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‫کرن‬

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UNIVERSIDAD COMPLUTENSE

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|
JLI
R.24 5.451 FA
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO 3234

THEATRO DE MOLIÈRE
PRIMEIRA TENTATIVA
111021
TARTUFO
COMEDIA VERTIDA LIVREMENTE
E

ACCOMMODADA AO PORTUGUEZ

SEGUIDA DE UM PARECER

PELO ILL.M. EX.MO SR.

JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL

POR ORDEM E NA TYPOGRAPHIA

DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA

1870
( 2300 5844
E
A

JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL

ESPECIALMENTE COMO DRAMATURGO E ESTADISTA FILOSOFO

POR CIMA DE TODAS AS OUTRAS SUAS COROAS


MORAES E LITTERARIAS

TRIBUTO RESPEITOSO

DO

SEU CONFRADE E OBRIGADO AMIGO

A. F. de Castilho
1

FA

.
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL
ORADADDOBRODROS

Aqui nem se invocam nem se vilipendiam artes


poeticas ; dá-se chãmente conta e razão do que se
fez.
Cremos d'alma e coração em Molière, com quanto
nos não atrevamos a proclamal-o, como faz o nosso
amigo Julio Janin, o primeiro poeta do universo ; e
a nossa razão para isso é que primeiro poeta do uni
verso, absolutamente, nunca o houve, nem ha, nem
pode haver ; mas se uma explosão de enthusiasmo
patriotico e poetico, sublimado até ao impossivel, me
rece venia, não lh'a havemos nós de recusar quando
se trata de culto a Molière.
Foi Molière, no consenso universal, poeta mora
lista dos mais finos quilates, e mestre, que o ha de
ser no theatro , e do theatro, para todo sempre.
No farto catalogo das suas comedias algumas avul
tam ainda hoje havidas por eternos e nunca excedi
dos exemplares de graça, verdade, e sã doutrina.
Entre as que assim avultam, avulta mais que todas
a do Tartufo.
VIII ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

Não ha povo de mea civilisação litteraria , que não


tenha aspirado a passar, com mais ou menos fortuna,
ou desfortuna, para a sua lingua vulgar este monu
mento de inescurecivel genio, que é, ainda por cima ,
para todos os povos e em todas as edades, proveito
sissima lição.
Deixadas no silencio, em que merecida e irrevoga
velmente cairam, as traducções que em nossa lingua
se perpetraram d'esta e d'outras comedias do grande
homem , pesava-nos que ninguem , dotado de alguma
força e muito boa vontade, se aventurasse à façanha
de o trazer para entre nós.
Cresceu-nos este pesar, quando, pelos fins do anno
de 1866 , assistimos em Paris a uma representação
do Tartufo, no insigne theatro da Comedia Franceza.
Deram-nos tentações de arcar com o gigante, mas
reparámos tambem em nós, e cohibimo-nos ; não nos
sentiamos David para tão descommunal duello.
Restituidos aos applicados ocios do nosso recan
tinho, quando nem já talvez nos lembravam aquel
las temerarias veleidades, procura-nos o nosso distin
cto e ousadissimo actor José Carlos dos Santos, e nos
roga empenhadamente lhe passemos a alexandrinos
portuguezes , para a sua festa no theatro do Principe
Real, a comedia do Tartufo. Regeitou -nos escusas, e
constrangeu-nos a afiançar-lhe que pelo menos expe
rimentariamos a mão em trabalho de si tão arriscado
e melindroso.
Pozemo-nos a elle incessantemente, e em vinte dias
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL IX

contados, podemos escrever-lhe que se achavam em


fim os seus desejos preenchidos.
0 Tartufo portuguez foi lido perante um audito
rio explendido, a convite e no proprio theatro do
actor empresario. Applaudiu-se Molière, copiaram-se
logo os papeis, e tudo augurava optimo exito á re
presentação, quando a doença de uma das principaes
actrizes veiu embargar, e afinal tolheu , o nosso já en
tão commum empenho .
Inaugura -se o theatro da Trindade com optimas
fadas, ao que parece, e sob a direcção de um cava
lheiro entendido, pratico, activo, arrojado, escriptor
elle proprio e poeta. Mandámos adiante a tentar
aquelle vau o Medico á força, que já havia salvado
na corte de Luiz xiv outra das obras primas do seu
auctor : 0 Misanthropo.
O Medico foi benignissimamente acolhido do pu
blico ; deliberámo-nos, portanto, a offerecer -lhe tam
bem ali o Tartufo, e para esse fim o entregámos á
empresa, ao tempo que a nossa Academia Real das
Sciencias nos estaya já fazendo a honra de o estam
par.
Até aqui a historia da comedia ; agora algumas pa
lavras, que se não podem escusar, sobre o escripto.
Haviamol-o nós entregue ao theatro do Principe
Real, e ao da Trindade o entregamos tambem, tal
qual nos saira da primeira fundição, isto é, copia li
vre do francez para portuguez.
Tiveramos, e ainda agora temos por axioma, que
X ADVERTENCIA INDISPENSAVEL ,

uma comedia de todo independente de circumstan


cias historicas ou pessoaes peculiares da nação onde
originariamente appareceu, não só é licito, senão lou
vavel (e quizeramos até dizer obrigatorio), affeiçoal-a
o traductor, quanto a sua habilidade o permittir, aos
usos e costumes da gente para onde a traslada, em li
cuja lingua escreve, e com cujo pensar e sentir deve
procurar que ella se conforme o mais escrupulosa
mente que ser possa, para que mais e melhor lhe NE
creiam n'ella, e mais e melhor lhe tomem e assimi H
lem a doutrina, se n'ella a ha. É quasi o caso do
Segnius irritant animos demissa per aurem,
Quam quae sunt oculis subjecta fidelibus, et quae
Ipse sibi tradit spectator.

O caso e enredo do Tartufo não tinham de certo


occorrido em povoação alguma do globo, posto que,
ainda mal, por toda a parte se haverão dado succes
sos parecidos.
Molière suppoz na sua terra a fabula cujo era
creador; se houvesse nascido em Castella, tel-a -hia u
supposto castelhana, italiana em Italia, e em Por
tugal portugueza; pois isso que elle houvera feito
sem nenhuma duvida, foi o que nós fizemos, nacio
nalisando -o ; e não serão por certo os nossos conter
raneos, que nos levem a mal o termos temperado ao
seu paladar a substancia d'este acepipe tão saudavel.
Pena tivemos nós, confessamol-o, de não havermos
podido crismar até o nome do protogonista, que para
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL XI

ahi nos ficou destoando não pouco entre todosos ou


tros nomes da nossa creação ;

......delicta tamen , quibus ignovisse velimus.

Á necessidade de tornar a coisa conterranea acres


cia, como que harmonicamente, a conveniencia de a
figurar contemporanea ou quasi contemporanea. Eras
constitucionaes não nos serviam para isso ; n'estas,
aquelle desenlace era impossivel ; necessitava- se de
um reinado absoluto, e queria-se que não fosse re
moto . Occorreu -nos o de D. José.
Ahi se nos deparava um ministro omnipotente, a
quem para monarcha só minguava o titulo, homem
de grandiosa cabeça, resoluto, severo, inimigo irre
conciliavel e inflexivel de hypocritas, zelador summo
dos direitos magestaticos, e galardoador de serviços
ao estado . Tirámos do vago em que laborava, na
peça original e na nossa primitiva traducção, a im
portante figura lá do exempt, cá do ministro ; e apre
sentámos o marquez de Pombal, unico braço real em
toda a historia portugueza, que poderia dar aquelle
corte decisivo, sem o qual a acção não era suscepti
vel de desfecho, prompto como raio, prosperrimo
como a Providencia. Estamos ouvindo exclamar para
aqui o mestre :
Et dignus nodo vindex et vindice nodus.

Esta leve modificação nos pareceu indispensavel


XII ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

introduzir na comedia já depois de feita, copiada ,


distribuida, e quasi de todo impressa .
Se porém a idéa destoar, por qualquer ponde
ração que seja, se, por exemplo, se disser que a
figura historica do marquez não era para só se des
cobrir de relance, n'uma unica scena , e ao finalisar
do espectaculo, não nos queimemos de parte a par
te o sangue litigando ; só expomos isto sem perti
nacia : o tomo real de um papel dramatico não de
pende do muito apparecer e muito fallar do perso
nagem, mas sim do que elle influe na sorte dos ou 31

tros personagens. Estirados discursos podem não en


cerrar tanta sublimidade como aquellas duas pala
vras só por si « fiat lux. » Coisas d'estas não se le
vam por conta ou medida ; hão de se pesar ; e só o
fiel da balança, quando não torcido, é que demos
tra o que ellas valem .
Mas nada d'isto, que aliás é obvio , e se nos figura
9

incontestavel, nos cançaremos em allegar ; até con


tra a nossa consciencia, já d’aqui fazemos bom barato
do anti-jesuita marquez de Pombal, para o que basta
que supprimam no acto v, scena 1, pagina 155 dois .

versos :

Co'o marquez de Pombal ministro omnipotente ,


não ha poder que salve homem que ao throno attente ;

e risquem da scena vi do mesmo acto est'outros dois


versos :
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL XIII

O marquez de Pombal ! Ai virgem das mercês !


Estala emfim o raio ! O marquez ! O marquez !
Com isto só, e substituido nas respectivas indica
ções o nome do marquez, pelo completamente insi
gnificativo de ministro sem mais nada, já deixamos
in limine perimidos esses escrupulos.
Carta branca ao nosso discreto empresario : ainda
que se trata de um ministro, não fazemos d’isto, como
dizem, questão ministerial.
Outro reparo cuido eu que se poderia apresentar
contra a comedia, ao qual , verdade verdade, sentimos
um pouco mais de substancia. Dirá alguem : -a co
media consagrada pela veneração do mundo, gosa-se
da magestosa inviolabilidade de um colosso de Phi
dias ; sobrepuja até a colossos de Phidias. É santa ,
augusta, intangenda como o divino profeta de Miguel
Angelo; dispensa ornamentos ; se lh'os impozerem,
com a sua propria formosura os affeia ; sacode-os ,
repulsa -os de si como sacrilegos .
Logo o final que ousámos acrescentar ao quarto
acto, e bem assim as duas ultimas scenas do quinto,
ficam sendo inadmissiveis, são enxertos importunos,
que roubam a substancia á arvore : importa arran
cal-os desde já .
Pois que os arranquem muito nas boas horas, e
os queimem ; porém saibam primeiro a historia e os
porquês de taes inserções ; já pode ser que nos alli
viem de todas as censuras e penalidades canonicas.
Distribuidos, por accordo entre nós e o sr. Palha,
XIV ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

os papeis da comedia, como ella primitivamente se


achava, viu-se com magua, que nos ficava de fóra o
nosso Taborda, o artista eminente , que tanto contri
buira para a boa fortuna do nosso Medico á força .
Não era ingratidão engeital-o agora quando se tratava
de obra de muito maior tomo ? Oh ! se eral e tanto
mais feia ingratidão, quanto elle proprio não dissi

!
mulava o gosto que lhe daria representar no Tar
tufo, ainda que não fosse, dizia elle, senão alguma
parte bem secundaria, um recadinho de meia duzia
de versos. Dictava -lhe aquillo o affecto com que elle
retribue ao nosso .
Tinhamos pois de saldar uma divida de agradeci
mento . Mas como ?
Onde e de que modo se iria embeber em tão com
pacta, em tão bem acabada comedia uma figura nova ?
Toda uma noite se nos desvelou n'este cuidado, até
que a abençoada luz da madrugada nos acudiu com
a lembrança do remedio, que para logo tratámos de
manipular.
Improvisámos esse quinteiro, honrado amigo da
casa, caracter meiado de comico e affectivo, intei
ramente pelo genio do nosso Taborda.
O quarto acto no original, e por tanto na nossa ver
são tambem, acabava (a verdade ha-de-se dizer toda)
>

um tanto mortiço , coisa dessaborosa, e com razão,


para o publico do nosso tempo, que deseja a cada
peça de cinco actos cinco chaves de oiro ; de prata
doirada pelo menos .
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL XV

Ora quão longe não estava de ser nem uma nem


outra coisa aquelle

mais voyons au plus tôt


si certaine cassette est encore là haut

vou ver se o meu santo visinho


me não tirou do quarto um certo cofresinho,

que era o ultimo dizer de Anselmo antes de cair o


panno, pagina 141. Acrescentámos pois aquillo, até
em obsequio ás exigencias modernas, tudo mais que
desde esses versos decorre pelas nove paginas que
vão até o fim do acto.
D'este nosso lavor poetico não fazemos encareci
mentos como obra artistica; só dizemos, se nol- o
permittem , que estas nove paginas intrusas não vem
todavia alheias á intenção do drama : contribuem para
pôr ainda mais evidente a ruindade intrinseca do beato
falso, e ao mesmo tempo descobrem aos espectadores
que a familia de quem o malvado tão abominavel
mente abusa, merecia, até por bemfaseja, o respei
toso affecto de todos. Era um toque, senão indispen
savel, pelo menos utilissimo, que não occorrêra a Mo
>

lière .
Em defensa do remate, com que ataviámos ou com
que sobrecarregámos, se assim o quizerem, o quinto
acto, e que nos procedeu, ainda que não necessaria
mente, d'este final do quarto acto, militam em parte
as considerações que deixamos feitas; mas pedimos
se nos receba outra de novo .
XVI ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

A moda, quando não é de todo em todo descon


chavada, ou inadmissivel por qualquer outra razão
forte, alguma condescendencia nos ha de merecer.
Hoje em dia o nosso publico folga de ver as co
medias desfechadas em cantigas e danças, e, quanto
mais portuguezas e quanto mais populares, melhor.
Que o diga a ultima scena, tambem postiça, com que
se ampliou o Medico á força, e que éé sempre duas,
tres e até quatro vezes repetida.
Aqui no Tartufo o baile e as trovas dos campone V

zes têm ainda um tanto mais de conveniencia : ex


pressam com alvoroço o que nos animos do audito
rio se estava já passando tacitamente ; poem mais
descoberta a moralidade da acção, e a bondade da
familia salvada ; e conseguintemente requintam o odio
que se tem, e se deve ter, á perversidade hypocrita.
D'esta parte nos poderiamos nós entrincheirar
amontoando exemplos ponderosos ; limitamo-nos a
dois.
O primeiro é Metastasio, poeta que a Italia deve
1
ainda hoje citar com ufania, a despeito da excessiva
complicação de enredos nas suas operas, da pouca
variedade e alambicamento de algumas das suas arie
tas , aliás admiraveis .
Metastasio coroa quasi todos os seus dramas com
uma pequena acção accessoria e allusiva sob o titulo
de Licenza ; haja vista o seguinte rol, que não é di
minuto :
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL XVII

Adriano, Temistocle ,
Demelrio, Zenobia ,
Sogno di Scipione, Ipermnestra,
Olimpiade, Antigone,
Didone, Semiramide,
Clemenza di Tito , Ruggiero,
Demofoonte, Angelica .
Ciro,

O segundo exemplo e auctoridade, como de Mo


lière se trata, seria o proprio Molière. Quantas das
suas comedias não foram representadas, e não nos
ficaram impressas com atavios de genero analogo ?
Á comedia Le Mariage force segue-se logo como epi
logo Le Mariage forcé, ballet du roi.
A comedia La princesse d'Élide tem seu interme
dio de danças no fim de cada um dos cinco actos,
que já é muito mais .
Mélicerte traz esta advertencia : cette pastorale co
mique faisait partie, comme Mélicerte, du ballet des
muses .

Finalmente Les facheux tem ao fim de cada acto


seu intermedio de musica e pantomima, lendo-se na
ultima d'estas excrescencias, o seguinte, posto pelo
auctor : quatre bergers et une bergère, qui, au sen
timent de tous ceux qui l'ont vue, fermaient le di
vertissement d'assez bonne grâce.
Se nos objectassem que Metastasio e Molière fo
ram poetas cesareos, e tinham de comprazer aos seus
B
XVIII ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

respectivos soberanos, a resposta viria na mão. Quem


mais soberano para quem escreve para o theatro do
que o publico ? Se elle gosta, como todos os dias o
está demonstrando, de ver e ouvir no palco as dan
ças e cantigas singelas dos seus camponezes, canti
gas e danças que a ninguem deixarão de reverdecer
lá por dentro alguma boa saudade, por que se leva
ria a mal 0o dar-se ao povo, como postre de uma aus
tera lição, esse fugaz prazer tão innocente ?
cur ego, acquirere pauca
si possum , invideor?

Agora, e com toda a paz de espirito, se depois do


allegado e provado, se entender ainda que é melhor,
ou que só é bom finalisar a comedia tal qual o nosso
divino Molière a escrevera duzentos e dois annos
atrás, nada mais facil que eliminar do tablado as
duas ultimas scenas de pagina 180 a 190 d'este li
vro ; para o que outra vez aqui em publico e raso :
carta branca ao nosso empresario, que para isso Deus
o fez poeta, e a experiencia bom mestre.
De todas as demais levissimas alterações, que n'es
ta versão ou conversão nos permittimos fazer, e que
os peritos poderão verificar, confrontando - a com o
original, seria longo, superfluo e importuno miudear
mos aqui explicações.
Os que não curam d'estas cousas não as leriam ;
aos que não julgam as artes pela rama, não nos toca
a nós o pôr-lhes luz.
ADVERTENCIA INDISPENSAVEL XIX

O tudo, em summa, reduz-se a isto : que nas obras


primas de eras remotas, segundo a judiciosa distinc
ção estabelecida no parecer com que se laureou o
Medico á força , convem estremar duas coisas, que
muita vez se confundem , a saber : o que é da natu
reza, e do homem privilegiado que a soube espelhar
no fundo do seu espirito, e reflectil- a vigorosamente
para todos os espiritos ; e o fortuito e cambiante, que
pertenciam ao logar, á sociedade, e ao tempo em que
elle floresceu . De ambos estes elementos misturados
se compoz necessariamente o livro ; como das pedras
solidissimas e do cimento se compaginam os castel
los, os palacios, e os templos.
Nos maximos escriptores predomina o massico, o
resistente, o eterno ; nos apoucados os adobes com
muns e a pobre argamassa do amassadoiro.
Se em Molière abunda opulencia da primeira es
pecie, facil é, a quem se não deixa vendar pelo fa
natismo, reconhecer-lhe aqui e acolá as achégas que
as modas do seu tempo sorrateiramente lhe acarre
taram, e que modas subsequentes, ou mais apurada
critica , haviam de subtrair ao monumento sem o en
fraquecerem , antes porventura corroborando-o.
Mais de dois seculos alguma coisa são n'este mun
do, que de continuo progride e aspira em tudo a me
lhorar -se. D'aqui , por tanto , onde hoje estamos , já se
descobrem claramente fraquezas e desconveniencias,
de que essas obras immortaes pareceriam isemptas
quando novas.
XX ADVERTENCIA INDISPENSAVEL

Accudir a isso, não com furia de devastador, se


não com zelo de verdadeiro devoto, foi o nosso unico
intuito em todas quantas mudanças nos permittimos,
e de que algum dia daremos conta n’uma collecção
de estudos e notas sobre as comedias que houver
mos trasladado .
Por em quanto só diremos aqui já á despedida,
que para todas essas alterações nos soccorremos ao
conselho do que é entre nós juiz summo, reconhecido
e por bom direito em assumptos theatraes, o nosso
confrade e amigo Mendes Leal, cujo promettido pa
recer ou sentença acerca da nossa obra ficamos desde
já aguardando com avidez .

A. F. DE CASTILHO
PESSOAS

EXECUTANTES
FIGURAS DA COMEDIA E SUAS QUALIDADES
NO TEMPO DE MOLIÈRE
D. ROSARIA (Mme. Pernelle) ..... Béjart.
- velha beata e rabujenta, viuva ,
mãe de Anselmo.

ANSELMO ( Orgon) .. Molière.


- beato sincero, simplorio, casado em
· segundas nupcias com D. Isaura , e ten
do do primeiro matrimonio D. Ma
rianna e Luiz .

D. ISAURA (Elmire) .... Mademoiselle. Molière.


- mulher de Anselmo ; senhora de
juizo e gravidade natural.
LUIZ (Damis) Hubert.
- filho das primeiras nupcias de An
selmo, e irmão de D. Marianna .

D. MARIANNA ( Marianne) Mademoiselle De Brie.


—filha das primeiras nupcias de An
selmo, irmã de Luiz, e amante de Va
lerid.

VALERIO (Valère) ..... La Grange.


- mancebo nobre, pretendente á mão
de D. Marianna.

THEODORO (Cléante) . La Thorillière.


-sugeito de juizo e conselho, cunha
do de Anselmo , e irmão de D. Isaura .
EXECUTANTES
FIGURAS DA COMEDIA E SUAS QUALIDADES
NO TEMPO DE MOLIÈRE
TARTUFO ( Tartufe) . Du Croisy .
-- beato fingido, cara de compuncção,
falinhas de mel ; onde convem , cole
rico e vehemente .

VICTORIA (Dorine) Madeleine Béjart. 1


- criada grave em casa de Anselmo,
bem falante, espevitada, tocando em
descomedida .

MODESTO (M. Loyal) .... De Brie.


-official de diligencias, velhaco da
parceria de Tartufo .

O MINISTRO E SECRETARIO DE ES
TADO MARQUEZ DE POMBAL (Un
exempt) ....
— presença veneranda, falar de sum .

ma autoridade. 5

1
-

MATHEUS ....
- saloio maduro , honrado , quinteiro
de Anselmo, e compadre de D. Isaura .
ROZA ...
- saloiinha filha de Matheus, afilhada
de D. Isaura . Modos acanhadinhos . 4

FILIPPA ..
criada de D. Isaura . - Não fala .

DOIS SOLDADOS
- Não falam .

(Camponezes e camponezas que tocam, bailam e cantam )


!

Otheatro representa em todos os cinco actos uma sala no


primeiro andar da habitação de Anselmo .
Ao fundo porta para casas interiores.
No ultimo plano da direita, porta paru a escada por onde
se desce para a ruu.
A' esquerda, outra correspondente, por onde se sobe para
o segundo andar.
No primeiro plano, do mesmo lado, segunda porta para
outros quartos interiores. Da direita outra em correspon
dencia a esta, mas de que se não faz uso . Entre as duas
portas da esquerda, mesa com sua saia de panno encar
nado .
Cadeiras de braços completam a mobilia .
Na parede do topo, a um e outro lado da porta, dois pai
2

nelões, um representando Santo Antonio, outro as almas do


Purgatorio.
A acção é em Lisboa, no reinado de D. José, sob o mi
nisterio do marquez de Pombal.
АСТО І

1
SCENA I

D. ROSARIA (que estava de visita em casa de Anselmo, e vem


saindo toda aforçurada da segunda porta da esquerda para a se
gunda da direita , para se ir embora, seguida da sua criada Filippa)
D. ISAURA, D. MARIANNA, THEODORO, LUIZ, FILIPPA ee VIC
TORIA (que a vão acompanhando)

D. Rosaria (parando de repente e virando- se para todos)


Nunca vi casa assim ! Filippa, anda - te embora.

D. Isaura

Que pressa com que vai !

D. Rosaria

Senhora minha nora ,


não é preciso mais ; recolha -se . Dispenso
ceremonias comigo.
D. Isaura

Eu ceremonias!... penso
que isto é o neu dever . Mas d'onde vem a pressa
com que hoje sai d'aqui, minha mãi ?
4 TARTUFO

D. Rosaria
Ora essa !
Pois eu posso aturar tal gente nem tal vida !
E depois , bem se vê como eu cá sou querida!
Vou-me, é verdade; e vou-me irada, exasperada,
de ter pregado tanto e sem conseguir nada.
Não respeitam ninguem ! todos grimpam ! em summa
os doidos do hospital sem differença alguma.

Victoria
Se ...

D. , Rosaria

Cale-me essa boca ! uma criada ousando


alevantar a voz quando eu estou ralhando !
Tola e com presumpções ! É o fructo das novellas,
que são o Anno Devoto e as Orações lá d'ellas !

Luiz
Mas ...

D, Rosaria

Você lá , meu neto, escusa de falar,


porque é tolo e re-tolo ; um franchinote alvar.
Muita vez a meu filho eu dice : « Pelo trilho
que deixas ir levando o parvo de teu filho,
has-de torcer debalde a orelha inda algum dial »

D. Marianna
Parece-me...
ACTO I

D. Rosaria

Pois não ! Já falta cá fazia


a minha rica neta, a digna irmã do mano !
Com ar de mosca morta, e cordeirinha de anno,
quem sabe o que ali estál d'onde menos se espera
é que vem a pedrada.

D. Isaura

ó minha mãe, quizera ...

D. Rosaria

E eu quizera tambem , senhora minba nora,


(já agora hei-de lançar esta postema fóra !)
que adoptasse um viver em tudo differente,
e désse exemplos bons a toda a sua gente.
Mulher, aa que Deus haja, a mãe d'estes meninos !
(indicando Marianna e Luiz)
Que meninos ! emfim , criei-os pequeninos,
>

e sou a sua avól ( por mal dos meus peccados ! )


Mas ... como ia dizendo : exemplos approvados ,
os d'aquella santinha ! aquillo era um archanjo!
Você luxo e mais luxo ! Ella modestia , arranjo;
trabalho e economia . A mulher boa e casta
não vive a embonecrar-se ; arma - se quanto basta
para agradar a um , e esse um é o seu consorte .

Theodoro
Emfim , senhora ...
6 TARTUFO

D. Rosaria

Emfim , meu senhor, não me corte


o fio do discurso . É seu irmão, bem sei ;
respeito-o, prezo - o ; bem , mas sempre lhe direi,
que se eu fosse o meu filho, o esposo d'esta dama,
o senhor não fazia a minha porta lama .
O senhor é d'uns taes (bellissimos sugeitos !)
que andam sempre a assoalhar maximas e preceitos,
que as
ás pessoas de bem produzem calafrios .
Desculpe-me a franqueza; os termos são bravios,
mas a verdade é esta, e eu gosto da verdade !

Luiz

O seu senhor Tartufo é que honra a humanidade ;


aquillo, minha avó, é que é varão ; não é ?

D. Rosaria

Pois que duvida tem ? naquelle é que inda ha fé.


Todos fossem como ellel ... As raivas que me dão
vendo um palerma, tu , rires d’um bom christão !

Luiz

Pois quem póde aturar ver um santão fingido


feito rei nesta casal em tudo intromettido !
sempiterno censor ! e pondo impedimento
a quanto para nós cheire a divertimento !
ACTO I 7

Victoria

Lá pela moral d'elle, ou pela que elle exprime,


tudo que a gente faz é sempre um grande crime !
Sua vida é ralhar ! diz que é contra o peccado!

D. Rosaria

E tudo que elle ralha é muito bem ralhado;


quer leval-os ao ceo ! Deviam , infelizes,
onde elle põe os pés, pôr vocês os narizes.
Meu filho é que aprecia a joia que ali está !

Luiz

Quer que lhe diga, avó ? nunca meu pai fará,


nem elle, nem ninguem , que acerca do sugeito,
>

nem hoje, nem jamais , eu mude de conceito .


Para que é bom mentir ? mal posso já sofrel-o .
Deixem - n - o ir ateimando , o pata de camelo,
e verão se afinal eu lhe não faço um dia
amargar a valer a infame hipocrisia !
A

Victoria

Ver um desconhecido entrar aqui sem nada,


e arvorar - se em senhor da gente e da poisada !
Vinha quasi descalço ; o cotovelo agudo
á janella na manga ; e agoral carrancudo
a dar-nos leis ! Faz rir !

!
8 TARTUFO

D. Rosaria

Sabe que mais, menina !


Cumprissem - n -as vocês, tomassem -lhe aa doutrina,
e tudo nesta casa iria optimamente!

Victoria

É o santo da senhora, e o demo da mais gente!

D. Rosaria

Que lingua viperina ! ...

Victoria

É istol elle e o criado ,


o tal senhor Theotonio, outro ladrão chapado!
(Quem não n -os conhecer que os compre ! )

D. Rosaria
Lá do servo
nada sei ; sei do amo, em quem mil bens observo .
Detestam -n-o ; podéral a causa está bem clara ;
é porque elle pespega a cada um na cara,
o que tem de dizer -lhe. A bemaventurança
é quem enche de fel aquella alminha manca .

Victoria

Sim ... Mas porque motivo o fogo em que se abraza,


ACTO I 9

de uns mezes para cá se augmenta, quando em casa


entra pe masculino?! Acaso o ceo detesta
que se receba em casa uma visita honesta ?!
Quer que lhe explique o verso? aquillo (não me illude)
são zelos de minha amal...
(apontando para D. Isaura ).

D. Rosaria

Ail que insulto á virtude !


cale essa boca já, malvada criatura !
Cuida que é elle só quem de ver tal murmura?!
Não é só elle não ; é toda a visinhança :
a porta sempre aberta ; a rua sem parança
com trens a ir e a vir ; lacaios estafermos
talvez a murmurar em baixo ... Isto são termos!
quero crer que por mal não sejam as visitas,
mas dão em que fallar !
Theodoro

Onde ha bocas malditas,


sempre ha murmurações. Tinha que ver, se a gente,
para andar a sabor da plebe maldizente,
punha os amigos fóra ! E dou que tal fizesse;
praguentos são má praga , e nada os emmudece.
A's setas da calumnia, é baldo oppor escudo .
Palrem sem tom nem som que eu fico surdo e mudo.
Não façamos nos mal que o mais importa pouco .

Victoria

Mas quem diz mal de nós ? talvez aa do bioco,


10 TARTUFO

a visinha defronte , e o lesma do marido .


Quem mais borbulhas tem isso então é sabido)
é sempre quem mais prompto ao proximo agatanha.
Do fio mais sutil d'uma teia de aranha,
fazem logo um calabre. iE o que elles se contentam
de ver grassar no povo as fabulas que inventam ,
por se lhes figurar que o mundo , a sombra d'ellas,
talvez lhes escureça os podres e as mazellas !

D. Rosaria

n ? negar -me-hão que Lourença


Isso tudo a que vem?
é discreta, é sisuda, e tem virtude immensa ?
muito temente a Deus, muito jejuadeira ?
Pois ahi está. Lourença (a gente verdadeira
o ouvi contar), Lourença (uma boca sagrada
que nunca murmurou) diz que anda derramada
de ouvir o que aqui vai . E quando o zelo a impelle,
desembainha a lingua e corta-lhes a pelle.

Victoria

Que exemplo que nos traz ! segundo a fama sôa,


Dona Lourença é hoje uma optima pessoa!
porém quando era moça? ! ... ( é melhor que me eu cale)
Sabe Deus, sabe Deus ... Talvez que a inveja a rale
do que teve e não tem . Por não poder havel-o,
deu em santa , danou-se, e morde em nós ... por zelo !
Ha muita doida assim : na sua mocidade
a todos deram trela ; introviscou-se a idade,
murcha a rosa, desfez-se o enxame dos amores ! ...
que saudades ! que dor ! que trances ! que furores !
ACTO I

Que recurso lhes fica ? o beaterio , e mais nada !


Mascarou-se a leviana ; está censora armada.
É caridade aquillo ? aquillo é só despeito :
tem anjinhos na voz, e Lucifer no peito !

D. Rosaria (a D. Isaura)
Ahi tem a minha nora os contos do seu gosto ;
e eu, de rolha na boca ; espantalho aqui posto
á espera de que pare o rio de eloquencia !
Mas agora hão de ouvir-me, e tenham paciencia :
Digo-lhes que o meu filho, e digo -o convencida ,
nunca fez melhor coisa em toda a sua vida,
que trazer para casa, e pôr de exemplo aos seus
um santo em carne e osso ; um homem tão de Deus,
que em tudo quanto faz, em tudo quanto prega ,
só tem por fim guiar uma familia cega !
Qual é o seu empenho ? a salvação das almas .
Deviam -n - o trazer todos vocês nas palmas,
dar mil graças aos ceos, e acabarem de crer,
que elle só reprehende o que é de reprender.
Visitas, dançaraz, conversações vadias,
inventou-as o demo ; ouvem lá frases pias !!
nem sentenças moraes !!! nem praticas de santos!!!!
Risos, cantigas vãs, namoros pelos cantos,
enredos ... e afinal, sempre maledicencia ;
e o proximo que o paguel ... A gente de prudencia
não pode tal sofrer : dá-lhe volta ao juizo
naquelle temporal de riso e pouco siso .
Um dia a um Prégador, que era um grande Orador,
Definidor, Censor, e até Inquisidor,
ouvi eu comparar este sarapatel
12 TARTUFO

das festas e saraus, co'a Torre de Babel ;


e eu lhes digo os porquês (ail que sermão tão lindo ! )
(apontando para Theodoro)
Olla aquelle ; não vêm como se está sorrindo !
ria dos seus iguaes, que tem materia vasta .
(para D. Isaura )

Minha nóra, adeusinho ; ausento-me ; já basta.
Não sei se tornarei a pôr pé numa casa ,
que milagre será se um raio aa não arrasa .
(dando um bofetão em Filippa)
Que estás de boca aberta ! anda comigo ou chuchas
um murro no nariz que me bas de ver dez bruxas !
(Vai para sair com Filippa pela segunda porta da direita, mas
torna ainda a virar -se para traz )
Quando volta meu filho?

D. Isaura

Hoje talvez ; não deve


tardar muito . A demora havia de ser breve ;
foi a quinta arranjar o oratorio novo ...

Victoria

com que ha de converter, diz elle, a todo o povo,


quando virem cobrir-se aquelles azulejos
com milagres do santo , alvo dos seus festejos!
(Sai D. Rosaria com Filippa, acompanhada de todos os pre
sentes menos Theodoro e Victoria) .
ACTO I 13

SCENA II

THEODORO e VICTORIA

Theodoro (a quem Victoria indica por gesto que deve acompanhar


até a escada aa D. Rosaria)

Acompanhal-a, eul pois não ! era capaz


de armar -me outro sermão, voltar para traz .
Faz pena a pobre velha !

Victoria

A pobre velha ! Agora


é que eu tenho pesar de que se fosse embora !
Não lh'o haver ella ouvido ! ai que pena !

Theodoro
Eu cá, pasmo
de lhe ver por Tartufo aquelle enthusiasmo ;
e contra todos nós, sem a mais leve injuria,
irritar-se, bramir, e desfazer-se em furia !

Victoria
E o filho inda é peior .
Theodoro

Em quanto magistrado,
foi um homemzarrão, de todos celebrado
por sabio inteiro e activo; agora... agora é tolo.
14 TARTUFO

1
Victoria

A Tartufo agradeça o estado do miolo !


O seu tudo é Tartufo, e só Tartufo brilha ;
por Tartufo esqueceu : mulher, mãi , filho, filha !
Tartufo é quem dirije a sua consciencia,
quem lhe governa o seu , e está na confidencia,
plena e sem excepção , dos seus particulares.
Por aquelle velhaco , em summa, bebe os ares.
Abraça -o, beija -o, faz ... (não sei como lh’o diga)
mais do que outro qualquer por uma rapariga !
Na mesa , o logar d'elle é sempre á cabeceira !
Vendo- o comer por seis sorri de pasmaceira!
Bocadinho melhor é o premio da virtude !
E quando o bruto arrota, exclama: « Deus o ajude.
Em summa, é uma loucura incrivel, exquisita ;
louva quanto elle faz; quanto lhe ouviu, recita .
Elle é santo, discreto, amavel, infalivel!
mais que heroe, quasi um deus. Uma loucura incrivel !
O traste, que é finorio, e teme se lhe acabe
este ninho de guincho, ideia quanto sabe
para o ter cada vez mais crente ...

Theodoro

e mais sendeiro !

Victoria
Acha mole , carrega !
E os rios de dinheiro
que lhe rapa a chorar, para o fim meritorio
ACTO I 15

de resgatar do fogo almas do Purgatorio !


Mas o pior de tudo é que o tratante embirra
com quanto aqui se faz, e contra nós o acirra !
¡ Se até o companheiro , o alarve do criado,
já nos prega sermões com ar muito zangado,
e nos atira rua as fitas e alvaiades,
os signaes e carmins, chamando- lhes vaidades,
é conclue, resmoneando : « oh ! secula sec’lorum !»
No outro dia acha um veo ao pé d'um Flos Sanctorum ,
e espedaça- o, gritando: «Hei de de ti dar cabo !
vens dos santos mofar, vil rede do diabo?! »

SCENA III

Os mesmos, D. ISAURA, D. MARIANNA, LUIZ (que voltam


pela porta por onde tinham saido a acompanhar D. Rosaria) .

D. Isaura ( para Theodoro)

Ai o que ella ao saír do patamar, nos dice ! ...


e contra o mano então ! Bom foi que a não ouvisse .
Mas vou lá para cima . Avistei da janella
o meu homem na rua .
(sai com D. Marianna pela segunda porta da esquerda .)

Theodoro

Eu cá sempre á cautella
evitarei subir . Enfada-me 0o beatorro !
Entra, digo-lhe adeus, escada abaixo , e corro !
16 TARTUFO

SCENA IV

THEODORO, LUIZ, e VICTORIA

Luiz

Pois sim ; mas será bom.que aproveitando o ensejo


lhe falle em Marianna , a ver se a casa. Vejo
mui transtornado o caso ; e cuido (não n - o invento )
ser Tartufo quem põe a coisa impedimento .
Marianna é minha irmã ; quero-lhe muito ; e noto
que meu pai , desde que anda entregue ao seu devoto,
parece estar mui frio acerca d'este enlace.
Inda que esta razão me não estimulasse,
tinha outra meu tio, e empenho muito serio .
Assim como ella estala e morre por Valerio ,
e Valerio por ella, assim tambem lhe digo
que ha entre mim e a irmã d'aquelle honrado amigo,
paixão não menos forte ; e que do nosso plano
ninguem hade ...
Victoria

Chiton ! Lá vem ...


(sai Luiz pela segunda porta da esquerda ).
ACTO I 17

SCENA V

THEODORO, VICTORIA, e ANSELMO (que vem de fóra pela ,


segunda porta da direita) .

Anselmo ( para Theodoro)

Bons dias, mano .

Theodoro

Stava -me a despedir. Parabens da tornada.


Como ficava aa quinta ? inda tem flores ?

Anselmo
Nada,
logo se falla d'isso . Ha-de -me dar licença
de saciar primeiro a ancia, que a trago immensa ,
de saber o que é feito em minha casa . Vamos ;
dize tu cá, Victoria : hospedes, servos, amos,
tudo optimo ; pois não ? Que mais ? que tem havido ?

Victoria

Quem tem bastantemente ha dias padecido


é minha ama ; um febrão, que parecia lume !
e uma enchaqueca ! ...
Anselmo

Bom . Coisitas do costume.


E Tartufo ?
18 | TARTUFO

Victoria

Tartufo, esse uma maravilha !


gordo, fero, rosado, e enxundias que até brilha .

Anselmo
Coitado !
Victoria

No serão , sentiu -se tão aflita,


que nos deu bem cuidado ! e sempre a dor maldita!
quem diz lá que ciou ?
Anselmo

E Tartufo ?

Victoria
Tartufo ,
mui ancho, e cada pé metido em seu pantufo, >

sentado no espaldar, defronte d'ella, á mesa ,


occupou - se de si com a maior franquesa ;
e co'os olhos no ceo , lá foi mandando ao bucho :
um frango, um pastelão , tres pombos , e um cachucho !

Anselmo
Coitado ! 1

Victoria

Toda aa noite a ouvimos aos gemidos


sem pôr olho ! Um calor, d'aquelles insofridos ,
ACTO I 19

que não deixam parar ! Por isso esteve a gente,


até já manhã clara, em pé, junto á doente ...

Anselmo
E Tartufo ?

Victoria

Saiu da ceia cabeceando,


enfiou -se na cama, e lá ficou roncando ,
té meio dia ou mais .
Anselmo

Coitado !

Victoria

Finalmente,
cançada, e por ceder ás suplicas da gente,
lá se deixou sangrar ; nisso é que achou melhora .

Anselmo
E Tartufo ?
Victoria

Animou-se , e logo que a viu fóra


de tão p’rigoso mal, mas fraca da sangria,
por ser homem que os bens do proximo aprecia,
fez por meter em si no almoço algum conforto
com quatro coparrões de balsamo do Porto.

Anselmo
Coitadinho !
2+
20 TARTUFO

Victoria

Ao presente, elle ee ella passam bem ;


e agora vou lá cima , annunciar tambem
á senhora este gosto , e fazel -a sciente
do que o senhor folgou de a achar convalescente.
( sai Victoria pela segunda porta da esquerda ).

SCENA VI

ANSELMO e THEODORO.

Theodoro

Vê, meu cunhado, vê, como na propria cara


o esteve escarnecendo ? e, com justiça clara ,
posso agora ajuntar. Sou , bem o0 sabe, amigo;
não se me ha de agastar de ouvir o que lhe digo.
Quem viu já coisa assim ? que magicas emprega
aquelle homem , senhor, que tanto e tanto o cega ,
que o faz esquecer tudo e o traz enfeitiçado ?
Veiu humilde, faminto e nu ; vive abastado,
servido , e como um grande ; emfim , da lama rasa
galgou a solio d'oiro , entrando nesta casa !
E quem lhe deu a mão? quem lhe isto fez ?
Anselmo
Suspenda ,
meu cunhado e senhor ; antes que falle , aprenda. -
Não conhece a Tartufo .
ACTO I 21

Theodoro

É possivel; mas creio


que para o sentenciar ...

Anselmo
>

Eu nunca sentenceio
sem provas como soes ; faça o mano outro tanto .
Juro que se chegasse a conhecer o santo,
morria-me por elle. Embora aa riso o tomem ,
é um homem que ... que ... no qual... em summa, um homem!
Quem lhe toma as lições gosa ante-ceos no mundo,
e quanto á roda vê se lhe afigura imundo !
Eu , ouvindo-o fallar, fico outro ; logo sinto
um desapego a tudo ! um odio ao labirinto
das paixões mundanaes ! odio até á amizade.
Filho, mãi , filha, tudo , e até minha ametade,
podem morrer ; que a mim , dá-se-me ... como d'isto !
(com gesto de quem sacode uma pitada de tabaco ).

Theodoro

Bella religião! (de Tartufo, está visto !)


Que suave moral ! que sentimento humano !

Anselmo

Não queria eu , senão que o meu presado mano,


como eu o descobri, o houvesse descoberto !
Adorava- o como eu , póde ficar bem certo .
22 TARTUFO

la diariamente á mesma egreja que eu,


e ajoelhava-me ao lado ; aquelle modo seu,
de tanta suavidade e tanta fé, prendia
o olhar de todo o povo , e o da propria clerzia ;
podéra não render-mel orava tão absorto,
que parecia rapto ; e a sua côr de morio ,
efeito dos jejuns! e os seus ais doloridos !
e o prostrar-se na pedra aos beijos e aos gemidos !
àquillo não se pinta ; aquillo era um portento !
Quando eu vinha a sair, ao pé do guarda-vento
já o encontrava á espera. Ia direito á pia,
e com ambas as mãos a cara me aspergia .
Soube eu pelo rapaz que o serve, e que é sua copia,
quem era , e que sofria aa mais completa inopia.
Entrei-o a socorrer ; e elle, do que eu lhe dava,
metade , ás vezes mais , sempre me recusava,
dizendo humilde : « É muito ; eu não mereço tanto ! »
Eu , já se vê, teimava ; elle então (rico santo ! )
ali , a minha vista, ia logo aos mais pobres,
tratando-os por irmãos, repartir os meus cobres,
co’a recomendação de orarem ao Senhor,
pela saude e bens do pio bem feitor.
Chamei-o pois a mim ; e hoje disfructo a gloria
de ter um tal mentor na vida transitoria !
Entrou benção com elle em nossa casa ; tudo
prospéra agora ; eu goso , inerte , cego, mudo ;
elle põe e dispõe ; vela de noite ee dia ;
vê, reprehende, instrue, corrige e nos vigia .
Té me guarda a mulher, com um zelo em meu decoro,
que ás vezes quando os vejo, interneço-me e choro.
Encare nella alguem com ar de suplicante ...
percebe-o antes de mim ; diz-m'o no mesmo instante .
ACTO I 23

Não, que lá nessa coisa o meu Argos attento,


parece mais que eu proprio, e muito mais : ciumento .
>

Mal pensa 0o que ali está ! qualquer bagatelinha


faz - lhe na consciencia um peso que o definha.
Ha dois dias ou tres , veiu elle todo aflito
confessar-me haver feito o mais atroz delito ;
pois estando a rezar, veiu uma pulga, e zaz,
>

mordeu-lhe ; impacientou -se, agarra a pulga, e traz,


>

esborracha-a ; mas foi com tal ira, que julga


que pecou mortalmente ! Uma pulga ! uma pulga !!

Theodoro

O cunhado está doido , ou faz de mim chacota?!


Que pretende inferir da estupidla anecdota ?

Anselmo

Santo nome de Deus ! Santo poder divino !


Cunhado , está perdido. Isso é de libertino;
é de impio . Muita vez lh’o tenho já prégado :
vá -me por esse andar , e lá verá, cunhado,
quando já não poder tomar o bom conselho,
como é o caldeirão do tal Pedro Botelho !

Theodoro

Estilo dos beatões ! Como elles não têm olhos,


raivam de que outrem veja, e evite os seus escolhos.
Vé claro ? - é libertino ; a vás puerilidades
-

não presta assenso ? -ultraja as augustas verdades;


24 TARTUFO

é só christão e humano, util , honrado, terno ? -


atira -se com elle aos caldeirões do inferno .
Outra vida, cunhado . A minha é d’homem crente,
porem sem fanatismo ; honrado, mas prudente.
Não tremo de papõès ; sou religioso e basta.
Eu conheco este mundo; ha nelle muita casta
de heroes e de christãos ; ha o crendeiro e o crente ;
como ha o valentão, parodia do valente !
O valente de lei , presta ao dever seu culto ;
se é mister combater, combate sem tumulto ;
nem foge, nem provoca ; audaż ee comedido,
nem pede aclamações, nem n-o acovarda olvido .
Assim tambem o crente ; alma sincera e pia,
cumpre a lei ; não se inculca; ignora a hipocrisia.
Pois ha de equiparar-se a mascara ao semblante ?
e um vil galanteador ao verdadeiro amante?
Que estranha raça humanal extremos, sempre extremos ;
o meio -termo, nunca . A quantos é que vemos
seguir a natureza'adstrictos á razão ?
Sempre ou menos ou mais. Quanto á religião,
quem mais lida em guindal -a, ás vezes mais depressa,
por seu zelo excessivo, ao infimo a arremessa !
Desculpe-me o sermão ; não peço Ave-Marias ;
mas só que pense nelle estes primeiros dias.

Anselmo

Pois não, senhor doutor ! É gosto ouvil-o e vel-o !


a pena éé não prégar de annel , borla, e capello !
sempre dava mais peso ao que lhe sai dos labios.
Lá saber não lhe falta ; excede aos sete sabios!
É Cicero, é Catão, é toda a Academia !!
4

ACTO I 25

e o resto dos mortaes ... tudo camelaria.


Cunhado, bugiar !
Theodoro

Não sou doutor, nem douto ,


cunhado ; mas não tenho o0 entendimento bôto .
Co’o facho , don de Deus, que inda conservo inteiro,
sequer sei distinguir do falso o verdadeiro !
Respeito ao valoroso , assim como ao piedoso ;
mas ao falso piedoso, e ao falso valoroso,
não n-os posso tragar. Ha nada mais risivel
que um Sancho D. Quichote ?! ha nada despresivel
como um santão de alardo , uns bonecos de arames ,
fazendo, e sempre mal , os seus papeis infames ! ?
Tecer co'a devoção, armar co'a santidade,
esparrelas e visco á pobre humanidade !
Ao idolo do int'resse ir prostituir o incenso !
e insultando no altar ao Ente justo, immenso,
fazer, se lhes convem , das coisas mais divinas
trafico, oprobrio , crime, algemas assassinas !
Ha, houve, e ha de haver sempre entre o povo crendeiro,
muitos lobos assim com pelle de cordeiro,
muita relé maldita e mestra de artificios,
que ambiciosa, avara , e chafurdando em vicios,
>

não contente co’os bens que usurpa , inda por cima


diz que protege a Deus, e obtem do mundo a estima !
Fóra com esses, fóra ! ou , já que não podemos
acabar com tal peste, ao menos, reservemos
o afecto , o apreço, a gloria, o titulo de mestres,
de exemplos, de faroes nos temporaes terrestres,
aos que por seu viver e suas crenças puras ,
mostram homens na terra , e um Deus lá nas alturas .
26 TARTUFO

Permita-me dizer -lh’o : o seu astuto socio


não entra neste rol ; grangeia o seu negocio,
mais nada. A boa fé do credulo hospedeiro
é que arvorou em santo um sordido embusteiro .
Afirmo-lh'o eu .
Anselmo

Findou ?

Theodoro

Findei .

Anselmo ( indo-se para a segunda porta da esquerda)

Adeus , cunhado

Theodoro

Duas palavras mais , e esteja socegado,


que são sobre outro assumpto .

Anselmo

Oicamos, e depressa.

Theodoro

Bem sabe que o Valerio obteve uma promessa ...


(pausa)
de lhe darem Marianna .
ACTO I 27

Anselmo

Adiante .

Theodoro
Até se havia
determinado já para o consorcio o dia ! ...
Anselmo
Verdade .
Theodoro

E que lhe espera ?

Anselmo

Eu sei...

Theodoro
Dar -se-ha que tenha
mudado de tenção ?
Anselmo

Talvez ...

Theodoro

Não desempenha
a palavra que deu ?
Anselmo

Inda o não disse .


28 TARTUFO

Theodoro
Creio
que obstaculo nenhum se mete de permeio ...

Anselmo
Conforme ...
Theodoro

Não entendo ; ou sim ou não. Valerio ,


que é homem de palavra, e toma a coisa ao serio,
foi quem me suplicou viesse eu ...
L

Anselmo
Inda bem !
Theodoro

Mas que resposta levo ?


Anselmo

A que quizer .
Theodoro
Convem ,
nem se pode escusar, saber em que se fica.

Anselmo

No que aprouver a Deus !


Theodoro

Bom2 I sempre alguma trica.


ACTO I 29

Fallemos seriamente : havia-se obrigado ;


quer, ou não quer, cumprir?

Anselmo

Meu senhor, seu criado.


(sai pela segunda porta da esquerda ).

Theodoro (depois de meditar)

Aqui anda tratada ; o parvo não me engana.


Vamos ter com Valerio . Ail pobre Mariannal ...
O pai afeiçoado ao gesto pouco tenro ,
deseja de comprar o bruto para genro .

FIM DO ACTO I
1

АСТО П.
1
SCENA I

ANSELMO e D. MARIANNA

Anselmo
Marianna!
D. Marianna
Meu pai !
Anselmo

Tenho que te fallar


em coisa de segredo, e mui particular;
chega mais para aqui .

D. Marianna (para Anselmo, estando elle a olhar para a porta


do fundo do theatro)

Que procura ?

Anselmo
Procuro
que ninguem nos escute. O sitio é mal seguro ...
mas emfim por agora, estamos sós os dois.
Dá -me toda a attenção ; responderás depois .
Eu sempre em ti notei, desde pequerruchinha,
7

docilidade immensa ...


3
34 TARTUFO

D. Marianna

Era um dever que eu tinha,


cumpri-o, e hei-de - o cumprir.

Anselmo

Por isso é que eu te amei


sempre muito, e que te amo, e sempre te amarei .

D. Marianna

Farei por merecer em tudo o amor paterno .

Anselmo

Ora pois, muito bem . Mas para ser eterno


o meu amor a ti, quer-se que igual amor
una sempre Marianna ao seu progenitor.

D. Marianna

Essa a minha ambição.

Anselmo

Bem sei. Que te parece


nosso hospede Tartufo?

D. Marianna

A mim ?
ACTO II 35

Anselmo

A ti . Não cesse
de fallar por tua bocca o afecto filial;
pensa o que vais dizer .
D. Marianna

Se me parece mal ? ...


ou me parece bem ?... é o ponto a que deseja
que eu responda, não é ?

Anselmo

É.

D. Marianna

Acho- o ... salvo seja ...


como meu pai quizer .

3+
36 ! TARTUFO

SCENA II

Os mesmos e VICTORIA (que sae da segunda porta do lado es


querdo, vem devagarinho e se colloca por traz de Anselmo sem ser
vista) .

Anselmo (á parte )

Fallou como quem é.


Sempre fiz em seu tino um grande fincapé.
(alto)
A mais pódes passar minha adorada filha ;
pódes-me confessar que o resplendor que brilha
neste varão do ceu , deslumbra ; e que a mortal
mais feliz fôras tu , se da mão paternal
podesses receber por mimo um tal esposo ...
( D. Marianna dá mostras de attonita)
hein ?
D. Marianna
Que ?
Anselmo
Que é lá ?
D. Marianna

Dizia ? ...

Anselmo

Oque !!

1
ACTO II 37

D. Marianna
Meu Deus ! nemouso
acreditar que ouvi !
Anselmo

Como ?!

D. Marianna

Quem é, senhor,
o tal varão do ceu que traz o resplendor
de que ando deslumbrada? e com quem eu seria
a mais feliz mortal se o alcançasse um dia?
Não percebi, meu pai . Quem é que hei-de dizer
que eu amo ?
Anselmo

Quem !!! Tartufo . E que outro havia ser?!

D. Marianna

Mas Tartufo, meu pai, nenhum amor me inspira.


Meu pai não quer por certo ouvir -me uma mentira.

Anselmo

E não ; mas quero, ordeno, e has-de cumpril-o emfim ,


que domine em teu peito o que domina em mim ;
e que a palavra amor se inda não é verdade,
a poder de razão se torne realidade.
38 TARTUFO

D. Marianna
Pois quer? ...
Anselmo

Se quero ! quero e tens de m’o cumprir.


Quero com santos nós, perante Deus, unir,
>

por tua mão ditosa (ai que eleição tão bella ! )


o homem grande, Tartufo, á nossa parentella .
Sei que has-de obedecer -me, e que has-de ser feliz.
E senão, .. (reparando em Victoria)
Que vens tu ouvir o que se diz,
ou quem te chamou cá?

Victoria

Ninguem ; andam dizendo ,


não sei se com razão, se a rir (não n-os entendo ;
elle a mim faz -me rir) que esta senhora vai
ser mulher de Tartufo á ordem de seu pai !
Que destempero !
Anselmo

Então parece-te impossivel!


hein ?

Victoria

Certo que o parece, e de tal modo incrivel ,


que por mais que o senhor m’o pregue, não fará
que um disparate assim se me introduza cá .
ACTO II 39

Anselmo
Pois eu t'o farei crer !
Victoria

Sim , sim ; arme outra historia ;


com essa não engana a tola da Victoria !

Anselmo
Vel- o -hão !

Victoria

Tinha graça !

Anselmo

Afirmo -t'o outra vez ,


( voltando - se para D. Marianna)
Marianna, isto ha -de ser. Dei palavra, e bem vês
que a não posso quebrar. Nem mesmo que o pudera,
te devia privar da gloria que te espera .

Victoria

Deixe- o fallar, menina ! é que o senhor seu pai


deu agora em zombar. Quer ver se a gente cai
para depois se rir.
Anselmo

1 Juro ...
40 TARTUFO

Victoria

Escusa matar -se !

Anselmo
Juro e juro...
Victoria

Se rir, ria muito ao disfarce!

Anselmo

Querem -me impacientar de todo em todo !

Victoria
Bom !
Então se falla serio, arma -as sem ton nem som !
Pois é crivel , senhor, que as cans que lhe diviso,
andem inda a esperar pelo dente do siso ?
que essas barbas na cara, esse ar de homem capaz,
seja tudo postiço e farça ?
Anselmo

Calar- te -has !
Tens tomado na casa um tal atrevimento,
que Tartufo já pasma ao ver meu sofrimento !
Victoria

Vamos fallar sisudo e a bem, como se quer :


É coisa que se admitta ! uma flor ser mulher
d'um saparrão assim !-Que nome tão bonito :
41
ACTO II

a senhora Tartufa ! Impossivel, repito!


Não é, não ha-de ser, e nem podia ser .
Um beato fingido! Era um grande prazer
sair com elle á rua, envolta num bioco ,
e ir ouvindo : « ali vai madama Farricocod .
Que procure outro emprego : andador, sachristão,
coveiro, se quizer ; mas de donzellas, não !
Que bens para o senhor traz este casamento ?:
elle, um pobre de Christo ; o senhor, opulento.

Anselmo

Cala essa boca, tola ! Ignoras que um milhão


é nada comparado a um santo coração ?
Nessa mesma pobreza está sua riqueza ;
teve muito de seu, mas nada de avareza :
deu tudo aos pobres ; tudo ou quasi tudo ; houve um
que lhe abalou com o resto, e o deixou em jejum !
Podia - o perseguir, mas lembrou -lhe o sudario ;
preferiu ficar nu, e orar pelo adversario .
Eu que não sou tão santo e delle tenho dó,
é que o pretendo erguer do muladar de Job !
e á custa do ladrão, coberto de desdoiro,
amontal- o outra vez na sua burra d’oiro .
Foi rico , ha-de ser rico. E nobre os seus avós
datam de não sei quando . Ou eram Pharaos
ou consules de Roma ; ao certo não me lembro.
Vê que lustre á familia accresce com tal membro.

Victoria

É elle quem lh’o diz ; mas tal prosapia e van,


6

42 TARTUFO

como pode caber na humildade christan ?


Um santo com basofia !...
(Anselmo dá mostras de impaciencia)
Este particular
irrita -o, vejo-o bem ; não quero mais fallar
de bens nem de ascendencia ; é tudo coisa boa ;
mas elle , que é, por si ? elle, a propria pessoa ?

Anselmo

Vá lá na outra face ; atiça, atiça mais !

Victoria

Pois não era o maior dos peccados mortaes


unir em laço eterno, eterno , sem recurso ,
um anjo a Satanaz, e esta pombinha ao urso ?

Anselmo

Morde, vibora, morde ! -

Victoria

Ignora os riscos mil


de um consorcio forçado ? É boa, mas gentil ;
muitos lh'o hão -de dizer, e lamentar -lhe o jugo,
e propor-lhe o soltar-se. Então, adeus verdugo!
adeus pai mau juiz ! adeus leis e dever !
honra, alegria, paz, fogem sem mais volver !
É boa, não o nego ; e quantas não n-o hão sido,
que depois tornou más um barbaro marido !
ACTO II 43

Quasi sempre a infeliz que na ignominia cai ,


paga o pecado alheio: ou do esposo ou do pai ;
e muita vez por junto o do pai e o do esposo.
Talvez se o mundo a culpa, a absolva um Deus piedoso !

Anselmo

E eu sem saber que tinha em casa e tanto á mão ,


uma doutora assim !
Victoria

Pois tome- lhe a lição


que não é das ruins, e ha-de tirar proveito .

Anselmo (para D. Marianna)

Deixa fallar quem falla ; ouviste o meu preceito ;


seguil-o é teu dever ; dever que aos dois convem.
Sou mais velho, e sou pai ; sei , e quero o teu bem .
Tinha-te prometido a Valerio, é verdade ;
porem ... pensei melhor : Consta pela cidade
que é jogador, -mau vicio ! E mais : que o seu amor
não é qual se te pinta : é mui namorador.
Na egreja nunca o vi !
Victoria

Por força quer que seja


á mesma hora em ponto a sua ida á egreja.

Anselmo

Ninguem a chama cá. O outro , sempre ao sermão,


44 TARTUFO

á novena, á trezena, á missa, á procissão ;


>

onde ha coisa devota, hei -de por força achal- o !


Menina, la verás se o mundo tem regalo
que assimilhar - se possa aos gosos da mulher
que deu com um bom christão, e cumpre 0o que Deus quer..
E tambem não são só o terço e as ladainhas;
hão -de ser muita vez um casal de rollinhas
aos beijos uma á outra ; e os filhos que hão-de vir !
elles : papá , mamã ! e ambos vocês a rir
de ouvir -lhe estropiar o Credo e o Padre-nosso !
A um maridinho assim tira- se- lhe o chapeu .
Em mil annos talvez não caiam dois do ceu !
E seres logo tu (grandissimo consolo !)
quem teve o premio grande !

Victoria

Um patiſão que é tolo !!

Anselmo
Cala a boca !

Victoria

Não posso, e não me hei-de calar !


o tal seu premio grande, a quem o analisar,
hem mostra que ao nascer foi logo destinado
para ... A menina é boa, elle terá cuidado
de aa revirar do avesso ; e se o não obtiver
é porque Deus a fez mais anjo que mulher !...
e mesmo assim ,> não sei ...
45
ACTO II

Anselmo

Cala aa boca praguenta!

Victoria

Se eu fallo é por seu bem , não por ser rabujenta ;


por bem seu , por bem della, e até por bem de tres .

Anselmo
Dispensa -se!
Victoria

Não vê ...

Anselmo

Tu é que nada vēs ;


és uma parvoa ; parvoa alem de intrometida.
Cala a boca, ou vai lá tratar da tua vida .

Victoria

É que sou sua amiga !

Anselmo

Então, não vêm ? então!...


Não te quero a amizade.
46 TARTUFO

Victoria

E eu , quer queira quer não,


hei-de lh'a ter.
Anselmo

Meu Deus ! meu Deus ! livrai-me della !

Victoria

Hei-de eu zelar-lhe a honra, uma vez que a não zela.


Parecia-lhe bem deixal-o eu ir-se expôr
a dicterios ?
Anselmo

Jesus ! calas -te ?

Victoria

Não senhor !
não me calo, já disse ; era uma consciencia
deixar- lhe consummar semelhante inelemencia !

Anselmo
Serpentão I findarás ?
Victoria

Hola ! Tão bom christão,


e a enraivar-sel e a chamar á gente serpentão !
ACTO II 47

Anselmo

Pudéra ! Hão-de-se ouvir blasfemias taes a rodo ,


sem que no corpo o fel se derrame de todo ?
Agora é que por força has-de calar-te ; ou eu ...

Victoria

Bem ! não fallo, mas penso ; o pensamento é meu


não m’o póde tirar. A cada parvoice
creia ouvir em resposta o mesmo que já dice .

Anselmo

Pense quanto quizer ; mas se me interromper ...


rompo n’algum excesso . Escuso mais dizer.
(para D. Marianna)
Pois filha ! pesei tudo , e bem maduramente !

Victoria (comsigo e cruzando os braços no peito)


E eu sem poder fallar ! Receio que arrebente !

Anselmo
!
Tartufo não direi que seja, e não n - o é,
um Apollo ... ou Narciso...

Victoria (á parte)

É um macaco em pé.
48 TARTUFO

Anselmo

Quero até conceder, que as suas qualidades,


que no tempo actual passam de raridades,
não sejam para ti, por emquanto ...

Victoria
Vá, vá,
que apanhou um thezoiro .
(Anselmo vira-se para Victoria, crusa tambem os braços a es
cutal-a e a olhar para ella ).
Havia de ser cá
aquillo com a Victorial Eu não sou bicha brava,
mas lá comigo á força homem nenhum casava ;
ou eu lhe mostraria o que é uma mulher !
olá ! só se não vinga a tola que não quer.
Eu era logo, logo, e até no proprio dia !

Anselmo

Então, segundo vejo, ateima na porfia !


eu mandar, ou chiar um carro, tudo é um !
>

Victoria

Eu lá para o senhor não digo fun nem fun ;


isto é fallar comigo.
Anselmo

E eu não oiço ? Que absurdo!


ACTO II 49

Victoria

Agora é culpa minha o elle não ser surdo.


Anselmo (á parte)

Já não vai d'outro modo ; eu dou -lhe um bofetão !


( Colloca-se em acto de poder realisar o dito, e prosegue fallando
co’a filha, mas sempre com o olho na criada)
Pretendo que a menina aprove esta eleição,
como o anjo da guarda a aprovará de certo.
Póde já crer que a espera em vida um ceu aberto ,
porque o nosso Tartufo, o homem que lhe arranjei ...
(para Victoria)
Já não fallas contigo ?
Victoria

Ai que séca ! eu bem sei


quando me hei-de fallar.

Anselmo

Va :: uma palavrinha!
Victoria

Não me apetece agora. '

Anselmo

O gosto que eu não tinha


de te ouvir uma só !
4
50
TARTUFO

Victoria

Não é tola : não cae .

Anselmo

Pois, Marianna, é preciso obedecer a um pai


que te quer ver feliz, e só terá repouso ...

Victoria ( fugindo a correr)

Eu mandava ao diabo um semelhante esposo !

Anselmo (não tendo podido apanhar a Victoria com um bofetão)

Minha filha, esta moça é o proprio Satanaz


que nos entrou em casa ! Estou doido, e incapaz
de proseguir por hoje. Adeus ; vou dar agora,
a ver se me distraio, um giro lá por fóra!
(sai pela porta do lado direito)
ACTO II 51

SCENA III

D. MARIANNA e VICTORIA

Victoria

Então perdeu a falla ? ou tornou -lhe outra vez?

D. Marianna

Que desgraça, Victoria ! eu morro !

Victoria

Sempre a fez
muito aceada , olé! Eu que não sou da bulha ,
é que me puz em campo. Ella espantalho, eu grulha!
é
Sofrer se lhe proponha um casamento assim ,
sem dizer chus nem bus !!!

D. Marianna

Põe- te em logar de mim ,


co'um pai severo á barba, e dize o que farias ?

Victoria

Eu ! a Victorial tudo, antes que a judiarias


annuir com o silencio !
52 TARTUFO

D. Marianna

Enchi-me de um terror .. ,
que até a voz perdi , como perdi a cor,
e creio que o juizo ! Ouvia, assim por sonhos,
uma especie de sons confusos ee tristonhos,
mas sem perceber nada ! Anciava por poder,
mas não podia ali chorar nem responder !

+
Victoria

E o responder aquillo era tão facil ! ...

D. Marianna
Como ?
Victoria

Que afectos não se impõe, nem se ama por mordomo ;


que a sorte do casar da mão de Deus nos sai ,
e não de uma tratada entre um patife e um pai ;
que havendo-se de estar com um homem toda a vida,
o escolhel -o a contento é coisa mui devida ;
e se o pai finalmente ama a Tartufo, bem ;
que o peça em casamento e repudie a mãi ;
que nós da nossa parte a esse casamento
prometemos não pôr nenhum impedimento .
Não ria, isto é direito .

D. Marianna

É sim, mas o dever


ACTO II 53

da obediencia aos pais exerce tal poder ,


que .a gente não se atreve, ao menos eu ...

Victoria
A’ toa
não gosto de fallar: Valerio requestou -a ,
sim ? ou não ? requestou. Mui bem ; outra questão :
não gosta, ou gosta delle? é simples : sim ? ou não?

D. Marianna

Que outrem m'o perguntasse , emboral mas Victoria,


que deste nosso amor conhece aa fundo a historia,
e mil vezes me ouviu ! ...

Victoria

Mil vezes ! duas mil ;


mas (eu contra mim fallo) em peito mulheril
'té mulheres lêm mal ; sempre representamos :
fogo, estando de neve ; e gelo , quando amamos.

D. Marianna

Das outras nada sei , eu tudo que senti,


sempre mui lealmente, o declarei a ti .
>

Victoria

Visto isso, quer-lhe muito ?


54 TARTUFO

D. Marianna

O muito é pouco : immenso !

Victoria
E elle á menina ?
D. Marianna

Tem-me egual affecto, penso .

Victoria

Ambos os corações por tanto , o delle e o seu,


ardem por se ajuntar co'os laços do himeneo !

D. Marianna
Oh ! se ardem !
Victoria

Mas seu pai , talvez se não desarme!


Que tenciona fazer se elle ateimar ?

D. Marianna

Matar-me .
Victoria

Remedio muito bom ! e eu sem pensar em tal !


quem morre fica em paz : quanto é bom ser mortal!
(Passando do tom ironico ao de censura vehemente)
Para uns ditos assim, tão nescios, é preciso
antes de os proferir ter perdido o juizo !
ACTO II 55

D. Marianna

Agora tambem tu? queres fazer-te má?


vês -me neste suplicio e nada se te dá?!
Victoria

Não tenho do nenhum de quem nas aperturas


não sabe ser mulher, depois, vem com loucuras.

D. Marianna 1

Sou acanhada, sou , e muito . Eu não me fiz;


não me deves ralhar; tem dó d’uma infeliz!

Victoria

Quem pretende casar deve mostrar firmesa.

D. Marianna

Tenho-a tido a Valerio, e tenho-a com certeza ;


mas a elle, bem vês, é que toca impetrar
a outorga de meu pai !

Victoria

Pail deixem -me callar,


para o não chamar doido, e tenha paciencia!
Porem se o seu Tartufo o poz em tal demencia,
é culpa de Valerio ?! Ha- de este il- a exigir,
quando a menina cede, em vez de reagir?
561 TARTUFO

D. Marianna

Ficava-me bem , dize, incendiar-me em furias ?


dizer não a meu pai , e ao seu Tartufo injurias?
Bater o pé na casa, e bem patente pôr
que almejo por Valerio, e que amo com furor ?
Clamavam todos logo : é doidal não se humilha !
que donzella tão casta e que submissa filha!
Queres ...
Victoria

Que hei-de eu querer ! que viva muito em paz


co'o seu senhor Tartufo, um senhor tão capaz!
Que tenha de Valerio um completo divorcio,
e co'o servo de Deus o mais feliz consorcio .
Que posso eu dizer contra ? uma linda união !
Ha-de ser applaudida, e mil a invejarão !
Tartufo é sabio, esperto, insigne em santidade !
ditosa a que o venceu , e que é sua metade !
Sim senhor ! um varão neto dos Pharaós !
que tem na sua terra uns bons oitenta avós !
e casa de solar (sem ser de sapateiro )!
que tem carão vermelhor e um genio de cordeiro ! ...

D. Marianna

Ih Jesus ! que tormento! é mais que ser cruel !!!

Victoria

Não ha duvida, não : faz bem o seu papel!


57
ACTO II

mas cá para a Victoria escusa de disfarce :


ama ao senhor Tartufo , e quel-o, e hão -de casar -se !
E farão muito bem. Quer que lhe diga? eu cá
tenho - lhe quasi invejal a flor que não fará
quando sair com elle !

D. Marianna

Acaba co’os gracejos;


vale-me por quem és . Todos os meus dezejos
são que ideies maneira, e seja como fôr,
de impedir este enlace . Eu , pelo nosso amor
to juro , hei-de fazer, vel-o-has, da minha parte,
>

quanto ordenes, e eu possa , afim de coadjuvar-te.

Victoria

Nada , uma boa filha, inda que um pai lhe dê


para marido um mono, acceita - o por mercê .
Não sei que mais queria ! hão-de ir muito contentes
ambos daqui num carro ; hão -de ver os parentes
que lá na aldeia tem : primos , aos pontapés;
muitos paineis de avós de barba até aos pés
no salão do solar ; ha -de ter mil visitas
que muito hão-de intertel-a, até por esquisitas,
e que lhe hão-de fallar do gado ee do nabal ;
ha-de cantar na egreja em noite de natal;
pois no intrudol que festa ! os moiros de caraça,
tambor, gaita de fole! E na Paschoa: a fogaça !.
e a criação no pateo : os patos, os perus,
e o deitar a lavage aos porcos !...
58 TARTUFO

D. Marianna

Ih Jesus !
que mulher que tu és ! pois vês-me exasperada
e não tens dó, Victoria ?
Victoria

Umá sua criada.

D. Marianna
Escogita, anda lá .
Victoria

Para castigo seu


já agora ha-de esposal-o, e quem lh'o diz sou eu !

D. Marianna
Victorinha !
Victoria
Saiu .

D. Marianna

Prometo - te ...

Victoria

Já sei:
levarem -me consigo ; escuso ; ficarei ;
não deixo o meu rapaz .
ACTO II 59 ,

D. Marianna

Nada te move ?

Victoria
Nada .
Não se pode livrar de ser tartuficada.

D. Marianna

Não te does do meu mal? deixas-me entregue a mim


1

na desesperação? ... pois eu lhe vou pôr fim ! '


Adeus, Victoria , adeus ! (vai para sair)

Victoria (detendo-a)

Alto ! onde vai, senhora !


Venha cá . Tenha siso . Olhe que se não fora
não sei porquê ... ou sei : é porque tenho dó ;
deixava - a lá sosinha aa desdar esse nó !

D. Marianna

Tens dó, e com razão ; que eu , sem o teu socorro,


constrangida a casar , não ha remedio , morro !

Victoria

Qual morrer ! Tenha esp’rança, e cobre-me valor,


que inda se ha-de ... Lá vem o seu adorador
o bom senhor Valerio ...
60 TARTUFO

SCENA IV

As mesmas' e VALERIO (que vem da segunda porta


do lado direito).

Valerio

Ouvi dizer agora ,


quando eu vinha de tal inteiramente fóra ,
uma noticia fausta ; e a ser como se diz,
mil parabens!
D. Marianna

De quê?
Valerio

De enlace tão feliz !

D. Marianna

De quem ? com quem?


Valerio .!

A mim ! a mim é que 0o pergunta


a propria que o seu fado ao de Tartufo ajunta ? !

D. Marianna

Não fui eu , foi meu pai que armou essa união !

)
ACTO II 61 -

Valerio

Seu pai era por nós!...

D. Marianna

Mudou de opinião.
Aqui mesmo , inda ha pouco, ouvi da sua boca
essa fatal sentença, e quazi fiquei louca !

Valerio
Deveras !
D. Marianna

Inda mal ! Dice que esse himeneo


tinha de ser por força, e que era mando seu !

Valerio

Mas as suas tenções quaes são, senhora minha?

D. Marianna
Não sei .
Valerio

Bella resposta ! e como ! ignora ? eu tinha


empenho de saber ...

D. Marianna

Mas se eu propria não sei...


62 TARTUFO

Valerio
Não ? !!
D. Marianna

Não . Dê -me conselho, e prompta o cumprirei.

Valerio

Já que m'o pede, ahi vai : acceite esse marido .

D. Marianna
Aconselha -m'o ?
Valerio
Sim .
D. Marianna

Por ora inda duvido


se falla serio ou não !
Valerio

Mui serio ; pois onde ha


um consorcio melhor?

D. Marianna

Acceito - o desde já,


visto que m'o aconselha ...

Valerio

E o meu conselho, penso ,


não custa á que o recebe um sacrificio immenso !
ACTO II 63

D. Marianna

Tanto como custou aquelle que m'o deu .

Valerio

Dei -lh’o ... para agradar-lhe.

D. Marianna

Outro tanto faço eu :


para agradar-lhe, o sigo.

Victoria (fallando só para si)


Assisto a um desafio.
Ambos tremem de medo ! Eu madrinha, confio
que ha-de acabar em bem ; primeiro hão de atirar
(é da regra ); depois ... depois hão -de pasmar
de estar vivos ! e ao cabo amigos como dantes,
e abraços para almoço. É gosto ver amantes !

Valerio

Já sei (aprendi tarde) o que se alcunha amor,


e que vivi no engano !

D. Marianna

Imploro por favor


não fallemos em tal. Dice tão decidido
64 TARTUFO

que eu devia acceitar Tartufo por marido,


que 0o que eu devo fazer, visto que o vota e quer,
é ir dar logo o sim de ser sua mulher.

Valerio

Já tinha essa intenção ; mas via que era culpa,


e no que eu dice irado encontra uma desculpa,
é fino o estratagemal

D. Marianna

Acertou ! muito bem !

Valerio

Que dúvida ! pois pode acreditar alguem


que me tivesse amor, amor vivo e eficaz,
quando um futil pretexto em cinzas lh’o desfaz ?

D. Marianna

Pense o que lhe aprouver.

Valerio

Aproveito a licença !
faço mais : penso até, como a senhora pensa,
que é licito mudar, e por tanto , vou já
pôr por obra com outra , o exemplo que me dá.
Assim em logar d’um serão dois casamentos ;
e o meu talvez primeiro.
ACTO II 05

D. Marianna

Onde ha merecimentos ,
é facil achar logo... e não me custa a crer...

Valerio

Merecimentos, não, e aqui se pode ver


que não tenho nenhuns; no entanto, ha certa dama,
que assim mesmo, talvez, talvez me não desama;
e que hade estimar bem poder-me consolar
da perda ...
D. Marianna

Grande perda ! Isso ha-de-lhe passar


sem muito custo .
Valerio

É isso o que eu diligenceio.


Quando se é despresado ingratamente, creio
ser um dever honroso o procurar fugir
e esquecer . Se um tal bem se pode conseguir ,
grande ventura ! aliás... finja-se esquecimento ;
se então não é victoria, é timbre o fingimento.
É devida a constancia, a quem nos ama ; é vil
com quem nos repudia ; é mais do que servil!

D. Marianna

Diz bem ; dou -lhe razão !


5
66 TARTUFO

Valerio

E tenho - a . Deveria
pagar eu com amor a sua aleivosia ?
Vel-a entregar-se aa outro, e eu não ir dar, qual dou,
a outra o coração que me repudiou ?

D. Marianna

Aprovo inteiramente ; a minha pena toda,


será se inda tardar a afortunada boda .

Valerio
Qual dellas ?
D. Marianna

Quall a sua.

Valerio 3

E já lhe tarda? sim?

D. Marianna
Decerto ...
Valerio

Basta já de me afrontar assim ;


deixo-a, e vou-me, já já, satisfazer-lhe o empenho.
(dá um passo para sair)

D. Marianna
Obrigada!
ACTO II 67

Valerio

Isto só dizer -lhe agora venho :


que ao arbitrio que tomo, ao passo que hoje dou,
sabe, tão bem como eu , quem foi que me obrigou !
D. Marianna
.
Sim .
Valerio

que se eu, senhora, a tal me delibero,


é só para imital-a, e que mais nada quero .

D. Marianna
Sim ? bem .
Valerio

Vou já cumprir seus desejos e os meus .


É para nunca mais ; adeus , senhora, adeus !

D. Marianna
Inda bem !
Valerio

Desta feita é para toda a vida.


D. Marianna
Graças!

Valerio (pr endendo inculcar que foi chamado por D. Marianna)

Como ?
5*
68 TARTUFO

D. Marianna

Senhor ?

Valerio

Cuidei ...

D. Marianna (á parte)

Custa -lhe a ida !


Valerio

Que me tinham chamado ...

D. Marianna

Ia a sonhar talvez !

Valerio
Bom ! então , vou -me!

D. Marianna

Vá !

Valerio

E vou ! (á parte) Que placidez !


ACTO II 69
Que indiferenca !
em voz alta) Adeus ! adeus, minha senhora !

D. Marianna
Adeus senhor !
( sai Valerio pela segunda porla da direita)

SCENA V

D. MARIANNA e VICTORIA

Victoria

E então ?! julgava-a mais doutora !


Pois é mulher, e ama, e da-me em seco assim !
Nome do pai , do filho ! ... eu quiz até ao fim
deixal- os altercar, por suppor que o duello
teria outro desfecho : o natural . Apello
de quem é lesma. Hola !
(indo para a porta por onde Valerio sahio)
Senhor Valerio ! hola !
( recondul-o para a scena)
70 TARTUFO

SCENA VI

As precedentes e VALERIO

Valerio (tornando a entrar com mal fingida reluctancia ,


empuchado por Victoria)

Que pretendes de mim ?

Victoria

Que volte para cá !

Valerio

Nadal não posso ! Adeus ! estou furioso ! Parto !


devo -lhe obedecer !
Victoria

Fique.
Valerio

Estou mais que farto


de insultos e desprezo ; hei-de-me ir !

Victoria
Não se ha-de ir !

D. Marianna (á parte)

Nem já me póde ver !


ACTO II 71
(alto) Escusa de fugir,
que eu me retiro. (Vai para sair pela segunda porta da esquerda)

Victoria (á parte)

Agora a outra ! ( alto) Onde era a ida?

D. Marianna
Larga -me!
Victoria

É cá precisa.

D. Marianna

Estou mui decidida .


Acabou : nunca mais !

Valerio ( á parte )

Não se pode negar :


detesta -mel onde estou nem já se atreve a estar !
(alto)
Deixo - a livre ! ...
Victoria

Outra vez ? ... (á parte) Para guardar tal gado


era preciso um cão. (alto) Pare, desatinado !
E a menina tambem, pare ahi.

Valerio

Para quê?
/ 72 TARTUFO

Victoria

Não vê, senhor Valerio, e a senhora não vê,


que estão doidos ! e que eu , por ora em meu juizo ,
é que os posso salvar do apuro em que os diviso ?
(toma Valerio e D. Marianna pelas mãos e tral-os para o pro
scenio)

D. Marianna (para Victoria)

Que pretendes de mim ?

Valerio (para Victoria)

Que vais de mim fazer ?

Victoria

Congraçal-os primeiro, ee empregar meu poder


em que este bello par depois de congraçado,
se case , m’o agradeça, e viva afortunado.
(olhando alternativamente para Valerio ee D. Marianna)
Basta de semrazões ! doidejaram assás !
quer -se agora prudencia !

D. Marianna

E tambem quererás
que eu me possa esquecer do que lhe ouvi ?
ACTO II 73

Victoria
Confesse
que estava como doida !

D. Marianna

Eu doidal não me esquece


o que ha pouco lhe ouvi ! Nunca esperei...

Victoria
Bom ! bom !
dueto muito egual : ambos sem tom nem som !
( a Valerio )
Ella adora -o, que o sei ; respondo-lhe por ella ;
diz que ou ha-de ser sua, ou morrerá donzella .
(a D. Marianna)
Elle, juro-lh’o aqui , nunca teve outro amor ;
e se não na alcançasse, estalava de dor.

D. Marianna

Dar -me um conselho assim !

Valerio

Pedir em tal materia


o meu conselho !

Victoria

Ponto. Agora a coisa é seria.


74 TARTUFO

Não quero mais doidice. As mãos ambos os dois.


( a Valerio )
Venha a sua.

Valerio

Aqui tens ; mas para quê?

Victoria
Depois
o saberá ; ( para D. Marianna) e a sua !

D. Marianna

Ahi vai , mas não percebo...


>

Victoria

Não sou eu o prior, por isso os não recebo .


Amam-se por egual , e mais do que suppoem ;
ambos querem o mesmo ; e o que dois se propoem ,
quando os dois são mulher e um homem, não ha força >

que o arranque, por mais que o torça ee que o retorça .


(Valerio e D. Marianna ficam algum tempo de mãos dadas sem
se olharem)

Valerio (não olhando para D. Marianna senão ao soslaio)

Mas não nos faça a coisa assim com tão mau ar ;


póde olhar para a gente, e não se arrenegar .
(D. Marianna olha para Valerio e sorri- lhe)
75
ACTO II

Victoria

Hei -de- o sempre dizer : o amor é como o Bacho ;


ou recusar-lhe entrada, ou despedir do caco .

Valerio

Diga -me, se é capaz , que não tive razão


de me escandalisar, quando por sua mão
me estava com um punhal a retalhar por gosto !
D. Marianna

E a mim , cuida tambem que me não deu desgosto


a sua ingratidão ?
Victoria

Lá tornam ! valha-os Deus !


Basta , basta ! é demais ! Seus cuidados e os meus,
na conjunctura actual, cifrem-se unicamente
em ver se se esconjura o consorcio eminente.

D. Marianna

Ocorre-te algum meio ?


Victoria

Ha- de-se recorrer


a todos quantos haja , e quantos possa haver!
(a D. Marianna)
Do que ouviu a seu pai não tenha grande medo;
era um descôco tal , que nem sequer concedo
76 TARTUFO

que elle proprio podesse ao cabo resistir


á oposição geral e ás vaias que ha de ouvir !
Mas sempre será bom que a filha represente
que lhe annue ao seu plano, e até que está contente ;
porque num caso extremo, assim mais facil é
que o pai , que está com ella em toda a boa fé,
lhe admitta dilações ; e o tempo é uma botica :
tem a dor de cabeça, e os nervos sempre a bica ;
tem um ruim agoiro : o espelho que estalou,
um sonho desastrado , um morto que passou ;
e outras sem conto assim, que o seu paisinho engula';
que elle n'isio do crer, tem fome sede e gula ;
e em todo o caso a outro unil-a por mulher
não ha força que o possa emquanto não quizer.
Agora o que eu tambem muito lhes recommendo,
por melhor se encobrir o que se andar tecendo ,
é que fujam de ter colloquios entre si .
(para Valerio)
E para começar saia-me já daqui ;
meta-me os cães na moita; empenhe quanto possa
os amigos communs na sua causa e nossa .
(para D. Marianna)
E nós vamos, menina, activar outra Z

a seu tio Theodoro o zelo e a impavidez,


0 .

e ver se sua avó se amança e nos coadjuva ;


ella já teve amor ; podéral : uma viuval ...
(para Valerio)
Adeus !
Valerio (para D. Marianna)
)
Por mais que nos façamos todos, eu
dou que o maior auxilio ha-de ser sempre o seu .
ACTO II 77

D. Marianna

Responder por meu pai , não posso ; 0o que posso


jurar por minha honra e pelo afecto nosso ,
é que nunca Marianna em tempo algum será
de outro que de Valerio .
Valerio

Encantas-me !

Victoria ( para Valerio)


Já já ,
fóra daqui . (á parte) Não ha quem seque a prosa a amantes.

Valerio

Renasceu nosso amor, e mais vivaz que dantes .

Victoria

Renasceu , sim senhor ; parabens! se não sai,


e esta cá, se não entra, eu chamo pelo pai .

FIM DO ACTO II
ACTO III
.
-
SCENA I

LUIZ e VICTORIA

Luiz

Raio me parta já ; Luiz eu me não chame;


cuspam -me n’esta cara ; apodem-me de infame;
se houver força, poder, contemplação em summa,
que tenham mão em mim que lhe não faça alguma !
Victoria

Peço -lhe, por favor, que seja mais prudente.


Por emquanto seu pai fallou unicamente ;
muita coisa se diz que nunca se efectua.

Luiz

Cuidavas que Marianna havia de ser tua,


hypocrita insolente ? eu vou desenganar-te.
Nada temas, Victoria : hei -de chamal - o á parte,
e ali a sós por sós forçal-o a que desista !
Victoria

Devagar ! melhor é que nem lhe ponha a vista,


6
82 TARTUFO

em quanto a avó trabalha a ver se os amacia .


Deixe-- a que está por nós ; bem sabe que hoje em dia
só ella é que inda exerce alguma auctoridade
em seu pai e em Tartufo. Aquillo é uma irmandade ;
deixe-a lá furoar ! e mais tambem lhe digo,
que para com a avó noto um certo ar de amigo
e uns carinhos no santo... Havia de ser bella ,
se elle (Deus me perdoe ! ) , tambem a amava a ella !
quem sabe? como é rica , o Bento José Labre
talvez queira ter dois em vez de um só calabre.
Como isto é procurar o bem dos seus netinhos,
a avó quel-o sondar ; e assim, por bons caminhos,
leval- o a conhecer que d'esse matrimonio
lhe podiam provir desgostos do demonio .
Mas será bom que saia ; eu não n - o vi , mas dice
ha pouco o moço d’elle, o socio da beatice,
que estava lá em cima a resar no seu quarto ,
e breve desceria .
Luiz

Embora ; não me aparto.

Victoria

Deixe a mãi só com elle .

Luiz

E eu que mal faço ouvindo?


Victoria

Faz muito ; quero -os sós ; vá- se -me rebolindo.


ACTO III 83

Luiz
Prometto não fallar.
Victoria

E bem me fio eu n'isso !


Conheço -lhe de sobra o genio assanhadico ;
deitava a perder tudo.
Luiz

Escutarei callado ;
verás!
Victoria

Que impertinencia ! Ahi vem ; fuja! apressado !


(Luiz esconde-se á pressa no quarto, ao fundo do theatro)

SCENA II

TARTUFO e VICTORIA

Tartufo ( que desceu do segundo an


dar, pela segunda porta da esquerda, entra em scena fallando
alto para dentro dos bastidores, apenas avista Victoria)

Theotonio ! a disciplina e o cilicio fechados


no escaninho secreto ; e nada de peccados !
Pede aa Nosso Senhor mais forças do que eu tenho.
Se alguem me procurar, dize-lhe que já venho ;
>

que me fui repartir com os nossos irmãos presos ,


cheios de fome, frio , insectos, e desprezos,
o que pude apurar do sacco das esmolas!
6*
84 TARTUFO

Victoria ( á parte )

Quem viu nunca impostor mais fertil de parolas !

Tartufo

Que vejo ! uma mulher ! ... ai ! é Victoria ; eu ia ...


Tinha que me dizer ?
Victoria

Certamente ; eu queria ...

Tartufo (tirando um lenço da algibeira)


Cubra-me essa nudez ; lembre-lhe aa tentação
com que Eva fez cair ao nosso pai Adão.
Conchegue o lenço e falle. É diabrura expor
a pensamentos maus um pobre peccador.

Victoria

Pois é tão tentadiço ! eu cuidava que um santo


não reparava em tal ; eu cá não n-o sou tanto ...

Tartufo

Ponha no seu fallar, menina, mais decoro ;


>

senão fique-se, e fujo.


Victoria

Eu pouco me demoro ;
ACTO III 85
vinha- lhe só dizer que a minha ama deseja
vir cá baixo fallar- lhe.

Tartufo (mudando de tom para muito afavel)

Ora pois não ! que seja


feita a sua vontade; e fico á sua espera.

Victoria (á parte)

Como logo mudoul até sorri ! podéra !


nunca me eu enganei .
Tartufo

Tardará muito ainda ?

Victoria

Lá vem ella a descer. Tenho a embaixada finda.


Eil- a ahi ; cá me vou .
(Sai Victoria pela segunda porta da esquerda)
86 TARTUFO

SCENA III

TARTUFO e D. ISAURA (que vem da segunda porta


do lado esquerdo)

Tartufo

A mão do Omnipotente ,
Senhora Dona Isaura , a encha eternamente
de vigor corporal e graça espiritual ;
e as bençãos liberaes do Pai celestial
The tornem toda a vida um tão continuo bem ,
quanto o seu servo humilde aqui lh'o implora . Amen .

D. Isaura

Aceito agradecida esses votos extremos ;


mas não será melhor, senhor, que nos sentemos ?
( sentam -se)
Tartufo

Passou-lhe inteiramente o mal ?

D. Isaura

Inteiramente .

Tartufo

As minhas orações, perante o Omnipotente


mui pouco valor tem , pois sou pobre em virtude ;
ACTO III 87

mas emquanto a não vi de novo com saude,


não fiz senão pedir-lh'a. A’ Senhora da Graça
prometti eu (se achar cerieiro que m'a faca
perfeita como eu quero ), uma dama de cera.

D. Isaura

Talvez se isso não fosse eu não convalescera !


Muito lhe devo.
Tartufo

Nada ; o valor d'essa vida


é para mim tamanho , é gloria tão subida
concorrer para ella ; e tanto empenho eu tinha
em n -a salvar; que até ... dera por ella a minha.

D. Isaura

Ninguem leva tão longe a santa caridade.


Não poderei jámais pagar tanta bondade.

Tartufo

Para mais em tresdobro é seu merecimento .

D. Isaura

Queria aproveitar, senhor , este momento


>

de estarmos aqui sós, livres de qualquer medo,


para tractar de coisa em que é mister segredo .

1
88 TARTUFO

Tartufo

Tambem eu folgo immenso ; e ignoro qual de nós


terá maior prazer em nos acharmos sós.
Uma occ ião como esta eu sempre aos ceus pedia ;
agora traz-m'a um anjo ! Oh ! que ditoso dia !

D. Isaura

O fim que me aqui trouxe é por ventura ouzado,


temerario talvez : é conhecer o estado
em que o seu coração se encontra em quanto a afectos,
São em dama, bem sei , dezejos indiscretos;
mas deve desculpar-me; imploro me responda
franco, sincero, afoito, e nada emfim me esconda.
(Luiz entreabre a porta do quarto para onde se tinha recolhido,
e põe-se á escuta sem ser visto .)

Tartufo

E em mim tambem , senhora, a ancia mais vehemente,


era , e é, declarar-lhe o que este peito sente ;
jurar -lhe que a razão porque eu me exasperava
de lhe ver tanta côrte, e corte que a adorava,
não era malquerença ; oh ! não, bem póde crel -o :
era pelo contrario uma impaciencia, um zelo,
um ...
D. Isaura

Esse zelo em mim tambem o eu sinto . Creio


que de me eu não salvar, é que era o seu receio !
ACTO III 89

Tartufo ( pegando na mão de D. Isaura,


e apertando -lhe os dedos)

Adivinhou, senhoral e é tal o meu fervor...

D. Isaura

Credo ! aperta de mais ! Agora fez -me dor ...

Tartufo

O zelo quando é muito ás vezes lá se esquece ...


Querer eu molestal- a ... Isso jámais !
(põe a mão em cima do braço de D. Isaura)

D. Isaura
Parece
que nem sabe onde está ! Que homem tão distrahido !
Que tem que ver ahi ?
Tartufo

A palpo este vestido !


Que seda tão macia !

D. Isaura (recúa a cadeira; Tartufo cresce com a sua


para diante)

Ail não vê que me apura !


Largue; faça favor !
90 TARTUFO

Tartufo (mexendo na gargantilha de D. Isaura)


Que tramal e que finura !
Como hoje se trabalha ! A industria em nossos dias
faz taes coisas, que até parecem brucharias !

D. Isaura

Sem duvida ; porém tornemo-nos ao ponto :


espalhou -se a balela (ha-de ser mero conto)
de que o senhor Anselmo ; o bom de meu marido ;
faltando ao que já tinha a outrem prometido,
cede agora ao senhor a mão de minha entiada,
de Marianna ; é certo ?
Tartufo

Ha d'isso um tudo nada ;


tocou -me n’essa especie ; uma proposta vaga ..
mas o meu coração traz ha muito uma chaga,
capaz de alivio sim , mas não pela mão d'ella.
Devo aqui declarar-lh’o : ha outra inda mais bella
que é só quem poderia ...

D. Isaura

Entendo; alguma santa ,


que o terrestre, o mortal certo que o não encanta ...
Tartufo
Não sou de pedra !
ACTO III 91

D. Isaura

Não ; mas segundo imagino,


todo o seu suspirar, é só pelo divino !

Tartufo

Um homem póde amar as coisas eternaes ,


amando ao mesmo tempo objectos mundanaes.
Fez Deus as perfeições para enlevar a gente.
As graças que reune em si o Omnipotente
reflete -as pelo sexo em cujas formosuras
se adora repartido o bello das alturas !
Porém do sexo todo , outra nenhuma encerra
como Isaura, em tal copia , os dons dos ceus á terra !
É tanta aa luz de Deus que n’esse rosto brilha,
que enleva os corações e os olhos maravilha !
Apenas a wistei, n'essa sem par belleza
admirei mais a Deus que em toda a natureza ;
e extatico , incendido , ao criador fui grato
por me ter amostrado o seu melhor retrato !
A principio temi não fosse o que eu sentia
armadilha sutil que satanaz me urdia ;
lembrou-me até fugir, com medo que esses olhos
á minha salvação não fossem dois escolhos !
Mas tambem reflecti, minha celeste rosa,
poder esta paixão não ser pecaminosa,
uma vez que a modestia a sujeitasse a freio ;
e assim foi: trago-a n’alma ee ferve-me no seio !
É (não quero negal-o), um grande atrevimento
vir eu d’esta afeição fazer -lhe o of?recimento !
92 TARTUFO

Se m'a acceitar, senhora, haverá sido efeito


só do bom natural d'um anjo tão perfeito ,
que eu por mim nada valho ! Em suas mãos deponho
a minha esp'rança, os bens, as glorias com que sonho !
Ao seu arbitrio fica : ou terna, ou desabrida,
tornar -me inferno o mundo, ou pôr-me um ceu na vida.

D. Isaura

Formal declaração do extremo galanteio !


Mas (deixe-m'o dizer) estylo em tudo alheio
do que eu sempre lhe ouviral Acho que deveria,
apenas viu que amor lhe armava a bateria,
escudar -se, ou fugir. Um devoto ! um colosso !
um campião da fél...
Tartufo

Porém de carne e osso !


.

Chegando-se a avistar graça tão peregrina,


1
cae - se - lhe aos pés rendido ee não se raciocina .
Assombram -n'a as razões que hoje aqui desentranho ?
e acha este meu fallar de todo em todo estranho ?
mas emfim , não sou anjo ; anjos são mais que santos!
não me condemne a mim , condemne os seus encantos !
Não sei se por desgraça, ou por ventura minha,
vi-a ; o meu coração, logo a aclamou rainha.
Quiz-me inda rebellar ; luctei , sofri mil dores,
' té que vos sucumbi, olhos triunfadores!
Promessas, orações, jejuns e disciplinas,
>

tudo foi por demais, ó graças assassinas!


Meus olhos, e os meus ais , mil vezes lh’o tem dito,
>

senhora ; e aos olhos meus, e aos ais do escravo aflito,


ACTO III 93

foi sempre cega e surda ! Agora, emfim , lhe fallo .


Ah ! se as tribulações do mais fiel vassallo
excitam compaixão n’uma alma tão benigna,
e se de 0o consolar emfim se não dedigna,
descendo do seu throno até minha humildade,
verá que devoção, verá quanta lealdade
em mim ha-de achar sempre. Ó minha illustre dama !
Comigo nenhum risco ha -de marear -lhe a fama!
Que desgostos receia? Esses foros senhores,
casquilhos cortezãos, meros galanteadores,
merecerão acaso o amor que acham nas damas?
Pagam -lhes bem por certo !: enredam -n'as em tramas,
blasonam tudo , ou mais , obtem o que apetecem ,
votam --n'as ao desprezo, infamam-n'as... ee esquecem .
Os do meu panno sim , que somos tão callados,
que em não dar que fallar pomos dez mil cuidados.
Nem a mulher nos ganha em dezejar segredo ;
de perder o bom nome havemos egual medo.
Logo, a que em nós se fia, os bens do amor disfructa
>

sem temer que lhe amargue o caroço da fructa .

D. Isaura

Uil que jaculatorial e que sermão tão raro !...


profundo, e ao mesmo tempo inteiramente claro !
Mas agora pergunto : e se eu , tendo -lh’o ouvido,
o fosse recitar tal qual a meu marido ?
parece-lhe que Anselmo, o seu leal amigo
teimaria em n - o ser? Eu vejo -lhe perigo !
Podia acontecer que elle lhe desse então,
co'a paga do atrazado, a esmola do sermão
94 TARTUFO

Tartufo

Sei que a senhora tem muita benignidade,


e me ha-de perdoar tamanha enormidade !
Quem diz homem , diz fraco ; e até Nosso Senhor
dos fracos se amerceia . Uma explosão de amor
não se ha de perdoar a um triste desgraçado,
que n'este mesmo inferno expia o seu pecado?

D. Isaura

Sei o que outra qualquer no meu logar faria;


mas serei generosa ; e d’esta felonia
nada a Anselmo direi . Bem vê que não é pouco !
Mas um leve serviço exijo agora em troco :
vá promover já já, sem sombra de chicana,
o enlace que ha -de unir Valerio a Marianna ;
renuncie espontaneo um bem que é d'outrem . Fôra
mais que perversidadel ...
ACTO III 95

SCENA IV

Os mesmos e LUIZ (prorompendo do quarto com impeto)

Luiz

Oh ! não ! jámais senhora !


Guardar segredo aquillo ! aquelle monstro immundo !
(apontando para Tartufo )
Convém pelo contrario, expol-o a todo o mundo !
Tudo escutei d’ali ! Graças á Providencia
que assim me habilitou a punir-lhe aa insolencial
Vou já ter com meu pai, rasgar-lhe a indigna venda,
e exclamar-lhe : -Ali tem com que adoravel prenda
tem andado a gastar os bens, a vida, a fama.
Elle achou inda pouco, a esposa lhe reclama ;
forceja em seduzir-lh'a, e paga ao bemfeitor,
com assaltar -lhe a honra, e escarnecer- lhe o amor !

D. Isaura

Não, Luiz, bastará que d'hoje por diante,


lhe não tornem a dar d’estas sesões de amante ;
justifique o perdão com que lhe pago o insulto :
cumpra -me o0 que lhe impuz, que eu não revogo o indulto .
A palavra que eu dei , querel-a-has tu frustrada,
Luiz ? Silencio pois ! Mulher prudente e honrada
escandalos detesta ; ouve os tolos, e ri-se ;
não vai dessocegar o esposo co’a tolice !
96 TARTUFO

Luiz

Faça a minha madrasta, acerca do devasso,


o que julgar melhor ; que eu , outro tanto faço .
Querel-o inda poupar tem ar de zombaria !
Já lhe sofri demais o orgulho, a beateria,
a casa em reboliço, e todos nós escravos.
Além d'estes geraes , tenho inda outros agravos,
para dever punil-o : os meus, os de Marianna,
de Valerio , e da irmã. Por este safardana,
é que meu pai, faltando aos seus prometimentos,
demora e contraría os nossos casamentos .
Mas vai-o conhecer, olé, que bello ensejo !
Obrigado, beatão ! Cumpriste o meu desejo !:
deixaste -te prender tu proprio na esparrela,
que o diabo por ti lhe tinha armado aa ella.
(indicando D. Isaura)

D. Isaura
Mas, Luiz ...
Luiz

Não, senhora ! Escusa de pedir -me!


Sempre lhe obedeci , mas agora, estou firme,
persisto. A occasião que me hoje o ceo depára,
se a deixasse fugir, talvez me não voltára!...
Mas eil- o ! ahi vem meu pai !
ACTO III 97

SCENA V

Os mesmos e ANSELMO (que vem da segunda porta


da direita)

Luiz

Meu pai ! Não adivinha


a que hoje aqui o espera ; e vem-n-a achar fresquinha !
Saiba que este senhor, que me ouve, e está presente,
paga d’um modo raro, incrivel , excellente,
o agasalho, o carinho, o amor com que é tratado !
Agora, agora mesmo , aqui nos foi provado
quanto elle lhe quer bem , quanto lhe zela a fama:
>

quer ao que meu pai quer, ama ao que meu pai ama,
em summa ouvi-o ee vi-o (inda me custa a crel-o !)
n’este proprio logar, tão abrazado em zelo
da honra de meu pai, que aos pés d’esta senhora
declarou que a adorava ; e se ella, e se eu não fôra,
sabe Deus até onde o arrojo o levaria !
Magnanima, prudente , e boa em demasia,
instava -me a insultada, a que ficasse occulto,
em respeito do esposo, o temerario insulto ;
mas vendo quanto n'isto á nossa gloria vai ,
eu denuncio o reo , porque respeito o pai !

D. Isaura

Dice-o, e torno a dizel-o : a esposa nunca deve


seu marido afligir. Se um louco se lhe atreve ,
defende-se, repele-o, esquece , e tem cumprido :
7
98 TARTUFO

salvou na honra propria a honra do marido !


Que mais é necessario ? ir -se inculcar de casta ?
porquê ? se era um dever . Sabe -o aa consciencia, basta .
Meu pensar, meu sentir,.e o meu costume, é isto .
Enteadol eu lh'o roguei ! Podia bem ter visto
e calal- oseu i.
(Sai pela primeira porta do lado esquerdo).

SCENA VI

Os mesmos excepto D. ISAURA

Anselmo

Deus meu ! Será possivel !


ou estarei eu entregue a um pesadello horrivel !

Tartufo

Irmão ! não sonha, não ; que eu sou na realidade


um grande pecador, vaso de iniquidade,
pantano de imundicie, escoria dos malvados !!!
Nem eu proprio já sei o conto aos meus pecados!
A cada instante é um ! São mais que os meus cabellos !
Até já Deus no rol se enjoa de escrevel- os !
Não me espanto de ver que n'esta conjunctura
venha a tribulação punir tal criatura !
Venha mais, e peior, se o hal mereço tudo !
baixarei a cabeça e hei-de aceital- o mudo !
Creia, irmão, no que ouviu ; não n - o enganaram , não :
arme- se de furor; fira, castigue, irmão !
ACTO III 99

Arroje-me de si por essa escada abaixo !


Pise-me a pésl... é pouco ; inda clemente o acho !

Anselmo (para Luiz)

E ousares tu, ladrão, calumniar tal santo !

Luiz

Pois inda este impostor ( confundo-me de espanto !)


enganará meu pai , só porque se reveste
d'este ar de humilhação !

Anselmo

Cala essa boca, peste !

Tartufo

Não, não, deixe-o falar ! Porque é tapar -lhe a bôca?


Pois n'um filho tão bom, irmão , tem fé tão pouca ,
e tanta n'um estranho ! É ser injusto! deve
crer no que elle me imputa ; acha o caso tão leve,
que assim lhe dê de mão ? Bom é ser mais prudente.
Sabe o que eu sou por dentro? A cara ás vezes mente !
e as falas inda mais ! D'onde lhe vem certeza
de eu não ser um perverso ? Irmão ! quanto me peza
ver -lhe essa boa fé ! Vá mais pelo seguro :
creia que sou, e é certo, um ente, abjecto, impuro,
bem ou mal desfarçado! Afirmo-lh'o de novo .
100 TARTUFO

Deixe o povo dizer ; mal vai, quem vai com o povo !


>

(para Luiz)
Ande, filho, prosiga! O senhor pai consente .
Diga que sou traidor , que ando a embair a gente , >

que roubo, firo, mato, infamo, juro falso,


que mereço galés, degredo, cadafalso ,
e até por fim o inferno ! Inda mal que é verdade,
filho, quanto dicer da minha iniquidade !
Ajoelhado a seus pés lh'o imploro ! (ajoelha) O calix todo
da ignominia se emborque em cima d'este lodo !

Anselmo (para Tartufo )

É demais meu irmão ! (para Luiz) Inda te não abalas ,


alma de Satanaz !
Luiz

Pois crê n'aquellas falas


meu pai ? ...
Anselmo (para Luiz)

Silencio, monstro !!
(para Tartufo)
Irmão ! riquinho santo !
erga -se por quem é ! (para Luiz) Patife !

Luiz
E póde tanto
um velhaco ...
Anselmo

Silencio !
ACTO III 101

Luiz

Eu damno-me ! Ser tido...

Anselmo

Mais uma só palavra , e ficas estendido !

Tartufo

Ai ! pelo amor de Deus, não perca a paciencia,


irmão ! Elle que faz ? impõe-me a penitencia ;
antes eu esgotar o calix da amargura ,
do que vel- o soffrer uma beliscadura !

Anselmo (para Luiz)


Ingrato !
Tartufo

Não n - o aflija ! ha-de- lhe perdoar ;


de joelhos o peço ! (ajoelha aos pés de Anselmo)

Anselmo ( ajoelhando -se tambem diante de Tartufo


e abraçando - o)

Irmão ! o ajoelhar
pertence a mim !
Tartufo

A mim ! ...
102 TART UFO

Anselmo

A mim !

Tartufo
Santa humildade !

Anselmo (para Luiz)

Aprende, patifão! aprende o que éé bondade!


Luiz
Então ...
Anselmo

Rolha na boca !
Luiz

E ser meu pai quem tolha ...

Anselmo

Já t’o dice uma vez, uma te baste, rolha !


O que te doe, sei eu ! Filhos, mulher, criados,
são todos contra elle ! Estão muito enganados,
se cuidam que a intrigar levam ávante a sua !
Eu pôr fóra o meu santo ! era lançar á rua
a minha salvação! Não vencem, não ! Primeiro
>

do que elle, irão vocês , meu gado sem rafeiro !


Agora é que eu lhes digo, e lhes protesto e juro ,
que para o ter em casa, e sempre, e bem seguro ,
ACTO III 103

vou fazer quanto eu saiba ! E por primeiro passo, >

caso - o com Marianna ; e fujam d'este laço !

Luiz

E hão-de obrigar Marianna ? ! ...

Anselmo

Hão -de, senhor patife!


Luiz
Morre.
Anselmo

Qual morre ! Ao thoro ha-de antepôr o esquife ?


Casará, e hoje mesmo ! Enraivem-se, vaidosos!
>

Hoje mesmo, hoje mesmo, os hão-de ver esposos !


Ninguem se intente oppôr. Sou n'esta casa rei !
completa sujeição 1 minha vontade é lei .
Vá, retracte-se, e já, de tudo que lhe dice,
ajoelhe-lhe aos pés, peça perdão . Sorri-se ?!
Biltre !!!

Luiz

Eul pedir perdão aquillo ; eu adoral -o !!

Anselmo

Uil resistes aindal e teimas а.a insultal-o !


Teimas? grande maroto ! Uma tranca ! uma tranca !
(a Tartufo que 0o procura suster)
Não me segure ! Um pai ...
104 TARTUFO

Tartufo

Um pai nunca desanca !

Anselmo

Fóra já d’esta casal e se me torna a ella,


não me ha - de levar sã nem uma só costella .

Luiz
Sim, saio já , porém ...

Anselmo

Já ! no olho da rua !
Sim senhor, meu heroe, fez muito bem a sua.
Agora sigo-me eu . De herança, meu pimpão,
nem chavo ; e inda por cima, a minha maldição !
(Sai Luiz pela segunda porta da direita)
Vai-te com Barrabaz. Deus me perdoe ... perdða!
que duvida ! Injuriar uma santa pessoa !
ACTo III 105

SCENA VII

ANSELMO e TARTUFO

Tartufo

Rapazes ! ... Deus, como eu, lhe outorgue o seu perdão !


(para Anselmo)
Não sabe, irmão Anselmo, o excesso de aflição
que me causa, o pensar como esta boa gente,
anda toda empenhada em transtornar-lhe a mente ,
para que em mim só veja embustes e negruras .
Perdão-lhes tambem , que emfim , nas creaturas,
não ha senão miseria ; eu em mim proprio o sinto !

Anselmo

Valha -nos Deus, que o póde !

Tartufo.

Oh ! que fell oh! que absintho!


só em fingir na ideia uma traição tamanha ...
contra o meu bem feitori a dôr que se me entranha
no coração, é tal, que eu tremo, e desconfio
que esta me ha-de cortar o derradeiro fio !

Anselmo (correndo todo choroso para a segunda porta da direita


por onde 0o filho saíra)

Cão ! cão! Não te perdôo o ter-te despedido


106 TARTUFO

sem levares primeiro o corpo bem delido...


(voltando para Tartufo)
Não se amofine, irmão ! Socegue! 1

Tartufo
O essencial,
meu irmão , não é isso ! É ver como afinal !

ha-de tornar a paz a entrar n’este habitaculo . V

Sou eu , sem - n - o querer , quem lhe sirvo de obstaculo !


Fiquem -se com o Senhor, que eu vou -me!

Anselmo
Estázombando ?
Tartufo
Nunca zombei!
Anselmo

Pois rogo, e se é possivel, mando,


que nem me pense em tal!

Tartufo

Se eu vejo a má vontade it

com que juraram pôr-me em cheiro de impiedade!


no conceito d'aquelle ...

Anselmo

E vê que eu preste ouvidos?... |

Tartufo

Tanto hão de martelar que afinal serão cridos !


ACTO III 107

Anselmo
Nunca !
Tartufo

Não diga nunca . Homem que tem mulher,


se não é já, é logo,, é tudo que ella quer !
Quem diz mulher, diz Eva ! Adões tem pouco siso ;
vem um sorriso e um pero, e foi-se o Paraizo !

Anselmo
Não ! Não !
Tartufo

Sim ! sim ! Verá como toda esta guerra


finda, mal que eu sair !

Anselmo

E como vão a terra


os projectos que eu tinha, e toda aa minha espr'ança
de entrar atraz do irmão, na bemaventurançal...
Ha-de ficar por força !
Tartufo

Então ... já não replico !


Por santa obediencia, aqui me sacrifico !
No emtanto, se quizesse ...

Anselmo

O que ?
108 TARTUFO

Tartufo
Desejaria
pôr-lhe uma condição...

Anselmo

Qual ?

Tartufo

Na Sabedoria
se lê, ou não sei onde : « Ao Senhor Deus não tentes l»
A honra é melindrosa ! É bom sermos prudentes!
Sendo amigo, não devo expor o meu amigo ,
a que as linguas ruins, tão prodigas comigo,
envenenem jámais a nossa convivencia !
Tomemos este acordo ! Eu fico ; paciencia !
Mas ver a D. Isaura, isso por nenhum modo !

Anselmo

A essa, meu irmão , é que eu não me acomodo !


Ha-de-a ver, e falar-lhe, e estar sempre com ella !
Não a zela o marido, e o mundo é quem a zela !?
Por isso mesmo agora, é que inda mais jocundo
se me torna o ralar e impacientar o mundo !
E inda cá tenho mais para damnar os cães !:
Vou fazer doação de todos os meus bens
em favor de Tartufo . Importam -me adherentes !
nem filhos! nem mulher ! nem todos os parentes !
Um santo amigo, sim ! amigo, e dos selectos !
ACTO III 109

meu genro, e em breve pai dos meus queridos netos !


Vá !
que responde ? vál acceita ou não acceita ?

Tartufo

A vontade de Deus em tudo seja feita !

Anselmo

Coitadinho ! Vou já fazer as escripturas !


Quero estoirar d'inveja aquellas creaturas!!
s!
Tartufo

E eu vou pedir a Deus sua divina graça !


a ver se esta familia outra vez se congraça !

FIM DO ACTO III


ACTo IV
SCENA I

THEODORO e TARTUFO

Theodoro

Pois senhor! Não se falla agora senão d'isto!


e se quer que lh'o diga, o caso foi mal visto :
censuram-lh'o, e bastante ; eu folgo de encontral-o
para dar-lh’o aa saber. Eu mesmo que lhe falo,
nunca tal esperei; sou franco , e serei breve.
Não quero examinar se foi pesado ou leve
o que o Luiz lhe fez, e se era ou não cabido ;
tudo que lhe aprouver lhe dou por concedido :
que o senhor nada obrou que fosse indecoroso ,
e elle foi com o senhor injusto e insultuoso ;
mas, pergunto : um christão que faz a quem no offende ?
vinga-se ? não perdoa? aperto mais : entende
que um devoto, por ter com um moço uma pendencia ,
o expulse do larpatrio? É pia essa inclemencia?
Todos clamam que não ; é isto pelo menos
o que eu oiço em geral a grandes e pequenos.
Tome um conselho bom ; desfaça o que está feito;
congrace o filho e o pai ; será christão perfeito.
.8
114 TARTUFO

Tartufo

Oxalá que eu podesse ! Olhe , senhor Theodoro,


só Deus pode dizer o que lhe eu reso e choro
para que imponha um termo aquella desavença.
Por mim , se me offendeu, nem já me lembra a offensa .
Eu arguil-o ! de que? tomara- o ver ditoso :
Deus o sabe. Mas Deus, o pai do meu repouso,
sabe tambem que os dois na mesma casa agora
não podemos caber. Entre elle, e eu vou-me embora .
>
-

Depois d'aquella acção, que outro nenhum fizera ,


verem-nos conviver, que escandalo não era !
Haviam de pensar, e haviam de dizel-o,
que era tactica em mim, não caridade ou zelo,
o abraçar o inimigo ; e que isso me convinha
para inculcar ser d'elle a culpa que era minha ;
e que eu , victima sua, estar a acarinhal-o,
era prova de medo, era querer peital-o,
para que não tornasse a desfiar -me a vida !

Theodoro

Senhor meu , ruim causa é sempre mal servida :


tudo isso é mui sutil , mas fraco de sustancia.
Não será n’um mortal sacrilega arrogancia
dizer : - defendo o ceo ! por elle encarregado
cá estou para infligir a pena ao condemnado ?
Deixe a vingança a Deus. Lembre-se do dictame
e exemplo de Jesus : que se perdoe e se ame ;
e em quanto executar eternos mandamentos ,
deixe ralhar embora ociosos e praguentos .
ACTO IV 115

Só porque ha quem murmure, bei-de eu perder a gloria


de ter no livro grande uma obra meritoria?
Não, não, mil vezes não . Cumpra-se a lei divina
em tudo e sempre ! O mais que val ? Esta a doutrina .

Tartufo

Não sei como lh'o diga ; é isso exactamente


o que o meu coração faz no caso presente :
perdoa-lbe ; pois nãol e ama-o ; pois não n-o ama !
Agora, eu conviver com o homem que me infama,
isso é que o ceo não manda.

Theodoro

E manda por ventura


que se aproveite o rasgo, ou de ira ou de loucura,
com que um pai , surdo á voz da propria natureza,
rouba a seu filho, e atira a estranhos a riqueza?

Tartufo

Lá isso do acceitar aquella benta esmola,


foi ceder á impulsão de uma secreta mola
a que eu nunca resisto . Os bons que me conhecem ,
não ignoram que os bens por si não me apetecem ;
apetecem-me sim , porque em me vindo ás mãos,
>

já tenho com que alegre aos pobres meus irmãos.


Aqui tem com verdade o porque acceito aquillo !
e deixe-m’o dizer : fico até mais tranquillo,
quando penso que o oiro, anjo e demonio loiro
8 .
116 TARTUFO

que tantos males faz e tantos bens, o oiro,


em quanto se reparte a tristes mendicantes,
não vai servir ao vicio em mãos de extravagantes,
perder-lhes a sua alma, e as almas d'outros muitos.
Hei-de a vivos dar pão , sufragios a defuntos,
casar orfans... verá, verá como o tal oiro
por mim se faz christão ! com Luiz era um moiro !

Theodoro

Não tenha, meu senhor, tanta escrupularia,


que faça de um herdeiro um pobre, que algum dia
The vá pedir á porta, e maldizel-o. Escusa
de zelar tanto os mais ; se elle uza , ou se elle abuza
dos bens que Deus lhe deu , por conta d'elle corre ;
de mais a mais, bem sabe ; o proximo discorre,
vê, ouve, inquire, julga, e quasi sempre atina.
9

Não é melhor então, que digam , que a ruina


de Luiz foi devida aa elle e aos proprios vicios,
que á dureza paterna, e ás garras de adventicios ?
Eu cá, pasmo de ver, como é que taes propostas
se poderam ouvir sem logo lhes dar costas !
Que é do passo do Antigo ou Novo Testamento ?
nos Mandamentos dez, que é d'elle o Mandamento
que diz : quem tiver bens , mate seu filho à fome
e engorde outrem por elle ?! A bem ou mal o tome,
digo-lh’o, porque é certo , o seu dever seria,
-se o odio com Luiz lhe veda parceria
na casa de seu pai , que é d'elle e não é sua,
deixal- o muito em paz e pôr-se já na rua.
Ateimando em ficar, dá muito fraca ideia
da sua ...
ACTO IV 117

Tartufo (puxando pelo relogio)

Meu senhor, são tres horas e meia !


Tenho inda que rezar; subo para o meu quarto .
É para estar com Deus que do senhor me aparto.
(Vai-se pela segunda porta da esquerda)

Theodoro (56)
Nunca esperei...

SCENA II

THEODORO e VICTORIA (que vem da primeira porta


da esquerda )

Victoria

Senhor ! senhor, tenha piedade


da infeliz, por quem él se tal barbaridade
se chega a consumar, sua sobrinha morre .
Não quer ver a ninguem . Chora , desmaia, corre
no quarto a solucar, a maldizer a vida,
desgrenha-se, delira ! Eu nunca vi suicida ,
mas devem ser assim ! Pensando em que esta noite
vão lançar-lhe o grilhão, não sabe onde se acoite !
ajoelha! ergue as mãos ! e já que a mãi não pode,
invoca o tio, a morte, e Deus que não lhe acode .
Valha -lhe!
118 TARTUFO

SCENA III

Os mesmos e ANSELMO (que vem da rua pela segunda porta


da direita ; traz na mão um rolo de papeis. D. ISAURA, D. MA
RIANNA que vem desgrenhada, palida e encostada ao braço da ma
drasta , saindo ambas da primeira porta da esquerda)

Anselmo

Salve-os Deus, filha, mulher, cunhado,


>

e tambem tu , Victoria ! Estimo ter achado


todo 0o ranchinho junto. (Para D. Marianna)
Aqui trago um contrato
com que a minha menina (inda por ora a trato
por menina) ha -de rir-se, ainda que não queira.
Já me entendeu ...

D. Marianna (ajoelhando diante de Anselmo)

Meu pai , meu pai , não me requeira,


supplico-lh’o por Deus, que vê minha amargura ,
pelo seu coração que é cheio de ternura ,
Th’o rogo : não me obrigue ; é pai , tem jus , bem sei,
mas não queira uzar d'elle ! Eu nunca me neguei,
bem o sabe, meu pai , á sua obediencia,
nem isto é recusar-lh’a : imploro -lhe clemencial:
que torne a meditar ; que mude ; que não faça
remorsos para si, forçando -me a desgraça !...
Devi-lhe muito amor ; devo-lhe a propria vida ;
e a vida que me deu quer tornar-m'a insofrida ? ...
Tinha-me dado a esp'rança ...e já lh'a não reclamo...
ACTO IV 119

embora ! não serei d'aquelle a quem só amo ;


mas prostrada a seus pés, supplico, imploro , obtesto ,
me não queira entregar aquelle a quem detesto;
que, antes de dar- lhe a mão, no desespero extremo,
talvez contra mim propria eu a voltasse...
D. Isaura (á parte )
Ai ! tremo !

Anselmo (a si mesmo e á parte sentindo-se fraquejar de animo)

Valor, meu coração! fóra, humanaes fraquezas !

D. Marianna

Ama ao senhor Tartufo ? encha-m'o de riquezas.


Sou contente . Não basta a fortuna que é sua ?
junte aos seus os meus bens , que os leve , que os possua ,
que seja mui feliz, e deixe-me . Um convento
será o meu refugio . Ali , a fogo lento,
irei queimando a vida, até que o ceo me queira !
Anselmo

Todas cantam aquillo : ou o meu fulano ou freira !


Levante -se! Não cedo. O esposo a quem n-a entrego
descontenta -a ? melhor ! muito melhor a emprego
para bem da sua alma : entra no firmamento
co'a palma do martyrio e a flor do casamento !
Victoria

Pois então ...


120 TARTUFO

Anselmo (a parte)

Lá vem ella ! oh ceos ! eu até pecco


ouvindo esta mulher ! (alto) Vá conversar com o ecco !
Deixe-me ! Nem palavra!!

Theodoro

Escute-me um conselho .

Anselmo

Quando alguem lh'o pedir, como esse é tolo, dê -lh'o .


Eu cá por mim , dispenso ; e fico - lhe obrigado
pela boa intenção, doutissimo cunhado !

D. Isaura ( para Anselmo)

Eu , vendo o que aqui vai, sinto -me de maneira,


>

que nem chego a entender tal furia e tal cegueira!


Depois do que hoje mesmo , e n’esta mesma sala ,
eu sofri a Tartufo, inda lhe lembra dal -a
a elle, esta innocentel Incrivel!

Anselmo

Seu criado.
Eu creio no que vejo, e sou desconfiado
quando pressinto enredo . O tal Luizinho mente ...
porque mente ; e a senhora então não n - o desmente
porque é cega por elle, e se o contradicesse ...
ACTO IV 121
Armaram -na sem geito ! E cuida que me esquece
como a senhora estava em toda aquella scena :
tão senhora de si , tão placida e serena !
Pois se o homem tivesse ouzado o tal descôco
que o Luiz lhe assacou , por força, ou muito ou pouco,
o rosto da senhora havia de o dizer ...
Quem tem de me enganar ' stá inda por nascer !

D. Isaura ( á parte)

Bem se vê ! (alto) Mas, pergunto : havendo um temerario


que nos falle de amor, é logo necessario
>

gritar- aqui d'el-rei - deitar a casa abaxo?


ha n'isso algum proveito ? eu cá por mim não acho.
Já dice : n’esse caso, o meu systema é rir -me!
A que estremece, grite ; eu sei que estou bem firme.

Anselmo

E eu tambem sei que sei o que é, e o que não é .

D. Isaura

Cada vez mais admiro a sua boa fé,


meu Anselmo !
Anselmo

Faz bem .

D. Isaura

Porém que me diria


122 TARTUFO

se eu lhe mostrasse aqui, hoje, no proprio dia,


que o Luiz não mentiu ?

Anselmo

Mostrar-m'o !...

D. Isaura
Sim .
Anselmo
Historia !
D. Isaura

Mas emfim , se eu podesse expôr-lhe tão notoria,


>

tão clara, tão brilhante, a prova da verdade,


que impossivel lhe fosse o desconvir?

Anselmo
Não ha-de ;
não é capaz .
D. Isaura

1
Que teima !

Anselmo

É muito gorda a arara!


não passa !
D. Isaura

Que homem estel e que cegueira rara !


ACTO IV 193

Anselmo
Dá-lhe !
D. Isaura

Não creia embora o que eu lhe digo e juro ;


mas supponha que o via...
Anselmo

Eu ! como ? e o quê?

D. Isaura
Seguro
n'um canto sem ser visto, á espreita da tramoia !
>

inda porfiaria em crer no seu giboia?


Anselmo

Então dizia ... que eu ... que elle . .. dizia ... nada ;
porque não pode ser !
D. Isaura

É já demasiada
a sua contumacia em me dizer que minto !
Pois muito bem : aqui , n’este proprio recinto ,
me obrigo a apresentar com que se capacite .

Anselmo

Pego- lhe na palavra; acceito o seu convite.


Sempre estou para ver a sua habilidade :
como de um maranhão me engendra uma verdade !
124 TARTUFO

D. Isaura (para Victoria)

Victoria, chama- o cá !

Victoria (para D. Isaura )


Duvido que o raposo
The caia na armadilha ...

D. Isaura

Oh se cai ! vem guloso


com o sentido na franga, e ouviu -lhe o cacarejo ...
verás se cai ou não. Bem sabes que o dezejo
muito illude a quem ama ; e depois, ha tambem
o amor proprio a ajudar... tudo ha -de sair bem ;
descança e chama-o cá.
(para D. Marianna e Theodoro)
Sumam-se ! Ligeireza !
(D.' Marianna e Theodoro saem pela primeira porta da esquerda
e Victoria pela segunda do mesmo lado)
ACTO IV 125

SCENA IV

D. ISAURA e ANSELMO

D. Isaura (para Anselmo)

Ajude-me a puxar mais para aqui a meza ...


Bom ! Meta -se debaixo !

Anselmo

Eu !

D. Isaura

Sim ! é necessario .
(à parte)
Já agora ha-de levar-se esta cruz ao Calvario .
(alto )
Esconda -se e depressa !

Anselmo

Ali ! como um cadelo


espojado no chão ! ...

D. Isaura

Deixe -me cá regel-o,


que eu bem sei o que faço. E todo o cuidadinho
em se não descobrir ; nem chus nem bus ! Ao ninho !
126 TARTUFO

Anselmo

Lá vou ! (á parte) Nunca esperei ser tão condescendente.


Emfim como é preciso, e eu estou impaciente
>

de sair d'este enleio, e achar o fecho ao conto,


verei o que poder do buraco do ponto.
( Anselmo, mete - se para baixo da mesa. D. Isaura examina se
o panno o encobre bem de toda a parte. Anselmo torna a
deitar a cabeça de fóra, e assim se conserva até ao fim da
scena)

D. Isaura (para Anselmo)

Hei-de- o desenganar ! Mas já para descargo


de consciencia lh'o digo : é coração ao largo !
Talvez sinta na boca uns certos amargores ,
certos baques por dentro, e apertos n’alma, ee dores ! ...
que isto é uma comedia a modo de tragedia,
uma coisa não vista ; uma tragi- comedia,
em que eu faço um papel tão novo e tão bravio,
que o meu caro auditorio ha-de ter febre ee frio .

Anselmo
Já eu estou a suar !

D. Isaura

E eu ! mas não ha remedio


senão passar por isto e desfarçar-lhe o tedio .
Quiz, tenha paciencia. Eu vou ser toda amor,
>

toda provocação, té lhe fazer depor


a mascara de santo, e ver-se que é demonio ;
ACTO IV 127

não se pode escusar a bem do matrimonio !


Entretanto ... o senhor, como é por seu respeito
que eu faço tudo aquillo, em 'stando satisfeito
póde mandar que cesse, e eu cesso . Está sabido
que eu só hei-de ir té onde agrade ao meu marido.
O meu credito proprio, e o seu convencimento ,
são meus unicos fins n'este arrojado intento .
Esconda-se ! lá vem !...
(Anselmo recolhe a cabeça )
Não saia antes de tempo ;
nem falle, nem suspire; escuso um contratempo !

SCENA V

Os mesmos e TARTUFO (que sai da segunda porta


da esquerda)

Tartufo

Diz que me quer falar ?

D. Isaura

Queria ...
(Depois de alguma pausa, e de mostrar que está cheia de ver
gonha, e sem saber por onde ha-de entrar nen sair)
É que um segredo
assim ... custa a dizer... Estou com tanto medo
de como o tomará... Feche-meaquella porta,
128 TARTUFO

faz favor ?
(Tartufo fecha a porta por onde viera )
Muito bem ; muito obrigada ! Importa
que ninguem mais nos oiça ; isto é tão melindroso...
Primeiro vamos ver não ande algum curioso
a escutar por ahi...Procure d’esse lado...
(apontando-lhe para a porta do fundo)
e eu d'este ...

(indicando a primeira porta da esquerda por onde se recolhe,


em quanto Tartufo sai pela do fundo. Theatro vasio por um
breve espaço)

Tartufo (saindo da porta do fundo)

Por aqui tudo escuro e calado .

D. Isaura ( saindo tambem da primeira porta da esquerda)

Nos meus quartos o mesmo . Estão lá no outro andar ;


porém , fechemos sempre.
( Tartufo fecha a porta do fundo ; D. Isaura a primeira e se
gunda da esquerda, e vai certificar- se de que a segunda da di
reita, que é a da saida para a rua, está hem fechada á chave)
E fale devagar,
para maior cautela . A's vezes as paredes
diz que ouvem , e o demonio arma tão finas redes ...

Tartufo

Certamente. Eu , por ora , é que inda não avento ...


ACTO IV 129

D. Isaura

Depressa o vai saber ; mas peço um juramento


de que nunca jámais, seja qual fôr 0o apuro,
dirá o que entre nós se houver passado.

Tartufo
Juro !

D. Isaura ( como quem se anima, tomando uma resolução


repentina)

Pois bem , senhor Tartufo ! Estamos sós, e inutil


é fingir por mais tempo uma esquivança futil.
Que scena esta manhã ! que scena ! ao pensar n’ella
inda em todo o meu corpo o sangue se enregela !
Eu a querer ouvil-o, e certa , ou quasi certa,
de que o meu enteado, além, com o olho alerta ,
nos estava escutando ! eu com eguaes fervores,
e obrigada, por medo, a simular rigores !
Que situação, meu Deus ! que fôra se Luiz
me houvesse adivinhadol os rogos que lhe eu fiz
para que não falasse ! e com quanta anciedade,
por medo de mostrar- lhe em mim complicidade !
Que supplicio e depois , quando elle ao meu marido
o accusou, tão feroz, tão cego, tão perdido,
foi tanto o meu terror ... como se aos pés um raio
me tivesse caído . Um interior desmaio
perturbou -me a razão : queria, não queria !
Deixei a sua causa e a minha á revelia !
Emfim , graças aos ceos, passou a tempestade,
9
130 TARTUFO

e tudo refloriu . Já temos liberdade


de nos ver, de falar ... de tudo, Anselmo agora
digo que inda ficou de melhor fé que outr'ora,
e tem no seu Tartufo inteira confiança,
Em mim sempre elle a teve . Abramos á esperança
os nossos corações. Livrámo-nos do espia ;
e Anselmo até deseja, e ordena esta harmonia.
Toda a familia o sabe, e assim não ha perigo
de estranharem que esteja aqui a sós comigo .
(Senta -se junto á mesa , com o cotovelo sobre ella , e o rosto
languidamente encostado á mão)
Que feliz solidão ! emudece ? ... Receio
ter-lhe desagradado! Acha talvez que um seio
com um palpitar assim devia, por decoro ,
não vir lançar-se á cara ; e é certo ... eu propria córo
do meu grande valor ;.porém não me arrependo ...
Nem eu sei o que digo ! ai triste, pão me entendo.

Tartufo

Nem eu , senhora minha ! Esta manhã , supponho


que lhe ouvi o contrario ! ou eu sonhava, ou sonho .

D. Isaura

Se tomou por frieza aquella resistencia,


de affectos de mulher tem fraca experiencia.
Que de vezes a bocca exprime um tibio não,
em quanto occulto sim nos queima o coração !
Pudor e timidez n'esses crueis momentos
não deixam conhecer os nossos sentimentos;
lucta muito cá dentro .a inclinação co'o pejo,
ACTO IV 131

antes que amor triumphe, e se acolha um cortejo !


Qualquer homem sabe isto, e nunca faes rigores
fizeram a nenhum descorocoar de amores !
Sei que sou imprudente em delatar-lhe o arcano
do sentir feminil, e que este desengano
me ha -de ser tido a mal ; paciencial mas já agora ,
como encetei, prosigo, e custe ao pejo embora :
se eu não n - o amasse, é muito , houvera - lhe deixado
falar -me assim de amor? houvera-me calado
por tanto tempo a ouvil-o ? houvera ao delator
supplicado segredo? em tudo, em tudo, amor ! ...
Porque lhe exigi eu ( recorda-se? exigi-lh’o ! )
que deixasse Marianna ? É que o chamar -lhe filho
me havia de enraivar; não poderia vel-os
felizes um com o outro ... oh ! não conhece os zelos ! ...

Tartufo

Ouvir palavras taes da bocca idolatrada


não lhe devo negar , senhora, que me agrada,
me inebria, e me encanta. Ha n’ellas mais deleite,
mais, sem comparação, que no mel, vinho e leite
da Terra Promettida ! infundem -me um conforto ,
uma consolação, que até me sinto absorto !
Cair na sua graça é que era sobretudo
o meu ceo, minha gloria, o meu empenho e estudo .
Mas ha-de permittir-me agora a liberdade
de oppor inda um reparo a tal felicidade:
não poderá ser isso um modo habilidoso
de impedir o consorcio armado pelo esposo ?
E , se me dá licença, esses mimosos termos
hão-de -nos convencer, mas só depois de obtermos,
132 TARTUFO

como prova real, um penhor de indulgencia,


com que a amor surja o sol das sombras da apparencia.

D. Isaura (depois de tossir, para chamar a attenção do marido)


Que instancias ! Não é bom logo á primeira entrança
tragar todo 0o futuro, e destruir a espérança.
Confessei -lhe que o amo, e inda não está contente ?!
Falou do sol ; o sol desponta gradualmente.

Tartufo

Senhora, que lhe quer ! alcanço uma ventura


que sei não merecer ; desejo-a ter segura ;
nada mais natural!
D. Isaura

Segura estou, não falto ...


Deixe que eu torne em mim ... bem vê que o sobresalto ...
e que a perturbação em que isto me tem posto ...

Tartufo

Abismar -me outra vez no infimo desgosto!


Torno -lhe a perguntar: se acolhe tão benigna
os meus votos fieis, porque é que se não digna
de os coroar mais cedo ?

D. Isaura

Eu ... mas primeiramente


ACTO IV 133

desejava saber, para aquietar a mente ,


e evitar o remorso ...
Tartufo

O que ?

D. Isaura

Não ouzo ...

Tartufo
Diga !
D. Isaura

Eu sou tão ignorantel o medo que me instiga


é tão grande, e o senhor conhece tanto a fundo
as coisas cá da terra, e as coisas do outro mundo ,
que espero me esclareça : acaso o ceo permitte
que este amor no dever não ache algum limite?
Tartufo

Se aa duvida é só essa, é fraca , e eu lh’a resolvo :


Deus, que é bom pai , absolve-a, assim como eu a absolvo.

D. Isaura

Tenho ouvido dizer que ha lá uns taes supplicios


para quem n’esta vida abre a sua alma aos vicios ...

Tartufo

Historias, sonhos vãos, crenças de velhas tontas ;


134 TARTUFO

liquidada a verdade, eis, afinal de contas,


o que eu lhe dou por certo : o ceo , na realidade,
não dá largas em tudo á pobre humanidade,
mas quando a tentação nos chega a certo ponto,
e vê que é grande o amor, dá-nos o seu desconto :
nem tudo ao sacco vai , como lá diz o adagio .
Depois a confissão, os jejuns, o suffragio,
são esponjas de trus com que a alma as nodoas lava ;
fica um arminho ; até mais pura do que estava .
O ceo deixe- o commigo. Ha modos efficazes
de qualquer peccador fazer com elle as pazes.
Segundo as precisões, existe uma sciencia
que ora aperta, ora alarga os nós da consciencia ;
e os que a sabem como eu , com um geito que lhe dão,
trocam o mal da acção em bem, pela intenção.
Prometto- lhe ensinar- lh'a ; e em quanto não lh'a ensino,
guiando-se por mim , socega, e está n'um sino !
Venha sem mais tardança o jubilo ineffavel!
Por todo o0 resultado eu fico responsavel .
(D. Isaura tosse com mais força)
Que tosse com que está !

D. Isaura

Fortissima ! Jesus !
Que tormento !

Tartufo

Se quer pastilhas d'alcaçuz


tenho aqui ...
ACTO IV 135

D. Isaura

Obrigada! torna a tossir) Ai , quesupplicio! Cruzes!


Esta não é das taes que cedem a alcaçuzes!

Tartufo
É forte impertinencia!
D. Isaura

E mais do que imagina !


Tartufo

Porém, tornando ao ponto, o escrupulo que a mina,


ou minava, já vê que nada vale. Estamos
em plena liberdade, e o mal do mal que obramos
é o escandalo ; mais nada ; o peccar em segredo
até nem é peccar!

D. Isaura (depois de ter de novo tossido e batido


de impaciencia em cima da mesa)
Pois finalmente cedo ;
já que se quer por força; a culpa não é minha ...
Quando alguem me arguisse , eu que recurso tinha ?!
>

Tartufo
Arguil-a ? jámais !
D. Isaura

Torne a correr primeiro


as casas d’esse lado (apontando para a porta do fundo
136 TARTUFO

Tartufo

Até o galinheiro
examinei .

D. Isaura (levantando -se, e falando com agitação ,


e muito apressada)

Pois sim ; mas torne ... Galeria,


quarto, alcova, capella, o falso, a sacristia,
e os sotãos, que são dois, percorra tudo eе venha .
Eu tambem por ali talvez não desconvenha
(apontando para a primeira porta da esquerda)
revistar novamente . Ai , se o meu homem vinha ...
Que susto !... que temor !

Tartufo

Ora ! senhora minha !


lá d'esse nada tema ; ha outro, ou jámais houve ,
como aquelle paz -d'alma ? elle não vê, não ouve,
nem pensa ; é um animal que ha-de ir pelo nariz,
as vezes que eu quizer, beber ao chafariz !

D. Isaura

Bom ! Vá, não tarde, e volte !


( Tartufo sai pela porta do fundo ; para Anselmo)
Adormeceu - se ahi ?
e quer continuar?
ACTO IV 137

SCENA VI

D. ISAURA e ANSELMO (que sai de sob a mesa)

Anselmo

Eu é que nunca vi
perversão d’este lote ! E sabe frases ternas
o tal patife! Estou de braços e de pernas
como que derreado, e cá por dentro aos baques ;
sou , não posso negal-o, o papa dos basbaques.
D. Isaura

Pois sai jál quer brincar? esconda-se outra vez ;


já agora ha-de assistir ao resto do entremez.
Falta o mais divertido ! Espere a vêr se a gente
no que lhe diz do santo é verdadeira ou mente .
Aguarde- lhe o milagre. Andel segundo eclipse !
Anselmo (exclamando)

Nabuchodonosor ! besta do Apocalipse !


que estoiraste do inferno e me caiste em casa !

D. Isaura (arremedando-lhe o tom declamatorio)

Para esposar-me a filha !


(em tom natural) Então, casa ou não casa ?
Mas torno -lh’o a dizer : não creia tão ligeiro.
Para o julgar melhor, deixe-o findar primeiro.
(D. Isaura esconde Anselmo atraz de si para não ser visto por
Tartufo quando entrar).
138 TARTUFO

SCENA VII

Os mesmos e TARTUFO (que vem da porta do fundo


todo alvorocado)

Tudo, tudo é por nós : lá dentro nem viv’alma!


Um abraço de amor outorgue a amor a palma.
(quando vem de braços abertos para D. Isaura , retira - se esta
para o lado, e apparece- lhe Anselmo)

Anselmo (agarrando a Tartufo )

Alto lál menos fogo! Enfreie-se. Cuidava


que eu era o seu captivo, e aquella a sua escrava ,
meu beato sultão ? Era uma maravilhal:
namorar-me a mulher ee receber- me a filha !
Eu não queria crer ! Theodoro, Luiz, Victoria ,
conheciam-n-o ! Entrego as mãos á palmatoria.
Não preciso de mais. Vi já mais que bastante !

D. Isaura

Fui por força obrigada a ser comediante,


muito contra o meu genio !

Tartufo (para Anselmo)

Oh ceos ! pois acredita ?

Anselmo
Mau !
ACTO IV 139

Tartufo
Meu irmão ! ...
Anselmo

Peior !

Tartufo

Que a bondade infinita


me deixasse cair no seu sancta sanctorum ...

Anselmo

Nós fallamos latim ? pois oculo ruorum !


ou mais portuguezmente: é já no olho da rua !
A minha casa é minha !
Tartufo

Engana-se : foi sua ;


hoje é minha e reminha ; e saia-me já d'ella,
com toda a sua sucia. A parvoa entaladella
que me queria armar! Estupido! e a senhora
outra que tal como elle, uma calumniadora !
Eu os ensinarei . Tenho com que os confunda;
tenho com que punir a malvadez profunda
de quem ousa ultrajar a santa providencia,
e pôr fóra um christão da propria residencia.
(sai pela segunda porta da direita)
140 TARTUFO

SCENA VIII

Os mesmos menos TARTUFO

D. Isaura

Que vem elle a dizer n'aquellas fanfarrices ?

Anselmo

Se 0o souberas, mulher, talvez que te não risses !


Acabrunhou -me!
D. Isaura

Como! em que? Fogos de palha ...

Anselmo

Ha certa doação que muito me atrapalha!

D. Isaura
Que doação ?
Anselmo

Não sei ! Verás! Mas, que desgraça !...


Tenho o ceo contra mim ! Se se me não congraça,
temo inda ...
D. Isaura
O que ?
ACTO IV 141

Anselmo

Vou vêr se o meu santo visinho


me não tirou do quarto um certo cofresinho !
Não bastava , meu Deus, cairmos de repente
na miseria total ! Senhor Omnipotente !
A deshonra tambem ! o cadafalso !

D. Isaura

Esposo ,
deliras! torna em ti .

Anselmo

Que lucto opprobrioso


para uma pobre mãi no cabo de seus dias ;
e para ti, mulher !

D. Isaura

Ai ceos ! que tresvalias !

Anselmo

E aos meus filhos que herança : infamiai desamparo !


penuria !
D. Isaura

Tremo ! Fala, explica -te mais claro .


142 TARTUFO

Anselmo

Vou ver se encontro o cofre


(em acto de sair pela segunda porta da esquerda)

D. Isaura

Eu vou contigo.

Anselmo
Fica . (sai)
(D. Isaura deixa-se cair, aterrada, para cima de uma cadeira ).
7

SCENA IX

D. ISAURA VICTORIA ( que vem da porta do fundo)

Victoria

Senhora, o seu compadre, o Matheus de Bemfica,


chega da quinta agora ; estão lá na cosinha
elle, as filhas, e a malta.
>
ACTO IV 143

SCENA X

As mesmas e MATHEUS (que veiu na colla de Victoria , e conduz


pela mão a ROZA, que traz um grande ramalhete de flores)

Matheus

A sua afilhadinha,
aqui a minha Roza ...

Victoria

Uma flor , benza-a Deus.

Matheus

E é verdade ! Pediu - me ...

D. Isaura

Assente -se, Matheus .

Matheus

Não faz mingua. Pediu-me (e, indas que o não pedisse,


eu já tinha tenção) que não escapulisse
este dia feliz dos annos da madrinha
sem a gente cá vir beijar-lhe a mão. ( para a filha) Rozinha,
vá lá, bota - lhe a lôa . (para D. Isaura) Um verso todo armado
lá da cabeça d'ella ! Aquillo, Deus louvado !
lá p'ra os versos, verão, sempre tem uma prosa!
Sai a mim, que em rapaz co’uma violinha ...
144 TARTUFO

D. Isaura
Roza ,
chegue- se cá, e um beijo .

Matheus

Um beijo! muitos beijos.

D. Isaura (para Roza, depois de se terem abraçada e beijado)

Agradeço -te, filha; hoje os nossos festejos


transformaram -se em lucto !

Matheus ( aterrado)

Em lucto ! Que nos diz ?

D. Isaura

É verdade, Matheus. Casa mais infeliz


nunca a viste no mundo !

Matheus

Ora essa ! Pois então


Deus largou -se a dormir? Que succedeu ? Que estão
com segredos co’a gente ? Aqui não ha que têma ;
se traz dentro paixão, despeje essa apostema;
peior é embatucar. Que foi ?
ACTO IV 145

D. Isaura

Não sei por ora ;


não t'o posso explicar. Talvez que n'esta hora
estejamos, Matheus , mais pobres que os mendigos !
Matheus

Com esta casa e a quinta ! Os olivaes e os trigos


vão que é louvar a Deus ! Os gados e a manada
filham que até faz rir. Temos a bacellada
que este anno hade já dar. Os pomares ... (ahi trazes)
( falando de passagem para Roza, e referindo-se a muita flor
de laranja que ella apresenta no seu ramalhete)
anda Christo a emborcar - lhe as flores aos cabazes !
Pobre quem tem aquillo ?!
D. Isaura

E se perdemos tudo ?!

Matheus (caindo attonito e desanimado para cima d'uma cadeira)


Ai Jesus, que arrebento ! Oh ! commadrinha ! eu cudo
que estou sonhando ; não ?
(depois de alguma pausa a esperar debalde resposta)
accordem -me.

D. Isaura
Certeza
inda a não ha ; porém ...
10
146 TARTUFO

Matheus

Que será da pobreza


faltando-lhe esta casa ! E quem é causador
de tamanha desgraça ? ai ! valha-me o Senhor !
diga -m'o já , commadre.

D. Isaura

Ignoro , mas supponho


que Tartufo .

Matheus ( levantando-se de subito)


O beato ! O vozeirão tristonho !
O cara atraiçoada! O santo do diabo !
Matheus não seja eu , se d'elle não der cabo.
Até ao dia d'hoje ainda não matei
senão um macho bravo ; agora matarei
este lobo cerval ; e toda a gente honrada
ha-de dizer : - foi bom ; fez bem , não valeu nada.
D'esta feita, maroto, é que eu te ajusto a conta ,
>

Quando lá foi a quinta, ha um mez, ou tanto monta ,


não teve a confiança (alimaria tinhosa ! )
de querer arrastar a aza aqui á Roza,
e á prima d'ella, á Ignez, e a Angelica do oiteiro!!
grandissimo tratante ! Emfim , vamos primeiro
ao que presta . A commadre escusa estar afflicta ;
a Providencia é grande ; e nunca Deus permitta
que percam os seus bens, mais dos pobres que seus ;
mais, se isso acontecer, inda cá está Matheus,
ACTO IV 147

que tem uma casinha, humilde mas honesta,


em que a pode acolher. Os meus rapazes e esta
(apontando para Roza)
hão de os servir por gosto, assim como eu . Verão .
Indas que sou caseiro, e nunca fui ladrão,
tem -me Deus ajudado, e graças ao Senhor,
ha já com que se viva ; a poder de valor,
de arranjo , de poupança, e muita diligencia,
tenho junto vintens, e é rirem da indigencia.
Por tanto, o dito dito .

D. Isaura (apertando-lhe a mão, e limpando os olhos)

Oh ! não, meu bom compadre,


nunca ... nunca ...

Matheus ( ajoelhando-lhe diante)

E porque?? Se eu a offendi, commadre,


queira-me perdoar ; um bruto ás vezes sente
como deve sentir, e fala toscamente.
Agravei-a, já vejo .
D. Isaura

Oh não ! Agradecida !

Matheus

Roza, pede á madrinha, emfim , que se decida,


e perdoe a teu pai o não saber ...
10 *
148 TARTUFO

D. Isaura (despedindo-os, voltando -se,


para que a não vejam chorar, e fazendo signal a Victoria para que
os leve)
Matheus,
até depois .
Matheus
Sem mais .
D. Isaura

Adeus, Rozinha, adeus !


( Roza e Matheus beijam a mão de D. Isaura, e dirigem -se com
Victoria para a porta do fundo)

Matheus (parando antes de sair, cruzando os braços no peito


e olhando para o ceo)

E façam lá firmeza em glorias d'este mundo !


Alcatruzes de noral : em riba, e logo ao fundo !
E a gente a botar conta a danças e folia
esta noite no pateo ! ao ar foguetarial...
a ermida a repicarl ... Era um cair o Carmo ...
Mas deixa, deixa estar, ladrão, que bas-de pagar-m'o !
( formando uma cruz com os dedos e beijando -a, em forma de
juramento )
ACTO IV 149

SCENA XI

D. ISAURA (que ia apressada para a segunda porta da esquerda)


e ANSELMO (que sai d'ella abatido)

Anselmo

Nem fumos do tal cofre .

D. Isaura

Então ? ....

Anselmo
Já não duvido .
Foi-se a ultima esp'rança, e tudo está perdido.

FIM DO ACTO IV
ACTO V
SCENA I

ANSELMO e THEODORO

Theodoro
Onde vai ?
Anselmo

Nem eu sei. Trago perdido o siso .

Theodoro

O caso é complicado ; entendo que é preciso


discutirmos primeiro, e mui sisudamente,
para depois se obrar o mais conveniente.

Anselmo

O cofre é sobre tudo o que me desespera.

Theodoro

Visto isso, era um thesoiro... algum segredo...

Anselmo
Oh ! se era !
154 TARTUFO

Lembra -se do Constancio , aquelle nosso amigo,


que emigrou e lá anda ?...

Theodoro

Ah ! sim .

Anselmo
Pois foi commigo,
que elle se quiz abrir, já quasi a despedida,
sobre a causa da fuga. Os bens, e mesmo a vida,
tinha tudo n'um cofre. Entrega-m'o, com medo
>

de o fiar d'outras mãos; eu juro-lhe segredo,


e acceito o encargo ...
Theodoro

E vai (foi mais do que imprudencial)


fiar d'outrem ...
Anselmo

Então ! ... casos de consciencia !


Era o meu director aquelle fementido;
fui-me la direitinho, e expuz-lhe o succedido .
Eu não n - o tenho já por coisa muito sabia,
mas finura tem elle ; e uma labia, uma labia...
Pois, senhor, convenceu-me a que lhe désse a caixa,
co'as seguintes razões que então julguei de escaxa !
- Em caso de suspeita (e o demo que as atiça ! )
podiam-lhe dar busca ; e sabe o que é justiça :
autuavam -n -o , ia preso, e, complíce innocente ,
havia de pagar pelo culpado ausente ,
sem lhe valer razão, direito , ou caramunbas!
ACTO V 185

Os papeis do seu cofre eram as testemunhas.


Deus 0o livre ! Ora, estando o cofre em minba mão,
já póde, e com verdade, o meu honrado irmão
jurar que não n -o tem ; e até com isso tira
de cima da sua alma o peso da mentira !
Theodoro

Metteu - se em maus lençoes! Parece-me, cunhado,


que lhe sobram razões de andar acabrunhado !
Antes de o conhecer, doar-lhe assim de chofre
toda a sua fortuna, e confiar-lhe o cofre !
Co'o marquez de Pombal, ministro omnipotente,
não ha poder que salve homem que ao throno attente.
Andou mall ...
Anselmo

Deus me tenha em sua santa guarda !

Theodoro

Quem sabe o muito mais que inda talvez o aguarda,


tendo posto em poder de um homem tão perverso
duas armas assim, e hoje tão seu adverso ?!
tambem por culpa sua!

Anselmo

Alto ! Por culpa minba !?


Theodoro

Que duvida lhe põe ? Aquella santa alminha


156 TARTUFO

não se levava a mal . Uma doblez tamanha


requeria estrategia. A' manha oppõe-se a manha.

Anselmo

Custa a crêr como se une a um ar de santidade


ingratidão tão negra, e tanta iniquidade!
Entrou -me para aqui faminto , nu, mendigo;
>

beijei-o; enriqueci-o... e agora ?... 0 que lhe eu digo


.

é que de homens de bem me livre Deus ! Se apanho


mais algum, deixe estar, verá como lh'o amanho !

Theodoro

Outro excesso ! Que genio ! É sempre ou tudo ou nada ;


o meio termo nunca ! Acha uma rez damnada? ...
mata o rebanho todo ! Ou credulo a tratantes,
ou incredulo aos bons ! Antes, mil vezes antes,
que do sceptico o extremo, o extremo do crendeiro .
Se ha mau , nem tudo é mau ; se há falso , ha verdadeiro.
Mude-me de pensar, e deixe desatinos.
Crêm os parvos em tudo ; e em nada os libertinos .
Moderação, prudencia, é o que lhe recommenda
a lição que apanbou ; e tome d'ella emenda !
ACTO V 157

SCENA II

Os mesmos e LUIZ

Luiz

Ouvi dizer, meu pai, que o rei dos impudentes


o andava a ameaçar ! é crivel ?

Anselmo

É ; não mentes ,
nem me tinhas mentido .
Luiz

O ingrato, o inſame, vira


contra o seu bem feitor, que tanto lhe servira,
as armas que houve d'elle, as suas proprias armas ?
Anselmo

É verdade, meu filho ! E breve ha- de cravar-m'as


n'este peito, onde sempre achára amor tão cego!

Luiz

Então, meu pai , descance! Eu é que não socego


em quanto não tiver com estas mãos cortado
as orelhas e a lingua ao biltre abeatado !
Vou descartal- o d'elle ! Hei -de pregar-lhe um cravo
na roda do infortunio !
158 TARTUFO

Theodoro

Oh ! grande moço ! Bravo !


honra-te esse falar, e é digno ; mas prudencia !
Sangue frio é melhor, mais util do que ardencia .
Temos leis, tribunaes, e um rei sapiente e justo .
Contemos co'a justiça.

SCENA III

Os mesmos e D. ROSARIA (que vem toda esbaforida da se


gunda porta da direita) ; VICTORIA, D. ISAURA e D. MARIANNA,
(que saem da segunda porta da esquerda)

D. Rosaria

Ai que sustol que susto !


O que eu ouvi contar! Senhor meu Deus, fazei-me
que seja tudo falso , e que má fogo queime
a quem nos vem ralar com estes mexericos !

Anselmo

Sabe a historia de Job ?


D. Rosaria

Era um dos reis mais ricos ...


depois foi-se -lhe tudo !
ACTO V 159

Anselmo

O mesmo exactamente
que nos vai succeder : a mim , ee a minha gente !
Deu-me um optimo pago! Acolho um farroupilha,
dou - lhe aa minh'alma, e tudo , até lhe offerto a filha,
e elle até a mulher me quiz roubar !! E acabo .
D. Rosaria
Jesus !
Anselmo

Um santo assim é homem , ou diabo?

D. Rosaria
Credo !!
Anselmo

Então, oiça mais ! Co'os proprios beneficios


9

que de mim recebeu me tece os maleficios!


Diz que me vai já pôr d'este palacio fóra,
porque é seu e re-seu !

D. Rosaria

Nome da benta hora !!!

Anselmo

Que me ha -de reduzir ao miserando estado


de penuria, em que a elle eu o encontrei ...
160 TARTUFO

Victoria ( arremedando o iom dos acoitados » de Anselmo)


Coitado !

D. Rosaria

Meu filho, eu cá não creio ; e não creio, e não creio !

Anselmo
Como !
D. Rosaria

Não creio, não ; más linguas não têm freio !


Triste de quem é bom ! Já lá dizia o outro :
- bordão na asninha mansa, e muita festa ao potro !
>

Anselmo

Que vem a dizer n'isso ?

D. Rosaria

O que venho a dizer,


Anselmo ? ... É que esta casa ... em tendo mais lazer,
eu te direi o que é ; quando estas não me ouvirem ,
nem estes dois heroes . Não quero que se virem
contra mim outra vez . Basta o que basta. Em summa,
e com esta me vou : Por mais que se consuma,
e se mate a prégar Tartufo a taes hereges,
não t'os mete a caminho , e nem já tu lh'os reges .
Odeiam-n-o ; pudéral Ao cão que guarda a vinha
nunca faltou pedrada.
ACTO V 161

Anselmo

Aqui não se adivinha


a que tudo isso vem !
D. Rosaria

Eras tu inda um pito ,


e já eu te dizia o que hoje te repito :
- A inveja contra os bons , tem no mundo a espelunca ;
morrerão os que a têm , porém a inveja nunca! -

Anselmo
Boa sentença !
D. Rosaria
Olé !
Anselmo

Mas como quer que a ajouje,


senhora minha mãi , com este caso d'hoje ?

D. Rosaria

D'onde tudo isto vem , sei-o eu , mas não sou brucha !

Anseluro

Então, porque o não diz?


Victoria

Porque não desembuxa ?


11
162 TARTUFO

D. Isaura
É melhor explicar-se !

Luiz

E é!

D. Rosaria

Não ha santelmo
para este temporal ! Sempre t'o digo, Anselmo :
a origem d'isso tudo, e olha que não me engano,
foi algum conto no ar de magana, ou magano,
que, para te pôr mal com o homem que os embola,
te encaxou na moleira a infame carambola !

Anselmo

Eu já lhe dice, mãi , que não trovei a esmo ;


sei , porque vi , e ouvi ; -ouvi , e vi , eu mesmo !

D. Rosaria

Tudo isso e muito mais fazem murmuradores!


Caimbras lhes dêm na lingua ! Olha aquelles senhores
a escarnicar, não vêm ? E cá as nossas femeas!
a rir !
Anselmo

Mãi ! Não me obrigue a proferir blasfemeas !


Vi . Vi .
ACTO V 163

D. Rosaria

As linguas más são sempre umas navalhas !


hão-de-te retalhar sem dó, por mais que valhas !

Anselmo

Que birra e sem razão ! (De marmore que eu fôra


já estaria a suar). Vi . Como hei-de eu, senhora,
afirmar -lhe que vi ? Com estes, que algum dia
a terra ha de comer . Vi-os eu ! Vi-o , e vi-a !
Vi-os aos dois ! entende ? Aqui ! foi mesmo aqui !
e mais podia ver ! mas vi bastante . Vi ,
o que se chama ver ! Se não me ouviu ainda ...
porta -voz não ha cá . Tenho a conversa finda.
D. Rosaria

Nem tudo é o que se cuida. Os que padecem medos


muitas vezes suppõe ser hospedes os dedos .
Bem pequena é a ră, mas faz muita farronca .
A quem cevados cria em qualquer moita ronca !
Viu ; mas quer só por ver sentenciar de estalo ? ...
O pai de Santo Antonio ...

Anselmo

Escusa recontal-o ;
bem sabemos !
D. Rosaria

Pois sim . Estava já com a alva,


11+
164 TARTUFO

e ia espernear se o filho o não defende ee salva !


Contra aquelle innocente havia testemunhas
que tambem tinham visto ...

Anselmo

Eu dano-me !

D. Rosaria
Se ás unhas
do verdugo escapou , foi só por um milagre .
Quem não gosta do vinho, alcunha-o de vinagre!
E coitado do cão mal que um disser : danou-se !

Anselmo

Visto isso devo achar mui justo , muito doce ,


muito caritativo, aquelle ardente zelo
de me abraçar a Isaura !

D. Rosaria

Eu já não sei disel-o


de modo que se entenda! Homem ! a minha aquella,
é que se não accuse a um santo de titella
antes de presenciada a sua obra toda !

Anselmo

T’arrenego ! E eu tambem dançar por fim na boda?!


Eu posto ali á espera ... até que o demo risse ?!
Não me obrigue a dizer alguma parvoice !
ACTO V 165

D. Rosaria

Meu filho ! tambem tu ! Queres perder-te ? passas


dos bons para os judeus? da fé para as trapaças?
Martyrisem um justo ; é optimo recreio !
Eu , só creio em Tartufo, e de vocês descreio !

Anselmo

Deixe-me, por quem é ! Senhora, se não fora


pensar que é minha mãi, tinba -me já, senhora,
ouvido o que Maſoma... Estou banzando !
Victoria
E grita
por não se acreditar em quem não acredita !
Pena de Talião : assim como fan , fan !

Theodoro

Mas que se ha-de fazer ? Basta de palrea vă !


O tratante ameaçou ; não ha do ir !

Luiz
Pois elle ...
chegaria a atrever-se ...
D. Isaura

Eu lá do ouzio d'elle
julgo possivel tudo ! O que não é possivel
é que, sendo a maldade e a ingratidão visivel ,
possa haver um juiz...
166 TARTUFO

Theodoro (para Anselmo)


Cunhado ! não se fie ;
não ha-de haver razões que o monstro não afie,
embuste que não prove, enredo que não teça ,
peita a que não recorra! É mau, e tem cabeça!
De mais, onde ha no mundo inferno, desaforo,
labyrintho, incerteza , escolhos, como o foro !
Uma demanda ! Sabe o que é uma demanda ?
Não é só o juiz, menos a lei, quem manda !
É o escrivão, o empenho, o rabula, o sofisma,
a testemunha falsa ! Um leve toque ao prisma
logo as cores transtorna : escuro em claro muda ;
o sanguinoso em verde . A gente fica muda,
incredula. O demonio a rir do prejuizo,
e Deus a escrever mais no Livro do Juizo !
Ou se tenha justiça, ou não se tenha , um pleito
põe-nos o tedio á mesa ; os sonhos maus no leito ;
enoitece-nos a alma ; enturva-nos as festas;
nos filhos , na mulher, têm-se visões infestas,
a arguir-nos talvez, tristes, sem dar palavra,
da sentença fatal que o nosso amor lhes lavra !
E a existencia minada , a tão mau uso havida,
vê sem pena o sepulcro, e pesa-lhe o ser vida !
Tudo, menos um pleito ! E digo- lh’o outra vez :
em o levar a mal nem sabe 0o mal que fez !

Anselmo

Fiz , sim , mas que lhe quer? Vendo o ladrão tão firme,
a escarnecer de mim, não pude reprimir-me!
ACTO V 167

Theodoro

Tomára que entre os dois podesse , de algum modo ,


haver uma concordia !
Anselmo

Eu cá, não meacommodo


com semelhante ideia !
Theodoro

Um simples fingimento
de concordia, é que eu digo !

Anselmo

Eu ! ser o seu jumento !


Obrigado ! Estou fario .
D. Isaura

Houvesse -me alguem dito


quanto eram de temer as artes do maldito,
que por mim não chegava a coisa a taes extremos !

Anselmo (para Victoria, vendo entrar Modesto


pela segunda porta da direita)

E deixaram a porta aberta! Quem teremos?


Victoria, vai saber quem é, a quem procura,
e que quer ! (á parte) Acertou -me em bella conjunctura !
(D. Rosaria vai para o fundo ; senta -se , puxa as camandulas
da algibeira e começa a bichanar)
168 TARTUFO

SCENA IV

Os mesmos e MODESTO

Victoria (para Modesto)

O senhor que pretende?

Modesto

Ah ! Salve- a Deus , santinha !


É serva cá da casa ?
Victoria

E sua !

Modesto

Pois eu tinha
que falar com seu amo !

Victoria

Está co'umas visitas ,


não pode agora!
Modesto

É que ha umas certas coisitas


em que é mister falar-lhe ... Escusa de ter medo !
Não são más ; não são más ! Vá dizer- lhe em segredo
que tenha paciencia, e venha ouvir -me. Creio
ACTO V 169

que ha- de gostar. Socegue ! Eu nunca fui correio


de noticias ruins ! Em hora boa o diga !

Victoria
O seu nome ?
Modesto

Vá, vá, curiosa d'uma figa !


1

que o não ha-de saber ; diga- lhe tão somente


que o procura um sujeito, enviado expressamente
pelo senhor Tartufo. E traz uma proposta
magnifica, e precisa ir-lhe levar resposta !

Victoria (chegando-se para Anselmo)

É um homem cortez, e muito delicado ;


diz que o senhor Tartufo 0o manda com um recado
com que o senhor Anselmo ha-de ficar contente .

Theodoro (para Anselmo)

Vá , aber quem é, e escute - o !

Anselmo
Talvez tente
a reconciliação . Diga-me por favor
o que hei-de responder .

Theodoro

Nem sombra de rancor !


170 TARTUFO

sentido! Se elle vem propor-lhe que se acabe


a discordia entre os dois, escuta -o , já se sabe.
(Anselmo dirije-se para Modesto)

Modesto (com grandes reverencias)


Salve - o Deus, meu senhor ! Desejo-lhe venturas !
Anselmo
Outro tanto 1
Modesto

E que o livre o ceo de creaturas


que lhe desejem mal !

Anselmo (em voz baixa para Theodoro)


Acho- lhe um modosinho
que promette levar a coisa a bom caminho !

Modesto

Venho aqui , senhor meu , presentar-lhe um mandado,


se dá licença ...
Anselmo

O qué ?
Modesto

Não tenha algum cuidado,


que não é caso d'isso . É mera e unicamente
ordem de despejar com toda a sua gente ,
ACTO V 171

e tudo quanto é seu, movel e semovente,


sem resistencia alguma, e logo em continente,
d'este nobre palacio , a outrem pertencente !
Ora aqui tem o que é.
Anselmo

Eu , sair !

Modesto

Certamentet
se faz favor; e já ! Cuido que não ignora
ser do senhor Tartufo esta casa em que mora ,
e todos os mais bens que o senhor (bello amigo !)
outro sim lhe doou . E aqui trago eu comigo,
por signal, a escriptura, autentica e perfeita,
em que a tal doação pelo senhor Ibe é feita !

Luiz ( para Modesto)

Não ha pasmo que iguale o intrepido descaro


de quem ouza dizer coisas assim !

Modesto
Meu caro ,
isto é só com seu pai, varão prudente e honrado ,
que não ha-de querer por ditos de esturrado,
indispor contra si a lei e os seus agentes.

Anselino
Mas, senhor ...
172 TARTUFO

Modesto

Sim senhor, estamos bem scientes


da sua probidade, e de que não resiste
á justiça d'el-rei, nem por quanto oiro existe !
E assim permittirá, sem o minimo embargo,
que eu , como homem de bem, preencha o meu encargo !

Luiz

Está -me a parecer, que o tal escribasinho


quer provar no espinhaço o meu bordão de azinho .

Modesto (para Anselmo)

Faça que o seu menino esteja acommodado,


ou saia ; aliás ...
Luiz

Aliás !...

Modesto

Aliás fica autuado .

Anselmo la parte)

Dava o que tive, ou mais, por te pregar na tola


um murro como um seixo , indigno mariola !
ACTO V 173

Theodoro (em voz baixa para Anselmo)


Tate !
Luiz

Comem -me as mãos ! ...

Victoria

E eu acabava o resto
só co'o pau da vassoira ; ouviu , senhor Modesto ?
Modesto

Olhe o preto no branco ! Eu posso pol-o; e posto ,


fica . Então , a menina evite algum desgosto !

Theodoro (a Modesto )

Basta . Acabar com isto. Entregue a intimação,


e parta .

Modesto ( despedindo-se com grandes reverencias)


Sim senhor. Muita consolação
na alma e tambem no corpo, e infindas alegrias ,
é o que eu mais dezejo a vossas senhorias !
( sai pela segunda porta da direita)
174 TARTUFO

SCENA V

Os mesmos menos MODESTO

Anselmo

A quem te cá mandou armar tal barafunda,


e a ti que assim a armaste, o inferno vos confunda !
Amen, amen , amen ! (para D. Rosaria) Está já convencida,
ou precisa ver mais, para que se decida,
minha mãi ?
D. Rosaria (levantando-se)

Senhor Deus ! isto é de endoidecer !

Victoria (a D. Rosaria)

E eu acho que assim mesmo é que devia ser :


as riquezas aqui podiam dar em vicios ;
agora nas mãos d'elle lão -de ser beneficios
para toda a pobreza . O santo cubicou -as,
porque assim n'uma só fez duas obras boas .
( para Anselmo)
Não digo bem senhor?

Anselmo

Tu calas-te? Com ella


escusado é teimar . Safa co’a bacharella !

Theodoro (para Anselmo)

Vamos lá, que se faz ?


ACTO V 175

D. Isaura

O mais conveniente
seria, quanto a mim , contar-se a toda a gente
a ingratidão do heroe, e este comportamento
para o qual nem ha nome ; e d’este modo , assento
que nenhum tribunal , a um monstro diffamado
entregaria os bens d'um homem bom e amado !

SCENA VI

Os mesmos e VALERIO (que vem acodado da segunda porta


da direita)

Valerio (correndo com os olhos a toda a companhia)

Tudo gente fiel! posso falar. (para Anselmo) Motivo


da maior importancia, e mais do que afflictivo
me traz aqui , senhor ! Corri a acautelal-o
d’um perigo imminente e enorme.
Theodoro

Oh ! fale !
Valerio
Falo ,
muito embora me custe, e a isso vim . Contou-me
um amigo de infancia, um intimo (o seu nome
nada faz para o caso, é homem de verdade,
isso é que importa mais) . Sabendo a intimidade
que eu n'esta casa tenho , e quanto amor nos liga,
176 TARTUFO

contou -me pois, repito, afim de que lh'o eu diga ,


meu bom senhor Anselmo, um segredo d'estado
descoberto por elle ; e tal, que, se frustrado
não for por nós a tempo , a honra, e mesmo a vida
do senhor d'esta casa , em brevé está perdida !
Fujal é forçoso ; fujal e co’a maior presteza.
O velhaco, o traidor, que punha á sua mesa,
a quem chamava irmão , e que, sagaz e esperto,
The lia no interior como n'um livro aberto ,
foi-se ter com el-rei ...

Anselmo

Ceos !

Todos

Com el-reil

Valerio
Agora,
haverá pouco mais talvez do que uma hora,
e apresentou-lhe aos pés um cofre...

Anselmo
O que me tinha
furtado !
Valerio

Exactamentel e no qual se continha


todo o arcano d’um reu de leza-magestade!
Entre os mil escarceus da sua lealdade,
ACTO V 177

gabou -se de haver tido o cofre por um logro


a um bemfeitor e amigo, a um socio, e quasi sogro .
—Pois sogro, socio, amigo e bem feitor, podia
comparar -se, antepor -se ao pai da monarchia ?!
Por isso para elle eram de egual horror :
Constancio, o conspirante, e Anselmo, o encobridor.
O que se ha-de seguir, ignoro ; está já dada
a ordem de prisão ; isto é que eu sei .

Theodoro
Mais nada ?
Valerio

E tambem , que Tartufo, o passaro sinistro,


se offereceu gostoso, a vir com o real ministro
ajudar a prisão .
Theodoro

Percebo o que especula :


não trahiu por trahir ; trahiu porque calcula
que este serviço o exalta, e se lhe torna um meio
de melhor consumar a usurpação do alheio .

Anselmo

Aquillo é uma panthera !


Valerio

A minima demora
póde-nos ser fatal !
12
178 TARTUFO

D. Rosaria

Nome da benta hora !!!

Victoria
Que maroto !
D. Isaura

Que horror!

D. Marianna

Meu Deus !

Luiz
Que bacamarter
Theodoro
É fugir !
Anselmo

Para onde? ou como? em toda a parte...


Jesus ! que estou perdidol...

Valerio

Eu tenho ali á porta


a carruagem ; desca ; o resto nada importa ;
cuide só de escapar. Eu voupor companheiro,
se o permitte ... (tirando e apresentando -lhe uma bolça)
E aqui vem de prevenção dinheiro!
ACTO V 179

Anselmo

Que obrigações, mancebo ! Espero inda algum dia


provar-lhe... (para a companhia)
E agora adeusi até ... quem nos diria ! ...
Isaural minha mãil...meus filhos ...meu Theodoro ...
e tambem tu , Victoria... e... cala -te ... que eu choro...
adeus todos !
Todos
Adeus !
D. Rosaria

O padre Santo Antonio,


os tres reis do Oriente, e o senhor S. Theotonio,
que tão valente foi, vão comtigo, e te guardem !

Theodoro

Bom ; bom ; partir ! partir !

Valerio

Partamos.

D. Isaura
Vão ! pão tardem !

12 *
180 TARTUFO

SCENA VII

Os mesmos, o MARQUEZ DE POMBAL e TARTUFO (que en


tram pela segunda porta da direita, e dois soldados que ficam de
guarda aos dois lados da mesma porta, no momento em que Valerio
ia puxando por Anselmo para sairem . Todos os que estavam em
scena ficam pasmados, e mostrando nos semblantes e gestos o maior
terror)

Theodoro (em voz baixa para D. Rosaria, que é quem lhe


está mais perto)

O marquez de Pombal !

D. Rosaria (em voz baixa tambem, e benzendo-se )

Ai ! Virgem das Mercês !


(ajoelha por um breve espaço a bichanar)

D. Isaura (em voz baixa)

Estala emfim 0o raio !

Luiz (baixo tambem para D. Marianna)

O marquez !

D. Marianna (do mesmo modo para Luiz)

O marquez !
ACTO V 181

Tartufo (detendo a Anselmo )

Alto ! onde vai , senhor? Não corra ; o ninho é perto,


e já ninguem lh’o tira. Onde ia tão esperto ?

Anselmo
Ceos !

Tartufo

Da parte d’el -rei: preso !

Anselmo

Tu mesmo ajudas
a dar o ultimo golpe ao teu roubado ?! ah ! Judas !

Tartufo

Diga quanto quizer; exale as suas furias ;


aprendi do meu Deus a perdoar injurias!

Theodoro
Moderado até ' li !
Luiz

Sempre o Deus na vanguarda !


Tartufo

Pois das garras dos maus quem , senão Deus, me guarda ?


Podem -se ir enraivando ; eu cumpro os meus deveres !
182 TARTUFO

D. Marianna
Faz um bello papel!
D. Rosaria

Senhora dos Prazeres,


matai-me este ladrão !
Victoria

E trinta cães famintos


que lhe roam na ossada !
Luiz

E essa alma lá nos quintos


a berrar como um bode !

D. Isanra

Infame !

Luiz
Scelerado!

Tartufo (para o marquez)

Tudo isto porque adoro aa Deus, e sirvo o estado !

Anselmo

Quem te arrancou do lodo e da miseria?!


ACTO V 183

Tartufo
Trato
de ser um bom vassallo, e depois serei grato .
.

D. Isaura
Impostor !
Luiz

Não poder cair -te qualquer praga . . .

D. Marianna

Rei ! Deus ! que affectações!

• Victoria

Que pé para uma braga !

Theodoro (para Tartufo )

Mas, senhor bom vassallo , eu vou contradizel - o :


porque armostrou só hoje esse abrazado zelo
no serviço d'el -rei ? hoje, precisamente,
depois que o seu amor, adultero , insolente ,
foi por esta senhora a Anselmo, a seu marido,
denunciado, exposto , e o perfido atrevido
>

expulso d'esta casa ? explique a coincidencia !


De malvadez tão clara extraia uma innocencia !
Não fallo na doação de todos seus haveres,
( indicando Anselmo)
feita por este illuso ao homem dos deveres;
184 TARTUFO

mas somente pergunto ao mui fiel vassallo :


porque razão, querendo ao principe accusal-o,
e cumprir d'esse modo a sua obrigação,
acceitou de um culpado aquella doação ?!

Tartufo (ao marquez)

É sanzala de mais temo que a paciencia


se me chegue a acabar ! Rogo a vossa excellencia
cumpra as ordens que traz d'el-rei nosso senhor !

O Marquez
Tem razão, que é já tempo ; e assim , faça favor
>

de vir para a cadeia !


Tartufo

O quêl falla comigo?

0 Marquez
Com o senhor mesmo !
Tartufo

Ir eu, em vez do meu amigo !


>

eu! eu ! para a cadeia?!

O Marquez
Escuso dar -lhe contas
das vontades d'el-rei. (para Anselmo)
Curtiu crueis affrontas,
meu senhor, e correu furiosa tempestade;
ACTO V 185

mas serene - se, e folgue. A regia magestade


não se deixa enganar : castiga os malfeitores,
e ama os homens de bem ! (para toda a companhia)
Saberão , meus senhores,
que el-rei , por quem eu venho enviado, eu , seu ministro,
logo anteviu na fala e em todo o ar sinistro
d'esse homem que nos ouve, um perfido de marca .
Depois a delação que elle fez ao monarcha
d’um bem feitor, d'um pai, provou-lhe claramente
que o mau exterior não mentia ; e não mente .
Por varias inducções, chegámos á certeza
de não ser já no heroe esta a primeira empreza ;
outras, de egual jaez , audazes e perversas ,
tinha já praticado em povoações diversas,
trocando sempre o nome . Os Argos da policia
já lhe andavam na pista . El-rei , tendo noticia
de tanta malvadez, tomou conhecimento
por si mesmo de tudo ; e o louco atrevimento
d’este insensato o fez n'este ultimo disfarce
entregar-se- lhe. El-rei , afim de assegurar- se
de toda a realidade, impoz -me que o trouxesse
na minha companhia; ouvisse, visse, e desse
a cada qual o seu . Não pago o soberano
de arrancar o innocente ás garras ido tyranno,
ordena que Tartufo a Anselmo restitua
todos os seus papeis. É mais vontade sua,
que a doação dos bens que Anselmo havia feito
seja irrita, nulla, e de nenhum effeito .
Emfim , considerando o constante denodo,
com que este cidadão se dedicára todo
ao serviço do throno e ao proveito do estado
nas terras do Brasil, em quanto magistrado,
186 TARTUFO

sempre zeloso e inteiro, ha - o por absolvido


do crime, em que aliás se não tinha envolvido,
de alta traição, no qual, sem ter complicidade,
obrou por um amigo a summa heroicidade !

Victoria
Ora graças!
D. Marianna
Respiro!
D. Locaria

Inda bem !

D. Isaura

Resuscito !

Luiz
Canzarrão !
1

Anselmo ( para Tartufo que é levado pelo marquez)

Vai traidor! Bom rei, sejas bemdito !


Tartufo (já da porta)

Cá vai presa a innocencia !

Victoria

É bom ! lá na masmorra
acoita-se, jejua, e reza até que morra .
ACTO V 187

SCENA VIII

TODOS OS PRECEDENTES, menos Tartufo, o Marquez,


e os dois soldados que levam Tartufo entre si

Theodoro

Silencio agora, e pazi esforço , e esquecimento !


começou -lhe o supplicio ! O odio em tal momento
é defezo, é covarde. O ceo , de que se ria ,
lhe outorgue arrepender-se !

D. Rosaria

Amen ! Virgem Maria !

Anselmo (abraçando a Valerio, e pegando na mão de D. Marianna)

É dia de perdões: perdoem -me a cegueira!


Filhos, quero inflorar a sua vida inteira !
Mas antes de mais nada, ao principe nos vamos,
como a om Deus salvador, graças render.
Todos
Corramos!
188 TARTUFO

SCENA IX

Os mesmos e MATHEUS (que vem da porta do fundo


todo acodado)

Matheus

Parabens! Com licença aqui do meu compadre ,


um abraço ! outro agora, e já, n'esta comadre.

Anselmo
Pois não !
D. Isaura

Pois não , Matheus ! com todo o gosto

Matheus (abraçando a D. Isaura, depois de ter abraçado a Anselmo,


e limpando os olhos)
Eu digo
que uma alegria assim ... Valeu -lhe aquelle amigo
o ir preso ; quando não ... quem lhe amanhava os ossos
havera de ser eu , que inda ha fueiros grossos .
Quando fosse tomar a posse da fazenda,
ail rico pai do ceo ! que sova de encommenda !
( gritando para a porta do fundo)
Roza ! Filhos ! Aqui, aqui já já, maltezes !
Vá, não se perca festa armada ha tantos mezes.
ACTO V 189

SCENA X E ULTIMA

Os precedentes, ROZA , CAMPONEZES ee CAMPONEZAS (saindo


da porta do fundo e rompendo na sala cantando e bailando ao som
das suas violas, flauta , ferrinhos e zabumba)

Roza ( cantando)

Se Deus ouve uma Rozinha


e tem gosto em ver amor,
de mil annos á madrinha
mãi dos pobres do Senhor.
(Durante esta e as seguintes cantigas ouvem-se estoirar foguetes
e repicar as sinetas da capella da casa)

Matheus

Muitas bençãos , muitas graças


chovam n'esta habitação!
foi-se o demo das trapaças !
folguem todos quantos são !

D. Posaria

Se dançava o rei propheta,


eu tambem quero dançar ;
acabei de ser pateta ;
sirvo a Deus, mas a folgar.
190 TARTUFO . ACTO V

Anselmo

E até eu . Lá nas alturas


gloria eterna ao Creador ;
cá na terra ás creaturas
muita paz, virtude, e amor.

Todos (dançando, e em côro)

Raiva, demo, lá no abysmo


co’os tartufos teus irmãos ;
religião sem fanatismo
glorifique aos bons christãos .

FIM
PARECER

DO

Ill.mo Ex.mo Sr.

JOSÉ DA SILVA MENDES LEAL


1
TARTUFO

Tratando da primorosa nacionalisação do Medico á


força, procurei expôr, ainda que perfunctoriamente,
o que me andava no espirito acerca da peculiar si
tuação, da ascendencia litteraria, e da real impor
tancia de Molière no moderno theatro, tentando dis
tinguir o que no escriptor pertence a humanidade do
que me pareceu influxo do respectivo tempo. Cabe
aqui apenas compendiar o que especialmente respeita
a uma das suas principaes e superiores composições.
O Tartufo e o Misanthropo são geralmente repu
tadas as obras primas do grande poeta. Com rasão
diz o biographo Victor Fournel : « o Misanthropo é
«a mais correcta peça de Molière, e seria a flor da
< scena comica se não existisse o Tartufo.
Effectivamente, os espiritos mais esclarecidos, os
de mais apurado gosto, preferem o Misanthropo, já
13
194 TARTUFO

pela distincção do estylo, já pela finura da satyra,


já pela altissima verdade da observação, já pela hon
rada vehemencia, já finalmente pela engenhosa lar
gueza com que ao tribunal do bom senso, austero
sob o riso, são chamados a um tempo todos os vi
cios e todos os ridiculos, ampliando assim no mais
nobre sentido os dominios da comedia .
Em compensação, a critica puramente artistica re
conhece ao Tartufo prendas que o avantajam na sce
na. A acção é mais forte, corre mais rapida , prende
mais a attenção e o interesse. Tem o pensamento ca
pital da peça um alcance mais generico, é natural
mente mais comprehensivel para as platéas, propor
ciona lances mais variados. Se no Tartufo ha menos
escolha e perfeição de caracteres, estes sem embargo
sobresaem ali melhor, destacam -se em vigoroso re
levo , contrapoem -se em visivel contraste, vivem por
tanto duplamente, fazem -se valer mutuamente .
O Tartufo e o Misanthropo completam -se um ao
outro e um pelo outro. São juntos o mais sasonado
fructo do poeta, o mais viril desafogo do homem, a

mais luminosa advertencia do moralista. 0 Tartufo


consubstancia o espirito de Molière em lucta com uma
tenebrosa potestade, do mesmo modo que o Misan
thropo resume o seu coração, sublevado contra as ini
quidades que o rodeam, e lacerado por uma paixão
infeliz. Palpita egualmente em ambas as peças a in
dignação generosa , bem que procedente de causas
diversas. Sente-se n'uma e n'outra como trasbordar
TARTUFO 195

a alma que a interna tempestade agita : isto as fez


tão grandes, tão verdadeiras e profundas obras, mais
talhadas para eterna lição do que para accidental re
creio . O genio superexcitado do poeta patentêa n'el
las, aos olhos do leitor ou espectador attento, vora
gens insondadas, que um subito clarão d’alto a baixo
alumia : isto lhes dá o caracter monumental, que
lhes ajoelhou aos pés a admiração dos seculos !

II

No Tartufo, não menos que o talento e a arte, é


verdadeiramente para admirar a energia e o esforço.
Molière conhecia a procella que provocava e sabía os
perigos a que se expunha . Tanto sabía, que ninguem
ainda com mais verdade os pintou. Nada comtudo
o esmoreceu nem levou a desistir. Pequena é toda
a honra que se dê a estes apostolos da verdade, que
unicamente por amor d'ella, sem esperança de re
compensa no presente , antes com a certesa do mar
tyrio , não hesitam em propagal-a e servil-a contra o
erro triumphante e o seu sequito de cobardes egois
mos .
É verdadeiramente nobre, é verdadeiramente gran
de aquella aturada lucta de um homem, não já com
uma classe, não já com uma sociedade, não já com
um seculo, mas com o mais possante, o mais geral,
13 *
196 TARTUFO

o mais intangivel de todos os vicios, vicio de todas


as classes, vicio de todas as sociedades, vicio de to
dos os tempos .
Vulgar e lastimoso equivoco tem sido em reali
dade o suppor a hypochrisia exclusivo attributo de
uma só ordem de individuos, praga peculiar a uma
época determinada. Examinae bem. A hypochrisia
apparece -vos nas varias camadas e nas diversas eda
des. Rodea-vos de laços invisiveis, espera- vos n'uma
cilada continua, segue-vos implacavel na sombra, al
ternando com maravilhosa prestesa as mascaras , mu
dando a cada passo de linguagem e de forma, cau
sidico infatigavel, Protheu universal,

Solers, varium , versatile, multiplex !

A hypochrisia é o natural refugio de todas as infe


rioridades, intellectuaes ou moraes ; é a mais cer
teira arma da inveja, o mais seguro instrumento da
cobica. Secundam-na, auxiliares constantes, a insidia
e a calumnia. É seu exercito a ignorancia. Com a ap
parencia da virtude illude a virtude, com a ausencia
de escrupulos explora as infimas paixões e os sor
didos interesses. Exerce por este modo universal ac
ção nas turbas cegas, não poucas vezes mais acima.
Custa pouco o artificio a quem despede do seu
serviço a consciencia. Não se vê com frequencia pri
mar aos olhos do vulgo sobre o ser o parecer ?
Em brevissimo e singular conceito compendia o nos
TARTUFO 197

so Garcia de Resende o muito que pode a iniquidade


ardilosa :
Hum só mau official,
Que ha em huma cidade ,
Destrue a communidade !

D'este damnado germe procede a seara de mise


rias, que a mesma ingenua musa em vivos traços nos
representa :
Vimos os bons decahidos ;
E os maus mui levantados ;
Virtuosos desvalidos ;
Os sem virtude, cabidos
Por meios falsificados ;
A Providencia escondida ;
A vergonha submettida ;
O mentir mui disfarçado;
O saber desestimado ;
A falsidade crescida !

N’esta antiga pintura avulta principalmente a hy


pocrisia com a ordinaria escolta. E o quadro, com
ter feição tão remota, nem no desenho nem nas co
res se afasta muito da mais flagrante e notoria actua
lidade !
Não vacilla a hypochrisia em desfigurar a verda
de, porque ella mesma não é mais que mentira ; não
põe duvida em torcer caminho , porque só na conve
niencia leva o fito . No seu entender a multidão é
uma força puramente mechanica : serveuse d'ella , es
198 TARTUFO

cravisando - a ao erro, porque não a move para o


bem commum senão para o proveito proprio.
Acaso admira que assim aa vilesa se dissimule nos
atavios e á verdade se avantage a impostura ? que a
sciencia ande humilhada e a fraude triumphante ? a
honestidade corrida e soberba a corrupção ? o bem
tido em conta de mal e o mal glorificado como bem ?
Oh ! ficae certos, em taes mãos vereis sempre ar
rastado e polluido quanto seja deveras nobre, deve
ras elevado, deveras justo e prestante. O odio instin
ctivo da malignidade não perdoa aos corações gran
des e ardentes, menos ainda ás sinceras convicções.
Para satisfazer a sede vingativa d'este natural anta
gonismo todas as armas lhe servem. as negras ma
chinações, as astucias traiçoeiras, as execuções clan
destinas teem geralmente por si a plebe numerosa
das vaidades, que esses holocaustos lisongeam por
não poderem aspirar a outros triumphos. Os Tar
tufos das diversas cathegorias entendem -se todos ta
citamente : a indole commum os attrahe e os lia no
indissoluvel pacto firmado pelos communs intuitos.
Tem a sociedade no seu seio estes corrosivos ele
mentos em estado de fermentação perenne, só mais
ou menos adiantada . São os vermes dos melhores
fructos; no começo occultos aos olhos ; ousando su
bir á superficie ao passo que a podridão se esten
de do centro á circumferencia. Nos dias nefastos
aos povos, faz-se tal o seu poder que chegam a
estremecer e arriscar as nações. Consulte- se a his
TARTUFO 199

toria: n’ella se acharão exemplos copiosos e eloquen


tes .
Quando reveste as fórmas da piedade, a hypochri
sia torna -se tanto mais perigosa quanto mais univer
sal e secreto é o dominio religioso. D’ahi vem pro
pender a linguagem popular a applicar exclusiva
mente a denominação de hypochritas aos falsos de
votos. Lamentavel injustiça, porque esse vicio tre
mendo está longe de ser privativo! Confusão funés
ta, porque pode com graves inconvenientes prejudi
car a verdadeira e sincera devoção ! Mas consequen
cia inevitavel de muitas coleras suspeitas, de mui
tas perseguições furibundas, sobre tudo d'aquella in
tolerancia absoluta que tanto mais fere a imaginação
quanto mais destôa das misericordiosas maximas do
Evangelho.
Molière, atacando a hypochrisia, e atacando -a exa
ctamente no campo onde ella se mostrava mais as
somada, e era com effeito mais formidavel, fez como
os ousados generaes que, para apressarem a campa
nha, vão procurar o inimigo no seu principal redu
cto . Investiu, elle só , contra o poder mysterioso e
tremendo que veiu a apossar -se do proprio Luiz XIV
xiv,
e ousava affrontar o pontifice em Roma, o parlamen
to em Inglaterra. Ninguem então mais previdente
nem mais affoito !
É em todos os tempos um atrevido commettimen
to . Foi n'aquella época uma heroica temeridade. Ar
rojos taes só os teem os caracteres da fibra supe
200 TARTUFO

rior, que a paixão da humanidade irresistivelmente


impelle !
III

A comedia do Tartufo tem a sua historia, historia


em muitos pontos curiosa e instructiva.
A faculdade de a representar publicà e livremente
foi assumpto de larga porfia, antes negocio de esta
do. Nem menos de cinco annos durou a lucta , desde
1664 até 1669 ; e se occupara o throno um rei me
nos esclarecido e menos absoluto do que Luiz xiv ,
a grande obra de Molière corria grave perigo de ser
eternamente supprimida, ou ficar por muito tempo
ignorada.
O primeiro titulo d'ella parece ter sido francamente
O Hypochrita. A curiosidade que tal titulo excitou
foi para logo tão viva, que em 12 de maio de 1664,
estando apenas escriptos os tres primeiros actos, fo
ram estes representados em presença da corte . Era
um ensaio. Molière sondava assim o terreno para
acautelar as ciladas de que o via semeado. As re
petidas precauções de que se serviu inculcam sobe
jamente como elle media a audacia da tentativa .
Posto que n'esta incompleta experiencia a obra ti
vesse produzido sensivel agrado e impressão profun
da, e bem que o vulgo naturalmente a desconheces
se ainda, choveram immediatamente sobre ella. Os
sarcasmos e vituperios, expediente consciencioso que
TARTUFO 201

ainda em nossos dias é frequente. João Loret, o chro


nista galhofeiro da Musa historica , em 24 do mesmo
mez ingenuamente escrevia a tal respeito que
Maint censeur dauboit nuit et jour !
No fim d'esse anno, conseguiu o poeta obter uma
audiencia do proprio legado pontificio, e leu -lhe a
comedia já então concluida. Approvou-lh’a o legado,
homem ao que parece de claros espiritos. Alguns
doutos prelados, ante os quaes pôde achar accesso ,
não se mostraram menos benignos. O rei todavia,
movido dos clamores contrarios que soavam cada
vez mais altos, não lhe consentiu as representações
publicas.
A prohibição fez da curiosidade avidez, e logo de
toda a parte affluiram ao auctor convites para ir ler
a obra em casas illustres, e na presença de audito
rios selectos . Em 1665 era esta a moda de Paris, e
a tal ponto chegára que Boileau no começo da satyra
aos requintes da gula, publicada pelo mesmo tem
po, põe os seguintes versos na boca do gastronomo
descontente, quando este conta as seducções com
que o attrahira um amphitrião importuno :
Molière avec Tartufe y doit jouer son rôle,
Et Lambert, qui plus est, m'a donné sa parole.
Era Lambert um medico, excellente pessoa, mas
que sempre se esquecia de comparecer onde pro
mettera. O engodo das leituras particulares do Tar
202 TARTUFO

tufo tornara-se já tão proverbial como aquella pro


verbialissima negligencia.
Apesar de tudo o interdicto continuava, tal era a
pressão. O horror de Molière aos hypochritas, cres
cia com estes obstaculos, obra d'elles. 0 Convidado
de pedra representou -se em fevereiro de 1665. Na
scena 2.a do 5.º acto d'esta peça, D. João exclama
com pungente ironia : « correm os demais vicios dos
« homens expostos á censura , e tem cada qual a li
« berdade de atacal-os; só a hypochrisia é vicio pri
a vilegiado, que a todos logra tapar a boca, disfru
(

« ctando em paz impunidade soberanal»


Não transluz n'este desafogo a mal soffrida impa
ciencia ?
Na excellente scena de exposição do Misanthropo,
Alcestes n’um magnifico arrebatamento brada para
Philinto :

Je veux qu'on soit sincère, et qu'en homme d'honneur


On ne lâche aucun mot qui ne parte du coeur !
O Misanthropo foi estreiado em junho de 1666.
Não ha n'essa apostrophe energica, sob uma fórmula
mais generica e mais elevada, um novo e mais no
bre protesto ?
Esta aversão de Molière para com os refolhos da
hypochrisia estava, digamos, na sua natureza. Nota
engenhosamente S.te-Beuve que todo o escriptor tem
um termo predilecto que emprega com maior fre
quencia, e pelo qual se pode inferir qual seja o obje
TARTUFO 203

cto especial das suas sympathias ou antipathias. A


palavra grimace, no sentido de fingimento, é a que
mais apparece repetida em todas as obras de Moliè
re, e muito particularmente no Tartufo e no Misan
thropo. Com estas naturaes disposições bem se pode
calcular quanto lhe não aggravariam a irritação de
homem de bem offendido, e o agastamento de au
ctor mallogrado, aquellas delongas, cuja occulta e
verdadeira causa muito bem presentia.
Temporisava por sua parte o rei, menos talvez por
melindres de consciencia, do que por tacto e previ
são politica. Allegava é certo, e não sem motivo, que
tão crua satyra tinha o grave inconveniente (assim
no exterior se pareciam a sincera piedade e o seu
perfido arremedo) de induzir a maioria da gente,
facilmente inconsiderada por menos instruida, a equi
vocar uma com outra coisa em damno manifesto
da religião e da moral ; mas por outro lado, para
compensar de taes contrariedades o poeta, manifes
tando como lhe honrava o genio e lhe apreciava as
rectas intenções, outorgava 4a companhia de que este
era director o titulo de Real, qualificação n'aquelle
tempo por muitos modos valiosa , e concedia -lhe uma
pensão annual que andava por cerca de 1.200 $000 rs.
da nossa moeda , somma para então considerabilis
sima .
Effectuavam -se estas mercês em agosto de 1665,
e as datas são aqui expressivas. Não consolaram po
rém Molière tantas provas de munificencia, nem era
204 TARTUFO

elle homem a quem o interesse apartasse de seus


propositos. Porfiavam os seus inimigos, porfiava não
menos a sua constancia .
As resistencias de Luiz xiv concorreram todavia
para o aperfeiçoamento da obra, que essas mesmas
resistencias tornavam cada vez mais cara ao auctor
e mais desejada do publico. A demora dera occasião
a frequentes revisões, e com estas a successivas emen
das. Condescendendo com o que havia de sensato e
prudente nas objecções do soberano, e a fim de fa
cilitar a licença, tanto mais empenhadamente sollici
tada quanto maior se tornava a opposta celeuma,
Molière introduziu importantes modificações, já no
caracter do protogonista, já na textura da peça. Ga
nhou n'isto sobretudo um personagem d'ella , o ju
dicioso Cléanto, prototypo dos Desgenais modernos,
cujo lucido espirito e imparcial bom senso, dominan
do todas as situações e temperando todos os exces
sos, evita o perigo das interpretações levianas e pro
veitosamente completa a lição.
Em 1667 , achando -se elrei á frente do exercito em
Flandres, e abi provavelmente mais desaffrontado das
influencias hostis a Molière, conseguiu este fazer -lhe
apresentar um memorial instando pela auctorisação
de representar a peça. N'este memorial, depois de
mencionar a approvação dos mais altos e respeita
veis ecclesiasticos, e a do proprio monarcha, o poeta
appella nobremente para a publicidade como um re
medio já indispensavel contra as calumnias e torpe
TARTUFO 205
zas assoalhadas contra elle e a sua obra. « Preciso
diz terminando com a intimativa da justiça — pre
ciso mostrar claramente ao povo que a minha come
dia em verdade nada é do que pretendem que ella
seja ! »
A auctorisação regia foi emfim verbalmente dada,
e a 5 de agosto d'esse anno, quando menos já se es
perava, representou-se em Paris a disputada com
posição tendo por titulo 0 Impostor.
Ephemera foi a vantagem obtida . No dia imme
diato ao d'esta primeira récita, o presidente Lamoi
gnon, encarregado da policia da capital na ausencia
do rei e do chanceller, prohibiu terminantemente a
continuação das representações do Tartufo.
Molière enviou em continente, com um novo me
morial , dois dos seus actores, La Thorillière e La Gran
ge, ás linhas de assedio de Lille, onde o seu augusto
protector acampava . Reiterando as queixas, e enu
merando as concessões que fizera aos mais severos
escrupulos, supplieava a ratificação escripta da au
ctorisação verbal, auctorisação que emmudeceria de
vez todas as opposições. Prometteu o rei mandar
proceder a segundo exame na comedia tanto que
regressasse, e auctorisal - a então definitivamente .
A publicidade porém não convinha aos interessa
dos porque inutilisava as calumnias, e tanto fizeram
que levaram o arcebispo Péréfixe a fulminar a pena
de excommunhão contra quem quer que lêsse, escu
tasse, ou fosse ver a nova peça.
206 TARTUFO

Nada mais commodo ! Accusar, e supprimir até o


corpo de delicto ! É estratagema conhecido, trivia
lissimo nos eternos originaes do eterno retrato.
Em presença de similbantes manifestações, addiou
ainda Luiz xiv a solução pedida, sendo comtudo mui
to provavel que o seu orgulho não ficasse indifferente
áquella obstinada reluctancia onde interviera a ma
gestade. Verbal, como se disse, fôra apenas tal inter
venção, e isso occasionara as manifestações da aucto
ridade subalterna, e o levara a dissimular ; mas o
cioso monarcha não era homem que deixasse preva
lecer a minima contradicção ás suas vontades, fosse
qual fosse o modo por que as exprimisse. Acham -se
os indicios d'este sentimento nas suas palavras e em
alguns factos.
Teve o Tartufo uma representação particular na
residencia do principe real ( irmão do rei), em Vil
lers-Cotterets, a que Luiz assistiu, e outra em Rain
cy, no palacio do grande Condé.A visivel complacen
cia do soberano para com estas provas de conside
ração e apreço, dadas ao poeta por tão altos persona
gens, era um significativo protesto, que de certo os
perseguidores entenderiam .
Não muito depois da prohibição formal das repre
sentações publicas do Tartufo , deu-se em Paris , na
presença da côrte, uma farça impia, que tinha por ti
tulo Scaramuccio ermita , sem que lhe mostrassem
o mais leve signal de desapprovação os intractaveis
defensores das apparencias piedosas, nem fizessem
.

TARTUFO 207

o minimo esforço para impugnar o escandalo. Con


ta- se que ao sair d'esta representação el-rei dissera
para o principe :
- Anda por ahi tanta gente horrorisada com a
peça de Molière, e ninguem me boqueja n'este Sca
ramuccio ! Por que será ?
-- É porque no Scaramuccio —- tornou Condé
-

moteja -se apenas a religião verdadeira , e aqui os re


ligiosos fingidos !
Na intencional pergunta do monarcha transparece,
com a sua usual circumspecção, o juizo que elle já
fazia d'aquelles zelos. A resposta do principe era a
explicação mais cabal e a apologia mais completa dos
sentimentos do poeta .
Em boa verdade, n'esta resposta havia mais que
um epigramma, bavia o testimunho da historia. A to
lerancia dos devotos para com representações inde
corosas de assumptos sagrados era antiga , e tornava
mais notavel e caracteristica a opposição contra uma
satyra, que, depurada com grande esmero , manifesta
e unicamente verberava os especuladores da devo
ção . Os Autos de Jodelle, de João de la Péruse, de
Hardy, de Garnier, chacotas muita vez licenciosas,
mixto sacrilego do divino e do burlesco, tinham
achado no corpo ecclesiastico de Paris mais do que
indulgencia. O theatro nascera a bem dizer d'ahi . A
historia d'elle em França contém a tal respeito cu
riosas particularidades. A chronica poetica do tempo
muito pelo claro o attesta :
208 TARTUFO

De pèlerins, dit-on , une troupe grossière


En public, à Paris, y monta la première,
Et, sottement zelée, en sa simplicité
Joua les saints, la Vierge, et Dieu par pieté.

Como, pois, e por quê, tão obstinada colera contra


uma obra, que áá força de limada tudo precatava, dis
tinguindo cuidadosamente o sincero do hypochrita ?
Como e por que tão implacaveis odios, depois de se
ter, não só consentido, mas expressamente animado,
espectaculos que expunham os mysterios da religião
á mofa infima e ao grosseiro sensualismo da plebe ?
O prefacio do proprio Tartufo mostra por dentro
a razão d'estas contradicções, que aliás por si mes
mas se commentam. «Ils n'ont eu garde d'attaquer
a par le coté qui les a blessés : ils sont trop politi
aques pour cela ! »
Ah ! Molière como tu conhecias bem os homens
de todos os tempos !
Afinal a vontade omnipotente do rei, innovando a
legislação, subjugou todas as resistencias, e o Tar
tufo pôde ser livremente representado em fevereiro
de 1669. Quando a comedia não fosse o que todos
concordam que é, bastavam as antecedentes summa
riamente relatadas para lhe alvoroçarem em torno o
publico !
Alcançára Moliére assignalado triumpho á sombra
protectora d'um solio respeitado, mas os seus incon
ciliaveis inimigos eram d'aquelles que não desistem
TARTUFO 209

vencidos, e nunca perdoam a quem os adivinha.


« Quem não é por mim é contra mim » dizem. D’ahi
a intransigencia feroz que é a sua maior fraqueza.
A perseguição continuou mais pertinaz e acerba
do que nunca. O abrigo do throno fizera inaccessi
vel a pessoa do poeta : á falta do corpo condemna
ram-lhe a alma .
Singular coincidencia ! As mais sanguinolentas in
vectivas, as mais atrozes calumnias contra Molière
são todas posteriores á creação do Tartufo. A di
famação foi feril- o até ao thalamo, já atribulado. Co
mo o proprio excesso d'estes ultrajes lhes baldasse
o intuito, excitando a indignação contra os seus au
ctores, a vingança mudou de tactica : passou a ata
car o theatro em geral como fonte de perenne per
dição. Os camaradas invejosos de Molière, cujos igno
beis ciumes haviam servido de instrumento à cabala
rancorosa, amargavam assim tambem -justo cas
tigo ! -- o culpado auxilio que haviam dado contra
quem mais e melhor a todos os glorificava.
Essa cabala nunca cessou de minar o terreno sob
os pés do homem eminente, a quem sem embargo a
immortalidade estava fadada. Depois de o amargu
rar continuamente em vida, amotinou-lhe em roda
do cadaver – eloquente advertencia !-- aquelle povo
cego e credulo , que raramente deixa de seguir o que
o lisongeia para exploral-o, e é de ordinario facil em
insultar a quem o ensina para o engrandecer.
A longa e apaixonada contenda relativa ao Tar
14
210 TARTUFO

tufo é a chave do periodo mais notavel da existen


cia e do genio de Molière. O vigor d'esse genio era
proporcional à contumacia dos seus tençoeiros con
trarios : tinha elle a tempera dos que o obstaculo ir
rita e fecunda, e tanto mais se levantam na conce
pção quanto mais a iniquidade tenta abatel-os.
Força é que o espirito de seita absolutamente ce
gue homens a quem se não pode negar sagacidade
e previdencia, que nunca estes conhecem a tempo
aquellas indoles excepcionaes, e constantemente caem
no erro de as incitar com a injustiça à desaffronta,
e com a perseguição as recommendar á posterida
de, tornando-as assim inimigas vigilantes e contra
dictoras poderosas. Será talvez disposição da Provi
dencia !
Um poeta moralista, no seu genero nada inferior
a Molière, o grande Lafontaine, julgara-o digno de
se lhe lavrar na sepultura :
Sous ce tombeau gisent Plaute et Térence,
Et cependant le seul Molière y gît.
Leurs trois talents ne formaient qu'un esprit,
Dont le bel art réjouissait la France.
Ils sont partis et j'ai peu d'espérance
De les revoir . Malgré tous nos efforts
Pour un long temps, selon toute apparence
Térence et Plaute et Molière sont morts !

Exprimia effectivamente o sentimento de toda a


França litteraria o formoso epitaphio , que d’este mo
do se poderá pouco mais ou menos traduzir :
TARTUFO 211

Plauto aqui jaz, Terencio aqui descança,


E não mais que Molière achaes sepulto .
Tres talentos n'um genio, e o genio á França
Legou do primor seu o goso e o culto.
Idos são ; foi com elles a esperança
De ver tão breve engenhos de egual vulto .
O proprio esforço vão nos diz incauto :
Com Molière expirou Terencio ee Plauto .
Entretanto, era tal a pertinacia das vindictas pie
dosamente e evangelicamente sobreviventes, que a
auctoridade d'estas grandes vozes, a estima regia, e
as saudades da França , apenas conseguiram á força
de instancias e diligencias uma cova furtiva para cin
zas tão illustres.

Ce peu de terre obtenu par la prière !


Se a comedia do Tartufo contém lição proveitosa,
a historia d'ella, como se vè, não é menos instru
ctiva !

IV

A avaliação litteraria d'esta peça corre ha tanto ,


e anda tão competentemente feita, que se tornaria
aqui repetição escusada. Reconhecem n'ella unani
memente os mestres da critica um dos melhores ex
emplares da boa comedia ; e se, como em todas as
coisas humanas, é possivel esmiuçar-lhe um ou ou
14 *
212 TARTUFO

tro senão, o conjuncto e a somma das suas reconhe


cidas excellencias fazem -na justamente considerar
modelo para em todos os tempos consultar e se
guir.
É ali especialmente notavel o cuidado com que em
dois actos inteiros se prepara o caracter do proto
gonista, de modo que não possam motivar um só
instante de equivoco as exterioridades de virtude e
devoção com que elle se apresenta. Esse aspecto in
dispensavel não dá logar á minima duvida. O espe
ctador conhece já o hypochrita por dentro, e sabe
o que em tal individuo significa a affectada compos
tura. Esta precaução, disposta com admiravel enge
nho, bastára para certificar as puras intenções do au
ctor ; esta devêra, quanto a mim, grangear-lhe sum
mo louvor da parte dos analystas mais escrupulo
SOS .

A generalidade do typo e a universalidade da ad


miração fizeram o Tartufo cosmopolita. Nenhum paiz
culto o desconhece ee deixa de o possuir. Para o lei
tor portuguez o que n’ella agora sobre tudo importa
é o novo acto de adopção, que lhe faz tão deveras
compatriota um dos mais glorificados monumentos
do theatro .
Encarecer o serviço que homem tal como o sr.
Castilho presta ás lettras patrias nacionalisando as
obras primas de litteratura estrangeira, antiga ou
- moderna, é superfluo para quantos sabem o que são
e o que valem taes trabalhos. Perfeitamente lhes
TARTUFO 213

aquilatam esses a importancia e a difficuldade, e em


19

nenhum espirito medianamente esclarecido é licito


suppôr a possibilidade de ignorar aquella valia, ou
o intuito de apoucal-a. Traduzir só poderá parecer
coisa de pouca monta a quem innocentemente julgar
vencer todas as difficuldades com o diccionario, e
pensar que se effectua uma nacionalisação acabada
mudando apenas os nomes proprios.
E ainda assim ! ...
.

Ha traduzir bem e traduzir mal. Uma traducção


inconscienciosa , é tão facil e vale tanto como um ori
ginal inconsciente. Ahi nem se discutem primazias,
porque egualmente de uma e outra parte falta o va
lor confrontavel. De nihilo nihil. Mas a traducção,
ainda conscienciosa, ainda irreprehensivel, conside
rada unicamente a interpretação phraseologica, póde
ser insufficiente. Póde ter a possivel correspondencia
de termos, a escolha , a correcção, e não passar de
um ecco indistincto e frôxo. Basta desdizer no es
tylo, que é para a lettra o que o tom é para a mu
sica. Esta simples desafinação constitue uma infide
lidade, que em grande parte annulla todos os mais
esforços.
As traducções communs teem sido com razão com
paradas ao avesso de uma tapessaria, onde mal se
distinguem os lineamentos grosseiros das figuras, que
pelo direito apparecem completas e perfeitas. Mme.
de Sevignè assimilhava os traductores ignorantes aos
criados bocaes que trocam os recados de que os en
214 TARTUFO

carregam os amos, e Mme. La Fayette acrescentou


com o fino chiste francez :
- Plus le compliment est délicat, plus on est sur
qu'ils s'en tireront mal !
Nos dois simile se resumem o traductor sem in
strucção e o traductor sem talento .
Trasladar com exactidão a lettra é já tarefa ardua,
em que bem poderiam naufragar muitas temerida
des, desdenhosas por excesso de inexperiencia. Ver
ter porém o espirito, a feição, o genio, o intento, o
pensamento, o sentimento, passar tudo isto, não só
de uma para outra lingua descontando o que toca
necessariamente á indole especial de cada uma, não
só de uns para outros costumes, não só de um para
outro seculo, mas em tudo de uma para outra nacio
nalidade de modo que a obra fique ao mesmo passo
litteraria e popular, como é indispensavel no theatro,
-effectuar esta cabal transfusão sem comprometter
a individualidade originaria, nem lhe alterar o essen
cial da execução, nem corromper ou desnaturar o
molde que a recebe, é uma das mais delicadas e
atrevidas operações que se podem emprehender, uma
das mais trabalhosas, arriscadas e meritorias quando
bem realisada.
A pretenção de originalidade não basta para legi
timar esta . Ha em toda a parte uma infinidade de
suppostas composições originaes que nem são conce
bidas, nem pensadas, nem escriptas no idioma na
cional . Nada se lhes encontra que seja da terra. De
TARTUFO 215

senho, idéas e phrase vieram flagrantemente de fóra .


Muitas trazem ainda pendente o sello da alfandega.
Se este em algumas se não vê, é que entraram por
contrabando. Não copiam essas frequentemente uma
determinada pagina, o que seria menor mal porque
teriam ao menos a unidade ; são rhapsodias incohe
rentes de um feixe de reminiscencias confusas, fu
mos que sobem á cabeça depois da ingestão preci
pitada de alimentos sem escolha. O plagiato é ahi con
tinuo, exclusivo, transparente e absurdo. Nada mais
facil do que pol-o ao espelho !
Ainda mais : a originalidade, genuina que seja, não
é só per si um titulo. Pode ser extravagante, pode
ser nociva , pode ser maligna, torpe, nulla, infima etc.
As Philippicas de La Grange Chancel eram originaes;
as allegorias de João Dryden eram originaes; as sa
tyras de Pedro d'Arezzo eram originaes; e ninguem
ousará glorificar o desforço calumnioso, a apostasia
interesseira, a musa venal !
Cada obra vale o que vale, e vale por si mesma.
Nenhuns pretextos especiosos, - nem reclamos de
compadrio, nem conluios de malquerença , - darão
nem tirarão um atomo de credito real. O reclamo
cansa depressa ; o artificio dura pouco.
O espirito de seita, nas lettras, só prejudica as mes
mas lettras, desconceituando -as. Enganar -se-ha tris
temente quem imaginar que os logares ahi se podem
conquistar aos empurrões. E para que? Não são os
logares que faltam ; são os homens. Na politica ainda
216 TARTUFO

a fraude logrará uma ou outra vez ephemero predo


minio : a politica sem consciencia explora as turbas
credulas. Nas lettras não : Das lettras por natural con
dição vive-se á luz. A facciosidade aproveita só aos
incapazes, por que tenta rebaixar tudo ao seu ras
teiro nivel, e este é o alvo unico de quem não pode
elevar -se por si . Os que teem vigor proprio muito
bem sabem que não acham eminencias defezas, e não
podem deixar de conhecer que ninguem as vence
d’um folego. Os que possuem brilhantes e solidas fa
culdades, que a reflexão completará, se acaso accei
tam a camaradagem humilhante das malicias depra
vadas, apenas servem em detrimento proprio um cal
culo ignobil. Afinal ficarão todos no grau que Deus
lhes marcou e lhes grangêa o trabalho . A iniquidade
póde momentaneamente regosijar alguma paixãosi
nha abjecta ; mas ainda até hoje não conseguiu es
conder a chamma reveladora nas frontes predestina
das .
Quantas invenções estão , no conceito universal,
muito abaixo de meras imitações ! Quantas traducções
modestas valem em verdade muito mais do que ver
dadeiros originaes !
O Cid de Corneille é imitado de uma peça de Gui
lhem de Castro. Comparem -n'o, por exemplo, com o
originalissimo e nada grego Alcibiades de Campis
tron ! A traducção das Georgicas de Jacques Delille
é ainda uma das glorias da lingua franceza ; o Illus
tre Baxá, o Artaménes, a Clelia , invenções incon
TARTUFO 217

testaveis de Magdalena de Scuderi, typos completa


mente ineditos, ficaram para eterna irrisão do bom
senso e do bom gosto !
Em todos os seculos os maiores nomes da littera
tura se tem honrado de medir as suas forças n’aquel
las emprezas gloriosas, e lhes tem justamente cele
brado o custo e o prestimo. Quintilliano resume as
difficuldades da imitação n'um epilogo brilhante , que
não é licito ignorar. Rollin, Tourreil, Batteux, mes
tres na grande arte de dirigir os estudos, enumeram
com particular desvelo os variados e multiplices re
quisitos indispensaveis a um bom traductor, requi
sitos de tal ordem e tão raramente juntos, que só a
lista d'elles aterraria provavelmente os mais intrepi
dos Aristarchos. Nisard não é menos exigente. Tan
tas e taes são em tal ponto as auctoridades, que de
vēra já hoje parecer escusado recorrer a ellas.
Um dos espiritos mais elevados do seculo XVIII
escreveu esta advertencia, que se deve ter por sa
lutar a muitos : — «Tout homme qui croit savoir
« deux langues se croit en état de traduire; mais sa
a voir deux langues assez bien pour traduire de l'une
« à l'autre, ce serait être en état d'en saisir tous les
arapports, d'en sentir toutes les finesses, d'en apré
« cier tous les équivalents ; et cela même ne suffit pas :
ail faut avoir acquis par l'habitude la facilité de plier
và son gré celle dans la quelle on écrit ; il faut avoir
ale don de l'enrichir soi-même, en créant, au besoin ,
« des tours et des expressions nouvelles; il faut avoir
218 TARTUFO

asur tout une sagacité, une force, une chaleur de


« conception presque égale à celle du génie dont on
ase pénétre, pour ne faire qu'un avec lui.)>
Madame Dacier, que applicou toda a sua vida a
traduzir Homero consultando o melhor dos contem
poraneos, condensa n'um feliz conceito o caracteris
tico da traducção desafogada que transporta vivo o
modelo : « Par ses traits hardis, mais toujours vrais,
« elle devient non seulement la fidèle copie de son
« original, mais un second original meme, ce qui ne
«peut être exécuté que par un génie solide, noble et
« fécond !
Marmontel para traduzir Ariosto queria Lafontaine
ou Voltaire. Cicero , referindo - se as versões que fi
zera dos discursos de Eschino e Demosthenes, ex
clama com evidente ufania : «Não traduzi como in
« terprete, mas como orador. » Nec converti ut in
terpres, sed ut orator !

Estas competentes sentenças plenamente confir


mam o parecer que já n'outra parte ousei exprimir :
«Para traduzir um grande poeta só outro grande
« poeta ! »
Não sei se os grandes poetas se reputam hoje coisa
trivial e desprezivel. Ha todavia quem supponha essa
especie de vegetação menos frequente, e sobre tudo
TARTUFO 219

menos venenosa do que a dos tortulhos que não pre


cisam sol para prosperar. Theophile Gautier não tem
a ousadia de dizer ! « o bello é caminho para o bom,
« e os homens a quem occupa deveras a perfeição
ade um verso, ou a quem um trecho poetico arreba
« ta, são em geral honradissimas pessoas : não ha-de
« a justiça ter mandado executar muitos individuos
« que saibam de cor vinte versos de Molière ou de
«( Corneille ! »
Em todo o caso, quando um poeta como Molière
é vertido por um poeta como Castilho podem as let
tras contar que teem de casa, com o trajo, o espi
rito, e o fallar de casa, um novo primor, que valerá
para o deleite, que valerá para a instrucção, e se ar
recadará com orgulho nos archivos patrios, como joia
para mostrar em todo o tempo.
O auctor do Tartufo, menos infeliz que o auctor
do Orlando em França, achou aqui o desejado e mais
opulento Lafontaine. O sr. Castilho, tão versado e
intimo com as musas e artes latinas, seguiu o pre
ceito de Cicero. Vertia aquelle os oradores como ora
dor ; resuscita este os poetas como poeta, sem lhes
ficar abaixo na estatura. Nem ha outro modo de ver
ter com proveito e verdade !
Vem aqui a proposito algumas palavras sobre as
versões theatraes.
Querem alguns que as obras dos mestres, para
attestação de respeito, sejam trasladadas em tudo lit
teralmente. Similhante excesso de deferencia, tole
220 TARTUFO

rem -me o dizel-o, parece -me desacato. É sempre des


acato a superstição, e tanto mais quanto mais desfa
vorece o que intenta ou inculca venerar .
Sabeis o que faz esse especioso respeito ? Desmo
rona sem piedade o edificio, adorando os materiaes
que lhe serviram á construcção. Imaginae os admi
radores da architectura extasiados ante as pedras
dispersas do Campanile de Florença ou da Cathe
dral de Strasburgo !
Não ha falta de respeito , antes verdadeira prova
d'elle, em fazer integralmente comprehender a com
posição transferida. Toda a peça de theatro, ganha
em ser nacionalisada, em vez de servilmente verti
da. Ganha porque fica em tudo mais accessivel a to
dos.
Cumpre readvertir que a nacionalisação não se li
mita aos nomes de logares e personagens. Isso não
passa de accessorio : na linguagem e costumes está
o essencial .
Exige sobre tudo a comedia este modo de trans
plantação, pois que justamente os costumes consti
tuem uma parte consideravel do seu dominio . Os vi
cios, as paixões, os sentimentos apenas differem ac
cidentalmente nos diversos povos : pertencem á hu
manidade. Os ridiculos, esses dependem dos usos
peculiares de cada nação, e mal podem ser entendi
dos não sendo competentemente applicados. Sem essa
modificação fica mutilada uma das faces do auctor
comico.
TARTUFO 221

O escrupulo em conservar os elementos primor


diaes da composição só é logico, e só pode conside
rar-se obrigatorio, quando a peça tem por assumpto
um facto historico, um caracter historico, uma época
historica, sem equivalente nos annaes do paiz para
cuja lingua é trasladada. Ahi a concepção inteira foi
subordinada a uma idea stricta e local . Fóra d'estes
casos, porém , não : é ajoelhar o acatamento aos pés
de meros instrumentos, imaginando reverenciar a in
telligencia que os moveu .
O sr. Castilho transportou de França para Portu
gal a acção do Tartufo, da época um pouco vaga
em que se imagina passada aquella acção para um
periodo visinho da actualidade, em que a final pe
ripécia fica perfeitamente possivel. D'este modo a
individualidade de hypochrita, concepção generica,
sobresae melhor no meio de personagens conheci
dos, familiares, inteiramente portuguezes. Estas mo
dificações, que não alteram a fabula, os caracteres,
o pensamento, recaem todas na expressão e acces
sorios. São porém de tal proveito, que bem podem
reputar -se tambem essenciaes , pois que o especta
dor acha maior attractivo no que lhe é conhecido e
patricio ; e, porque no trato usual lhe anda quanto
lhe sôa aos ouvidos e lhe passa diante dos olhos,
percebe logo e melhor o alcance das mais delicadas
intencionalidades.
É traducção isto ? é imitação ? É uma e outra coi
sa, e é mais do que ambas. Um termo só, a meu
222 TARTUFO

ver, define aproximadamente similhante genero de


trabalho : transubstanciação.
Traduzir litteralmente as obras primas é enfraque
cel-as e desfigural-as ! Tanto mais vale o original ,
tanto mais fica descorado o que assim não passa de
seu reflexo. Transubstanciae esse original, e vel-o
heis resurgir inteiro. Tirae d'elle o que n'elle verda
deiramente vive e esplende. Para isso não confundaes
o lenho com a chamma ; não anteponhaes a execução
ao plano !
Se copiaes a traço o monumento, tereis apenas
uma estampa. Reconstrui- o pelo originario desenho,
será outro elle. N'isto a transubstanciação. Este o
methodo que se me figura verdadeiro .
Bem sei que se lhe oppõe uma difficuldade. Ra
rissimos tem pulso para de tal methodo se servirem
com exito. É preciso que o reconstructor se possa
medir com o primitivo architecto .
O sr. Castilho está sendo um reconstructor como
bem poucos tem tido a litteratura de todos os pai
zes. Ovidio e Virgilio são já legitimamente e gran
demente nacionaes . Molière vae em caminho de se
nacionalisar como aquelles. Entre nós só Bocage se
aproximou de longe a esta larga intuição e perfeição
rarissima. Bocage tinha certamente um possante fo
lego poetico, um sentimento innato da harmonia ;
ninguem o egualava no rapto e no estro ; mas tinha
tambem os defeitos da sua época e os do seu tem
peramento. Peccava sobre tudo pelo entumecimento,
TARTUFO 223

pela exageração, pela hyperbole. O seu espirito, mui


to menos cultivado que o do sr. Castilho, não se
nhoreava os campos amplissimos, que este por sua
mão tem arroteado, e em que é hoje incontestavel
soberano.
O conceito de todos os homens competentes, des
apaixonados e esclarecidos, é já este : ha de sem ap
pellação confirmal - o a sentença do futuro. Digam o
que quizerem os detractores, não commetterei a co
bardia de occultar o que me anda na consciencia!
O reconstructor do Tartufo addicionou á peça al
gumas scenas e dois personagens. As scenas são as
dos finaes do 4.° e 5.0 actos ; os personagens, intei
ramente novos, são Matheus, caseiro de Anselmo, e
Rozinha, afilhada de D. Isaura .
Mais importante ainda é a substituição do marquez
de Pombal ao exemplo , ou meirinho, do original.
Tem -se feito objecções aquelle acrescentamento e
a esta mudança. Contra o acrescentamento allega-se
o argumento banal da inviolabilidade ; contra a mu
dança diz-se que tão alto personagem, como foi o
marquez, não deve figurar assim de passagem .
Pois que estas modificações com effeito se encon
tram no impresso, chãmente direi o que a tal res
peito entendo.
No additamento das scenas foi o sr. Castilho inspi
rado por motivos que honram sobremodo o seu cora
ção, mas que em verdade devem sempre subordinar
se á questão superior da arte. É todavia certo que a
224 TARTUFO

arte n'este logar nada padece com a innovação. Não


são os dois esboços do caseiro e da afilhada essen
ciaes á acção, não contribuem para ella ? Não. Mas
no mesmo caso está o obsequioso M. Loyal (o Mo
desto da versão ), que é creação do proprio Molière.
Supprima-se respectivamente a scena em que este
apparece, e ver-se-ha que os demais caracteres fi
cam tão completos como antes, e o enredo egual
mente se desenvolve. A nova da expoliação podia tra
zel-a qualquer dos outros personagens, como Valerio
traz a da denuncia do cofre. M. Loyal é um perso
nagem episodico, á similhança de outros, sem escru
pulo e com vantagem empregados por todos os es
criptores de melhor nota . M. Dimanche no D. João
está em egual caso. N’esta cathegoria entram pois
Matheus e a sua companheira.
Na Advertencia , que precede a comedia, dá singe
lamente o sr . Castilho as summarias razões que tor
nam plausivel, e nada inutil, aquelle novo episodio.
Estes personagens accessorios servem frequente
mente para contraste de outros, ou para avivar as
situações, como aqui. A inviolabilidade por tanto em
nada vem a proposito, porque nada foi na peça effe
ctivamente violado . Senão, diga -se o quê.
Se Molière seguisse esta elastica doutrina, que só
serve quando convem , se a applicasse aos antigos
modelos de que tanto aproveitou modificando -os, não
existiriam muitas das suas scenas mais admiradas !
Não existiria o proprio Tartufo!
TARTUFO 225

Se algum reparo póde aqui ser feito ao sr. Casti


lho, não é seguramente o de irreverencia para com
o original que transplanta. Pelo contrario. Por de
masiado escrupulo em ajustar o estylo ao habitual
do mestre, se encontram ainda no texto da versão
alguns termos cujo plebeismo me parece desdizer
um tanto do tom natural a alguns personagens, e da
dignidade da comedia de caracter como esta é.
Ácerca da substituição do official de justiça pelo
marquez de Pombal, tenho duvidas mais graves. Ex
ponho-as com a inteira franqueza que é tambem sin
cera homenagem , pedindo a venia que justamente
>

se deve a quem por longos trabalhos, serios estu


dos, e gloriosos triumphos, adquiriu legitimos titu
los à admiração e consideração geral.
Não me procedem estas duvidas da impugnação
mais commum , isto é, da que reputa grande incon
n
gruencia a rapida apparição do marquez n'um só lan
ce. Tenho em analogos casos ouvido mais vezes esta
censura , e tomada absolutamente nunca pude achar
the fundamento. «É uma convenção », diz-se em ulti
>

ma instancia . Mal podem admittir-se no theatro con


venções a que falte razão de ser na natureza . Por
que não ha de figurar episodicamente no theatro qual
quer eminente vulto historico, se elle apparece a
proposito, e as ideas ee sentimentos que exprime são
os sentimentos e idéas que a mesma historia lhe at
tribue ? Ponsard, que tambem era mestre, só para
completar o grupo de algumas figuras principaes da
15
226 TARTUFO

revolução de 93, apresenta em esboço no Lion amou


reux a grande figura de Napoleão I. Este persona
gem foi supprimido na versão portugueza, por não
ser preciso á acção , e por se achar muito reduzida
em numero a companhia que representou a peça ,
mas não porque houvesse impropriedade na sua ex
posição. Centenas de exemplos eguaes se poderiam
citar, que todos provam como essa imaginada con
venção, em tal generalidade comprehendida, não é
em realidade nem uma praxe nem um principio.
Que não figure secundariamente o personagem
conhecido, quando o seu nome, o seu caracter, ou
>

a sua vida serve de titulo e assumpto ao trama sce


nico , esse sim , esse é preceito logico e rasoavel,
que tanto se applica ao protogonista tirado da his
toria como ao creado pela ficção; essa é regra in
transgressivel, tão elementar e tão evidente que es
cusa demonstração. Tal se não pode porém consi
derar a situação do personagem do marquez de Pom
bal no ultimo acto do Tartufo nacionalisado. Quanto
àå doutrina que tem de expôr, o inimigo da Compa
nhia está ahi no seu logar. Quanto a só apparecer ac
cessoriamente, nenhuma boa razão se infringe quando
a sua intervenção plenamente se justifique.
A objecção verdadeira, ao que se me figura, está
no proprio caracter do marquez. 0O marquez de Pom
bal , sem em nada faltar ás leis da verosimilhança ,
faria rigorosamente proceder contra um hypochrita
convicto; daria a este castigo toda a solemnidade e
TARTUFO 227

apparato, estava isso na sua politica, estava nos cos


tumes do tempo, e não destoaria n'um caso em que
chega a tratar-se de crime de estado ; enviaria tal
vez a dar o exemplo, e a effectuar a prisão, um cor
regedor do crime, interprete natural das suas ideas,
aproveitando-se d'este modo o essencial da lembran
ça, que é excellente. Mas o primeiro ministro do sr.
D. José, tão cioso da alteza da corôa que represen
tava e do proprio decoro, não descia de certo a
acompanhar simuladamente e em pessoa um crimi
noso de qualquer ordem, para ter o prazer de lhe
lançar a mão como um quadrilheiro !
Parece-me pois que a presença do marquez por
tal occasião em casa de Anselmo não é tão verosi
mil como seria para desejar, e creio que muito se
lucrarà effectuando nas representações a substitui
ção indicada. Para isso antecipadamente subscreveu
o egregio poeta da Primavera - quasi diria, de todas
as primaveras- o mais gracioso, o mais latitudina
rio e desafogado consenso que podia desejar-se.

VI

Vauvenargués estimava pouco os versos de Mo


lière. Fénelon, Ménage e Boileau preferiam á sua poe
sia a sua prosa. Ha talvez n'estes juizos rigor exces
sivo. É certo porém que, excepto no Misanthropo,
os versos de Molière estão longe da correcção e es
15 *
228 TARTUFO

mero a que havia já chegado em França a poesia con


temporanea. Além das trivialidades que frequente
mente os afeiam e rebaixam mais do que o genero
comporta — além da licenciosidade de expressões,
que hoje se tem por indecentes e n'aquelles tempos
corriam auctorisadas , por vezes lhe maculam a
veia , aliás fluente e clara, imperfeições de outra or
dem, — negligencias, rudesas, affectações, - talvez
resultado da precipitação a que o obrigava o officio
de poeta cesareo, talvez reminiscencias do antigo ge
nero em que se estreiara, talvez conveniencia de lison
gear como empresario as tendencias ainda mal poli
das de uma parte do publico. Se bem no Tartufo es
tas causas se façam menos sentir, devendo crer -se at
tenuados os correspondentes defeitos pelas repetidas
revisões, não está a comedia totalmente isempta d'el
les, e facilimo seria indical-os. São estas apenas mi
nucias de colorido, que não diminuem o valor in
trinseco do desenho. Assim é ; mas n'uma obra d'arte
não ha particularidade indifferente. Sem quinhoar a
injusta severidade de G. Schegel, que só via em Mo
lière um bom farcista, pode-se reconhecer, ainda in
clinando o justo acatamento diante de tão universal
reputação, que o seu estylo não poucas vezes ga
nharia em ser aperfeiçoado. O costume de ouvir no
theatro aquella phrase escabrosa, canonisada pela
natural predilecção e justo desvanecimento, attenua
rá ou annullará em França as naturaes estranhesas.
Fóra da patria, porém , onde o poeta não pode contar
TARTUFO 229

com este culto da tradição, e ha de ser avaliado pela


medida geral, essas estranhesas serão inevitaveis,
quando não se lhes emende a origem .
Embora com suspeito empenho se encareça a su
perior valia e efficacia do vigor nativo, nunca se dis
pensará a parte essencial que toca ao estudo. Hora
cio bem sabia por experiencia o que n'isto mais con
vinha .
Natura fierit laudabile carmen , an arte
Quaesitum est.

Ninguem confunda espontaneidade e naturalidade,


a faculdade de produzir e a perfeição do producto .
Inquiri todos os experientes . Unanimemente ouvireis
que nada requer tão assiduo trabalho como a natu
ralidade. Tolentino, o mais natural dos nossos poe
tas, foi um dos que menos produziu.
Para limar e polir o que no estylo de Molière são
asperesas proprias, ou da época, ninguem tão apto e
competente como o sr. Castilho, porque ninguem em
tão alto grau possue, nem outro poeta portuguez pos
suiu ainda , todos os segredos da fórma. A este dom,
para tal fim preciosissimo , acresce a docilidade com
que a lingua lhe obedece, a incomparavel destreza
com que elle a domina e a rege ; acresce a inexhau
rivel copia de termos, a peregrina invenção no phra
sear, a propriedade pittoresca das locuções, a rique
za e variedade das rimas, a metrificação cheia e so
nora, e ao mesmo passo tão flexivel e maneavel, o ge
230 TARTUFO

nio alumiando as mais altas faculdades poeticas, um


cumulo emfim de prendas taes como difficilmente em
qualquer paiz se encontram juntas. Este immenso ca
pital , posto com zelosa abnegação ao serviço das con
cepções superiores, produz uma associação fecunda
em maravilhas, que o presente admira e celebra, mas
que só a posteridade avaliará tão completamente co
mo ellas merecem .
Para que se não imagine que por qualquer modo
me faz parcial a veneração e o affecto, terminarei
com uma accareação, que melhor que todas as ana
lyses demonstrará como a inspiracão dos mestres se
transmuta e transmigra nas mãos do poeta nacio
nal, ganhando em elegancia, energia e formosura.
Existe a antiga traducção do Tartufo pelo capitão
Manuel de Sousa, que, bem longe de primorosa, se
avantaja todavia á maior parte das do seu tempo,
e talvez a muitas da actualidade. Vejam -se as duas
confrontadas com o original, n’um periodo notavel
por ser o resumo do pensamento dominante do au
ctor :

ORIGINAL DE MOLIÈRE

ORGON

Quoi ! sur un beau semblant de ferveur si touchante


Cacher un caur si double, une âme si méchante !
Et moi , qui l'ai reçu gueusant et n'ayant rien ...
C'en est fait, je renonce a tous les gens de bien ;
TARTUFO 231

J'en aurais désormais une horreur effroyable,


Et m'en vais devenir pour eux pire qu'un diable.

CLÉANTE

Hé bien ! ne voilà pas de vos emportements!


Vous ne gardez en rien les doux tempéraments ;
Dans la droite raison jamais n'entre la vôtre,
Et toujours d'un excès vous vous jetez dans l'autre,
Vous voyez vôtre erreur, et vous avez connu
Que par un zèle feint vous étiez prévenu ;
Mais, pour vous corriger, qu'elle raison demande
Que vous alliez passer dans un erreur plus grande,
Et qu'avecque le coeur d'un perfide vaurien
Vous confondiez les cours de tous les gens de bien ?
Quoil parce qu'un fripon vous dupe avec audace
Sous le pompeux éclat d'une austère grimace,
Vous voulez que partout on soi fait comme lui
Et qu'aucun vrai dévot ne se trouve aujourd'hui ?
Laissez aux libertins ces sottes conséquences:
Démêlez la vertu d'avec ses apparences ,
Ne hasardez jamais votre estime trop tôt,
Et soyez pour cela dans le milieu qu'il faut.
Gardez -vous, s'il se peut, d'honorer l'imposture;
Mais au vrai zèle aussi n'allez pas faire injure,
Et, s'il vous faut tomber dans une extrémité,
Péchez plutôt encor de cet autre côté .
232 TARTUFO

TRADUCÇÃO DE SOUSA
AMBROZIO

E como é possivel debaixo de apparencias tão devotas


encobrir hum coração doble, huma alma tão malevola ! E eu
que o acolhi hum mendigo sem real ... Está feito. Já me
não fiarei, nem do mais honrado; e daqui por diante de
todos julgarei mal , e serei para todos peior que hum diabo.
ALEXANDRE

Muito bem : os seus agastamentos em nada tem media


nía : V . m. não segue a razão, e sempre se despenha d'hum
n'outro excesso . Conhece o seu erro, e está vendo que se
deixou enganar de hum fingido zelo, e qual ha de ser a ra
zão porque para se emendar delle se precipita n'outro.
maior, misturando ( confundindo) com o coração de hum
2

velhaco o dos homens honrados? Acaso porque o0 enganou


hum infame com o pomposo apparato de mojigangas aus
teras, ha de V. m . passar todos pela mesma fieira, e (con
cluir) que nenhum dos que vê é verdadeiro devoto ? Os li
bertinos é que discorrem assim ; aparte V. m . a virtude
do fingimento, e não seja facil em avalial-a, e conserve a
medianía que convém : fuja de venerar a impostura, mas
ao mesmo tempo não caia em menosprezar a virtude ; se
porém houver de propender para algum cabo, perca antes
por carta de menos , que de mais.
TARTUFO 233

NACIONALISAÇÃO DE CASTILHO
ANSELMO

Custa a crêr como se une a um ar de santidade


ingratidão tão negra, e tanta iniquidade !
Entrou-me para aqui faminto, nu , mendigo ;
beijei-o ; enriqueci-o ... e agora ?... O que lhe eu digo
é que de homens de bem me livre Deus ! Se apanho
mais algum , deixe estar, verá como lh'o amanho !

THEODORO

Outro excesso ! Que genio ! É sempre ou tudo ou nada ;


o meio termo nuncal Acha uma rez damnada? ...
mata o rebanho todo ! Ou credulo a tratantes ,
ou incredulo aos bons ! Antes, mil vezes antes,
que do sceptico o extremo, o extremo do crendeiro.
Se ha mau , nem tudo é mau ; se ha falso , ha verdadeiro .
Mude-me de pensar, e deixe desatinos.
Crêm os parvos em tudo ; e em nada os libertinos .
Moderação , prudencia, é o que lhe recommenda
a lição que apanhou ; e tome d'ella emenda !

A approximação e comparação diz quanto basta


para inculcar a toda a gente, que sabe ler, o que o
paiz em verdade fica devendo ao naturalisador e ma
gnificador de Molière !
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