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Filosofia- Doc nº 7

A ética deontológica- Kant

A ética deontológica de Kant


Kant (1724- 1804), como qualquer outro filósofo, sofreu influências do meio social e da época
em que viveu:

- Influência do Pietismo – movimento religioso da Igreja Luterana que privilegia a devoção e


a fé em detrimento da razão, que centra a religiosidade não na inteligência, mas na vontade e
no sentimento. Considerava ainda que a natureza humana era corrompida pelo pecado original,
daí o seu pessimismo moral e antropológico segundo o qual o Homem tem tendência para o
mal e para egoísmo.
1
- Influência de Jean-Jacques Rousseau1 que defendeu que a moralidade é acessível a todos
os seres humanos, isto é, todos os seres humanos são capazes de saber qual é o seu dever e por
isso agir moralmente. Para além disso, afirmava que o Homem era bom por natureza e que é a
sociedade que o corrompe.

- Influência do Iluminismo2 que, segundo Kant, representa uma emancipação do ser humano.
Segundo o Iluminismo, o Homem deve pensar por si próprio uma vez que é dotado de razão.
Por esse motivo deve pensar de uma forma autónoma e livre. Por outro lado, o Iluminismo
também corroeu os fundamentos da moral tradicional que se baseava na religião. Assim, houve
necessidade de procurar um novo fundamento para a moral que devia residir na razão humana.

Racional
Sensível Kant
Deixa-se determinar já não pelas suas
Condicionado pelas suas disposições disposições naturais mas por leis
naturais / sensíveis Homem universais provenientes da razão
como ser
Procura do prazer/ felicidade e que o dual
levam até ao egoísmo (sentimentos de Procura ser moral (já não tem um ponto
inveja e interesseiros) de vista egoísta e individual, mas pensa
/age universalmente)

A sua ação tanto pode ser determinada pelas suas inclinações / disposições sensíveis como pelas leis universais
provenientes da razão

Kant recomenda que o Homem seja determinado pela razão, pois só assim consegue atingir a perfeição moral

1
Pensador francês cujas ideias contribuíram para a Revolução Francesa
2Movimento que teve lugar no séc. XVIII que tem como características: O princípio da autonomia da razão, desconfiança em relação ao argumento da
autoridade e nomeadamente aos dogmas religiosos, a ideia de progresso a nível do saber, da civilização e da moral que supõe a perfetibilidade do Homem.
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A ética deontológica- Kant

Capacidade que o Homem possui de


Homem ser dotado de vontade decidir qual o princípio que rege a sua
ação

Pode ser determinada


princípio empírico princípio racional

“má vontade” que é a sua finalidade “Boa vontade” 2

A boa vontade é a condição ♦ vontade que se deixa determinar em todas as


da moralidade circunstâncias pela razão
♦ é boa em si mesma (pelo seu querer) pelo facto de
querer cumprir o que a razão lhe ordena e não por
aquilo que promove ou realiza (consequências, fins)
✖ boa sem limitação
✖ boa pelo seu próprio querer
✖ valiosa em si mesma
✖ desinteressada
✖ governada e produzida pela razão

“Nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não - a única coisa boa sem
ser uma única coisa: uma boa vontade. Discernimento, argúcia de espírito, limitação é a boa vontade
capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se aos demais talentos do
espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades de - todas as outras capacidades
temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis; mas humanas podem ser boas (se
também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja bem usadas) mas também
de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama podem ser más (se mal usadas)
caráter, não for boa. O mesmo acontece com os dons da fortuna. Poder riqueza,
honra, mesmo a saúde, e todo o bem-estar e contentamento com a sua sorte, sob - a única coisa que as pode
o nome de felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda em tornar sempre boas é se elas
soberba se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a forem movidas pela boa
alma.” Kant, Fundamentação Metafisica dos Costumes vontade

“A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para - O que dá valor à vontade
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si não é o objetivo que ela
mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto pretende alcançar (utilidade),
do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de mas sim o seu querer
qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.
Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino (…) faltasse totalmente a - ela vale mais do que
esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada qualquer coisa que com ela
pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa podemos obter
vontade (…), ela ficaria a brilhar por si mesma como uma jóia, como alguma coisa
que me si mesma tem o seu pleno valor. A utilidade ou inutilidade nada podem - poderia não haver mais nada
acrescentar ou tirar a este valor” Kant, Fundamentação Metafisica dos Costumes no mundo, mas mesmo assim
a boa vontade manteria o seu
valor “brilharia como uma
jóia”
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A ética deontológica- Kant

 Para Kant, uma ação é correta se e só se, é executada por uma boa vontade. E a boa vontade é aquela que age
motivada pelo puro cumprimento do dever, e não por qualquer interesse ou inclinação pessoal

 Para que uma ação tenha valor moral tem de ser realizada porque se reconhece que ela corresponde àquilo que
deve ser feito, isto é, àquilo que todo e qualquer agente moral, independentemente dos seus desejos e preferências
pessoais e subjetivos, deveria fazer nas mesmas circunstâncias.

A boa vontade é aquela que quer realizar o dever 3

Contra o dever Conforme o dever


Age-se contra um princípio Age-se em conformidade com o
que deveria ser seguido No que diz respeito princípio mas tem-se em vista
- são as que violam o dever ao dever, as nossas determinadas consequências/ fins
- são impermissíveis ou ações podem ser - não são realizadas por se
proibidas reconhecer que seria correto
fazê-lo, mas sim porque daí
resulta algum benefício ou a
- O comerciante que cobra Por dever
satisfação de um
preços abusivos; Pratica-se uma ação, cumpre-se um dever
interesse/inclinação pessoal
- O homem rico que não doa porque é assim que tem que ser
dinheiro para as crianças - são as únicas que têm valor moral
carenciadas intrínseco pois são realizadas por si
- o comerciante não cobra preços
mesmas, e não por aquilo que por seu abusivos porque quer ter mais
intermédio possa vir a ser alcançado clientes e prosperar o negócio
- são realizadas porque correspondem - o homem rico que faz um donativo
As consequências das duas àquilo que deve ser feito – são motivadas porque quer ser reconhecido como
ações são igualmente boas mas pelo puro cumprimento do dever generoso no seu grupo de amigos
uma delas não tem valor moral
(a que é realizada por razões
suplementares “com segundas - o comerciante que cobra preços justos
- o homem rico que faz um donativo CAMPO DA LEGALIDADE
intenções”). Devemos eliminar a
parcialidade.
CAMPO DA MORALIDADE

Estas duas ações são difíceis de distinguir do exterior, pois o seu valor moral é dado pela
intenção – Ética intencionalista (só conseguimos determinar o valor moral das ações se conhecermos as intenções
do agente)

É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba - o merceeiro que não suba os preços pois tem
os preços ao comprador inexperiente (…). Mantém um preço algum interesse em o fazer não age por dever
fixo geral para toda a gente, de forma que uma criança pode
comprar na sua mercearia tão bem como qualquer outra - ainda que esteja a agir em conformidade com o
pessoa. É-se, pois servido honradamente; mas isso ainda não dever, apenas o faz por interesse e não por
é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim reconhecer que esse é o seu dever
procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse
assim o exigia. (…) A ação não foi, portanto, praticada por - logo, a ação não tem qualquer valor moral
dever (…), mas somente com intenção egoísta (…). Kant,
Fundamentação Metafisica dos Costumes
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A ética deontológica- Kant

“Conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa Comparação:
para a qual toda a gente tem inclinação imediata: mas por isso mesmo - alguém que conserva a vida por
é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe inclinação (instinto de sobrevivência)
dedica não tem nenhum valor intrínseco e a máxima (princípio
subjetivo) que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens - alguém que conserva a vida mesmo
conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por quando sente vontade de morrer porque
dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem considera que é assim que deve ser (por
esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com puro dever)
fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido,
deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por Só no segundo caso a ação tem valor 4
inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um moral
conteúdo moral” Kant, Fundamentação da Metafisica dos Costumes

Quais são as máximas que representam o dever?

Princípios subjetivos – que o


As que são passíveis de serem universalizadas e tornarem-se leis morais
sujeito assume como válidos e os
utiliza para orientar a sua ação (universais)

Princípio objetivo – não é válido só para um sujeito, mas para todos os seres racionais

LEI emanada da razão humana

Apresenta-se ao homem como um dever (aquilo que deve ser realizado)


Lei moral:
- universal: válida para todos
- absoluta e incondicional: vale em todas as circunstâncias
- necessária: impõe-se por si mesma
- a priori: é dada pela razão

a expressão da lei moral é o imperativo categórico ≠ imperativo hipotético


Imperativo= mandamento que ordena a realização
Imperativo= mandamento que ordena a realização de uma
de uma ação
ação
Hipotético= ordena de forma condicional, isto é, se
Categórico= indica universalmente e de forma absoluta o
se pretender atingir determinados fins então deve-se
que devemos fazer.
agir daquela forma, se não se pretender atingir
-Apresenta a ação como necessária (independentemente do
aqueles fins, a ação não se torna necessária
tipo de pessoa que somos, dos desejos que temos ou dos
fins que procuramos alcançar)
- a ação não é realizada em si mesma, mas sim tendo
- Ordena de forma absoluta e incondicional
em vista um determinado fim
A ação não está subordinada a nenhum fim – a ação
- o sujeito só realiza a ação se quiser alcançar aquele
impõe-se por si própria ,apresenta-se como
fim
um dever a ser cumprido em toda e qualquer circunstância
Exp: Se queres A, deves fazer B ou
exp: Faz B “Não copies”
Se não queres A então não faças B
 Apenas os imperativos categóricos podem originar ações
“Não copies no teste se não queres ser apanhado”
por dever (realizadas porque se reconhece que aquilo é o
que objetivamente deve ser feito e não porque dela resulta
 Para Kant, este imperativo nunca pode ser a
algum benefício ou satisfação de interesse), as ações que
expressão da lei moral pois a ação por ele realizada
têm valor moral
nunca terá valor moral
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A ética deontológica- Kant

“O valor moral da ação não reside, portanto, no efeito que dela se - a ação não vai buscar o valor às suas
espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise consequências
de pedir o seu móbil a este efeito esperado. […] Por conseguinte, nada
senão a representação da lei em si mesma […] pode constituir o bem - O sujeito só agirá moralmente se
excelente a que chamamos moral […]. seguir a lei (moral)
Mas que lei pode ser então essa cuja representação, mesmo sem tomar - O sujeito só tornará a sua vontade
em consideração o efeito que dela se espera, tem de determinar a numa boa vontade se seguir em todas
vontade para que esta se possa chamar boa absolutamente e sem as circunstâncias a lei (moral)
restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe
poderiam advir da obediência a uma qualquer lei, nada mais resta do que 5
a conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir - a minha vontade só deve seguir uma
de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira máxima que eu queira que se torne lei
que eu possa querer também que a minha máxima se torne lei universal
universal”. Kant, Fundamentação da Metafisica dos Costumes

As formulações do imperativo categórico:


1ª “Fórmula da lei universal
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”

Isto é, a máxima que vou tomar para guiar a minha ação, será que quero que seja tomada por todos os outros
seres racionais nas mesmas circunstâncias?
Imagina que precisas de dinheiro e que sabes que o Manel só to emprestará se lhe prometeres que lho irás
devolver (mesmo que não tenhas qualquer intenção de o fazer…) Será que deves mentir ao Manel porque isso
é do teu interesse? Tenta universalizar a fórmula. O que aconteceria se esta regra (máxima) fosse
universalizada, isto é, se funcionasse como padrão de comportamento para todos, se todos a seguissem?

Kant não defende que o sujeito deva ver se é bom ou mau que todos ajam de acordo com aquela máxima.

“Não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para Como saber se a máxima pela qual oriento a
saber o que hei-de fazer para que o meu querer seja moralmente minha ação é uma representação do dever?
bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo, Basta perguntar:
incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se - Eu quero que ela se torne lei universal (não
venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: - Podes tu apenas válida para mim- oriente a minha ação-
querer também que a tua máxima se converta em lei universal? mas válida para todos os outros- oriente a ação
Se não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de dos outros nas mesmas circunstâncias?
qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os
outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa [Quero que a minha máxima seja adotada por
possível legislação universal. Ora a razão exige-me respeito por todos?]
uma tal legislação […]. [A] necessidade das minhas ações por
puro respeito à lei prática é o que constitui o dever, perante o - Se a resposta for negativa: devo rejeitá-la (não
qual tem de ceder qualquer outro motivo, porque ele é a é representante da legislação universal-
condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a emanada da razão)
tudo.” Kant, Fundamentação da Metafisica dos Costumes
- a razão exige-me que, se quiser agir
moralmente, devo agir por dever, isto é, devo
tornar a minha vontade numa boa vontade
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A ética deontológica- Kant

Vamos a alguns exemplos:


1º determinar a máxima
Exemplo 1: Um suicídio por autocomiseração subjacente a essa ação: “Por amor
“Uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio próprio, põe fim á tua vida se o
da vida mas está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar a si futuro te reserva mais infelicidade
mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo mesma atentar do que felicidade”
contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima da sua ação se
poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém, é a 2º temos de verificar se esta
seguinte: Por amor de mim, admito como princípio que, se a vida, máxima passa no teste da
prolongando-se, me ameaça com mais desgraças do que me promete universalização: 6
alegrias, devo encurtá-la. Mas pergunta-se agora se este principio do amor de Será que quereríamos que esta
si mesmo se pode tornar me lei universal da natureza. Vê-se então em breve máxima fosse aplicada por todos?
que uma natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo
sentimento cujo objetivo é suscitar a sua conservação, se contradiria a si Kant conclui que não…
mesma […]. Por conseguinte, aquela máxima não poderia de forma alguma - a máxima contradiz-se a si
dar-se como lei universal da natureza, e portanto é absolutamente contrária mesma
ao princípio supremo de todo o dever.” Kant, Fundamentação da Metafisica dos Costumes - não se pode tornar lei universal

Exemplo 2: Uma falsa promessa


“Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro
emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não
lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo
determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda
consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é proibido e contrário
ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que se decidia a fazê-
lo, a sua máxima de ação seria: Quando julgo estar em apuros de dinheiro,
vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca 1º: Faz promessas que não
sucederá. Este princípio do amor de si mesmo ou da própria conveniência pretendes cumprir, se isso te
pode talvez estar de acordo com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a permitir resolver os teus problemas
questão é a de saber se é justo. Converto assim esta exigência do amor de si pessoais
mesmo em lei universal e ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha
máxima se transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente que 2º Não passa no teste da
ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo universalização pois no momento
mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a em que esta máxima se tornasse
universalidade de uma lei que permitisse a cada homem que se julgasse em uma lei universal, o próprio ato de
apuros prometer o que lhe viesse à ideia com a intenção de não o cumprir, fazer promessas deixaria de fazer
tornaria impossível a própria promessa […]; ninguém acreditaria em qualquer sentido
coisa que lhe prometessem a rir-se-ia apenas de tais declarações como de
vãos enganos”. Kant, Fundamentação da Metafisica dos Costumes

Exemplo 3: Um talentoso preguiçoso


Uma terceira pessoa encontra em si um talento natural que, cultivado em
certa medida, poderia fazer dela um homem útil sob diversos aspetos. Mas 1º “Desleixa os teus dons naturais,
encontra-se em circunstâncias cómodas e prefere ceder ao prazer e esforçar- se isso te permitir usufruir de uma
se por melhorar e alargar as suas felizes disposições naturais. Mas está em maior quantidade de prazer”
condições de poder perguntar ainda a si mesmo se, além da concordância que
a sua máxima do desleixo dos seus dons naturais tem com a sua tendência 2º Nenhum ser racional pode
para o gozo, ela concorda também com aquilo que se chama dever. E então querer que as suas capacidades
vê que na verdade uma natureza com uma tal lei universal poderia ainda fiquem completamente por
subsistir, mesmo que o homem […] deixasse enferrujar o seu talento e desenvolver, visto que desse modo
cuidasse de empregar a sua vida de ociosidade, no prazer, na propagação da ficaria privado de usufruir de tudo
espécie, numa palavra- no gozo; mas não pode querer que isto se transforme aquilo que estas lhe permitiriam
em lei universal da natureza […] Pois como ser racional que ele alcançar
necessariamente que todas as suas faculdades se desenvolvam, porque lhe
foram dadas e lhe servem para toda a sorte de fins possíveis.” Kant, Fundamentação
da Metafisica dos Costumes
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A ética deontológica- Kant

Exemplo 4: Um afortunado sovina


“Uma quarta pessoa ainda, que vive na prosperidade ao mesmo tempo que 1º Não contribuas para o bem-
vê outros a lutar com grandes dificuldades (e aos quais el poderia auxiliar, estar dos outros, nem os ajudes
pensa: Que é que isso me importa? Que cada qual goze da felicidade que o quando tiverem necessidades
céu lhe concede ou que ele mesmo pode arranjar; eu nada lhe tirarei dela,
nem sequer o invejarei; mas contribuir para o seu bem-estar ou para o seu
socorro na desgraça, para isso é que eu não estou! Ora supondo que tal 2º Não passa no teste da
maneira de pensar se transformava em lei universal da natureza, é verdade universalização:
que o género humano podia subsistir, e sem dúvida melhor do que se cada - nenhum ser racional quererá que 7
um pudesse a palrar de compaixão e benquerença e mesmo se esforçasse por ela se universalize
praticar ocasionalmente essas virtudes, ao mesmo tempo que, sempre que
pudesse se desse ao engano, vendendo os direitos dos outros ou Contudo, Kant afirma que temos o
prejudicando-os de qualquer outro modo. Mas embora seja possível que uma dever de ajudar os outros, mas
lei universal da natureza possa subsistir segundo aquela máxima, não é este dever não é tão importante
contudo possível querer que um tal principio valha por toda a parte como lei quanto o dever de não prejudicar
natural. Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em contradição os outros, de não os enganar e de
consigo mesma; podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a não violar os seus direitos
pessoa em questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela,
graças a tal lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma
toda a esperança de auxílio que para si deseja”. Kant, Fundamentação da Metafisica dos
Costumes

2ª Fórmula da Humanidade
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e
simultaneamente, como fim e nunca apenas como meio”

Cada ser humano é um fim em si mesmo e não um simples meio.


Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar
um objetivo.
Para Kant, a pessoa tem de ser tratada sempre como um fim em si mesma e nunca somente como um meio,
porque é o único ser de entre as várias espécies de seres vivos que pode agir moralmente.
Segundo a fórmula do fim em si, não é errado tratar as pessoas como meios (por exemplo, se tenho uma
dor de dentes e ir ao dentista para que ele ma cure- o dentista trabalha voluntariamente e recebe pelo seu serviço).
O que é errado é tratá-las como simples meios ou instrumentos, o que é errado é reduzir as pessoas a coisas que
usamos (por exemplo, quando uso um colega para subir no emprego ou tirar melhores notas) - Esta é a formulação
/obrigação básica da ética kantiana.

o fim que o imperativo categórico quer realizar não é exterior a ele,


por isso tem que ser um fim absoluto

só a pessoa humana pode ser um fim absoluto, tem valor único Porquê?

coisas Ser que tem dignidade

podem ser trocadas e substituídas


(valor relativo)
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A ética deontológica- Kant

Para Kant:
- para agirmos moralmente devemos ser
é digno porque é autónomo autónomos, isto é, não ceder aos impulsos
se é livre e autónomo então deve dos nossos desejos imediatos e das nossas
ser responsabilizado pela sua ação inclinações naturais
- devemos procurar formular leis que
qualquer agente racional estaria na
disposição de aceitar

8
Dá a si mesmo a lei com a qual se
determina ≠ Heteronomia (uma vontade é
heterónoma quando segue uma lei que lhe
é imposta a partir de fora, de algo que é
diferente de si)

é autónomo porque é livre Sou livre pois consigo-me


É por ser livre e autónomo que o Homem se consegue elevar elevar acima da minha
acima dos demais seres da natureza e adquire valor dimensão sensível (onde
distinguindo-se dos outros seres estaria submetido às leis
naturais

só sendo livre e autónomo é que este pode ser membro do REINO DOS FINS

➻ sociedade ideal (mundo inteligível) onde os seus membros se encontram


ligados pelo facto de apenas se submeterem às leis que ele próprio
determina

➻ sociedade onde cada membro é legislador e súbdito

Críticas à ética de Kant

 O problema da indeterminação
Uma mesma ação pode estar associada a várias máximas diferentes, isto é, uma ação pode ser
entendida como sendo motivada por máximas diferentes.
Algumas dessas máximas podem levar-nos a classificar essa ação como moralmente correta,
outra como moralmente incorreta, o que abre a possibilidade de haver falta de rigor na
avaliação que se faz de cada ação
Por exemplo, imaginemos um pai que num domingo de manhã decide ir passear com o seu
filho ao parque. A sua ação pode ser motivada pelo cumprimento do dever (o seu dever como
pai é acompanhar o seu filho) ou pelo prazer de brincar com o filho (uma ação conforme o
dever). Contudo, na ausência de um procedimento preciso que nos permita determinar em
cada caso qual dessas máximas motivou efetivamente a ação, não estaremos nunca em
condições de fazer uma avaliação conclusiva da mesma.
Só o sujeito verdadeiramente saberá a máxima que motivou a sua ação, mas isso não é suficiente pois apenas ele
poderá avaliar a sua ação. Ele pode comunicar-nos a sua intenção. E se mentir?
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A ética deontológica- Kant

 Conflito de deveres
Situações em que dois deveres entram em confronto (por exemplo, posso ter de
mentir para não ter de matar). Kant não nos dá o critério que nos permite escolher o
dever que deve ser respeitado: segundo Kant devemos cumprir o dever em todas as
circunstâncias: mas se temos dois deveres igualmente importantes e que entram em
conflito (são inconciliáveis- por isso não posso cumprir os dois ao mesmo tempo),
como saber qual o que mais importante?
Assim, somos conduzidos a um conflito irresolúvel entre eles, sem ter nenhuma forma
de os hierarquizar e de estabelecer uma prioridade entre eles.
Por exemplo: 9
“Durante a 2ª Guerra Mundial, os pescadores holandeses transportavam, secretamente nos seus barcos, refugiados
judeus para Inglaterra, e os barcos de pesca com refugiados a bordo eram por vezes intercetados por barcos patrulha
nazis. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava a bordo e por aí diante.
Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, é claro que os pescadores tinham apenas duas
alternativas, mentir ou permitir que os passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados”.
Os pescadores holandeses encontravam-se na seguinte situação: ou mentimos ou permitimos o homicídio de pessoas
inocentes. As duas representam a violação de duas regras morais básicas “Não mentir” e “não matar”.

 Além das pessoas


De acordo com a ética kantiana, cada pessoa é um agente racional, dotado de autonomia e
dignidade, pelo que é nossa obrigação respeitar os seus direitos fundamentais em todas as
nossas ações- 2ª formulação do imperativo categórico: tratar o outro sempre como fim e nunca
como mero meio.
No entanto, os recém-nascidos, os deficientes mentais profundos, alguns animais não
humanos não são pessoas, nesse sentido kantiano- não possuem (ainda ou de forma definitiva)
essa dimensão racional?
Mas apesar disso, sentimos que temos obrigações morais para com eles e que não é permissível trata-los de qualquer
forma. Será que posso usar crianças e doentes mentais em experiências, por exemplo, para descobrir uma cura para
uma doença? Estes indivíduos podem ser objetivados/instrumentalizados já que não são racionais, autónomos e livres,
logo, não têm a dignidade intrínseca que Kant reconhece aos seres racionais?

 O lugar das emoções na ética


Ao considerar que para agir moralmente temos de nos abstrair de todas as nossas
inclinações e agir segundo um imperativo ditado pela razão, a ética kantiana
parece esvaziar a moralidade de algumas emoções que lhe estão frequentemente
associadas, como a compaixão, a simpatia e o remorso. Em Kant, estas emoções
estariam associadas à dimensão sensível (que Kant recomenda que afastemos).
Parece inegável que os nossos sentimentos, desejos e emoções também têm um
papel a desempenhar no domínio da moralidade (muitas vezes agimos movidos
por eles- realizamos boas ações motivados por esses sentimentos) e se a ética
kantiana não deixa espaço para esse papel, então temos de reconhecer que isso é uma limitação desta teoria.
Por outro lado, nós não somos apenas seres racionais, pelo que as emoções constituem-nos. António Damásio, um
neurocientista português, defende que a nossa razão esvaziada de emoções é inoperante.

 Demasiada exigência
Estamos perante uma ética rigorosa e muito exigente. O cumprimento do dever é
incompatível com qualquer cálculo de custos e benefícios. O sujeito deve cumprir o
dever sem atender às consequências da sua ação, mas essas consequências não
poderão conferir valor a essa ação? Eu até posso dizer a verdade, mas se isso trouxer
mais vantagem do que desvantagem, não poderei avaliar esta ação (mentir) de
moralmente boa?
Por outro lado, não admite exceções em qualquer circunstância. Contudo, todos nós
sabemos que existem situações que o não cumprimento do dever é justificado pelas
consequências que a ação contrário poderia acarre

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