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O ALBATROZ
Editora Descaminhos
São Paulo
2014
Copyright ©2014 by José Geraldo Vieira
Vieira, José Geraldo O Albatroz
São Paulo, Editora Descaminhos, 2014
Todos os direitos reservados à Editora Descaminhos São Paulo – SP, Brasil Telefone: 55 11 3062 9057
E-mail: editora.descaminhos@gmail.com
Sumário
JOSÉ GERALDO VIEIRA
PRIMEIRA PARTE
I
BARCOS DE PAPEL
II
O JAZIGO INÚTIL
III
AMOR E LITURGIA
IV
O PRIMEIRO SARCÓFAGO INÚTIL
V
IDÍLIO NA CHÁCARA
VI
O SEGUNDO SARCÓFAGO INÚTIL
VII
O ANJO DE FRA ANGÉLICO
VIII
IDÍLIO NAS LARANJEIRAS
IX
O TERCEIRO SARCÓFAGO INÚTIL
SEGUNDA PARTE
X
O PARQUE E AS ESTÁTUAS
XI
“LA BELLE, SI TU VOULAIS...”
XII
A SANÇÃO
XIII
O ALBATROZ
XIV
“... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO”
XVI
O INFANTE
XVI
AMARRANDO O DRAGÃO POR MIL ANOS
XVII
VIGÍLIA NO PROMONTÓRIO
XVIII
O QUARTO SARCÓFAGO INÚTIL
JOSÉ GERALDO VIEIRA
Alfredo Bosi[1]
“Não procurar deixar de sofrer ou sofrer menos; e sim, não ser alterado
pelo sofrimento.”
Simone Weil
I
BARCOS DE PAPEL
O jazigo inútil...
LUZIA, a cozinheira, não entendeu aquela expressão do professor
Maurício. Mas ele sabia bem o sentido profundo da sua referência
aparentemente vaga. E, mais do que ele, a sentia em sua veracidade cruel a
mana Virgínia.
Treze anos antes do último fato narrado no capítulo anterior — e
mero aspecto da vida feliz levada na chácara do Jardim Botânico — o
coronel Aleixo, sogro de Virgínia, certa manhã convidara Maurício, que
então dispunha de tempo pois abandonara a Politécnica e cursava a Escola
Naval, para acompanhá-lo até à oficina dum marmorista italiano na rua da
Matriz, em Botafogo.
— Pode parecer uma ideia extemporânea e um convite
despropositado; mas quero que dê sua opinião sobre o jazigo perpétuo que
mandei fazer sem a aquiescência de minha mulher. Resolvi empregar nisso o
dinheiro do material de demolição dum prédio.
Quando entraram na oficina em cuja porta principal se vendiam
flores, pois o cemitério de São João Batista era ali perto, lhes veio ao
encontro o velho Tronchi, encordoado de pele e músculos como um galo de
briga (mas comparável em sua feiura esquelética a uma estátua móvel de São
Jerônimo). Foi logo dizendo para o coronel enquanto com um gesto
mostrava o jazigo:
— Oblatis, Domine, placare muneribus.
Ao que o coronel, conspícuo latinista, respondeu:
— Presta, quaesimus, ut quod temporaliter gerimus, aeternis gaudiis
consequamur.
Maurício achou aqueles dois interlocutores extravagantes, o coronel
de cartola, sobrecasaca e barba Souvarov, o escultor de melenas revoltas,
calças de veludo e avental inteiriço, dois excelentes figurões contracenando
para uma plateia invisível de fantasmas. O coronel Aleixo traduziu logo o
diálogo:
— Não se assuste. Sei que sabe muito bem matemáticas e ciências,
mas provavelmente desdenha o latim. Tronchi atirou-me com esta: “Aplacai-
vos, Senhor, com as dádivas que vos oferecemos”. E eu pespeguei-lhe:
“Esperemos que o combinado cá na terra nos proporcione conforto eterno”.
Traduzido, não era tão estrambótico.
Tronchi inseriu-se no meio dos dois como uma dobradiça de porta
dupla, levou-os por entre uma exposição de cruzes, anjos e vasos de
mármore, e mostrou com gesto declamatório o mausoléu.
O coronel Aleixo assim que viu ficou rubro, deu um safanão simétrico
nas abas da sobrecasaca e recuou, enfurecido.
— Não foi isso que lhe encomendei. Exigi e expliquei muito bem que
fazia questão duma pirâmide. Não aceito! Indefiro! Não serve! Não pago!
Mas o Tronchi, sem levar nenhum susto, explicou que tinha sido
ordem categórica de dona Maria-Amélia.
— Minha mulher não tem nada que ver com isto! Já que não permite
que eu me intrometa nas coisas deste mundo, que não se imiscua nas do
outro! Demais a mais, como foi que ela adivinhou?
— Disse-me, coronel, que descobriu os esboços e desenhos no seu
bolso; veio imediatamente me procurar, ordenou modificações e decretou
segredo! Declarou que numa pirâmide abafava. Que ela não era a rainha
Karomama nem o senhor o faraó Amenófis IV. Trouxe-me depois um álbum
do cemitério monumental de Gênova, escolheu uma graciosa composição
circular.
— Não concordo, absolutamente! Encomendei uma pirâmide por sua
síntese de incomparável sabedoria. Então você não sabe que a estrutura da
pirâmide está regulada por seu triângulo vetor?
Tronchi abaixou os olhos como um péssimo aluno de geometria,
deixou que o coronel falasse da divina proporção representada pelo símbolo
da letra grega phi; depois criou coragem e ponderou:
— Mas, coronel, não fiz o jazigo que Dona Maria-Amélia escolheu!
Um artista da minha responsabilidade não se sujeitaria, mesmo estando no
exílio em situação precária por motivos filosóficos, não se sujeitaria, digo, a
fazer um monumento de gosto burguês copiado dum catálogo. Este
sarcófago que lhe estou mostrando vai dirimir uma possível desavença
doméstica e é a cópia exata da tumba do principal discípulo de Arquimedes
em Siracusa, minha terra natal. Sua senhora me disse peremptoriamente:
“Seu Tronchi, embirro com a pirâmide de Quéops. Se Aleixo fosse solteiro
admito que quisesse descansar onde muito bem lhe desse na veneta. Mas
com a família, não! Não estou para que no dia de Finados, cada ano,
zombem do meu mausoléu, futuramente”. Vai então, coronel Aleixo,
conciliei as coisas. Agora, indago com o coração na boca: Recusa-se a aceitar
um mausoléu que é a reprodução conscienciosa da tumba grega do principal
discípulo de Arquimedes? Dum monumento que é uma joia de Siracusa?
Uma confluência de harmonias? O vão sublime do silêncio! A quietude
magnífica onde a própria eternidade se contempla? Veja! Observe! Que
paz... Que serenidade... Que vitória merecida contra o tempo! Que vaso de
imanência!...
— Seu Tronchi, olhe-me bem. Isso é mesmo dum discípulo de
Arquimedes?
— Palavra, coronel! Vou mostrar-lhe postais. Tem a reprodução no
livro de Vasari!...
— Bem. De fato, não mereço a pirâmide. E muito menos a merece a
Maria-Amélia. Não sou Amenófis IV e ela está longe de ser a rainha
Karomama. A pirâmide ficará para depois de outras desencarnações...
Tirou e repôs a cartola, encheu um cheque ali mesmo em cima do
balcão que rescendia a goivos, enquanto Maurício dava uma olhadela aos
anjos e às cruzes por mais que o estatuário procurasse demovê-lo
confessando:
— Robaccia! (Coisa ordinária.)
O coronel, agitando o cheque para que este secasse, entregou-o a
Tronchi, ordenou a compra do mármore e o início dos trabalhos, cofiou o
queixo deixado livre pela barba Souvarov, deu um repelão na aba da
sobrecasaca, foi até à porta da rua, chamou com um gesto a vitória cujo
cocheiro também encartolado tratou logo de obedecer.
Depois de olhar de relance a quantia declarada no cheque, o Tronchi
se desfez em amabilidades.
— Para que essa pressa, coronel Aleixo? Se há um caso em que o
pagamento e a realização devam ser adiados é este, non é vero?
— Concordo com o reparo — observou o coronel instalando-se na
carruagem logo seguido por Maurício. — Mas, atendamos ao que São Paulo
disse aos coríntios: “Omnes quidem resurgemus sed non omnes
immutabimur”.
A vitória seguiu para o Jardim Botânico onde o coronel, a esposa, a
nora e a filha mais o Maurício almoçaram.
— Onde esteve, Aleixo? Demorou tanto... — disse à certa altura dona
Maria-Amélia.
— No Ministério da Guerra! Dizendo umas verdades nas bochechas
do marechal Bittencourt. Fiz-lhe ver que há responsáveis e instigadores sub-
reptícios da resistência de Canudos... Sim, os monarquistas! Perfeitamente.
Esse café vem ou não vem?
Depois do almoço o coronel desceu para a cidade com o Maurício,
tendo desde o Largo dos Leões até à Lapa pespegado no irmão da nora,
durante o trajeto do bonde, uma aula quanto às vantagens do Withworth 32
sobre a bateria Krupp, uma catilinária contra Moreira César e um panegírico
ao coronel Tamarindo, assuntos estes que entrecortava com pormenores
arquitetônicos, sociais e políticos de fatos e coisas antiquíssimas, sempre que
o bonde passava diante ou perto dalgum ponto de referência que o
inflamasse. Como sempre, muito loquaz e redundante.
— Como é, Maurício! Já esteve alguma vez em Copacabana, rapaz? Já
estou beirando os cinquenta anos, mas ainda hei de ensinar-lhe um caminho
formidável para o lado de lá. Não pela Ladeira do Leme, o caminho que
Maria Graham descobriu; e nem pelo túnel aberto por meu parente Coelho
Cintra no Morro de Vila Rica, prolongamento do Morro da Saudade. Sei um
trecho, contornando Sacopenapã que, embora seja longo, é admirável como
vista e passeio até se chegar à Praia de Fora. Mas se o Governo quiser abrir
mesmo uma passagem inteligente para Copacabana, sabe o que ele deve
fazer, rapaz? É varar o Morro da Babilônia.
E, mais adiante:
— Mas ao Jardim Botânico você já tem ido, não? Merece a pena. Sim,
merece a pena. O antigo Horto Real é qualquer coisa de extraordinário.
Dizer-se que aquilo começou nos terrenos da fábrica de pólvora do Marquês
de Sabará! E começou com quê, aquele mundo quase fronteiro à minha
casa? Com uns pés de cravo-da-índia, de pimenta-do-reino, de cana de
Caiena, de noz-moscada... Depois, em 1809 recebeu a palmeira imperial...
Até chá eles plantaram, Maurício. Não entro lá faz muito tempo. Decerto
por morar quase defronte. Mas sempre tenho uma reação. O velho Horto
Real, ou o Real Jardim Botânico, foi o primeiro trecho do Brasil que se
desnacionalizou; nada tem de nosso, a não ser alguma coisinha da
Amazônia. Foi por isso que, antes de decepcionar a mim, decepcionou a
Maria Graham, a Ribeyrolles e a Gardner. No meu entender o único
elemento bem brasileiro que existiu ali dentro foi frei Leandro do
Sacramento. Mas, merece a pena ir. Merece.
Ou então, mais adiante:
— Cá estamos diante do Palacete Abrantes com a sua capelinha à
Nossa Senhora da Piedade. O Calmon melhorou-o muito. O Calmon é um
gentleman. Este palácio só teve um interesse igual ao de hoje no tempo de
Carlota Joaquina; mas decaiu quando o habitou o Barão do Catete que
depois foi Visconde de Silva.
E mais adiante:
— Este, sim; este o Governo fez muito bem de comprar. Está em
obras. Foi um grande sujeito o Antônio Clemente Pinto. Se foi! Deixou a
nossa gente de boca aberta. E não menos formidáveis e aluados foram os
herdeiros dele. O Antoninho, Barão, Visconde e Conde de São Clemente! E
o Bernardo, Barão, Visconde e Conde de Nova Friburgo.
A seguir, mostrando o palácio que um tal Martins Cornélio comprara
ao Ribeiro da Silva:
— Veja que beleza! É pena estar tão rente à rua! Consta que acabou de
ser doado à Misericórdia. Mas, espere, que já lhe mostro o palácio do
Visconde de Meriti. Aqui, meu caro, houve sangue nobre! O palacete Bahia
tem estirpe. Vem dos Lopes Pereira e dos Abrantes. Mas, bonito,
monumental mesmo, com ar de qualquer coisa europeia, é o palácio
Itamarati que o Governo comprou ao Francisco José da Rocha. Aquilo sim!
Pouco depois, antes do Passeio Público, o coronel Aleixo deu uma
risada, bateu no joelho de Maurício e exclamou:
— Não há coisa pior no mundo do que o erudito. Vê essa demolição?
Parece que o Governo vai levantar aqui na Praia da Lapa um prédio
reunindo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia de Letras
que falam em fundar, a Academia Nacional de Medicina e a Ordem dos
Advogados. Foi o que me disse o Paranhos... E me contou que embora a
planta ainda não esteja pronta (os estupores ao menos fizessem uma cópia
do Instituto de França!), o Ramiz Galvão já anda a estudar nomes para o
prédio. É claro que está emaranhado em raízes e desinências gregas,
pensando (isto vai por conta do Paranhos), em absurdos como estes:
Polilógio, Panetásio, Logossinédrio!... ah! ah! ah! Esses sujeitos são fósseis,
Maurício! Fósseis, digo-lhe eu!
Ainda ria quando saltou do bonde e foi tomar um tílburi no Largo da
Carioca a fim de seguir para o Quartel General.
Mas a verdade é que naquela tarde não andou pelo centro, como de
hábito, e apareceu em casa relativamente cedo. É que de repente, na cidade,
se lembrou duma coisa: o número de sarcófagos dentro do mausoléu. Subiu
pois mais cedo só para interpelar o Tronchi, que se assustou ao vê-lo.
— Mostre-me outra vez essa joça! Quero ver lá dentro. Não vi, esta
manhã.
Então o Tronchi se aproximou da enorme maqueta de gesso e a
descobriu como quem destampa um açucareiro. Ladeando uma espécie de
complúvio se viam duas ordens de sarcófagos; quatro de cada lado. Os da
esquerda, delicados; os da direita, pesados. E o Tronchi explicou,
especificando:
— Para homens, os da direita. Para mulheres, os da esquerda.
— Não serve! Isso de “para cavalheiros” e “para senhoras” está
parecendo coisa sanitária, seu Tronchi! Quero casais juntos. E, antes de mais
nada: só oito? Não acha pouco?
— Bem, com licença; vamos por partes; primeiro: com que então o
coronel quer homens e mulheres juntos?
— Lógico. Se em vida há eventuais separações, que pelo menos na
morte fiquem lado a lado.
— Bem. É fácil. Ó Zoroastro, ajude aqui.
E o Tronchi e o servente, bufando e se sujando de gesso, puseram na
ordem desejada pelo coronel os oito sarcófagos. Dois casais dum lado, dois
casais do outro.
— Agora, a outra questão...
— Exatamente! Por que só oito? — perguntou o coronel.
— Bem. Quatro gerações, quatro casais, em teoria. Segundo a frase
bíblica: “E que possais ver os filhos dos vossos filhos até à terceira e à quarta
geração...”
— É pouco! Tenho filho. Breve vou ter neto. Vai ser um nunca mais
parar.
— Bem. Sempre haverá espaço para mais. Tiram-se os ossos
anteriores, substituem-se pelos corpos dos pósteros... Isto, coronel, é um
jazigo, uma coisa limitada e não... um cemitério! O cemitério é em redor,
non é vero? — perguntou o Tronchi com certa desenvoltura de quem não crê
que além de quatro gerações perdurem os vínculos.
— Está bem. Está bem. Concordo. Toque esse negócio! Quero ser
patriarca!
***
***
E tais leis deviam existir mesmo, conquanto latentes, visto como bem
menos dum ano depois Virgínia, já tendo terminado o curso, se achava no
Hotel White com o pai, lá perto das furnas da Tijuca e, certa manhã radiosa,
ao entrar correndo do jardim para a sala, resvalou num hóspede opulento
que jogava bilhar com um moço fardado.
O coronel Aleixo voltou-se, abraçou-a com estouvamento, deu-lhe
passagem, porque era a vez do filho jogar. Virgínia, reconhecendo-o, embora
ele estivesse em mangas de camisa e com o colete entreaberto, resolveu
perguntar:
— Como vai a sua afilhada minha xará?
— Hein? Como? A Virgínia? Conhece-a? Você quem é?
— Eu sou aquela aluna dos Santos Anjos, a outra Virgínia que
chamaram ao parlatório por engano.
— Ahn! Dê-me um abraço. Não garanti que não há acasos nem
enganos? E vou cumprir minha promessa. Cá está meu filho. Artur, eis um
partidão. Escute, Virgínia, você não tem sentado sempre à mesa do Gama, o
assistente do Barão de Pedro Afonso? Ah! É filha dele, do Gama?... Artur,
melhor ainda! Eis um partidão. Mais bonita, é impossível!
E contou logo ao filho, em meia dúzia de palavras, como conhecera
aquela moça.
E Virgínia viu um rapaz de menos de vinte anos perfilar-se, esticando
para um lado o taco, depois cumprimentá-la enquanto o pai dizia:
— Virgínia Gama e o guarda-marinha Artur Cintra.
— Já depois do almoço o coronel Aleixo travou uma briga ideológica
com o doutor Gama. Era um dos seus modos de fazer camaradagem. Assim,
após algumas frases sobre Paris, a ciência, etc., o coronel lhe perguntou:
— ... E que notícias me dá de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux,
prezado doutor?
— Bem, se não me falha a memória, Comte morreu em 1857,
portanto, há trinta e oito anos...
— Ora, doutor Gama, não tome as perguntas em sentido literal, pelo
amor de Deus! Refiro-me ao halo... à doutrina, à lição permanente de
harmonia. Compreende?
— Compreendo! O senhor é positivista, não? E do exército, não? Pois
consinta que lhe declare que perante Augusto Comte fico do lado de Littré,
para não dizer de Saint-Simon. Dou apreço muito relativo a Comte, cuja
influência no Brasil é paradoxal. Faz nossos militares estudarem filosofia do
bom comportamento em lugar de estudarem balística.
Claro que com tais rompantes recíprocos ficaram amigos desde
aquela temporada em diante.
Se as manhãs às vezes tinham certa névoa, as tardes eram límpidas e
belas não só nos terrenos do Hotel White com admiráveis recantos
sombreados por guarajubas, aroeiras e araribás, como nas encostas e vales
que ambos, Artur e Virgínia, percorriam a pé ou de carro até ao crepúsculo,
indo visitar locais românticos e admirar vistas surpreendentes: o Excelsior, a
gruta de Paulo e Virgínia, as Furnas, a fonte Pirauí, a Mesa do Imperador, a
Vista Chinesa, a Cascatinha. E se Virgínia durante o percurso interrompia as
tentativas de idílio de Artur perguntando o nome de certas árvores, ele, além
de explicar que eram caneleiras, cedros, angelins, imbus e ipês, dizia que na
sua chácara no Jardim Botânico, perto da Lagoa, as quaresmas, as cássias e
as buganvílias tapavam da rua para dentro a vista da casa; e que se o jardim
em redor do prédio tinha manacás, hibiscos, crótons e agapantos em
profusão, já a chácara propriamente dita era um pomar selvagem cheio de
pés de cambucá, abio, grumixama, goiaba, caju, pitanga, araçá, manga,
sapoti, fruta-pão, jaca e cajá. Árvores enormes, matriarcais. Sem contar as
amendoeiras junto à lagoa. Que no jardim, dos lados do casarão, havia
caramanchéis de tanta sombra e perfume que pareciam grutas para
aparições de santas, ou nichos para estátuas... E pequenos lagos artificiais, de
cimento, para onde a água escorria cantando e fazendo tremer avencas e
begônias, por entre arestas reluzentes de miríades de cacos de ladrilhos,
vidros, conchas e seixos embutidos. E tudo isso por entre muros em cujos
portões pinhas e hipogrifos de louça já tinham a pátina do tempo. Mas,
perguntava Artur, que lhe adiantava tudo aquilo se nos poucos dias que saía
da Escola Naval a mãe enchia a casa de velhotas tagarelas e o pai o chamava
a todo instante para discutir teorias esdrúxulas? Ah! Estava muito isolado, lá
no Jardim Botânico...
Foi um grande mês decisivo aquele no Hotel White; Virgínia sempre
muito animada por dona Maria-Amélia e pelo Coronel Aleixo que não raro
a acompanhavam com o filho até à Biquinha do Monteiro descendo o
Caminho da Fazenda, ou então indo até à Ermida Carvalhais. Sentia-se já
envolta pelo amor de Artur que naqueles trinta dias lhe mostrou tudo
quanto foi encantamento de paisagem e de vista, de horas e de passeios, de
relações e de conhecimentos, ora merendando na varanda do conselheiro
Mayrink, ora tomando chá no pavilhão da chácara do Cochrane, muitas
vezes ficando embevecidos no sossego bucólico e edênico do Açude da
Solidão e, muitas tardes a fio, contemplando em doce enlevo os vales do
Andaraí e do Engenho Novo, a baixada de Jacarepaguá; ou então, da Mesa
do Imperador, deixando que Artur lhe mostrasse rente à Lagoa Rodrigo de
Freitas certo ponto invisível dizendo: “É lá que eu moro... sozinho com meus
pais... Mas ele é um filósofo meio patusco... e mamãe só recebe visita de
matronas...”
Assim, depois de serões no Club Beethoven (onde foram com a prima
Judite, pois para Dona Maria-Amélia e para o coronel tal local poderia
trazer evocações irritantes sobre o Gottschalk), de chás cerimoniosos no
Cailteau após compras no Grão Turco e na Notre Dame, de dois bailes, um
em O Recreio dos Militares e outro na rua do Passeio no Club dos Diários,
certa noite o coronel Aleixo, vestido como um diplomata vienense, e Artur
todo garboso como o Achille do quadro de Degas, compareceram à
residência do doutor Gama no Cosme Velho, perto da Bica da Rainha, para
o pedido oficial. A seguir, a lufa-lufa de enxoval, proclamas, noivado
assíduo, idas alternadas às Laranjeiras e ao Jardim Botânico, passeios
românticos.
Ah! Petrópolis; saindo de barca da Prainha, contemplando a
Guanabara até Mauá. As ilhas. A serra dos Órgãos. O trem por entre
florestas e precipícios. A caleça por entre bastidores de hortênsias. Os
passeios a cavalo nas manhãs brumosas...
***
***
***
“Artur,
“Escrevo-te não duma barraca de campanha no Alto da Favela,
mas duma choça na estrada do Canabrava, sobre uma tábua atravessada
diante de mim. Lá fora está a minha ordenança de olho vivo e de
Comblain preparada, não vá (aqui tudo é possível porque tudo é
empírico) surgir algum êmulo do Tranca-Pés ou do Raimundo Boca Torta
com um facão-jacaré ou com uma lazzarina para me dar cabo do
canastro. É que vim para cá com espírito positivo (inclusive quanto às
precauções), e não afoitamente como o Nunes Tamarindo ou o Quirino
Vilarim, pois isto aqui é Canudos e não, como decerto eles pensavam, um
campo de Vernéville onde as tropas se deslocariam segundo lances de
xadrez. Esta vai mesmo a lápis cuja ponta fiz com uma parnaíba. Por
enquanto mando um relato às pressas do que tem sucedido, porque conto
narrar-te durante noites seguidas no Jardim Botânico o que vem sendo
esta expedição e o que foram as outras, já que aí nos ministérios, no
Palácio e na rua do Ouvidor ignoram o que isto foi e está acabando de
ser. Sim, está acabando de ser porque vamos arrasar tudo, pois que não
temos meios de desviar o Vasa-Barris para dentro deste monturo. E, se
não o fizemos ontem é porque estamos à espera hoje de que um tal
Bentinho e um tal Barnabé nos tragam, conforme prometeram, os únicos
prisioneiros que ‘vamos fazer’, isto é, umas trezentas mulheres e crianças.
“A função está no fim. Pudera! Somos aqui uns cinco mil homens,
sem contar os que estão de reserva na estrada de Monte-Santo. Sim,
rapaz, onze batalhões. Tropas do Pará, do Amazonas e de São Paulo, sem
contar a polícia deste Estado. O assalto vai ser iniciado por duas brigadas,
com o Dantas Barreto e o César Sampaio. Pretendo escrever-te a próxima
carta já de dentro do arraial. Diga a Maria-Amélia e a Virgínia que não
se aflijam. Estou no meu elemento. Esta frase pode parecer ambígua.
Quero dizer ‘em operações’ e também no meu elemento quanto à terra,
aos homens, às disparidades humanas e sociais... enfim, fenômenos e
estados de coisas, sobre que, se tivesse tempo, ainda escreveria um livro
amargo. Espero que algum gênio ainda anônimo venha a fazer isso um
dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí... Como vai o
garoto? Um abraço de teu pai que se recomenda a todos.”
***
Após trinta e quatro dias de viagens de regresso do sertão para a
cidade do Salvador, o coronel Aleixo já estava com o pé cicatrizado de todo;
a verdade é que, ao descer na Estação da Calçada, já não trazia tão incubado
aquilo que, dias e dias antes em Queimadas, Alagoinhas e Pojuca, se
manifestava em calafrios, febre alta, dores na coluna e enxaqueca, e que ele
sintetizava com o nome de lumbago. Aquartelou a sua gente no Forte de São
Pedro e no Forte de Barbalho, ficou hospedado em casa de amigos na rua da
Mangueira, mas já então se portou de modo bem diferente do entusiasmo
galhardo daquela outra estada quando se transferira de bordo do “Espírito
Santo” para o mesmo solar.
É que logo naquela tarde notou diante do espelho que estava com o
rosto e parte do corpo cheios de manchas e botões vermelhos. Assim, desta
vez já não alvoroçou com sua facúndia singular os amigos de meses antes, o
Pethion de Villar, o Aloísio de Carvalho e o jovem Francisco Mangabeira; e
nem viu direito, tanta era a febre, o farol da Barra e a ilha Itaparica, quando
o navio partiu para a viagem de quatro dias rumo ao Rio de Janeiro, pois
aquilo que julgara uma erupção qualquer apanhada em Monte Santo ou
Serrinha, era... ele agora bem o sabia o quê! Mandou chamar o comandante,
na manhã seguinte, disse-lhe através da escotilha:
— Mande lacrar este camarote. Estou com varíola.
Examinado por dois médicos, na presença de oficiais, ele próprio com
os óculos encarapitados na ponta do nariz e de espelho na mão a verificar as
pústulas, algumas já virando abscessos, ficou evidente e explícito que sim,
que era varíola.
Na manhã do outro dia já estava com oftalmia, e delirava horas a fio,
supondo-se na latada a interrogar um prisioneiro.
— Vamos! Confesse onde está o Conselheiro!
E ele próprio imitava a voz do cafuz:
— O nosso Conselheiro partiu pro céu, seu doutor general! Morreu
duma caminheira.
— Ahnnn! Danou-se com a disenteria? Pois eu também me vou
danar. Estou com ela, com a boa, com a varíola negra. Artur, não traga aqui
a Virgínia! Chiu!... Não contem nada à Maria-Amélia, hein?
Examinava, com os olhos parecendo duas conchas entreabertas, o
camarote, os oficiais amigos, enxotava-os, ficava a ouvir o rã-rã das
máquinas.
— Esta é muito boa! Esta é de primeira! Mandar o Tronchi me fazer
um jazigo! Boa, hein? Sim, como pilhéria, é ótima! Um jazigo! Não. Não há
fugir. Somos parte inerente à formação concêntrica dos elementos. A
natureza toda segue o método análogo à evolução dos poliedros regulares.
Claro, que não há fugir, senhores... Um mausoléu. E, ainda por cima, de
Siracusa. Tronchi!!! Não te disse que me fizesses uma pirâmide? Ah! Ah! Ah!
Um jazigo perpétuo! Perpétuo, como? Perpétuo é o mar! O mar!...
Conquanto tivesse apenas cinquenta e poucos anos, a barba, a
albuminúria e a endocardite, sorrateiramente, sem demora, logo o
transformaram aos olhos do comandante e da oficialidade — que se
arriscavam todos a visitá-lo — num ancião lutando com a morte. Numa
dessas visitas, ao anoitecer do segundo dia, pediu ao comandante e ao
médico uma folha de papel. E depois lhes leu o que escrevera:
“Declaro que exijo, caso venha a morrer antes de chegar ao Rio, que
atirem meu corpo ao mar. Bem sei que tenho um jazigo no cemitério de São
João Batista. Foi a única tolice grave que cometi em toda a minha vida. Faço
esta exigência em pleno e perfeito uso de minhas faculdades mentais.”
Perguntou o dia, escreveu a data e assinou.
Durante a noite, conquanto seu corpo não parecesse uma chaga
ainda, todavia o coração estava em pandarecos (conforme ele diria, se ainda
estivesse loquaz...); e o coronel resfolegava cavernosamente, como a imitar o
difícil rãtrã das máquinas do navio lá no porão. A sua ordenança, que não
arredava os pés da porta do camarote (não podendo ficar lá dentro porque
era escorraçada ora com brandura ora com um berro), de madrugada,
vendo-o estertorar, lhe pôs nas mãos frouxas um rosário que adquirira na
feira de Alagoinhas e foi chamar um dos médicos e a oficialidade.
O coronel, hirto, guedelhudo, parecia um rei esculpido em sombras e
volumes do lado de fora dum jazigo...
E Cipriano, a ordenança, disse ao major Moura, muitas horas depois,
entre Ilhéus e Vitória:
— Louvado seja Nosso Sinhô qui o coroné num teve a sorte dos que
ficaro na Lagoa do Cipó. O mar, pelo menos é bem mais grande!
O fato de Tronchi já haver terminado o mausoléu, nada adiantou.
Mesmo porque estava escrito que aqueles oito sarcófagos jamais teriam
ocupantes.
V
IDÍLIO NA CHÁCARA
***
***
***
***
***
***
***
***
Mas eis que coisas mais gerais e mais veementes surgiram com um
crime na remota Sérvia... Ameaça de guerra. Ultimato. Telegramas.
Nervosismo.
Ainda bem que o avô e a mãe chegaram pelo Astúrias.
Conflagração europeia! Opiniões ponderadas do velho Gama.
Emoção atenta de Virgínia. Conversas agradáveis às refeições, contando
coisas de França e de Itália.
O Eusébio passou a influir com sua força de boêmio. O grande
incentivo foi decerto o automóvel. Passeios vagarosos junto às calçadas do
lado par do Flamengo cheias de bandos de moças e raparigas, estudantes e
namoradas, com bancos e palmeiras, gradis e canteiros. Do outro lado, o
mar, a barra... Passeios em velocidade até ao Leme, e ao longo da Avenida
Atlântica que orlava o areial de Copacabana com uma faixa de asfalto junto
a terrenos baldios, muros, residências apalacetadas, prédios de mau gosto,
edifícios tipo Biarritz ou Cannes, diante dum mar aconcavado em jade e
alabastro.
Discussões até altas horas na Brahma ou na Americana, ali debaixo do
Hotel Avenida, na Galeria Cruzeiro, por entre a música das orquestras
vienenses e os ruídos dos bondes. A batalha do Marne. A atitude da Itália. A
senilidade de Francisco José. A juventude do príncipe de Gales. Ou, na rua
do Passeio, na rua Chile, ou então na Lapa, o conhecimento equívoco de
clubes e botequins onde uma vida noturna se arrastava até de madrugada.
Carlos esqueceu a violinista incógnita, agitou-se com as peripécias
preocupadoras do conflito mundial, até que, quando a guerra passou a ser
paradoxalmente estática nas trincheiras, ele a procurou conhecer em livros
como Le Feu e Les Croix des Bois.
VIII
IDÍLIO NAS LARANJEIRAS
***
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***
***
Assim, durante seis anos, tempo esse lento como a traslação dum
século, e todo ele estruturado em ânsia e angústia, não especificado em
informes, pelo contrário constituído só de dúvidas e apreensões, áreas
opacas de mistério e perplexidade, sem fórmulas nem métodos possíveis de
comunicação, obtendo de longe em longe apenas certezas sumárias e rudes
que no mais das vezes só lhe chegavam através de lenda difusa embora
expressassem verdade categórica — e por isso a deixando mais zonza do que
a negação empastada e lúgubre de qualquer notícia — Virgínia foi sofrendo
os juros compostos da adversidade que em dois lances, (a morte do marido e
o desaparecimento da nora) já transformara sua vida numa angústia trágica.
Maurício insinuava-se em labirintos de informações desencontradas à
cata duma notícia recente e concreta. Os pais de Emília rodeavam Virgínia
de atenções solícitas. Mas Virgínia perseguia o filho com mais ardor e com a
mesma dificuldade do que as tropas legalistas. Ela e o Governo lhe iam no
encalço, mas Carlos se livrara não em fugas e desistências, mas pela tática do
movimento. Deixara o mar, a costa, que nada tinham que lhe dar, antes lhe
haviam roubado tudo, despojando-o até mesmo daquele alforje de
recordações (o casarão do Jardim Botânico, as risadas e abraços do pai, os
carinhos e conselhos da mãe, os cenários e deslumbramentos do Surrey, da
Ilha de França, da chã de Villeneuve, dos jardins da Riviera, a placidez de
Cosme Velho, o sortilégio beatífico do “angelo musicante”, o cabelo revolto
do pimpolho) e acreditava agora, fanaticamente, só na terra, homiziando-se
nela, exilando-se na aura da ilegalidade, largando a pátria periférica para se
apoderar, sentir, percorrer, ser dono da topografia inconsútil dum chão
sempre ao seu dispor.
Bauru. A primeira sensação dum malogro provisório. Necessidade
dum reajustamento. A primeira verificação de que não existia
homogeneidade de ideias. (Ou de ideais?) Que havia duas opções sempre
em tudo... A errada e a certa. A dos outros, a oficial. E a de alguns e dele.
A seguir, as barrancas do Paraná. A pátria com suas vísceras de
cenário estático e dinâmico; mas a pátria reservada em potencial. Que eram
ali naquelas paragens os seus companheiros e ele? Glóbulos sanguíneos,
quase uma trombose no vaso popliteu da pátria?
A marcha para Iguaçu. A realidade e a mística, o ímpeto e a estratégia,
o cálculo e a pertinácia, para a formação dum campo magnético, para um
enrolamento de primário e secundário como nas bobinas de alta indução.
O malogro de Catanduvas, depois de sete meses de lutas e marchas até
Campos do Mourão...
Agora, um roteiro de formigas sobre manchas de umidade grumosa,
mas que macroscopicamente, em escala real de quilômetros, paralelos e
longitudes, não eram manchas em zarcão e clorofila, mas sim Mato Grosso,
Goiás, Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
outra vez Bahia, Minas, Goiás, Mato Grosso.
***
Virgínia fora despojada do filho no sentido de não o ter mais ali junto
de si nem de Fernando. Passara a ser paradoxalmente irreal e ausente
porque, posto em termos de filho e de pai, se tornara um mito; porque,
posto em termos de soldado e oficial, não estava em nenhum quadro da
legalidade, mas fazia parte dum grupamento tático, alhures. Como filho e
pai se desagregara do lar, e como soldado e oficial saíra dos quartéis, mas se
tornara difuso, legendarizado, núcleo de boatos e constas onde os episódios
se iam deformando em mística. Dera para estudar sociologia, marxismo,
optara pela Esquerda, vivia nos subterrâneos da clandestinidade.
Mesmo ausente, não ficara reduzido a esquema de lembranças,
porque o anuviava a apoteose, esse consenso brusco, imediato de louvor,
essa teoria amorfa de apreciação transubstanciando realidades e fatos.
Virgínia olhava para o mapa do percurso, e seu dedo traçava uma
linha de roteiro. Mas naqueles seis anos aquela linha do mapa sempre se
aproximava cada vez mais, como um fio que gradualmente viesse invadindo
e transpassando seus olhos qual diâmetro de quilômetros trazendo em sua
superfície rios, serras, chapadões, florestas, cansaços, noites, dias, percursos,
vigílias, desesperos, obstinações. E durante aqueles seis anos ela arrancava
para estudo e avaliação os componentes dessa linha tornada agora horizonte
total.
Rios. (Manhã fria junto à corredeira; uma escolta espera junto à
fogueira de hipotéticas barcas trazendo munições, víveres e remédios.)
Serras. (Relevos dum dorso eriçado de matas e pedras e que lá de
cima patenteiam vastidões.)
Chapadões. (Noção de perspectiva inexistente, já que tudo assim ao
sol é um êxtase de eterno primeiro plano.)
Florestas. (A abertura de picadas de cem, duzentos quilômetros de
recesso da selva interposta entre eles e o objetivo a empolgar.)
Cansaços. (Molambos humanos, ora mansos, ora brutais, formando
trânsitos enviesados e já agora ralos nos crepúsculos constritores ou nas
madrugadas em expansão.)
Noites. (A presença do pensamento e da saudade, do desânimo e do
cálculo, dos sons e da treva, do inseto e da fera, da ferida e da cicatriz, da
inanidade das coisas e da ronda milenar da fome, da doença e do ideal.)
Dias. (Soma das veracidades e das surpresas, das contingências e das
determinações, dos malogros e dos exemplos, das vitórias e dos desvios, das
esperas e das ações, dos embates e dos sóis.)
Percursos. (Apa. Rio Pardo, Anápolis, São Romão, Picos, Crateús,
Boqueirão, Piancó, Umburana, Tabuleiro, Tucanos, Ouricuri, Jurumenha,
Olhos d’Água, Planaltina, Campo Formoso, Córrego de Estrela, Pilões,
Colônia do Sangradouro, Rio das Mortes, Rio Manso, Pantanal...)
Vigílias. (A recordação de casa. Duma rua de Paris ou de Gênova.
Duma estátua, dum cipreste. Do jardim do Cosme Velho. Da capela
mortuária da Casa de Saúde. Daquela frase materna sobre as brasas
enterradas...)
Desesperos. (Aquela manhã no colégio... A saída da aula. Os
jornaleiros bradando a explosão do Aquidabã. Aquela tarde em que fechara
o caixão onde não mais anjo franzino, louro e azul, mas valquíria violácea,
inchada, disforme, Emília jazia, depois de ter dado à luz Fernando... Que
criança era essa, que destino, que força trazia para assim, ao irromper,
quebrar os portais do sacrário?)
Obstinações. (Sim. Seis anos de teima, não por orgulho, nem por
insensível disposição de pertinácias vãs... mas por alguma coisa que era
mensagem e ação, escondendo sob a cinza os tições no campo para que
houvesse sempre, aqui e acolá, sementes de fogo.)
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À meia-noite estávamos deitados já, cada qual em seu aposento. Não
havia luzes na casa, mas eu não conseguia dormir. Não propriamente, por
causa do que se passara ali desde as sete e pouco. Pensava em Nanny, sentia
tentação irreprimível de ir vê-la. Como desculpa para sair, mesmo às
escondidas, me lembrava da concessão de vovó às nove horas: “Se você quiser
sair, Fernando, não faça cerimônia”. À meia-noite me vesti no escuro, abri a
janela, pulei devagar o peitoril, agarrei nos sapatos que antes pusera sobre ele,
atravessei o parque, saí por um vão da sebe à esquerda, para não fazer
barulho com o portão. Limpei os pés, iniciei uma rápida e ofegante marcha até
São Conrado. Foi um custo para arranjar carro. Por fim, vendo que um casal
saía do bar e tomava um Studebaker munido de gasogênio, sem a menor
cerimônia perguntei se poderiam deixar-me em Ipanema ou mesmo em
Copacabana, caso fossem para aquelas bandas. O homem prontificou-se logo,
ofereceu-me um cigarro, fez a mulher sentar-se ao seu lado junto da direção.
Golf Club, Represa do Tatu, Gávea Pequena, Gruta da Imprensa, Leblon,
Ipanema. Tudo em blackout.
Nanny custou a atender ao toque da campainha, mas daí a pouco se
atirava ao meu pescoço, quase me asfixiando. Acendeu a luz, repuxou ainda
mais a cortina que estava expandida como um velário de palco durante um
intervalo, repreendeu-me por não telefonar durante cinco dias, estranhou que
ao menos hoje, antes de vir, não houvesse telefonado. Sua voz cálida, com
algumas sílabas fanhosas e com admirável timbre de contralto tinha, falando a
minha língua, um sotaque inesquecível, de encanto quase severo.
— Nanny, tirei esta noite para pôr as coisas em pratos limpos. Venho da
casa de minha avó e...
Sem o menor pressentimento, ela atalhou:
— Achas que faço mal em telefonar para lá, às vezes? Mas, não aguento.
Compreendes...
— Vovó me disse que uma criatura estrangeira tem telefonado até
mesmo fora de horas normais...
— E ficou zangada, aborrecida?
— Não. Só não quer que me chames de Albatroz. Acha que é um
apelido crítico, significando um malogro. Enfim, acha que...
— Tua avó sabe que eu te chamo de Albatroz? Sabe que eu existo? Não
quer esse apelido? Tão bonito!
— Bonito, nada! Depreciativo.
— Como, depreciativo? Albatroz...?!
— Exatamente. Julga que com essa história estás querendo ser como
certa mulher simbólica, da mitologia, que lançava vaticínios.
Ficou pensativa, aflita.
— Como assim? Por quê?
— Mas, conforme eu ia dizendo e me interrompeste, tirei esta noite para
pôr tudo em pratos limpos. Já contei a vovó, ela se resignou.
— Perdão, um momento. Mulher vaticinadora? Eu? Como aquelas tais
representadas pelas estátuas do parque?...
— Mais ou menos.
— Ora essa! Essa tua avó, francamente!
— E se ela se resignou, tu também tens que... Escuta, Nanny, eu vou
para a guerra. O meu regimento vai partir. Pronto. Eu já disse, tu já estás
ciente. O governo resolveu e eu embarco por estes dias...
Que reação! Chorou, zangou, descompôs-me por haver guardado
segredo, abraçou-me, queixou-se do Estado Novo, dos Aliados, dos nazistas,
dos fascistas, de Churchill, de Roosevelt, de Mílton, de Júlio, de Lauro,
escondendo por fim os soluços no meu peito, com os cabelos castanhos roçando
o meu queixo.
— Tu sabias e me escondeste! Isso não se faz! Foi uma crueldade. Não
mereço isso! Devias ter sido sincero comigo. Não foste gentil.
— Juro-te que não sabia.
— Mentes. Impossível. O governo não pode tratar vós outros como des
outils. E então a dignidade humana, isso não conta entre vós outros, aqui?
— Estás pensando que vou morrer, Nanny?!...
— Não é isso. Estou chorando porque vais para longe de mim, vais
esquecer-me, não voltarás tão cedo. Que é que tens que ver com aqueles
malucos de lá? Que é que vai ser de mim?
— Ora! Vamos sair. Passear. Não adianta ficarmos aqui com tudo
fechado.
Aceitou a sugestão. Vestiu depressa o tailleur, mudou de sapatos, pôs a
boina de veludo verde, entornou perfume em si e em mim, beijou-me, foi para
o espelho acabar de arranjar-se. Seguimos a pé para o Cassino Copacabana,
assistimos a alguns lances, sentamo-nos perto da escadaria, pedimos
champanha e cigarros Abdulla, bebemos e fumamos, folheando revistas onde
havia anúncios policromos, desenhos humorísticos de Dedini, contos de guerra
por Freeman; e conversamos, até que aquele cascatear de fichas e a melopeia
dos crupiês nos tentaram difusamente.
Dirigimo-nos os dois para junto duma das mesas de bacará. Tudo
repleto. Atirei uma nota de mil cruzeiros no meio do triângulo. Um levantino
carteava; uma mulher de monóculo recebia as cartas. O crupiê trocava por
uma ficha violácea o meu dinheiro, que logo virou duas fichas. O homem
carteava de novo; um velhote calvo virou oito, impassivelmente; o muçulmano
virou nove. Outros contendores insistiram lá com ele, não porque tivessem
doestos a ajustar e sim porque eram jogadores. Quando o cigarro Abdulla
começou a queimar-me os dedos, alguns sujeitos supuseram que aquelas oito,
dezesseis, trinta e duas e por fim sessenta e quatro fichas não tinham dono. E
um crupiê olhava para o outro com sinais semafóricos nas sobrancelhas
cínicas; então pedimos a um deles que nos passasse com a pá aquelas
madrepérolas. À vista disso, o libanês deu suíte e o fiscal trocou sessenta fichas
retangulares, que pareciam uma maqueta de pagode anamita, em seis fichões
azuis de dez mil cruzeiros cada um, ficando o lote, com as outras restantes
quatro fichas de mil, como um esboço de manobras num tabuleiro de Estado-
Maior. A pá, em movimento adequado, as equilibrou donairosamente e as veio
depor diante dum grã-fino que recuou, transido, para facilitar o gesto trêmulo
com que as apanhei e enfiei nos dois bolsos do casaco de camurça. Ante a
expectativa solene, atirei uma de mil para os crupiês, gesto este que ergueu na
mesa um brado estridente e solene: “Mil cruzeiros para a caixa dos
empregados. Obrigado!”, ao que outras vozes acolitaram, solícitas e
profissionais: “Obrigado!”
Fomos logo receber na caixa, voltamos para a nossa mesa junto à
escadaria de mármore, pedimos mais champanha, outras duas caixas de
Abdulla. Nanny não dizia nada, fumando com languidez, com ar misto de
cafard e de tendresse. Às duas e meia nos retiramos por entre zumbaias dum
garção e dum gerente e a sofreguidão dum sujeito que levara a hipnotizar-me
durante meia hora lá da mesa próxima, fingindo folhear números do LIFE. Na
escadaria o tal sujeito disse com voz patética que acabara de perder todo o
dinheiro dum desfalque, perguntou gaguejando se eu não poderia fazer a
caridade de ceder-lhe duzentos cruzeiros até amanhã... Já na calçada, acedi,
dizendo-lhe com voz tonitruante que tomasse juízo; Cassandra vaticinou-lhe
processo, condenação, Caiena, a Ilha do Diabo, se continuasse naquele abismo.
Voltamos vagarosamente para o apartamento da rua Tonelero.
... Mas foi só no elevador que Nanny disse:
— Põe a mão aqui no meu coração para ver como ainda bate forte.
Cuidei que tinhas perdido de início, que aquela porção de fichas fosse do turco.
— Só acendeu a luz para entrarmos, apagou-a logo, foi escancarar a janela,
arrancou o tailleur, descalçou-se roçando um sapato no outro, subiu para o
divã, chamou-me. Estirei-me ao seu lado, expliquei que às quatro horas
desceria porque tinha que estar na Vila Militar às cinco, sem falta. Menti
assim, porque precisava voltar para casa.
— Já te despediste de tua avó?
— Sim. Quando vim para cá depois da meia-noite.
— Escuta, Fernando. Eu não te chamava de Albatroz em sentido
pejorativo, não, querido.
— Eu sei, filha.
— Era um modo de dizer que tu estás tão alto que as coisas do mundo,
cá embaixo, te atrapalhavam...
— Eu sei. Entendo, filha.
— Mas tua avó...
— Ora! Entende mais do que nós dois. O receio dela é que exatamente
agora, na guerra, eu me atrapalhe deveras tropeçando numa realidade
medonha... No íntimo, a avó Virgínia reconhece que me criou muito feito
albatroz, nas alturas, e que, de repente... Sim, ela tomou isso como um aviso
teu.
— Fernando!
— Que é, filha? Vira o rosto para cá!
— ... Vou telefonar para tua avó pedindo perdão. Posso? Deixas?
— Ela vai responder, decerto, que já agora não cabe a ela ou a ti senão
a esperança de que eu trate de anular o poema de Baudelaire.
— Et tu vas essayer de faire ça, chéri?
— Mais évidemment! Escuta: dentro duma hora tenho que partir
definitivamente, de modo que... Vira o rosto para cá. — E tirei dos dois bolsos
as duas camadas de notas.
Ante sua fisionomia perplexa e mesmo humilhada, sorri, disfarçando, e
ajuntei as duas importâncias numa só, que enfiei no bolso de trás, das calças.
— Vem mais para cá. Tira os sapatos. Assim. Agora o outro pé. Espera
que eu tiro. Arranca esse casaco de camurça. Está tão quente!... E,
sussurrando: — Chéri, vamos para a cama? Sei lá quando te verei!
— Vamos. Mas preciso sair cedo. Escuta, amanhã mando tio Maurício
vir falar contigo. Olha, tudo quanto precisares pede a ele.
Seus soluços abafados me enviavam beijos quentes nas pálpebras e na
boca, nas mãos e na alma. Só eu sei (e talvez ela, também) como me retirei
dali. E quanto nos custou nos separarmos diante do elevador cuja porta
entreaberta definia um cubículo de sentenciado.
Mas após vinte minutos telefonei para Nanny. Vali-me dum açougue
onde uma velhota protestou pensando que eu me estava antepondo ao direito
duma fila de quarenta pessoas estremunhadas. Aconselhei-lhe um regime
vegetariano, entrei e disquei para o apartamento da rua Tonelero. A mesma
voz de desespero pastoso atendeu agradecendo logo, certa de que se tratava
dum ímpeto de saudade imediata. Disse-lhe:
— Escuta. Presta bem atenção. Procura no divã, debaixo das
almofadas, uma coisa que deixei de propósito. — E desliguei.
Ó madrugada de nítidos pensamentos, durante aquele percurso tão
cheio da minha juventude e mocidade! Saltei do táxi, entrei como um ladrão.
Inclusive no modo de pular a janela e na maneira de contar as três notas de
mil cruzeiros que me restavam.
XIV
“... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO”
5-VI-44 — Na manhã de sábado, o major Aurélio, que sempre me
tratara com a maior deferência, mandou chamar-me.
— Sente-se, Fernando. Precisamos conversar, visto ter acabado o
primeiro período de instrução da l.ª DIE. Aqui a sua ficha diz, entre outras
coisas, que você é órfão de pai e mãe. Diga-me: é verdade que tem avó paterna
viva? Viúva duma das vítimas do sinistro do Aquidabã?
— É verdade, sim, major. Ela está com 64 anos.
— Mas, Fernando, nós não sabíamos! Neste caso a sua situação muda
muito de figura.
— E como veio a saber, major? Acaso porque minha avó recebe uma
pensão do Governo? — Nisto me lembrei de Maurício e de vovô Nunes, estudei
a fisionomia do major Aurélio, e acrescentei: — Ou os senhores receberam
alguma comunicação ou alguma visita? Tenho, por exemplo, um tio-avô, lente
reformado da Escola Naval... mas se ele procurou as autoridades para dar
quaisquer esclarecimentos que modifiquem ou que tenham tido o intuito de
modificar a minha situação aqui o fez por expressa vontade, sem
conhecimento nem anuência minha... E, muito menos, posso afirmar, de
minha avó.
— Bem, Fernando. Não é necessário informá-lo de que maneira
soubemos que você era o arrimo e o sustentáculo duma senhora de idade, sua
avó, dona Virgínia Gama e Cintra. A verdade é que a sua situação muda
muito de figura não devido a qualquer visita ou solicitação que acaso nos
tenha sido feita ou dirigida, (e nem você nos iria insultar com tal insinuação),
e sim, Fernando, porque seja qual tenha sido a maneira do esclarecimento —
está previsto em lei. Basta, portanto, que nos ajude a solucionar trazendo-nos
do cartório documentação a respeito.
— Lamento não poder atendê-lo, major.
— Atender-me, não! Atender aos seus interesses.
— Perdão. Seja! Mas ao vir fazer o serviço militar eu trouxe uma
papelada que me foi exigida logo no primeiro dia da minha convocação. E as
autoridades estavam a par do meu nome, do meu endereço, dos meus
antecedentes, enfim da minha existência, já que no ano exato me
convocaram...
— Perfeitamente. Estive examinando ontem esses seus papéis. Neles não
constam maiores detalhes a não ser data e local do nascimento e nomes dos
pais com a palavra “falecidos” entre parêntesis; mais nada. Ora, para o caso se
faz necessário uma certidão onde conste também (e isso deve constar no
cartório) os nomes dos avós com a especificação de que...
— Bem, que minha avó paterna está viva, isso é fácil de provar. Mas
que eu seja órfão de pai é dificílimo, pois meu pai sumiu num desastre
lendário de avião em viagem clandestina do Rio da Prata para o Brasil e nem
os destroços se acharam. Meu pai vinha incógnito, era um revolucionário.
Outra coisa: dizer-se que sou arrimo e sustentáculo de minha avó até parece
piada. Não tenho profissão, vivo da mesada que ela me dá, e é fácil verificar-se
pelo imposto de renda que ela paga qual deva ser o montante dessa mesma
renda. É proprietária de três arranha-céus...
— Fernando, consinta que lhe esclareça que arrimo, ou sustentáculo,
principalmente quanto a uma pessoa idosa, não quer apenas significar a ajuda
ou o sustento material. Ora muito bem. Isto posto, basta que você fique
doravante ao nosso dispor com a sua carteira de reservista.
— Major: que conforto imprescindível de presença precisa uma criatura
da têmpera de minha avó já que, não necessitando do meu arrimo nem do
meu sustentáculo material, tendo ficado órfã de mãe bem cedo, perdido o
sogro na campanha de Canudos, o marido na explosão do Aquidabã, o pai
durante a gripe de 18, e o filho nos pródromos da Revolução de 30, a vida
inteira tem dado provas duma resistência moral extraordinária!? Ainda
recentemente me interpelou, ressentida, por eu lhe esconder que era
expedicionário. É que nunca entrava em casa com a farda da FEB, e sim com
a antiga ou em trajes civis que trocava no meu apartamento.
— Mas sua avó sabe, então?
— Adivinhou. Já sabe. Aconselhou-me. Deu-me esta carteira com umas
lembranças. De mais a mais, major, não posso aceitar a minha exclusão. Que
diriam meus companheiros do Regimento Sampaio?
— Escute, Fernando: permite que eu fale com sua avó?
— Lógico. Mas o senhor consente num reparo? Trata-se de uma grande
criatura, e abordar-se um tal assunto perante ela... não sei... Decerto se
melindraria. Ou, no mínimo lhe diria o que eu aqui já lhe estou dizendo.
Dito e feito. Quatro dias depois o major Aurélio mandou-me chamar de
novo e disse logo, abrindo as mãos com ênfase:
— Pois é, Fernando. Sua avó é uma formidável mulher, um grande
espírito! Recebeu-me de tal modo, conversou com tamanho critério sobre a
guerra, ponderou coisas com tal acuidade e lucidez que eu apenas pude dizer
que fora consultá-la sobre a hipótese da sua partida. A resposta imediata que
deu e as considerações que explanou, me deixaram sem jeito! E agora qualquer
atitude ou decisão nossa seria um achincalhe às virtudes dessa matrona.
Desculpe o termo; não acho outro. Matrona. Assim pois, com uma tal avó, com
esse passado na sua família, você, com a soma de cultura que tem, está mais
apto de certa forma a receber com mais serenidade do que muitos dos seus
colegas a sua convocação para a 1.ª DIE.
A seguir me perguntou se eu aceitaria bem uma certa sugestão. Ser
transferido do Regimento Sampaio para o 6.º, como adido, explicando que, por
eu falar bem o inglês, o francês e o italiano, a minha transferência facilitaria
ligações do Comando com a oficialidade do transporte que algum dia nos
levasse. Sim. No 1.º havia vários rapazes que podiam fazer a função de
intérpretes, ao passo que no 6.º havia só quatro e esses mesmos...
Anuí, reflexamente deduzindo logo, cá comigo, que decerto o 6.º partiria
antes do 1.º.
***
***
“— Nasce no mato
E no mato se cria;
Quando sai de casa
É choro em demasia.”
***
***
***
***
Só uma hora depois foi que o velho Maurício conseguiu ser ouvido
com relativa docilidade. Expôs-lhe tudo com lentidão persuasiva, em ordem
de entendimento gradual. Satisfez-lhe as perguntas graves e lacônicas.
Relatou-lhe que tinham confiado que se tratasse apenas dum extravio,
contou os termos do primeiro e do segundo comunicado; pormenorizou as
condições em que Fernando havia morrido a 12 de dezembro do ano
passado. Depois lhe disse que, se ela quisesse, a criada Constança podia ir
fazer-lhe companhia por algum tempo na rua Tonelero; mas a aconselhava
que aceitasse o convite de Virgínia (e lhe parecia a melhor solução) vindo
morar nos aposentos de Fernando, com absoluta liberdade de decidir
quanto ao futuro.
Ela repelia tudo, meneando a cabeça.
— Quero voltar para a França... Quero ir viver com minha tia
Geneviève.
— Está bem, Nanny. Tão logo a guerra acabe.
— A Riviera já foi libertada. Assim que houver navio. Leve-me ao
consulado. — E depois pediu que a acompanhasse até ao apartamento, a fim
de pensar...
Maurício mandou telefonar para o Leblon, pedindo um carro. Daí a
quarenta minutos levou-a para a rua Tonelero.
Lá, chegando à janela, chamou-o, disse, apontando para baixo:
— Ele parava o carro embaixo daquela árvore. Assobiava, eu surgia.
Atravessava a rua rindo e fazendo sinais. Eu ia esperá-lo junto à porta do
elevador...
Atirou-se sobre o divã, ali ficou de bruços mais de hora a soluçar
tanto que aquelas estranhas sílabas amorfas cortavam o coração de Maurício
à medida que recordações pungentes iam iluminando seu rosto voltado para
o retrato de Fernando, ali entre porcelanas e coleções de campainhas. Era
como se estas perdessem seus tons e timbres metálicos, tornadas carne e
fibra, submersas em pranto.
E Maurício apertava os lábios, contraía os maxilares, cerrava as
pálpebras, sem que nada disso adiantasse. Cada soluço rouco batia em
determinada porta que logo solícita, obediente e automática, se escancarava
para a passagem de rajadas visuais e acústicas. Assim, enquanto Nanny se
desesperava na treva dum túnel de desvalimento, Maurício se via atrás de
extensa perspectiva para onde se abriam portas lançando golfadas de cenas e
de diálogos, onde ele via e ouvia: Artur e Virgínia balançando Carlinhos
numa espécie de trapézio na chácara do Jardim Botânico; Emília com o
rosto apoiado no violino do qual seus cabelos louros pareceriam infinitas
cordas de sons arquiangélicos; Carlos, barbudo e severo, no primeiro plano
dum painel ecológico; Fernando a cavalo, jogando polo, a dupla imagem
parecendo um centauro; Virgínia, com os cabelos grisalhos ao vento,
apoiada sobre a bossagem do promontório à espera de que o horizonte
túrgido lhe devolvesse seus mortos, enquanto suas próprias lágrimas, como
resinas da serra, a ligavam ao oceano...
Depois, o raciocínio lógico, sem romantismo nem apoteose: a mera
recordação quase cronológica dos fatos medonhos vindo em sentido
contrário, crescendo, como ondas de encontro a uma rocha.
Depois a realidade neutra da sala, da hora, daquela mulher deitada de
bruços, como se tudo, exausto da crispação, aturasse a trégua do marasmo.
Maurício desceu, foi chamar o zelador, voltou contando-lhe o que
acontecera. O bom homem escutava-o, lívido, exclamando:
— Mas, é impossível! É impossível!...
Sem nenhuma combinação prévia, levados os três por uma coerência
de silêncio lúcido, abriram a mala-armário, de cabina, e outra menor,
começaram a enchê-las de roupas, vestidos, sapatos, livros, quadros, discos,
bric-à-brac, e tudo quanto se achava à mão. Como ainda restassem para fora
mais de dois terços de coisas, o zelador resolveu ir buscar um caixote. De
fato, daí a um quarto de hora voltou, achando os dois arrumando as duas
malas em mútua compreensão.
Ao crepúsculo, Maurício e Nanny seguiram de carro para a Gávea, só
com a mala menor, enquanto o zelador ficou dando marteladas no caixote
fechando-o com pancadas que eram como símbolos dum fim. Lá dentro,
mudas, as campainhas recolhiam em seus bojos as camadas ocas dos tempos
como asas aquecendo pintainhos.
Depois, dum lado a serra; do outro lado o mar; mas tudo em declive,
se esbarrondando... Um portão. Riscos verticais de troncos. Um chão em
duas rampas; uma subindo para o promontório e a casa; outra descendo
para o estúdio, os cômodos de Fernando e a praia. O carro entrou, virou
para a esquerda, desceu a rampa e por fim parou. Júlio, magro e esquálido
na noite difusa, abriu a portinhola. Como um vestíbulo não dando para
nada e sim apenas para as alegorias, o estúdio, com a comprida parede de
cristal de doze metros, com as duas cortinas superpostas, uma de seda cor
de cíclame, outra de veludo “mordoré”, lá estava apenas com a presença das
estátuas. No centro, junto à parede, a mesa enorme, vazia. A mesa para uma
criatura apoiar os braços, a cabeça, pensar e compreender.
Daí a uma hora, os rapazes rodearam Constança que saía de lá com a
bandeja.
— Sempre comeu alguma coisa. Estivemos as duas arrumando
gavetas e armários.
Maurício, assim que a Luzia desceu dos aposentos de Virgínia com os
pratos intatos, resolveu subir para lá; na saleta das estantes os dois
conversaram por muito tempo. Quando ele desceu, os rapazes estavam
distribuídos da seguinte maneira: Mílton ajeitava o dial do aparelho de rádio
para ouvir a BBC, lá no bar do galpão onde entre tufos a “Ibonocori” parecia
encalhada de vez; Lauro passeava por entre as aglaias, sozinho; Júlio,
sentado diante do estúdio, num dos degraus, fumava cachimbo. Maurício
entrou. Constança, ao fundo, sentada, era a solicitude em fase de
acanhamento. Nanny com os braços estendidos sobre a mesa, a cabeça
inclinada para um dos ombros, volvia o olhar duma para outra estátua,
percorrendo-as com pensamentos vagarosos. A porta aberta à direita
mostrava a biblioteca de Fernando e da qual só se via um trecho do piano de
cauda. E a porta esquerda, também aberta, mostrava o quarto dele, com a
cama arrumada, da qual só se via um daqueles quatro cantos de que falava a
balada “La Belle, si tu voulais...”
— Nanny, experimente por uns dias. Se se der bem, fique. Se sentir o
menor constrangimento, volte para a rua Tonelero. Quando a guerra acabar,
e as notícias neste sentido são alvissareiras, você, se quiser, irá para
Villefranche. Mas também pode ficar aqui, como em sua casa.
— Quero voltar para junto de tia Geneviève...
— Está bem. A Virgínia aqui, vigiando o Atlântico. Você lá, vigiando
o Mediterrâneo.
***