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A FLOR-DE-LIS

1882

Aluísio Azevedo

Sem pretender levantar a defesa dessa peça, que tantas e tão


valiosas considerações tem provocado de nossos críticos teatrais,
punge-me todavia o desejo de dizer alguma coisa a respeito de que
vem a ser isto de teatro entre nós.
O teatro, segundo todos os exemplos que se possam evocar,
nada mais é do que o transunto da época em que vive, ou por outras
palavras é a síntese da moral, do caráter, da índole, dos costumes e
das aptidöes artísticas e políticas do povo que o sustenta. Partindo
desse princípio, o teatro acompanha as transformações de seu tem-
po e toma a feição e sabor do povo que representa. Se esse povo Ou
Se essa época forem aventurosos e guerreiros ele será fatalmente
febril e violento e produz a tragédia. Mas se a época for triste e
desesperançada, como em geral sucede depois de uma grande cala-
midade popular, o teatro será lírico, apaixonado, choroso, amigo do
Suicídio, e então se manifesta pelo drama. E se finalmente o povo for
ranquilo, artista, amigo do trabalho útil, prático, calmo e tfilosotico,
Surge nesse caso a comédia. Assim cada época e cada povo apre-
Sentam uma filosofia, e uma forma especiais. Cada um vê e diz a seu
modo sem cogitar o modo de ver e de dizer dos outros. Pois bem,
nos que não somos aventureiros, que não temos um passado de
uta para arrastarmos um presente de cansaço e desesperança, que
não somos das calmas investiga
igualmente amigos do trabalho e
çoes científicas e artísticas, não podemos ter a tragédia, nem o drama
578 DÉIAS TEATRAIS: O SECULO XIX NO BRASIL

e muito menos a comdia. O que teremos então? Sim, o que mos


nós, que não possuímos caráter nacional, nós que não dispomos de
ciência, nem arte, nem literatura, nós sem filosofia, sem política, sem
paixöes elevadas, sem toilette, sem saude, sem coragem para coisa
alguma. Nós, nos fazemos representar no teatro pela mágica e pela
opereta. Está claro. Nosso ideal é a Rom Encantada, e o Orfeu na
Roça. Para um povo como nós somos, só há no teatro uma manifes.
tação possível, é o disparate, o burlesco, o ridículo exagerado feito
cores vivas, de sons estridentes e de pilhérias velhacas e extra-
vagantes.
Que isto é lamentável e profundamente triste, não há dúvida
nenhuma, porém, querer condenar o nosso teatro porque o desgra-
çado segue o seu destino fatal e misérrimo, é o que me parece ainda
mais tristee mais lamentável. Não se pode colher bons pêssegos
onde se planta pevides de abóbora. Ainda se tivéssemos herdado
alguma coisa, nesse sentido, de nossos pais, vá. Mas, Portugal,
coitado, no teatro nunca passou do lenço encarnado, da caixa de
rapé, da bengala de cana da Îndia e do robe de chambre. Farsas,
farsas e alguns postiços do falecido Almeida Garrett. Não é com
semelhante legado junto à nossa incompetência que se obtém um
teatro. Não! Enquanto formos o que somos, tenham paciência os
senhores críticos, não passaremos do Perriquito e do Nhó Quim.
Ora, em semelhantes condições, quando o teatro não atingiu ainda
a posição que lhe compete no meio seriamente constituído; é infantil,
é quase ridículo, exigir que ele seja moral, fecundo e reformador.
Suas senhorias querem teses discutidas em cena, querem criação
de tipos, querem crítica de costumes, querem modelos de moral; de

acordo. Acho que tudo isso é muito bom e principalmente para


con
quem escreve, para quem representa; mas por amor de Deus,
vém saber qual é o público com que se pode contar para semelnanc
COisa? Ou qual é o governo que est disposto a sustentar os tearos

e proteger as peças nacionais? Mas admitindo que o governo suo


vencionasse o teatro nacional e que os autores estivessem dispo0
tos como estão a escrever peças de alta moralidade. Vejamos o quc

entre nós se entende pela moralidade no teatro. Em primeiro ug


Dama as
quando e quem entre nós já se lembrou de condenar a

Camélias, Suplício de uma Mulher e mil e outras peças roman


nas quaiso vício, disfarçado por um perfume atraente e misterios
de desgraça ganha e conquista a simpatia e a indulgência do puo
mos

co. Não. Todo nosso escrúpulo não passa da forma. Aceita


tudo contanto que a frase não nos ofenda o ouvido. Para exenpplo
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podemos citar um fato: a comédia Divorçons caiu aqui em dois tea-


tros por imoral; quando aliás ela foi a primeira que conseguiu esma-
gar energicamente c cobrir de ridículo o pelintra sedutor que se
introduz no seio da família para desorganizá-la.
Todavia, os próprios
burgueses que fugiam de Divorçons, porque o Divorçons dizia as
verdades um tanto amargamente, levavam a família a bebero vene-
no de outras peças nas quais o adultério toma um caráter
simpáticoo
e as suas conseqüências um sabor triste e agradável de romantismo.
Qual será a rapariga velha, que, assistindo ao Suplício
ou o mesmo
de uma Mulher, no desculpe o crime do amante apaixonadoe não
misture as suas lágrimas com as da infeliz
esposa que teve a desgraça
de enganar o marido e conceber um filho com o amante. Boa morali-
dade, não há dúvida. Severos com a frase, indulgentes com a idéia.
Podemos dizer com Geoffroy: Nous aimons beaucoup mieux sur la
scène des filles qui font des enfants que des valets qui font des
plaisanteries un peu libres.
Voltando porém à Flor-de-Lis, vemo-nos forçados a confessar
que todo o clamor levantado em redor dela, só conseguimos tirar
uma conclusão, é que a maioria de nossa imprensa e a maioria do
nosso público são essencialmente monarquistas. A peça no seria
reputada imoral se o Imperador não se lembrasse de sair do teatro
no meio do espetáculo. Entretanto vejam como se escreve a histó-
ria. A retirada de sua Majestade tem uma causa puramente
patológica.
Sua Majestade sofre de enxaqueca.

[Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1882.]

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