
O funcionário: Para oferecer uma alternativa à Riviera fran‑ é que se trata de pôr outra vez a nossa casa em ordem. E é
cesa, com as suas vantagens climáticas no tocante a estadias de justamente quanto a este ponto que apelamos à colaboração
Primavera e de Outono, não há dúvida de que a costa austríaca compreensiva da imprensa, já que a nossa tarefa consiste em ir
do Adriático é belissimamente apropriada e daqui decorre que buscar a cada época as atracções que ela oferece em si própria,
também ela poderá esperar uma grande afluência de turistas. e as campas dos caídos em combate permitem às mil maravi‑
O redactor: Está seguramente a falar da costa austríaca do lhas ter esperanças num aumento do turismo.
Adriático por oposição à italiana e quer por certo dizer com (Muda a cena.)
isso que o Adriático vai permanecer…
O funcionário: …nas nossas mãos. Sem dúvida, pois, de outro
modo, os alemães seriam obrigados a procurar alternativas
também para o Adriático, não é verdade?
698 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 699
CENA 25 nicles mesmo? (Para o vizinho.) Pois é o que lhe digo, por conta
Café da Ringstraße. É de tarde. Sentada e de pé, uma fauna de disso deram­‑me hoje como isento!
personagens envolvidas em debates acalorados. A conversa gira Zieselmaus: Dê muitas graças a Deus.
em torno dos temas mais variados, como arroz, açúcar, couro, Walross: … Não me venha com isso, eu não aposto no Hinden‑
e também apostas que estão a ser feitas sobre uma corrida burg, não aposto no Primadonna, quer saber em qual aposto,
de trote; alguém desembrulha uma pintura a óleo, um outro aposto no Doberdo!…23
mostra um anel de brilhantes que é avaliado por um grupo Hamster: … Esse está livre de preocupações, abastece­‑se sozinho.
excitado. Entre os traficantes, há também gente de uniforme, Olhe, eu sou amigo íntimo do Kornfeld da Central de Compras,
um primeiro­‑tenente baixinho que dá “dicas” a um agente de então fui lá acima à Central de Lacticínios e digo: sou eu, Salo
estatura descomunal. Pelo meio, dispersas além e acolá pelos Hamster…
bancos laterais, raparigas vestidas como insectos. Criados e Nashorn: … Quem é que liga a boatos, não me vou deitar a afogar
criadas que servem bebidas. Vendedores de programas das por causa duns boatos! Porquê, porque parece que na Presse vem
corridas. O ar está saturado de números e miasmas. qualquer coisa a respeito de andarem a sondar a possibilidade da
Cada vez que entra alguém, é recebido por uma grande paz? Fantasias! É o que lhe digo, o negócio é uma bomba!…
gritaria, na qual de início só consegue distinguir sons Tapir: … Mas que é que quer de mim, acha­‑me com cara de
inarticulados, depois, gritos emitidos nos mais diversos registos, Hindenburg?…
em tom de berro, de assobio, de estertor, que, na maior parte Schakal: … Que é que você quer do Siegfried Hirschl, eu não
das vezes, têm um sentido de confirmação. Só escutando mais dou um vintém por um tipo que foi apurado para o serviço
de perto é que se consegue perceber mais exactamente. sem armas! Havia de ter visto como eles me receberam no
Ministério da Guerra, o corrupio que ali foi! Pois é claro!…
A gritaria: … A quem o diz!… Vá dizer essa a outro!… Diga­‑se Leguan: … Liras é quantas quiser!…
aqui entre nós!… É o que lhe digo!… O que você diz não se Kaiman: … Sem licença de exportação nada feito, sou eu que lho
escreve!… Ora, pois que estou eu a dizer­‑lhe!… Olhe, é o que digo, Julius Kaiman.
lhe digo!… Mas que é que está a dizer!… Isso é o que ele diz!… Pavian: … Albânia? Nem vale a pena falar, uma guerra de gorilas!…
Que é que quer que lhe diga!… Vou­‑lhe dizer uma coisa… Kondor: … Mas quem é que você julga que é? Eu já ganhava
Ora, que é que quer que lhe diga?… Tirou­‑me as palavras da dinheiro inda você não era nascido! Há cinco minutos, se me
boca!… tivesse ouvido ao telefone… 80 quintais a 50 mil, sem contrato
Mammut:22 Olhe… faz favor… tem pastéis da Scheidl? sem nada! Postos de imediato em Viena! Atire­‑se ao açúcar, as
Um criado: Desde a semana passada que está proibido. ligaduras já deram o que tinham a dar!…
Mammut: Não se arranja nada! Nada… nada, inda vá lá. Mas Löw: … Uma pessoa inda consegue aguentar­‑se?…
700 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 701
Hirsch: … Todos os dias grito à minha mulher… Aufrichtig: … Pela minha rica saúde, palavra de honra, ele apon‑
Löw: … Isso é que vai tudo esgadanhar­‑se para arranjar a edição tou para a assinatura de Ticiano na pintura e disse: “Uma pechin‑
vespertina! Mas de certeza que não é verdade!… cha!” Quando eu depois lhe demonstro que não se trata de um
Posamentier: … E eu é que sei? Diz­‑se que Burian anda a son‑ Ticiano autêntico, ele limita­‑se a dizer: “Ora, eu não estava lá
dar a possibilidade da paz. quando o Ticiano o pintou!” Então chama­‑se a isto fazer negócio?
Spitzbauch: … Faz favor… um chocolate… ou não, sabe que Beständig: Bem, mas se ele não garantia que se tratava de um
mais, traga­‑me… Ticiano autêntico…?!
Schlechtigkeit: … Aqui entre nós, o brilhante vale… Brauchbar: É de levar as mãos à cabeça, agora explica que ele
Vozes de pessoas que entram apressadamente: … Mas lhe deu o Ticiano a troco de quatro cavalos de corrida, mas
digo­‑lhe que não é verdade!… Pela minha rica saúde, a fonte como é que isto pode ser?
é da máxima confiança, é verdade!… Mas se lhe estou a dizer A empregada dos lavabos: (Grita para a sala.) Senhor Polla­
que não é verdade!?… E eu digo­‑lhe que é mesmo verdade, tschek, telefone! (Pollatschek sai precipitadamente.)
estamos feitos!… Quer apostar que não é verdade?! Lustig: Está a ver…? Vá atrás dele…
(Alguém rouba um casaco de peles. Gera­‑se grande agitação.) (Entra um inválido que sofre de convulsões nervosas. Abana
Gollerstepper: Mas eu conheço­‑o, o tipo passava os dias aqui à incessantemente a cabeça. Obrigam­ ‑no a ir­‑se embora. Ao
coca, grande borra­‑botas! fundo, está sentado um velho traficante, dobrado sobre
Tugendhat: Quem é que agora precisa dum casaco de peles? si mesmo, como que alquebrado. Alguns amigos estão a tratar
Gollerstepper: Que pergunta…! Mundi Rosenberg! dele. Uma mulher tem a mão pousada no ombro dele. Uma
Mammut: (Arquejante.) Eu ainda arranjava dois vagões… rapariga tenta confortá­‑lo. Juntam­‑se curiosos e interessados.)
Mastodon: … Banha? Mas onde é que eu vou arranjar banha? Um amigo: Mas…! Se calhar não é verdade?!
Acha que vou correr o risco?… Um segundo: Olha… nem sei o que me pareces… mas quem é
Raubitscheck: … Eles estão chalados com esses preços proibi‑ que se põe logo… és um tipo estranho…!
tivos. Vou­‑lhe dizer uma coisa… ele que vá lá acima de uni‑ O velho traficante: (Gemendo.) Deixem­‑me… deixem­‑me…
forme e vai ver que consegue o que quer!… eu é que sei… sou um azarento… Santo Deus… Santo Deus…
Vortrefflich: … Sabe que mais? Com o sabão a minha inves‑ uma vez na vida uma pessoa tem… onde é que isto vai… eu
tida vai ter sucesso! O fio vai para a lista das baixas… tenho Skodas… tenho Skodas…
Gutwillig: … Ele cresceu que só visto! Teenovin e Punschnovin, A mulher: Bernaad… coragem… quem é que te diz que é ver‑
não é brincadeira! O homem hoje tem os seus bons dois dade… tu andas demasiado excitado com a guerra…
milhões, é o que lhe digo! Mas também que é que quer, um A filha: Pois, ponham­‑no ainda mais nervoso… toda a gente
artigo de primeira!… para aqui vem…!
702 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 703
A mulher: Santo Deus… o coração dele! O gerente: Pois… mas de que é que se fala?
O velho traficante: Deixem­‑me… deixem­‑me… o cora‑ O amigo: Ora…! Da paz!
ção… a edição vespertina… eu tenho Skodas… (Muda a cena.)
A filha: Como aquele ali está contente, o Weitzner… se fosse por
vontade dele…! Tio, vai­‑lhe dizer para se ir embora… o papá CENA 26
fica nervoso só de olhar para a cara dele! Friedrichstraße. Um cortejo ordenado de gandulos, agiotas,
O tio: Desculpa… não se pode proibir a um cliente… num esta‑ cantores de opereta, boémios, charlatães, chulos, maricas,
belecimento público… putas, gabirus, escroques, especuladores e galdérias.
A mulher: Só cá faltavas tu!
O amigo: Moldauer… olha lá… eu julgava… olha, tu és uma pes‑ Coro dos pregoeiros: … Os preparativos junto ao Piave!…
soa sensata… não te estou a conhecer… Heiratsonkel!… Olhò último Simplicissimuuus!… B.Z., edição
O velho traficante: Mas se… for verdade… eu sei… Santo… da tarde! Os neutrais não estão p’los ajustes… Fósfaros de cera,
Deus… eu tenho Skodas… fósfaros de cera!… Tageblatt, edição vespertina, os barcos ale‑
O segundo amigo: Queres apostar que não é verdade… então a mães não vão ser confiscados!… Lokalanzeigeeer!…24 Die große
que é que apostamos… vai ser um bom negócio para mim… Glocke! Revelações sensacionais, escândalos nos armazéns Wert­
ui, vais pagar todo contente…! heim… Os barcos alemães não vão ser confiscados!… Die Welt
(O velho traficante rompe em soluços convulsivos. Toda a am Montag!25 Templo de Vénus para homens da Kochstraße
gente está a ocupar­‑se dele com caras aterrorizadas.) fechado pela polícia! Para os nossos filhos! Imitação perfeita do
Um especulador jovem: (Abrindo caminho.) Ele tem vagões…? estrondo dos nossos maiores canhões!… Os primeiros mensagei‑
Quantos vagões é que ele tem? Olhem, eu declaro solenemente ros perfumados da Primavera! Quinze pfennig!… Heiratsonkel!
que estou disposto a… Crónica picante de Moabit!… B.Z., edição da tarde, B.Z.!… Die
O tio: Ponha­‑se a andar, seu descarado! Woche, Lustige, Fliegende Blätter!…26 Fósfaros de cera, fósfaros
O velho traficante: (Já só a gemer.) …Skoda… de cera!… Bar Cavaleiro da Rosa, o cantinho mais aconchegado
O gerente: (Aparece.) Mas que é que aconteceu…? Mas que é do mundo!… Imitação perfeita do estrondo dos nossos maiores
que se passa com o senhor von Moldauer…? canhões!… Voss,27 edição vespertina, Kühlmann jamais entre‑
O amigo: Nada… o Rappaport entra por aí adentro de supetão gará a Alsácia!… Canhão de 42 cm! Último sucesso, a 10 pfennig!
e conta­‑lhe… que sabe… justamente ele… o Rappaport sabe! Fazendo girar o canhão, produz­‑se um estrépito e um estrondo
O gerente: Bem… mas sabe o quê? Meu Deus, ele está ali dei‑ como se houvesse granadas verdadeiras a zunir pelo ar!… B.Z.,
tado como morto! Mas que é que aconteceu…? edição da tarde! Os neutrais não estão p’los ajustes… Tageblatt,
O amigo: Nada… fala­‑se… e ele levou isso de tal maneira a peito. edição vespertina, os barcos alemães não vão ser confiscados!…
704 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 705
Último númaro da Wahrheit!28 Os segredos do Kurfürsten‑ Um vendedor de jornais: Abendblatt, edição das oito, a pro‑
damm! Revelações sensacionais!… Kühlmann jamais entregará posta de paz do conde Burian… 22 mil quilos de bombas lan‑
a Alsácia!… Palavras duras do Vorwärts!…29 Lokalanzeigeeerr! çados sobre a praça­‑forte de Paris!
Os preparativos junto ao Piave! Como se houvesse granadas ver‑ (Muda a cena.)
dadeiras a zunir pelo ar!… Heiratsonkel! Simplicissimuuus! Die
große Glocke! Escândalos nos armazéns Wertheim… Os primei‑ CENA 27
ros mensageiros perfumados da Primavera… B.Z., edição da Acantonamento do Alto-Comando do Exército. Cabaré.
tarde, B.Z.! Os segredos de alcova da senhora von Knesebeck, é Oficiais do Estado­‑Maior, especuladores de guerra,
de apetite!… Para os nossos filhos! Imitação perfeita do estrondo alternadeiras. A música toca “Príncipe Eugénio, o Nobre
dos nossos maiores canhões!… Os preparativos junto ao Piave!… Cavaleiro”, “Foi­‑se o último transporte, é no bar que el’ tenta a
Um jovem: (Para uma rapariga que vai a passar.) Galdéria! sorte” e “A Guarda do Reno”. Numa mesa à direita, Kohn, um
A rapariga: Panasca! especulador vienense, com uma rapariga ao colo e, por trás, um
O jovem: O quê? Putéfia! (Os transeuntes aglomeram­‑se.) grupo de criados que tomam nota dos seus pedidos. Numa
A rapariga: O quê? Chulo! mesa à esquerda, Fettköter, um especulador berlinense, com
Um polícia: Andor, vamos, andor! (O cortejo retoma a ordem.) uma rapariga ao colo e, por trás, um grupo de criados que
(Entram um especulador berlinense e um especulador tomam nota dos seus pedidos. No meio, uma mesa a que estão
vienense ombro com ombro.) sentados oficiais do Estado­‑Maior e raparigas.
O especulador berlinense: Então que é que se passa? Quando A seguinte melodia marca aproximadamente a cena:
é que vocês avançam?
etc.
O especulador vienense: Ainda tenho três vagões, mas pre‑
firo esperar.
O especulador berlinense: Ora, senhores, estou a falar da Um oficial do Estado­ ‑Maior embriagado: (Amparado
ofensiva! pelos seus camaradas, vai batendo na mesa.)
O especulador vienense: Como é que hei­‑de saber…? Dizem que a frente está a tremer!
O especulador berlinense: Pois, vocês, austríacos, são uns Ouço, e fico c’o sangue a ferver.
madraços dum raio! Já era mais que tempo de finalmente avan‑ Patriota sou dos quatro costados,
çarem! Mas vocês nunca mais avançam? (O especulador a fome a mim não dá cuidados.
vienense fica em silêncio, embaraçado.) Então, pois! Estamos tranquilos, aqui na frente,
O especulador vienense: (Recuperando a coragem.) Pois a Áustria é eterna, é ponto assente.
então! (Saem ambos.) Dos Habsburgos não morre o trono…
706 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 707
Coro dos criados: O oficial do Estado­‑Maior embriagado: (Debaixo da mesa.)
Venha champanhe prò senhor Kohn! Olha, a Áustria, de pé há­‑de ficar…
A rapariga da direita: A empregada dos lavabos e o pessoal do bengaleiro:
Mas que cara é essa com que hoje estás? Sim, a Áustria, de pé há­‑de ficar.
Kohn: Fettköter:
Ris­‑te… e amanhã pode haver paz! Não, meninos, vós ides de charola,
O oficial do Estado­‑Maior embriagado: a vossa Áustria é mesmo fraquitola.
Acabem lá com o chavascal! Ó aliados, pra andardes a contento
Fritzi­‑Spritzi: (Batendo na mão de um dos oficiais.) o que vos falta é um bom regulamento.
Vinte quilos de massa… não está nada mal! A rapariga da esquerda:
O dono: (Para os criados à direita.) Ó lindo, não leves tão a peito!
Ponham a tropa a pagar já! Fettköter:
Honra maior não há por cá. Olha, tu não ’stás a ver direito!
(Para os criados à esquerda.) Hoje, toda a gente tem o dever
Mesmo que o cliente se porte mal, de estar grave, mas a fé manter!
não deixa de ser um oficial. Ó chefe, a conta… e depressinha!
Esses paspalhos são o nosso abono! A rapariga da esquerda:
O oficial do Estado­‑Maior embriagado: Sabes que mais, és um cara de fuinha.
Sem vacilar sustemos o trono. A rapariga da direita:
(Cai para debaixo da mesa.) Santo Deus, passo a vida a ansiar
A empregada dos lavabos e o pessoal do bengaleiro: que alguém me ofereça caviar.
Sem vacilar sustemos o trono. Eu não sou dessas de ir com um qualquer…
Fettköter: (Para a rapariga que tem ao colo.) Kohn:
Ao Hindenburgo direi o que acho! Olha, que novidade, é bom saber.
Vós, vienenses, ’stais na mó de baixo. Fettköter: (Quer ir­‑se embora.)
Não pode ser, isto dá furor! Desde ontem que por aqui ando
A rapariga da esquerda: e inda não fui ao Alto-Comando!
Ora, não tens sentido de humor? Força, vá, toca a levantar,
O oficial do Estado­‑Maior: tenho uma entrega pra efectuar!
Tocam o “Príncipe Eugénio”… levantar! Se fico aqui nesta baderna,
708 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 709
a vitória final passa­‑me a perna. os alemães vêm desenrascar.
(Põe­‑se às beijocas nela.) Venha daí mais desse veneno!
Mas do que eu hoje tenho vontade Fettköter:
é duma vienense gira de verdade. Está firme e leal a guarda do Reno!
A rapariga da esquerda: (Fazendo um sinal aos criados.) (Muda a cena.)
Ó lindo, diz lá, estás abonado?
Coro dos criados: CENA 28
Venha champanhe prà mesa do lado! Auditório em Viena.
(Voltam a encher os copos.)
O dono e os criados: O Eterno Descontente: (Recita a “Oração”.)
O melhor… ele é um forasteiro… Não me faças, Senhor, testemunhar!
é esmifrar­‑lhe todo o dinheiro. Ajuda­‑me a imergir no inconsciente.
Kohn: Que não tenha que vê­‑los a trocar
Olha lá tu, não posso admitir, por vinho o sangue vertido inocente.
eu pago e tu pràquele estás a rir!
A rapariga da direita: Senhor, este tempo de mim afasta!
Que culpa tenho eu, os oficiais Que à infância eu possa volver.
passam o tempo a fazer­‑me sinais… Daqui até ao fim a espera é vasta,
Kohn: que como os vencedores não possa eu ver.
Só faltava essa, não quero acreditar,
com oficiais a namoriscar! Seja muda, Senhor, a minha boca!
Um oficial do Estado­‑Maior: A língua deles não quero falar.
Se nós perdermos, olha, paciência, Não só se matam, sua mente é oca,
fica o exército de boa consciência. na verdade vai­‑se a raiva vingar.
Pois, guerra é guerra… se der prò torto,
na Fritzi é que vou buscar conforto! Senhor, que foste o criador da Ideia,
Coro dos oficiais do Estado­‑Maior: a palavra deles logo a liquidou.
Estamos tranquilos, aqui na frente, Tudo o que tem valor ela golpeia,
a Áustria é eterna, é ponto assente. mesmo a acção e a morte ela matou.
E se ficarmos a patinar,
710 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 711
Senhor, que eu pra o horror fique fechado! Senhor, uma terra me conquista
A música do mundo é monstruosa! onde os homens não morram p’lo dinheiro,
No Inferno, estava o demo enregelado, e a herança eterna que lá exista
ao troar do canhão contente goza. não seja da infâmia o viveiro!

Senhor Deus, que o inventor fizeste, Senhor, não terás tu maneira


o teu bafo soprando­‑lhe nas faces, de autómatos como estes afastar,
neste mundo a criatura puseste quando apesar da sentença certeira
pra que agradeça com seus tóxicos gases? vêm com granadas e juros ameaçar?

Senhor, porque é que me chamaste Salve­‑me, Senhor, da turba tua mão,


para este ímpio tempo de amargura? por entre este sangrento tremedal!
Castigas com a fome. Mas deixaste Faz que a noite se torne na impressão
comer o festim fúnebre a usura. de sonhar com teu juízo final!
(Aplauso, a que se juntam também as filas da frente.)
Senhor, porque me deste este prazo O primeiro: (Para a esposa.) Bem, é bom que saibas que houve
e me puseste nesta sangrenta casa, uma altura em que ele queria ser jornalista…
onde o que foi poupado por acaso (Muda a cena.)
com sua mesma morte se alambaza?
CENA 29
Senhor, esta terra é um telão O Assinante e o Patriota em conversa.
onde as festas deles são pintadas
com sangue. À dor seu canto é traição, O Assinante: O velho Biach disse em Kolberg…
paga o crime a conta das assuadas. O Patriota: Como?
O Assinante: Queria dizer, o velho Hindenburg… Ele30 diz hoje
Senhor, mas foi só por capricho no jornal que ele disse em Kolberg: “É com esperança num
que criaste os vampiros deste mundo? futuro melhor para o povo alemão que irei para o túmulo.”
Salva­‑me desta era, deste lixo, O Patriota: O senhor?
deste povo de algozes tão jucundo! O Assinante: Como assim, eu? Ele!
O Patriota: Ah, ele?
712 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 713
O Assinante: Mas não… apenas ele! Hindenburg! O primeiro: Mas de que é que isso serve, com o ambiente que se
O Patriota: Se o velho Biach tivesse podido ver isto! respira nesta Viena… Sabe, desde que o velho Biach morreu…
(Longa pausa, durante a qual olham um para o outro.) O segundo: A coroa está a baixar rapidamente…
O Assinante: Desde que Biach morreu que os estados de ânimo O primeiro: Se na semana passada ainda tivéssemos posto algum
não são o que deviam ser. lá fora…
O Patriota: Em vez dos estados de ânimo o que há agora são O segundo: Amanhã queria ir à Central de Câmbios… mas para
boatos, e isso é sempre mau sinal. que é que uma pessoa há­‑de andar a desenrascar­‑se, assim é
O Assinante: Tenho a forte sensação… as coisas estão fracas. mais fácil.
O Patriota: (Ergue dolorido os olhos ao céu.) Logo se verá. O primeiro: (Atira a beata do charuto e uma nota de 20 cêntimos
(Muda a cena.) aos pés de um mendigo.) Também isto já subiu de preço. Na
noite de Ano Novo… o camarote no Tabarin fica­‑me por 600
CENA 30 coroas bem contadas… é que a minha mulher não me larga…
Dois conselheiros comerciais saindo do Hotel Imperial. se isto assim continua, para o ano são mil!
Em frente deles, uma mendiga com uma perna de pau e um O segundo: Porque não?
coto em vez de braço. (Passa o Eterno Descontente.)
O primeiro: (Cospe para o chão.) Prò diabo que o carregue!
Primeiro conselheiro comercial: (Olhando em volta.) Mas O segundo: Olhe lá, se eu conto isto ao meu mais novo…
então não há um carro? É um escândalo! O primeiro: Como assim?
Ambos: (Apontando com as bengalas para um automóvel que passa.) O segundo: É louco por ele. Não perde uma única das sessões de
Táxi…! leitura. Sabe, é um dos mais fervorosos admiradores que ele tem.
O primeiro: (Gritando para um cocheiro.) Olhe lá! Está livre? O primeiro: Eu, no seu lugar, resolvia a coisa à chapada.
O cocheiro: (Encolhendo os ombros.) Tou ocupado! O segundo: Essa agora, nos dias que correm… o rapaz ainda é
O segundo: (Enquanto são cercados por mendigos de todo o género.) capaz de escrever à revistinha de capa vermelha a denunciar­‑me.
A única coisa que nos resta é que ainda vamos arranjando que O primeiro: Sabe, que a censura deixe passar uma coisa assim é de
comer. (Uma mulher desmaia de inanição e é levada.) É incrí‑ bradar aos céus, noutro sítio qualquer ao tempo que já o tinham
vel, em plena Ringstraße!… O Rothschild também já vai tendo enforcado! Sempre a agitar… contra a guerra e mesmo contra a
cabelos brancos… imprensa! Ele grita que não devia haver guerra… ora, e é por isso
O primeiro: Não admira, da maneira que isto está. que deixa de haver guerra? Então porque é que ele não está calado?
O segundo: Ele não pode ter mais de… há quanto tempo é que O segundo: É o cúmulo, em tempo de guerra a excitar os ânimos
foi, espere… a favor da paz!
714 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 715
O primeiro: Contaram­‑me que recentemente ele gritou mesmo O primeiro: Nem pensar nisso é bom. Sabe… quando volta um
com todas as letras para o público, para não partir mais para a e se põe a contar… é que é sempre a mesma coisa… bem, eles
guerra e deixar de assinar jornais! Olhe, se ele não está a soldo passaram­‑nas boas, mas isso a gente está farta de saber! Já nem
da Entente, vou ali e já venho. Além vem o Wassilko com a aguento ouvir, já começa a enjoar.
Gerda Walde. A pé! O segundo: Já nos basta de horrores.
O segundo: Onde? (Passa um inválido a coxear.)
O primeiro: (Apontando com o dedo.) Além. Ambos: (Apontando com as bengalas para um automóvel que
O segundo: Ele, ao meu rapaz, virou­‑lhe o juízo do avesso. Até passa.) Táxi…!
que há uns dias se me esgotou a paciência, peguei nele e disse­ (Muda a cena.)
‑lhe, andar a dizer mal da guerra não faz sentido, se não hou‑
vesse guerra, também não se podia ganhar dinheiro com ela, CENA 31
e pronto. Bem, isso ele entendeu. Mas de que é que serve, à O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
próxima vez lá volta ele a correr para as sessões de leitura. E o
seu mais novo, como vai andando? Tem feito progressos? O Eterno Descontente: O hospital dos cavalos já não pôde
O primeiro: (Orgulhoso.) Que quer que lhe diga? Já vai prà farra fazer nada. O mártir teve de ser morto. Tinha os sinais da
c’o Sascha Kolowrat! grande época no dorso: um desenho autêntico. De ambos os
O segundo: Chi! Faz ele bem, enquanto se é jovem é preciso lados, bastante regular, o mesmo padrão. Na espinha dorsal
divertir­‑se. Tem piada, dá­‑me sempre vontade de rir… que me via­‑se o amarelo do osso; nas ancas, a mesma coisa. A cauda
diz ao artigo de hoje do Hirschfeld? tinha sido arrancada por um tiro de raspão. A cilha tinha­‑se
O primeiro: Brilhante. Ora, e a Schalek? Até a ela ele ataca! enterrado na carne a toda a volta, formando uma chaga.
O segundo: Não vale de nada, ela é valente! Ele que se atreva a A ferida estava verde de pus e parecia uma queimadura de
pôr­‑se no meio da batalha a escrever! Nós temos bilhetes para terceiro grau. Diagnóstico: transporte de uma peça de artilha‑
Piccaver… ria que, durante semanas, nunca foi desatrelada. O dorso não
O primeiro: Há dias também expliquei isso à minha mulher, por‑ tinha sido aliviado da carga nem de noite nem de dia.
que ela vem sempre com a mesma coisa, “Se ao menos a guerra O Optimista: Pois é, não há volta a dar­‑lhe, os animais também
já tivesse acabado”, os soldados nas trincheiras fazem­‑lhe pena. têm de pagar as favas pela guerra.
O que eu digo é, eles em compensação tiram vantagens, ficam O Eterno Descontente: E o testemunho do seu sangue há­‑de
com a fama nos anais! E nós que é que temos? O imposto sobre acusar os algozes e profanadores da criatura mais alto do que
os lucros de guerra! Disso é que as pessoas nunca se lembram! o martírio dos seres humanos: porque eles não tinham voz.
O segundo: Pois, e o risco da paz…?! O cavalo ferido em cujo dorso estava gravado o peso da peça de
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artilharia, o peso da morte humana, é uma imagem de pesadelo O Optimista: Porquê?
que fará morrer de horror aqueles que se deitarem a dormir O Eterno Descontente: Se não fosse assim, teria sido comida.
sobre os louros. Desde que não estivesse já magra de mais com a fome. Se os
O Optimista: Já que estamos a falar de animais… guardei para cães não amassem as pessoas, diriam, antes de para dentro do
si um anúncio revoltante: “Compra­‑se a bom preço cães para matagal se lançarem, que a verdade é que são seres melhores!31
abater.” Uma coisa assim não devia vir num anúncio! Que con‑ O Optimista: Mas o certo é que tem de haver razões mais profun‑
clusões é que os inimigos vão tirar sobre a nossa situação ali‑ das para que “cão” seja um insulto e “como um cão” represente
mentar, se ouvirem… a mais vil das mentalidades.
O Eterno Descontente: As conclusões sobre o estado da nossa O Eterno Descontente: Infelizmente é verdade. É uma expres‑
cultura parecem­‑me ainda mais perigosas. são que se aplica, por exemplo, às pessoas que querem comprar
O Optimista: Como assim? Quando o ser humano necessita de cães a bom preço para abater. Ou as pessoas de quem se diz
comida não desdenha a carne de cão e, como é lógico, mata­‑o. nesta crítica teatral: “O Deutsches Volkstheater mostrou que
O Eterno Descontente: Diferentemente do cão, que desdenha também dá a palavra a autores que não se submetem como
a comida quando lhe morreu um ser humano. cães ao gosto do público pagante.”
O Optimista: Nunca ouvi falar de um cão desses. O Optimista: Quer comparar o gosto do público pagante do
O Eterno Descontente: Pode ler aqui alguma coisa sobre um Volkstheater com o das pessoas que compram a bom preço
desses cães… na revista Der Tierfreund: “Fidelidade de cão. cães para abater…
Como nos escreve um dos nossos sócios, a servente Hermine O Eterno Descontente: Porque não, essas pessoas também já
Pfeiffer, a quem a nossa associação tinha providenciado várias se sentam em camarotes. Mas seja o que for que se possa dizer
vezes uma chapa de identificação canina a preço reduzido, dos cães, nunca até hoje nenhum deles pôde ser acusado de se
morreu há algumas semanas. Desde o dia da morte da mulher, ter submetido ao gosto do público do Volkstheater. Mas tam‑
o seu caniche recusou todo o alimento e, alguns dias depois, bém não acredito que um cão morresse de desgosto pela morte
sucumbiu. De manhã, o fiel animal foi encontrado morto, com de um frequentador habitual do Volkstheater. Aqui, a criatura
a cabeça pousada numa almofada que a dona costumava usar. sente que o amor tem limites. Onde nada há de humano, tam‑
O que é estranho é que a falecida tinha dito uma vez que ficaria bém não é lugar para o canino.
contente se o seu cão também morresse, se lhe viesse a aconte‑ O Optimista: O senhor parece que o que quer é passar um ates‑
cer alguma coisa a ela, para que o animal não caísse em mãos tado melhor aos cães do que aos seres humanos.
de gente sem princípios que o tratasse mal. E, de facto, a cadela, O Eterno Descontente: Sem dúvida nenhuma. Com chuva
que estava tão estreitamente ligada à sua benfeitora, morreu de ou bom tempo, de dia e de noite, na guerra e na paz. Nesta
desgosto muito pouco tempo depois dela.” Ainda bem. guerra, também eles aguentaram a pé firme… e a verdade é
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que estavam mais indefesos. E cada um deles, dos que foram eram checos! Quando um soldado não cumpre o seu dever de
mobilizados, cada cão de guerra poderia mostrar a esses cana‑ defensor da pátria, é sempre um checo! Cambada de deser‑
lhas de galões que chamaram aos soldados “cães da frente” tores! Um soldado alemão cumpre sempre o seu dever. Eu
que a comparação é honrosa, e só esses monstros é que não próprio sou checo, mas envergonho­‑me de fazer parte dessa
têm honra. Que lhes arranquem as medalhas do peito e as nação. (Para um cabo.) Amanhã, vai tratar das compras para
dediquem, concedendo­‑as aos cães, aos antípodas do Estado­ me dar oportunidade de o engavetar. Pelo preço máximo não
‑Maior, exemplares na sua pobreza e dignidade! arranja nada, acima do preço máximo não pode trazer nada.
(Muda a cena.) Se não trouxer nada, vai para a choldra sem contemplações!
Então… quer mais alguma coisa?
CENA 32 O cabo: Meu major, com sua licença, o tenente Ederl comprou
Formatura de um batalhão. por sua conta queijo fatiado em Zillertal a dez coroas o quilo e
queria vendê­‑lo à messe dos oficiais por 24 coroas.
O major: O que é que tu fazias? O major: Que é que está a dizer?… Mas isso é inaudito!
O soldado: Meu major, com sua licença, era seleiro. O cabo: O encarregado da cozinha recusou a oferta por falta de
O major: Tu não aprendeste a olhar­‑me de frente? Cão! Seus cães! qualidade. Para o nosso tenente não ficar prejudicado, ficaram­
Seu filho duma cadela! (Para um outro.) Tu escreveste uma ‑lhe com o queijo para os praças, reduzindo­‑lhes em compen‑
carta à tua mulher a queixares­‑te do tratamento. sação a ração de carne. Creio, meu major, que, no interesse dos
O soldado: (Assustado.) Meu major… com… sua… licença… praças, em vista da irregularidade de uma tal…
O major: (Brandindo a carta.) Aqui está a carta! O quê, estás para O major: É inaudito! Você não tem que criticar o que os oficiais
aí a olhar, não sabias que o censor sou eu? Cão! Seus cães! Seu fazem ou deixam de fazer! Seis horas a ferros! (Para um outro.)
filho duma cadela! És o maior porco de todo o aquartelamento! Tu queixaste­‑te de que a comida era má e insuficiente?
Vinte e um dias de solitária com três dias de jejum por semana, O soldado: Senhor, major, com sua licença, queixei­‑me, sim.
depois disso, ala para a linha da frente! Já vais ver, meu cabrão! O major: (Dá­‑lhe uma bofetada.) Não é a comida que está
A ver se aprendes! (Para um outro soldado.) Ah, este é o mal, vocês é que andam sem apetite! Dai graças a Deus por
que anda com dores de barriga! A tua mãe mandou­‑te alguma haver guerra! No tempo da paz vocês nem isso tinham para
coisa que comer? Cá por mim, podes estourar! (Dá­‑lhe três comer! Vou­‑vos pôr a fazer exercícios até a língua vos chegar
bastonadas na cabeça e nas costas. O soldado vai­‑se embora ao umbigo… nessa altura as queixas sobre a má alimentação
em lágrimas, a cambalear.) Ficais a saber, os quatro da infan‑ acabam por si sós! Cães! Seus cães! Seu filho duma cadela!
taria que se recusaram a aceitar um oitavo de pão vão ser pre‑ (Muda a cena.)
sentes ao tribunal da divisão e vão ser fuzilados. É claro que
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CENA 33 “… Ao que se diz, a razão geral do atraso do correio daqui para
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. a retaguarda já não é o facto de agora não haver censura, mas
a correspondência ser simplesmente retida, para que possa ser
O Optimista: Para fazer uma ideia dos sentimentos do comba‑ ultrapassada pelos acontecimentos.
tente, bastava… Eu vou tentando os métodos mais diversos para tornar mais
O Eterno Descontente: …ler uma carta vinda da frente. Espe‑ leves estes tempos difíceis e terríveis – tudo sem resultado. Se
cialmente uma daquelas cujos remetentes conseguiram de pensar muito em ti, ainda fico mais triste e, se tentar distrair­‑me,
alguma maneira fazer chegar ao destino sem ter passado pela a seguir só fico ainda mais triste. O mais acertado, assim, é viver
censura. o dia­‑a­‑dia para que o tempo passe mais depressa. Pois cada dia
O Optimista: Mesmo assim, depreender­‑se­‑ia da carta que a que passa aproxima­‑nos mais, não podemos esquecer isso!
maior aspiração de cada qual é bater­‑se bem e que o sentido Estou ainda dominado completamente pelo sentimento de
do dever se sobrepõe mesmo à saudade da mulher e dos filhos. preocupação que hoje sinto por ti, mas vou sacudir esse sen‑
O Eterno Descontente: Ou ficar­‑se­‑ia horrorizado com o timento e entregar­‑me por inteiro à esperança de ter boas
crime incomensurável destes canalhas que provocaram a notícias de ti amanhã. Quando me ponho a pensar que podia
guerra ou a prolongam, o crime que representa interferir num agora estar junto de ti, ver a tua carinha querida, conversar
só dos milhões de destinos, rasgar e calcar aos pés a felicidade contigo sobre os dias futuros, que, sem dúvida, selarão ainda
de cada um, preparar o martírio de anos à espera da desgraça mais a nossa felicidade… e estou aqui tão longe e tu sozinha!
entre a casa e a trincheira, uma tensão que treme perante o Esta guerra é mesmo tão cruel, tão antinatural, não somos só
silêncio e que receia todo o sinal de vida daqui e dali porque nós que sofremos com ela, há tanta gente, gente tão incontá‑
poderá ser o anúncio da morte. Uma esposa faz­‑se mãe e uma vel a sofrer com esta arbitrariedade de algumas pessoas sem
mãe morre – e aquele a quem mais importa está algures dei‑ escrúpulos. Mas que me importam os outros, parte­‑se­‑me o
tado na lama pela pátria. Ora, os canalhas vieram agora com a coração só de pensar no que nós dois somos agora obrigados a
ideia engenhosa de suspender temporariamente o correio mili‑ suportar! É demasiado terrível, é quase impossível de superar.
tar, essa invenção de Satã, tão maldita como desejada. Nessas E, ao mesmo tempo, tem que se continuar a prestar serviço,
alturas, os infelizes sabem mais do que suficiente: porque esse um serviço difícil, de grande responsabilidade, perigoso, tem
silêncio é o que precede as tempestades. E com que precisão que se servir de exemplo aos soldados no que toca a coragem,
inconcebível se ajustam então os factos elementares da vida, sentido do dever ou lá como se chamam todas essas virtudes
do nascimento e da morte à decisão inescrutável do Estado­ que odeio, e cada passo que se dá ao serviço desta causa é com
‑Maior! Só o amor é que não lhe obedece. Que lhe importa o nojo e repugnância, contra toda a convicção mais íntima.
amor! (Lê em voz alta.) Exigem­‑nos que neguemos todos os nossos sentimentos mais
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nobres e quem não quiser rebaixar­‑se a fazer isso sofre indi‑ que agora recuperes e ganhes forças de dia para dia. Oh, Deus
zivelmente e faz com nojo tudo o que dele exigem. E pensar permita que eu receba hoje um postal escrito por ti própria.
que éramos tão felizes, que nos tínhamos ligado tanto um ao Quando receberes estas linhas, já estarás restabelecida, assim
outro, que somos tão unidos que um sem o outro não sabe Deus o queira. Sentiste que eu estava junto de ti e te acompa‑
minimamente o que fazer. Eu sou tão pobre e pequeno sem nhei em todas as dores? Oh, há­‑de vir o tempo, tem que vir,
ti, às vezes nem serias capaz de me reconhecer. Tantas vezes, em que sejamos compensados por todo o sofrimento por que
quando me entrego aos meus pensamentos, mesmo se eles não passámos.
estejam nesse momento a voar para ti, quereria perguntar­‑te Tão longe, tão longe de ti nestes dias! Oh, porquê, porque é que
qualquer coisa, saber alguma coisa de ti, ouvir a tua opinião, e não posso agora estar sentado ao teu lado, aquecer­‑te e dar­‑te
estou sozinho! Eu não preciso da opinião de outro, é a ti que forças com o meu amor infinito! Não consigo resistir, estou o
quero ouvir, é para ti que penso e sinto, seja o que for que pense tempo todo com lágrimas nos olhos, de modo que mal vejo o
ou sinta, e sem ti não sou eu, estou reduzido a metade e pobre. que estou a escrever.
O teu amor, cujos raios, mesmo de longe, chegam até mim, é Ah, meu Deus, não poder eu estar junto de ti! E não haver
a única coisa que ainda me conserva a alegria de viver. Para nenhuma esperança! Agora não se é mandado para casa ou
quê continuar a falar, para quê remexer ainda nas feridas que para um quartel da retaguarda, mas para um hospital qualquer.
já estão tanto em carne viva. Tu sabes que és tudo para mim… Estou com tantos cabelos brancos que já nem os posso contar.
ou, na realidade, és a causa da minha desgraça, porque, sem Mas gosto de ti, seja longe seja perto, gosto, gosto, gosto, de
ti, tudo isso custaria menos a suportar! E, por vezes, também uma maneira que nem há palavras, loucamente…”
imagino o futuro. Havemos de estar nos braços um do outro O Optimista: E então? Ele regressa e encontra a esposa e o filho,
até ao esgotamento total, até ficarmos meio­‑mortos e não ambos de boa saúde.
podermos mais de tanto amor, amor! O Eterno Descontente: A pátria determinou de maneira dife‑
Ah, não poder eu estar aí! Eu não teria saído do teu lado durante rente. Aqui há um ser humano a vir ao mundo, além há um que
as horas difíceis que te aguardam e tudo teria sido mais fácil tomba morto. Nunca li nada mais triste, nada mais verdadeiro
para ti. do que esta última carta de alguém que se tornou pai ao mor‑
Não estejas preocupada comigo. Se eu pudesse trazer­‑te para rer. Daria a pátria inteira com armas e bagagens por um único
aqui por artes mágicas, levar­‑te­‑ia comigo com toda a tranqui‑ destes milhões de mártires do amor!
lidade para as trincheiras. (Muda a cena.)
Oh, não poder eu estar junto de ti! O meu lugar é aí, e não
posso aí estar! Oh, Deus permita que não tenhas sofrido dema‑
siado, que não te tenha acontecido nada, que estejas bem e
724 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 725
CENA 34 ou Viena… mas falta pouco… para estar… em Postabitz.
Na aldeia de Postabitz. (Procede­‑se a uma distribuição de correspondência.) Talvez…
da minha Anna… (Estende a mão esquerda para receber uma
Uma mulher: (Está sentada à mesa a escrever.) carta.) Deus meu… é dela! (Tenta endireitar­‑se na cama. Segura
Meu esposo muito crido: a carta com os dentes, abre­‑a com a esquerda e lê. Tomba para
Escrevote a dar a notícia que dei um mau paço. A culpa não trás, fulminado.)
é minha, crido esposo. Sei que me bais perduar tudo o que te (Muda a cena.)
estou a contar. Estou de espransas doutro home. Eu sei que tu
és bom e me bais perduar tudo. Ele é que me conbençeu, dizia CENA 36
que tu já não boltabas da guerra e apanhou­‑me num momento Campo de repatriados na Galícia.
de fraquesa. Tu sabes como as mulheres são fracas e o melhor é
perduares, é uma coisa que já não se pode fazer bultar pra trás. O amigo: (Escreve uma carta.) … Sobretudo desde que eles mor‑
Tamém eu já pensaba que te tinha acontecido alguma coisa, já reram em combate, já não me parecia apropriado gastar nem
ia em três meses que num escrebias. Apanhei um susto balente uma palavra de lamentação sobre a minha sorte, que apesar
quando beio a tua carta e tu inda estabas bibo. Fico contente de tudo é relativamente suportável. Mas estou agora perto dos
por tua causa, mas predôa­‑me querido Franz, pode ser que a 40, tenho mulher e filhos e algumas outras preocupações que
criansa môrra e então acaba tudo em bem. Eu já não gosto desse ameaçam ser superiores às minhas forças e sou obrigado, já fez
fulano, agora que sei que inda estás bibo. Aqui está tudo tão quatro anos (e quem sabe por quanto mais tempo ainda!), a
caro, inda bem que estás fora, ao menos nu campo de batalha estar em sentido no brilho ridículo de feitos de armas que torna
tens comida de grassa. O dinheiro que me mandastes faz­‑me uma pessoa na mais indefesa criatura deste mundo de Deus,
um geitão. Abraça­‑te mais uma vez a tua mulher inesquecível como que desfalecido perante o arbítrio da mais desesperada de
Anna. quantas guerras tem havido. Isto mói os nervos e desmoraliza
(Muda a cena.) o espírito. Peço­‑lhe que considere tudo isto com indulgência
e me perdoe por eu mesmo agora, quando indubitavelmente
CENA 35 muitas coisas mudaram a meu favor, não ser capaz de passar em
Hospital em Leitmeritz. silêncio tudo aquilo que respeita às minhas suportáveis contra‑
riedades, embora o meu respeito pelo silêncio daqueles a quem
Um inválido repatriado: (Para o seu vizinho de cama, com a se dirige o seu comovente pranto fúnebre seja grande e o meu
respiração pesada.) Não se pode… perder… a paciência. Já é… a reconhecimento por tudo o que o senhor fez por mim – por
nossa penúltima… estação. Depois levam­‑nos… para Praga… mim, que ainda estou vivo! – seja profundo e inextinguível.
726 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 727
Sem dúvida que tenho todas as razões para estar grato a um regresso preferem dar meia­‑volta na fronteira e refugiar­‑se de
destino benigno que me tem mantido a maior parte do tempo novo no caos russo). Mas quando, por assim dizer, se é um
longe da linha da frente. Mas não sei – talvez esteja já dema‑ empregado forçado desta feira dirigida pelo Estado e quando,
siado confuso para ter perfeita consciência disso como um penetrando na alma desta empresa, se dá com um consórcio
alívio; e por vezes – veja lá! – até me parece que na frente, no de comerciantes que faz desaparecer os bens alimentares que,
meio do perigo, por vezes respirava mais livremente do que comprados a retalho, se destinavam a matar a fome daqueles
aqui, onde estou em segurança. Talvez esteja a iludir­‑me a pobres diabos nas trevas de uma retaguarda que não conhece a
mim próprio ou, se não estou, o motivo disso poderá ser que, fome – excepto a fome de dinheiro; se se recebe ordens de um
na frente, a vontade de viver agita estranhamente o sangue, caixeiro­‑viajante a quem, quando há uns dias me surpreen‑
enquanto aqui eu estou paralisado pelo medo de que o tédio deu a ler a Fackel, escapou a exclamação atónita: “Caramba…
de viver acabe por se me transformar no conteúdo da vida. mas esse ainda anda por aí de archote na mão?!” Uma pessoa
A respeito disto, só posso dizer que os horrores da maquinaria fica com suores frios e o que gostava era de fugir de tempos a
bélica – pelo menos em sentido figurado – nunca me afecta‑ tempos não apenas daquela jaula, mas, em geral, da jaula de
ram tanto como a tortura que, presentemente, representa estar macacos desta época e deste mundo!
banido num meio de oficiais – composto sobretudo por judeus E agora imagine que uma exclamação como a que acabo de
húngaros –, o qual, visto mais de perto, se revela um consórcio citar é cuspida assim à toa à nossa frente, enquanto se está a ler
de vendedores uniformizados do mercado negro. Acresce o “Da Paz Perpétua” e outros poemas! Porventura num momento
desolador aspecto exterior deste campo que – símbolo autên‑ em que eu estaria a pensar o que aqui só me atrevo a sugerir
tico da miséria em que estamos – exibe os nossos próprios sol‑ com uma imagem: nunca ainda o seu coração se tinha exposto
dados regressados como povos selvagens por detrás de uma de uma forma tão pura! Como a sua tormenta se amaina no
cerca de arame farpado enferrujado, enquanto uns desgra‑ murmúrio das profundezas, no cântico das alturas! Como uma
çados de baioneta calada vigiam as entradas e sobretudo um orla luminosa, emerge no véu dos seus versos: aurora da infân‑
portão principal que, numa decoração esvoaçante de bandeiri‑ cia – aurora da humanidade! E tudo o que é de hoje parece de
nhas e guirlandas, ostenta a extremosa inscrição: “Bem­‑vindos repente ser de ontem. O jovem e velho mundo de Deus!
à pátria!” Meu Deus, percebe­‑se este como muitos outros Era mais ou menos assim que eu via o rosto da sua criação
embaraços penosos, quase comoventes, em que os Estados da quando aquele monstro a conspurcou. Só ao escrever­‑lhe é que
Europa e, por maioria de razão, o nosso foram precipitados por sinto como, apesar de tudo, estou de novo cheio de vontade de
esta gigantesca gafe da guerra; e se estivéssemos lá fora – do viver. Nós, a quem a possibilidade de se perpetuar no próprio
lado de lá das grades – poderia olhar­‑se para isto tudo quando espírito foi negada, temos de contentar­‑nos com o que nos foi
muito com humor (ainda para mais agora que os soldados de dado em desejos terrenos, em destino terreno; mesmo quando
728 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 729
o acaso do filho que nasceu apenas perpetue o destino da nossa CENA 37
mortalidade. Talvez que o amor ao meu filho (que me manda Depois da ofensiva de Inverno nas Sete Comunas.
os mais comoventes desenhos e cartas – “nós até agora vamos Campo de instrução na retaguarda. Os restos de um regimento,
andando bem”, escreveu­‑me ele há dias), talvez só por isso ele com os soldados reduzidos a pele e osso. Com os uniformes
seja tão doloroso e profundo. Pois que, como no seu “Sono em farrapos, as botas rotas e a roupa de baixo imunda,
Leve”, o filho por nascer espera algures em toda a parte. parecem à primeira vista um bando de mendigos doentes
Mas agora despeço­‑me! Não, uma coisa ainda: a sua citação e andrajosos. Levantam­‑se cansados, exercitam o manejo
da carta de Goethe à senhora von Stein! Como senti a verdade das armas e treinam saudações militares.
dessa citação aqui no trato com os nossos soldados regressa‑
dos! Por exemplo, no último lugar onde estive, tinha uma com‑ Primeiro correspondente de guerra: Como eles vão ficar
panhia composta por gentes das mais diversas nacionalidades. contentes, quando souberem que o comandante supremo,
O meu único mérito relativamente a eles foi ter levado a peito que neste preciso momento está na linha da frente entre as
a melhoria do seu rancho e, em vez de os pôr a fazer exercí‑ suas valentes tropas, há por bem passar revista ao vitorioso
cios, os levar para o prado, fazendo­‑os contar­‑me o que tinham regimento.
passado no cativeiro e, quando necessário, ajudando­‑os um Segundo correspondente de guerra: Ele ainda está na
pouco na correspondência para a família. Foi tão comovente linha da frente, em Gries, junto a Bolzano, mas vai chegar não
a maneira como os homens me agradeceram! No momento tarda. Quer­‑me parecer que eles já sabem.
em que a companhia estava em ordem de marcha, dois solda‑ Um soldado: (Para um outro.) Agora é que ele cá vem, o paspalho.
dos de cada nacionalidade – alemães, rutenos, polacos, checos, Segundo soldado: Na linha da frente é que ninguém lhe põe a
italianos, bósnios – deram um passo à frente e exprimiram­ vista em cima!
‑me a sua gratidão em nome dos compatriotas. Depois de Primeiro correspondente de guerra: O imperador goza de
breves palavras de despedida da minha parte, deram­‑me três uma confiança cega entre os soldados.
vivas, um tipógrafo vienense ainda saiu rapidamente da for‑ Segundo correspondente de guerra: Basta que ele lhes
mação para me perguntar se podia mandar­‑me um postal de sorria para ficarem felizes, os valentes.
Viena e, agitando as boinas, a companhia marchou então sob Um capitão: Com mil raios, um bocado mais de aprumo, Sua
um belo entardecer de Primavera para o comboio. O nosso Majestade não tarda a chegar. Pois é claro, licença… era bom,
primeiro­‑tenente, que tinha estado a ver ao longe, perguntou­ não? Julgastes que lá por virdes restabelecer­ ‑vos ia haver
‑me depois: “Eles deram um viva ao imperador, não foi?”, o que licença. O caraças. Sua Majestade vem passar revista ao seu
eu, evidentemente, confirmei. glorioso regimento e aí não pode faltar nem um homem, cam‑
(Muda a cena.) bada miserável!
730 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 731
Primeiro correspondente de guerra: Olhe, o que está a O primeiro: Postais com o retrato do imperador. Em troca, rece‑
acontecer agora é interessante. Eles estão a trocar de roupa. bem só metade do pão.
Levam um uniforme novo, dos pés à cabeça. O segundo: Não há­‑de faltar quem fique contente com a troca,
Segundo correspondente de guerra: Que é que acontece grandes valentes. – Meu Deus, os automóveis… não está a ouvir?
aos farrapos velhos? (Chegam alguns automóveis. Saem deles figuras corpulentas,
O primeiro: Dão­‑lhos outra vez, quando o imperador se tiver entre as quais uma mais franzina, embrulhada em peles espes‑
ido embora. sas, com grandes tapa­‑orelhas. Pouco mais se vê do que dois
O segundo: As companhias ficaram reduzidas a um nível de entre lábios salientes.)
15 e 60 homens, claro que não vão deixar de as preencher…? O primeiro: Está a ver, eis a sua oportunidade de presenciar a
O primeiro: Qual não vão deixar! É o que eles estão a fazer agora cena: o comandante supremo inspecciona na frente as tropas
mesmo… além… está a ver como eles preenchem? Não se vão acabadas de chegar de uma batalha vitoriosa e trava conversa
agora mostrar ao imperador 2500 baixas, era o que mais faltava! com o mais simples dos soldados.
O segundo: Com que material é que se compõe as fileiras? O segundo: Ele tem uma personalidade cativante. Veja como
O primeiro: Ora, com sapateiros, alfaiates, ordenanças, cozi‑ conquista de imediato os corações.
nheiros, carreiros, tratadores de cavalos, doentes e assim… já O primeiro: Agora ele electriza.
todos receberam espingardas e já estão a exercitar­‑se. Se ele ao O segundo: Se ao menos se pudesse ouvir o que ele está a dizer!
menos já tivesse chegado. Este frio não é para mim. Que é que ele está a dizer?
O segundo: Olha para o que eles estão agora a fazer… que é O primeiro: Nada. Mas está a sorrir.
aquilo? (Ouve­‑se agora, homem após homem, pelotão após pelotão, num
O primeiro: Ora, mas é evidente, os homens que têm condeco‑ intervalo regular de cinco segundos de cada vez, seja “Ah, ah!
rações e que têm melhor aspecto passam para a fila da frente, Magnífico!” ou “Ah, ah! Muito bem!” ou “Ah, ah! Estupendo!”
estão a trocar. ou “Ah, ah! Continue assim!” Dura tudo duas horas. Despedida
O segundo: Isso estou eu a ver, mas que é que eles estão a fazer dos oficiais. Os automóveis partem.)
na cara? O coronel: (Para o major.) Ordem de serviço para comunicar às
O primeiro: O que estão a fazer na cara? Então não sabe, seu tropas: “Sua Majestade pronunciou­‑se de forma especialmente
maçarico? Estão a esfregar a cara com neve, para que todos elogiosa sobre o regimento. O moral e apresentação das tropas
fiquem com uma cor sadia, mesmo os doentes. é impecável, a coragem que brilha nos olhos de todos é incom‑
O segundo: Que ideia brilhante! Ora veja como eles já têm um parável. Sua Majestade mostrou­‑se particularmente satisfeita
aspecto radioso! Mas que é que está a acontecer agora? Estão a com o número reduzido de baixas sofridas pelo regimento. Sua
distribuir alguma coisa. Majestade concluiu com as seguintes palavras: ‘Senhor coronel,
732 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 733
estou certo de que o regimento continuará, como até ao Sua Majestade, a Imperatriz, à cozinha de guerra de Ottakring,
momento, a contar­‑se entre as tropas mais fiéis do seu impe‑ fossem publicados sem cortes. Permito­‑me sublinhar especial‑
rador, da sua pátria, e que, nos combates que se avizinham e mente a descrição das homenagens prestadas a Suas Majesta‑
que vão ser duros, mas vitoriosos, irá estar plenamente à altura des. Eu próprio pude testemunhar essas saudações verdadeira‑
e, assim, pregar na sua bandeira sucessivos louros.’ Eu retorqui: mente avassaladoras e, no meu comunicado, seguramente que
‘Certamente, Majestade, prometo que assim será.’” não exagerei. Aceitem antecipadamente os meus mais sinceros
O capitão: (Para os soldados.) O que vivestes hoje é algo que, agradecimentos. Com protestos de elevada consideração…
se quiserdes, podereis contar ainda aos vossos filhos e netos! Bem, e agora o seguinte:
Mas agora a palavra de ordem é: avante, para novas batalhas Prezada redacção: Tenho particular empenho em que o comu‑
e novas vitórias! E sobretudo… toca a despir depressinha os nicado sobre uma operação de assalto conduzida por Sua Alteza
uniformes novos! Imperial, o Senhor Arquiduque Max, que vai ser publicado na
O primeiro correspondente de guerra: Mas vale a pena? Österreichisch­‑Ungarische Kriegskorrespondenz do próximo dia
Olhe que não é mesmo brincadeira nenhuma, com dois graus 27, seja difundido da forma mais generalizada possível. Solicito,
negativos! assim, que esse comunicado não deixe de ser acolhido no seu
O segundo correspondente de guerra: Está a ver, que é prestigiado jornal. Aceitem antecipadamente os meus mais sin‑
que lhe tinha dito? Já há muito que estou farto deste serviço! ceros agradecimentos. Com protestos de elevada consideração…
A minha área é o teatro… o Hoehn está farto de saber! Vou (Muda a cena.)
mas é falar com o comandante da divisão a ver em que é que
ficou o teatro da frente. A ideia pareceu­‑lhe muito boa. CENA 39
O primeiro: Teatro da frente? Mas eles já estão a tirar a Kärnterstraße. Um tenor da Ópera rodeado por
maquilhagem! transeuntes. Um carro da corte pára. Os transeuntes
(Muda a cena.) cumprimentam. Um lacaio abre a porta do carro.

CENA 38 Arquiduque Max: (Chamando do carro.) Viva Fritzl! Queres vir


Palácio Imperial. Serviço de imprensa. junto prò Sacher?
O tenor da Ópera: Nã posso, Alteza Imperial… tou à espera
Capitão Werkmann: (Ditando.) Prezada redacção: Seria um duma garina! (Vivas para ambos.)
grande favor se, tanto quanto possível, os comunicados de Arquiduque Max: Ah, bem! Atão, adeusinho!
hoje, seguramente não demasiado extensos, sobre as inspec‑ (O lacaio fecha a porta. O carro da corte afasta­‑se.)
ções às tropas por Sua Majestade, o Imperador, e a visita de Um ardina: Êxitos junto ao Piavee!
734 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 735
CENA 40 “Qualquer desertor na retaguarda, mesmo que tenha de viver
Uma travessa. Debaixo de um portal, um soldado com escondido nas florestas, pode alimentar­‑se melhor do que os sol‑
duas medalhas ao peito. A boina tapa­‑lhe grande parte da dados na linha da frente.” Desertor! Como é que se pode escrever
cara. Ao lado, a filha pequena, que o guiou e se baixa agora uma coisa destas! “No respeitante ao vestuário, muitas vezes já não
para apanhar do passeio uma beata que lhe mete no bolso. existe um uniforme completo, porque falta a camisa ou as cuecas
No pátio da casa, um inválido com um realejo. ou ambas as peças. Um já não tem mangas na camisa, ao outro
faltam as costas, um terceiro só possui metade de umas cuecas
O soldado: Agora já chega. (Tira um cachimbo do bolso e a rapa‑ ou fragmentos de protecções para os pés. Os doentes de malária
riga enche­‑o com o tabaco das beatas.) têm de esperar nus que os seus farrapos sejam lavados e estejam
Um tenente: (Que passou, vira­‑se, em tom ríspido.) Mas você é secos.” Farrapos! Mas o tom que a linha da frente se permite para
cego ou quê? connosco! É pura e simplesmente como se fôssemos nós os res‑
O soldado: Sou. ponsáveis, era o que mais faltava! “Num regimento, um terço dos
O tenente: O quê?… Ah, bom… homens não tem sobretudo. Acontece haver sentinelas com capa‑
(Afasta­‑se. O soldado, guiado pela criança, segue na direcção cete e com sobretudo sem calças.” Ora, ora, deve ser uma cena bem
contrária. O realejo toca a marcha “Vivam os Habsburgos”.) divertida. “Numa situação destas, não se pode falar já do sentido
(Muda a cena.) de honra do soldado, a simples dignidade humana foi violada.”
Pois, pois, não é preciso levar a coisa tanto prò trágico. Mas que
CENA 41 tom! Esta gente da frente não entende nem os férreos imperativos
Alto-Comando do Exército. da guerra nem as regras do trato com o Alto-Comando. É pura e
simplesmente como se tivéssemos sido nós a começar a guerra!
Um major: (Para um outro.) Lá das linhas da frente uma pessoa E as coisas que as pessoas metem na ideia! Olha aqui:
não recebe mesmo senão chatices. Cá está outro desses mal‑ “Para levantar o moral, seria aconselhável destacar os membros
ditos relatórios, que uma pessoa nem sabe o que há­‑de fazer. mais jovens da augusta casa imperial para as tropas de combate
Se o passo ao Waldstätten, ele fica pior que uma barata, se não e para os sectores mais difíceis da frente.” Olha que uma coisa
passo, fica na mesma pior que uma barata. Atão que é que a destas… isto agora já é uma ofensa a membros da casa impe‑
gente há­‑de fazer! Ora olha aqui: rial! Não, meu caro senhor, por esse preço não vamos levantar o
“Em muitos regimentos é urgente uma melhoria da alimenta‑ moral… havemos de arranjar uma maneira diferente de levantar
ção, para manter as tropas em boa forma física. Numa divisão, o moral destes cavalheiros! Isso já é puro e simples derrotismo…
o peso médio do pessoal é de 50 quilogramas.” – Ora aí está! mandar membros da nossa casa dinástica para a linha da frente!
E mais isto: Uma dessas!
736 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 737
O outro major: Mas porque é que te enervas? Então achas que O Optimista: Não, acredite, o senhor está a subestimar as quali‑
eles iam? dades intelectuais dele.
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: Eu estou convencido de que a cara
dele transmite uma ideia exagerada dessas qualidades. Ainda
CENA 42 há pouco alguém que o conhece me asseverou que ele entende
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. as coisas com facilidade. Esse é o elogio máximo de que os
monárquicos são capazes em relação ao objecto da sua vene‑
O Optimista: Acredite no que lhe digo, o jovem imperador dá a ração, quando querem converter um céptico. Mas, na reali‑
impressão de ser um homem que se preparou a fundo para as dade, o pressuposto das funções de governação devia ser um
suas funções de monarca. monarca entender as coisas melhor do que os seus súbditos.
O Eterno Descontente: Não me custa a acreditar, já que, O Optimista: Mas ele não tem o grande mérito de querer a paz?
enquanto herdeiro do trono, ele tinha um gabinete de trabalho O Eterno Descontente: Essa qualidade tampouco o eleva acima da
forrado com ilustrações da Muskete. maioria dos súbditos da Monarquia. Eu, por exemplo, ainda quero
O Optimista: O senhor não faz ideia de até que ponto ele agora mais a paz e até ainda não pronunciei nenhuma mentira para a
leva as coisas a sério. fazer fracassar, quando teria podido torná­‑la possível com a verdade.
O Eterno Descontente: Não admira, numa pessoa que deixou E alguém como nós nem sequer tem possibilidade de renunciar ao
de ir a operetas desde que o Sonho de uma Valsa32 saiu de cena. trono quando não se quer conduzir ou prosseguir uma guerra.
O Optimista: Perdoe, mas quando já se viu o Sonho de uma Valsa O Optimista: Isso é o único defeito que lhe põem: ele é incons‑
50 vezes… tante, o último a falar com ele é que tem razão.
O Eterno Descontente: …então uma pessoa tem de passar a O Eterno Descontente: A multiplicidade das opiniões dele é
levar as coisas a sério, é verdade. assombrosa. É que ele dá a impressão de ser apenas um simples.
O Optimista: Muitas outras coisas mudaram nele. O entusiasmo O Optimista: Mas, assim como assim, temos de admitir que a
da juventude… evolução dele é surpreendente. Esperava­‑se dele coisas boas e
O Eterno Descontente: …pelo cabaré do Papagaio… ele cumpre o que prometeu.
O Optimista: …os belos tempos desregrados da guarnição de O Eterno Descontente: Isso cumpre. Mas não o que promete.
Brandeis… O Optimista: A sua inconstância… ele falar hoje de uma maneira
O Eterno Descontente: …o cinema em Reichenau… e amanhã de outra…
O Optimista: Esse ele também já não frequenta. O Eterno Descontente: …vem manifestamente do capricho da
O Eterno Descontente: Depois de lá ter ido cem vezes, parece natureza que é o lábio inferior protuberante dos Habsburgos do
que declarou que já estava farto. ramo saxão.
738 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 739
O Optimista: Mas tudo somado, a verdade é que ele é uma pessoa com o qual, em sinal do seu luto profundo, tinha almoçado sozi‑
agradável. Podem dizer o que quiserem… nho. O antecessor e o sucessor despediram­‑se saudando o res‑
O Eterno Descontente: Pois é, sabe, é que, infelizmente, não peitável público. O sucessor justificou de imediato as esperanças
se pode dizer o que se quer. nele depositadas com a frase histórica: “Bem… vambora!”
O Optimista: O que é que o senhor diria se não fosse assim? O Optimista: Não esqueça o significado simbólico inerente a fra‑
O Eterno Descontente: Que não quero ser súbdito de um menino ses como essa.
querido das operetas. Que para mim é impossível imaginar o O Eterno Descontente: Como é que havia de esquecer?
senhor Marischka ou o senhor Fritz Werner sentados no trono. O antecessor abriu uma brecha nos baluartes dos tempos
Que é muito mais execrável sentir respeito por um peralta do que antigos com a frase “As fortificações exteriores33 têm de ser
por um lémure. Que acho insuportável ser governado por alguém deitadas abaixo”.
que serviu de modelo a Schönpflug. Por alguém que é capaz de O Optimista: E o príncipe­‑herdeiro Rudolf exprimiu, como se
sorrir e de continuar a sorrir… e não irá jamais fechar a boca. Por sabe, a esperança de que um “mar de luz” resplandecesse…
um cumprimentador que não é capaz de abandonar a pose. O Eterno Descontente: …quando da inauguração da expo‑
O Optimista: E ele redige também a legenda divertida para acom‑ sição da electricidade. Mas se o Goethe moribundo não disse
panhar a imagem. Dizem que há dias, num banquete na corte, “Mais luz!”, como quer a lenda, mas apenas “Abri lá o outro
contou a seguinte piada deliciosa: “Que é que é o contrário de batente para entrar mais luz”, houve, provavelmente, mais luz aí
Apponyi? – A cavalo!” do que em todas as frases dos Habsburgos, que, é verdade, eram
O Eterno Descontente: Consigo ouvir as risadas relinchantes taxadas pelas firmas expositoras à tarifa máxima e cujo ímpeto
dos que têm poder de nos enviar para a morte. Não, não pode embrutecedor deu o golpe de misericórdia aos povos assolados
ser. Na campanha de Inverno já não vou participar. pelos feitos habsbúrgicos. Seja como for, o príncipe­‑herdeiro
O Optimista: Mas, veja lá, a sério, o senhor não pode censurá­ Rudolf, cuja silhueta entre os cocheiros Bratfisch e Mistviecherl
‑lo por ter sentido de humor. O que acontece é que ele herdou há­‑de servir de brilhante exemplo a futuras gerações de farris‑
a jovialidade proverbial dos Habsburgos, cuja única excepção tas, satisfez a sua sede de cultura lendo Szeps e Frischauer. Toda‑
foi Franz Ferdinand, e mesmo Harden, que é sem dúvida uma via, estes Habsburgos e Kalksburgos34 são um desastre como
testemunha­‑chave, depositou grandes esperanças nele. Estou pioneiros do progresso, sob cuja égide as ciências e as artes não
a referir­‑me àquela vez em que, depois do assassínio de Sara‑ tiveram remédio senão florescer. O que eu quero dizer é que
jevo, ele se mostrou sorridente ao povo de braço dado com o poucos deles seria possível imaginar com um livro na mão,
cumpridor tio­‑avô… nem sequer com um livro de Smolle sobre os méritos da águia
O Eterno Descontente: …o cumprimentador tio­‑avô, que, com bicéfala. O título de nobreza espiritual deles todos era “entender
a sua boa disposição, até desmentiu o comunicado de acordo as coisas com facilidade”, mesmo que depois as retivessem mal.
740 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 741
Mas de todas as frases de Franz Joseph, a que me parece mais sangrenta e abafar as maldições de milhões de mães com os
autêntica é a que ele pronunciou ao ver o aquário de uma vivas dos conselheiros imperiais. A Áustria, esse eterno “era
exposição de arte culinária. Ele disse: “Ah, peixinhos doura‑ uma vez” de sua Alteza Imperial, só voltará a si quando, um
dos, mas eles nadam de maneira tão natural!” Os Habsbur‑ dia, reconhecer que não há erva que cresça lá onde um passo
gos mais vivos intelectualmente e ao mesmo tempo mais elástico pisou o chão; quando tiver o bom senso de formar
fiáveis foram provavelmente os homossexuais e, se há algum repúblicas em vez de guardas de honra e, numa decisão súbita,
de quem se relata um sentimento humano, está de certeza fechar a portinhola do coche imperial no nariz dos Salvators e
enterrado em Maiorca, e não na Cripta dos Capuchinhos.35 das Annunziatas.
Os outros, que puderam dar livre curso à sua missão histórica O Optimista: Mas isso não vai ser para já. É que ainda há uns dias
de acrescentar o poder da dinastia através do casamento,36 e me pareceu que o coche da Blanka era saudado com o máximo
os que, em contrapartida, diminuíram a feliz Áustria fazendo de respeito e, quando se gera um engarrafamento no Graben,
a guerra, todos eles tiveram mais bom tempo do que os seus de certeza que é por causa da presença galharda do imponente
povos tiveram bom senso. Se não fosse assim, a má sina ances‑ arquiduque Eugen.
tral de ser governado por indivíduos de quem, no melhor dos O Eterno Descontente: É indubitável sobretudo a populari‑
casos, não podia dizer­‑se senão que era proibido ofendê­‑los dade do arquiduque Max, que herdou do pai a índole jovial de,
há muito se teria tornado insuportável e a situação anómala se necessário, galopar até por cima de caixões, coisa para que,
de, em pleno século XX, haver não apenas arquiduques, mas seguramente, a guerra mundial ofereceria ampla oportunidade.
também putanheiros de profissão que se atribuíam esse título, O Optimista: Só um eterno descontente é que lhe pode levar a
teria sido resolvida mesmo antes de se perder uma guerra. mal por…
A pressão cerebral que essa gentalha provocava apenas será O Eterno Descontente: …durante a sétima batalha do Isonzo
sentida em todo o seu peso esmagador quando tiver desapare‑ ele ter organizado uma soirée com salsichas no Clube de Pólo,
cido, coisa que se espera não tarde a acontecer. Assim o queira no fim da qual os convidados e os músicos foram transportados
Deus, que demasiado tempo foi invocado por uma população em automóveis da corte. Enche­‑nos de profunda vergonha as
disposta a todos os sacrifícios para que mantivesse e prote‑ pessoas serem obrigadas a levantar­‑se ou a descobrir a cabeça
gesse os Habsburgos. Espero poder festejar o próximo dia de quando vinha à ideia do povo embrutecido homenagear uma
aniversário do imperador já sem o afã iluminado dos lambe­ das suas sanguessugas, dar vivas a um desses parasitas imbe‑
‑botas, que para isso se deslocavam às termas, e sem os gritos cis que, mesmo durante uma ofensiva, não eram capazes de
vibrantes de “presente!” de uma imprensa infame que, mesmo renunciar às suas orgias e palhaçadas, tal como nos dá náuseas
em plena guerra mundial, ousou mobilizar esta comunidade a recordação das ligações, aparentemente próprias dos tempos,
da retaguarda para ficar face a face com a frente da nossa dor entre a Cripta dos Capuchinhos e o bar nocturno. Como não
742 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 743
conservar o mais vivo dos sentimentos dinásticos de especí‑ secos vai ser inevitável. Lémures que querem que os deixem
fica lealdade ao imperador quando esta está indissoluvelmente em paz e sossego e, por causa disso, fizeram uma guerra, e
ligada à ideia nebulosa de um clube nocturno onde, de repente, bonitões que passaram essa guerra a andar na farra e a fazer
o ambiente se anima de forma augusta, a pátria assume os seus negociatas já não nos governarão mais!
direitos por entre as cançonetas de amor e, como as melo‑ O Optimista: Aquilo que, na verdade, nos governa a todos é…
dias sagradas de uma glória apagada já estão desonradas pelo O Eterno Descontente: …o rosto do Wolf de Gersthof! Ali
estado de guerra, o opróbrio só aqui concebível dos mais reve‑ está ele! Lembra­‑se da minha profecia? Quatro anos… e como
rentes traficantes, alternadeiras, ladrões e paspalhos de toda ele cresceu! O olhar sangrento está lá e, no entanto, reina sua‑
a ordem se põe de pé, assistido por criados sempre prontos a vidade neste rosto austríaco.
trazer garrafas, pelo pessoal do bengaleiro e last not least pela O Optimista: O senhor está a exagerar. Segundo o que está a dizer,
empregada dos lavabos. Esse era o meio onde o amor à augusta ele ter­‑se­‑ia tornado num símbolo do nosso carácter como a
dinastia estava mais profundamente arreigado. Os monárqui‑ cabeça de Hindenburg é um símbolo do carácter prussiano?
cos, que não se esgotam, que não se extinguem numa guerra O Eterno Descontente: A tanto não conseguimos chegar.
e que, mesmo depois desta, ainda hão­‑de existir, consideram A gente está com bom aspecto… mas não tão grave e confiante!
que os atributos de lesa­‑majestade de uma família reinante são Tal como outrora o papá Radetzky olhava prà gente lá do alto, a
secundários e inerentes a todas as dinastias. Mas não poderão cabeça serena deste cocheiro contempla agora de cima os nos‑
negar que o carácter evidente e impertinente destes atributos, sos desvarios.
a degenerescência dentro da permissividade de uma época dis‑ O Optimista: Santo Deus, um cartaz como este… não significa
soluta, a propensão para o escândalo e mesmo para o crime mais do que…
dos mais elevados modelos, num mundo que eles próprios O Eterno Descontente: …do que milhões tiveram de morrer;
fizeram esvair­‑se em sangue, não são propriamente propícios mas ele sobrevive, é de tamanho descomunal! Se daqui a um
à ideia monárquica e que esta, de algum modo, seguramente ano cá aparecerem os inimigos, eles hão­‑de ver!
sai prejudicada pelo arrependimento de ter levado a cabo uma O Optimista: O senhor não vai ser capaz de levar esta correlação
guerra por uma família que não vale um tiro. Quando uma entre um cartaz e a guerra mundial muito mais longe.
alteza imperial37 não é apenas inspector­‑geral de artilharia, O Eterno Descontente: Usque ad finem! Se se tivessem fuzi‑
mas também fornecedor do exército e, em fiel aliança com lado os cartazes, os seres humanos ter­‑se­‑iam salvado.
um traficante, se lança num negócio de milhões que contribui O Optimista: Não consigo acompanhar o fio do seu raciocínio.
substancialmente para fazer a frente passar fome, então o hino O Eterno Descontente: Deixe­‑se ficar para trás à vontade.
nacional precisa urgentemente que lhe mudem o texto, já que, O monólogo que eu mantenho consigo deixou­‑o esgotado. As
se não for assim, a confusão entre ramos de louro e legumes realidades que o senhor não vê são as minhas visões e lá onde,
744 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 745
para si, nada mudou cumpre­‑se para mim uma profecia. Entre consentiram. A bala entrou na humanidade por um ouvido e
a minha predição de que a guerra mundial iria transformar o saiu pelo outro. Fujamos deste horror risonho! Fujamos deste
mundo numa grande retaguarda do engano, da nulidade e da rosto austríaco, do infinito deleite deste charco de sangue!
mais inumana traição a Deus e a minha afirmação de que tudo (Muda a cena.)
estava consumado, não há mais nada senão a guerra mundial.
Para opor a esta afirmação as mesmas dúvidas do que àquela CENA 43
predição, o senhor não precisa de fazer mais nada senão abstrair Parque da cidade. Uma multidão a perder de vista
do estado do mundo. O senhor não é um eterno descontente rodeia o terraço do Kursalon.
com o ideal, aceitando que ele seja desonrado pelo mundo? Eu,
optimista, como as minhas profecias se cumprem, sou forçado a Um ardina: Jornal da tarde! A batalha do Piave! A investida
ver o meu desejo mais piedoso ficar insatisfeito. Quando come‑ austríaca!
çou esta calamidade, eu tinha pedido a Deus que fizesse sentir a Uma senhora: Santo Deus, estou tão nervosa…
estes mal­‑nascidos na cidade e no Estado que tudo estava con‑ Uma segunda: Então o quê, tu vais subscrever o empréstimo de
sumado. Mas Deus não ficou com o sangue deles como expia‑ guerra?
ção pelo acto que no princípio era,38 o sangue dos vigaristas, A primeira: Eu? Tens cada ideia, estou é com curiosidade…
das nulidades e dos traidores a Deus. Deixou, em compensação, (O público está a ficar impaciente.)
que eles sacrificassem o sangue dos outros e que sobrevivessem Um cavalheiro: Senhores e senhoras, por favor não empurrem…!
incólumes ao assassínio do mundo. Em verdade, se os cami‑ Um querido marido: Vais ver que é uma peta!
nhos do Senhor não fossem insondáveis, seriam incompreen‑ A querida esposa: Mas se te estou a dizer que vinha hoje cedi‑
síveis! Mas porque é que ele nos tornou cegos perante a guerra! nho no jornal…
Aqui, eles vão cambaleando pela vida, estropiados e aleijados, O esposo: Aqui tens a Zeit…39 então onde é que vem?
mendigos com tremuras, crianças de cabelos brancos, mães A esposa: Mas tu estás cego! Aqui logo em cima, antes do
enlouquecidas, que tinham sonhado com ofensivas, filhos de editorial…
heróis com os olhos trémulos de angústia mortal, e todos os O esposo: Palavra de honra! Não pensei que estivesse nesse sítio…
que já não têm luz do dia nem sono e não são senão as ruínas (Lê.) “Hoje, quinta­‑feira, 23 de Maio, ao meio­‑dia e meia, no
de uma criação feita em pedaços. E, além, aqueles que tiveram a terraço do Kursalon, do parque da cidade, o senhor Hubert
ousadia da operação riem­‑se do juiz cujo trono sobre as estrelas Marischka, do Teatro an der Wien, dará um beijo àquela
está demasiado alto para que o seu braço os atinja. Acaso não senhora que dê o maior contributo para o oitavo empréstimo
está tudo consumado? Nem uma cicatriz lhes fica na alma, que de guerra.” – Bem, digo­‑te já, tu não vais dar nenhum contri‑
nunca foi ferida por aquilo que fizeram, de que souberam, que buto para o oitavo empréstimo de guerra, estás a ouvir?!
746 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 747
A esposa: Ora, ora, não te enerves, eu só quero é ver! Julgas que Um outro: Se é só um filme das Produções Sascha, deviam ter
toda a gente que aqui está vai logo subscrever o empréstimo de dito logo! Há aqui muitas senhoras que deram um contributo
guerra? As pessoas só querem é ver! para o empréstimo de guerra e agora deixam­‑nas para ali ficar!
O esposo: É o que se vai ver… Vais ver que é uma peta. Sai daí Gritos: Fora!… É um escândalo!… Mas onde é que está o Marischka!
do meio da confusão! Sabes o que é que vai ser… eu já te digo, Um terceiro: Parece que o Marischka cancelou!
vai ser um filme! Um grupo: Estão a gozar com a gente?… Há mais de uma hora
A esposa: Tu és mas é um desmancha­‑prazeres! Ora, e se for um que para aqui estamos…! Isto é uma barafunda…! As nossas
filme? O que interessa é que se vê o Marischka a dar um beijo. mulheres…!
O esposo: Mas que gozo é que isso dá, se é uma coisa encenada? Um outro grupo: Bravo! É isso mesmo!… Onde é que está o
Um traficante gordo: (De braço dado com uma rapariga, a comité?… Fora!
trautear.) Beijar não é pecado… uma moça bonita… Alguém: (Chega a correr, esbaforido.) Ouvi um boato… Marischka
A rapariga: Ora, pára com isso, isso é do Girardi, nunca gostei dele! cancelou!
Um acompanhante: Eu não conseguia aguentá­‑lo. De quem eu Um outro: Pois é claro… foi o que eu pensei logo… ele não ia
gosto é do Thaller. dar o beijo em pessoa!
Voz de um céptico: Então, e o Treumann não conta pra nada…? Um senhor de idade: (Trauteando.) Vamos… chama­‑me…
A menina Körmendy: Santo Deus, o Marischka, estou tão excitada! queridinho…
A menina Löwenstein: Eu só subscrevo o empréstimo de Um jovem de casaca e polainas brancas: (Trauteia, ao
guerra se for o Storm a dar um beijo! mesmo tempo que executa passos de dança.) Astrónomo… astró‑
A menina Körmendy: Deus Senhor, vem ali… nomo… abre­‑me esses olhos…
A menina Löwenstein: …o Nästelberger! O amigo: Olha lá, é mesmo, cada vez te pareces mais com ele.
Um peralta: (Para uma sécia.) Beijo­‑lhe as mãos, minha carís‑ A steffi: É o Marischka sem tirar nem pôr! Dezsö, deixa­‑me dar­
sima senhora… Veio sem o seu querido marido…! Oh, eu tenho ‑te um beijo!
um lugarzinho reservado para a caríssima… um momentinho! O jovem: Até sou capaz de actuar em vez dele.
(Resmungos entre o público.) A steffi: A ver se te atreves.
Gritos: Afinal é só um filme!… Vigaristas!… Onde é que está o O jovem: Ora, mas tu julgas que eu troco de lugar com o
Marischka?… Viva o Marischka!… É só um filme das Produções Ma­rischka…? (Com a melodia anterior.) Catorze va… gões já
Sascha!… Vigaristas!… Vão espetar essa a outro! cá… cantam. (Risos.)
Um ardina: Jornal da tarde! Os preparativos junto ao Piave! (Agitação crescente entre o público.)
Um orador: Senhoras e senhores! Aguardemos um pouco e Gritos: Mas que é isto?… Comité!… Pra que é que nos conven‑
vereis… ceram a vir?… Fora!
748 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 749
Um agitador: Uma coisa assim só em Viena! As pessoas julgam O querido esposo: Por amor de Deus…!
que temos tempo a rodos! A esposa: Olha, pelo menos cancela a assinatura da Zeit!
O representante da companhia cinematográfica: O esposo: Acalma­‑te. Estão a ver… que é que eu disse?!
(Entra.) Distintíssimo público! Acalmem­‑se! Ninguém vos A esposa: Pois claro…! Ficas todo contente…! Tu és assim…!
enganou! Trata­‑se de um filme de publicidade ao empréstimo Põe­‑te a andar que já nem te posso ver! Tudo estragado…
de guerra que vai ser realizado por encomenda do Depar‑ O esposo: (Trauteando.) Mulherzinha, mulherzinha, não sejas
tamento de Imprensa Militar Imperial e Real. A notícia do tão má…
jornal, a que as Produções Sascha são inteiramente alheias, (A multidão dispersa.)
deve­‑se manifestamente a um motivo patriótico. Nós próprios O traficante gordo: Vambora pra casa e dizemos que não
tínhamos todo o interesse em que o ensaio se realizasse o mais aconteceu nada.
possível sem a presença do público, mas já que aparecestes… Um ardina: Jornal da tarde! A batalha do Piave! A investida
Gritos: Bravo!… É uma burla!… Viva o Marischka!… Onde está austríaca!
o Marischka?… Queremos ver o Marischka! (Muda a cena.)
(O público vai avançando aos empurrões no meio de gritos ani‑
mados de “Viva!” e “Fora!” e invade o terraço, virando nume‑ CENA 44
rosas cadeiras e mesas, destruindo a balaustrada e provocando O Optimista e o Eterno Descontente em conversa.
avultados prejuízos também no resto do mobiliário.)
O dono do restaurante: (Torce as mãos desesperado, mas O Optimista: E o que é que seria então a glória dos heróis?
recobra as forças e grita para o realizador.) Olhe lá… o senhor O Eterno Descontente: Pode depreender isso desta crítica
vai ter que pagar isto! teatral. Gostava de a ouvir lida pela sua voz. Se há um teatro
A multidão: Marischka! Marischka!! Marischka!!! da frente, há também uma frente do teatro. Ou inversamente.
O representante da companhia cinematográfica: (Em A alternância faz calafrios.
total nervosismo.) Nestas condições… o ensaio está cancelado! O Optimista: (Lê, erguendo por vezes a voz.) “Bürgertheater.
Gritos: Que descaramento!… Há gente capaz de tudo!… Fora!… A sessão de hoje do Bürgertheater foi dedicada às viúvas e aos
Onde é que está a polícia?… Um escândalo destes, em plena órfãos dos heróis de Uszieczko.40 O esquadrão de reserva do
guerra!… Está tudo feito em fanicos! Undécimo Imperial e Real Regimento de Dragões do Impe‑
(Formam­‑se grupos, que comentam os acontecimentos numa rador (tenente­‑coronel barão Rohn) organizou uma gala em
enorme excitação.) benefício das viúvas e órfãos dos camaradas tombados em
A querida esposa: Quer dizer que ele não vem! Por mim, Uszieczko. Está na memória de todos a façanha heróica dos
podem meter todo o empréstimo da guerra… Dragões do Imperador à frente da cabeça­‑de­‑ponte do Dniestre.
750 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 751
Eles defenderam o posto avançado contra inúmeros assaltos, Höfer é uma representação, de fino recorte poético, do último
opuseram resistência a forças muitas vezes superiores, até que, feito heróico dos Dragões do Imperador e traça em grandes
depois de violentos combates que duraram meses, as massas dos linhas a história do glorioso regimento. Depois da ardorosa
inimigos conseguiram finalmente conquistar o fortim transfor‑ alocução do oficial, que o senhor Skoda declamou de modo
mado num monte de ruínas. O punhado de homens sobrevivente arrebatador com ímpeto retórico e num crescendo de pathos,
dos Dragões do Imperador, capitaneado pelo seu comandante, cantou­‑se o novo hino do regimento, composto pelo capitão
o coronel Planckh, conseguiu, no entanto, abrir caminho até às Zamorsku, um herói de Uszieczko, sobre o texto inflamado da
nossas forças por entre as fileiras inimigas. O público vienense esposa do capitão Perovic. Depois, desfilaram as figuras dos
saudou hoje os bravos de Uszieczko no palco do Bürgertheater e comandantes e titulares do famoso regimento, as figuras do
consagrou­‑lhes uma vibrante homenagem. Esta bela ideia de cele‑ coronel Heißler, do príncipe Eugénio, de Radetzky e, por fim,
brar os heróis de Uszieczko estava subjacente ao prólogo cénico do nosso imperador. O corneteiro do regimento deu o toque de
escrito para a circunstância pela nossa delicada poetisa Irma von ‘oração’. Os soldados no palco ajoelharam­‑se e entoaram o hino
Höfer. Ela usou o lugar dos violentos combates como cenário nacional, a cuja melodia se juntou o público, em que podia ver­‑se,
da acção e a hábil mão do pintor Ferdinand Moser fez surgir além das mais elevadas instâncias militares, também as máximas
no palco, como por artes mágicas, a paisagem do Dniestre. Em autoridades civis e os representantes da mais selecta sociedade.
frente do fortim, por trás do qual, à luz crepuscular da lua, Uma ovação estrondosa acolheu este prólogo da senhora von
o Dniestre corre como um fio de prata, estão acantonados os Höfer, que trouxe para o palco os acontecimentos dos últimos
Dragões do Imperador, e aqueles que hoje deram vida ao palco dias com força expressiva e uma manifesta plasticidade. O pano
ainda não há muito estavam junto ao Dniestre num combate de cena teve depois de subir repetidas vezes e a casa repleta
terrível. A maior parte deles trazia ao peito as bem merecidas vitoriou entusiasmada os heróis, que agradeceram fazendo uma
condecorações. Skoda, o actor do Teatro Nacional, interpre‑ continência aprumada. Irma von Höfer foi objecto de ovações
tou, vestido com um uniforme de oficial dos Dragões, o pró‑ estrondosas e de muitos lados se exprimiu o desejo de que a
logo profundo e emocionante de Irma von Höfer. O prólogo obra seja tornada acessível a camadas mais amplas com mais
narra a glória dos Dragões do Imperador, os feitos heróicos representações. Ao prólogo cénico seguiu­‑se a representação de
dos homens do ‘Onze’, a resistência a todos os ataques, e está O Devorador de Mulheres de Eysler, com Fritz Werner e Betty
imbuído de um entusiasmo faiscante e de um fundo senti‑ Myra nos seus conhecidos papéis principais…” – Não! Isto não
mento. Enquanto o Dragão do Imperador aguarda, ao raiar da pode ser verdade!
manhã, o ataque do inimigo, pensa no seu lar, na mãe, na esposa O Eterno Descontente: Como assim?
e nos filhos, acaricia e beija o último postal dos seus entes que‑ O Optimista: (Olha de novo para o jornal e diz.) “O público vito‑
ridos e a seguir vai enfrentar o inimigo. O prólogo de Irma von riou entusiasmado os heróis… que agradeceram fazendo uma
752 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 753
continência aprumada.” (Pausa. Olha para o Eterno Des‑ que irá ser cobiçada por pobres e ricos. Supera de longe tudo o
contente.) Isto não pode ser verdade! O que… seria então a que apareceu neste género até ao momento! Preços para reven‑
glória dos heróis? dedores…” – Isto não pode ser verdade!… Diga­‑me que… foi o
O Eterno Descontente: Uma peça de teatro. Ou: uma colina senhor que escreveu isto… que isto tudo é obra sua!
pútrida onde crescem rubras como o fogo as ervas daninhas O Eterno Descontente: (Aperta­‑lhe a mão.) Muito obrigado.
– como diz um poeta chinês da guerra.41 Um bufarinheiro ale‑ É obra minha.
mão pensa de maneira muito menos derrotista. (Muda a cena.)
O Optimista: O que quer dizer com isso? Não devia falar assim
destas coisas. A glória dos heróis não é artigo de bufarinheiro. CENA 45
O Eterno Descontente: É, sim. Ora leia este recorte de um Innsbruck. Maria Theresienstraße. Meia­‑noite.
jornal especializado que alguém me mandou. A rua está deserta. Entra uma rapariga com um sabre
O Optimista: (Lê.) “Informação importante para vendedores na mão direita com que vai esgrimindo.
ambulantes! Se estiver interessado num magnífico artigo para Pelo lado oposto entra um ajudante de carniceiro.
venda ao preço de um marco, recomendamos­ ‑lhe a nossa
estampa comemorativa patriótica ‘Ele morreu como um herói O ajudante de carniceiro: Mas atão que é isso? (Reconhece­‑a.)
pela pátria’. Tamanho da estampa: 44x60 cm. Está executada Ora… (Agarra no sabre.)
numa imitação de gravura em cobre de elevada qualidade artís‑ A rapariga do sabre: Largue… largue, já disse…!
tica e é uma magnífica decoração de parede para todas as famílias O ajudante de carniceiro: Você é uma protestuta! A semana
que tenham perdido um dos seus membros no campo da honra. passada fez­‑me um aceno a convidar­‑me! Você não tem direi‑
Mostra, além de imagens comoventes de batalhas representati‑ tos a andar c’um sabre! (Tira­‑lhe o sabre.) Onde é que uma
vas de todas as armas, um sereno túmulo de soldado sob o qual pessoa como você arranjou um sabre, no meio desta guerra…
se inscreve o nome do caído e o lugar onde tombou. A fotografia (Entram três oficiais a correr, um dos quais sem sabre.)
deste, emoldurada por uma coroa de folhas de carvalho, é colada O oficial sem sabre: (Cambaleante.) Eh lá! Mas quem é que
no centro da estampa e é aureolada pelos raios da Cruz de Ferro, anda com o meu sabre? Já para cá, e depressa! (Quer arrancar
que está por cima, enquanto a deusa da paz lhe estende os lou‑ o sabre das mãos do ajudante de carniceiro.)
ros da vitória. Vê­‑se Sua Majestade, o imperador, clamando aos O ajudante de carniceiro: Desculpe, senhor primeiro­
deputados as memoráveis palavras ‘Já não conheço partidos!’42 ‑tenente, mas esta senhora conheço­‑a de ginjeira… é uma
e, no meio das nuvens, brilham, transfigurados, os rostos dos mulher de má nota… esta mulher é uma protestuta… atão eu
fundadores do Reich alemão: o imperador Wilhelm I, Bismarck tenho o dever… tenho que ir entregar o sabre à esquadra… ou
e Moltke. Uma estampa comemorativa tão nobre e comovente não? Onde é que uma pessoa como esta arranjou um sabre?
754 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 755
O oficial sem sabre: (Tornando­‑se mais enérgico.) Ó meu o sabre ao ajudante de carniceiro e entrega­‑o ao primeiro­
menino, dá já para cá ou… (Leva a mão ao sítio onde costuma ‑tenente, que o deixa cair ao chão. Os camaradas dão­‑lhe assis‑
estar o sabre.) tência.) Bem, que é que se passa com esta mulher?
O ajudante de carniceiro: Não pode ser, uma mulher des‑ O ajudante de carniceiro: A semana passada acenou a
tas andar com um sabre! Isto tem que ser denunciado às convidar­‑me! Uma protestuta, é o que ela é!
autoridades! Ambos os polícias: (Para a rapariga sem sabre.) Olhe lá,
O segundo oficial: (Desembainha o sabre.) Nada de escânda‑ parece­‑me que você não tem licença!
los! Vais ou não vais, seu malandro… O oficial inspector: (Para o primeiro­‑tenente.) Olha lá, Pöffl.
O terceiro oficial: (Segurando­‑o.) Nada de escândalos, Waber, Estiveste com ela?
vê se tens juízo! Isto é um bando de borrachos! Ambos os polícias: (Para a rapariga sem sabre.) Olhe lá,
O ajudante de carniceiro: (Esgrime com o sabre.) O quê? você leva uma vida à margem da lei.
Um bando de borrachos? Olhe lá, senhor primeiro­‑tenente, eu O primeiro: Por suspeita de doenças venéreas…
também tenho um sabre! O segundo: …e de exercer a prostituição sem estar autorizada…
O oficial sem sabre: (Agarra­‑lhe no braço.) Malandro! Ambos: …acompanhe­‑nos à esquadra!
A rapariga sem sabre : Ó Pipsi, deixa lá, não te ponhas assim… O oficial inspector: Essas gracinhas com o sabre em plena
com um civil! guerra, minha cara, vão­‑lhe custar caro! Já é o terceiro caso,
O ajudante de carniceiro: Ó da guarda! Ó da guarda! Já que eu saiba.
vamos ver! A rapariga sem sabre: (Apontando para o primeiro­‑tenente.)
(Entram dois polícias. Todos se dirigem a eles.) Ouça, ele é um amigo meu! Não é verdade, Pipsi, que és meu
O primeiro polícia: Mas por favor, por favor, senhor primeiro­ amigo?
‑tenente, derramamento de sangue é que não… no meio desta O oficial com sabre: (Apontando para o ajudante de
guerra! carniceiro.) Aquele também tem que vir. Ele tocou no meu
O terceiro oficial: Estás a ouvir, derramamento de sangue é sabre!
que não, vê se tens juízo! O ajudante de carniceiro: Por favor, eu estou inocente…!
O segundo polícia: Meus senhores, venham todos à esquadra O oficial inspector: Olha lá, Pöffl, pagaste­‑lhe o salário do
central na Câmara Municipal, lá tudo se há­‑de apurar. pecado?
(Aparece um oficial inspector. Todos se dirigem a ele.) A rapariga sem sabre: (Enquanto a levam presa, gritando para
O oficial inspector: Mas que é que é isto? Não passa uma trás.) Eu não sou dessas…! Estava só de passagem…! Ele está­
noite sem que haja coisas. Olhe, esta já eu conheço. Não és o ‑me a dever 20 coroas…! Vinte coroas…! E prega­‑me o calote,
primeiro a quem ela se raspa com o sabre. Ora aí o tens! (Tira o bandalho!…
756 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 757
O ajudante de carniceiro: Mas que desavergonhada! O segundo: O príncipe Alfred Windischgrätz ofereceu­‑se como
O senhor primeiro­‑tenente não devia dar­‑se com uma desa‑ voluntário para o serviço militar.
vergonhada como esta! O primeiro: O imperador trabalhou o dia inteiro com todo o
O oficial com sabre: Ele tocou no meu sabre! (Faz menção de afinco.
desembainhar o sabre.) Cabrão da frente! Cambada de putas! O segundo: O pai dos soldados.
Quem me chegar ao pé…! ’Pera aí… sabre… farda do impe‑ O primeiro: No dia 27, entre o meio­‑dia e a uma, tomaram­‑se na
rador… uah… (Vomita. Os outros levam­‑no dali à força. A rua Caixa de Depósitos Postal as providências financeiras exigidas
está deserta.) pela guerra.
(Muda a cena.) O segundo: O aprovisionamento de Viena para o período da
guerra foi assegurado pelo burgomestre em conjunto com o
CENA 46 primeiro­‑ministro e o ministro da Agricultura.
Dois admiradores da reichspost, dormindo. O primeiro: A guerra não vai provocar carestia.
O segundo: Só virtudes.
O primeiro admirador da reichspost: (Falando durante o O primeiro: Que tesouro de virtudes não foi já trazido à luz por
sono.) … e pediu para depor a homenagem da população fiel ao esta guerra.
imperador aos pés do trono altíssimo, o burgomestre Weiskir‑ O segundo: Uma severa preceptora dos povos.
chner respondeu, meus caros vienenses, vós estais a viver uma O primeiro: Conquistadora prometeica da luz e da claridade.
grande época, em inabalável fidelidade prestamos homena‑ O segundo: Dadora de luz… de vida… comedores de macarrão…
gem ao nosso velho imperador tão amado, vivas estrondosos, O primeiro: As guerras são processos de purificação e de lim‑
temos também presente em espírito o nosso aliado de couraça peza, são sementeiras da virtude e fazem despertar os heróis.
resplandecente, vivas estrondeantes, e hoje… O segundo: Renascimento do pensamento e da acção austríacos.
O segundo admirador da reichspost: (Falando durante o O primeiro: Vai tudo raso!
sono.) …e hoje o embaixador italiano foi recebido pelo nosso O segundo: Rás, catrapás, vai tudo prò galheiro.
ministro, para entregar a declaração solene de que a Itália se O primeiro: Somos pela paz, se bem que não pela paz…
mantém fiel ao lado da Áustria, gritos impetuosos de evviva… O segundo: A qualquer preço!
camba… O primeiro: Lemberg ainda está…
O primeiro: Em Praga, Brünn e Budweis… em toda a parte as O segundo: …nas nossas mãos.
decisões do imperador são aclamadas. O primeiro: Tomaram Belgrado e o almoço no círculo mais
O segundo: Arraiais da corte imperial em Ischl. íntimo da família… dinatoire…43 dirigiram­‑se…
O primeiro: Em Sarajevo cantaram o “Deus mantenha”. O segundo: Em passo elástico.
758 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 759
O primeiro: Contas feitas… comissão… tudo registado como trans… transporte militar… o
O segundo: O sangue e os bens…44 judeu… paga bem… mas não penses… não penses que eu não
Ambos: Arraiais da corte imperial. trabalho… oh, o toucinho… o toucinho… já vais ver… que é
(Muda a cena.) que estás pr’aí a olhar? Ralé… cambada de civis… hic!… man‑
dei pôr todos no olho da rua… do compartimento pra fora… o
CENA 47 resto já sabe… malandrinha… vão prò raio que os parta… vão­
Compartimento separado de primeira classe. ‑se mas é enforcar… ora, a gente é que os enforca… espichem
No corredor mal iluminado, um monte de malas e de corpos. à vontade… p’la pátria… quando eles… do lado de lá… Sen‑
tido!… o tipo que estava c’os copos mandei­‑o… hic!… fuzilar…
Maderer von Mullatschak, tenente­ ‑coronel do tenho as costas quentes… minha coisinha fofa… trago­‑te… vê
Estado­‑Maior: (Estendido no compartimento, bêbedo, balbu‑ lá se adivinhas!… já vais ver… 120 libras de carne de porco!
ciando.) A e i o u… cabeça de burro és tu!… Uuup… upa lá, ó (Tem um sobressalto, olha para o relógio.) O quê… já são 11?
pequena… abraço­‑te em pensamentos, coisinha fofa… arran‑ Tamos… a chegar… a Steinbrück… hic!… eh lá… agora…
jaste os 600 quilos de legumes secos?… O quê? O quê? Não, agora… se eles não fizerem como eu mandei… telefonei… a
não, não!… ah, ’pera aí… fizeste 100 mil c’roas por vagão… ordenar que mandassem esperar aquela coisa… o expresso…
eu inda não… sua malandra! Sua malandra!… Eu tenho… um ele não sabe, grande idiota… que… é pra ti, meu rabinho fofo…
negócio… colo… ssal com toucinho em vista… não, não está na chiça, hoje tou mesmo com vontade de te comer… porque é
lista!… Sua Cajestade o Maiser… tou­‑me nas tintas… O quê? que ele não vem… o cabrão do ordenança… tamos a chegar à
Esse cretino ponto de honra… Le… Leleopold… a Ordem de Estíria… Steinbrück… ele… uma ponte… fez lançar… brr…
Leleopold ele que a meta… hoje vou tamborilar a “Marcha de que é que estais a olhar?… Stein… Steinbrück… ele que não
Radetzky” na tua testa… Ponto de honra… paspalho… vá con‑ tenha feito bronca… tou cheio… de sono… (boceja) oh, tou­
tar isso à sogra dele… essa é que faz bons negócios… ou à tia… ‑me… nas tintas…
têm toda a razão… se eu fosse uma arqui… duquesa… limpava (Muda a cena.)
a Câmara do Tesouro… e o Sal… Salvator!… caramba, que
gozo que aquilo foi… o quê, querida… ora, tanto faz!… tenho CENA 48
as costas quentes… o quê… sol da minha vida… ah, ah! oh, oh! A três mil metros de altitude.
uh, uh!… não caibo em mim de orgulho… agora tenho uma
caderneta de poupança… esse é que é o meu regulamento!… O alferes: (Meio adormecido.) Quatro anos… meu Deus, meu
hic!… minha sacaninha… só posso dizer… estou satisfeito até Deus, pra quê… isto… tudo… Helena… ai… onde… estás…
mais não co’a guerra!… cada vagão cinco mil c’roas de co… (Entra a Schalek.)
760 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 761
A Schalek: Então o que é que lhe vai neste momento na alma, em O Optimista: (Tenta acender um cigarro.) É estranho, os fósforos
que é que está a pensar, alguma coisa há­‑de… (Salva de bateria.) não pegam.
(Muda a cena.) O Eterno Descontente: É por causa do ultimato à Sérvia.
O Optimista: O que eu estou a dizer é que os fósforos não pegam.
CENA 49 O Eterno Descontente: O que eu estou a dizer é que a causa
O Optimista e o Eterno Descontente em conversa. disso é ter­‑se conseguido incendiar o mundo!
O Optimista: Também neste ponto há um nexo?
O Optimista: Oxalá não tarde a chegar ao fim! Que me diz à O Eterno Descontente: Justamente neste ponto! Nada daquilo
profanação dos túmulos e dos cadáveres por parte dos ingleses em que vamos tocando ficou intacto, por dentro e por fora, no
e franceses? A propaganda alemã afirma que os ossos dos mor‑ valor e no preço. Se em 1914 tivesse existido um homem de
tos em combate são reciclados e que se produz gordura a partir Estado com fantasia suficiente para saber que em 1918 os fós‑
de corpos de soldados. foros não pegariam, não teria incendiado o mundo! Teria visto
O Eterno Descontente: Não estou em condições de verificar, também a guerra que se preparava para declarar e, além disso,
mas como metáfora isso parece­‑me que confirma uma realidade a paz, em que toda esta desgraça se há­‑de prolongar e crescer.
mais vasta, que corresponde à maneira como as coisas habitual‑ O Optimista: Mas quando chegar a paz…
mente acontecem neste mundo e que designa na perfeição o O Eterno Descontente: …há­‑de começar a guerra!
uso que a humanidade sobrevivente faz da morte de herói e da O Optimista: Mas todas as guerras até hoje acabaram com uma paz.
glória para servir todas as suas aspirações e interesses. O Eterno Descontente: Esta não. Esta não se desenrolou à
O Optimista: Quem o ouvir até vai julgar que a elevação espiri‑ superfície da vida, destroçou a própria vida. A frente de bata‑
tual que todos esperavam afinal não aconteceu. lha expandiu­‑se para o interior do país. Vai aí permanecer.
O Eterno Descontente: Eu próprio quase que julgo isso. Mas E a velha atitude mental vai juntar­‑se à vida transformada, se
julgo também que o negócio sangrento que os agentes queriam ainda houver vida. O mundo desmorona­‑se e ninguém se vai
tornar atractivo com a perspectiva dessa elevação vai termi‑ dar conta. Ninguém se lembrará do que aconteceu ontem; nin‑
nar na maior bancarrota que o planeta jamais experimentou. guém verá o que está a acontecer hoje; ninguém receará o que
E sobretudo nos impérios desta Europa Central mal­‑nascida. vai suceder amanhã. Todos esquecerão que se perdeu a guerra,
É que nós entregámo­‑nos ao assassínio com a Bíblia numa mão esquecerão que se começou a guerra, esquecerão que se levou
e à pilhagem com a cartilha patriótica na outra. Queríamos a cabo a guerra. É por isso que ela não vai acabar.
conquistar o mercado mundial envergando uma armadura de O Optimista: Mas uma vez que chegue a paz…
cavaleiro… vamos ter de nos contentar com o negócio pior de O Eterno Descontente: …as pessoas vão querer guerra e mais
a vendermos na feira da ladra. guerra.
762 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 763
O Optimista: O senhor até ao futuro torce o nariz. Eu sou e hei­ Magog: (Depois de uma pausa.) Quem não ficar rico com esta
‑de ser um optimista. Os povos aprendem com os prejuízos guerra não merece vivê­‑la.
sofridos… Gog: Pois claro.
O Eterno Descontente: …a ficarem ainda mais embrutecidos! Magog: Eu agora estou a mudar para as miniaturas, de prefe‑
(Muda a cena.) rência do século XVI, e também gobelins, caixinhas, livros
de armas e bugigangas assim dão-me gosto. Em geral, dentro
CENA 50 do possível, estou sempre à procura de juntar cultura que seja
Comboio de montanha na Suíça. Duas gigantescas bolas antiga.
de gordura, cujas formas indescritíveis não podem medir­‑se Gog: Olhe, e então os seus livros? O seu catraio é um dos melhores
por uma escala humana, ocupam todo o banco. As calças de bibliófilos que temos agora na Alemanha…
esquiador e meias altas de uma delas permitem reconhecer Magog: É verdade, a gente compra tudo o que aparece agora no
duas massas de carne diferenciadas; as bochechas imensas mercado no tocante a edições numeradas em papel vergê. Não
estão sombreadas de azul, o bigode aparado brilha sob olhos tarda que não sobre nada. Antes de partir de Berlim, gastei 60
em lua como um bosquezinho negro e deixa entrever duas mil palhaços em livros, encadernados em couro – sem couro,
protuberâncias vermelhas. A outra personagem traz vestido nada feito. A minha preferência vai para livros impressos por
um sobretudo puído; é o sócio, que acaba de chegar de visita. Enschedé en Zonen em papel vergê van Geldern produzido
Não tem pescoço, tem apenas uma papada quádrupla que faz manualmente. O papel vergê tem de ser feito à mão. A seguir,
a transição entre a bola do corpo e a bola da cabeça, o conjunto papel Japão Imperial com verso em pergaminho e, à falta de
é completamente indiferenciado e tem o aspecto de um peixe­ melhor, Old Stratford.
‑balão. Ambos trazem bastões de montanha; um deles trouxe Gog: (Dá uma olhadela ao jornal.) Olhe, que me diz a isto, Agên‑
a esposa, que tem ao peito um broche com a inscrição “Deus cia Noticiosa Wolff: “Em 24 horas, 60 mil quilogramas de
castigue a Inglaterra” e está sentada em frente dele. São os bombas!… Dunquerque está a ser pasto das chamas! As nos‑
gigantes Gog & Magog. Ao fundo, uma paisagem de neve sas esquadrilhas de bombardeiros realizaram proezas excep‑
resplandecente sob um céu azul­‑escuro. cionais. Também foi confirmada integralmente a sua eficácia
sobre a fortaleza Londres.”
Gog: O que eu inda gostava de ter era quadros bonitos. Não tem Magog: As coisas na frente ocidental estão limpinhas.
que ser logo um Rembrandt ou um Böcklin… Gog: Deve ser cá uma sensação sublime, esses pilotos de combate!
Magog: Eu já tenho 100. Só se compreende depois de se ter lido o livro do nosso Richt­
Gog: Um quadro bonito é uma coisa linda. Não é verdade, Els‑ hofen que saiu na Ullstein! A maneira como ele fez em fanicos
chen? Dá cá um beijinho. (Beija­‑a.) aquelas estações ferroviárias da russalhada… uma pessoa pode
764 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 765
verdadeiramente sentir o prazer dos bombardeamentos. É deli‑ Gog: Está a ver… sempre a mesma história! Sempre a velha con‑
ciosa a maneira como ele descreve a sua ascensão de fraldiqueiro versa das negociações! A agência Reuter acusa­‑nos de nos fur‑
da retaguarda a piloto de combate indiscutível! Deve ser cá uma tarmos a aderir de maneira clara e séria aos princípios de uma
sensação sublime, ter tudo debaixo de si e poder dar­cabo de ordem jurídica futura. Já viu que grande chuchadeira?
tudo – como um rei, com a carga de bombas, como um deus! Magog: Ordem jurídica? Nós temos gás!
Magog: Os submarinos também não são uma coisa de trazer por Elschen: (Apontando para fora da janela.) Maridinho, olha só
casa. pra ali…!
Gog: Com certeza que não. (Dá uma olhadela ao jornal.) Olhe, que Gog: Sim, sim. Enquanto a vontade de destruição dos nossos ini‑
me diz a isto, Agência Noticiosa Wolff: “Muito poucos pode‑ migos se mantiver intacta…
rão imaginar a magnífica façanha submarina representada Magog: Ora, deixe­‑me mas é em paz com as mentiras ascorosas
pelo afundamento ontem e hoje de 16 vapores agora noticiado. da Entente. Sempre esse palavreado da paz negociada!
Também o vapor que foi atingido, mas, infelizmente, conseguiu Gog: Parvoíces. Tamos fartos de conhecer essa cambada. Precisa‑
escapar, deve ter ficado incapaz de continuar ao serviço pelo mos duma paz alemã, e uma paz alemã não é uma paz meiga,
menos por vários meses.” tás a perceber, meu caro Lloyd George, querido amigo?
Magog: A nossa rapaziada de azul não brinca em serviço. Magog: Pois claro, vamos dar conta disso, não estou com receio
Gog: E ouça, só o grande canhão bastará para pôr os tipos na ordem. nenhum. É limpinho. São um bando de gandulos, é o que lhe
Aquele tiro em cheio na igreja o outro dia, assim no meio das digo. Agora vêm­‑nos com a história que a América não teria
festividades, carago, é pra eles ficarem a ver como é. entrado na guerra se a gente não tivesse começado com a inten‑
Magog: No máximo de dois meses, a Inglaterra vai estar de joe‑ sificação da guerra submarina! Uma guerra submarina é pra
lhos. Eventualmente, três. É limpinho. Sente­‑se aí um ambiente ser intensa! Esse fariseu­‑mor do Wilson é um cabeça­‑de­‑alho­
derrotista. Basta ver as cenas que essa cambada humanitária ‑chocho, não acha?
anda outra vez a fazer. Gog: Ora, já nem posso ouvir falar nele!
Gog: Balelas. Que me diz ao apelo contra a guerra química? Magog: Nem vale a pena falar!
Magog: Não acha que é um sinal da superioridade dos nossos gases? Gog: É tudo bluff! Só trapaças atrás de trapaças. O que se passa é,
Gog: Ora aí está. Nós, alemães, saudamos com alegria todas as simplesmente, que nós, c’o golpe piramidal de Brest­‑Litovsk,
tentativas para abrir caminho à vitória do direito internacio‑ libertámos massas enormes de tropas. Ora pois, e mal a Rússia
nal e da humanidade, mas recusamo­‑nos a que nos comam as esteja liquidada, tudo o resto vem por acréscimo. É aí que as
papas na cabeça. coisas começam a ficar pouco simpáticas pròs nossos amigui‑
Magog: Encaramos a evolução do caso com calma e com a cons‑ nhos. Nessa altura, esses tipos que venham lá do outro lado do
ciência tranquila. oceano se quiserem.
766 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 767
Magog: O facto é que, seja como for, temos a Bélgica como refém. Pre‑ Gog: Pois, e compararam o juramento de Rütli com o juramento
cisamos de uma base sólida para a esquadra, precisamos de uma de bandeira!
base aérea em condições, precisamos do ultramar e precisamos, Magog: Boa, eu gostava era de ter lá estado! Bem, se os nossos
claro, da região mineira. Sem falar em tudo o resto que precisamos helvéticos se puserem em marcha, isto vai ganhar logo um
além disto. E toda a gente percebe que a nossa indústria pesada tem novo alento! Que me diz aos nossos galhardos compatriotas de
que ter condições para funcionar, só os idiotas dos nossos inimigos Lugano que puseram os cônsules inimigos a andar do hotel, o
é que não. Se é pra falar de paz, não podemos de maneira nenhuma hoteleiro não teve remédio senão ceder.
deixar­‑nos envolver numa discussão sobre a Alsácia­‑Lorena! Gog: Tudo o que se faça é sempre pouco. Temos de limpar a Suíça!
Gog: Evidentemente. A atitude ambígua dos inimigos mostra com Há dias, houve alguém que se pôs a falar francês num hotel de
clareza que eles não querem a paz. Zurique! Fiz logo uma cena, claro, e disse ao homem na cara
Magog: É que as pessoas estão presas numa maneira de pensar e que era uma violação da neutralidade. Havia de ter gostado de
não são capazes de se libertar. lá estar. O fedelho ficou sem saber o que dizer. Pois, e a Elschen,
Gog: Bem, pelo menos agora toda a gente ficou a saber quem é numa confeitaria de Berna, insistiu que a empregada, para
que quer prolongar a guerra. Onde é que estão os responsáveis “natas”, dissesse “Sahne” em vez de “crème”. É verdade que as
pela guerra, isso já a gente sabia há muito. natas estavam esgotadas, mas a Elschen não transigiu. Não foi,
Magog: Nós, alemães, não temos outra solução senão aguentar Elschen? Ora dá cá um beijinho. (Beija­‑a.)
a pé firme. Elschen: Foi sim, meu torrãozinho de açúcar.
Gog: Se essa cáfila da Liga das Nações afirma que eles estão a com‑ Magog: Infelizmente, trata­‑se apenas de casos isolados. A nossa
bater em nome de uma ideia moral, não nos resta senão ape‑ embaixada devia intervir com muito mais energia. Não faze‑
lar ao uso da força. Aquele velho convencido com a mania da mos nem de longe o suficiente para conquistar as simpatias
humanidade lá do outro lado do mar que se atreva. dos neutrais.
Magog: Ah, o que eu sempre digo é – paciência e caldos de gali‑ Gog: A nossa propaganda está a fracassar. Claro, de vez em quando
nha. Vão arregalar os olhos de espanto quando nós, berlinen‑ deixa cair uma bomba ou outra… mas a informação não vale
ses, estivermos em Bagdade como quem não quer a coisa. E de um chavo.
comboio expresso! Magog: As coisas inda vão piorar… isto inda vai acabar mal.
Gog: (Olhando pela janela.) Então? Falta pouco ou não?… Ora Depois da guerra, é verdade que, como vencedores, seremos
essa! A caldeira está a ficar sem pressão?… Nã!… Que me diz temidos, mas devia­‑se estar já a sondar o terreno e a tentar con‑
da nossa gente que foi internada… gente de pêlo na venta, não! quistar popularidade custe o que custar.
Magog: Ah, o senhor está a querer referir­‑se à homenagem a Gog: Ah, duma maneira ou de outra, as coisas não vão mudar
Hindenburg nos prados de Rütli? muito. Lá em casa… sim; mas…
768 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 769
Magog: Olhe, mas que diferença é que julga que vai haver, tá a saúde…! Ora, até que enfim que a Alemanha tem o seu lugar
entender, entre a época de antes da guerra e a de depois da ao sol. Que bom! Que bom! (Meio a cantar.) Jamais o tomaa…
guerra… assim em geral? a… rão…! Então que tal, Elschen? Tás contente por o maridi‑
Gog: É muito simples, antes da guerra trabalhávamos das oito às nho não ter que estar a defender a pátria, não tás?
sete, depois da guerra, vamos trabalhar das sete às oito. Elschen: Estou, Siegfriedchen.
Magog: Pois é claro. Cobiça britânica… (Agora que o grupo está em movimento, parece por um momento
Gog: …sede de vingança francesa e… que a silhueta descomunal de uma mancha negra oculta o uni‑
Magog: …ódio russo… verso resplandecente de branco e azul.)
Gog: …impuseram­‑nos esta guerra. (Muda a cena.)
Magog: Desculpe, mas o estrangeiro é um factor que não pode
ser menosprezado! Mesmo que eles tenham sido derrotados, CENA 51
temos de aumentar o nosso prestígio e de nos tornar­mos Barracão na Sibéria. Homens encanecidos, subalimentados
populares! Isso é que importa, acredite no que lhe digo. Fazer em extremo, descalços, com uniformes esfarrapados, estão
abrandar o ódio… isso devia ser a função de uma propaganda acocorados no chão, fitando a distância com olhos vazios.
como deve ser. E mesmo que eles suem sangue… os tipos não Alguns dormem, outros escrevem.
podem esquecer nunca que nós somos o povo de Goethe!
(Vinda do compartimento ao lado, ouve­ ‑se uma canção Um capitão austríaco: (Entra e berra.) Cambada de cabrões!
francesa.) (Levantam­‑se e fazem continência. Enquanto uma parte fica em
Gog: Que vergonha! Num país neutral! Eles já vão ver quem nós sentido, os outros exercitam com pás o manejo das armas.)
somos! (Muda a cena.)
(Canta “A Alemanha, a Alemanha acima de tudo”. Magog
junta a sua voz e a esposa também. A canção ao lado cala­‑se.) CENA 52
Magog: Ora bem… cá estamos! (Saem do compartimento fazendo Estação do Norte. O cais à luz mortiça da manhã. Distribuição
rodar o corpo.) de alimentos. Funcionários. Dignitários. Um comboio com
Gog: (De fora do comboio.) Ora, que me diz ao Sol e ao céu? inválidos trocados por prisioneiros russos acaba de chegar.
Magog: Isto é que é um negócio e peras! Bem, e a neve também Em cima de macas, corpos que se contorcem em convulsões são
vale quanto pesa! descarregados das carruagens. As macas são colocadas em fila.
Gog: Pois então, e o glaciar também não é pra deitar fora!
Magog: Pois, e o ar…! Uma voz: Atenção, não vão os familiares pôr­‑se à frente.
Gog: Pois, não é precisa nenhuma máscara de gás! Ah… isto dá (Diante da fila da frente do público, tomam posição os membros
770 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 771
da associação “Louros para os nossos heróis” e funcionários de Chefe de secção Wilhelm Exner: Estou aqui como paladino
fraque. Uma banda de regimento ocupa os seus lugares.) da acção das próteses.
Uma segunda voz: Chegou com duas horas de atraso, agora já Dobner von Dobenau: Na minha qualidade de senescal,
cá está, e nós há duas horas que aqui estamos e as pessoas que eu devia ter direito a ir lá para dentro, onde estão as altas
cá deviam estar não estão. personalidades.
Uma terceira voz: Ora, ora… oito dias da Suécia até cá, o que Riedl: Na Exposição do Adriático, eu convivi com ele, na quali‑
é que são duas horas! dade de presidente da Associação, para assim prosseguir indó‑
(Entram em cena dez cavalheiros de sobrecasaca que se posi‑ mito o caminho já aberto.
cionam de maneira a poderem observar os acontecimentos mas Stukart: A minha presença não precisa de explicações.
a ocultarem estes quase por completo aos olhares de quem está Sieghart: Hoje, eu sou governador.
de fora. Desde que surgiram em cena, as macas deixaram de Landesberger, presidente do Anglobank: Dizem de mim
ser visíveis. Enquanto cada um dos dez puxa de um bloco de que sou um magnate da banca.
notas, dois funcionários aproximam­‑se do grupo e apresentam­ Uma voz: Olha, põe­‑te aqui, aqui podes vê­‑los melhor, os manes
‑se mutuamente da maneira seguinte.) regressados.
Zawadil: Spielvogel. Uma outra voz: Parece que precisaram de oito semanas para
Spielvogel: Zawadil. atravessar a Sibéria. Claro, da maneira que isto está, com os
Ambos: (Falando ao mesmo tempo.) Uma manhã cinzenta. Às seis atrasos…
horas já aqui estávamos para tomar todas as disposições. Uma mãe: Não te aproximes de mais, sabe­‑se lá que doenças é que
(Angelo Eisner von Eisenhof junta­‑se ao grupo e fala eles podem trazer. Olha ali, aquele a torcer­‑se todo.
de modo insistente com um dos dez, que começam a escre‑ A filha: Que é que queres, foi um tiro na barriga.
ver. Aponta para diferentes pessoas que esticam todas o pes‑ Dr. Charas: Comigo à cabeça, apareceu também a Associação
coço e fazem menção de sair da fila. Ele tranquiliza­‑as uma a de Prontos-Socorros, mas ainda não teve ensejo de intervir em
uma com acenos, fazendo, ao mesmo tempo que aponta para numerosos casos.
os dez homens, o gesto de escrever, como se quisesse dar­‑lhes (Entretanto, entrou em cena uma senhora de luto pesado. Todos
a entender que a presença delas já fora anotada. Entretanto, se afastam para a deixar passar.)
o conselheiro Schwarz­‑Gelber e a esposa conseguiram Conselheira Schwarz­‑Gelber: (Como que fulminada por
chegar ao contacto directo com os que estão a escrever e dar um um raio, dá uma cotovelada ao marido e diz.) Que é que eu te
toque no ombro de um deles.) disse! Aquela está em todo o lado em que não devia estar. Se ao
Conselheiro Schwarz­‑Gelber e conselheira Schwarz­ menos uma vez se pudesse estar só entre nós!
‑Gelber: Não quisemos deixar de vir pessoalmente. Flora Dub: Como jazem tranquilos.
772 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 773
O redactor: (Para o vizinho.) Escreva como brilham os olhos prisioneiros de guerra da Sibéria contaram as horas até à
dos guerreiros regressados. chegada.
Dois cônsules: (Apresentam­ ‑se em simultâneo.) Stiaßny. (Ouvem­‑se os acordes da “Marcha do Príncipe Eugénio”. Alguns
Apressámo­‑nos a vir para aqui. dos inválidos desmaiam.)
Três conselheiros imperiais: (Entram em cena em fila.) A mãe: Não te aproximes de mais, eu cá tenho as minhas razões.
Como representantes da acção “Louros para os nossos heróis”, A filha: Santo Deus, quantos deles é que eu já confortei!
viemos para prestar tributo aos representantes regressados do (Gera­‑se comoção. Um dos desmaiados morreu.)
nosso glorioso exército. Uma voz: Olhem para a expressão da cara dele. Como está feliz
Sukfüll: Enviado pelo grémio, aproveito a oportunidade para, por ter chegado ao fim da viagem.
de coração ao alto, exprimir a alegria com que os nossos Uma outra voz: Por onde é que anda o Heller?
valentes guerreiros, que também lá longe mantiveram sempre Uma terceira voz: Há­‑de viver para sempre nos anais.
o interesse pelo nosso trabalho, poderão agora inteirar­‑se dos Dobner von Dobenau: Na minha qualidade de senescal, eu
nossos êxitos. Se bem que não seja possível negar de modo devia ter direito…
nenhum que a indústria hoteleira sofreu com a guerra e na O livreiro Hugo Heller: Através das minhas muito ramifi‑
medida em que o turismo, também devido à dificuldade de cadas relações culturais, ter­‑me­‑ia sido manifestamente fácil
obter alimentos, viu serem­‑lhe colocados obstáculos no cami‑ estabelecer contacto com os que foram afastados do âmbito da
nho, os gloriosos guerreiros, que derramaram o seu sangue cultura, não fora, como já foi dito, a morte ter­‑se atravessado
pela honra dos Habsburgos, não poderão de modo nenhum no caminho.
ficar indiferentes. Hans Müller: Pois seja!
Birinski e Glücksmann: Como representantes da arte, a arte (Enquanto alguns funcionários distribuem condecorações de
enviou­‑nos. guerra pelos inválidos, ouvem­‑se os acordes da “Marcha de
Hans Müller: Pois seja! Quem contemplar estes homens valo‑ Radetzky”.)
rosos que agora, chegados a casa, são recebidos pelo hospital, O redactor: (Para o vizinho.) Escreva como eles escutam!
sentir­‑se­‑á estremecer no mais íntimo do seu coração, como (Muda a cena.)
se avistasse de repente através de uma greta o último fulgor da
experiência vivida.
(Entram em cena pessoas, homens e mulheres, que fizeram uma
sugestão, guiados pelo conselheiro imperial Moritz Putzker.)
Putzker: Seguindo a minha sugestão, e com o fim de se conse‑
guir um cálculo exacto da duração do seu cativeiro, os nossos
774 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 775
CENA 53 quilómetros de distância e eram apenas 11 horas da manhã e
Uma rua deserta. A noite vai caindo. De repente, precipitam­‑se já o jornal estava a ser vendido na rua. Por conseguinte, tinha
de todos os lados figuras que trazem cada uma um maço sido necessário apenas um espaço de tempo de três horas e 25
de papel impresso, ofegantes, coribantes e ménades, correm minutos para o público poder ler as últimas notícias no mate‑
de uma ponta à outra da rua, esbracejam, parecem estar rial proveniente das árvores em cujos ramos os pássaros ainda
a apregoar um assassínio. Os gritos são incompreensíveis. nessa manhã tinham cantado as suas canções.”
Muitos parecem gritar a notícia com a voz literalmente aos (De fora, vindo de muito longe, o pregão: “…ciaaal!”)
arrancos. Soa como se a dor da humanidade estivesse a ser São então cinco horas. Eis a resposta. O eco da minha sangrenta
retirada de um poço fundo. loucura, e nada mais me chega da criação devastada senão este
som, com que dez milhões de moribundos me acusam por
…peciaaal…! …ção speciaal…! …dição ciaal…! Reportageem ainda estar vivo, eu, que tive olhos para ver assim o mundo e
compleeeta…! taaagem…! …pleeta…! Edição peciaal…! cujo olhar acertou nele de tal modo que se transformou naquilo
…edi ciaaal…! …eeta…! …ciaaal…! …aal…! que eu via. Foi justiça do céu que assim acontecesse, mas foi
(Desaparecem. A rua fica vazia.) uma injustiça não ter eu sido aniquilado antes disso! Acaso
(Muda a cena.) mereci esta realização da minha angústia mortal perante a vida?
Que coisa é essa que vai ocupando cada vez mais espaço nas
CENA 54 minhas noites? Mas porque é que eu fui escolhido apenas para
O Eterno Descontente sentado à secretária. Lê. reabilitar o Tersites e não também para desacreditar o Aquiles?
Porque não me foi dada força física bastante para liquidar com
“O desejo de determinar o tempo exacto que é preciso para uma machadada o pecado deste planeta? Porque não me foi
uma árvore da floresta se transformar num jornal deu ao pro‑ dada força de pensamento bastante para obrigar a humanidade
prietário de uma fábrica de papel do Harz o pretexto para rea‑ violentada a soltar um grito? Porque é que o meu grito de res‑
lizar uma experiência interessante. Às sete horas e 35 minutos, posta não é mais forte do que essa estrídula voz de comando
mandou cortar na floresta adjacente à fábrica três árvores que, que reinou sobre as almas de todo um orbe terrestre? Eu pre‑
depois de descascadas, foram transportadas para a fábrica de servo documentos para uma época que já não os irá entender
pasta de papel. A transformação dos três troncos em pasta ou para quem este presente é tão longínquo que vai dizer que eu
líquida processou­‑se com tanta rapidez que o primeiro rolo era um falsário. Mas não, o tempo de dizer isso não vai chegar.
de papel de impressão deixou a máquina logo às nove horas Porque esse tempo não vai existir. Eu escrevi uma tragédia cujo
e 39 minutos. Este rolo foi transportado sem demoras de herói condenado a sucumbir é a humanidade; cujo conflito trá‑
camião para a tipografia de um jornal diário que fica a quatro gico, o conflito do mundo com a natureza, termina com a
776 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 777
morte. Ai, como este drama não tem outro herói senão a dora, mas o desolador milagre da existência desta. Não é a
humanidade, também não tem ouvintes! Mas o que é que faz ameaça dela, mas o facto de existir que paralisa a decisão.
perecer o meu herói trágico? Acaso a ordem do mundo foi Como poderia ali gerar­‑se uma contra­‑ordem que nos man‑
mais forte do que a personalidade dele? Não, a ordem da natu‑ dasse despedaçar as nossas armas! Posso acaso falar no auditó‑
reza foi mais forte do que a ordem do mundo. Ele sucumbe à rio da Europa? Assim, tendes de continuar a morrer por
mentira: a mentira de preservar nas velhas formas da vida a alguma coisa a que chamais a honra ou a Bucovina e que não
insubstancialidade em que depositou o velho conteúdo da sua sabeis o que é, mas afinal é apenas a arma ela mesma. Por que
humanidade. Ser comerciante e herói, e ter que ser este para causa morrestes? Se todos juntos tivésseis espírito suficiente
poder continuar a ser aquele. Ele é vítima de um Estado que para notar os contrastes, teríeis preservado o corpo. Qual des‑
agiu sobre ele como embriaguez e constrangimento ao mesmo prezo pela morte! Por que razão havíeis de desprezar o que não
tempo. Existem culpados? Não, senão existiriam vingadores, conheceis? O que se despreza é a vida, que não se conhece. Só
senão o herói humanidade ter­‑se­‑ia defendido contra a maldi‑ a ficais a conhecer quando o acaso do shrapnel não vos matou
ção de ser escravo dos meios que usa e mártir das necessidades por completo, ou quando a besta comandada, de boca a
que tem. E se os meios da vida consomem os objectivos da espumar, outrora um ser humano como vós, vos acomete e por
vida, eles exigem que se sirvam os meios da morte, para enve‑ um minuto vós tendes consciência de estar agora no umbral.
nenar mesmo os que sobreviverem. Se houvesse culpados, a E a besta que comanda ousa dizer de vós que desprezastes a
humanidade teria recusado a obrigação de ser herói para um morte? E vós não usastes aquele minuto para gritar ao vosso
tal fim! Uma só voz teria respondido àqueles que o ordenaram. superior que ele não era o superior de Deus, com o poder de
Esses, porém, não são tiranos. O seu espírito foi talhado do ordenar a este que desfizesse o que foi criado? Não, vós deixas‑
espírito da massa. Todos nós somos seres isolados. Cada um tes que ele vos lançasse, com Deus, para lá do umbral onde
tem a sua dor e o outro não se inflama com ela. E nós não nos começa o mistério que nenhum Estado da terra poderia con‑
inflamamos com o contraste que o nosso sacrifício todos os seguir que fosse traído! À procura do qual todos mandam os
dias estabelece com o lucro do outro, o atroz lucro do outro. Os seus heróis e nenhum os seus espiões! Se, no momento do
tiranos recuariam perante o horror. Mas nós teríamos sempre sacrifício, ao menos tivésseis sabido do lucro que cresce apesar
e sempre substituído os nossos tiranos a partir de nós próprios. do sacrifício, não, que cresce com ele, dele se alimentando! Pois
Porque a todos nós arrasta uma palavra oca, não a palavra do jamais antes da indecisa guerra das máquinas existiu tão ímpio
senhor, mas sim da máquina.45 De que serviria o revólver con‑ lucro de guerra e vós, vencedores ou vencidos, perdestes a
tra a máquina? O revólver não é um bom exemplo contra ela, guerra, que é ganho dos vossos assassinos. Dos vossos assassi‑
como a besta o era contra o tirano. Fomos nós que inventámos nos cobardes, tecnicamente avançados, que só são capazes de
essa coisa e o que nos ameaça pelas costas não é a metralha‑ matar e de viver longe do cenário dos seus feitos. Pois como, tu,
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fiel acompanhante da minha palavra,46 virado numa crença ao serviço da sua canalhice – nunca o diabo teria ousado
pura para o céu da arte, encostando o ouvido ao coração dela esperar que fosse possível um tal reforço do seu domínio. E se
numa ciência serena, tu tiveste de passar para o outro lado? Eu tivessem agora segredado ao diabo que, no primeiro ano da
vi­‑te no dia em que partiste. A chuva e a sujidade desta pátria guerra em que lançou os povos de cartilha na mão para que
e a sua música infame foram a despedida, quando vos amon‑ cuidassem dos negócios dele com mais alma, que já nesse pri‑
toaram nos vagões de gado! Vejo o teu rosto pálido nesta orgia meiro ano uma refinaria de petróleo conseguiria 137 por cento
de imundície e de mentira, neste terrível adeus de uma estação de lucro sobre todo o capital accionista e o David Fanto, 73 por
de mercadorias donde é expedido o material humano por cento, o banco Kreditanstalt, 19,9 milhões de lucro, e que os
aquela ordem superior que soltou os corpos e prendeu os espí‑ especuladores com carne e açúcar e álcool e fruta e batatas e
ritos e que transforma a vida condenada num quarto de crian‑ manteiga e couro e borracha e carvão e ferro e lã e sabão e
ças onde brincam moços de estrebaria! Tu não te parecias com petróleo e tinta e armas seriam cem vezes indemnizados pela
estes. Como foi possível não teres morrido logo por seres obri‑ desvalorização do sangue dos outros – o diabo teria advogado
gado a viver esta partida, comparada com a qual o acampa‑ uma paz sem condições! E foi por isso que jazestes quatro anos
mento de Wallenstein parecia deveras o átrio de um palácio­ na lama e na humidade, foi por isso que puseram entraves à
‑hotel! Pois que o homem­‑máquina suja­‑se de esterco antes de saudação que queria chegar até vós, que confiscaram o livro
se sujar de sangue. Assim começou a tua viagem a Itália, ó estu‑ que queria servir­‑vos de consolo. Eles queriam que permane‑
dioso da arte! E tu, nobre coração de poeta,47 que entre as vozes cêsseis vivos, porque não tinham roubado ainda que chegasse
dos morteiros e dos assassinos te consagravas ao mistério de nas suas bolsas de valores, não tinham mentido ainda que che‑
uma vogal – passaste quatro anos da tua Primavera debaixo da gasse nos seus jornais, não tinham maltratado ainda que che‑
terra, para experimentar a morada futura? Que querias tu dali? gasse nas suas repartições, não tinham fustigado ainda que
Piolhos pela pátria? Esperar até que chegasse o estilhaço de chegasse a humanidade, não tinham, em todos os seus lances e
granada? Provar que o teu corpo era mais resistente à eficácia actividades, recorrido ainda que chegasse à guerra para expli‑
das fábricas Schneider­‑Creuzot do que o corpo de um turinês car a sua incapacidade e a sua má­‑fé, de modo a que o crime
à da fábrica Skoda? O quê, nós somos os caixeiros­‑viajantes de dela lhes servisse de desculpa – não tinham ainda dançado até
fábricas de armamento, aos quais incumbe, não demonstrar ao fim, até à Quarta­‑Feira de Cinzas e à Quaresma, todo este
com a boca a capacidade da sua firma, mas sim demonstrar carnaval trágico, em que homens morreram diante dos olhos
com o corpo a incapacidade da concorrência? Onde estiveram da correspondente de guerra e carniceiros foram nomeados
muitos caixeiros­‑viajantes há­‑de haver muitos coxos. Eles que doutores honoris causa de Filosofia. Pois quê, vós jazestes
transformem os mercados em campos de batalha. Mas terem semanas a fio ameaçados pelos lança­‑minas; arrostastes com o
tido também poder para obrigar os seres mais nobres a porem­‑se perigo das avalanches; estivestes pendurados, seguros por uma
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corda, a três mil metros de altura, entre o fogo cerrado do ini‑ terem aveia e, mesmo longe dos tiros, poder­‑se ficar cego por
migo e o fogo de metralhadora dos “nossos” – uma palavra que ingestão de álcool metílico, se tal estivesse decidido nos planos
só por si justificaria a traição à pátria; estivestes expostos à tor‑ de guerra dos açambarcadores? O quê, não avaliastes a des‑
tura reservada aos delinquentes, prolongada cem vezes, e fre‑ graça de uma hora dos muitos anos sofridos em cativeiro? De
quentemente sem direito à ceia do condenado; tivestes de um suspiro de saudade e de amor manchado, dilacerado, assas‑
experimentar toda a variedade da morte quando o organismo sinado? Não fostes sequer capazes de imaginar os infernos que
embate contra a máquina, a morte pelas minas, arame farpado, se abrem a cada minuto da angústia do escutar materno noites
cavalos de frisa, balas dundum, bombas, chamas e gases e e dias a fio, esta espera de anos pela morte de herói? E não
todos os infernos do fogo de barragem – porque a insânia e a sentistes como a tragédia se transformou em farsa, em opereta,
usura ainda não tinham afogado em vós o mísero fervor da sua pela presença simultânea de uma monstruosidade nova e da
cobardia? E devíeis vós permanecer “aptos para o serviço” em velha obsessão das formas, uma daquelas horríveis operetas
tal abandono, porque ainda não tinha sido inoculada à huma‑ modernas cujo texto é um insulto e cuja música, uma tortura?
nidade sífilis bastante, em troca da fantasia que lhe foi rou‑ E não sentistes que a mais ínfima das vossas ordens, não, que a
bada? E vós lá fora e nós cá dentro temos que continuar a man‑ última das consequências da mais ínfima das vossas ordens,
ter ainda o olhar fixo na cova que fomos obrigados a cavar por mesmo que não fosse senão a estupidez que dificultava a fuga
ordem superior – como foi ordenado àqueles anciãos sérvios, da vossa comarca e que, para que se confundissem entre si,
e ordenado por nenhuma outra razão senão a de serem sérvios largou uns contra os outros os vossos departamentos de vigi‑
e estarem ainda vivos, sendo, pois, suspeitos! Oh, oxalá – se lância militar, repartições de requisição de passaportes, de
tivéssemos escapado ilesos a esta aventura, mesmo que amar‑ emissão de passaportes, de regulação de passaportes, de auto‑
gurados, empobrecidos, envelhecidos –, oxalá pudéssemos rização de viagens ao estrangeiro, de comandos locais e de
receber pelo milagre de uma justiça suprema a força de os cha‑ comandos de fronteiras – não sentistes que a mínima medida
mar a eles, os sempre sobreviventes cabecilhas do crime uni‑ fruto da vossa obcecação marcaria a dignidade humana com
versal, um a um à responsabilidade, de os fechar nas suas igre‑ um estigma indelével? E não tínheis percebido que, se enfiás‑
jas e lá, exactamente da maneira como eles fizeram com os seis todos os homens dentro de um uniforme, eles teriam de
anciãos sérvios, deixar um em cada dez tirar à sorte a sua sen‑ passar a vida a fazer a continência uns aos outros? E não repa‑
tença de morte! Mas depois não matar – não, esbofetear! rastes que um dia, de repente, este gesto mais não era já do que
E apostrofá­‑los assim: o quê, vós não sabíeis, canalhas, não adi‑ o levar a mão à testa para indicar a dúvida no perfeito juízo uns
vinháveis que as consequências de uma declaração de guerra, dos outros? E que o abanar de cabeça dos inválidos com tre‑
entre milhões de possibilidades do horror e da vergonha, muras era dirigido a vós, só a vós? E não desististes do passa‑
incluiriam também as crianças não terem leite, os cavalos não tempo da vossa glória, condenada à ruína e que, no entanto,
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continuava a sangrar o mundo? Pois como, e vós além, ó assas‑ ele o ter feito, eu vi correr desenfreado pela Alemanha. Passou
sinados, não vos erguestes contra esta ordem das coisas? Con‑ uma década desde o momento em que eu soube que a sua obra
tra este sistema homicida e uma economia que não teve mais estava cumprida. “Ele leva tudo à frente a todo o vapor.49 O seu
senão condenar a vida para todo o sempre a aguentar a pé bigode alcança de oriente a ocidente e de sul a norte. ‘E ao
firme, que barrou todas as perspectivas e deixou o mais ínfimo cavaleiro foi dado o poder de tirar a paz à terra, para que todos
desejo de felicidade exposto ao ódio das nações? Que reinou se esganassem uns aos outros.’” E eu vi­‑o como a besta de dez
com fúria absurda na guerra e que, sem motivo, fez todos sen‑ cornos e de sete cabeças e com uma boca semelhante às goelas
tir a sua fúria porque se estava em guerra! Que acumulou de um leão. “Os homens adoraram a besta, dizendo: quem se
miséria, fome e vergonha sobre os que tiveram de fugir e os que assemelha à besta? E quem poderá lutar contra ela? Foi­‑lhe
ficaram e enclausurou a humanidade inteira por dentro e por dada uma boca, para que dissesse grandes coisas.” E nós caí‑
fora! E os estadistas, chamados, numa época inçada de dificul‑ mos por culpa dele e da prostituta da Babilónia, que nos con‑
dades, simplesmente a refrear os impulsos bestiais da humani‑ venceu em todas as línguas do mundo que éramos inimigos
dade, deram a estes rédea livre! Pronto, em tempo de paz, a uns dos outros e que tinha que haver guerra! E vós, sacrifica‑
assassinar animais e crianças, o ódio cobarde à vida lançou dos, não vos erguestes contra este plano? Não vos defendestes
mão da máquina para devastar tudo quanto cresce. A histeria, contra a obrigação de morrer e contra a última das liberdades,
protegida pela técnica, submete a natureza, o papel comanda a de serdes incendiários e assassinos? Contra o plano diabólico
as armas. Já éramos inválidos por obra das rotativas antes de os que fez que a imolação pelo mercado da lã se fizesse sob as ban‑
canhões reclamarem as suas vítimas. Não tinham todos os deiras do pathos moral! Que atenta contra Deus para conseguir
domínios da fantasia sido já evacuados quando aquele mani‑ que ele avalize a sangrenta letra de câmbio. Que vende ao desba‑
festo declarou guerra à terra habitada?48 No final era o verbo. rato à ideia da matéria todos os direitos de soberania e os valores
Àquele que matara o espírito não restava senão parir o acto. Os da vida. Que vincula a criança no ventre materno ao imperativo
fracos ganharam forças, para nos lançar para debaixo das rodas do ódio e transmitiu ao espanto horrorizado da posteridade a
do progresso. E isso foi obra dela, só dela, que corrompeu o imagem destes varões combatentes e até mesmo destas mulheres
mundo com a sua depravação! Não é por a imprensa ter posto transformadas em enfermeiras, corpos couraçados de máscara
em movimento as máquinas da morte – mas sim por nos ter de gás afivelada, como se fossem uma horda de animais fabulo‑
esvaziado o coração, de modo a já não sermos capazes de ima‑ sos. Que disparou com sinos de igreja contra crentes e não faz
ginar como seria: por isso é que ela é culpada pela guerra! penitência perante altares feitos de shrapnels. E, em tudo isso,
E todos os povos beberam do vinho voluptuoso da sua impu‑ glória e pátria? Sim, vós vivestes a pátria, antes de morrerdes por
dicícia, e os reis da terra fornicaram com ela. E ele deu­‑lhe ela! A pátria a partir do momento em que tivestes de esperar
ânimo, o cavaleiro do Apocalipse, que outrora, muito antes de despidos, respirando o cheiro a suor e a cerveja da antecâmara
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da morte heróica, enquanto eles inspeccionavam carne humana por entre a usura e a miséria e por entre os contrastes torturan‑
e coagiam almas humanas ao mais blasfemo dos juramentos. tes da insolência bem cevada e da tuberculose silenciosa. Oh,
Estáveis nus, como se está apenas perante Deus e a mulher vós tivestes menos pena de nós do que nós de vós, nós que
amada, frente a uma comissão de algozes e suínos! Vergonha, queríamos reclamar deles, multiplicada por 100, cada hora
vergonha pelo corpo e pela alma deveria ter­‑vos feito renegar destes anos em que eles vos arrancaram da vida e que não
a pátria! Esta pátria todos a vimos e os mais felizes de nós, que tínhamos senão uma única pergunta a dirigir­‑vos: que aspecto
conseguiram escapar­‑lhe, viram­‑na ainda na figura do inso‑ será o vosso, se sobreviverdes a isto? Se tiverdes escapado ao
lente guarda fronteiriço. Vimo­‑la em todas as formas da ambi‑ último objectivo da glória, o de transformar as hienas em guias
ção de poder do escravo liberto e da amabilidade do chanta‑ turísticos para vender os vossos túmulos como curiosidades a
gista ávido de gorjeta. Apenas não tivemos de experimentá­‑la visitar! Doentes, empobrecidos, envilecidos, piolhosos, famin‑
na figura do inimigo, do verdadeiro inimigo, que vos empur‑ tos, acabados, tombados em prol do incremento do turismo – foi
rava à metralhadora para a frente das metralhadoras. Mas esta a sorte de todos nós! Eles a vós venderam­‑vos a pele – mas
mesmo que a tivéssemos visto apenas nos retratos desses o seu sentido prático talhou também da nossa a sua carteira.
medonhos generais que ao longo de toda a grande época, Vós, porém, tínheis armas – e não marchastes contra esta reta‑
tomando o lugar das prostitutas de luxo, se foram fazendo guarda? E não destes meia­‑volta, regressando daquele campo
anunciar em revistas de teatro e escândalo, para mostrar que da vergonha para a mais honesta das guerras, a destinada a
neste mundo não se fornica apenas, também se assassina – em salvar­‑nos e a salvar­‑vos? E não vos ergueis, já mortos, dos vos‑
verdade, ansiaríamos pela hora de fecho deste bordel san‑ sos buracos na terra para pedir contas a essa corja, para lhe
grento! Pois como, vós além, ó assassinados, ó espoliados, não aparecer em sonhos com o rosto desfigurado que tínheis na
vos erguestes contra este mecanismo? Suportastes a liberdade hora em que morrestes, com os olhos baços do vosso heróico
e a prosperidade dos estrategos da imprensa, parasitas e panto‑ tempo de espera, com a máscara inesquecível a que a vossa
mineiros, como suportastes a desgraça e a violência que juventude foi condenada por esta encenação da loucura!
sofríeis? E sabíeis que, pelos vossos martírios, eles recebiam Levantai­‑vos, pois, e defrontai­‑os como encarnação da morte
condecorações? Não lhes cuspistes a glória na cara? Jazestes heróica – para que a cobardia que governa a vida conheça
em comboios de transporte de feridos, que essa gentalha estava finalmente as feições dela, a olhe cara a cara pelo resto da vida!
autorizada a retratar? Não fugistes, não desertastes para a Acordai o sono deles com o vosso grito de agonia! Perturbai o
guerra santa destinada a libertar­‑nos na retaguarda do inimigo gozo deles com a visão dos vossos sofrimentos! Eles eram
mortal que diariamente nos bombardeava o cérebro com men‑ capazes de abraçar mulheres na noite seguinte ao dia em que
tiras? E morrestes por este negócio? Passastes pelo horror para vos tinham esganado! Salvai­‑nos deles, salvai­‑nos de uma paz
prolongar o horror nosso, dos que aqui rompíamos ofegantes que nos traz a peste da sua presença próxima! Salvai­‑nos da
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desgraça de estender a mão a juízes auditores militares regres‑ morte­‑vida dos Habsburgos, cerrai fileiras e aparecei­‑lhes em
sados a casa e de deparar com carrascos a exercer profissões sonhos! Despertai desta paralisia! Dai um passo em frente! Dá
civis. Pois que a consciência desta vil crueldade, cuja fantasia um passo em frente, querido apóstolo do espírito, e exige que
não tinha sido desbloqueada pela paixão, mas pela mecânica, te devolvam a tua preciosa cabeça! Tu… onde estás tu, que
vai readaptar­‑se tão depressa à rotina quotidiana como se tinha morreste no hospital?50 Eles devolveram­‑me de lá a minha
acomodado ao assassíno, deixando para trás a banalidade do última saudação com a nota: “Transferido. Paradeiro desco‑
passado. Socorro, ó assassinados! Acudi­‑me, para que não nhecido.” Dá um passo em frente para lhes dizer onde estás e
tenha que viver entre gente que, por ambição ou instinto de como é o sítio onde estás e que nunca mais estarás disposto a
autopreservação, deu ordens para que corações parassem de deixares­‑te usar para isso! E tu além, com o rosto a que te
bater e mães ficassem com cabelos brancos! Tão certo como é condenaram no teu último minuto quando a besta comandada,
haver Deus – só um milagre poderá salvar­‑nos desta sina! de boca a espumar, outrora talvez um ser humano como tu, se
Regressai! Perguntai­‑lhes o que é que fizeram convosco! O que precipitou na tua trincheira… dá um passo em frente! Não foi
fizeram quando sofríeis por obra deles antes de por obra deles teres tido de morrer – não, teres tido de viver, isso é que de
morrerdes! Em que estiveram ocupados durante os vossos futuro faz que todo o sono e toda a morte na cama sejam
Invernos na Galícia! O que fizeram naquela noite em que as pecado. Não é a vossa morte – é o que tivestes de viver que
ordens transmitidas pelo telefone não obtiveram resposta do quero vingar naqueles que vos impuseram esse fardo! Eu dei­
vosso posto! Porque lá à frente tudo estava calmo. E só mais ‑lhes a forma dos espectros que eles são e que mentirosamente
tarde eles viram como vós ali estáveis obedientes, alinhados, de queriam transformar em aparência! Eu arranquei­‑lhes a carne!
arma aperrada. Pois vós não éreis daqueles que se passavam Mas dei corpo aos pensamentos da sua estupidez, aos senti‑
para o inimigo, não éreis daqueles que voltavam para trás e a mentos da sua maldade, ao ritmo terrível da sua insignificân‑
que, porque estavam enregelados, um pai dos soldados tinha cia, e deixo­‑os mover­‑se. Se se tivesse preservado com um
de mandar aquecer com fogo de metralhadora. Vós mantives‑ fonógrafo a voz desta época, a verdade exterior teria desmen‑
tes as vossas posições e não caístes, ao dar um passo atrás, no tido a interior e o ouvido não teria reconhecido esta e aquela.
fosso dos assassinos da vossa pátria. Perante vós o inimigo, Assim, o tempo torna irreconhecível a essência e concederia
atrás de vós a pátria e sobre vós as estrelas eternas! E não bus‑ amnistia ao maior dos crimes que jamais foi cometido sob o
castes saída no suicídio. Não morrestes pela pátria, não mor‑ Sol, sob as estrelas. Eu preservei essa essência e o meu ouvido
restes por causa da pátria; não morrestes da munição do ini‑ descobriu o som dos feitos, o meu olhar, a mímica dos dis‑
migo nem da própria – ficastes de pé e morrestes por obra da cursos, e a minha voz, repetindo simplesmente, citou de tal
natureza. Que imagem de perseverança! Que Cripta dos Capu‑ forma que a tónica dominante ficou registada para todo o
chinhos! Cadáveres aptos para o combate, protagonistas da sempre.
788 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 789
E deixai que conte ao mundo, que o não sabe, CENA 55
Como tudo isto foi; dir­‑vos­‑ei, pois, Banquete de oficiais no posto de comando de um corpo do
De actos corruptos, feros, monstruosos, exército. A parede da sala virada para o espectador está
Juízos de acaso, cegos assassínios; totalmente ocupada com o quadro monumental A Grande
De mortes pela força e pela astúcia Época. Serve­‑se o jantar da matança do porco. A música toca
E de planos que, falhando, caíram “O velho Noé já bem o sabia, que pra um lindo pé nem tudo
Sobre os seus autores: tudo isto eu posso servia”.52 O festim aproxima­‑se do final. Oficiais dos exércitos
Narrar­‑vos com verdade. coligados brindam à saúde uns dos outros. Ao longe, ouve­‑se
E se os tempos já não ouvissem, um ser que está acima deles o troar dos canhões. Um primeiro­‑tenente dos hussardos atira
haveria de ouvir! Eu nada mais fiz do que abreviar esta quan‑ um copo de champanhe contra a parede.
tidade mortífera que, na sua incomensurabilidade, invocaria
as vicissitudes da época e dos jornais. Todo o seu sangue afi‑ O coronel prussiano: (Ao lado do general, trauteando e aba‑
nal não era mais do que tinta – pois agora há­‑de escrever­‑se nando a cabeça.) O velho Noé, pois é, já sabia… Então à vossa!
com sangue! É esta a guerra mundial. É este o meu manifesto. O general: (Levanta­‑se sob um coro de vivas, bate no copo.) Meus
Tudo maduramente ponderei.51 Tomei sobre mim a tragédia senhores… portanto… tendo o nosso corpo de oficiais…
que se decompõe nas cenas da humanidade em decomposição, suportado… um prélio de quatro anos sem precedentes… por‑
para que a ouvisse o espírito disposto a apiedar­‑se das vítimas, tanto, contra o poder superior de todo um mundo… pois
mesmo que ele próprio tivesse renunciado para todo o sem‑ deposito a minha confiança no meu Estado­‑Maior… porque
pre à ligação com um ouvido humano. Ele que capte a nota estou convencido… que também de futuro nós vamos… des‑
dominante desta época, o eco da minha loucura sangrenta, que temidamente… tanto quanto possível… fazer frente. Os nos‑
me torna cúmplice de todo este alarido. Ele que a aceite como sos heróicos soldados… esses valentes… temperados pelas
redenção! batalhas… vão ao encontro de novas vitórias… nós não vaci‑
(Vindo de fora, de muito, muito longe, o pregão: “…ciaal!”) lamos… saberemos atingir o inimigo… ferido profunda‑
(Muda a cena.) mente… onde quer que ele esteja… e o dia de hoje… o dia de
hoje, meus senhores… ficará a constituir um marco… na his‑
tória das nossas gloriosas forças armadas para todo o sem‑
pre!… (Vivas.) Força e avante! De vós, porém, a quem incumbe
a tarefa mais difícil neste combate sem par… tal como dos nos‑
sos soldados leais nas dificuldades e na morte que carregam
sobre si o dever mais infatigável… portanto, de vós todos eu
790 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 791
espero… que ireis cumprir o vosso dever até ao último hausto ainda está aí para as curvas!… (Bravos.) E nós, que somos san‑
de homens e cavalos sem mais considerações! Trata­‑se de uma gue do seu sangue, espírito do seu espírito… não, mil vezes
última, mas dura peleja e nós sabemos que… não é coisa de não!… O oficial partilha os sentimentos do homem comum, do
somenos. Sim, meus senhores! Pois não estamos aqui todos e homem simples, que hoje em dia é o baluarte no qual o inimigo
cada um… e cada um se mostra à altura… no seu posto para há­‑de rachar a cabeça… ao descobrir que o osso é duro de roer!
resistir… ali mesmo… onde o nosso dever colocou o soldado… E eles que digam o que quiserem, esses escrevinhadores… não
e o serviço de Sua Majestade nos colocou a nós… (vivas) como se pode generalizar!… (Dá um murro na mesa.) Acham que se
compete a oficiais de carreira! Nesta hora, o nosso pensamento pode? (Gritos: “Não!”) Estes escrevinhadores… claro que não
vai para os nossos entes queridos que ficaram na pátria… que estou a referir­‑me aos dois senhores correspondentes de guerra
estão longe e põem o pensamento em nós com fidelidade. E em que nos dão hoje a honra da sua presença… sabemos melhor
especial as mães, que deram o exemplo… ao, claro está, sacrifi‑ que ninguém o que as forças armadas devem a um noticiário de
carem com alegria os filhos no altar da pátria! E em verdade… guerra bem uniformizado… a imprensa… que, no cumpri‑
não é fácil, neste momento, coordenar as ideias… porque elas mento do seu supremo dever patriótico espanta… levanta… o
têm de estar todas viradas para o mesmo objectivo. O que está moral da retaguarda… pode contar sempre com um bom aco‑
em jogo… eu pronuncio a palavra com plena consciência das lhimento nosso! (Bravos.) Não estou a referir­‑me a estes senho‑
minhas implicações… o que está em jogo é a vitória! A vitória, res e espero que os senhores, portanto, não tenham julgado que
meus senhores… sabeis o que isso significa? Essa é a opção que me referia aos senhores… pois nós sabemos apreciar plena‑
resta ao soldado… de outra forma terá de morrer coberto de mente o mais possível a sua actividade de interesse público.
glória! Para este fim… quero reprimir a esperança… de que (Bravos. Os correspondentes de guerra fazem uma vénia.) Estou­
vós, meus senhores… tendo isso em conta e em consideração… ‑me a referir a… esses anarquistas e derrotistas… que semeiam
que é preciso manter um contacto mais íntimo, mais cordial a sua discórdia e, espalhando boatos, contribuem para a difusão
com eles… quer dizer, com os soldados… para diminuir o mais dos mesmos! Esses é que são os elementos nocivos! Esses é que
possível o risco pessoal… portanto… de que os senhores se são as pessoas que primeiro se põem a agitar e depois ainda se
sacrificaram. (Vivas.) Pois, meus senhores… todos nós sabe‑ põem com maquinações. E o que eu vos pergunto é, meus
mos… a última coisa que o oficial, sobretudo o oficial do senhores… temos precisão disso? (Gritos: “Não!”) No meu
Estado­‑Maior, possui… é… (Gritos: “A sua honra!”) Adivinha‑ corpo de exército… onde todas as nações estão representadas
ram, meus senhores… a sua honra! E essa nós não… pois, pois, em perfeita paz umas com as outras… temos no nosso Estado­
eu sei… há desses elementos subversivos… que chegam até à ‑Maior oficiais alemães e temos oficiais boémios, temos polacos
linha mais avançada… mas… meus senhores… a nós não nos e temos croatas e temos oficiais romenos e também há oficiais
chegam nem aos calcanhares! Oh, oh! O nosso material humano de confissão judaica. E não temos também representantes da
792 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 793
nossa magnífica Honved?53 (Gritos de “Eljen”.) Portanto, até aço da guerra mundial! Do que precisamos… é de displicên…
agora ainda ninguém se queixou! Vem­‑se sempre com a histó‑ de disciplina! Não posso aceitar que se leve uma vida regalada.
ria… nacionalidades para aqui e para ali. Pergunto­‑vos, meus A sorte que eles tiveram quando Sua Alteza Imperial, o Serenís‑
senhores… nota­‑se alguma coisa? Ora pois… por isso eu digo… simo Arquiduque Friedrich… (comovido) o pai dos soldados…
o diabo não é tão feio como o pintam. Pelo menos entre nós! (vivas) avançou até às trincheiras da primeira linha para trans‑
Mostrem então aos senhores nossos aliados que podemos hoje mitir ao pessoal as saudações benévolas de Sua Majestade, o
ver com orgulho aqui sentados, cá dentro, a esta mesa… (gritos: Comandante Supremo… (vivas) claro que eles ficaram todos
“Viva!”) como reina entre nós uma perfeita unidade! Cada qual contentes! Pois que é que essa gente quer mais? Naquela altura
ocupa o seu lugar… sem mais considerações… porque todos ainda tudo estava calmo lá na linha da frente, não era um dia
nós sabemos que temos que aguentar a pé firme e porque é que agitado como o de hoje, em que eles têm de resistir aos assaltos
temos de o fazer, todas as nacionalidades sem excepção, tal inimigos. Mas não, não falta quem ande com manigâncias e há
como aqui estamos, nesta guerra defensiva da raça germânica uma corja que acabou por conseguir que os soldados se queixem
contra a eslava que nos foi imposta! (Hurras e vivas.) As nossas e se revoltem… por causa dos legumes secos e assim… se calhar
armas neste combate sem precedentes chamam­‑se confiança e queriam, como no tempo da paz, um jantarinho trazido do
disciplina! (Bravos.) Oh, a disciplina para mim é muito impor‑ Sacher… (risos) e crepes com chantili três vezes ao dia! Agora o
tante… mas tem de ser de ferro! E todos nós… temos de certeza que é preciso é aguentar a pé firme! (Gritos: “Bravo, bravo!”)
muita coisa a dizer sobre isso. Na última inspecção não pude Meus senhores… acho isso abominável e ao mínimo sinal inter‑
deixar de reparar a respeito disto, portanto, que havia coisas que venho com o máximo rigor! Disciplina… os senhores sabem o
não estavam bem e, infelizmente, fui também forçado a criticar que isso significa? Disciplina significa subordinação varonil! É a
que, para o meu gosto, houve demasiado poucos oficiais a tom‑ autoridade… que para o soldado é o pão nosso de cada dia! Se
bar na linha da frente. Não quero ofender ninguém, mas a ver‑ eles minam a disciplina, então acabou­‑se a brincadeira! Estes
dade é que é preciso dar um bom exemplo. Em vez de tratar de escrevinhadores… Bismarck… bem, é certo que ele… portanto,
pôr em segurança o precioso canastro de cada um! (“Bravo, o nosso grande aliado… cunhou a máxima: “O que a espada nos
bravo!”) O meu grande modelo, Sua Excelência Pflanzer­‑Baltin destruiu… a pena faz perder outra vez!…”55 Meus senhores, não
(vivas), cunhou a frase: “Hei­‑de ensinar aos meus homens percamos isso de vista! Mantenhamos isso na memória!… Mas
como é que se morre!” E eu digo o mesmo! E que é que essa eu espanto­‑me com a paciência do nosso alto MG. Se depen‑
gente quer afinal? Querem viver para sempre, se calhar?54 Meus desse de mim, a censura devia tomar medidas drásticas e enfor‑
senhores, não estamos no momento apropriado para caprichos car essa gente toda! (Bravos.) Auditor et altera parte!56 Ainda essa
desses… numa altura em que a pátria está em perigo, mas, se corja não era nascida e já eu lutava contra os comedores de
Deus quiser… há­‑de renascer… como uma fénix do banho de macarrão!… (Bravos.) Posso dizer isso com orgulho!
794 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 795
Mas, meus senhores… quando são os burocratas a decidir as Esmagámos! (Vivas.) Dizia­‑se então: até aqui e basta! Pois quê…
coisas, aí, é claro… nós não podemos assumir a responsabili‑ varrer com punho de ferro! Meus senhores, mais um passo e a
dade! Não se pode acreditar em todas as mentiras do inimigo a vitória é nossa! A Rússia, cada vez se torna mais claro… é um
nosso respeito. Espírito de sacrifício temos que chegue na nossa colosso com pés de barro! É como se fosse um assunto já resol‑
querida pátria, o que nos falta é dedicação e é justamente esta vido! E no que toca aos comedores de macarrão… ora pois, qual
que importa! Portanto… não podemos de modo nenhum per‑ de nós ainda tem hoje dúvidas quanto à definitiva vitória final?
mitir que surjam essas correntes subversivas… senão elas podem O dever do soldado, meus senhores, é bater­‑se bem, e a gente
acabar por ter um efeito de sapa. Se permanecermos aqui todos bateu­‑se bem, deveras! Estes valentes… que tomaram a dian‑
a pé firme, também afrontaremos a batalha decisiva imposta teira e deram tudo por tudo! Recordamos a sua memória… por‑
pelo inimigo… com honra e de acordo com os planos. Qual de que eles ergueram bem alto a bandeira do seu regimento e
nós não tem no pensamento o exemplo dos feitos absolutamente selaram­‑na o melhor possível com o próprio sangue! Meus
extraordinários com que as nossas tropas, sempre experimenta‑ senhores… nós vivemos numa grande época e os frutos inesti‑
das e destemidas, nos precederam… depois de, fiéis às nossas máveis para a nossa pátria estão ainda a crescer… o seu prestígio
ordens, nos terem seguido na tormenta e no perigo? E deveras… no mundo… e sobretudo temos de agradecer a este banho de
os Estados­‑Maiores, múltiplas vezes sacrificados, assumiram aço a desconforme elevação espiritual a que assistimos. Não é
sempre a responsabilidade de acordo com os planos e nenhuma ninharia! Agora falta um único passo para, invencí‑
executaram­‑na também de maneira incomparável! E não conse‑ veis, atingirmos os louros. Por isso eu digo – e isto é válido tanto
guimos também belos sucessos? Sucessos que hão­‑de perdurar para o oficial como para o soldado raso – ânimo e sangue­‑frio,
nos anais das nossas forças armadas, quando nós próprios um meus senhores! Em última linha é de vós que tudo depende…
dia tivermos tombado cobertos de glória. Não conseguimos nós tende consciência disso! Os senhores sabem porque é que aqui
sucessos que despertam a inveja dos nossos aliados… dos nos‑ estamos! Pelo serviço de Sua Majestade… (vivas) pelo nosso
sos inimigos… de tal maneira que eles no­‑los querem apoucar? magnânimo imperador… (vivas) a quem todos devem dar o que
A verdade, meus senhores, é que ninguém nos facilitou as coisas. têm de melhor, arrostando com os trabalhos e a morte em ata‑
Não estamos nós cercados por inimigos e mais inimigos, fazendo ques, perigos e empreendimentos de toda a sorte, como compete
frente sem cessar a forças numericamente superiores? Vitórias a um valente guerreiro! (Vivas.) Que Deus continue a ajudar­
atrás de vitórias, meus senhores! Quem o teria pensado há qua‑ ‑nos! Bebo à saúde dos nossos todo­‑poderosos aliados… que
tro anos, quando arrancámos para o incerto, para esmagar a vemos aqui irmanados connosco ombro com ombro para o bem
Sérvia… de acordo com os planos e acompanhados pelos acor‑ e para o mal em sinal da sólida união dos Nibelungos, experi‑
des da “Marcha do Príncipe Eugénio”! (Vivas.) E não fomos mentada em mil batalhas! (Vivas e hurras.) Sua Majestade, o Kai‑
bem­ ‑sucedidos? Não esmagámos a Sérvia, meus senhores? ser alemão, e Sua Majestade, o nosso Comandante Supremo, o
796 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 797
nosso magnânimo Imperador e Rei, e a Augusta Casa Imperial… O coronel prussiano: Não, não, a vossa choradeira pela paz foi
vivam! Vivam! Vivam! (Vivas e hurras ensurdecedores. Todos brin‑ uma incongruência. Pecastes contra vós próprios. Agora, este
dam. O general senta­‑se.) – Olha lá, que é que estás aí a espírito ameaça contaminar também a vossa linha da frente.
servir? O general: Estais a ouvir? Tem que haver disciplina, mais nada!
O ordenança: Com sua licença, meu general, granadas de mão. O coronel prussiano: Ludendorff tem plena confiança em si,
O general: (Ri a plenos pulmões.) São bolas de gelado… aqui a Excelência.
gente chama­‑lhes granadas de mão! Ora pois, está bem, venham O general: É muito lisonjeiro da parte dele. Oh, sim, eu trago
daí as granadas de mão! o material humano debaixo de olho… mas também trago os
O coronel prussiano: Venham daí as granadas de mão!… Com senhores oficiais! Agora vamos outra vez completar um bocado
mil raios, vocês, austríacos, são mesmo uns tipos do caraças! as fileiras… em especial, os corpos de instrução estão com
Bem, nós há dias tivemos sopa do carrasco, a seguir pastelão da carências… já com a defesa antiaérea estou satisfeito… os nossos
matança com chouriço de sangue (risos) e, a finalizar, torpedos médicos portam­‑se em geral muito bem, fazem o que podem…
com natas batidas. (Canta.) nas segundas inspecções e assim. Tudo tem já o seu posto desti‑
Para acolher convidados nado. O senhor sabe, a questão dos corpos de reserva…
Grande é o nosso talento! O coronel prussiano: Próteses?… Ah, já percebi!
São logo bombardeados… O general: Para terem um posto destinado.
E sempre com sentimento! O coronel prussiano: Pois… o dia hoje de certeza que vai ser
(Hurras e vivas. Risos.) quente.
O general: À saúde do submarino alemão! (Vivas e hurras. Brindes.) O general: (Limpando o suor da testa.) Faz um calor dos diabos
O coronel prussiano: Excelência, eu não sou homem de mui‑ aqui dentro.
tas palavras e pra fazer um brinde… já me faltam as forças. Para (Entra um oficial de comunicações, acerca­‑se do oficial
tanto… o vosso vinho húngaro é bom de mais. (Risos.) Mas de dia do Estado­‑Maior e entrega­‑lhe uma comunicação.
ainda estou em condições de dizer… as suas palavras também O oficial do Estado­‑Maior abre, levanta­‑se, aproxima­‑se
falaram ao meu coração alemão! Onde falta a disciplina, as coi‑ cambaleante do general e segreda­‑lhe alguma coisa ao ouvido.)
sas não podem deixar de dar para o torto. O afrouxamento do O general: Idiotas!
moral que reina entre vós, austríacos, na vossa retaguarda, iria O coronel prussiano: Que é que se passa?
infalivelmente fazer vacilar também a frente… (Um capitão O general: Posição tomada. Retirada para a segunda linha. A culpa
caiu para debaixo da mesa. Gera­‑se agitação.) é do Wottawa.
O general: A culpa é dos escrevinhadores! Mas o que é que eles O coronel prussiano: Coisa azarada! Ora pois, então vocês
querem… nós, que somos uns autênticos cordeirinhos! gritaram outra vez “hurra!” antes de tempo? (A música toca
798 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 799
uma canção vienense.) Ah, delicioso! (Canta também.) Venha O médico­‑chefe brinda com o auditor­‑chefe. O rabino
já daí mais vinho… venha já daí mais vinho… que… não falta com o capelão.) Haja alegria, projectores da luz eterna! Sem‑
dinheirinho… (Olhando em torno.) Mas eu ainda não conheço pre firmes, sempre firmes! Assim é que é!
alguns destes cavalheiros… (Aponta para um grupo de oficiais.) Um capitão: É o nosso valente canhão de defesa anti­pecado!
O general: (Acena.) Tu! Tu! Tu! (Os oficiais levantam­‑se.) (Risos estrondosos, a que se junta o capelão.)
Um primeiro­‑tenente dos Hussardos: Géza von Lakkati de O capelão: Sim senhor, sim senhor… é verdade, eu é que os faço
Némesfalva et Kutjafelegfaluszég. arrenegar os maus instintos!
O coronel prussiano: Que nome esquisito. Família engraçada. O coronel prussiano: Arre… negar? Que palavra deliciosa!
O general: É um diabo vermelho. Este homem decerto que é do campo?
O coronel prussiano: Diabo vermelho… que elegante! Pois é, O capelão: Não, senhor coronel, de Linz.
a magnífica Honved! O coronel prussiano: Ah, a bela Linz da verde Estíria!57
Um capitão: Romuald Kurzbauer. O general: Agora, um dos meus mais dotados jovens oficiais
O coronel prussiano: Vienense? vai­‑nos dar um ar da sua graça.
O general: Não, é de Salzburgo. O intendente­‑chefe: O Wowes!
Um primeiro­‑tenente: Stanislaus von Zakrychiewicz. O general: Wowes! Apresente­‑se junto ao piano! Rápido!
O coronel prussiano: Croata? Wowes: (Senta­‑se ao piano, toca e canta a acompanhar.)
O general: Polaco, polaco. Se te vejo… à janela…
O coronel prussiano: Ah, um nobre polaco! Meu coração… se esfacela.
Um tenente: Petričič. Todo eu… sou só saudade.
O coronel prussiano: Romeno? Pois tu és… a felicidade.
O general: Não, croata. (Gritos: “Bravo, Wowes!”)
Um primeiro­‑tenente: Iwaschko. Wowes: Inda não acabou!
O coronel prussiano: Boémio? O coronel prussiano: (Trauteando e abanando a cabeça.) Tu
O general: Romeno. és… a felicidade. Bela canção!
Um capitão: Koudjela. Wowes: (Continuando.)
O coronel prussiano: Italiano? Quando estou… na tua cama…
O general: Boémio! Todo o meu peito… se inflama.
Um capitão de cavalaria: Felix Bellak, responsável pelo E tudo lá… me retém.
aprovisionamento. Pois ali é que… estou bem.
O coronel prussiano: Ah, ah! (Os que se apresentaram sentam­‑se. (Risos. Gritos: “Bravo, Wowes!”)
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O coronel prussiano: (Trauteando e abanando a cabeça.) Pois êxitos…! (Deixa cair a comunicação.) Ora que mais… o melhor
ali é que… estou bem. O tipo é bom! (Brinda à saúde dele.) é não ligar.
O general: Ele próprio é que compõe! Oh, ele até faz passes O coronel prussiano: (Apanhando a comunicação.) “Reservas
de mágica. É prestidigitador. É capaz de entreter toda uma lançadas na batalha. Reservas do sector completamente esgota‑
assembleia! das. Baterias têm de ser retiradas para as posições de recuo…”
O coronel prussiano: Não me diga! Com mil raios! (O troar dos canhões torna­‑se mais forte.)
O general: É, é fino como um coral! Mas eu também não o deixo O oficial de dia do Estado­‑Maior: (Para um ordenança.)
ir para a linha da frente. Propu­‑lo agora para a medalha de Não passes a vida a encher­‑me o copo. Hoje preciso… das
prata. (Troar de canhões.) ideias… claras. Quantas botas e barretes se perderam é que ele
Um oficial do Estado­‑Maior alemão: Viva a jovialidade volta a não dizer, é claro. Que imbecil!
austríaca! (Hurras e vivas. Brindes.) O oficial do Estado­‑Maior alemão: O quê? Botas e barretes?
O médico­‑chefe: Viva a organização alemã! (Hurras e vivas. O oficial de dia do Estado­‑Maior: Pois… soldados e oficiais.
Brindes.) O coronel prussiano: Parece, meus caros austríacos, que as
O general: Oh, oh! Nós também… meus senhores! Nós tam‑ ofensivas de paz sempre vos hão­‑de sair melhor. Bem, espere‑
bém!… Oh, oh! Não há mas nem meio mas… Para nós… a mos que Hindenburg tome conta do assunto. No fim de contas,
bandeira é que conta… (A música toca “Já Cá Levo a Minha somos nós que temos outra vez de vos vir tirar de apuros!
Conta”. Risos e canto no extremo da mesa.) Mas… que é que foi? O general: Meus senhores… nós estamos orgulhosos… de… ombro
Um capitão de cavalaria: (Cantando.) Já cá… levo a minha… com ombro com os nossos aliados, temperados pelas batalhas… de
O intendente­‑chefe: Mas quem é que vem ali a fazer tem­ couraça resplandecente… meus senhores, bebo à união dos Nibe‑
‑tem…? (Risos.) lungos… nesta aliança… que agora foi ampliada… (bravos) e… e…
(Entra apressado o oficial de comunicações, acerca­‑se do O coronel prussiano: Aprofundada! (Vivas e hurras. A música
oficial de dia do Estado­‑Maior e entrega­‑lhe uma comu‑ toca “A Guarda do Reno” e, a seguir, “Glória a Ti, de Coroa Triun‑
nicação. O oficial do Estado­‑Maior levanta­‑se, aproxima­ fal”.58) Agradeço­‑lhes, meus senhores… agradeço­‑lhes! Mas agora
‑se cambaleante do general e segreda­‑lhe alguma coisa ao deixem­‑se outra vez de alaridos solenes, se fazem favor. Os festejos
ouvido.) vamos reservá­‑los para o dia da vitória final. Agora venha outra
O general: Grandes cretinos! das vossas deliciosas canções austríacas… do vosso magnífico
O coronel prussiano: Que é que se passa? Lehár, que tantas alegrias nos deu na frente ocidental. (Bravos.)
O general: (Lê.) “Posição… destruída por fogo de artilharia. Zonas O general: Toquem “Chama­‑me Bichaninha”!
de aproximação batidas… por… por fogo pesado de aniquila‑ O coronel prussiano: Bichaninha… mas o que é isso? Está
mento…” Estes idiotas…! Dão­‑nos cabo dos nossos melhores bem, bichaninha, óptimo! (A orquestra toca esta canção.)
802 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 803
O general: Mas então que se passa com os nossos colchões de O coronel prussiano: Receio que o dia hoje vá ser quente.
campanha? Hoje estão tão caladas? Então porque é que não (A música toca “Nas Margens do Manzanares”.)
cantam também? (O oficial de comunicações entra precipitadamente,
O capitão de cavalaria: (Gritando por cima da mesa.) A enfer‑ acerca­‑se directamente do general e segreda­‑lhe alguma coisa
meira Paula… manda cá uma garupa! De primeiríssima…! ao ouvido.)
A enfermeira Ludmilla nisso não lhe chega aos calcanhares! O general: O quê? Miseráveis… miseráveis… essa corja das
A enfermeira Paula: (Guincha.) Ai!… Pare com isso… que linhas da frente…!
homem insuportável! O coronel prussiano: Que é que se passa?
O capitão de cavalaria: Mas que é que foi, que é que foi, então O general: Eu… não entendo… isso. Então eu… ordenei
também já não se pode mandar piropos? expressamente…
A enfermeira Paula: Sempre este mais as suas grosserias! O coronel prussiano: Ora, ora, meninos… nada de dar parte
Um primeiro­‑tenente: Ora, e dos marmelos dela nem se fala! de fraco agora que temos a vitória na algibeira!
O coronel prussiano: Marmalos…? Nã, olhem lá. Que nomes O general: Cavalheiros… estamos metidos na Rue de Caca!
cómicos vocês têm… mas o que é que é isso? (O general O coronel prussiano: (Para o oficial de comunicações.)
explica­‑lhe.) Que é que se passa?
O intendente­‑chefe: As garinas que cantem um dueto! (Gri‑ O oficial de comunicações: (Nervoso em extremo, tartamu‑
tos: “Um dueto!”) deando.) As vanguardas das divisões em retirada chegam já à
O primeiro­‑tenente: O capelão e o rabino que cantem também posição do comando do corpo… toda a artilharia foi aban‑
um dueto! donada… as estradas estão bloqueadas com o trem que se foi
Um segundo: O rabino sabe cantar à tirolesa… e o capelão… aglomerando… as tropas desmoralizadas… cavalaria inimiga
bem… ao contrário… (Gargalhadas.) em acesa perseguição. (Sai. O coronel fala em atitude per‑
Um capitão prussiano: Porreiro! suasiva com o general. Os outros conversam à vontade.)
Um terceiro tenente: És mesmo um castiço. (Violento troar Um capitão: Olha lá, ó Koudjela…
de canhões.) Koudjela: Siim…
O adido de artilharia: Mas eles hoje estão a trabalhar no O capitão: Os pastéis estavam boons! Mas mesmo muito boons!
duro… meus senhores…! Isto vai mesmo a compasso! Koudjela: Siim…
O capelão: (Cantando.) O macarrão foi ao ar, co’as bombas a O capitão: Olha lá, ó Koudjela…
rebentar! Tchif, tchef, tchim… italiano, é o teu fim! (Risadas, Koudjela: Siim…
alguns juntam­‑se à canção.) O capitão: O vinho é boom! Mas mesmo muito boom!
Vários: À sua, reverendo! (Brindes.) Koudjela: Siim…
804 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 805
Um primeiro­‑tenente: (Para um coronel que está a dormir.) Um primeiro-tenente: (Para um outro, que está sentado com ar
Eh, meu coronel! absorto.) Olha lá, em que é que estás assim a matutar? Grande
O coronel austríaco: (Acorda.) Mas que é que é… pensador!
O primeiro­‑tenente: Nicles! (Risos.) O outro: Sabes, estou cá a pensar… a esta hora, na esquina da
Um tenente: (Gritando por cima da mesa.) Olha lá, ó Windisch­ Sirk. E nós para aqui feitos parvos…
grätz… a que é que jogaste hoje com o Schlesinger, bridge ou O primeiro: Sabes… eu também.
bacará? Um primeiro­‑tenente prussiano: … Bem, meninos, deixem­
O capitão de cavalaria: Não me venham com coisas, a época ‑me mas é sossegado, vocês são bem capazes de alcançar a paz
áurea da imprensa foi no princípio, quando inda tinham o vitoriosa sem mim… é que na semana que vem tenho que ir
Roda Roda… agora isto não vale nada. para Berlim. Temos lá a nossa corrida do Dia dos Heróis.
Um primeiro­‑tenente: (Dá­‑lhe uma cotovelada.) Chiu… olha os Um segundo: Ora, de que é que serve pensar em amanhã! O que
dois judeus! (Em voz alta.) Sabes, as coisas que a Schalek escreve é preciso é uma pinga de estalo, que dê lastro para uma noite
é que eu acho fantásticas… muito instrutivas!… Para a semana bem dormida. Esses gandulos da retaguarda…
ela vem­‑nos cá visitar… e sobretudo é corajosa, mesmo o inimigo O capitão de cavalaria: Pois, eu cá por mim também não
tem que lhe reconhecer isso! peço para ir de licença. Ui… para ir prà terra onde manam
O capitão de cavalaria: (Dá­‑lhe uma cotovelada.) Chiu… isso nabos e pão de milho… contem comigo!
ainda os põe mais irritados! (Em voz alta.) Sabes, o Roda Roda Um capitão: Pois, pois, Reischl, mas no que toca à primeira linha
sabia resumir uma situação militar assim com uma simples a vontade também não é muita, ou quê?
frase… olha, por exemplo, ainda tenho exactamente na memó‑ O capitão de cavalaria: Olha quem fala, ó gandulo­‑mor!
ria… quando ele escreveu: “‘Do sobretudo já não vai precisar’, O segundo primeiro­‑tenente prussiano: Uma das coisas
disse o primeiro­‑tenente, mandando atar o pope ao estribo de piores na linha da frente é haver compota todos os dias.
um ulano.” E ponto final. O primeiro: Ora, e a manteiga dos heróis também já se acabou.
O primeiro­‑tenente: Está bem conseguido, mas como é que Na Rússia agora estão a passá­‑las boas. Há um sector em que
ficaste com isso na memória? eles têm cólera a valer. Não quereis saber, é porque os gajos
O capitão de cavalaria: És muito tapado… então não adivi‑ beberam água de uma poça onde havia cadáveres de russos.
nhas quem era o primeiro­‑tenente? Eu! O capitão de cavalaria: Bem, isso pra mim não servia, pra
O primeiro­‑tenente: Caramba! E que é que ele tinha feito? mim só champanhe! (Gargalhadas.)
O capitão de cavalaria: Ora, manigâncias subversivas e coi‑ O segundo: Pois é, vocês, austríacos, cozinham bem, mas a ementa que
sas assim. Tinha um nariz vermelho… quer dizer, um autên‑ tivemos uma vez ao almoço em Homburgo… querem ver… (mos‑
tico sinal luminoso! Que tipo, aquele! tra o menu) caldo de carne de vaca… empadão à rainha… peixes do
806 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 807
Reno fritos com molho rémoulade… faisão na púcara… borrego da O capitão de cavalaria: Grande engatatão! Na última Muskete…
Páscoa à padeiro com salsichas de Halberstadt… perna de carneiro Um major: Vivò nosso oficial da intendência! (Vivas, brindes.)
com feijão branco e coração de alcachofra… espargos com molho Um brigadeiro: Grande Pschierer! Esse não dá parte de fraco!
de natas… doces de Nierstein da messe de Duisburg… espumante Doze pratos uns atrás dos outros… é de se lhe tirar o chapéu.
Kupferberg­‑Gold… bolas de gelado… fruta em calda… queijo em (Bebe à saúde dele.)
barra! Ora pois! Com isto não podeis competir! (Gritos: “Oh, oh!”) O auditor­‑chefe: Bem, eu já tive que despachar mais de 12, uns
O coronel prussiano: … Olhem, meninos, vocês já cá tiveram atrás dos outros… (risos) mas tenho que reconhecer… saúde,
o vosso célebre balé do Teatro da Corte? ó Pschierer!
O general: Já… e na semana que vem vamos ter um cabaré de O major: Olha, não sabes nada do Haschka?
primeiríssima ordem! O auditor­‑chefe: O Haschka continua na mesma. Muito
O primeiro correspondente de guerra: Senhor coronel, e aplicado…!
a mim se deve! O major: Mas agora certamente que já não trabalha para o Stöger­
O segundo correspondente de guerra: Como assim? ‑Steiner, pois não? Quer dizer, agora já não deve haver assim
Quem deu a ideia fui eu! tanto que fazer!
Um primeiro­‑tenente: Mas não, foi na altura da sétima batalha O auditor­‑chefe: É verdade, esse tempo já passou. Mas o
do Isonzo, estás a ver, quando o Sascha nos veio ver cá à linha Haschka é mesmo um tipo incrível. Ainda continua com a
da frente… mesma mania. Guarda a sentença de morte até ao exacto
Um outro primeiro­‑tenente: Bem, o coronel queixa­‑se do momento de a sopa estar comida. Olha para o relógio, levanta­
troar dos canhões. Não consegue dormir de noite. Nesse aspecto, ‑se dum salto, diz que não sirvam logo o assado… pimba, ei­‑lo
os aquartelamentos anteriores eram melhores. Eu sempre disse na sala de bilhar pronto a ler a sentença. O caso mais porreiro
que a situação não era famosa. Hoje vai ser outra vez uma noite que ele teve foi nos batalhões de reserva do 15.º Corpo, sabes,
e peras! Acontecer, não acontece nada, mas o barulho à noite é Wocheiner­‑Feistritz. Havia lá uns patetas humanitários que se
uma chatice. (Violenta detonação.) queixaram… claro, não estavam pelos ajustes porque era um
O adido de artilharia: Isto é que foi um estrondo! desejo do Stöger­‑Steiner… pois do que se tratava era de aplicar
Um tenente: O Scharinger do 11? Ora, esse tem cá uma vaca! um castigo exemplar.
Agora foi proposto… O major: P.s.?59
O capitão de cavalaria: Estás a ver, manda cá umas mamas… O auditor­‑chefe: Não, não… mas o caso ficou famoso! Um gajo
(gesto) de primeira! tinha roubado uma carteira e, pra mangar com ele, disseram­‑lhe
Um major: Olha, mas o que tenho agora entre mãos…! Coisa pelas grades da cela que o castigo para isso era o fuzilamento.
superfina! O gajo põe­‑se a cavar – com medo. Bem, disse o Haschka, é
808 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 809
verdade que não se trata a bem dizer de uma deserção, porque O major: Sabes, uma vez, um desses humanitários… aliás, um
foi só por causa do medo… mas é preciso dar o exemplo. Por‑ tipo da tua confraria…
que, é claro, é uma coisa em que o Stöger­‑Steiner insiste muito… O auditor­‑chefe: Bem, vê lá, de mim não é preciso suspeitar!
Pois os patetas põem­‑se com fitas! E não é que não o condenam! O major: Ora, ora, estou só a entrar contigo. Ora ouve… o tipo
Que é que me dizes? Um escândalo! Oficiais no activo! recusa­‑se a julgar um gajo pela lei marcial. “É só um problema
O major: (Perplexo.) Oficiais no activo…?! disciplinar”, diz ele, e que mais isto, e mais aquilo. Pois, na
O auditor­‑chefe: Pois, é pra que saibas! Mas que é que queres? messe… entra o Tersztszyansky por ali dentro, senta­‑se a comer
Eu próprio tive casos em que, mesmo quando se tratava de a sopa… olha que nunca vi o Tersztszyansky tão calmo!… Diz
automutilação, eles queriam safar o gajo. Já viste? Oficiais no ele, “Ó senhor capitão­‑auditor, já não vai ser preciso levar o seu
activo! Vestem o uniforme imperial! Precisavam é de ser cor‑ delinquente a julgamento”. “Como assim?”, pergunta o outro.
ridos. É que estas ideias subversivas já penetraram mesmo no “Pois olhe para ele lá fora no jardim… olhe bem pra ele… ali
nosso círculo mais íntimo. o tem estendido.” O Tersztszyansky não tinha feito mais que
O major: Que é que queres, mesmo na primeira linha às vezes eles dizer ao comandante de pelotão que desse cabo do canastro
já vêm também com palermices por causa do pessoal! Bem… ao gajo, com a baioneta… pimba, catapimba! Sabes, porque
não quero exagerar, não se deve generalizar, felizmente o espí‑ estava pior que estragado com a casmurrice do tipo.
rito está intacto. – Mas então diz lá, como é que a coisa acabou? O auditor­‑chefe: Do soldado?
O auditor­‑chefe: Bem, ele, o Haschka, não teve remédio senão O major: Não, do auditor!
ditar para a acta a promessa de que o gajo seria indultado, se O auditor­‑chefe: Ah pois, claro! A propósito, há dias tive uma
todos votassem pela condenação. Mas, fino como ele é, não discussão, o Tersztszyansky é doutor honoris causa de Filoso‑
disse nem um pio lá em cima a respeito da acta… e, claro, a fia, não é?
sentença foi executada acto contínuo. Sabes, nós também já O major: Estou em crer que sim!… Olha lá, o Stanzl do Depar‑
aplicámos aqui muitos castigos exemplares… mas uma execu‑ tamento de Informações, por onde tem andado? Inda está na
ção assim, é de truz! Sim, não há dúvida que o Haschka é fora Albânia? Ouvi dizer que queriam pô­‑lo num lugar melhor em
do normal. Feldkirch?
O major: Sabes, isso dos humanitários… estou farto deles até aos O auditor­‑chefe: Qual quê, ele não tem mãos a medir na Albâ‑
cabelos! Se vejo um deles mesmo ao de longe fico logo pior nia! Olha, mas o Balogh… sabes, em Kosovo­‑Mitrovica…
que uma barata. Ir contra o Stöger­‑Steiner! Olha, uma vez o O major: Ah, pois, sobre ele ouvi uma história de uma execução
Tersztszyansky resolveu tudo por um processo expedito. Quer com extracção de um dente ou coisa parecida.
dizer… não fez processo nenhum. O auditor­‑chefe: Isso é falatório. É incrível como ele é calu‑
O auditor­‑chefe: Como assim? niado… era mesmo isso que eu te queria contar. É a história
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mais inocente do mundo. Tudo se baseia simplesmente em que O intendente­‑chefe: Bem, se eles tinham ido às rações de
ele tinha um rapaz de 16 anos para enforcar por ser um komi‑ sobrevivência…
tadji.60 Bom, e então disse ao médico para verificar se não se O major: A minha divisa é: a guerra… não é só contra o inimigo,
daria o caso de o rapaz já ter dentes do siso. Bem, o médico os nossos também têm que sentir como elas mordem! Olá!
diz que sim. Então ele escreveu nos autos “20”… e pronto, lá Naquela altura, mandávamo­‑los formar para serem executa‑
o enforcaram. Quer dizer, ainda se deu ao trabalho de man‑ dos! Bem, e uma mulher que trazia manteiga para o Estado­
dar verificar. Esse é que foi o erro… assim ficou tudo a saber­ ‑Maior estava à espera… bem, e então disseram­‑lhe pra se pôr
‑se. Bem, e depois, como o Alto-Comando lhe passou uma também na formatura… pois, e o resultado foi que a enfor‑
repreensão por causa disso, foi aí que começou o falatório. Pois, caram junto c’os outros!… (Gargalhadas.) Mas… por favor…
dantes, em casos destes em que se tratava de oficiais distintos, não é caso para rir… errar é humano… uma coisa assim pode
o Alto-Comando não prodigalizava assim repreensões… aqui acontecer… com os subordinados! O que sucedeu foi que ela
pra nós! De costume, o que se fazia era simplesmente aumen‑ teve o azar de se pôr no lado errado. Pois. Mas mesmo assim
tar a idade, ninguém dizia nada. eram uns belos tempos! Quando o Weiskirchner nos veio visi‑
O major: Eu também não consigo explicar. Na nossa divisão… tar ao regimento dos Pagens,61 bom, em honra dele deram
santo Deus, belos tempos… quando o Peter Ferdinand tinha as ordem para reforçar o fogo de artilharia… assim mesmo!
mãos mais livres… uma vez eles apostaram, sabes, Sua Alteza E pronto, mandaram disparar com o morteiro de 30,5 sobre
Imperial e o Parma, o chefe do Estado­‑Maior… se na execução camponeses que andavam a lavrar a terra! E…
de rapazes de 14 anos se verificava uma… aquela coisa… mas O auditor­‑chefe: Mas então porquê…?
como é que se chamava, doutor… uma expressão tão patusca… O major: Ora… tínhamos um arquiduque de visita!… quer dizer,
Um médico do regimento: Ah, uma ejaculatio seminis! (Risos.) ó auditor­‑chefe, nem que me mates, já não saberia dizer qual…
O major: É isso, pois claro! Oh, foi interessante. Bem, claro… bem, pra que ele pudesse testemunhar a precisão dos obuses,
outros tempos! mais nada. Ora, e ele não deixou de exprimir a sua admiração!
O intendente­‑chefe: Executar rapazes de 14 anos… então isso E da maneira mais afável… é isso, era o Josef Ferdinand!…
é permitido? (Risos.) Mas tu, sabes, ao tempo que ando com vontade de te pergun‑
O major: Pois é, meu caro intendente­‑chefe, é que no fim de con‑ tar… foste tu que tiveste aquele caso dos 44 em Kragujevac.
tas estamos em guerra, compreende­‑vú? Não é a altura ideal Não tiveste dissabores… (A música toca “Vá mais uma garrafa
para estar com histórias! Sabe que mais? No 92, atavam os de vinho, holodrió!” Os oficiais cantam “E venha outra a seguir,
gajos que roubavam uma lata de conserva das rações de sobre‑ holodrió!” O primeiro­‑tenente dos hussardos Lakkati atira um
vivência lá fora, em frente do arame farpado, pra que os russos copo de champanhe contra a parede.)
os abatessem… O auditor­‑chefe: Mas aquilo foi uma borracheira geral.
812 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 813
É verdadeiramente incrível o que os soldados são capazes de O oficial da contra­‑espionagem: Limitei­‑me a cumprir o
emborcar. Sabes, eu teria sido capaz de mandar executar nem meu dever. O coronel disse para aplicarmos um castigo exem‑
que fossem 300. Não podem tolerar­‑se excessos provocados plar. Comparado com o Wild, não foi nada.
pela embriaguez. Excepcionalmente, concedi aos homens a O major: Pois é, o Wild.
morte honrosa por fuzilamento. O oficial da contra­‑espionagem: O que ele gosta mais é de
Um oficial da contra­‑espionagem: (Mete­‑se na conversa.) se atirar aos rutenos. Ontem mandou­‑me um dos seus postais
A verdade é que essa cambada passa a vida bêbeda. Mas ao menos – ele entre quatro enforcados. É um pândego de primeira!
aí confessam­‑nos pra que lado é que pendem. Bem, já não há tanto O auditor­‑chefe: Pois é, o Wild.
para fazer como em 14. Olha, ó senhor auditor­‑chefe, uma vez O oficial da contra­‑espionagem: Ora, e o Wild comparado
acompanhei até à Sérvia um transporte de gente do 28 de Praga, com o Prasch não é nada! Esse é que é um oficial da primeira
já estás a ver do que se trata. Tive logo um pressentimento. Bem… linha como deve ser. O que ele, com as próprias mãos…
mal passámos Marschegg, começa a dança. Os soldados estão O coronel prussiano: … Como é que se chamava o prato? Jan‑
renitentes e começam a protestar com os sargentos por terem de tar da matança do porco? Que expressão deliciosa! As vossas
ir contra os sérvios… grande pandilha! Mas eles nem sabiam era designações patuscas são de morrer a rir! Ah, vocês, os austría‑
no que se estavam a meter! Pianinho… mandámo­‑los sair dos cos…! Mas infelizmente é preciso dizer também que vos falta a
vagões, agarrámos em 25 e ala pra um vagão especial. Cabiam lá necessária seriedade na forma de encarar a vida. A guerra é um
40… não se pode dizer que estivessem desconfortáveis. Depois… banho de aço! Desde que morreu o vosso velho e cavalheiresco
assim de hora a hora parávamos em campo aberto. A seguir… imperador que anda tudo um bocado ao ralenti. Já vai faltando
bem, a seguir uma patrulha de sargentos ia sacar limpinho firmeza, já vai faltando firmeza, desgraçadamente. Mas o que é
três homens de cada vez e enfiava­‑os no último vagão. Bem… que aquele diabo vermelho está para ali a palrar?
siga a viagem! Passados dois minutos… zás, catrapás, tudo prò Géza von Lakkati de Némesfalva et Kutjafelegfaluszég:
galheiro! Havias de ter visto as caras dos três seguintes… quer (Para um grupo.) … Tescheek… reparei logo que havia trampa
dizer, quando chegavam outra vez três novos. Sempre três a três. no casco. Diz o gajo, “o casco estava limpo, deve ter sido no
O último sozinho. Grande animal! Bem, antes de chegarmos à caminho do estábulo para aqui”. Nohát, saco chanfalho… tiro
Estação do Oeste em Budapeste já os 25 estavam liquidados com trampa do casco… esfrego focinho do cabrão. (Risos. Bravos.)
toda a limpeza. O vagão, quando o desatrelaram… o aspecto que Igén,62 estava lá ao pé um… assim um desses fraldiqueiros da
aquilo tinha! Meus senhores! Tinha ido tudo raso! Feito numa reserva… meteu­‑se… eu disse ao cão danado que ia malhar no
peneira… trabalho asseado!… E o sangue era… tribunal marcial! Ora adeus, que mais é que ele queria! (Bravos.)
O auditor­‑chefe: Devia­‑se ter fotografado. Foi um serviço dis‑ O capitão de cavalaria: Olha, e o gajo, o impedido? Disse
tinto que prestaste. alguma coisa?
814 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 815
Géza von Lakkati de Némesfalva et Kutjafelegfaluszég: é chato o inimigo ter passado à ofensiva nesta parte da frente,
Mas… não podia… não estão a ver que tinha trampa no foci‑ como parece ser o caso. Mas tanto mais perspectivas há de o
nho…! (Gargalhadas. Forte detonação.) cercar. É uma táctica que já experimentámos dúzias de vezes
O adido de artilharia: Bem, bem! Mais pianinho! Inda aca‑ na frente ocidental. Neste ponto sou optimista. Nós, alemães,
bam por mandar as castanhas pra cima da gente! concentramos todos os nossos pensamentos na vitória final e
O coronel prussiano: Nã, não há mas nem meio mas… a vossa definitiva… e eu não posso dizer senão: vamos a isso.
retirada da Galícia não foi famosa. O vosso arquiduque… O general: Mas sim, a gente cá se há­‑de arranjar! (Lakkati atira
O general: Desculpe… não havia nada a fazer. Sua Alteza Impe‑ um copo de champanhe contra a parede.)
rial fez o humanamente possível… mas a escassa combati‑ Um primeiro­‑tenente: … Olhem… hoje pus ponto final na
vidade das tropas… e depois… bem, por acaso eu sei… Sua galdéria da dactilógrafa… pôs­‑se com desaforos… pois armei­
Excelência Borewitsch reconheceu­‑o expressamente… quer ‑lha bem armada!
dizer que Sua Alteza Imperial de modo nenhum foi pouco Um tenente: Então que é que lhe fizeste?
enérgico… pois se o pessoal se suicidou! Que é que se há­‑de O primeiro­‑tenente: Comi­‑a e pronto! (Risos.) Ora… sois uns
fazer? Só à metralhadora ou dizimando­‑os, pois claro… sabe, patetas…! Ide mas é catar piolhos!
o que aconteceu é que era um corpo muito fraquinho. Às vezes O capitão de cavalaria: … Meu caro, digas o que disseres…
c’os nossos é assim. Os homens não tinham dormido em con‑ os da Honved portam­‑se à altura.
dições e coisas que tal. Um capitão alemão: Pois, mas os bávaros rasgam goelas à den‑
O coronel prussiano: Ora essa? tada! Olha, isso é que eu te queria ver, com um assim…!
O general: Pois… está a ver… Sua Excelência Borewitsch foi ela O capitão de cavalaria: Safa! (Risos. O barulho dos canhões
própria forçada a admitir que os casos dos soldados mortos de diminui.)
frio durante o sono, foi o que ele escreveu, provocam medo de O adido de artilharia: … Ora, ora… já estive em farras bem
adormecer. melhores, meu caro… na sétima e oitava batalhas do Isonzo!
O coronel prussiano: Ah, bom. Bem, nesse caso, sem dúvida O capitão de cavalaria: Pois, mas que farra é esta em que as
que o vosso arquiduque Josef não teve culpa nenhuma. Bem, garinas não dão luta! (Grita.) Orquestra!
tanto faz. Vede mas é agora se não há azar. Fizestes bem em Um primeiro­‑tenente: Na Rússia andei em cada farra…!
adaptar desta vez a vossa ofensiva à estação do ano. A estação Um segundo: Sabes, junto a Rawaruska… quando o Fallota
do ano não é desfavorável. O fiasco no vosso sector da frente… ainda…
O general: Bem, com os outros as coisas também não correm Um tenente prussiano: Olha que esta… mas o tipo da música
muito melhor… está a dormir?
O coronel prussiano: Vamos esperar pelo melhor. Claro que Um capitão prussiano: Toquem “No Cemitério La Bassée”!
816 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 817
O major: Não… alto aí… toquem “Mizzerl, Mizzerl, Porque És O coronel prussiano: Grande fiasco! Um bocado fraquitelas,
tão Má”! os queridos austríacos, um bocado fraquitelas!
O capitão prussiano: Está bem… Mizzal! Ah, isto é porreiro! O primeiro correspondente de guerra: Olhe para o gene‑
O oficial de dia do Estado­‑Maior: É o que cantam sempre ral, então que é que eu disse…!?
no Gartenbau… o Varady e a Rollé… O segundo correspondente de guerra: Senhor major, será
O intendente­‑chefe: Pois, o Gartenbau! Quando o Schenk que me pode dizer como vai a batalha…?
inda era vivo…! (Canta.) Uma sogra… pra que seeerve… pra O major: Teve início uma ofensiva inimiga.
que seeerve… Toquem “Champanha e Ninguém m’Apanha” O primeiro correspondente de guerra: Ai, ai!
(Gritos: “Champanha e ninguém m’apanha!” “Bravo!”) O major: O inimigo rompeu um pouco as suas próprias posições
O capitão de cavalaria: Toquem “O Fim do Mundo Vai Ser da primeira linha…
em Beleza”! O segundo correspondente de guerra: As suas próprias?
O auditor­‑chefe: Toquem “Foi Bela a Dança, mas Música Para quê…?
Não Há”! (Gritos: “Bravo!” A música toca. Os oficiais cantam O major: Esperamos ser capazes de aniquilar este plano ardiloso.
a acompanhar.) Mas peço para não mencionarem o meu nome.
O intendente­‑chefe: (Repetindo.) …mas música não há! O primeiro: O nosso superior poder de fogo…
(O oficial de comunicações entra precipitadamente, branco O segundo: Tudo menos um ataque de flanco!
como a cal, acerca­‑se directamente do general e segreda­‑lhe A enfermeira Paula: … Ai!… atrevido!
alguma coisa ao ouvido.) O capitão de cavalaria: Ora, ora… então não é permitido
O general: O quê…? Estão a amotinar­‑se? Varram­‑me já essa lançar um ataque?
cambada toda a tiro! Mandem regimentos frescos entrar em A enfermeira Ludmilla: Pare com isso! Sempre este com a
acção! Ponham­‑lhes fogo no rabo! Depressa! sua…
O coronel prussiano: Mas que é que se passa? Um capitão: Jacquezinho, vê no que te metes!
(O oficial de comunicações segreda de novo alguma coisa O capitão prussiano: Pois, pois, Joaquinzinho, Joaquinzinho,
ao ouvido do general.) vê no que te metes!
O general: O quê?! As granadas de gás também não estão ope‑ Um primeiro­‑tenente: … Estás­‑te a referir ao Madler ou ao
racionais? Mas isto é tudo uma bandalheira! Madlé, o que estava em Schabatz com o Hausenblas? O Madler,
O coronel prussiano: Bem, estão a ver, mas isso não devia…! ouve o que te digo, é o maior gandulo de todo o exército.
Entre nós uma coisa assim não…! O paspalho está furioso por eu ter sido proposto.
O general: Mas que… balbúrdia!… É preciso azar!… Bem, que Um outro: Onde é que ele está agora?
se há­‑de fazer… O primeiro­‑tenente: Ora, onde é que há­‑de estar, na Escola
818 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 819
de Oficiais! Nós aqui a dar o coiro… Olha lá, a tua miúda está encaracolado igualzinho ao que tinha o papá. Assim uma coi‑
boa? sinha fofa como tudo.
(A música toca uma czarda. Lakkati e uma auxiliar dançam. O coronel prussiano: Casinha fofa? Delicioso! Mas então
Bravos entusiásticos.) quem é que era o pai?
O coronel prussiano: Ah, soberbo! Fantástico! Um diabo ver‑ O intendente­‑chefe: Um garboso tenente dos caçadores
melho a valer! imperiais! Um camaradão! Assim como o Wowes.
O oficial do Estado­‑Maior alemão: Ora, deixem­‑me mas O coronel prussiano: Mas digam­‑me… de quem é esta canção
é em paz com o vosso gás! O nosso gás amarelo, o nosso gás maravilhosa?
verde, o nosso gás azul… na França nós tínhamos a semana O intendente­‑chefe: É de Egon Schubert!
do arco­‑íris! O coronel prussiano: Ah, pois claro… bem, isso uma pessoa
O oficial de dia do Estado­‑Maior: Olhe que em Tolmein tinha obrigação de saber. Pois é, o vosso Schubert! É, não há
conseguimos um efeito bem bom.63 Só lhe digo que eles caíam dúvida que aí vós, os vienenses, nos levais a palma, não há volta
que nem tordos… a dar­‑lhe. Ah, senhores… a vossa fantástica Viena! Sim, sim.
O intendente­‑chefe: Toquem a “Moreninha do Isonzo”! Assim um daqueles cocheiros vienenses dos autênticos, com a
(Gritos: “Moreninha do Isonzo!” “Bravo!” A música toca.) sua tipóia de rodas de borracha e a sua casa de comes e bebes
Os oficiais: (Cantam a acompanhar.) no Prater… nã, aí não há nada a dizer. E as lavadeirinhas de
More… ninha do Isonzo… Viena… ah, sim… conhecimus! Também já por lá andei. Pas‑
Teu olhar… fita­‑me… ardente, savam o tempo a cantar… (Canta e bate palmas.) “Que eu sou
More… ninha do Isonzo… um velho folgazão”…64 ou coisa parecida. Nessa altura ainda
Tua… beleza… não mente. o papá Strauß estava em pleno apogeu com a sua ciranda…
Deixa­‑me… dar­‑te… outro beijo, não, como é que se chamava mesmo aquela história… banda!
Aperta­‑me… ao coração, O bom Johánn. Bem, certamente que algumas coisas hão­‑de
Morena do meu desejo, agora estar mudadas.
És toda… a minha… paixão. (O barulho dos canhões vai enfraquecendo cada vez mais.)
O coronel prussiano: (Trauteando e abanando a cabeça.) És O oficial de dia do Estado­‑Maior: … Mas olhe que em
toda… a minha… paixão… Coisa linda! Tolmein…
O intendente­‑chefe: (Cantando.) Mas ela não temia… o troar O oficial do Estado­‑Maior alemão: Ora, isso foi uma única
dos canhões… Mas isto inda não é nada comparado com a vez. Nós num só dia gaseámos muitos mais do que vocês num
terceira estrofe, quando, passado um ano, chega o pirralho ano inteiro! Na limpeza dos últimos ninhos de franceses, de
com uns olhos tão negros como a mamã e com o cabelinho ingleses brancos e negros e assim. Pois, sim senhor, a nossa
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bomba manual de gás alemã B! A massa venenosa espalha­‑se minando o moral… enforquem­‑nos!… Eu… fui eu que… sempre
e provoca feridas infectadas que deitam pus como uma gonor‑ predisse que a desgraça do nosso exército… vai arrastar mesmo os
reia das valentes. (Risos.) Essa agora! Foi demonstrado cienti‑ meus regimentos!… Esta leviandade inau… dita… incorrigível…
ficamente de maneira irrefutável! O homem só no dia seguinte só comezainas e galdérias… desmora… (Deixa­‑se cair.)
é que espicha. O oficial de dia do Estado­‑Maior: (Levanta­‑se de um salto.)
A orquestra: (Toca e canta ao mesmo tempo.) A culpa é desses gandulos… da linha da frente… esses cabrões
Jasus, Jasus… das primeiras linhas… esses…
Vamos menos mal… O coronel austríaco: (Acordando.) Mas atão que é que
Está­‑nos no sangue, aconteceu?
É natural! O tenente­‑coronel: Nicles! Nada de importância!
(Os oficiais repetem.) O general: Onde… estavam as metralhadoras para os acicatar?!…
O general: (Balbuciando.) Está­‑nos… no sangue… Onde é que está o nosso superior poder de fogo?!… Grandes
(O barulho dos canhões calou­‑se.) sacanas!… Depois de um prélio de quatro anos sem preceden‑
Várias vozes: Eh lá! Mas que é que foi? Que é que foi? tes… contra forças… exemplares… superiores… dando o exem‑
Os correspondentes de guerra: Que é que isto quer dizer…? plo… as nossas glor… (deixa­‑se cair na cadeira a choramingar)
O general: (De cabeça ao rubro, levanta­‑se de um salto, dá um murro pois… no fim… lá vêm eles… lá vêm… por aqui adentro…
na mesa.) Irra! Mas eu dei ordens expressas…! Isto só mesmo O coronel prussiano: Não, Excelência, não, cabeça erguida!
connosco é que é possível… O que… o que é que eu recomendei Meus senhores… não devemos nem podemos perder a cora‑
expressamente àquela cambada?! (Aos berros.) Se faltar um só car‑ gem… agora que a vitória final está iminente… podemos e deve‑
tucho, castigar sem dó nem piedade!… Atirar­‑se ao inimigo com mos de testa erguida… podeis ter a certeza, meus senhores, de
ímpeto gritando potentes hurras. À queima­‑roupa espetar­‑lhe que se trata apenas dos típicos ganhos iniciais de toda a ofensiva
ainda um balázio e depois enfiar­‑lhe logo a baioneta pelo meio inimiga… é bluff e nada mais! Não vale meter medo. O que ainda
das costelas!… Abater sem misericórdia os soldados desleais!… está na nossa mão é uma retirada estratégica… e uma retirada
Apesar da granada de mão e da metralhadora, a espingarda con‑ estratégica é sempre um sucesso! (Hurras e vivas isolados.) E eu
tinua sempre a ser o melhor amigo da infantaria!… Os oficiais estou convicto de antemão de que o inimigo não vai impedir
têm de ser tesos e de estimular as melhores energias… E eles que os nossos movimentos projectados desde há anos e postos em
é que fizeram, esses cabrões da frente, esses cães da frente, esses… prática desde há dias. As nossas operações decorrem de acordo
esses… (soluçando) dão­‑nos cabo de tudo… o Wottawa!… Esses com o planeado. Libertámo­ ‑nos simplesmente do inimigo
escrevinhadores!… Não por acção do inimigo, pela fome!… e depois vamo­‑lo puxando atrás de nós com toda a limpeza.
A fome… e foi por aí que eles pegaram… (cerrando os punhos) Força neles! O moral das tropas não podia ser mais elevado.
822 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 823
Meus senhores, nós não vacilamos e não cedemos! Quantas A cena é substituída por uma outra imagem. O comboio dos
mais vezes dermos ao inimigo oportunidade para investir, tanto Balcãs cruza a paisagem a toda a velocidade. Abranda a mar‑
mais possibilidades temos de o desgastar! Foi essa a táctica que cha. Vê­‑se o vagão­‑restaurante de cujas janelas se debruçam os
experimentámos no Somme. É essa a táctica que há­‑de também dois correspondentes de guerra, parecem estar a brindar aos seus
resultar no Piave. O que é preciso é não nos pormos agora com pares na sala. Um deles grita:
derrotismos! Deus está connosco! Vamos conseguir… mesmo Não há dúvida de que existe algo de belo na guerra…
que o mundo esteja cheio de demos!65 O inimigo… podeis ter
a certeza, meus senhores… o inimigo há­‑de chocar contra nós Agora regressa a imagem anterior. Os refugiados exaustos, já
como contra um férreo muro de fogo… quase mortos de frio, estão deitados nas pedras cobertas de gelo.
(O horizonte é uma parede de fogo. Gritos de pânico. Muitos dos A luz da manhã cai sobre rostos macilentos, pálidos, que con‑
presentes estão estendidos debaixo da mesa. Muitos correm ou servam ainda o horror da noite passada. Um grito: um cavalo
vão a cambalear em direcção à saída, alguns voltam para trás precipita­‑se no abismo. Um outro grito, ainda mais estridente:
com rostos aterrados e desfigurados.) o condutor caiu atrás dele. Na berma do caminho, um cavalo
Gritos: Mas que é que aconteceu? Que é que… morto de cansaço, além, um boi com as tripas de fora, um
O general: (Balbuciando.) Romperam… as linhas…! Continuem… homem de crânio despedaçado. O cortejo põe­‑se em movimento.
a tocar… Animais exaustos e cansados ficam para trás. Quedam­‑se imó‑
(Todas as luzes se apagaram. Lá fora, tumulto. Ouve­‑se o reben‑ veis. Seguem o cortejo com um olhar triste como a morte. De
tar de bombas de avião. Depois, instala­‑se o silêncio. Os presen‑ rosto lívido, encostada a um pinheiro, está sentada uma campo‑
tes dormem, estão estendidos sonolentos ou olham fixamente, nesa – é a mulher do vale do Morava – com um corpinho sem
com um ar totalmente alucinado, para a parede em que está pen‑ vida nos braços, junto a cuja cabeça arde, com luz trémula, uma
durado o quadro A Grande Época e onde agora vão surgindo, pequena vela de cera.
uma após outra, as visões seguintes.) (A visão desaparece.)

Caminho estreito de montanha na direcção de Mitrovica. Tem‑ Um quartel. Vão­‑se sucedendo abruptamente as seguintes cenas.
pestade de neve. Entre milhares de carroças, uma massa humana Camponeses eslovacos, regressados do cativeiro russo, em parte
a perder de vista, velhos e mulheres, crianças, seminuas, pela vestidos com roupas do campo, em parte com uniformes russos,
mão das mães, muitas das quais trazem também um bebé ao pedem um prolongamento da licença por causa do atraso das
colo. Um rapazinho, ao lado de uma camponesa do vale do colheitas. O comandante da companhia ordena que os suplicantes
Morava, estende a mãozinha e diz: sejam incorporados de imediato na próxima companhia a seguir
Tchitcha, daj mi hleba…66 para a linha da frente. Vê­‑se uma sala onde dormem dois jovens
824 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 825
regressados, de 19 e 21 anos. São acordados pelo barulho da cena levá­‑lo embora. O outro acusado está de pé, lívido mas aprumado.
que se desenrola agora lá fora. O sargento procede à distribuição Diz as palavras:
do fardamento. Os homens recusam­‑se a aceitá­‑lo, exigem ser Deus sabe que morro inocente!
ouvidos pelo comandante do batalhão. O sargento bate nalguns Deixa que o levem embora enquanto os restantes choram a sorte
deles e recebe um murro na cara. O piquete de serviço é alertado, dos seus camaradas. Os juízes dirigem­‑se para a messe. Ali, um
as armas são carregadas, os amotinados são empurrados para a deles diz:
parada à ponta de baioneta e cercados. Aparece o capitão, todos É mais que evidente que só aquele casado é que pode ser culpado.
obedecem à sua ordem de formatura. Agora também os dois se Mas não se pode fuzilar um pai de seis filhos! Depois o Estado
encontram incluídos no grupo. O capitão ouve o relato do inci‑ é que tinha de se responsabilizar pelos órfãos! Assim, ele apanha
dente. Ninguém sabe quem foi que deu o murro. O capitão manda seis anos, tantos quantos os filhos, e, ainda por cima, aos familia‑
sair da formatura um em cada dez e manda levá­‑los para a casa res de reclusos militares pode ser recusado o subsídio estatal.
da guarda. Ali são espancados, ficam amarrados com cadeados Um segundo diz:
nos pés e são depois levados para a casa de detenção. Proclama­ Três outros também eram casados… de maneira que, para
‑se a lei marcial. Seguem­‑se os interrogatórios. Seis são levados a fuzilar, só restavam os dois rapazes. Alguma coisa hão­‑de ter
conselho de guerra. O pátio da casa de detenção no crepúsculo feito. Se não fizeram hoje, faziam amanhã. Inocentes ou não
da manhã seguinte. Aparecem os juízes, o comandante do bata‑ inocentes… é preciso dar um exemplo drástico.
lhão, o auditor e dois religiosos. Traz­‑se uma mesa e um crucifixo. De noite na cela. O mais jovem está por detrás da janela gra‑
O tribunal distribui­‑se em roda da mesa, com os religiosos um de deada a rezar o rosário. Aparecem os capelães militares para dar
cada lado. À vista disto, um dos seis tem um ataque de coração, a extrema­‑unção aos delinquentes. O mais jovem põe­‑se a chorar
cai ao chão soluçando e espumejando, outros arrancam os cabelos, e exprime o desejo de ver a mãe ainda uma vez. Segue­‑se uma
vociferam, rasgam as roupas. Os guardas procuram acalmá­‑los, oração em conjunto. Ele pede papel e lápis para escrever à mãe.
assegurando­‑lhes que só dois vão ser condenados à morte. Um juiz Escreve. São já nove menos um quarto. Levanta­‑se.
lê o libelo acusatório. Os jovens de 19 e 21 anos são condenados à Mãe!
morte por fuzilamento, os restantes, a penas de prisão de vários Deixa­‑se cair. O outro:
anos. O jovem de 19 anos cai de joelhos aos pés do juiz­‑presidente, Foi por isto que lutei, foi por isto que vim da Rússia, para me
pede misericórdia sacudido por soluços. Mostra um broche com levarem agora como um boi para o açougue?… Amarrem­
o retrato da sua velha mãezinha. Diz que ela não iria sobreviver ‑me e levem­‑me!… Cheguei aos 21 anos para ser fuzilado?…
à morte dele, que o mandassem para o campo de batalha, para Despachem­‑se!
poder provar como é um soldado valente, que durante o tumulto A caminho do lugar da execução. Despede­‑se do Sol radiante
estava a dormir e estava completamente inocente. O juiz manda de Agosto. Arranca uma folha verde de uma árvore e beija­‑a
826 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 827
com fervor. O mais jovem chora sem parar pela mãe. No lugar Pois, eu era capaz de mandar executar nem que fossem 300. Não
da execução. O velho pátio de um castelo. A entrada só é auto‑ podem tolerar­‑se excessos provocados pela embriaguez. Excep‑
rizada contra um documento de identificação. Vêem­‑se entre os cionalmente, concedi­‑lhes a morte honrosa por fuzilamento.
presentes as autoridades máximas, oficiais de alta patente e res‑ (A visão desaparece.)
tantes dignitários com as esposas. Está representada a melhor
sociedade da cidade. Os juízes, o comandante de batalhão e O capitão Prasch está postado em frente do seu abrigo, todo
os oficiais do batalhão que não estão de serviço dispõem­‑se no manchado de sangue, erguendo ao alto uma cabeça que espetou
centro do quadrado. Trazem os delinquentes. Lê­‑se a sentença. num pau. Fala:
O mais velho: Este é o meu primeiro prisioneiro italiano, foi com o meu
Se foi esse o depoimento do sargento, ele é que merecia estar próprio sabre que fiz isto. O meu primeiro prisioneiro russo
aqui a ser fuzilado. mandei­‑o torturar antes. O que mais gosto é de me atirar aos
Recusam­‑se a deixar vendar os olhos. checos. Eu nasci em Graz. Na Sérvia, quem se me atravessava
Já não tenho medo da bala. no caminho levava logo um tiro. Matei com as minhas pró‑
Vendam­‑lhes os olhos. Ajoelham­‑se. prias mãos 20 pessoas, incluindo civis e prisioneiros, mandei
“Fogo!” fuzilar pelo menos 150. Todos os soldados que se atrasavam no
Agitar de sabres. Dois cadáveres estendidos na erva. O capitão ataque ou se escondiam durante o bombardeamento da arti‑
dá a voz de oração. Todos fazem continência. Um dos padres, lharia abati­‑os com as próprias mãos. Bati nos meus subordi‑
com barrete de oficial e um distintivo dourado na manga, faz um nados sempre no rosto, seja com o bastão, seja com o punho.
discurso, aponta com o braço direito estendido para um estan‑ Mas também fiz muito por eles. Na Sérvia, violei uma rapariga
darte e fita o céu com um olhar transfigurado na direcção do sérvia, mas depois deixei­‑a aos soldados e, no dia seguinte,
brasão dos Habsburgos que encima o portão. mandei­‑a enforcar mais a mãe nas grades de uma ponte.
(A visão desaparece.) A corda partiu­‑se e a rapariga caiu na água ainda viva. Puxei do
revólver e disparei sobre a rapariga até ela desaparecer morta
Kragujevac. Em duas filas paralelas, há 22 covas abertas. Em frente debaixo de água. Sempre cumpri o meu dever, até ao último
estão ajoelhados 44 soldados regressados, já entrados em anos, com hausto de homens e cavalos. Fui condecorado e promovido.
medalhas de valor de todos os graus. Soldados bosníacos disparam Estive sempre no meu posto. A guerra exige uma rigorosa con‑
a dois passos de distância. As mãos tremem­‑lhes. A primeira fila centração de todas as forças. Não se pode deixar abater a cora‑
retorce­‑se no chão. Nenhum está morto. Encostam­‑lhes os canos gem. Cabeça erguida!
das espingardas à cabeça. Messe dos oficiais. O auditor­‑chefe ergue Ergue o pau mais alto.
o copo e, brindando ao seu par na sala, diz as palavras: (A visão desaparece.)
828 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 829
Um primeiro­‑tenente dos ulanos manda amarrar um pope ao e girar os cadáveres.
estribo de um cavaleiro. Despem­‑lhe o sobretudo. (A visão desaparece.)
Do sobretudo já não vai precisar.
O cavaleiro afasta­‑se num trote ligeiro. Uma mulher que comprou batatas é morta à pancada por outras
(A visão desaparece.) pessoas que já não conseguiram ser servidas. As pessoas piso‑
teiam o cadáver.
Inverno nos Cárpatos. Um homem atado a uma árvore. É liber‑ (A visão desaparece.)
tado e cai desmaiado. O comandante da companhia bate­‑lhe
com o tacão da bota e aponta para um buraco na terra para Um comboio de mercadorias está parado num ramal de caminho­
onde ele é transportado por soldados. ‑de­‑ferro: serve de habitação a um imundo bando de gente; são
(A visão desaparece.) refugiados, entre os quais mulheres grávidas, velhos moribundos,
crianças doentes.
Retirada. Chove. O general do banquete está sentado num auto‑ (A visão desaparece.)
móvel e dá ordem de tirar o toldo da maca de um ferido e de
estendê­‑lo sobre o carro. Acena ao seu par e parte. Em frente a uma choupana na Volínia. Um camponês com o seu
(A visão desaparece.) cão de pastor. Um soldado passa e fere o cão com um golpe de
baioneta.
Num campo de beterraba na Boémia. Duas crianças transpor‑ (A visão desaparece.)
tam um caixão de menino para o cemitério. Deixam cair o cai‑
xão. Arrastam o corpo, que ficou estendido no campo, outra vez Bacanal de oficiais. Um tenente mata uma criada a tiro.
para o caixão e prosseguem depois o seu caminho. (A visão desaparece.)
(A visão desaparece.)
Pausa dos combates nas margens do Drina. Um camponês sér‑
Junto a uma fábrica de pão, um monte de entulho, escória e sucata. vio vem buscar água. Na margem oposta está um tenente a fazer
Crianças meio­‑mortas de fome andam à procura de pedaços de pontaria. Abate o camponês a tiro.
pão. Encontram uma granada de shrapnel. Brincam com ela. (A visão desaparece.)
A granada explode.
(A visão desaparece.) Sexta­‑Feira Santa numa igreja de Paris. Um projéctil do canhão
de 120 quilómetros de alcance acerta em cheio.
Uma fila de enforcados em Neusandec. Crianças fazem baloiçar (A visão desaparece.)
830 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 831
Domingo de Páscoa. Prisioneiros russos que se recusaram a exe‑ Deserto do Somme. Nuvens de fumo como se fossem gigantescas
cutar trabalhos numa posição sob fogo inimigo dizem as últimas bandeiras enlutadas. Edifícios desmoronam­‑se. Poços são des‑
orações. truídos com explosivos e atulhados por sapadores. Evacuação.
(A visão desaparece.) Pessoas idosas são expulsas das suas casas. Gente a tremer de frio
no ponto de concentração. Mulheres põem­‑se de joelhos diante de
Moribundos no arame farpado frente a Przemysl. oficiais. Deportação para os trabalhos forçados.
(A visão desaparece.) (A visão desaparece.)

Combate corpo a corpo e limpeza de uma trincheira. A fábrica de lacticínios Sorel perto de Loison é reduzida a cinzas
(A visão desaparece.) e os 250 feridos que lá se encontravam morrem queimados.
(A visão desaparece.)
Uma sala de escola em que acerta uma bomba de avião.
(A visão desaparece.) Afundamento de um navio­‑hospital.
(A visão desaparece.)
Um soldado é retirado de um montão de terra. Tem o rosto
banhado em sangue. Abre os braços. Os olhos apagaram­‑se. Longuyon é incendiada com bidões de petróleo, as casas e a igreja
(A visão desaparece.) são saqueadas. Feridos e crianças pequenas morrem queimados.
(A visão desaparece.)
Um posto de primeiros socorros em que cai uma bomba de avião.
(A visão desaparece.) Flandres. Numa choupana saqueada está uma máscara de gás
sentada diante de uma salamandra. Ao colo, uma máscara de
Explosão de uma mina. Um soldado estende os cotos ensanguen‑ gás mais pequena.
tados dos braços na direcção da sala. (A visão desaparece.)
(A visão desaparece.)
Aparece o cavalo em cujo dorso está marcada a sangue a forma
Imagem dupla: um oficial alemão que abate a tiro um prisio‑ da peça de artilharia que transportava.
neiro francês que suplica pela sua vida. Um oficial francês que (A visão desaparece.)
abate a tiro um prisioneiro alemão que suplica pela sua vida.
(A visão desaparece.) Inverno em Asinara. Prisioneiros tiram as roupas aos camara‑
das que morreram de cólera. Famintos comem a carne dos que
832 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 833
morreram de fome. legumes secos com gás de granada.
(A visão desaparece.) (A visão desaparece.)

Barracão na Sibéria. Homens encanecidos, subalimentados em Na linha mais avançada da frente dos Cárpatos. Tudo está calmo.
extremo, descalços, com uniformes esfarrapados, estão acocorados Nas trincheiras, há cadáveres de pé. Homens lado a lado, de
no chão, fitando a distância com olhos vazios. Alguns dormem, espingarda aperrada.
outros escrevem, outros exercitam com pás o manejo das armas. Os soldados que morreram de frio:
(A visão desaparece.) A noite era gelada.
Por quem foi tal morte ideada!
Milhares de cruzes num campo nevado. Vós que dormíeis em camas,
(A visão desaparece.) não tendes vossa alma em chamas?
Nos astros frios não há salvação.
Um campo de batalha. Crateras e covas. Caminhos através do E nada deterá a vossa perdição!
arame farpado que ainda se mantém. Chegam automóveis de (A visão desaparece.)
luxo. Os turistas dividem­‑se em grupos, tiram fotografias uns aos
outros em posições heróicas, imitam salvas de tiros, riem e lan‑ O velho camponês sérvio cava a sua própria sepultura.
çam gritos. Um deles encontrou um crânio, espeta­‑o na ponta da O velho camponês sérvio:
bengala e passeia­‑o com uma expressão de triunfo. Um homem Nós em torno à arca encurralados,
enlutado intervém, apossa­‑se do achado e enterra o crânio. transidos pelos berros dos soldados.
(Gemidos dos adormecidos. A visão desaparece.) Nada tínhamos já. Eles vinham roubar.
Por isso minha cova eis­‑me a cavar.
Agora surge um cortejo de máscaras de gás, que formam em Pobres, sem roupa, sem pão pra comer,
linha perante os presentes na sala e parecem aproximar­‑se da mas foi a nós que vieram prender.
mesa. Meus filhos a um muro encostaram,
As máscaras de gás: prò céu à minha frente os mandaram.
Bom proveito, nossa tromba enfiamos, Meu chão, meu lar, tudo jaz calcinado.
curiosas, em alheia ração. Cavo a cova onde vou ser enterrado.
A nossa por azar estava estragada. Meus filhos chamam… vou já, sem demora!
No nosso prato hoje só encontrámos, Senhor, em vossas mãos minha alma mora.
e preparados ao gosto alemão, (A visão desaparece.)
834 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 835
O príncipe­‑herdeiro com os lança­‑chamas do 5.º Exército. Para Uma oficina antiga de inventor.
saudar o príncipe­‑herdeiro, as chamas desenham um “W”. leonardo da vinci: … como e por que razão não deixo escrita a
As chamas: minha técnica de permanecer debaixo de água por todo o tempo
Somos as chamas! Muitos se perderam em que possa permanecer; e isto não o dou a público nem o
em nosso ardor infernal, explico por via da natureza maléfica dos homens, que essa téc‑
filhos que de mães em dor nasceram. nica haveriam de usar para cometer assassínios no fundo dos
Somos uma inicial! mares, rompendo o casco dos navios e os afundando junto com
Ai deste tempo! Ai desse atroz paspalho! as pessoas que dentro deles estivessem…
Com inocente sina, (A visão desaparece.)
tinha tudo pensado.
E lançou a humanidade na chacina. Ouve­‑se um som mavioso. Calmaria depois do afundamento
À imagem do demónio foi criado, do Lusitania. Sobre uma tábua a boiar, dois cadáveres de
uma caveira traz na fronte de espantalho! crianças.
(A visão desaparece.) As crianças do lusitania:
No baloiço do mar…
Mil e duzentos cavalos surgem do mar, chegam a terra e põem­‑se nestas longes andanças…
a trotar. A água escorre­‑lhes dos olhos. nossa vida é folgar…
Os mil e duzentos cavalos: ’stão felizes as crianças…
Aqui estamos, estamos cá, estamos cá… (A visão desaparece.)
os mil e duzentos cavalos da guerra!
Os cavalos de Dohna estão cá, ó Dohna… Dois cães de guerra atrelados a uma metralhadora.
subimos e chegámos a terra. Os cães de guerra:
É vil o que puxamos. Mas é sempre a puxar.
Oh, Dohna, em sonhos te buscamos, Pois que somos fiéis, té à hora final.
porque não nos servia esse lugar. Que belo era ver o sol da graça a brilhar!
Luz não havia, e cabe água de mais O demónio chamou, foi­‑lhe o cão ao sinal.
em mil e duzentos olhos a dobrar. (A visão desaparece.)
O conde Dohna cercado por 12 repórteres. De repente, em vez
destes, são 12 cavalos que ali estão. Atacam­‑no e matam­‑no. Uma floresta morta. Tudo está destruído a tiro, abatido a machado
(A visão desaparece.) e cortado com serras. Terra nua, em que se erguem apenas aqui e
836 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 837
ali algumas árvores decrépitas. Os troncos abatidos, desramados, esta visão recolha ao tempo eterno!
serrados, jazem ainda às centenas pelo chão, com a casca já meio Os pedaços desta fronte de menino
apodrecida. Um caminho em ruínas atravessa a cena de um lado coração e cabeça vos trespassem bem fino!
ao outro. Longa vida tenhais, e sempre acompanhados
A floresta morta: noite após noite p’los meus maternos brados!
Por vossa força, vossos trabalhos, (A visão desaparece.)
encaneci. Verdes eram meus galhos.
Agora vede que sombra é esta. Rompe uma música alegre, distorcida num ritmo febril. Execu‑
Já fui floresta, já fui floresta! ção de Battisti. Soldados risonhos estão postados em torno do
cadáver, curiosos esticam os pescoços. Com as mãos por sobre a
Era pra a alma a minha catedral, cabeça do morto, o jovial carrasco.
ouvi, cristãos, Roma eternal! O rosto austríaco:
Em meu silêncio estava o verbo. Morte vira dança,
O que fizestes foi crime acerbo! o ódio alegria,
dor vira festança,
Malditos sejais, que tal fizestes! mas que rico dia!
Não mais irei aos cimos celestes! Se a coisa está chata,
Que verde eu era! Nada me resta. ora, tanto faz,
Já fui floresta, já fui floresta! a gente é a nata,
(A visão desaparece.) não fica pra trás.
Todo o bom cristão
Um coronel manda prender a mulher da Dalmácia junto com o diz a sua prece,
filho louro de 12 anos. Enquanto a mulher é arrastada dali para quem quer diversão
fora, dá ordem de matar o rapaz com um tiro na cabeça. Fica para algoz se oferece.
ali ao pé a fumar, enquanto soldados se ajoelham em cima das (A visão desaparece.)
mãos da criança e levam a cabo a execução.
A mãe: Durante a visão seguinte, os sons atingem as proporções de uma
Nunca, por mais que o tempo se arraste, música terrível. No Monte Gabriele.67 Cadáveres insepultos,
o vosso olhar desta imagem se afaste! semidecompostos, amontoados numa grande pilha. Um bando
E só quando chegardes ao Inferno de corvos voa crocitando em torno dos despojos.
838 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 839
Os corvos: Vós reunis prà papança,
Sempre tirámos sustento nós míngua nunca sofremos.
destes p’la honra caídos. Indo ao cheiro da matança,
Vosso bom entendimento a fome desconhecemos.
nos traz sempre bem servidos.
Fome seria aflição,
Sem termos de requerer, e vergonha de morrer,
o alimento nos fornecem. grande é nossa gratidão
Vós e nós queremos comer, de aqui na frente viver.
por isso estes apodrecem.
É grande a míngua lá em casa,
De triunfo é a nossa berra velhos e novos se finam,
se as perdas vemos crescer, porque aqui a morte arrasa
que os asnos da nossa terra os que por nós se chacinam.
sempre a nós vêm atender.
Vosso açougue nunca falha
São corvos os generais à freguesia costumada.
a grasnar pelos salões. Com os mortos na batalha,
Os mortos nem têm covais, aos corvos não falta nada.
mas têm os corvos galões. (A visão desaparece.)

Se perdestes a batalha, A música, totalmente em surdina, acompanha o espectáculo que


quem se vai envergonhar? agora se inicia para, pouco a pouco, se ir silenciando. Um cortejo
Não faltará quem nos valha, interminável de mulheres macilentas desfila, flanqueado por sol‑
e fica tudo a ganhar! dados de baioneta calada.
As auxiliares do exército:
Sim, a nós não falta vida, Nós que a tropa recreámos,
mudados é que não estamos, do exército as rameiras,
e é uma festa desabrida pra longe de vós nos vamos,
a guerra em que persev’ramos! a brigada das caveiras.
840 Os Últimos Dias da Humanidade ACTO V 841
Aos heróis sacrificadas, O amor do meu pai, fecundo,
contagiadas p’la bravura, ’stá infectado, canalha!
temos as faces rosadas Pra esse reino não iremos!
duma sífilis sem cura. Dum cadáver descendemos.
O ar aqui cheira a mortalha.
Sangue, vinho, sémen, choro (A luz apaga­‑se.)
corriam no bacanal,
o que ficou do namoro Escuridão total. Depois, ergue­‑se no horizonte o muro de cha‑
levamos prò hospital. mas. Lá fora, gritos de agonia.

Hoje nos olham com nojo:


de magras cai­‑nos a farda,
levamos nosso despojo
lá longe prà retaguarda.

Mas nossa hoste vai crescer!


E um dia, com fragor,
sobre os homens vai descer
um milénio de terror!
(A visão desaparece.)

Agora, um brilho fosforescente enche a sala.


O filho por nascer:
Crimes não qu’remos olhar,
fazei­‑nos já abortar.
Evitai nosso nascer!
Vossa infâmia acusaremos.
Pais­‑heróis assim não qu’remos.
Antes sem glória não ser.
Dor e gozo deste mundo!
EPÍLOGO
A Última Noite

Campo de batalha. Crateras. Nuvens de fumo. Noite sem estre‑


las. O horizonte é uma parede de chamas. Cadáveres. Mori‑
bundos. Entram em cena homens e mulheres com máscaras
de gás.

Um soldado moribundo:
(Aos gritos.)
Teu algoz, capitão, podes trazer!
Por um imperador não vou morrer!
Capitão, tu és um pau­‑mandado,
uma vez morto, não serei mais soldado!

Se eu estiver na morada do Senhor,


estou acima do trono do imperador
e suas ordens só posso desprezar!
Onde a minha terra e meu filho a brincar?

Quando no seio de Deus eu estiver,


vai minha última carta aparecer.
Gritos, gritos, gritos sem parar!
Mais fundo que eu não se pode amar!

Capitão, perdeste todo o tino


por disto aqui fazeres meu destino.
No fogo é que meu coração ardeu.
Por uma pátria não, não morro eu.
844 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 845
Não podeis obrigar­‑me, nem pensar! O céu cospe fogo,
Olhai a morte os grilhões a quebrar! que em sangue se extingue.
A morte ponde então em tribunal! Vamos pois, mais logo,
Eu morro, mas não p’la lei imperial! fazer festa pingue.
(Troar de canhões à distância.)
Máscara de gás feminina:
(Aproxima­‑se.) Máscara de gás feminina:
Foi vontade de Deus este homem aqui morrer. Pôs­‑nos o dever
Estamos cá para cumprir nosso dever. sem sexo e sem rosto,
Não há tempo a perder neste tempo de morte. sem direito ter
O sexo fraco afinal sabe ser sexo forte. ao sexo e ao rosto.
Há os mesmos direitos em desgraça tão rude.
Não haver já sexos à raça dá virtude. Pós ter já vivido
entre mortos e caretas…
Máscara de gás masculina: Desta noite o sonido
(Coloca­‑se em frente do outro lado.) são harpas e trombetas!
Possa a tua tez
à minha habituar­‑se! Ambos:
Não sei quem tu és, (De braço dado.)
ó bela em teu disfarce! Pôs­‑nos o dever
sem sexo e sem rosto,
Transidos de horror, sem direito ter
cumprindo o dever, ao sexo e ao rosto.
bom é pressupor (Saem de cena.)
não se conhecer.
(Dois generais em fuga num automóvel.)
Só a causa interessa, General:
importa é lutar, (Em recitativo.)
a nuvem é espessa Não se pode avançar,
de gases a asfixiar. isto é só sarilhos.
846 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 847
Coisas a bloquear ah, pões­‑te de rojo…
e outros empecilhos. Olhe lá, ’stamos em guerra!

Tomou o combate Não me ouve. Sentido!


uma nova feição, Olhe lá, não se encolha,
é aqui que embate não ouve o alarido?
nossa progressão. Eu faço­‑lhe a folha!

Co’a idade que temos Isto vai dar prò torto,


não é brincadeira, no que estamos metidos!
o risco corremos Passe por cima do morto,
de morrer na trincheira. ou estamos perdidos!
(Partem. Amanhece.)
Firmes sem vacilar,
os nossos soldados (Dois correspondentes de guerra de automóvel, descem.
ou vão chacinar Calções de montar, binóculos, máquinas Kodak.)
ou estamos tramados. Primeiro correspondente de guerra:
Eu acho melhor
Àquele que sucedeu? aqui me deter,
Está decapitado, sinto em mim valor
este as pernas perdeu prà batalha descrever.
e está desabotoado!
Segundo correspondente de guerra:
Isto põe­‑me varado, Pois, aqui parece
fico logo a ferver, que algo pode suceder.
ó cabo finado, Se ao inimigo apetece
ponha­‑se como deve ser! este ponto varrer.

Até mete nojo, O primeiro:


quase caio por terra, C’os heróis no chavascal,
848 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 849
isto está animado. O segundo:
Se vai prò jornal, Que é que lhe foi na alma,
fica tudo entusiasmado. que pensamentos teve,
diga­‑nos lá com calma,
O segundo: a batalha, que tal esteve?
Ver fotos a valer
seduz toda a gente. O primeiro:
Um soldado a morrer Todos gostam, ’stá a ver,
e a descrição do ambiente. de detalhes catitas,
e um herói a morrer
O primeiro: dá notícias bonitas.
Eu gosto de usar
fontes especiais. O segundo:
Só o que é singular Assim um pormenor
fica nos anais. faz logo sensação,
(Aproxima­‑se de um soldado moribundo.) inda me hão­‑de propor
pra uma condecoração.
O segundo:
Olhe, ao expirar O moribundo:
deve transfigurar­‑se! Depressa… depressa…
Preciso de captar vede meu estertor…
o olhar a apagar­‑se. ponha uma compressa…
ó senhor doutor.
O primeiro:
Você parvo não é… Tantas horas passadas…
Enquanto inda tem vida, com feridas tão duras…
queremos que nos dê de sangue empapadas…
uma história sentida. e sem ligaduras.

Restam poucos minutos…


850 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 851
não me deixeis esvair, A um herói calado
vinde, resolutos, calamos sem perdão.
às feridas acudir. (Viram­‑se para se irem embora.)

Vede… o estertor… O moribundo:


estou sem… respiração… Minha mulher… ah… por favor…
depressa… doutor… oh… que dor… infernal…
dê­‑me a sua mão! arranjai­‑me… um condutor
prò… próximo… hospital!
O primeiro correspondente de guerra:
Não conta nada… ó agrura! O primeiro correspondente de guerra:
Está em grande torpor. Não faltava mais nada…
Toma­‑me porventura o que este está a pedir!
por um doutor! Fique para aí na estrada
sem tugir nem mugir!
O segundo:
Guerra é guerra… tosse danada, O segundo:
duro é aqui nosso dever, Para um simples soldado
sobre sua testa trespassada é uma honra imortal!
digo apenas c’est la guerre. O retrato tirado
aparecer no jornal!
O primeiro:
É que feridas ligar, O primeiro:
não sei fazer nada disso, Eu estou­‑lhe a dizer
mas impressões achar que a notícia sairá!
é bem pago serviço. Não se ponha a morrer,
vire os olhos para cá!
O segundo:
O artigo arrebatado O segundo:
é que nos dá o pão. Não diz chus nem bus.
852 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 853
Lá vai ter que ser. O primeiro:
Vou aproveitar a luz… Vambora! Isto está parado,
e vamos a ver. não se vê aqui alma viva.
(Tira uma fotografia.) Toca a ir pra outro lado
antes da contra­‑ofensiva.
O primeiro:
Queremos animação, O segundo:
não faça cara de dó. Viesse ela quiçá,
Falta o capelão, eu não me ia importar,
infelizmente está só. mas com esta luz tão má
não posso fotografar.
O segundo:
Isso é que dava efeito O primeiro:
para aos leitores mostrar, Olhe, aqui parece
o padre naquele jeito que algo pode suceder.
de sobre o herói se inclinar. Se ao inimigo apetece
este ponto varrer.
O primeiro:
Somos amigos de peito, O segundo:
ele faz­‑me essa caridade, Não há razão pra ficar.
afinal também lhe dá jeito Sou eu acaso um valente?
alguma publicidade. Que é que se há­‑de narrar?
Uma aventura na frente!
O segundo: (Partem.)
Fazendo cá tanta falta,
por onde diabo há­‑de andar! (Um sargento empurra à sua frente um pelotão, de revólver
Que nuvem de fumo tão alta! em punho.)
Foi bomba sem deflagrar. Sargento:
Marche! Já vos ensino a ficar na encolha!
Ou morreis pela pátria ou faço­‑vos a folha!
854 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 855
Se não ides a bem, faço­‑vos ir a mal! que todo o limite, toda a medida passa,
Fogo no inimigo ou é a vossa hora final! e para crescer o mundo despedaça.
(Saem de cena.) Do Reno até ao Ganges, a enorme sangria
deveu­‑se a um ferrabrás de fancaria!
Um cego: Do velho mundo não foste o general,
(Avança tacteante a rastejar.) deste­‑lhe foi quincalha medieval.
Mãe, obrigado! Sinto a tua mão. Secou­‑lhe a fantasia, armado em cavaleiro,
Oh, ela liberta da noite e da nação! quem mais não era que um universal caixeiro!
Respiro o bosque e do regresso o anseio. De suas melhores veias foi o sangue roubado,
Como me trazes de novo pra o teu seio. por tuas hostes de mar e ar e palavreado.
De fogo e podridão não podia ela ser nascida!
O trovão desta noite já rolou. Com o teu Deus a vitória foi perdida!
Não sei porque alguém isto ordenou. Assim exibido, o mundo revelado,
Mãe, que bom é teu dia a dealbar! por tua insânia em absurdo transformado,
Já vejo o olhar de Deus a clarear. empacotado, faz­‑se em mercadoria,
(Morre.) com que o diabo no Inferno comercia!
Pela ira de Deus, não pela Sua graça,
A correspondente de guerra: teu mando fá­‑la em nuvens de enxofre e fumaça.
(Entra em cena.) Couraça do Senhor! Só O havemos de louvar
Aqui está ele, foi bom eu procurar, quando enfim para a sucata te lançar!
o soldado comum venho encontrar! Vem ver como é uma estrela nascer
com o canhão este tempo a reger!
Um ferido: Faz teus diplomatas, mais o teu chanceler,
(Avança tacteante a rastejar.) este mar de sangue e choro percorrer!
Maldito imperador! Sinto a tua mão, Maldito imperador, mais os frutos do teu lar,
que é veneno e noite e é nação! nesta maré de sangue deita­‑os a afogar!
Tresanda a peste e a podridão engorda. Morro, de mãe alemã que fui gerado,
Teu olhar é a forca e tua barba a corda! mas junto a Deus te acusará meu brado.
É mentira teu riso, ódio tua altivez, (Morre.)
tua ira é o excesso da tua pequenez,
856 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 857
(Entra em cena um hussardo com a insígnia da caveira, Não é fácil a vida lá na França;
acompanhado pelo seu séquito.) estou a ver que nunca mais se alcança!
O hussardo com a insígnia da caveira: Enquanto se conserva a juventude,
Rataplã, pam, pam, rataplã, pum, pum! quer­‑se uma bem enérgica atitude.
Este ar daqui, não há melhor perfume. Mas antes de o desaire ser completo,
Somos os hussardos da caveira, venha daí o meu bardo dilecto.
fazemos tudo à boa maneira. Às doze, ataque, às cinco, vá, prà mesa,
Da nossa gente o garbo não tem falha, só as rimas de Presber têm beleza.
mando investir contra a canalha. É gaia a arte, triste é fazer jejum.
Se nos acham com ar de peralvilhos, Rataplã, pam, pam, rataplã, pum, pum!
o inimigo vai ver­‑se em sarilhos. (O grupo desaparece.)
É que nunca foi muito sensato
querer de um hussardo fazer gato­‑sapato! (Ouve­‑se uma marcha. Entra em cena Nowotny von
Saltem já prà frente esses rapazes, Eichensieg.)
mostrem bem do que é que são capazes Nowotny von Eichensieg:
e pois que só ganha quem arrisca, Dos departamentos,
mostrem quem é que aqui faz faísca. divisões, regimentos,
Desde o Marne que ando a avisar mandam­‑me escumalha aos centos e centos.
que a atenção é perigoso relaxar.
E agora é esperar frente a Verdun. Lá da retaguarda
Rataplã, pam, pam, rataplã, pum, pum! chega gente em barda,
já lhes ensino o que é uma farda.
Rataplã, pam, pam, rataplã, pum, pum!
Não me tratem como a qualquer um. Ao homem qualquer
Meu pai é uma tímida pantera; faço o que quiser.
nisso eu sou uma autêntica fera. É comigo e com Deus, quero lá saber.
Sou um jovem jaguar prò inimigo
quando vejo que a pátria ’stá em perigo. Põe­‑se na encolha
Trago a barba aparada à inglesa; e eu faço­‑lhe a folha,
de morteiros houve pouca despesa. espicha ou vai preso, não lhe deixo escolha.
858 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 859
E quem é traidor pelo vento nos foram devolvidos.
ou até desertor Com os esforços a ficar sempre baldados
marcha de volta para a frente, andor! tem a ciência que lançar os dados.
Como os apertos o ferro nos quebraram
E se por estar ferido que por ouro noutro tempo nos trocaram,
não se põe em sentido, prò ferro­‑velho foi mister o lançarmos
condeno­‑o a morrer em combate, bandido. pra com nosso engenho a pé firme aguentarmos.
Campeões do espírito, temos a espada na mão,
Aqui mando eu, quando o lança­‑chamas é há muito a opção,
tanto se me deu, decididos a lutar com vapores ardentes
aquele ainda está vivo, e já morreu. e minas, e a morrer com a faca nos dentes.
Pra adornar nossos actos nós gostamos de usar
Aqui está tudo são, palavras dum tempo em que neles nem pensar,
diz o doutor capitão, e ainda hoje em torneios andamos,
humano é só quem passou na inspecção. em que êxitos cloriosos há muito alcançámos.
Usando da química os ardis matreiros,
Pois, não há engano, os alemães lutam como cavaleiros.
o número é soberano, Num tempo romântico é ver se se alcança
o que pra aí há mais é material humano. na luta quebrar uma última lança.
(Sai de cena.) Entre os portentos da germânica lenda
damos destaque à mais tremenda,
(Entra em cena o doutor Abendrot, engenheiro de Berlim.) e pra refutar dos Hunos a história
Eng. Abendrot: fomos ao fundo da nossa memória.
Para enfim alcançar a vitória final Quem conta fui eu, fui eu que inventei,
e finalmente terminar triunfal, é destinado a crianças sem lei,
uma firme estratégica potência que inda acreditam que somos selvagens,
esgota as reservas todas da ciência. nós, os senhores das altas voltagens.
De que nos valeu a arte dos bombardeiros? O prático conto, poético instrumento,
Gases, fá­‑los o inimigo mais certeiros. o meu nome levou como ornamento:
Muita vez da nossa linha expedidos, sou, de Berlim, o doutor Abendrot,
860 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 861
da morte precoce o brilhante archote. pra pela última vez tentarmos nossa sorte.
Era uma vez, vou assim começar, E zás, o inimigo mal se precatou
para os meus ouvintes logo conquistar, e a coisa a oeste o bom rumo tomou,
era uma vez uma peste pneumónica e frente às nossas linhas há mortos ao montão
tão violenta que nem cabe na crónica. pra que o lugar ao sol caia na nossa mão.
Mas a ciência há muito a dominou, Do entardecer já se avista o fanal.
foi precisa, e já não se encontrou. Sou o maior canhão desta guerra mundial!
A ciência assim outra vez a vai buscar, Tirpitz e Zeppel junto a mim são ninguém.
os desejos da estratégia ao escutar. Com a ajuda de Deus, a nova peste aí vem!
Ela já criou todos esses produtos (Carrega num botão. Três brigadas caem por terra sem que
sucedâneos da vida, café, solutos. se ouça qualquer ruído.)
Então vá de trocar, é fácil, o matar As crianças não gostam desta história,
c’o remédio do doutor Crepuscular. assim se afirma do Senhor a vera glória!
Os nossos gases, os mais refinados, Lá junto ao Reno a guarda é leal,
nunca deram grandes resultados. a peste dos Nibelungos é bem mais letal.
Mas agora a razia é exemplar A necessidade enfim se fez virtude.
c’o sucedâneo da peste pulmonar! Siegfried Abendrot ninguém desilude.
Prò mundo em ossário transformar (Desaparece.)
era mister com fragor atacar.
Agora esperamos reforçar a posição (Escurece. Entram em cena hienas com rostos humanos. Como
que o inimigo assim morre do pé prà mão. porta­‑vozes, as hienas Fressack e Naschkatz. Acocoram­‑se
De futuro vai ser só carregar no botão em frente dos cadáveres e falam­‑lhes ao ouvido, da direita e da
e inimigos mil ficam sem pulmão. esquerda.)
Só temos sandálias, não há nem um sapato, Fressack:
mas a morte virá com todo o recato. Se precisa de algo, se de algo precisar,
Chamaram­‑me a testar o poder da minha arte, estamos aqui, nosso rosto é um esgar.
pois seja a obra do mestre o estandarte! Mas não se arreceie de barbas e melenas:
Querem os derrotistas o triunfo roubar, nós não somos gente, somos só hienas!
agora vão ver um milagre actuar! Viemos aqui pra que vosso sacrifício
Nova direcção nos vai dar ora a morte no campo da honra não dê em desperdício.
862 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 863
Se não precisa de nada, olhe, nós, pumba, Mas a paga é real pra um herói verdadeiro!
não vai levar jóias e a bolsa prà tumba! Vós nadais em sangue e nós só em dinheiro.

Naschkatz: Fressack:
Estais contentes por estar tudo acabado. Vosso nome irá nos anais perdurar!
Vós perderdes foi lucro prò nosso lado. A morte é de graça mas tem de se pagar.
A nosso conselho lançastes­‑vos na acção, Não fomos nós quem a guerra começou.
Destes sangue, pra engrossar nosso quinhão. Quisemo­‑la e fostes vós quem logo avançou!
Para nós ganharmos, devíeis vós ousar, Os nossos feitos ninguém vai cantar,
agora falta nosso óbolo entregar. mas vós louvores ouvis até fartar!
Se estais vencidos, nós somos vencedores. De vós os netos hão­‑de sempre lembrar­‑se.
Está o sangue em baixa na bolsa de valores. Que os nossos não tenham que de nós queixar­‑se.

Fressack: Naschkatz:
Podeis nesse ponto em nós confiar: Meus filhos por pouco tinham que ir prà frente.
a farda, não tarda, não tereis já de usar. Mas ficaram livres, afortunadamente.
Com bombas e minas é continuar, Um gosta de tudo fazer a preceito,
porque assim fazeis­‑nos dinheiro ganhar. sem ele o negócio não anda direito.
Dá gosto assim pr’àqui vadiar, O outro é orgulhoso, por isso intercedi
não tendes de frio ou fome passar! e que não fosse apurado consegui.
Sabemos bem – os dados são reais – Este ano o mais novo vou livrar também.
que o óleo e o carvão custam três vezes mais! Quem não foi já jovem… não há maior bem!

Naschkatz: Fressack:
Cá entre nós, devíeis estar gratos: O meu sem precisar de cunha se safou,
jazerdes aqui fez subir os contratos. o outro é dotado e as vitórias cantou.
O capital todos puderam aumentar, A pátria a chamá­‑lo e ele, impulsivo,
c’o banco de sangue toca a fusionar. faz um poema e vai para o Arquivo.
É uma sorte jazerdes tranquilos nas valas Mas não quer lá ficar – antes queria
se notas de mil voam junto co’as balas. ir prò teatro, era a sua alegria.
864 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 865
É preciso que escreva o que ocorre na frente. A cada um o seu. Prò herói, a sepultura,
O mais novo, esse é pra tudo incompetente. somos hienas. Pra nós, é ganhar com fartura.

Naschkatz: Coro das hienas:


Este lance louvai nos mais sublimes termos, Pois seja! Pois seja!
p’lo algodão morrestes, nós p’lo ferro vivemos. Caluda! Caluda!
E nós temos ontem, hoje e amanhã Foi dura a peleja
por sabão, couro e óleo que andar num afã. e co’a vossa ajuda
Faz­‑se uma oferta franca e tem de se sofrer e o vosso afã
a vergonha de uma dúzia de vagões não vender! sobe o preço amanhã.
Agora inda vá lá, mas se vier a paz, Sabe Deus Senhor.
só se uma fábrica de armas vier atrás. Três vagões de arroz
estão ao dispor
Fressack: e três de milho após.
Deus nos livre de tal, de paz ouvir falar, De pé, sem rumor!
às privações da guerra já tivemos de nos adaptar. Para nós sobeja.
Fornecemos, servimos, damos bom nome à praça – Pois seja! Pois seja!
estávamos bem servidos, isso era uma desgraça.
Qual fábrica de armas, pra mim chega a Skoda (Tango das hienas em redor dos cadáveres. O muro de chamas
cujo efeito tão bem descreve o Roda Roda. ao fundo desapareceu entretanto. Um brilho amarelo de enxo‑
Se já estais fartos, que vos enterrem nus, fre cobre o horizonte. Entra em cena a silhueta descomunal do
minha mulher quer roupa nova nos baús. Senhor das Hienas. Neste momento, as hienas ficam imóveis,
formando grupos.)
Naschkatz: O Senhor das Hienas:1
Podeis acreditar, a vida é como fel, (Barba negra, encanecida, crespa, muito curta, que rodeia a
por nós, mortos, devíeis trazer luto fiel. cara como uma pele e parece confundir­‑se com uma cabeleira
Se vem a descobrir­‑se que tudo foi em vão, idêntica; nariz curvo e enérgico; grandes olhos em arco com
o risco da paz… dou­‑lhe toda a razão! uma grande superfície branca e pupilas pequenas e penetrantes.
Fico com pouco, pois prò filho vou comprar A figura curvada faz lembrar um tapir. Fato de jaqueta e colete
uma quinta, e barão o amigo vai ficar. de piqué. O pé direito em posição de avançar. A mão esquerda, de
866 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 867
punho cerrado, repousa no bolso das calças, a direita aponta, de Já pouco conta o amor!
indicador espetado, em que reluz um brilhante, para as hienas.) Foi incapaz de se opor
Sentido! Pose aprumada! ao que ora temos certo.
Eu compareço à parada Ouvi, vós que tendes fé,
e o que vejo me apraz. da salvação a maré,
A batalha foi vencida! o Anticristo está perto!
E o tempo ganha vida,
é hora de ser audaz! A invicta vingança
forjou a santa aliança,
Vós não tendes de, sem norte, fui eu o seu campeão!
o saque pedir à morte. Entraram feros em cena
Ai de quem ora se esconda! graças à minha boa pena.
Não, tratai, por vossa fé, Só o poder tem razão!
de corrê­‑la a pontapé!
Pois que é a nossa vez na ronda! Todos os lances guerreiros,
com mil vezes trinta dinheiros,
Quem um dia trouxe a luz, fomos nós quem os venceu.
morrendo na sua cruz, Assim o ciclo se encerra
é riscado do registo. de coisas velhas na terra.
Venho eu em seu lugar, A Cruz a guerra perdeu!
c’o Inferno a alumiar!
Pois eu sou o Anticristo! E nós que O na cruz pregámos
da sombra ora avançamos,
Estão gratas as multidões qual Judas, o delator!
que enfim entre dois ladrões É um outro pai que me envia!
esteja tudo consumado. Do seu teatro de agonia,
O pouco sangue que ofereceu vai­‑se o Filho do Senhor.
no imenso mar se perdeu
do poder que não foi usado. Cede ao mal que se diz bom.
Quis geral libertação,
868 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 869
está o mundo dele liberto. e o pescoço pisar
Para este, sem pesar, da inteira majestade!
c’o que salvou se alegrar
e lhe dar o céu por certo. Das mentes sou o algoz,
por isso erguei vossa voz
Tinha o ódio que indignar­‑se. pra vosso mestre saudar.
Pois para nunca findar­‑se Pós feitos tão triunfais
não era feito o amor. são os anúncios nos jornais
Estando o mundo devastado, que o poder novo vão fundar.
ri­‑se o demo extasiado
c’o novo eterno valor! Estai vós prontos, irmãos,
sem vos tremerem as mãos,
Ande o mundo de muletas, para a vida esquadrinhar.
prò progresso não há tretas, Do futuro vede as marcas,
o que importa é governar­‑se. encham os mortos vossas arcas,
Triunfa o que Deus odeia, que é o que o tempo está a dar!
também o demo coxeia
e não parece importar­‑se. Não deixeis nada olvidado
pra ser por outros roubado,
Co’a perna a arrastar, é trabalhar sem descanso!
à Bolsa vai negociar E registai nos anais
e o preço faz pôr em alta. os números colossais,
O lugar não é sagrado, fazei do sangue o balanço!
nem está o demo apressado
e não acha o mundo em falta. O velho pacto morreu!
Não me chame Moritz eu,
Sou seu fiel servidor, está a sorte do nosso lado.
do verbo sou redactor, Porque aquele outro pastor
que era na final idade. cometeu um grande error!
Posso as almas agarrar Benedikt sou chamado!
870 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 871
Não sou, por sorte, parente, E se essa sorte lhe calhou
o outro mundo não pressente o próximo haveis de odiar,
que eu sou um outro Papa. como Judas atraiçoar…
Ladrões são meus seguidores O Anticristo chegou!
que na guerra, agiotas­‑mores,
se encheram à socapa. (Valsa das hienas em redor dos cadáveres.)
As hienas:
Cobardes e descarados Pois seja! Pois seja!
ante meu trono ’stão curvados, Animosas vamos.
pois só o dinheiro é fecundo. O orgulho sobeja.
Nunca se perca o encanto O sangue bebamos.
deste meu reino, portanto!
Porque ele é deste mundo! Animosas vamos.
O sangue está quente.
Se não pisassem os mortos, O sangue cobramos.
os ricos, gordos e tortos O preço é crescente!
não eram abençoados.
Mesmo c’o mundo em agonia, Vertido, esquecido,
graças à negra magia gozado, comido,
estamos todos congraçados. é grande o alarido,
o preço é crescente!
Com uma secreta finta
um pacto fundou a tinta, Pois seja! Pois seja!
mais a técnica e a morte. Animosas corremos.
Dai graças às impressoras, Foi rija a peleja.
da tinta e sangue senhoras. O sangue esprememos!
Preto em vermelho suporte!
Coragem, porfiamos.
Co’a tinta de impressão O fim é o começo.
feri o inimigo no coração! O sangue cobramos.
872 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 873
Que não baixe o preço. O terceiro colaborador ocasional:
Recupera a vida dos feitos guerreiros.
Vertido, esquecido, Há capitães de indústria e banqueiros.
gozado, comido,
é grande o alarido, O primeiro:
o preço é crescente! Não tenho já que sozinho andar.
Eles fizeram­‑se entre outros já notar.
Marchamos, folgamos
e o sangue bebemos. O segundo:
Que bem o esprememos! Julgo não estar longe o alvo que almejo.
Na verdade, eu já tive o ensejo.
Marchamos, folgamos,
bebemo­‑lo quente. O terceiro:
O preço é crescente! Já chega de só ver tropas a marchar.
Outros grupos estão­‑se de novo a formar.
Boa noite, boa noite,
o orgulho sobeja. O primeiro:
Oó! Faz oó! Vai haver, parece­‑me, coisas nunca vistas.
Pois seja! Pois seja! Pressinto a manhã e o baile dos jornalistas!
(As hienas deitam­‑se para dormir junto dos cadáveres.)
O segundo:
(Entram em cena três colaboradores ocasionais.) Nenhum dos anteriores de certeza foi melhor.
O primeiro colaborador ocasional: O vestido da senhora Fanto faz furor.
O escuro cede aos raios da alvorada.
A valsa sobre o tango vitória tem ganhada. O terceiro:
O palco mantém seu poder de atracção.
O segundo colaborador ocasional: Vejo lá em cima já uma multidão.
Há enfim alegria, a tristeza era dantes!
Do orbe dos negócios são os representantes. O primeiro:
Queira Deus que o palco tanto peso aguente!
874 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 875
Agora vejo já a conversar toda a gente. O terceiro:
Nesta noite histórica de Carnaval,
O segundo: sabe­‑se porque se penou tanto afinal.
Aí estão os que sempre querem estar presentes.
O resto que acontece não é pròs nossos dentes. O primeiro:
Gostava de saber o que o inimigo traz no peito.
O terceiro: É que o humor reivindica agora o seu direito.
O Salvator tem um andar ginasticado.
Três conselheiros surgem lado a lado. O segundo:
Eia, está cá tudo, os de baixo e os de cima.
O primeiro: A hora de bailar pròs jovens se aproxima.
Entram dois cônsules, não vão eles ficar
fora da lista, que já está a abarrotar. O terceiro:
Receio que esta festa esteja a terminar.
O segundo: Está a ver, anda o diabo co’a peste a dançar!
A lista das baixas nem vale a pena ler. (Fogem.)
Quem tem nome sonante não deixou de aparecer.
(Agora todo o horizonte está coberto por rolos de fumo. Uma Lua
O terceiro: manchada de escarlate surge de trás das nuvens, que pendem em
Velha é a história e é velho o refrão, farrapos negro­‑amarelados e coloridos. No campo de batalha, há
os que cá estão para estar cá já cá estão! uma confusão caótica de todos os corpos de exército. Entram em
cena três automóveis blindados. Homens e animais numa fuga
O primeiro: desenfreada. Vozes em pandemónio.)
Pululam estrelas e outras sumidades, Primeira voz:
não tarda teremos mais novidades! Tenho os ossos a tremer, estou em tal estado,
pelo nosso fogo foi o ataque rechaçado.
O segundo:
Do quartel­‑general só o Höfer pôde vir. Segunda:
Estão graves os rostos, não há razão pra rir. Receio que isto tudo inda vá acabar mal!
Tomámos a posição com um golpe genial.
876 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 877
Terceira: São os de Vurtemberga, gente de valor.
Que aguente isto o diabo, se arranjar maneira!
O inimigo lançámos pra fora da trincheira. Terceira:
Os que desprezo pela morte têm mostrado
Quarta: são da Turíngia, Frísia e Palatinado.
O Senhor nos deu uma rica prenda!
Dois dos nossos morreram na contenda. Quarta:
O final vai­‑vos mostrar claramente
Primeira: o valor dos Honveds c’o seu sangue quente.
Receio tenha sido mortífera a refrega!
Temos prisioneiros para entrega. Primeira:
Pra que não percam o desejo de atacar,
Segunda: os bravos búlgaros vamos acicatar.
Receio que o inimigo nos ameace p’los lados!
Um bebé e dois civis foram já liquidados. Segunda:
Aqueles além, tão pouco motivados,
Terceira: é a turcalhada, nossos aliados.
Hoje acertámos várias vezes em cheio!
Estavam cinco crianças a brincar no recreio. Terceira:
Agora é que o chicote vai pôr­‑se a trabalhar!
Quarta: São os alemães! Estão os alemães a chegar!
Cavalaria ou infantaria, isto hoje correu mal!
Mas o dano militar não é grande afinal. Quarta:
Chove a potes, já surgem lamaçais.
Primeira: São os austríacos, sempre joviais.
Aqueles além em romagem tão fera
são decerto os valentes da Baviera. Esta:
Estou aqui, está­‑me a dar um baque!
Segunda: É o tão esperado contra­‑ataque!
Isto está a ficar cada vez pior!
878 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 879
Aquela: Claro que ele só as nossas cores defende!
Os que outra língua usam c’o inimigo são uns safados!
Vós estais lixados, nós estamos tramados! Ambas:
E ele segue­‑nos com afecto e assombro.
Várias: É belo combater ombro com ombro.
Mas que se passa aqui, a aliança não é clara?
É o inimigo que sobre o amigo dispara? Uma:
No final vencerá a nossa bandeira…
Outras:
Mas de que nos serve esta confraria? Outra:
Eles disparam com a nossa artilharia! Graças aos canhões Krupp de primeira.
Confiamos na nossa força toda…
Todas:
Esta foi a pior crise, indubitavelmente! Uma:
Repelimos o ataque facilmente. Graças a Deus e às fábricas Skoda.

Uma: Ambas:
Estamos safos! O firmamento belo Mas ambos tememos ter de fazer serão,
muda de cor, agora é negro e amarelo!2 pois temos os morteiros da nova geração!
(Raios.)
Outra:
É de morrer a rir, ele há cada dislate, Todas as vozes:
o céu, não vês, é negro­‑branco­‑escarlate.3 (Em pandemónio.)
Pois, eles são briosos!
Uma: Com chamas eu replico!
Parvoíce, olha aqui, não estás bem a vê­‑lo, Além são invejosos,
sobre vós é negro, sobre nós é amarelo. faz­‑se tudo num fanico!
(Serpentes de fogo no céu, luzes vermelhas e verdes.)
Outra: Mas o que é isto? Ai, a minha vida!
Porque é que aqui morremos, só o céu entende.
880 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 881
Vozes do alto: Tereis sorte se houver sobreviventes!
A tão esperada contra­‑investida!
Vozes de baixo:
Vozes de baixo: Entre nós é como se de canhões disparados,
Somos os vencedores! Somos os vencedores! vêm aí em automóveis blindados!
Coragem, são os nossos aviadores!
Vozes do alto:
Vozes do alto: A vossa gratidão devem eles merecer!
Pois, aviadores, mas com outra missão, Coisas assim não são engenhos bizarros!
reduzir a pó a vossa posição!
Vozes de baixo:
Voz de baixo: Nossos tanques é que são dignos de se ver,
É um passatempo de maravilhar, os apocalípticos autocarros!
o filho inda por nascer matar!
(Estrelas, cruzes e espadas em fogo no céu.) (Entram em cena dois ordenanças.)
Primeiro ordenança:
Olhai, que fulgor, Hossana, hossana, hossana nas trincheiras:
com belos sinais foi bombardeado o Jardim das Oliveiras.
dá a noite louvor
a crimes brutais. Segundo ordenança:
(Esferas luminosas, girândolas de fogo.) O ouvido crédulo não deve duvidar:
o Jardim há muito era um posto militar!
E pra que os vassalos
tirem benefício Primeiro:
há pendões, badalos Cantai louvores ao homem que é valente
e fogo­‑de­‑artifício. e erguei as vozes para o sábio exaltar:
(Surgem três cometas.) o que grande feito conseguiu finalmente
e o que o soube a tempo preparar.
Vozes do alto:
Três cavaleiros de fogo em cavalos ardentes!
882 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 883
Segundo: o conselho de guerra já o tem decidido.
Repousem sobre louros, e nunca sobre espinhos, O inimigo nos ares fizemos em pedaços,
os que no enfim alcançado se comprazem. por isso lá do alto o sangue vem vertido.
Pois que mesmo que por ínvios caminhos, A unidade das frentes está garantida…
ah, eles muito bem sabiam o que fazem.
Vozes de cima:
Ambos: …pois se juntas desabam, era uma frente unida!
Se em vez do canhão foi atingida a cruz,
mesmo tendo falhado, era boa a intenção. Vozes de baixo:
Não vamos ser picuinhas, pois há que fazer jus: Se houver bom tempo, nunca estivemos melhor,
o dano militar não é digno de menção. foi o que garantiu o Estado­‑Maior.
(Surge uma grande cruz ensanguentada.)
Vozes de cima:
Vozes de cima: Mas o tempo não quer colaborar!
Agora recuai, exige­‑o a visão! O céu está negro e as fileiras a clarear!
Ante a cruz vermelha mostrai devoção! (Começa uma chuva de cinzas.)

Vozes de baixo: Pedras atirar? Técnica antiquada!


Nós somos os melhores, não tenhais ilusões, As novas granadas dão­‑nos mais vantagem.
não vamos em améns nem em quaisquer visões! As pedras resvalam na pele couraçada
Enquanto o imperador tudo fizer com tino, por tantos anos de fogo de barragem!
poupe­‑nos o astrónomo com o papão do destino.
(Começa a chover sangue.) Vozes de cima:
Não foi grande ainda nossa progressão,
Vozes de cima: mas com tempo os usos serão aprendidos.
Recuai, se puderdes, ficai alerta todos! É que cá em cima, em nossa mansão,
Aí está tudo seco. Do alto corre sangue a rodos! há estrelas vagantes, mas sob nós, bandidos.

Vozes de baixo: Vozes de baixo:


O nosso novo truque, nada de embaraços, Dê­‑se por feliz o astro que sobre Berlim brilhar.
884 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 885
Vossa ofensiva é a típica sorte do começar. resolveu Marte as relações cortar.
(Começa uma chuva de chispas.) Tudo maduramente ponderámos
e na defensiva nos lançámos.
Uma voz de baixo: E estamos decididos a o vosso planeta,
Não consigo ajuizar com todas suas frentes, mandar para o maneta
esta aparição. e com todos os vermes que com afoiteza
Terei de formar das esferas quiseram fazer presa,
a minha opinião. e qualquer que fosse a sua intenção
violentaram o rosto da criação,
Segunda voz de baixo: maltrataram animais e a gente escravizaram,
Mas que é este vibrar? respeitando o vil, o digno castigaram,
Que brilho é este então? os maus cevaram, os bons assassinaram,
Andamos a errar a própria honra fundo desprezaram,
todos na escuridão. a si mesmos como capa de seus bens usaram,
(Escuridão total.) a língua com seu linguajar conspurcaram,
a alma e os sentidos, palavras e pensar,
Os operadores de câmara: para a exportação souberam preparar
Não pode ser, que é isto, esta luz não dá! e a morte e o diabo e o mundo e o Senhor
Assim o filme não vai ficar no mapa, e a arte do comerciante tornaram em penhor,
entre o sketch Willi Vem para o Chá os fins da vida aos meios subordinaram,
e o policial A Mim Ninguém Escapa! a mercadoria com seu corpo enfeitaram.
Não pode ser, tudo estava tratado, De suas necessidades simples escravos,
queremos um êxito, não podemos falhar! com a própria vida ganhando seus centavos,
O filme do Isonzo é duro de igualar, a si próprios pelo produto se vendendo
mas o Juízo Final sem luz fica estragado! e pela matéria­‑prima com o outro contendendo,
jamais seu trato com o ódio terminando,
Uma voz de cima: com dinheiro e veneno seus olhos deslumbrando,
Ante vossa selvajaria ancestral em sua insignificância cega e execranda,
resistimos té à vitória final. da luz eterna indignos se mostrando
Mas sabei que farto de esperar e sob os raios de sóis e de estrelas
886 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 887
travaram guerras, ganhando a infâmia delas, aventureiros neste vale dos ais,
no crime unidos, do Sul até ao Norte de cultura blindados, hábeis e alumiados,
só usaram o engenho para a corpos dar a morte superarmados e subalimentados,
e juntos infectaram de leste a oeste poderosos de sua máquina à mercê,
o ar co’a vingança e o fumo da peste, soberbos e canalhas sem porquê,
que só rezavam para melhor matar súbditos que se julgam senhores,
e, não de vergonha, só de sangue corar, de linhas de Bagdade devotos construtores,
o seu Deus ofenderam e da sua natureza impostores das alturas e burlões das profundas,
o último traço pisaram com rudeza, hienas, da vida e da morte fecundas,
ludibriado, o azul ao céu roubaram, aviadores que estão presos à terra,
co’as cores nacionais a paisagem enganaram, escravos do que agora está na berra,
comeram ferro mas, mais frequentemente, na técnica e no mal experimentados,
se contentaram com mentir triunfalmente, bárbaros com luz eléctrica iluminados,
do próximo a miséria exigiram e ao vizinho que antes de a morte vir a ideia foram ter
afogando levaram a água ao moinho, de com o máximo conforto a guarnecer,
a comida roubaram à fome alheia pra ela entre aqueles viver aconchegada
sem com isso ficar de barriga cheia, pra quem a meta era a guerra, e a origem, nada.
sobre a cabeça do outro carvões ardentes Disposto a uma paz com negociações,
puseram, pra poderem ficar quentes, o universo tomou estas disposições:
e esta sensação com impostos taxar nós, de Marte, não somos imperialistas,
e a consciência ao mercado levar, mas se atacamos, somos perfeccionistas.
saqueando, extorquindo, c’os dentes todos mentindo Para bem do universo e de quem ama a paz,
e só da insânia própria se nutrindo, adoptar vossos métodos nos apraz.
inválidos a tocar vitórias no realejo, Tanto pra investigar como matar
agentes com sífilis e tísicos sem pejo, a vossa ciência tínhamos que aplicar.
comerciantes, heróis, de gente caçadores, Visto de longe vosso astro era banal:
bombistas e homens de bacilos portadores, foi à lupa que estudámos o anão marcial!
saqueadores do tesouro da fantasia, Queremos só fazer o tempo um pouco clarear,
levam à bancarrota sua própria economia, mas nunca as fronteiras à vossa custa alargar.
assaltam de emboscada os ideais, O exame foi severo. Ouvi o resultado:
888 Os Últimos Dias da Humanidade EPÍLOGO 889
algo especial foi pra vós deliberado. Voz de baixo:
Não nos passa pela ideia vosso orbe anexar, Fá­‑los em picado!
não queremos nosso brilho deslustrar. Não há perdão!
Pra que o cosmos em paz possa viver, Ressoa um brado…
nossas fronteiras só queremos proteger. (Trovão universal.)
Renunciando às vossas possessões,
vamos de outro modo tratar estas questões. Voz de baixo:
Da guerra os custos tendes de pagar, Que é isto afinal?
pois que o devedor dos anais vamos riscar, Não estou sereno!
pra que as esferas por toda a eternidade Está firme e leal…
tenham segura sua tranquilidade, (Fim do mundo.)
que no éter fechado não penetre a mão
dos pensadores e assassinos sem perdão, Voz de baixo:
e que fragor de batalhas ou trato comercial ’Stá tudo em ferida!
não perturbe o rumor da paz universal. Quem nos fuzila?
Tempo de mais o cosmos encheu vosso falar. Pátria querida…4
A eternidade já está a despontar. (Silêncio.)
Muito esperastes e esperámos nós,
nós pacientes, com ganância vós. Voz do alto:
E pra que em vossa terra ainda esperançada O ataque resultou. Foi noite de furor.
enfim a vitória final seja alcançada, Eis destruída a imagem do Senhor!
e pra que ninguém exprima discordância (Grande silêncio.)
a cobrimos de bombas em abundância!
(Começa uma chuva de meteoros.) A voz de Deus:
Eu não quis isto.5
Voz de baixo:
Em frente, a fundo!
Nada tememos!
Mesmo que o mundo…
(Mar de chamas.)
NOTAS

Prefácio
1 Citação invertida do drama de Friedrich Schiller A Conjura de Fiesco,
Acto II, cena 17: “Eu fiz o que tu… só pintaste.”
2 A casa Sirk, especializada em artigos de marroquinaria, situava­‑se na
esquina da Ringstraße e da Kärtnerstraße, do lado oposto ao edifício da
Ópera, em pleno centro de Viena. Era ponto de reunião e de passagem
do mundo elegante vienense.
3 Shakespeare, Hamlet, Acto V, cena 2, vv. 377­‑384.

PRÓLOGO
1 O arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono do Império, foi
assassinado em Sarajevo em 28 de Junho de 1914.
2 Estabelecimento de diversões em Viena, transformado em hospital no
início da guerra.
3 Casino em Hietzing, perto do palácio imperial de Schönbrunn.
4 Neue Freie Presse, diário vienense liberal de grande influência dirigido
por Moritz Benedikt.
5 Sangue de Hussardo: opereta de Hugo Felix, estreada em 1894; Manobras de
Outono: opereta de Emmerich Kálmán, estreada em Budapeste, em 1908.
6 Opereta de Edmund Eysler, estreada em 1913.
7 Neues Wiener Tagblatt, influente jornal diário vienense, fundado em
1867.
8 Alusão a Veneza em Viena, parque de diversões estabelecido em 1895
no Prater, a grande área pública de lazer vienense.
9 Melpomene: musa trágica; Glaukopis: epíteto da deusa Atena. No
contexto, nomes de cavalos de corrida.
10 Referência a Moritz Benedikt, director da Neue Freie Presse, cujos
editoriais, com grande peso político, eram seguidos avidamente por
sectores da sociedade vienense.
11 Excerto da canção popular austríaca “O Príncipe Eugénio”, que celebra
a conquista de Belgrado aos turcos em 1717 pelas tropas sob o comando
de Eugénio de Sabóia.
894 Os Últimos Dias da Humanidade notas 895

12 Referência aos funerais do príncipe Rudolf, filho único de Franz Joseph 4 A sequência cita um poema de Julius Bab, um dos muitos textos
e da imperatriz Elisabeth, que se suicidou em 1889. ferozmente belicistas produzidos nas semanas de euforia guerreira
13 Jornal diário vienense, órgão do Partido Cristão­‑Social. subsequentes ao eclodir do conflito mundial.
14 Kleines Witzblatt, Pschütt, semanários humorísticos vienenses. 5 Marcha patriótica austríaca. O príncipe Eugénio de Sabóia (1663­‑1736),
15 Das Interessante Blatt, semanário ilustrado vienense. chefe militar ao serviço dos Habsburgos, teve um papel fundamental
16 Die Bombe (A Bomba), semanário humorístico vienense. na consolidação da derrota turca nos finais do século XVII e na
17 Referência ao príncipe Alfred von Montenuovo, chefe supremo de consequente expansão do Império para leste.
protocolo do imperador. 6 Canção patriótica alemã antifrancesa, com texto de Max Schneckenburger
18 Localidade da Baixa Áustria onde se situa o castelo de Hohenberg, (1840) e música de Karl Wilhelm (1854), particularmente popularizada
em cuja capela foram sepultados Franz Ferdinand e a esposa. no contexto da Guerra Franco­‑Prussiana de 1870­‑71.
19 Cripta da Igreja dos Capuchinhos, no centro de Viena, onde se 7 Ballhausplatz, local da sede do governo e dos principais ministérios do
encontram as sepulturas dos Habsburgos. Império, no centro de Viena.
20 Sophie, condessa de Hohenberg, esposa do arquiduque Franz Ferdinand. 8 “Deus mantenha, Deus proteja.” Verso inicial do Hino do Imperador
21 Arrabalde de Viena, hoje parte do 23.º Distrito. (Kaiserlied), hino nacional do Império, cantado sobre uma melodia
22 Restaurante e estabelecimento de diversão muito popular do 18.º de Franz Joseph Haydn.
Distrito vienense. 9 “Palidez do pensamento.” Citação de Hamlet, de Shakespeare
23 Referência ao príncipe Karl Ernst Broon von Weikersheim. (Acto III, cena 1, v. 85).
24 Palácio a sul de Praga, residência do arquiduque Franz Ferdinand. 10 O 2.º Distrito de Viena, zona de habitação predominantemente
25 Conrad von Hötzendorf. popular. Aqui se situava também o antigo gueto judaico.
26 A nada escapo afinal. Frase célebre do imperador Franz Joseph, 11 Versos de um poema belicista de Felix Dörmann.
repetidamente aludida ao longo do drama (cf., em particular, a cena 31 12 “Banho de aço.” Citação de um discurso do marechal Hindenburg.
do Acto IV). 13 Últimos versos da estrofe acrescentada pouco antes da Primeira Guerra
27 Palácio de Belvedere em Viena, residência do arquiduque Franz Ferdinand. Mundial ao poema “O Bom Camarada”, de Ludwig Uhland.
14 Lemberg (Lviv/Lvov), cidade actualmente pertencente à Ucrânia, era
a capital da Galícia oriental, na posse da Áustria desde a primeira
ACTO I partilha da Polónia, em 1772. A formulação, de um comunicado do
1 Alusão à política de Burgfrieden, isto é, de união nacional baseada no Estado­‑Maior, trai involuntariamente a situação difícil das tropas
estabelecimento de tréguas parlamentares para além das diferenças austro­‑húngaras ante o avanço russo, contrastante com o arreganho
partidárias, proclamada por Wilhelm II como base essencial do esforço autoconfiante da euforia belicista prevalecente.
de guerra. 15 Dei Ouro a Troco de Ferro. Opereta de Imre Kálmán (libreto de Viktor
2 A posse do automóvel seria garantia de um serviço militar mais leve, Léon), estreada em Viena a 16 de Outubro de 1914. A oferta de jóias de
já que o proprietário seria integrado, juntamente com o veículo, num ouro recebendo em troca uma jóia de ferro foi uma acção, fortemente
batalhão automóvel. propagandeada, lançada na Áustria­‑Hungria e na Alemanha como
3 A primeira das muitas alusões no drama a uma das fórmulas mais modo de contributo para o esforço de guerra.
recorrentes da fraseologia propagandística na Alemanha e na Áustria­ 16 Opereta de Imre Kálmán (libreto de Leo Stein), estreada em Viena, em 1915.
‑Hungria, apostada em sublinhar a solidez da aliança entre os Impérios 17 Alusão à opereta O Bom Camarada, de Imre Kálmán, estreada
Centrais. em Viena, em 1911. “Tive um dia um camarada” é o verso inicial
896 Os Últimos Dias da Humanidade notas 897

da conhecida canção patriótica “O Bom Camarada” sobre um 30 O cepo de ferro é um tronco de madeira situado em Viena
poema de Ludwig Uhland escrito em 1809, no contexto das guerras em frente à Catedral de Santo Estêvão em que, desde a Idade Média,
antinapoleónicas. era de uso aprendizes vagantes de passagem pela cidade pregarem
18 Café Demel, um dos mais conhecidos cafés de Viena, frequentado pela um prego.
alta sociedade. 31 Príncipe Eugénio. Alusão ao livro patriótico ilustrado para crianças
19 O conde Berchtold, ministro dos Negócios Estrangeiros, pretextou Prinz Eugen, der Edle Ritter (Príncipe Eugénio, o Nobre Cavaleiro),
um ataque inexistente contra as forças austro­‑húngaras na zona de publicado por Hofmannsthal em 1915.
fronteira de Temes­‑Kubin, para convencer em definitivo o imperador 32 Canção popular sobre poema de Ludwig Uhland.
a assinar a declaração de guerra contra a Sérvia. 33 Canção popular de Wolfgang Amadeus Mozart sobre poema
20 Alusão à iniciativa de última hora de Edward Grey, ministro dos de Ludwig Hölty.
Negócios Estrangeiros britânico, de organizar uma conferência 34 Canção do ciclo A Bela Moleira, musicada por Franz Schubert sobre
internacional que pudesse evitar a guerra ou, pelo menos, o alastrar poema de Wilhelm Müller.
do conflito. 35 Canção das guerras antinapoleónicas, composta em 1813 com texto
21 Inversão da máxima jesuítica fortiter in re, suaviter in modo (forte na e música de Albert Methfessel.
substância, moderado na forma). 36 Canção sobre texto de Johann Martin Miller, composta em 1776 por
22 Danúbio. Christian Gottlob Neefe.
23 Citação do Fausto de Goethe, Parte II, Acto II, cena “Quarto Gótico”: 37 Die Muskete, semanário humorístico publicado em Viena entre 1905
“O mosto, no seu estranho fermentar / Sempre vem afinal a dar em e 1941. Der Floh, semanário humorístico vienense.
vinho” (trad. de João Barrento). 38 Dr. Blochs österreichische Wochenschrift, semanário vienense, “órgão
24 Fausto, Parte I, cena “Noite”: “E sentado ao tear vibrante do tempo / central para todos os interesses judaicos”.
Teço à divindade o seu manto vivo” (trad. de João Barrento). 39 Semanário austríaco de temática militar.
25 Slovensky Jug, boletim dos Eslavos do Sul, publicado em Belgrado 40 O Parlamento (Reichsrat) tinha sido suspenso pelo imperador em
de 1903 a 1912. Em 1908, Friedjung, induzido por documentos falsos, 16 de Março de 1914, não tendo, pois, sido consultado relativamente
julgou ter descoberto e denunciou publicamente uma conspiração à declaração de guerra à Sérvia. A suspensão apenas foi levantada
pan­‑sérvia com a conivência de deputados do Reichstag. A falsidade três anos mais tarde, em 30 de Maio de 1917, pelo imperador Karl.
da acusação levá­‑lo­‑ia a ser réu num processo de ampla ressonância na 41 Fórmula lançada pelo chanceler alemão von Bülow em 1909, por
época, largamente comentado por Kraus em Die Fackel. ocasião da crise suscitada pela anexação austro­‑húngara da Bósnia­
26 Pollak é um nome comum entre os judeus austríacos; em numerosas ‑Herzegovina, para exprimir a relação de fidelidade cega que deveria
anedotas anti­judaicas, Soffi Pollak representa a figura de uma mulher reinar entre o Império Austro­‑Húngaro e a Alemanha guilhermina.
judia nova­‑rica que ostenta a sua incultura em ocasiões sociais. 42 Citação do drama de Schiller, O Acampamento de Wallenstein, Prólogo, v. 60.
27 Streffleurs Österreichische Militärische Zeitschrift, mensário vienense 43 Kraus utiliza com muita frequência nomes fictícios com intenção
especializado em assuntos militares. satírica: Füchsl, “raposinho”; Feigl, “cobardolas”; Halberstam,
28 Em 23 de Maio de 1915, a Itália abandonou a Tripla Aliança e declarou “meio­‑tronco”.
guerra à Áustria­‑Hungria. 44 Chicote russo.
29 Estátua de madeira na qual, a troco de um contributo monetário para o 45 Franz Höfer von Feldsturm.
esforço de guerra, se podia cravar um prego. Originada em Viena, esta 46 Der Humorist, revista vienense “para o mundo do teatro e da arte”.
prática alargou­‑se a outras cidades austríacas e alemãs. 47 Illustriertes Wiener Extrablatt, diário ilustrado vienense.
898 Os Últimos Dias da Humanidade notas 899

48 18 de Agosto: dia de aniversário do imperador Franz Joseph; 2 de 69 Paráfrase de dois versos de A Donzela de Orleães, de Friedrich Schiller,
Dezembro: aniversário da coroação do imperador. Acto I, cena 2.
49 Citação errada (“trespassado” em vez de “desfolhado”) do monólogo 70 Designação coloquial do super­‑canhão alemão de 42 cm, a peça de
de Wallenstein na tragédia de Friedrich Schiller, A Morte de Wallenstein artilharia mais pesada utilizada na Primeira Guerra Mundial.
(Acto III, cena 13). 71 A revista Die Fackel, cuja capa era de cor vermelho­‑vivo.
50 A carta de Bahr é autêntica, tendo sido enviada de Bayreuth com data 72 Emanuel von Singer.
de 16 de Agosto de 1914. 73 Citação da proclamação de Wilhelm II “Ao povo alemão!”, de 6 de
51 Leopold von Andrian­‑Werburg. Agosto de 1914.
52 “Selecção dos melhores romances modernos de todos os povos”, 74 Moritz Benedikt, director do jornal Neue Freie Presse.
a Colecção Engelhorn iniciou a publicação em 1884, tendo feito 75 Era de norma os principais jornais diários terem duas edições, uma
sair, durante a guerra, várias obras de temática patriótica. matutina e uma vespertina.
53 Referência ao arquiduque Friedrich, comandante­‑em­‑chefe das 76 Wolffbüro, a agência noticiosa mais importante da Alemanha,
forças austro­‑húngaras. encarregada, durante a guerra, da difusão dos comunicados oficiais.
54 O arquiduque Friedrich. 77 Le Matin, influente jornal diário parisiense.
55 O imperador Wilhelm II. 78 Ifigénia na Táurida, drama de Johann Wolfgang Goethe.
56 Esquina da Sirk. 79 “Heine und die Folgen” (“Heine e as Consequências”), uma das grandes
57 Revista político­‑satírica semanal publicada em Munique a partir polémicas de Kraus, publicada em 1910.
de 1896; assumiu, desde o início da guerra, posições crescentemente 80 Referência ao slogan patriótico “O carácter alemão o mundo há­‑de
alinhadas com o patriotismo belicista reinante. salvar”, inspirado nos versos finais do poema “A Vocação da Alemanha”,
58 Jogo de palavras, alusão ao pintor Carl Leopold Hollitzer (Haubitze = de Emanuel Geibel, escrito em 1861 e amplamente difundido, sobretudo
morteiro). depois da sua utilização num discurso de Wilhelm II de 1907.
59 Irmgard Höfer von Feldsturm. 81 Fórmula, rapidamente entrada na fraseologia nacionalista alemã,
60 Neuigkeits­‑Weltblatt, jornal diário vienense fundado em 1874. utilizada pelo futuro chanceler alemão von Bülow num discurso de
61 A fachada do edifício do Ministério da Guerra, em Viena, inaugurado 1897 para exprimir a aspiração da Alemanha a um lugar de destaque
em 1913, está adornada com figuras militares representativas dos na política mundial e, em particular, na partilha colonial.
diferentes corpos das forças armadas austro­‑húngaras. 82 Nordeutsche Allgemeine Zeitung, jornal diário berlinense que iniciou a
62 Verso inicial da canção patriótica “A Guarda do Reno”. publicação em 1911.
63 Adalbert Sternberg. 83 Cidade da Lorena, repetidamente bombardeada pela aviação alemã.
64 Residência dos reis da Prússia, entre os quais os nomes de Friedrich O bombardeamento de 25 de Dezembro de 1914 foi acompanhado pelo
e Wilhelm são recorrentes. envio de “votos natalícios”.
65 “De um tal senhor isso é / Alto favor”. Citação do Fausto de Goethe, 84 Designação da milícia territorial húngara.
Parte I, “Prólogo no Céu” (trad. de João Barrento). 85 Designação de um dos quatro regimentos austríacos directamente
66 Poema épico de cariz popular do século XIX, da autoria de Josef Victor ligados à Casa dos Habsburgos.
von Scheffel. 86 Citação de um verso do poema “A Noiva de Corinto”, de Goethe.
67 Canção popular vienense, composta em 1912. 87 Da opereta O Astrónomo, com música de Franz Lehár, cuja estreia
68 Moderne Illustrierte Wochenschrift, revista semanal ilustrada publicada absoluta teve lugar em Viena, em 1916.
em Berlim.
900 Os Últimos Dias da Humanidade notas 901

ACTO II 22 OEZEG: Österreichische Zentraleinkaufsgesellschaft (Sociedade


1 Opereta de Emmerich Kálmán, estreada em Viena, em Janeiro de 1909. Central de Compras Austríaca), criada em 1916 em ligação com o
2 Opereta de Franz Lehár, com libreto de Viktor Léon, estreada em Ministério do Interior para a aquisição de bens alimentares.
Outubro de 1909. 23 MIAG: Milchindustrie AG (Sociedade Leiteira Industrial).
3 Na batalha de Tannenberg, na região dos pântanos da Masúria, travada em 24 UFA: Universum­‑Film Aktiengesellschaft (Filmes Universo).
fins de Agosto de 1914, o 8.º Exército alemão, sob o comando de Hindenburg, 25 WAFA: Wiener Automobil­‑Fabrik (Fábrica Vienense de Automóveis).
forçou à retirada as tropas russas, que sofreram pesadíssimas baixas. 26 IWUMBA: Waffen­‑ und Munitionsbeschaffungsamt (Departamento
4 Início da Canção dos Nibelungos, o grande poema épico medieval alemão. de Aquisição de Armas e Munições).
5 Jornal diário de tendência cristã­‑social, publicado em Graz desde 1904. 27 SAWERB: Sascha­‑Werbefilm, departamento de filmes publicitários
6 Agência vienense “para notícias da corte e das ocorrências policiais”, da Companhia Cinematográfica Sascha.
fundada em 1865. 28 Palácio real de Belgrado.
7 Localidade nos Alpes austríacos, estância de vilegiatura muito popular 29 Fábrica de porcelana da Boémia, especializada em reproduções
entre as classes abastadas de Viena. de modelos das Manufacturas de Porcelana Vienenses.
8 Citação invertida do verso final da “Canção do Sino”, de Friedrich 30 Silhueta do arquiduque Friedrich, Comandante Supremo do Exército
Schiller (“Seja a paz o seu repique final”). austro­‑húngaro.
9 Verso da canção patriótica “A Guarda do Reno”. 31 O imperador Franz Joseph.
10 Wiener Mittagszeitung, edição do meio­‑dia do diário vienense Wiener 32 Canção do Singspiel Lá em Schönbrunn (1914), com texto de Fritz
Allgemeine Zeitung. Grünbaum e música de Ralph Benatzky.
11 Poema de Goethe (trad. de Paulo Quintela). 33 Jornal diário londrino próximo do Partido Trabalhista.
12 Revista especializada nas artes venatórias fundada em 1894, em Berlim. 34 As disposições da censura à imprensa no Império Austro­‑Húngaro
13 Drama de Ferdinand Raimund estreado em Viena, em 1834, peça obrigavam a que o espaço destinado a textos cuja publicação não
central do repertório do teatro popular vienense. tivesse sido autorizada fosse deixado em branco na página.
14 Alusão ao verdadeiro nome de Alexander Roda Roda, Rosenfeld. 35 MOB: mobilização. FLAK: Fliegerabwehrkanone (canhão antiaéreo); KAG:
Os versos seguem a melodia da popular canção natalícia alemã, Kavallerieausbildungsgruppe (Unidade de Instrução de Cavalaria); RAG:
“O Tannenbaum, o Tannenbaum”. Regimentsausbildungsgruppe (Unidade de Instrução de Regimento).
15 Citação do poema “Os Granadeiros”, de Heinrich Heine. 36 Alusão a um verso do poema “O Mergulhador”, de Friedrich Schiller:
16 A mais importante cidade fortificada do Império Austro­‑Húngaro na Galícia. “Lá no fundo, porém, tudo é medonho.”
Depois de um longo cerco, capitulou em 23 de Março de 1915 perante as 37 Floridsdorf, zona periférica de Viena, com grande concentração
tropas russas, sendo reconquistada pelas Potências Centrais em Junho. industrial, actual 21.º Distrito. Josefstadt, 8.º Distrito de Viena,
17 Grüßer: cumprimentador. relativamente central.
18 ROHÖ: Reichsorganisation der Hausfrauen Österreichs (Organização 38 Jogo de palavras com o apelido Schwarz­‑Gelber (negro­‑amarelo).
das Donas de Casa da Áustria). Negro e amarelo eram as cores da bandeira do Império; a “cruz negro­
19 GEKAWE: Zentralverband der Gemeinschaftsküchen Wiens (União ‑amarela” era conferida durante a guerra a troco de donativos para
das Cozinhas Comunitárias de Viena). diferentes iniciativas de beneficência.
20 Alusão a um passo do Evangelho de São Lucas, 23,31. 39 Citação de Hamlet, de Shakespeare.
21 A citação é, na realidade, do Fausto de Goethe, Parte I, “Prólogo”, v. 167 40 Wiener Sonn­‑ und Montagszeitung, semanário liberal vienense.
(trad. de João Barrento). 41 Referência ao imperador Karl I.
902 Os Últimos Dias da Humanidade notas 903

ACTO III 18 Era tradição na Áustria utilizar esta fórmula como epígrafe de abertura
1 A Roménia, que, a partir de 1915, se posicionara ao lado da Entente, dos livros de contabilidade.
declarou guerra à Áustria­‑Hungria em 27 de Agosto de 1916. 19 Entre 1915 e 1918, a península do Sinai foi um dos palcos principais da
2 Alusão a Veneza em Viena, um local de diversão muito popular no confrontação entre os exércitos britânico e turco.
parque vienense do Prater. 20 Falke: falcão.
3 Jornal diário, o órgão de imprensa mais importante da Suíça francesa. 21 Rabe: corvo.
4 Presumivelmente, nome de um restaurante. 22 Geier: abutre.
5 O almirante Reinhard Scheer. A Batalha da Jutlândia, em 31 de Maio 23 Scherul: August Scherl. Mossul: Rudolf Mosse.
e 1 de Junho de 1916, foi a maior batalha naval da Primeira Guerra 24 Svetozar Borojević von Bojna.
Mundial. Apesar das enormes perdas sofridas pela marinha britânica, 25 Cidade da Galícia, palco de ferozes combates durante a ofensiva de
não foi possível às forças alemãs romper o bloqueio naval à Alemanha. Brusilov, em Junho de 1916.
6 Mais uma das várias paródias ao poema “Canção Nocturna do 26 Combatentes da marinha.
Peregrino”, de Goethe, citadas ao longo do drama. 27 The New York World, órgão do Partido Democrático norte­‑americano.
7 Friedrich Schiller foi professor de História da Universidade de Jena 28 Jornal diário de tendência liberal­‑democrática.
de 1789 até à sua morte, em 1805. 29 Respectivamente, as cores da bandeira liberal da Revolução de 1848
8 Alusão a Moritz Benedikt. e as cores da bandeira do Reich alemão até 1918.
9 Schiller, Guilherme Tell, Acto IV, cena 3. 30 Verso do hino de Lutero “Castelo Forte é o Nosso Deus”.
10 Jornal publicado em Viena entre 1847 e 1919, tido como órgão oficioso 31 Canção estudantil tradicional.
do Ministério dos Negócios Estrangeiros austríaco. 32 Alusão ao “Pai Nosso” e citação, muito glosada no discurso cultural
11 Alusão ao ensaio de Rainer Maria Rilke sobre Auguste Rodin (1903). alemão, de um poema de Goethe sobre Schiller.
Rodaun, subúrbio de Viena em que se situava a residência de Hugo von 33 Partido Patriótico Alemão, fundado em 1917, de tendência nacionalista
Hofmannsthal. pan­‑alemã.
12 Alusão ao ensaio de Robert Müller, “O que Espera a Áustria do Seu 34 Hino nacional prussiano.
Jovem Herdeiro do Trono?”, publicado em 1914. 35 Frase atribuída a Wilhelm II, à vista de um montão de cadáveres de
13 Jogo de palavras com a figura do Guerreiro (Wehrmann) de Ferro. soldados, por ocasião de uma visita à frente ocidental em 1915. Kraus utiliza
14 Queruscos, povo germânico que, sob o comando de Armínio, infligiu a mesma frase no verso final do drama, atribuindo­‑a à “Voz de Deus”.
no ano 9 d.C. uma derrota histórica às legiões romanas. Este episódio 36 Em Setembro de 1914, um grupo de 93 intelectuais alemães, entre
foi apropriado desde o século XIX pela mitologia nacionalista alemã. os quais Max Reinhardt, Max Liebermann, Max Planck, Wilhelm
15 Alusão anti­‑semita. Roentgen e Karl Lamprecht, subscreveu um “manifesto ao mundo
16 Provavelmente, o jornal Ostdeutsche Rundschau, diário de tendência civilizado” em defesa do militarismo alemão e em protesto inflamado
populista­‑nacionalista e anti­‑semita. contra “as mentiras e calúnias com que os inimigos procuram manchar
17 O texto “Um Kantiano e Kant” foi efectivamente lido em público em a honra da Alemanha”.
Berlim, a 8 de Maio de 1918, sendo depois publicado no número 474­‑483 37 Citação do drama Guilherme Tell, de Friedrich Schiller (Acto II, cena 1).
de Die Fackel, de Maio de 1918. Trata­‑se de uma montagem de citações 38 Citação modificada (com o acrescento do adjectivo “austríaco”) de um
que contrapõe, em colunas paralelas, passos de um discurso de passo de Friedrich Schiller (A Noiva de Messina, Acto III, cena 5).
Wilhelm II (reproduzidos substancialmente na fala inicial do Kaiser 39 Freudenau: hipódromo no Prater. O conde Berchtold era proprietário
da cena 37 do Acto IV) e do Tratado da Paz Perpétua, de Kant. de uma coudelaria.
904 Os Últimos Dias da Humanidade notas 905

40 Alusão a uma fala de Hamlet no Hamlet, de Shakespeare, Acto I, cena 5: 11 Durchhalter: “aguentador”. O nome da família é um jogo de palavras
“Que alguém seja capaz de sorrir, de sorrir sem parar, e ser um canalha.” com o verbo “durchhalten”, aguentar a pé firme, frequentemente usado
41 Marcha nacional húngara. ao longo do drama com intenção satírica.
42 Marcha, muito popular na Áustria, composta em 1849 por Johann 12 Agências noticiosas e jornais do Reino Unido, França e Rússia.
Strauß pai, em honra do marechal Radetzky, importante cabo­‑de­ 13 “Canção da Alemanha”, com texto de Hoffmann von Fallersleben e
‑guerra austríaco. música de Joseph Haydn, hino oficial da Alemanha a partir de 1922.
43 Localidade da Boémia onde funcionava a comissão encarregada das 14 Cidade da Volínia, local de uma das mais pesadas derrotas do exército austro­
segundas inspecções. ‑húngaro na frente leste, durante a ofensiva de Brusilov de Junho de 1916.
44 Comissão dos nove: designação coloquial da Comissão de Inspecção 15 Tarnopol, importante cidade da Galícia, foi tomada por tropas russas
Itinerante criada em 1915 e dirigida pelo marechal Teisinger. logo no início da guerra, tendo sido reconquistada em Julho de 1917
45 Alusão a versos do Fausto, de Goethe, Parte II, cena “Grande pátio pelos exércitos das Potências Centrais.
exterior do palácio”, respectivamente, v. 11.584 e 11.574. 16 Pequena cidade da Lituânia onde o exército alemão resistiu com
sucesso à ofensiva da Primavera do exército russo em 1916.
17 Locais onde as forças alemãs e austro­‑húngaras se opuseram com
ACTO IV sucesso aos exércitos da Entente.
1 Alusão ao processo contra Karel Kramár, presidente do Comité 18 Importante entroncamento ferroviário da Galícia. Conquistado pelas
Nacional Checo, e um conjunto de alegados conspiradores. tropas russas em 6 de Julho de 1917, foi reconquistado pelas Potências
Condenados à morte, foram indultados pelo imperador Karl. Centrais em finais do mesmo mês.
2 Condecoração austríaca. 19 Cidade da Galícia, um dos centros nevrálgicos da ofensiva de Brusilov.
3 Quadro em escala monumental do pintor e escultor Ludwig Koch. 20 Cidade da Galícia cuja conquista pelas Potências Centrais, em Maio
O quadro, destruído num incêndio depois da Primeira Guerra Mundial, de 1915, lhes permitiu avanços significativos na frente leste.
tem a forma de uma cena de cavalaria em que figuram os principais 21 Cidades búlgaras.
membros das casas imperiais austríaca e alemã e os generais mais 22 Os dirigentes da Entente.
destacados dos dois exércitos coligados. A pintura serve de pano 23 Schiller, Guilherme Tell, Acto IV, cena 3.
de fundo à cena final do Acto V. 24 Idem: “Em veneno de dragão converteste em mim o leite dos meus
4 Extracto do poema “Oração durante a Batalha” (1813), de Theodor pensamentos inocentes.”
Körner, poeta das Guerras de Libertação anti­napoleónicas. 25 Palácio de Roma, sede do Parlamento italiano desde 1870.
5 Jornal das corporações estudantis alemãs. 26 Base alemã na China, ocupada em Novembro de 1914 por tropas japonesas.
6 Do jargão das corporações estudantis alemãs – pedido de intervalo 27 Com os seus Discursos à Nação Alemã, proferidos em 1807­‑1808, numa
para renovar o fornecimento de cerveja sem perder o lugar ocupado. Berlim ocupada pelas tropas napoleónicas, o filósofo Johann Gottlieb
7 Semanário ilustrado “para a arte e a vida”, publicado em Munique. Fichte ofereceu um contributo poderoso para a afirmação do moderno
8 Canção estudantil oitocentista. nacionalismo alemão.
9 “Lentes são oitenta e oito / ó pátria, tu estás perdida”, versos satíricos 28 Comédia da autoria de Heinrich Gilardone estreada em Berlim, em 1916.
escritos a propósito da composição da Assembleia de Frankfurt no 29 Alusão a Franz I, imperador da Áustria de 1792 a 1835. “Franz é o nome
contexto da Revolução de 1848 na Alemanha. do canalha!” é uma citação da cena 2 do Acto II do drama Os Salteadores,
10 Cognome de Ludwig von Fabini, general de divisão austríaco, conhecido de Friedrich Schiller. Spielberg é o nome de uma fortaleza sobranceira a
pelas pesadas baixas sofridas pelas tropas sob o seu comando na frente leste. Brno, utilizada para o encarceramento de presos políticos.
906 Os Últimos Dias da Humanidade notas 907

30 Personagem da mitologia nórdica. ACTO V


31 Wilhelm II dedicava­‑se apaixonadamente à arqueologia assíria. 1 Em Junho de 1918, a tomada de posse como primeiro­‑ministro de um
32 Gruta de Agnano, em Itália, onde, para divertimento dos turistas, dirigente da oposição parlamentar suscitou, na Bulgária, expectativas
eram lançados cães que morriam lentamente asfixiados devido à de um rápido fim da guerra.
concentração elevada de gás carbónico. 2 “O doente do Bósforo” constituiu uma fórmula consagrada na
33 Referência à condenação à morte dos “conspiradores democráticos” diplomacia europeia a partir de finais do século XVII para designar
de Mântua, em 1851­‑53. a Turquia.
34 Katharina von Schratt. 3 Café­‑concerto vienense no quarteirão de Spittelberg, na época uma
35 Friedrich von Beck­‑Rzikowsky. zona mal afamada da cidade.
36 Franz Joseph subiu ao trono em 2 de Dezembro de 1848, na sequência 4 Citação da fala de Edgar, Acto IV, cena 1, de Rei Lear, de Shakespeare.
da abdicação do imperador Ferdinand I suscitada pelos acontecimentos 5 Cidade do Norte de Itália, conquistada pelas forças austríacas em 9 de
revolucionários. Novembro de 1917.
37 Sessenta e seis é um jogo de cartas popular na Áustria. Alusão à Guerra 6 Hamlet, Acto III, cena 1: “Isto já foi um paradoxo, mas agora os tempos
Austro­‑Prussiana de 1866. confirmam­‑no.”
38 Rudolf von Habsburg. 7 Variação do epigrama “O Momento”, de Friedrich Schiller: “Uma
39 A imperatriz Elisabeth (Sissi) (1837­‑1898), casada em 1854 com Franz grande época fez nascer o século; mas o grande momento encontra
Joseph, cedo optou por levar uma vida independente longe da corte; uma estirpe pequena.”
morreu assassinada por um anarquista na Suíça. 8 Primeiro verso do “Canto de Mignon” de Os Anos de Aprendizagem
40 O chanceler Otto von Bismarck foi o principal fautor da derrota de Wilhelm Meister, de Goethe.
austríaca na Guerra Austro­‑Prussiana de 1866. 9 Génesis, 2,25.
41 Franz Ferdinand d’Este. 10 Alusão a Woodrow Wilson, presidente norte­‑americano, que se
42 Em 7 de Agosto de 1908, durante um encontro em Bad Ischl, o rei Edward VII destacou em 1918 com diversas iniciativas a favor da paz.
de Inglaterra instou o imperador Franz Joseph a que abandonasse a aliança com 11 “Viva!” em húngaro.
a Alemanha e promovesse a integração da Áustria­‑Hungria na Entente Cordiale. 12 Cidade do Norte de França frequentemente no centro de combates.
O imperador, no entanto, rejeitou intransigentemente essa possibilidade. Sob ocupação alemã de Setembro de 1914 a Março de 1917 e de Março
43 Frase estereotipada de Franz Joseph ao despedir­‑se em recepções e a Setembro de 1918.
outras ocasiões oficiais. 13 Moritz Benedikt.
44 Versos do poema de Goethe “Canção dos Espíritos sobre as Águas”. 14 Berliner Heiratsannoncen­‑Blatt, jornal de anúncios matrimoniais.
45 Schiller, “A Chegada do Novo Século”. 15 Diário berlinense nacionalista. O adjectivo “vermelho” deve­‑se
46 “O amor e o encanto do género humano”, epíteto com que Suetónio a os títulos do jornal virem impressos nessa cor.
apostrofa o imperador Tito no seu “Louvor a Tito”. 16 Berliner Tageblatt.
47 Minenfeld: campo de minas. Grünkreuz: cruz verde (designação 17 Niedermacher: “mata­‑tudo”.
de um gás tóxico). 18 Verso do poema “A Canção do Sino”, de Friedrich Schiller.
48 Schiller, “O Mergulhador”. 19 Moritz Benedikt.
49 Jogo de palavras com a expressão estereotipada “a última coisa 20 Distinção, em jeito de condecoração, atribuída pela Organização de
que resta é a honra”. Assistência de Guerra.
21 Citação do drama de Schiller A Morte de Wallenstein.
908 Os Últimos Dias da Humanidade notas 909

22 A generalidade das personagens desta cena tem nomes falantes, 41 Referência ao poema “Epitáfio para um Guerreiro”, de Kong­‑fu­‑tse,
na maioria designando diferentes animais. cuja tradução alemã, por Klabund, foi publicada em 1915.
23 Nomes de cavalos de corrida. 42 “Já não conheço partidos, já só conheço alemães”, frase pronunciada
24 Lokalanzeiger, diário berlinense de grande tiragem, situado por Wilhelm II na sessão extraordinária do Reichstag de 4 de Agosto
politicamente à direita. de 1914.
25 Semanário berlinense de tendência republicana e democrática. 43 Déjeuner dinatoire, no jargão diplomático, um pequeno­‑almoço
26 Lustige Blätter, semanário humorístico berlinense de grande tiragem; abundante tomado bastante tarde, em vez de uma refeição principal.
Fliegende Blätter, jornal satírico alemão. 44 “O sangue e os bens pelo imperador / O sangue e os bens pela pátria”
27 Vossische Zeitung, diário conservador de Berlim. são os dois últimos versos do final da segunda estrofe do hino do
28 Die Wahrheit, semanário alemão. Império.
29 Órgão do Partido Social­‑Democrático Alemão. 45 “A estes arrasta a palavra oca do senhor”, verso do final do drama
30 Moritz Benedikt. Egmont, de Goethe.
31 Alusão ao final do poema “O Selvagem”, de Johann Gottfried Seume: 46 Franz Grüner.
“Vede, nós, selvagens, somos seres melhores; / E para dentro do 47 Franz Janowitz.
matagal se lançou.” 48 Alusão ao manifesto “Aos Meus Povos”, que contém a proclamação de
32 Opereta de Oscar Straus, com libreto de Felix Dörmann e Leopold guerra do imperador Franz Joseph.
Jacobson, estreada em Viena em Março de 1907. 49 “A todo o vapor” era uma expressão favorita de Wilhelm II, a quem se
33 No início do reinado do imperador Franz Joseph, foi tomada a decisão refere toda a sequência, estruturada a partir de citações do Apocalipse
de desmantelar as muralhas que cercavam a cidade de Viena, dando de S. João. Neste ponto, Kraus está a citar o seu texto “Apocalipse
origem, com a construção da Ringstraße, a uma revolução urbanística (Carta aberta ao público)”, publicado em Die Fackel em Outubro de 1908.
de grandes proporções. 50 Franz Janowitz.
34 Alunos da escola de elite dirigida por jesuítas em Kalksburg (hoje, uma 51 Frase inicial do manifesto já referido de Franz Joseph.
parte do 23.º Distrito de Viena). 52 Marcha da opereta A Fada do Carnaval, com música de Emmerich
35 Referência ao arquiduque Ludwig Salvator (1847­‑1915), estabelecido em Kálmán (1917).
Maiorca em 1872 e autor de uma obra monumental sobre as Baleares. 53 O exército húngaro.
36 Referência à política matrimonial adoptada pelos Habsburgos com fins 54 Alusão à frase atribuída a Friedrich II: “Cães, quereis viver para sempre?”
de expansão territorial, traduzida no lema: “Bella gerant alii, tu, felix 55 Citação deturpada de um discurso de Bismarck no Reichstag, em 28 de
Austria, nube” – “Que os outros façam guerra, tu, Áustria feliz, casa­‑te.” Novembro de 1881: “O que a espada nos conquistou perde-se de novo
37 O arquiduque Leopold Salvator, como era do conhecimento público, pela acção da imprensa e do Parlamento.”
detinha o monopólio do fornecimento de legumes secos ao exército, 56 Deformação satírica da máxima jurídica “audiatur et altera pars”.
um negócio calculado em perto de 90 milhões de coroas. “Auditor”: juiz auditor militar. “Parte”: participação de falecimento.
38 “No princípio era o acto”, verso de Fausto na Parte I do Fausto de 57 A cidade de Linz situa­‑se, não na província da Estíria, mas da Alta Áustria.
Goethe (cena “Gabinete de Trabalho”). 58 Antigo hino prussiano, cantado segundo a melodia de “God Save the King”.
39 Die Zeit, jornal diário vienense. 59 Politicamente suspeito.
40 Localidade da Galícia palco de duros combates entre Fevereiro e 60 Membro do grupo independentista búlgaro­‑macedónio criado no
Março de 1916, evacuada em 19 de Março pelas forças austro­‑húngaras, século XIX para combater os turcos e que, durante a guerra, esteve ao
totalmente dizimadas. lado da Entente.
910 Os Últimos Dias da Humanidade

61 Designação popular do regimento Deutschmeister, um dos quatro


regimentos austríacos directamente ligados à Casa dos Habsburgos.
62 Tescheek; nohát; igén. Húngaro: por favor; então; ora pois.
63 Local de um ataque em massa com gás das forças austro­‑húngaras em
24 de Outubro de 1917, durante a 12.ª Batalha do Isonzo.
64 Verso de uma canção popular vienense composta nos anos 80 do
século XIX.
65 Verso do hino “Castelo Forte é o Nosso Deus”, de Lutero, utilizado
como refrão da canção patriótica “Tem de Ser Nossa a Vitória!”
66 Servo­‑croata: “Mãe, dá­‑me pão.”
67 Um dos focos principais das batalhas do Isonzo, na frente italiana,
com baixas pesadíssimas para ambos os lados.

Epílogo
1 Moritz Benedikt.
2 Cores austríacas.
3 Cores alemãs.
4 As quatro últimas falas da “Voz de baixo” suspendem­‑se antes do
quarto verso, que o espectador da época facilmente preencheria,
por serem citações de duas canções patrióticas muito populares.
Respectivamente: “Tem de Ser Nossa a Vitória!” (“Mesmo que
o mundo esteja cheio de demos”) e “A Guarda do Reno” (“Ressoa
um brado como um trovão”; “Está firme e leal a guarda do Reno”;
“Pátria querida podes estar tranquila”).
5 Citação de uma frase de Wilhelm II (cf. nota 35 do Acto III).
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Ährental, Aloys Leopold Johann Baptist (1854­‑1912), ministro


dos Negócios Estrangeiros da Áustria­‑Hungria de 1906 a 1912.
Albrecht (1897­‑1955), arquiduque, filho do arquiduque Friedrich.
Alexandra Feodorovna (1872­‑1918), mulher do czar Nicolau II,
filha do arquiduque Ludwig IV de Hessen.
Andrian­‑Werburg, Leopold von (1875­‑1951), escritor e
diplomata, membro da “Jovem Viena”.
Annunzio, Gabriele d’ (1863­‑1938), escritor italiano, oficial de
aviação durante a guerra.
Apponyi, Albert Georg von (1846­‑1933), político húngaro.
Arz von Straussenburg, Arthur (1857­‑1935), general de
infantaria austríaco, chefe do Estado­‑Maior a partir de 1 de
Março de 1917.
Asquith, Herbert Henry (1852­‑1928), primeiro­‑ministro
britânico de 1908 a 1916.
Auffenberg, Moritz (1852­‑1928), ministro da Guerra austro­
‑húngaro (1911­‑1912); o 4.º Exército por si comandado venceu,
em 1914, as tropas russas em Komarow.

Bahr, Hermann (1863­‑1934), escritor e publicista, mentor da


“Jovem Viena”, frequente objecto da sátira krausiana.
Battisti, Cesare (1875­‑1916), deputado ao Parlamento austríaco
pela cidade de Trento; tendo ingressado nas fileiras do
exército italiano quando do início da guerra, seria, uma vez
preso, de imediato enforcado sob a acusação de alta traição;
uma fotografia da execução circulou como postal ilustrado
e foi incluída na edição definitiva de Os Últimos Dias da
914 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 915

Humanidade, de que faz parte integrante como documento Borojević/BOReV(W)ITSCH von Bojna, Svetozar (1856­‑1920),
do que Kraus designava como “o rosto austríaco”. general austríaco, comandante­‑em­‑chefe do 3.º Exército no
Bauer, Ludwig (1876­‑1935), jornalista e dramaturgo austríaco, início da guerra.
correspondente de guerra nos Balcãs (1912­‑13); durante a Bratianu, Joan (1864­‑1927), primeiro­‑ministro da Roménia.
Primeira Guerra Mundial, correspondente na Suíça de vários Brockhausen, Carl (1859­‑1951), jurista austríaco, professor
jornais de Viena e Praga. de Direito Público e Administrativo, autor da brochura
Beck­‑Rzikowsky, Friedrich von (1830­‑1920), íntimo de Franz Os Objectivos da Áustria na Guerra.
Joseph, ocupou elevados cargos no exército imperial. Brüch, Oskar (1869­‑1943), pintor e oficial do exército.
Benedek, Ludwig August von (1804­‑1881), general austríaco, Brudermann, Rudolf von (1851­‑1941), comandante do
demitiu­‑se na sequência da vitória prussiana na batalha de 3.º Corpo do Exército na Galícia, demitido na sequência da
Sadowa (Königgrätz), em 1866. perda de Lemberg (1914).
Berchtold, Leopold, conde (1863­‑1942), político austríaco, Brusilov, Aleksei Alekseievitch (1853­‑1926), general russo,
ministro dos Negócios Estrangeiros de 1912 a 1915, foi comandante da grande ofensiva que levou, em Junho de 1916,
responsável pela formulação do ultimato cuja rejeição pela a uma derrota esmagadora das Potências Centrais em Luzk.
Sérvia desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Depois de Buquoy, Karl von (1885­‑1952), primeiro­‑tenente do Regimento
abandonar o cargo, foi conselheiro político do herdeiro do dos Ulanos.
trono. Buquoy, Heinrich von (1892­‑1959), irmão do anterior, ligado ao
Bethmann­‑Hollweg, Theobald von (1856­‑1921), chanceler mesmo regimento.
alemão de 1909 a 1917. Burian von Rajecz, Stefan (1851­‑1922), político austríaco,
Bewer, Max (1861­‑1921), publicista e poeta alemão de tendência ministro dos Negócios Estrangeiros da Áustria­‑Hungria em
nacionalista e anti­‑semita. 1915­‑16, ministro das Finanças de 1916 a 1918.
Bienerth­‑Schmerling, Anka (1869­‑1937), condessa,
presidente honorária da “Ausspeisungsaktion für Arbeitslosen” Cadorna, Luigi, conde de (1850­‑1928), chefe do Estado­‑Maior
(Sopa dos Desempregados). italiano entre Julho de 1914 e Novembro de 1917.
Birinski, Leo (1880­‑1920), dramaturgo vienense, responsável campbell, Roland [Bruce] (1878-1963), oficial escocês, famoso
por adaptações de peças de Johann Nestroy. instrutor de combate à baioneta.
Blanka (1868­‑1949), arquiduquesa, casada com o arquiduque Casement, Sir Roger David (1864­‑1916), político irlandês,
Leopold Salvator. executado em 3 de Agosto de 1916 por alta traição.
Böhm­‑Ermolli, Eduard von (1856­‑1941), general austríaco, Charas, Heinrich (1860­‑1940), conselheiro imperial, director da
comandou em 1917 a ofensiva de Verão contra a Rússia. Associação de Prontos-Socorros de Viena.
916 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 917
Czernin, Ottokar, conde de (1872­‑1932), ministro dos Negócios Ernst, Otto (1862­‑1926), escritor regionalista alemão, frequentemente
Estrangeiros da Áustria­‑Hungria de 1916 a 1918, participou, nessa satirizado em Die Fackel.
qualidade, nas negociações de paz com a Rússia em Brest­‑Litovsk. Ertl, Emil (1860­‑1935), escritor austríaco, autor de romances
Dangl, Johann (1870­‑1944), deputado cristão­‑social da Baixa históricos e regionalistas.
Áustria, burgomestre da estância do Semmering. Eugen (1863­‑1954), arquiduque, comandante da frente italiana
Dankl von Krasnick, Viktor (1854­‑1941), comandante do desde 1915.
1.º Exército austríaco. Exner, Wilhelm (1841­‑1931), político austríaco, professor da
Defregger, Franz von (1835­‑1921), pintor austríaco, especializado Universidade de Viena, director desde 1910 do Laboratório
em cenas campestres tirolesas. Técnico de Viena.
Dehmel, Richard (1863­‑1920), poeta alemão, ofereceu­‑se como Eysler, Edmund (1874­‑1949), compositor de operetas austríaco.
voluntário em 1914 e orientou a sua produção poética num
sentido ferozmente belicista. Fabini, Ludwig von (1861­‑1947), general austríaco, comandante
Dobner von Dobenau, Friedrich (1852­‑1925), último senescal entre 1914 e 1916 da 8.ª Divisão de Infantaria (Caçadores
da Casa dos Habsburgos. Imperiais). As perdas enormes sofridas pelas tropas
Dohna­‑Schlodien, Nikolaus (1879­‑1956), oficial da marinha sob o seu comando valeram­‑lhe a alcunha de
alemã, publicou dois livros sobre as suas surtidas ao comando “Mata­‑caçadores­‑imperiais”.
do cruzador Möwe. Falkenhayn, Erich von (1861­‑1922), general alemão, chefe do
Dörmann, Felix (1870­‑1928), escritor austríaco decadentista, Estado­‑Maior de 1914 a 1916.
membro do grupo da “Jovem Viena”, autor de lírica belicista Fanto, David (1852­‑1922), um dos mais ricos e poderosos
muito popular. industriais austríacos.
Dub, Flora (??­‑??), dama da sociedade vienense, frequentemente Feldsturm, Franz Höfer von (1861­‑1918), general, responsável
citada na imprensa local. durante a guerra pelos comunicados do Estado­‑Maior.
Feldsturm, Irmgard Höfer von (1865­‑1919), escritora austríaca,
Egger­‑Lienz, Albin (1868­‑1926), pintor austríaco do Tirol, casada com o general Franz Höfer von Feldsturm; autora de
autor de pinturas monumentais com cenas regionalistas e romances históricos cuja intriga envolve com frequência os
sobre temas históricos e militares. meios militares, salientou­‑se durante a guerra com crónicas
Eisner von Bubna, Wilhelm (1875­‑1926), coronel austríaco, chefe em louvor das armas austro­‑húngaras.
da secção de imprensa e propaganda do Ministério da Guerra. Franz Ferdinand d’Este (1863­‑1914), herdeiro do trono,
Eisner von Eisenhof, Angelo (1857­‑1938), latifundiário ostracizado pelo imperador devido, nomeadamente, aos seus
austríaco, figura da alta sociedade vienense. planos de reorganização do Império.
918 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 919
Franz Karl Salvator (1893­‑1918), arquiduque, filho de Franz Grey, Sir Edward (1862­‑1933), ministro dos Negócios Estrangeiros
Salvator. britânico de 1905 a 1916.
Franz Salvator (1866­‑1939), general, ligado aos Serviços de Grüner, Franz (1887­‑1917), especialista de arte, colaborador
Saúde e à Cruz Vermelha austríaca. de Die Fackel e membro do círculo próximo de Karl Kraus,
Friedjung, Heinrich (1851­‑1920), historiador austríaco. morto em combate na frente italiana em 19 de Junho de 1917.
Friedrich (1856­‑1936), arquiduque, general de infantaria, nomeado Grünfeld, Alfred (1852­‑1924), compositor e pianista austríaco.
Comandante Supremo do Exército no início da guerra.
Frischauer, Berthold (1851­‑1924), correspondente em Paris da Haas, Philipp von (1859­‑1926), fabricante de tapetes vienense,
Neue Freie Presse. elevado à nobreza, escritor e actor diletante; casado com a
Fürstenberg, Maximilian Egon (1863­‑1941), príncipe, figura baronesa Hedwig von Wächter.
proeminente da alta aristocracia austríaca. Haeseler, Gottlieb von (1836­‑1919), general prussiano.
Harden, Maximilian (1861­‑1927), publicista alemão, director
Ganghofer, Ludwig (1855­‑1920), escritor bávaro, autor de desde 1892 da revista Die Zukunft (O Futuro), um dos
romances regionalistas de sucesso, publicou, durante a modelos para Die Fackel. No entanto, Kraus depressa se
guerra, reportagens da frente de combate e poemas belicistas. afastaria de Harden, que se tornaria em objecto de algumas
Gentz, Friedrich von (1764­‑1832), colaborador muito próximo das suas polémicas.
do chanceler Metternich a partir de 1810, teórico da política e Harrach, Franz von (1870­‑1937), camareiro imperial, fazia
publicista conservador, defensor do princípio legitimista. parte do séquito de Franz Ferdinand no dia em que este foi
Ginzkey, Franz Karl (1871­‑1963), escritor austríaco; em 1914, assassinado.
correspondente de guerra, depois, colaborador do Arquivo Haus, Anton von (1851­‑1917), almirante, depois da declaração de
Militar de Viena. guerra da Itália em Maio de 1915, comandou o ataque à costa
Girardi, Alexander (1850­‑1918), actor popular vienense muito italiana do Adriático.
apreciado por Karl Kraus. Hedin, Sven Anders (1865­‑1952), viajante e escritor sueco,
Glawatsch, Franz (1871­‑1928), cantor de operetas austríaco. explorador da Ásia, simpatizante da Alemanha guilhermina,
Glücksmann, Heinrich (1864­‑1946), escritor e jornalista percorreu as frentes de batalha alemãs da Primeira Guerra
austríaco, dramaturgista do Volkstheater de Viena desde 1910. Mundial.
Goldmann, Paul (1865­‑1935), jornalista, correspondente em Heinrich Ferdinand (1878­‑1969), arquiduque, esteve activo
Berlim da Neue Freie Presse. no serviço militar entre 1914 e 1916.
Gomperz, Heinrich (1873­‑1942), filósofo, professor da Universidade Heller, Hugo (1870­‑1923), livreiro vienense, frequentemente
de Viena. satirizado por Kraus.
920 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 921
Hertling, Georg von (1843­‑1919), filósofo e político alemão, Hubert Salvator (1894­‑1971), arquiduque, filho de Franz
chanceler de Novembro de 1917 a Setembro de 1918. Salvator e Marie Valerie.
Herzberg­‑Fränkel, Leo (1827­‑1915), escritor e jornalista Irmão Willram, pseudónimo de Anton Müller (1870­‑1939),
austríaco, correspondente da Neue Freie Presse. poeta e religioso católico, professor de religião em Innsbruck,
Hindenburg, Paul von Beneckendorff und von (1847­‑1934), autor de lírica belicista.
entre 1916 e 1918, chefe do Estado­‑Maior do Exército alemão. Isabella (1856­‑1931), arquiduquesa, mulher do arquiduque Friedrich.
Hirsch, Julius Ferdinand (1874­‑1942), repórter vienense, Isabella Maria (1888­‑1973), filha do arquiduque Friedrich e da
jornalista dos quadros da Neue Freie Presse. arquiduquesa Isabella.
Hirschfeld, Ludwig (1882­‑1945), dramaturgo e jornalista
austríaco, redactor da Neue Freie Presse. Janowitz, Franz (1892­‑1917), escritor e poeta, amigo próximo
Hochsinger, Karl (1860­‑1942), médico húngaro. de Karl Kraus, não resistiu a ferimentos sofridos em combate
Höcker, Paul Oskar (1865­‑1944), autor do romance de guerra na frente italiana em 24 de Outubro de 1917, vindo a morrer
muito popular An der Spitze meiner Kompagnie (À Cabeça da no dia 4 de Novembro seguinte.
Minha Companhia). Josef (1872­‑1962), arquiduque, ocupou vários altos postos de
Hoehn, Maximilian von (1867­‑1940), major­‑general austríaco, comando na frente leste.
chefe do Departamento de Imprensa Militar. Josef Ferdinand (1872­‑1942), arquiduque, general de
Hofmannsthal, Hugo von (1874­‑1929), importante escritor infantaria durante a ofensiva nos Cárpatos.
austríaco, um dos membros mais salientes do grupo da
“Jovem Viena”. Durante a guerra, desenvolveu intensa Kappus, Franz Xaver (1883­‑1966), capitão, escritor (Novelas de
actividade publicística de sentido patriótico. Guerra, 1916), membro do Departamento de Imprensa Militar.
Hohenblum, Alfred von (1840­‑1925), grande proprietário, Karl Franz Josef (1887­‑1922), arquiduque, futuro imperador Karl I.
político agrário, celebrizou­‑se pela sua oposição ao uso de Karl Stephan (1860­‑1933), arquiduque, assumiu em 1914 o alto
plumas na moda feminina. patrocínio da Assistência aos Inválidos de Guerra.
Hollitzer, Carl Leopold (1874­‑1942), pintor austríaco, Kernstock, Ottokar (1848­‑1928), pároco de Festenburg
celebrizado pelos seus retratos, desenhos e caricaturas de (Estíria), autor de lírica patriótica e ferozmente belicista.
tema militar. Kerr, Alfred (1867­‑1948), publicista e crítico de teatro berlinense,
Hötzendorf, Franz Conrad von (1852­‑1925), chefe do Estado­ autor de lírica belicista, alvo de violentas polémicas de Karl Kraus.
‑Maior das Forças Armadas do Império Austro­‑Húngaro Klein, Ernst (1876­‑1951), jornalista e escritor austríaco, redactor
de 1912 a 1917, desempenhou um papel fundamental na da Neue Freie Presse, prestou serviço no Departamento de
preparação e condução da guerra. Imprensa Militar.
922 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 923
Kluck, Alexander von (1846­‑1934), major­‑general prussiano. Lehár, Franz (1870­‑1941), compositor austríaco, várias das suas
Knackfuss, Hermann (1848­‑1915), pintor epigonal alemão. operetas, como A Viúva Alegre, alcançaram enorme popularidade.
Kohlfürst, Armin (1880­‑1932), jornalista, membro do Leo (1893­‑1939), arquiduque, filho de Karl Stephan.
Departamento de Imprensa Militar. Léon, Viktor (1858­‑1940), libretista de operetas muito populares
Kolowrat, Alexander [Sascha] (1886­‑1927), realizador (Sangue Vienense, A Viúva Alegre, entre outras).
cinematográfico, fundador da indústria cinematográfica Leopold I (?­‑994), fundador da dinastia dos Babenberg, que
austríaca com o estabelecimento da firma Sascha­‑Filmfabrik reinaria sobre o território do que veio a ser a Áustria.
em 1910 (a partir de 1918, Sascha­‑Filmindustrie AG). Leopold Salvator (1863­‑1931), arquiduque, filho de Karl
Korngold, Erich Wolfgang (1897­‑1957), compositor austríaco, Salvator, casado com Blanka, fez carreira militar na artilharia
festejado desde criança como menino­‑prodígio. ocupando postos destacados; durante a guerra, importante
Kramer, Leopold (1869­‑1942), actor vienense. fornecedor de legumes secos.
Krobatin, Alexander von (1849­‑1933), barão, ministro da Lewald, Emmi (1866­‑1946), romancista alemã.
Guerra da Áustria­‑Hungria de 1912 a 1917. Liharzik, Franz (1847­‑1915), deputado ao Reichstag entre 1906
Kühlmann, Richard von (1873­‑1948), diplomata alemão; e 1907, fez carreira na direcção dos caminhos­‑de­‑ferro e
enquanto secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, desempenhou vários cargos políticos.
esteve envolvido nas negociações que levaram à Paz de Brest­ Lippay, Berthold Dominik (alias Berthold Lipschitz, 1864­‑1920),
‑Litovsk e à Paz de Bucareste. pintor retratista austríaco, autor de um retrato do Papa Pio X,
Kulka, Georg (1897­‑1929), escritor expressionista austríaco. na sequência do qual foi nobilitado pelo Vaticano.
Lissauer, Ernst (1882­‑1937), escritor nacionalista, publicou em
Lammasch, Heinrich von (1853­‑1920), jurista austríaco, 1914 o “Cântico de Ódio contra a Inglaterra”, um dos mais
professor de Direito Penal da Universidade de Viena difundidos poemas belicistas em língua alemã.
desde 1885, teve um papel destacado desde 1917 por acções Lloyd George, David (1863­‑1945), ministro da Guerra britânico
desenvolvidas a favor da paz; foi nomeado primeiro­‑ministro desde 1916, partidário do esmagamento total da Alemanha.
pelo imperador Karl em Outubro de 1918, vindo a renunciar Lobkowitz, Zdenko, príncipe de (1858­‑1933), aristocrata da
ao lugar menos de um mês depois. Boémia, ocupou altos cargos na corte austríaca.
Landesberger, Julius von (1865­‑1920), destacado banqueiro Löwy, Siegfried (1857­‑1931), jornalista austríaco, redactor da
austríaco. Österreichische Volkszeitung, inspirador, juntamente com
Lauff, Joseph von (1855­‑1933), autor de dramas e romances Alice Schalek, da “cruz negro­‑amarela”.
históricos e regionalistas, publicou em 1915­‑16 uma colectânea Ludendorff, Erich (1865­‑1937), general alemão, assumiu em 1916
de poemas belicistas em dois volumes. com Hindenburg o Alto-Comando das forças armadas alemãs.
924 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 925
Ludwig, Karl (1833­‑1896), arquiduque, irmão do imperador Montenuovo, Alfred von (1854­‑1927), responsável máximo
Franz Joseph, pai do herdeiro do trono, Franz Ferdinand. pelos Serviços de Administração da Corte entre 1909 e 1917.
Lueger, Karl (1844­‑1910), político cristão­‑social muito influente, Morsey, Franz von (1854­‑1926), camareiro ao serviço do
várias vezes eleito burgomestre de Viena. arquiduque Franz Ferdinand, fazia parte do séquito deste no
dia do assassínio em Sarajevo.
Mackensen, August von (1849­‑1945), marechal prussiano, na Moser, Ferdinand (1867­‑1938), pintor de cena austríaco.
Primeira Guerra Mundial chefe militar na Polónia, Sérvia e Mosse, Rudolf (1843­‑1920), importante editor de jornais
Roménia. berlinense.
Maria Annunziata (1876­‑1961), arquiduquesa, meia­‑irmã de Müller, Hans (1882­‑1950), escritor austríaco, salientou­‑se pelo
Franz Ferdinand, abadessa de um convento na Suíça desde 1894. aproveitamento oportunista da conjuntura bélica.
Maria Josefa (1867­‑1944), arquiduquesa, mãe de Karl Franz Müller, Robert (1887­‑1924), escritor expressionista e jornalista
Josef e de Maximilian; durante a guerra, esteve envolvida na austríaco.
assistência aos feridos. Myra, Betty (??­‑??), actriz do Bürgertheater de Viena.
Marie Valerie (1868­‑1924), arquiduquesa, filha mais nova de
Franz Joseph, casada com o arquiduque Franz Salvator. Nästelberger, Robert (1887­‑1942), originalmente oficial de
Marischka, Hubert Josef (1882­‑1959), cantor de operetas e carreira, foi tenor de operetas e encenador em Viena.
actor, fez depois carreira no cinema como realizador. Nepalleck, Wilhelm Friedrich von (1862­‑1924), director dos
Mars, Mela (1882­‑1919), cantora e actriz, figura importante na serviços de protocolo da corte.
cena do cabaré vienense do início do século. Niese, Hansi (1875­‑1934), actriz de sucesso do teatro popular
Martius, Karl (1879­‑1946), médico, pertenceu entre 1914 e 1916 vienense.
ao Estado­‑Maior do Exército. Nikolaievitch, Nikolai (1856­‑1929), grão­‑duque russo, chefe
Max (Maximilian Eugen Ludwig, 1895­‑1952), arquiduque, irmão do Alto-Comando entre 1914 e 1915, dirigiu a ofensiva contra
de Karl Franz Josef, com o posto de major durante a guerra. a Prússia Oriental em Setembro de 1914.
Millerand, Alexandre Étienne (1859­‑1943), político francês, Northcliffe, Alfred Charles William Harmsworth, visconde
ministro da Guerra entre 1914 e 1915. de (1865­‑1922), poderoso magnate da imprensa britânico,
Moltke, Helmuth von (1848­‑1916), chefe do Estado­‑Maior General do nomeado ministro da Propaganda por Lloyd George.
exército alemão no início da guerra, abandonou o cargo em 14 de Nothnagel, Hermann (1841­‑1905), professor de Medicina
Setembro de 1914, na sequência do fracasso da ofensiva do Marne. Interna e director dos Hospitais da Universidade vienenses.
Montecuccoli, Rudolf von (1843­‑1922), comandante­‑em­‑chefe Nyári, Rudi (??­‑??), com o irmão, Joszi, formou uma dupla
da marinha austro­‑húngara entre 1904 e 1913. musical cigana extremamente popular em Viena.
926 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 927
Odelga, Anna (1863­‑1944), dama da sociedade vienense. Radetzky, Joseph Wenzel von (1766­‑1858), famoso marechal
Orsini­‑Rosenberg, Maximilian von (1846­‑1922), camareiro austríaco.
imperial e general. Reitzes, Hans (1877­‑1935), banqueiro vienense.
Richthofen, Manfred von (1892­‑1918), famoso ás da aviação alemã.
Parma, Elias, príncipe de (1880­‑1959), meio­‑irmão da imperatriz Riedl, Ludwig (1858­‑1919), proprietário do Café de l’Europe em
Zita, chefe de Estado­‑Maior da 57.ª Divisão de Infantaria, Viena.
envolvida desde 1916 nas batalhas do Isonzo. Roda Roda, Alexander (1872­‑1945), oficial de carreira e escritor
Pattai, Robert (1864­‑1920), advogado e político austríaco, humorista austríaco, colaborador, durante a guerra, do
deputado do Partido Cristão­‑Social, entre 1911 e 1918, Departamento de Imprensa Militar.
membro da Câmara Alta do Parlamento austríaco. Rubel, Eisig (??­‑??), especulador, processado em 1917 por
Peter Ferdinand (1874­‑1948), arquiduque, irmão de Josef adulterar bebidas alcoólicas.
Ferdinand, general de infantaria. Rudolf von Habsburg (1858­‑1889), único filho varão de Franz
Pflanzer­‑Baltin, Karl von (1855­‑1925), general austríaco, Joseph, opositor decidido da política conservadora do pai,
comandou corpos de exército na Bucovina e na Albânia. suicidou­‑se em circunstâncias misteriosas.
Piccaver, Alfred (1883­‑1958), tenor inglês, estabelecido em
Viena desde 1910. Sacher, Anna (1859­‑1930), proprietária do Hotel e Café Sacher,
Poincaré, Raymond (1860­‑1934), presidente da República personalidade original da vida social vienense.
Francesa de 1913 a 1920. Salandra, Antonio (1853­‑1931), político italiano, primeiro­
Polacco, Emil (??­‑??), conselheiro comercial, esteve envolvido ‑ministro de 1914 a 1916.
em várias actividades de beneficência. Salten, Felix (1869­‑1945), escritor e jornalista austríaco,
Posse, Ernst (1860­‑1943), redactor­‑em­‑chefe do influente jornal membro da “Jovem Viena”.
nacional­‑liberal alemão Kölnische Zeitung. Salzer, Marcell (1873­‑1930), actor alemão, realizou récitas
Potiorek, Oskar Alfred (1853­‑1933), comandante­‑em­‑chefe de grande sucesso no âmbito de várias digressões junto de
do exército dos Balcãs, destituído em Dezembro de 1914 na corpos do exército durante a guerra.
sequência da perda de Belgrado. Schalek, Alice (1874­‑1956), jornalista austríaca, pertencente
Prasch, Erwin (1879­‑??), capitão austríaco, combateu no desde 1903 aos quadros da Neue Freie Presse, única mulher
Montenegro e na Sérvia e prestou serviço entre 1915 e 1917 na acreditada como correspondente na Primeira Guerra Mundial.
frente do Isonzo. Schalk, Franz (1863­‑1931), maestro austríaco, dirigente desde
Presber, Rudolf (1868­‑1935), escritor alemão, autor de literatura 1900 da orquestra da Ópera de Viena, de que viria a ser
trivial e, durante a guerra, de lírica belicista. director de 1918 a 1929.
928 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 929
Scheer, Reinhard (1863­‑1928), almirante, comandante­‑em­‑chefe Sonnino, Sidney (1847­‑1922), estadista italiano, ministro dos
da marinha alemã na Batalha da Jutlândia (Skagerrak). Negócios Estrangeiros de 1914 a 1919; assinou em 1915 com a
Schenk, Martin (1860­‑1919), actor cómico, animador do Entente o Tratado de Londres, que levou à entrada da Itália
estabelecimento de diversões Gartenbau. na guerra.
Scherl, August (1849­‑1921), influente proprietário de jornais Spitzer, Emil (1878­‑??), primeiro­‑tenente, autor de lírica belicista.
berlinense. Spitzy, Hans (1872­‑1956), ortopedista, professor da Universidade
Schneider­‑Duncker, Paul (1883­‑1956), empresário teatral de Viena.
alemão. Sternberg, Adalbert (1868­‑1930), oficial e escritor.
Schönborn­‑Buchheim, Friedrich (1869­‑1932), camareiro da Stiassny­‑Elzhaim, Felix (1867­‑1938), industrial vienense.
corte, membro da Câmara Alta húngara. Stöger­‑Steiner, Rudolf von (1861­‑1921), general de infantaria,
Schönpflug, Fritz (1873­‑1951), pintor e caricaturista, especializado comandou tropas na Galícia e na frente do Isonzo, último
em tipos vienenses e em caricaturas de militares, redactor­ ministro da Guerra da Monarquia desde Abril de 1917.
‑em­‑chefe do semanário humorístico Die Muskete. Storm, Otto (1874­‑1950), oficial austríaco, mais tarde tenor de
Schratt, Katharina von (1853­‑1940), actriz do Burgtheater, operetas.
confidente e amante de Franz Joseph desde finais dos anos Strobl, Karl Hans (1877­‑1946), escritor austríaco, correspondente
oitenta. de guerra.
Schwab, Charles (1862­‑1939), magnate do aço norte­‑americano Stukart, Moritz (1856­‑1919), conselheiro da corte, chefe do
de origem alemã. departamento de segurança da polícia vienense.
Seidler von Feuchtenegg, Ernst (1862­‑1931), ministro da Stürgkh, Karl von (1859­‑1916), primeiro­‑ministro austríaco desde
Agricultura, primeiro­‑ministro austríaco entre Junho de 1917 1911, morreu assassinado pelo político social­‑democrático
e Julho de 1918. Friedrich Adler.
Sieghart, Rudolf (1866­‑1934), influente personalidade vienense, Sukfüll, Karl (1862­‑1944), hoteleiro nas termas de Baden,
director do Banco Bodenkreditanstalt, membro da Câmara presidente honorário da Associação dos Hoteleiros
Alta austríaca. austro­‑húngara.
Singer, Emanuel von (1846­‑1929), redactor do jornal Neues Wiener Szeps, Moritz (1833­‑1902), figura de referência da imprensa vienense,
Tagblatt, de grande influência enquanto correspondente fundador dos jornais Neues Wiener Tagblatt e Wiener Tagblatt.
parlamentar, elevado à nobreza por Franz Joseph. Szögyény­‑Marich, Ladislaus von (1841­‑1916), diplomata
Slezak, Leo (1873­‑1946), famoso tenor e actor de cinema austríaco. austríaco, embaixador em Berlim de 1892 a 1914.
Smolle, Leo (1848­‑1920), inspector escolar austríaco, escreveu obras Szomory, Emil (1874­‑1944), jornalista húngaro, membro do
de história, nomeadamente, A Guerra Mundial, 1914­‑15 (1915). Departamento de Imprensa Militar.
930 Os Últimos Dias da Humanidade ÍNDICE ONOMÁSTICO 931
Tegetthoff, Wilhelm von (1827­‑1871), almirante austríaco, celebrado pelo afundamento de três couraçados ingleses no
vencedor da Batalha de Lissa contra a marinha italiana na Mar do Norte, num único dia, em 1914.
guerra de 1866. Weikersheim, Karl Ernst Bronn von (1862­‑1925), general, desde
Teisinger von Tüllenburg, Josef (1856­‑1920), oficial de alta 1891 príncipe, íntimo do arquiduque Franz Ferdinand, previa­
patente do exército austro­‑húngaro (Feldmarschalleutnant), ‑se que viesse a assumir o cargo de responsável máximo pelos
responsável pelo recrutamento. Serviços de Administração da Corte depois da subida deste
Tersztszyansky, Karl (1854­‑1921), general austríaco, comandou ao trono.
tropas nos Balcãs e na Volínia. Weiskirchner, Richard (1861­‑1926), membro do Partido
Thaller, Willi (1854­‑1941), actor popular austríaco. Cristão­‑Social, burgomestre de Viena entre 1912 e 1919.
Tiber, Ben (1867­‑1925), empresário teatral vienense. Wekerle, Alexander (1841­‑1921), político húngaro, primeiro­
Tirpitz, Alfred von (1849­‑1930), grande-almirante alemão, ‑ministro de Agosto de 1917 a Outubro de 1918.
secretário de Estado da Marinha de 1897 a 1916, Werfel, Franz (1890­‑1945), escritor expressionista austríaco,
propagandista destacado do rearmamento naval alemão. alvo frequente da sátira krausiana.
Tisza de Borosjenő et Szeged, István (1861­‑1918), político Werkmann, Karl von (1878­‑1952), último secretário do
húngaro, primeiro­‑ministro de 1913 a 1917. imperador Karl, director, desde 15 de Janeiro de 1917, dos
Trebitsch, Siegfried (1869­‑1956), escritor austríaco, tradutor de Serviços de Imprensa da Corte.
George Bernard Shaw. Werner, Fritz (1871­‑1927), tenor vienense de grande nomeada.
Treumann, Louis (1872­‑1942), actor austríaco, cantor de operetas. Wild, Josef (1881­‑1957), capitão, oficial do Serviço de Informações.
Wilhelm (1895­‑1948), arquiduque, filho de Karl Stephan,
Vittorio Emanuele III (1869­‑1947), rei da Itália de 1900 a 1946. comandou tropas em várias frentes.
Wilson, Thomas Woodrow (1856­‑1924), presidente dos Estados
Walde, Gerda (1882­‑1928), cantora e actriz de opereta, nascida Unidos da América entre 1913 e 1921, declarou, em 6 de Abril
em Viena, com uma carreira de sucesso em Berlim. de 1917, o abandono da neutralidade e a entrada na guerra;
Walterskirchen, Hubert Wilhelm Viktor von (1871­‑1916), em Janeiro de 1918, propôs um programa de paz em 14 pontos
major dos Caçadores Tiroleses, morto em combate em 21 de que serviria de base para as negociações conducentes ao
Abril de 1916 na frente das Dolomitas. armistício.
Wassilko, Nikolai von (1868­‑1924), latifundiário e deputado ao Windischgrätz, Alfred zu (1851­‑1927), estadista austríaco,
Parlamento austro­‑húngaro, casou­‑se em 1918 com a cantora presidente da Câmara Alta do Parlamento de 1897 a 1918.
Gerda Walde. Wohlgemuth, Else (1881­‑1972), actriz austríaca do Burgtheater.
Weddigen, Otto (1882­‑1915), comandante de submarino alemão, Wothe, Anny (1858­‑1919), autora de diversos romances de guerra.
932 Os Últimos Dias da Humanidade
Wydenbruck, Maria von (1859­‑1926), condessa austríaca.

Zita (1892­‑1989), imperatriz, pelo casamento com o futuro


imperador Karl em 1911.
Zois, Michelangelo von (1874­‑1945), jornalista, redactor do
Kriegsjournal (Jornal de Guerra) do 10.º Exército, publicou
textos em brochuras muito populares nos círculos militares.
Posfácio

antónio sousa ribeiro

Ao escrever, em 1951, a sua mil vezes glosada sentença de acordo


com a qual “escrever um poema depois de Auschwitz seria um
acto de barbárie”, Theodor W. Adorno não estava a formular uma
questão substancialmente nova. Estava, perante o horror abso‑
luto do genocídio nazi, apenas a radicalizar a expressão de um
problema que percorre com particular acuidade toda a história
literária do século XX: perante a violência da realidade, em que
medida é ainda possível e, ao mesmo tempo, legítima de um ponto
de vista ético a representação estética? A resposta, evidentemente,
só podia ser dada pela própria prática estética – e a verdade é que
Adorno viria depois a relativizar o significado da sua frase, ao
reconhecer, nomeadamente nas “Meditações Metafísicas” da sua
Dialéctica Negativa, que “o sofrimento sem fim tem tanto direito a
exprimir­‑se como o ser torturado tem direito a gritar” e ao encon‑
trar na obra de um Paul Celan ou de um Samuel Beckett paradig‑
mas possíveis para uma literatura depois de Auschwitz.1 É sabido,
de facto, como a tentação do silêncio acompanhou de perto a obra
de muitos autores dos mais marcantes do século passado, mas
também, do mesmo passo, como a história literária desse século
dá abundante testemunho da capacidade de transgredir os limi‑
tes daquilo “sobre que não pode falar­‑se”, demonstrando como o
poder de nomear o inominável constitui o domínio por excelência
do literário.
936 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 937

Nomear o inominável: era este o problema que, no decor‑ vienenses. Uma curta experiência jornalística iniciada aos 17 anos
rer dos anos, tinha vindo a cristalizar­‑se também como questão culminou na publicação de duas brochuras que fizeram escândalo
central da escrita krausiana. “Quem tiver alguma coisa a dizer, e deram ao autor uma notoriedade precoce em Viena: A Litera‑
avance e fique em silêncio”, afirmaria Karl Kraus, em Novembro tura Demolida [Die demolierte Literatur], 1897, uma sátira arra‑
de 1914, na sua primeira intervenção pública depois do início da sadora ao círculo esteticista da “Jovem Viena”, e Uma Coroa para
Primeira Guerra Mundial, a alocução “In dieser großen Zeit” Sião [Eine Krone für Zion], 1898, sátira ao movimento sionista
(“Nesta grande época”).2 Mas este silêncio, a única resposta pos‑ nascente. Em 1899, Kraus deu um passo decisivo, a fundação da
sível de quem queria distanciar­‑se do coro cacofónico da euforia revista Die Fackel [O Archote], de que iria publicar até ao fim da
nacionalista e belicista dos primeiros meses da guerra, vai depois vida, em 1936, um total de 922 números, totalizando cerca de 23
ser rompido por Kraus que, até ao final do conflito, a par de uma mil páginas. Trata­‑se de um empreendimento singular em qual‑
intervenção pública intensa materializada na realização de 46 quer literatura, tanto mais que, a partir de 1911, Kraus prescinde de
recitais, sobretudo em Viena, mas também em Berlim, escreve‑ colaboradores e passa a redigir a sua revista sozinho, da primeira
ria e publicaria alguns milhares de páginas. Páginas que, como o à última linha. No conjunto, deparamo­‑nos com um macrotexto
drama Os Últimos Dias da Humanidade, fazem a demonstração cuja desmesurada ambição tem sido justamente comparada com
cabal da razão por que é necessário vencer a tentação do silêncio outras grandes empresas similares da modernidade literária,
e da forma como é possível vencê­‑la, através de um “silêncio às como O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.
avessas”, como lhe chamou Walter Benjamin.3 Isto é, através de Ao longo dos anos, Kraus foi reunindo em livro muito do
uma abordagem que toma como instrumento principal a citação publicado na revista: os textos polémicos e satíricos (Moral e Cri‑
satírica do universo caótico das vozes e documentos da época, os minalidade [Sittlichkeit und Kriminalität], 1908; A Muralha da
quais, transpostos para o quadro da construção textual krausiana, China [Die chinesische Mauer], 1910; O Juízo Final [Weltgericht],
dão testemunho eloquente da violência inscrita na aparente nor‑ 1919; O Fim do Mundo por Acção da Magia Negra [Untergang der
malidade do quotidiano social austríaco e vienense, desse modo Welt durch schwarze Magie], 1922; Literatura e Mentira [Literatur
tornando possível a representação do aparentemente irrepresen‑ und Lüge], 1929; A Linguagem [Die Sprache], livro publicado pos‑
tável. E é assim que o autor satírico, cumprindo os termos progra‑ tumamente, em 1937); a obra lírica, reunida nos nove volumes das
máticos de um aforismo de 1911, não deixa que o impeçam de dar Palavras em Verso [Worte in Versen] publicados entre 1916 e 1930,
forma àquilo que o impede de dar forma. em Epigramas [Epigramme], 1927, e nas Estrofes de Actualidade
Karl Kraus nasceu em 28 de Abril de 1874, em Gitschin (Jičín), [Zeitstrophen], 1930; e os aforismos (Ditos e Contraditos [Sprüche
na Boémia Oriental. O pai, industrial abastado de origem judaica, und Widersprüche], 1909; Pro Domo et Mundo, 1912; Noite Fechada
muda­‑se para Viena com a família logo em 1877. O jovem Karl [Nachts], 1919). Mas a sua obra não se esgota no que foi vindo regu‑
cedo entraria em contacto com os círculos artísticos e intelectuais larmente a lume em Die Fackel e depois, mesmo que parcialmente,
938 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 939

transposto para a publicação em livro: além de um longo ensaio Ao longo de 1920 e 1921, a Aktausgabe seria submetida a novo
polémico de mais de três centenas de páginas, A Terceira Noite processo de revisão, que se traduziu num alargamento substan‑
de Valpúrgis [Dritte Walpurgisnacht], escrito logo em 1933, mas cial. Ressalvadas algumas excepções mais notórias, foram pou‑
só publicado postumamente, em 1952, que constitui uma das pri‑ cas as alterações dentro de cada cena, mas, em contrapartida, a
meiras confrontações de vulto com o nacional­‑socialismo recém­ arrumação respectiva foi muito alterada e, sobretudo, a dimen‑
‑chegado ao poder na Alemanha, e das traduções e adaptações são do drama cresceu de 170 para 220 cenas. O resultado é um
de Nestroy, Shakespeare e Offenbach, entre outros, há que men‑ texto novo, em que é visível, em vários aspectos que não cabe aqui
cionar igualmente alguns textos dramáticos, dos quais sobressai desenvolver, uma acentuação diferente, baseada, por um lado, na
em absoluto a “tragédia em cinco actos com prólogo e epílogo” utilização de documentos e informações só acessíveis depois do
Os Últimos Dias da Humanidade. fim da guerra e, por outro, alimentada pelo circunstancialismo
As primeiras cenas do drama, incluindo o Prólogo, foram da intervenção no contexto da consolidação da I República aus‑
escritas em Julho de 1915. A primeira indicação pública sobre a tríaca a partir de uma perspectiva que levara entretanto o autor a
obra em gestação surge no n.o 406­‑412 de Die Fackel, datado de uma solidariedade activa com o programa da social­‑democracia
Outubro de 1915, em que Kraus transcreve uma cena central (na (assim, na nova versão, cresce muito o peso das referências críticas
versão final, a última cena do Acto III), assinalando que pertence ao Partido Cristão­‑Social, que domina entretanto a cena política, e
ao fecho de um acto de “uma tragédia ‘Os Últimos Dias da Huma‑ ao jornal Reichspost, órgão oficioso deste partido). Esta nova ver‑
nidade. Um Pesadelo’”. O significativo subtítulo, “Um Pesadelo” são do drama seria publicada em Maio de 1922, numa tiragem
[“Ein Angsttraum”], viria depois a ser abandonado. No essencial, a de cinco mil exemplares, reimpressa, com o mesmo número de
primeira versão estava terminada em Julho de 1917, com a conclu‑ exemplares, em Dezembro do mesmo ano. Em vida de Kraus
são do Epílogo. Essa primeira versão, entretanto submetida a uma houve uma única reedição, numa tiragem de sete mil exemplares,
revisão bastante profunda, veio a lume, começando pelo Epílogo em 1926, numa versão praticamente idêntica à de 1922, que fixa o
(“A Última Noite”), em quatro números especiais de Die Fackel texto na forma definitiva.
publicados de Dezembro de 1918 a Setembro de 1919. Trata­‑se da Kraus incluiu com bastante frequência cenas de Os Últimos
chamada Aktausgabe (edição em actos), cujo rápido surgimento Dias da Humanidade nos seus famosos recitais públicos. Em con‑
no imediato pós­‑guerra revela bem como, uma vez desaparecidos trapartida, o drama quase não foi representado, se exceptuarmos
os constrangimentos da censura que tinham impedido a publi‑ três encenações do Epílogo, “A Última Noite”, respectivamente,
cação enquanto durasse o conflito bélico, Kraus tem pressa em em Viena, em 1923, em Teplitz­‑Schönau, para um público ope‑
intervir no novo contexto sociopolítico da recém­‑fundada repú‑ rário, em 1924, e em Berlim, em 1930. As dificuldades inevitavel‑
blica, dando à estampa a sua visão apocalíptica dos anos finais da mente suscitadas pela encenação de um drama desta dimensão,
monarquia. com a sua esmagadora variedade de cenas, lugares e personagens,
940 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 941

não são suficientes para explicar o facto de, em vida de Kraus, ele retomada em Viena, em 1980; a apresentação do drama no festi‑
não ter chegado a conhecer as tábuas do palco. Esse facto deve­‑se, val de Edimburgo, em 1983, com encenação e tradução de Robert
por um lado, à relutância do autor em ceder os direitos de repre‑ David MacDonald; a encenação de Luca Ronconi, em Turim, em
sentação a teatros em cujo critério e orientação estética não con‑ 1990; a encenação de Gorčin Stojanović em Belgrado, em 1994,
fiava e que, a seus olhos, inevitavelmente iriam adulterar a obra que explorava os paralelismos com o processo violento de dis‑
e, pior ainda, não resistiriam a explorá­‑la de um ponto de vista solução da Jugoslávia; em 1999, a encenação de Johann Kresnik,
comercial. Foi assim que Kraus recusou vários pedidos de cedên‑ em Bremen, aproveitando o espaço de um antigo bunker para sub‑
cia de direitos, entre os quais os dos dois mais famosos encena‑ marinos; a encenação de Hans Gratzer no Hotel da Linha do Sul,
dores alemães dos anos 20, Max Reinhardt e Erwin Piscator. Por no Semmering, em 2000; a apresentação no La Mama Theatre de
outro lado, como revela uma carta de 17 de Novembro de 1917, era Melbourne, com encenação de Hanspeter Horner, em 2004; e, mais
grande o seu cepticismo perante a adequação dos meios cénicos recentemente, as encenações de Hans­‑Werner Kroesinger em Estu‑
ao tipo inaudito de drama que havia criado: garda (2008), de Georg Schmiedleitner no Festival de Salzburgo e
no Burgtheater de Viena (2014) e de David Lescot na Comédie­
[O autor] não acredita minimamente que, em toda a sequência ‑Française, em Paris (2016). De assinalar ainda as muitas leitu‑
da peça, que, na verdade, só se serve da aparência dramática ras públicas de selecções do drama pelo grande actor austríaco
como um instrumento, se encontrem muitas cenas capazes de, Helmut Qualtinger (1928­‑1986).
mesmo com os melhores actores, conservar em palco, ainda Em 1930, Kraus preparou uma versão radicalmente reduzida
que aproximadamente, a vivacidade dramática que adquirem a que chamou “versão para palco” (Bühnenfassung). Esta versão,
sem dificuldade diante do leitor judicioso ou do ouvinte de que altera profundamente o texto através de cortes muito substan‑
um recital.4 ciais (por exemplo, os diálogos entre as personagens do Optimista
e do Eterno Descontente, às quais incumbe, na versão de base,
Por motivos relacionados com a intransigência dos herdeiros dos uma relevante função córica, estão por completo ausentes) e de
direitos autorais, que assumiram de modo demasiado literal a pers‑ uma remontagem integral das cenas, nunca chegou, contudo, a ser
pectiva de Kraus, seria necessário esperar até 1964 para assistir à encenada, só tendo sido publicada, por Eckart Früh, no início dos
estreia absoluta, em Viena, de uma versão de conjunto do drama, anos 90.5 O estabelecimento dessa versão mostra bem, no entanto,
encenada por Leopold Lindtberg. Desde essa data, embora com que, sem renunciar à sua concepção da primazia da linguagem e
pouca frequência, Os Últimos Dias da Humanidade têm marcado da performance verbal como modo privilegiado de produção do
presença nos palcos de língua alemã, e não só. Sem preocupação de drama, Kraus não descartava de modo nenhum a necessidade da
exaustividade, pode referir­‑se: a encenação de Hans Hollmann em dimensão visual e acústica da sala de teatro para revelar a pleni‑
Basileia, em 1974, numa versão distribuída por duas noites, depois tude do seu potencial estético.
942 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 943

Num ensaio significativamente intitulado “Karl Kraus, Escola de Danton, de Georg Büchner, com que o drama de Kraus partilha
de Resistência”, Elias Canetti designa o autor satírico vienense um modo análogo de abordar um contexto de crise histórica através
como “mestre da indignação”, vendo­‑o, nessa qualidade, como da técnica documental da montagem de citações. Num texto publi‑
absolutamente distinto de todas as outras figuras públicas da cado em Maio de 1918 em Die Fackel, Kraus vai buscar, justamente,
época.6 De facto, a sátira krausiana não se filia, no essencial, na a uma citação do texto de Büchner o que pode considerar­‑se a defi‑
tradição da sátira irónica de modelo horaciano, embora também nição de um fio condutor essencial do seu próprio drama:
a cultive; ela vem, sim, na linha da sátira patética, juvenaliana,
correspondente à raiz mais primordial do modo satírico: a praga Eles não ouvem que cada uma destas palavras é o estertor de
e a invectiva. É uma sátira absoluta pelo seu carácter omnívoro, agonia de uma vítima. Ide atrás dos vossos lugares­‑comuns até
que lhe permite incorporar os mais diversos recursos expressivos ao ponto em que eles encarnam num corpo. Olhai em volta,
e percorrer toda a paleta dos registos discursivos disponíveis, do tudo isso fostes vós que dissestes, é uma tradução mímica das
pathos da acusação e da denúncia ao cómico e ao grotesco. Mas é vossas palavras. […] Hoje em dia, tudo se trabalha na carne
também uma sátira absoluta no sentido em que parte, com incon‑ humana. É essa a maldição do nosso tempo.7
dicional intransigência, de um imperativo ético e em que está
disposta a levar a severidade do olhar que lança sobre o mundo Apesar de o autor ter caracterizado Os Últimos Dias da Humani‑
até às mais extremas consequências apocalípticas. Esse mesmo dade como uma “tragédia em cinco actos com prólogo e epílogo”, o
imperativo ético e a sua relação inseparável com a forma estética drama está a grande distância da forma clássica da tragédia, desde
da sátira krausiana são essenciais para entender um drama como logo por lhe faltar a progressão de um fio de acção orientado para
Os Últimos Dias da Humanidade. um efeito catártico. Também a figura clássica do herói trágico está
Os Últimos Dias da Humanidade é um drama sem paralelo ausente: o herói, a humanidade colectivamente culpada, é um
fácil em qualquer literatura. Não tem modelos, muito embora herói puramente negativo, cujo colapso real é inteiramente desti‑
Kraus tenha, sem dúvida, tido em mente a complexidade proteica tuído de grandeza, já que “a bala lhe entrou por um ouvido e saiu
do drama shakespeariano, de que ele próprio foi um apaixonado pelo outro” e, assim, o futuro não poderá ser senão a repetição da
divulgador nos seus recitais públicos e ao qual vai buscar, através de miséria do presente, sem qualquer perspectiva de renovação.
uma citação de Hamlet, a voz que define arquetipicamente o papel O título, Os Últimos Dias da Humanidade, define desde logo
do sujeito satírico, a quem cabe transmitir à posteridade o horror uma perspectiva apocalíptica. A banalidade desse título é apenas
de que foi testemunha, na esperança de que um futuro, mesmo que aparente: não se trata, de facto, de uma visão escatológica; para
longínquo, seja capaz de evitar que esse horror perpetuamente se Kraus, o apocalipse não se apresenta na forma de uma catástrofe
repita. Se quiséssemos ir buscar um antecedente próximo na litera‑ final, antes está desde sempre inscrito na aparente normalidade das
tura de língua alemã, talvez o encontrássemos apenas em A Morte formas do quotidiano. “O estado em que vivemos”, escreve ele num
944 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 945

aforismo de Janeiro de 1917, “é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse Na sua estrutura formal, Os Últimos Dias da Humanidade
estável.”8 Na verdade, para usar uma expressão de Walter Benjamin, representa um modelo absolutamente pioneiro de drama­
é de uma “catástrofe permanente” que se trata9 – os últimos dias da ‑documento, embora numa acepção muito diferente da que viria
humanidade acontecem, afinal, todos os dias. É por isso que na “tra‑ a ser associada a este conceito nos anos 60. No extremo, a monta‑
gédia” de Kraus quase não existe desenvolvimento dramático. Uma gem de cenas de que se compõe mostra­‑se, por definição, inaca‑
ou outra referência na primeira cena de cada um dos cinco actos bada: a ambição última do drama seria aproveitar integralmente
ou, pontualmente, noutras cenas permite reconstituir uma vaga o material inesgotável que a própria realidade vai fornecendo sem
cronologia da progressão da guerra. A acção, que se inicia, no Pró‑ cessar ao autor satírico. “Os Últimos Dias da Humanidade”, escre‑
logo, no momento dos funerais do herdeiro do trono assassinado, veria mais tarde Kraus, “compõem­‑se de mais umas 100 mil cenas,
vai­‑se situando num tempo sucessivo, embora, em muitos casos, a que só não foram escritas para não esticar demasiado a dimensão
cronologia da guerra esteja longe de ser seguida com rigor (mui‑ de uma peça que cabe sem dificuldade numa noite de teatro em
tos momentos importantes dessa cronologia nem sequer são, aliás, Marte.”10 A afirmação, no Prefácio, de que “os diálogos mais inve‑
objecto de referência). Mas a repetição da mesma matriz na cena rosímeis aqui travados foram pronunciados nesta exacta forma;
inicial do Prólogo e nas cenas de abertura dos cinco actos aponta as mais cruéis fantasias são citações” corresponde inteiramente à
para uma realidade que, no essencial, permanece estática – nada verdade. De facto, a composição do drama baseia­‑se em boa parte
acontece de novo que não esteja já inscrito na lógica profunda de na montagem de citações, provenientes, na esmagadora maioria,
uma sociedade para a qual a guerra é um estado de coisas normal. de fontes da imprensa. Muitas dessas fontes são identificáveis com
É a falta de desenvolvimento dramático que permite também que relativa facilidade, desde logo porque parte da matéria documen‑
a posição relativamente ao conjunto de muitas das cenas, por via tal aproveitada para Os Últimos Dias da Humanidade foi tam‑
de regra inteiramente autónomas, seja permutável sem nenhuma bém utilizada por Kraus nos sucessivos números de Die Fackel,
dificuldade. Deste modo, a sequência dramática, embora condu‑ publicados ao longo dos anos da guerra e nos quais se encontram
zindo ao momento da derrocada final, na forma de uma espécie inúmeros paralelismos com o texto do drama. Na verdade, desde
de contagem decrescente, está estruturada, no essencial, em torno cedo Kraus vinha a desenvolver nas páginas da revista a técnica
da presença recorrente das mesmas personagens e da variação dos da glosa satírica, sem dúvida um dos elementos mais modernos
mesmos motivos. Estes confluem, no fim de contas, na encenação e radicais da sua poética: a glosa permite a perspectivação satí‑
daquela “banalidade do mal” para que, a propósito do processo de rica de textos, normalmente colhidos na imprensa, autênticos
Eichmann, Hannah Arendt viria a apontar na sua reflexão sobre os objets trouvés, através da sua incorporação no discurso krausiano
protagonistas dos crimes nazis, e que está já integralmente diagnos‑ e do enquadramento através de diferentes formas de comentário.
ticada no drama de Karl Kraus no relativo às “figuras de opereta” Esta técnica é experimentada com especial acuidade a partir de
que representam a “tragédia da humanidade”. 1912, altura em que é utilizada para potenciar a crítica à cobertura
946 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 947

jornalística das Guerras dos Balcãs; a partir de 1915, quando inicia Moritz Benedikt, director do mais influente jornal vienense, a
a redacção do seu drama incomensurável, Kraus está em condi‑ Neue Freie Presse, surge no Epílogo do drama encarnando a figura
ções de usar esse instrumento de modos infinitamente subtis. do “Senhor das Hienas”). Ela não é responsável simplesmente na
É assim que o que, à primeira vista, se afigura inverosímil se sua função de ateadora de incêndios, como instigadora da política
encontra perfeitamente atestado, como acontece – um exemplo belicista e porta­‑voz do ódio nacionalista, redundando no pro‑
entre muitos – no caso do postal escrito pelo general Auffenberg a cesso de desumanização bem representado nas cenas 27 e 28 do
Ludwig Riedl, proprietário de um conhecido café vienense (cena 16 Acto I através do contraste brutal entre a mensagem de paz de
do Acto I), descoberto por Kraus no Illustriertes Wiener Extrablatt Bento XV e a ferocidade de um editorial de Benedikt;11 é­‑o, sobre‑
(a Aktausgabe de 1919 inclui um fac­‑símile da página do jornal). tudo, enquanto paradigma de um modelo de comunicação que
Nalguns casos, o autor viria a fornecer ele próprio a prova docu‑ reduz a linguagem à simples mecânica do lugar­‑comum e está,
mental, como relativamente à cena entre o imperador Wilhelm e assim, na raiz de uma radical indiferença perante todos os valores,
os generais acrescentada à edição de 1922 (cena 37 do Acto IV), a a começar pelo valor da vida humana. A “Journaille”, no expres‑
qual, aparentemente de pura invenção burlesca, traz ao palco situa‑ sivo trocadilho recorrentemente utilizado por Kraus, protagoniza
ções que estão integralmente documentadas em várias publicações por excelência um uso da linguagem que serve à mitificação da
memorialísticas do pós­‑guerra. Noutros casos, sobretudo quando realidade e à banalização da violência, tornando­‑se no órgão por
a informação chegou a Kraus por via privada, através, nomea‑ excelência do “apocalipse estável”. Foi assim que, aos olhos do
damente, de correspondência enviada por um dos seus muitos autor satírico, pôde gerar­‑se a “aventura tecno­‑romântica”, já que
informadores, nem sempre a fonte é identificável. Mas mesmo o horror da guerra moderna, com o seu enorme potencial de des‑
quando as aparências não apontam nesse sentido, como acontece, truição, não podia subir à consciência dos que, embalados por cli‑
por exemplo, com a carta escrita pela mulher de Postabitz (cena chés de heroicidade, perdida a noção da distância entre as palavras
34 do Acto V), vem a revelar­‑se que o que se afigura ficcional se e os actos, “sonharam conquistar o mercado mundial – o fim para
limita, basicamente, à reprodução de um documento verídico. Em que nasceram – envergando uma armadura de cavaleiro”, como
geral, a citação – que tanto pode reproduzir enunciados extensos escreve o autor no Prefácio programático que antecede o drama.
como, muitas vezes, limitar­‑se à frase ou mesmo ao simples vocá‑ A desproporção entre os meios de destruição em larga escala pos‑
bulo (“Stahlbad”, “banho de aço”, não é mais do que uma citação sibilitados pelos avanços da técnica e a irresponsabilidade e insig‑
de um discurso de Hindenburg, e exemplos análogos poderiam nificância moral dos que têm o poder discricionário de utilizar
multiplicar­‑se) – constitui a essencial arma satírica utilizada. esses meios é um dos essenciais motivos condutores do drama.
Para Kraus, a imprensa, como signo do conjunto de mecanis‑ Em vez de se cobrirem de glória, como sugere o anacronismo de
mos a que Adorno e Horkheimer viriam mais tarde a chamar a um imaginário cavalheiresco, os combatentes arriscam­‑se a ser
“indústria da cultura”, é a grande responsável pela guerra (assim, vítimas do gás de cloro, propiciando a Kraus o trocadilho de uma
948 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 949

investida “cloriosa”. Recorrente, em muitas variações, ao longo do Salta à vista o carácter unidimensional dessas figuras. Não há
drama, o motivo da “aventura tecno­‑romântica” é uma das várias qualquer traço de densidade psicológica, que, por definição, as
dimensões em que se revela de modo flagrante a actualidade de personagens não possuem. Não existe, assim, uma preocupação
Os Últimos Dias da Humanidade. É uma aventura que só pôde de realismo, as personagens surgem como simples representantes
ganhar forma através da inculcação de uma retórica bélica que se de uma doxa colectiva, de um senso comum materializado nos
substitui à percepção da realidade dos corpos humanos destroça‑ clichés da linguagem da imprensa. Elas coincidem exactamente
dos e violentados; a cortina dos lugares­‑comuns torna invisível o com a sua função, existem apenas na absoluta exterioridade de
estendal de violência insensata que constitui o substrato da expe‑ um discurso de que, no limite, são simples porta­‑vozes. Persona‑
riência concreta das vítimas. gens como a jornalista Alice Schalek limitam­‑se a debitar o texto,
Dado o diagnóstico essencial do peso dos usos irresponsá‑ autêntico, dos seus artigos de jornal. É assim, aliás, que um dos
veis da linguagem na culpa colectiva, não surpreende a represen‑ aspectos cómicos explorados à saciedade no drama consiste, jus‑
tação proporcionalmente elevada que têm no drama figuras de tamente, nos efeitos de contraste, muitas vezes grotescos, resul‑
escritores e jornalistas ou aquelas personagens que, como, entre tantes da transposição de fragmentos de discurso escrito para a
várias outras, o Assinante, o Patriota ou o Velho Biach, têm sim‑ oralidade da situação teatral.
plesmente por função papaguear mecanicamente fragmentos de Um lugar especial está reservado ao Eterno Descontente e ao
textos de imprensa, assimilados como artigos de fé. O universo Optimista. Por força da inter­‑relação dialógica com o Eterno Des‑
extremamente amplo das personagens combina inúmeras figu‑ contente, o Optimista escapa de algum modo à unidimensionali‑
ras históricas, a começar pelos imperadores da Alemanha e da dade da generalidade das personagens, mesmo que a sua função
Áustria­‑Hungria, protagonistas da aliança funesta recorrente‑ principal consista, sem dúvida, em “dar as deixas” ao seu interlo‑
mente tematizada em Os Últimos Dias da Humanidade, com não cutor. Por seu lado, o Eterno Descontente (em que é corrente ver
menos personagens fictícias. No conjunto, obtém­‑se um pano‑ um alter ego de Kraus, se bem que não deva perder­‑se de vista o
rama muito amplo, que vai desde as mais altas esferas da política facto elementar de que se trata de uma personagem dramática e,
e da sociedade até ao vienense comum. Por vezes, sobretudo na portanto, configurada de acordo com as exigências de uma lógica
última parte do drama, com particular realce para as visões da ficcional) é a voz satírica que acompanha a acção do drama, numa
cena final – pense­‑se, por exemplo, no quadro que mostra os cadá‑ função de comentário de carácter córico que vai fornecendo ele‑
veres das crianças do afundado paquete Lusitania, baloiçando nas mentos fundamentais de perspectivação. Cabe­‑lhe, nomeada‑
ondas e balbuciando uma rima infantil –, surgem figuras apre‑ mente, uma das conclusões do drama, através do monólogo final
sentadas exclusivamente no papel de vítimas. No geral, todavia, é (cena 54 do Acto V), que oferece, em tom patético e apocalíptico,
sobretudo o universo esmagador dos culpados e dos cúmplices do uma súmula da acção – da acção do drama e, simultaneamente, da
estado de coisas que está representado. acção histórica real. Note­‑se, aliás, que o carácter aberto da forma
950 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 951

dramática escolhida por Kraus se manifesta na existência de três verbal que mesmo o leitor de língua alemã dos nossos dias não
finais diferentes e autónomos: além do Epílogo, “A Última Noite”, será, seguramente, capaz de apreender na íntegra sem o recurso a
o monólogo final do Eterno Descontente que acabei de referir e meios auxiliares.
a cena “Banquete de oficiais” (cena 55 do Acto V). Esta cena, a É na subtil diversidade dos múltiplos registos de linguagem do
mais longa do drama, serve de contraponto ao monólogo final do original que residem, sem dúvida, os mais importantes obstáculos
Eterno Descontente, evoluindo de um registo de opereta ou de à tradução. De facto, a intraduzibilidade de Os Últimos Dias da
cabaré para um cenário apocalíptico, em que as visões na parede Humanidade, apesar de infirmada por traduções bem­‑sucedidas
evocam a cena bíblica do banquete de Nabucodonosor, sem deixar em várias línguas (existem, presentemente, traduções integrais em
de ecoar igualmente a cena shakespeariana de Ricardo III ator‑ castelhano, italiano, francês, inglês, checo, húngaro e japonês), con‑
mentado pelos fantasmas das suas vítimas na noite que antecede a tinua a constituir ainda hoje um lugar­‑comum muitas vezes repe‑
batalha final. Tecnicamente, embora as pormenorizadas didascá‑ tido. A tradução portuguesa integral – baseada na ampla selecção,
lias permitam à fantasia do leitor visualizar com perfeita exactidão de 115 cenas, saída em 2003 sob os bons auspícios da editora Antí‑
as situações sucessivamente evocadas, a sequência de visões exigi‑ gona e agora inteiramente revista – parte, naturalmente, da implí‑
ria a projecção de imagens cinematográficas, mais uma marca da cita recusa desse postulado. O tradutor está consciente, melhor do
modernidade formal do drama e da complexidade de uma estru‑ que ninguém, das dificuldades tantas vezes quase insuperáveis sus‑
tura composicional assente numa técnica de montagem. citadas pela transposição de um texto dramático tão singular. Em
Uma das dimensões essenciais dessa técnica de montagem está diferentes aspectos, como no respeitante à variedade de registos,
naquilo que pode designar­‑se por fonomontagem, isto é, a combi‑ as perdas são inevitáveis, mormente numa língua como a portu‑
nação entre, por um lado, uma multiplicidade de efeitos acústicos guesa, que não dispõe de dialectos urbanos e nem de longe apre‑
(a começar pelos pregões que vão ecoando ao longo do drama senta diferenças regionais ou sociolectais tão significativas como as
e a acabar na variada utilização de trechos musicais, incluindo que se encontram no seio da língua alemã. Mas o acto de tradução,
o recurso a formas próximas da opereta) e, por outro lado, uma como propõe o próprio Kraus através de um intraduzível trocadi‑
enorme variedade de registos discursivos. Não se trata apenas do lho, joga­‑se na transmutação do verbo “übersetzen” (“traduzir”)
registo coloquial, omnipresente, que é um dos principais meios na fórmula imperativa “üb’ ersetzen!” (“aprende a substituir!”).
ao serviço do subtil jogo de contrastes entre o cómico e o paté‑ O seu critério de validade decisivo há­‑de ser sempre o da forma
tico, mas também dos dialectos, a começar, evidentemente, pelo dessa substituição, isto é, há­‑de medir­‑se pela eficácia das soluções
dialecto vienense, mas com uma presença importante do dialecto obtidas na língua de chegada. Assim, a tentativa – se bem ou mal‑
berlinense e, sobretudo, do jargão dos judeus austríacos, carac‑ sucedida, caberá ao leitor e ao espectador ajuizar – de “substituir”
terístico de camadas sociais oriundas do Leste e só parcialmente em português a diversidade discursiva do original socorreu­‑se,
assimiladas. No conjunto, resulta uma impressionante paleta como não podia deixar de ser, dos instrumentos disponíveis,
952 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 953

procurando explorar na máxima amplitude os registos coloquiais dificilmente ao alcance de leitores não­‑vienenses e hoje obscu‑
e mesmo, onde o original o consentia, o calão. ros para a grande maioria dos leitores. Em muitos casos, o sen‑
Não vou esmiuçar aqui o sentido das muitas opções que houve tido paradigmático suscitado pelas estratégias de ficcionalização
que ir fazendo ao correr do caminho, longo e difícil, que levou à torna relativamente irrelevante a exacta identificação factual. Nou‑
versão portuguesa que agora se publica.12 Apenas uma referên‑ tros casos, todavia, essa identificação pode acrescentar elementos
cia aos nomes das personagens fictícias, que assumem, com fre‑ importantes para a compreensão de passos de leitura complexa,
quência, uma função de trocadilho ou servem à caracterização nomeadamente também quando respeita a elementos fraseológi‑
das figuras, na boa tradição, aliás, do teatro popular vienense de cos assentes em lugares­‑comuns da época ou a citações literárias
Johann Nestroy. Nalguns casos exigidos por uma melhor com‑ hoje já não correntes. Achou­‑se, pois, adequado acrescentar ao
preensão do contexto, o sentido desses nomes vem explicado nas presente volume um índice onomástico exaustivo, bem como um
notas finais; prescindiu­‑se, no entanto, de os traduzir no texto, conjunto relativamente extenso de notas aos diferentes actos.13
usando­‑se sempre a forma original. De facto, embora seja mui‑ Os últimos dias da humanidade, no sentido de Karl Kraus, são
tas vezes possível encontrar formas equivalentes, o aportuguesa‑ os que continuamos ainda a viver todos os dias. O leitor de hoje
mento dos nomes afigurou­‑se quase sempre incompatível com a não deverá, pois, estranhar se os lugares­‑comuns papagueados
integridade do contexto do drama. Acresce que o efeito cómico de pelo Assinante e o Patriota ou a retórica belicista de uma Alice
nomes como Tschibulka von Welschwehr ou Schlepitschka von Schalek “incorporada” nas operações militares lhe fizerem vir
Schlachtentreu é irreproduzível em qualquer outra língua, não irresistivelmente ao espírito a reportagem ou o editorial que aca‑
apenas pelo jogo com valores fonéticos, mas também porque esse bou de ler no seu jornal do dia ou da véspera. É o significado para‑
efeito assenta em boa parte em inimitáveis efeitos de contraste – digmático do diagnóstico traçado que distingue o drama de Kraus
nos casos vertentes, entre um nome de raiz eslava e um apelido de do grosso da literatura sobre a guerra. A actualidade de Os Últimos
raiz germânica com um sentido bélico­‑nacionalista (Welschwehr: Dias da Humanidade não reside, de facto, apenas na sua porten‑
muralha anti­‑gaulesa; Schlachtentreu: fiel nas/às batalhas). tosa diatribe antimilitarista e no “ódio absoluto contra a guerra”
A sátira, por definição, é sempre situada, isto é, assenta na capa‑ (Canetti) que ela inspira. Reside, por um lado, na persistência dos
cidade de transformar em exemplo paradigmático o envolvimento seus motivos, nomeadamente o da imprensa, na forma de um
muito próximo numa observação local. Por isso, nada é demasiado discurso virtual, hoje elevado à infinita potência, que se substi‑
insignificante para escapar à atenção dela, capaz de apreender o tui à experiência e assim torna invisível a violência do sofrimento
sentido cósmico do que se passa “na esquina da Sirk”. O texto de concreto de seres humanos; e reside, do mesmo passo, na agu‑
Os Últimos Dias da Humanidade está, assim, povoado de alusões, deza do olhar impiedoso lançado sobre a forma como um estado
não apenas a pessoas e acontecimentos mais ou menos facilmente de excepção se transforma em revelador da normalidade social,
identificáveis, mas também a situações, nomes e locais já na época um olhar sismográfico tão sensível aos sintomas da catástrofe
954 Os Últimos Dias da Humanidade Posfácio 955

como desperto para a possibilidade de salvação, contida na utopia 1 Theodor W. Adorno, Negative Dialektik. Frankfurt am Main:
de uma linguagem outra de que a sátira absoluta oferece a imagem Suhrkamp, 1973, p. 355.
2 Die Fackel n.º 404, Dezembro de 1914, p. 2.
negativa.
3 Walter Benjamin, “Karl Kraus”, in W. Benjamin, Gesammelte Schriften.
Org. Rolf Tiedemann/Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main:
Um projecto da magnitude do que agora apresenta os seus resul‑ Suhrkamp, 1980, vol. 4, p. 338. Este texto foi incluído por João Barrento
tados não pode fazer­‑se sem beneficiar de apoios e incentivos, que na selecção dos ensaios sobre literatura de Benjamin por si organizada
e traduzida (Walter Benjamin, Ensaios sobre Literatura. Lisboa: Assírio
cumpre enumerar em testemunho de gratidão. Em momentos e
& Alvim, 2016, p. 209­‑251).
contextos diferentes, Sigurd Paul Scheichl (Innsbruck), Eckart 4 Apud Karl Kraus, Die letzten Tage der Menschheit: Tragödie in fünf
Früh (†) e Gerald Krieghofer (Viena) foram interlocutores impor‑ Akten mit Vorspiel und Epilog. Org. Christian Wagenknecht. Frankfurt
tantes para o meu trabalho. A amável insistência de Luís Oliveira, am Main: Suhrkamp, 1986, p. 781­‑783.
5 Karl Kraus, Die letzten Tage der Menschheit: Bühnenfassung des Autors.
editor da Antígona, foi determinante para que viesse a lume a
Org. Eckart Früh. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.
ampla selecção de 2003 atrás referida. Pude, na altura, beneficiar 6 Elias Canetti, “Karl Kraus, Schule des Widerstands”, in E. Canetti, Das
do apoio de Manuel Portela, que leu essa tradução com a atenção Gewissen der Worte: Essays. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch
que põe em tudo o que faz. A tradução integral que agora se publica Verlag, 1982, p. 47.
7 “Der begabte Czernin” [“O talentoso Czernin”], Die Fackel n.º 474­‑483,
não teria sido possível sem a corajosa decisão do Teatro Nacional
Maio de 1918, p. 20.
São João, através de Nuno Carinhas e Nuno M Cardoso, de levar 8 Karl Kraus, O Apocalipse Estável: Aforismos. Trad. António Sousa
à cena, em tempos pouco propícios a tais ousadias, um texto tanto Ribeiro. Lisboa: Fyodor Books, 2015, p. 74.
tempo tido por irrepresentável. João Luís Pereira, Pedro Sobrado 9 Walter Benjamin, “Zentralpark”, in W. Benjamin, Gesammelte Schriften,
vol. 2, p. 683.
e Margarida Baldaia leram e comentaram a tradução com um pro‑
10 Die Fackel n.º 640­‑648, Janeiro de 1924, p. 7.
fissionalismo inexcedível que contribuiu para melhorar um sem­ 11 Como tantas outras, estas duas cenas baseiam­‑se numa glosa satírica
‑número de pormenores. A todos, um bem-haja. publicada a abrir o n.º 406­‑412 (Outubro de 1915) de Die Fackel: sob o
simples título “Duas Vozes”, o texto limita­‑se a transcrever, em colunas
paralelas, o apelo do Papa e o editorial da Neue Freie Presse.
12 A tradução baseia­‑se no volume correspondente da edição das obras de
Karl Kraus da responsabilidade de Christian Wagenknecht (Karl Kraus,
Die letzten Tage der Menschheit: Tragödie in fünf Akten mit Vorspiel und
Epilog. Org. Christian Wagenknecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).
13 Entre os vários meios auxiliares hoje felizmente disponíveis, merece
destaque, e serviu de indispensável vade­‑mécum para a construção
do aparato de anotações do presente volume, o glossário de Agnes
Pistorius, “kolossal montiert”: Ein Lexikon zu Karl Kraus “Die letzten
Tage der Menschheit” (Viena: Ibera, 2011).
Coleção Teatro Nacional São João

1 O Cerejal 12 Como Queiram


de Anton Tchékhov de William Shakespeare
trad. António Pescada trad. Daniel Jonas

2 O Café 13 O Doente Imaginário


de Carlo Goldoni de Molière
trad. Fernando Mora Ramos/ trad. Alexandra Moreira da Silva
Isabel Lopes
14 O Fim das Possibilidades
3 Platónov de Jean­‑Pierre Sarrazac
de Anton Tchékhov trad. Isabel Lopes
trad. António Pescada
15 Neva
4 O Concerto de Gigli de Guillermo Calderón
de Tom Murphy trad. Joana Frazão
trad. Paulo Eduardo Carvalho
16 Rei Lear
5 Os Europeus de William Shakespeare
de Howard Barker trad. Fernando Villas­‑Boas
trad. Francisco Frazão
17 Os Últimos Dias da Humanidade
6 Woyzeck de Karl Kraus
de Georg Büchner trad. António Sousa Ribeiro
trad. João Barrento

7 Antígona
de Sófocles
trad. Marta Várzeas

8 O Avarento
de Molière
trad. Alexandra Moreira da Silva

9 Emilia Galotti
de Gotthold Ephraim Lessing
trad. João Barrento

10 O Despertar da Primavera
de Frank Wedekind
trad. João Barrento

11 Ah, os dias felizes/Não Eu


de Samuel Beckett
trad. Alexandra Moreira da Silva/
Paulo Eduardo Carvalho

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