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José Geraldo Vieira

O ALBATROZ

Editora Descaminhos
São Paulo
2014
Copyright ©2014 by José Geraldo Vieira
Vieira, José Geraldo O Albatroz
São Paulo, Editora Descaminhos, 2014

Capa Marcio Scavone

Edição André Caramuru Aubert


Prefácio Alfredo Bosi

Produção editorial Clélia Aubert

Revisão Douglas Batalha


Leda Botton

Todos os direitos reservados à Editora Descaminhos São Paulo – SP, Brasil Telefone: 55 11 3062 9057
E-mail: editora.descaminhos@gmail.com
Sumário
JOSÉ GERALDO VIEIRA
PRIMEIRA PARTE
I
BARCOS DE PAPEL
II
O JAZIGO INÚTIL
III
AMOR E LITURGIA
IV
O PRIMEIRO SARCÓFAGO INÚTIL
V
IDÍLIO NA CHÁCARA
VI
O SEGUNDO SARCÓFAGO INÚTIL
VII
O ANJO DE FRA ANGÉLICO
VIII
IDÍLIO NAS LARANJEIRAS
IX
O TERCEIRO SARCÓFAGO INÚTIL
SEGUNDA PARTE
X
O PARQUE E AS ESTÁTUAS
XI
“LA BELLE, SI TU VOULAIS...”
XII
A SANÇÃO
XIII
O ALBATROZ
XIV
“... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO”
XVI
O INFANTE
XVI
AMARRANDO O DRAGÃO POR MIL ANOS
XVII
VIGÍLIA NO PROMONTÓRIO
XVIII
O QUARTO SARCÓFAGO INÚTIL
JOSÉ GERALDO VIEIRA
Alfredo Bosi[1]

No romancista de A Quadragésima Porta sentimos o homem


fascinado pela atmosfera da cidade grande enquanto lugar geométrico das
angústias e das experiências intelectuais mais refinadas da civilização
contemporânea. A sua visão do mundo ficou marcada pelos ritmos de uma
Paris mítica visitada antes e depois da Primeira Guerra: centro nervoso da
arte, encruzilhada de todas as poéticas, de todas as ideologias. Algo daquela
febre do último Decadentismo europeu aquece os ambientes e aciona as
personagens do narrador que, sem dúvida, foi a voz “diferente” no coro do
romance brasileiro das décadas de 30 e 40.
E, na verdade, os livros de José Geraldo Vieira são os mais
cosmopolitas que já se escreveram em língua portuguesa. Prosa cortada por
transcrições de anúncios luminosos, por nomes de artigos franceses e
ingleses e por um sem-número de neologismos, citações eruditas e
referências técnicas, ela é uma lente de aumento da linguagem do burguês
culto e sofisticado que respira ondas contínuas e crescentes de informação.
Mas o seu refinamento vai mais fundo e chega mais longe enquanto
molda criaturas extremamente instáveis e nervosas, incapazes de situar e de
resolver os seus conflitos fora do quadros culturais da literatura e da arte,
sua segunda e definitiva natureza. A herança de Belle Époque, do art
nouveau, é sensível na construção de sua obra; mas seria precipitado
classificar de “mundano” um romance como A Ladeira da Memória, onde há
lugar para vigorosos lances existenciais.
A posição de José Geraldo Vieira em nossa literatura é, assim,
marginal. Sem dúvida, é mais fácil opô-lo aos regionalistas que situá-lo
pacificamente entre os intimistas como Lúcio Cardoso e Cornélio Penna.
Porque há nele, além de “tomadas” introspectivas, uma ambição, nem
sempre realizada, mas aguilhoante, de revolucionar a estrutura do gênero
romance entre nós, e fazê-la surpreendente como um painel entre
impressionista e cubista. Para tanto, joga com os planos da realidade
presente e do passado e arma símbolos que os unifiquem. O Albatroz foi,
nesse particular, a sua experiência narrativa mais feliz, enquanto logrou fixar
uma constante psicológica (a dor causada pela perda de seres amados)
através de uma complexa história de gerações. Em outro romance, centrado
intencionalmente na estrutura, A Túnica e os Dados, a inovação faz-se na
esfera da sincronia: no breve corte de tempo de uma Semana Santa,
transcorrida numa cidade do interior, na capital paulista e em Santos,
justapõem-se os dramas de vários figurantes e, a certa altura, a coexistência é
fixada graficamente pela divisão vertical da página em duas colunas nas
quais se narram, paralelamente, os sonhos de duas personagens. Já o ponto
alto de Terreno Baldio foi atingido pela fixação de Paris ocupada pelos
nazistas e vista pelo ângulo de um par amoroso de psicologia tipicamente
moderna, citadina e culta até à sofisticação. Enfim, em Paralelo 16: Brasília,
o narrador apanha um momento áureo da vida nacional: o tempo de euforia
que envolveu a fundação da nova capital. A linguagem carrega-se aí daquele
jargão burocrático, eivado de siglas, que parece ser uma das fatalidades da
era tecnocrática. O que, somado ao léxico internacional do autor, vem
confirmar o caráter moderno e “metropolitano” da sua ficção.
Radicalizando as próprias qualidades de atento observador, José
Geraldo Vieira tende a construir um romance substantivamente cheio, não
raro em prejuízo da nitidez dos caracteres e da trama. Pode-se dizer que esse
traço vem ao encontro da prosa vanguardeira, como o nouveau roman,
nominal, descritivo, antipsicológico; o que não lavra, por força, um tento
estético, sobretudo quando a tendência atua à revelia do equilíbrio interno
da estrutura ficcional.
[1]
Alfredo Bosi é professor emérito de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo
(USP), membro da Academia Brasileira de Letras e coordenador do Conselho da Cátedra Lévi-
Strauss, mantida pelo convênio entre o Instituto de Estudos Avançados e o Collège de France. Sua
consagrada obra História Concisa da Literatura Brasileira, publicada pela primeira vez em 1970 pela
Editora Cultrix, apresenta este texto, gentilmente cedido para esta edição.
PRIMEIRA PARTE

“Não procurar deixar de sofrer ou sofrer menos; e sim, não ser alterado
pelo sofrimento.”
Simone Weil
I
BARCOS DE PAPEL

INDISCUTIVELMENTE aquele telegrama — chegado horas depois


da comunicação oficial — conquanto fosse mera insistência num pedido
antigo, tomou em tal conjuntura caráter lúgubre. Sobrevindo em
circunstância tão dramática, se tornou irônico sem querer, como tudo
quanto é ignorância cândida coincidindo com uma desgraça aguda.
Aliás, essas coisas não são raras; dir-se-ia que acontecem nessas
ocasiões para que seu contraste vinque a realidade não admitida por inteiro.
Tanto que, logo que o texto foi lido, o despacho assumiu um
comportamento discreto, como um realejo mudo no pórtico dum teatro
onde ressoasse uma sinfonia.
Quando a Constança bateu na porta do quarto e disse que se tratava
dum telegrama cujo recibo o Alberto já assinara, dona Virgínia respondeu
que o jogasse por baixo da porta. De quem seria essa primeira prova de
solidariedade humana a propósito duma situação perplexa e
acabrunhadora?
Leu. Não tinha relação nenhuma com o fato.
Tocou a campainha e abriu a porta preferindo que Maurício, ao
perceber sua sombra cortando a claridade, atendesse em lugar da Constança.
Como esperasse algum tempo, resolveu recuar para dentro de seus
aposentos. E, pelos ruídos que só muito depois ouviu nos degraus, ficou
alguns segundos sem saber quem estaria subindo. Quando numa casa
sucedem estados angustiantes até os passos se modificam. Um lar em ritmo
normal se rege por múltiplas leis de continuidade; o mínimo acidente,
porém — sem falar nos máximos — altera tudo, inclusive o próprio ar, que
logo modifica o som da pêndula que até então subdividia o tempo com a sua
equanimidade neutra.
Não. Não era a criada.
— Bom dia, Maurício.
Ele não respondeu nem olhou. Apenas ficou diante da irmã
reconhecendo, com a abstração que o enleava, a inutilidade redundante de
quaisquer comentários. Parado no último degrau, mais parecia, assim
grisalho e respeitável, um lacaio tradicional do que um irmão solícito e
compreensivo. É que deduzira que o chamado da campainha devia referir-se
a providências inerentes a certo caso; e como notara que Constança descera
para o parque, resolveu atender.
— Maurício, vou pedir-lhe um favor. Diga à Constança, ao Alberto e à
Luzia que, caso chegue alguma coisa, telegrama ou carta, entreguem a você.
Que não venham me avisar. E, principalmente, que não atendam ao telefone.
Eu e você nos encarregaremos disso. Se os rapazes aparecerem, como é
provável, que fiquem à vontade, porém.
Maurício, em resposta, nem pestanejou. E assim que a mana se retraiu
para os seus cômodos, ele desceu; mas antes de atravessar o vestíbulo,
escutou uma recomendação que ela achou melhor acrescentar com voz um
pouco mais alta:
— Maurício!... É claro, vá abrindo o que chegar, carta, telegrama. E
receba quem aparecer.
Ele limpou a garganta e, achando-se rente à mesa, tirou de dentro da
bandeja um antigo programa do Hamlet, deixando lugar disponível para a
correspondência. Dirigiu-se depois à saleta de almoço onde já estava
quando a criada subira com o telegrama. Tornou a sentar-se no lugar de
sempre, com o folheto de teatro na mão. A janela emoldurava três cores
densas: do mar, do céu e da Ilha do Meio.
Arrancou a capa do libreto e pôs-se a dobrá-la tão distraidamente que
a Luzia, ao entrar, notou que o mano da patroa, um sexagenário solteirão,
fazia um barquinho de papel.
— Está chorando por causa de seu Fernando, professor Maurício?...
Ele largou o barco de papel, passou a mão nas pálpebras, percebeu
que Luzia tinha razão. Achou, contudo, que devia explicar melhor, não para
ela e sim para si próprio.
— Estou pensando no jazigo inútil...
— Credo! — retrucou ela. Não se referia a essa ponderação que não
compreendeu absolutamente. Referia-se ao que logo esclareceu correndo
para a copa. — Esqueci a manteigueira e o pão.
Não tardou a voltar. Esperou um pouco e, movida pela curiosidade do
telegrama de que lhe tinham falado a Constança e o Alberto, lançou uma
consideração estratégica:
— Coitado de seu Fernando. Mas... Deus é grande!
— Luzia! Chame o Alberto e a Constança.
Quase de chofre apareceram os três, ficando a olhar para o barco de
papel.
— Não entreguem cartas nem telegramas a dona Virgínia. Deixem na
bandeja da sala. E não atendam ao telefone. Se os rapazes aparecerem, que
fiquem à vontade... por aí.
Outra vez sozinho, o velho lente aposentado tomou uns goles de café,
logo afastou a xícara, ficou olhando para o mar. E em dado instante quase
sorriu, não para vencer e recalcar as lágrimas, mas por pensar que qualquer
pessoa, vendo-o com um barquinho de papel, o julgaria algum velho
caduco.
Barcos de papel... Desde quando não os fazia?...
Contudo, havia muito tempo, fizera tantos que até enjoara.
Obrigavam-no a isso os caprichos autoritários do cunhado Artur e do
sobrinho Carlos; o primeiro, seu colega na Marinha; o segundo, seu
discípulo em São Clemente. Mas, quando?... Quase quarenta anos antes!
Quando os três, durante as férias, em janeiro de 1906, levavam vida
anfíbia na chácara à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Sim, ele, como
teórico, se vira obrigado a contribuir com material para as reconstituições
que o cunhado e o sobrinho (pai e filho) faziam da batalha de Porto Artur.
Por que a de Porto Artur e não, por exemplo, a de Lepanto? Porque o
cunhado se chamava Artur e achava lógico que tal batalha, longínqua em
distância mas recentíssima no tempo, devesse ser mais didática. E como se
negar Maurício a tais exigências se o cunhado, já oficial, era ao lado do filho
uma criança perfeita e declarava que tais exercícios (de naumaquia, segundo
Carlos) auxiliavam simultaneamente o professor, o oficial e o aluno, sendo
portanto uma disciplina e um recreio?!
A velha chácara rente à Lagoa Rodrigo de Freitas. Aquele mês de
janeiro de 1906. Férias autênticas... Tal noção se acentuava mais à hora do
almoço... Ele e a mana Virgínia sorriam vendo Artur e Carlos se entregarem
como sempre a reptos interessantíssimos. Quanto aos temas, tratava
Maurício de ensiná-los na véspera ao sobrinho para que este desse quinaus
no pai. E, servindo-os, Virgínia dizia:
— Mas, pelo amor de Deus, comam! A criadagem tem tanto que
fazer! Já passa de meio-dia.
E o Artur, bonito, galhardo, de farda branca, a fazer perguntas com ar
provocante ao filho que o olhava com a benevolência da vitória prevista.
Coisas assim:
— Nauta! Que é?
— Ora, papai! Navegador, marinheiro, em termo poético. E agora
quem vai perguntar sou eu. Náutilo, que é?
— Náutilo? Bem... náutilo...
— Não sabe. Diga logo que não sabe.
— Não sei, uma ova! Mais respeito, hein?
Pai e filho riam, atiravam um no outro miolo de pão, desafiavam-se,
fingindo ameaças de luta corporal; mas a verdade é que náutilo...
O próprio Carlos já esquecera; teve que tirar do bolsinho das calças
um papelucho que leu entre gargalhadas.
— “Cefalópodo que tem a concha em espiral.” E Nausífanes, que é?
— Vá plantar batatas com suas perguntas de algibeira. O assunto tem
que ser só de coisas marítimas.
E como o filho, candidato a ginasiano, explicasse que Nausífanes foi
um filósofo grego do III século, o pai exigiu, entrando com jogo livre, que o
filho desse pelo menos seis sentidos diferentes da palavra “nave”.
— Seis sentidos da palavra nave, contando com o sentido daquilo que
é mesmo? Pois escute; lá vai... Navio, um. Parte do templo entre o átrio e o
santuário, dois. Nome duma comuna na Itália, três. Nome dum escritor
italiano, quatro. Nome de dois teólogos belgas, seis.
— Você não podia saber isso tudo! Ainda nem é primeiranista de
ginásio, como é que sabe? É malandragem de seu tio Maurício.
Fingia engalfinhar-se com o cunhado e o filho. E Virgínia observava-
lhes:
— Tenham juízo. Não sei qual é mais criança.
E enternecia-se com o filho. Com onze anos só, e a responder coisas
que ela ignorava. Como eram interessantes pai e filho, assim alegres e
íntimos! E respondia alto: “Até logo!” aos três que iam para o porão estudar
o remate interminável da miniatura de galeota que estavam fazendo. Ouvia
o ruído do trabalho lá embaixo (transformavam o porão em carpintaria,
dique e estaleiro), vozes e risadas.
— Nautical Almanac, que é?
Lá isso Carlos não sabia, perguntava afoito, interessadíssimo. E o pai
respondia:
— É esta droga em que estou sentado enquanto acabo este mastro.
Daí a pouco o filho desembaraçava com as mãos e com os ombros o
volume do Almirantado inglês que servia de banco para o pai, punha-se a
folhear aquela sistemática de mares, navios, portos e ordenações, muito
embevecido.
Ele, Maurício, lá fora no mundo era oficial de marinha e professor de
Geografia e História Universal em São Clemente, no colégio Santo Inácio;
mas ali no porão, cunhado e sobrinho lhe davam títulos honoríficos sobre
excelentes, dizendo, a torto e a direito:
— Seu nautódico, passe o martelo. Seu Nausífanes, onde está a cola?
Seu náufrago, passe o nautômetro (a régua).
Só mesmo rindo, já que a vida era dura e não se sabia do dia de
amanhã.
De tarde, quando o sol ia descambando por trás dos Dois Irmãos na
ponta da Praia de Fora, os três, depois do chá e de nova empreitada de
engenharia naval construindo o “Kuimbaé”, iam para o fundo do quintal que
dava para a Lagoa. E acolá, debaixo das amendoeiras e das pitangueiras ou
em cima do pontão particular oscilando sobre a vasa, reproduziam as
peripécias da campanha de Mukden.
— Vamos para Liao-Tung! Maurício. Traga papel para as esquadras!
O terreno enorme, da cozinha até à Lagoa, passava a ser Liao-Tung,
entre a Manchúria e a Coreia. A água era a baía de Pe-tchi-Li. Os caminhos,
desde a varanda e o porão, eram a estrada mandarim e a via férrea de Porto
Artur a Karbina... por hipótese, é claro.
— Carlos! Enquanto seu tio nos mostra suas habilitações naviformes
com números antigos do Jornal do Comércio e de O Malho, deixando de ser
navarca para ser Pedro de Medina e Pedro Nunes, você vá desembuchando
nomes de tudo quanto é qualidade antiga e eterna de embarcações.
E Carlos, glorioso, empolgado, a dizer, como numa poesia:
— Trirremes, galeras, galeaças, caravelas, galeões, urcas, brigues,
fragatas, escunas, corvetas... — Palavras, coisas, cujas significações aprendia
com o tio Maurício, enquanto o pai, de serviço a bordo, ficava ausente de
casa dias seguidos.
Como Carlos gostava daqueles nomes! Achava-os formidáveis,
sonoros, catava-os em dicionários ilustrados. E não raro aumentava a lista,
com outra série:
— Patachos, sumacas, taforeias.
Acabadas as tarefas do colégio, zás! haja desenhar cartografias.
Oceanos, mares, golfos, estreitos, deixando continentes, penínsulas e istmos
apenas esboçados como coisas vagas e desdenháveis. Se o pai sempre dissera
em garoto — “Quero ser oficial de Marinha!”, ele, Carlos, o filho, o mais que
a tal respeito elucidara após insistências fora um desejo estapafúrdio (com
oito anos) que fizera mãe, pai e tio rirem muito: “Quero ser escafandrista...”
Enquanto as unidades se iam escalonando em cima do pontão como
elementos graciosos para uma regata, Artur abria (refestelado numa cadeira
preguiçosa, de bordo) alguns números de L’Illustration, de 1905, do ano
anterior, e estudava mapas e fotografias das operações russo-japonesas no
Extremo Oriente. Isso posto, a luta começava. Primeiro uma alegoria dual:
Artur fardado, com trinta anos. E Carlos, metido num quimono materno
com a cara lambuzada de zarcão para ficar bem nipônico, com onze anos
incompletos. Artur de farda imaculada e sapatos brancos. Carlos, com a
vestimenta extravagante, de pés no chão. E travavam jocosa luta corporal,
pai e filho, com muita cópia de cócegas e risadas, Artur sendo sucessiva e
instantaneamente Kuropatkine, Bilderling, Mitchenko, Liniévitch e
Stackelberg, além de Makharof e Witheft. E Carlos sendo, enquanto isso,
alternadamente, Kuroki, Nogui, Kawamura e Togo.
— Eu sou adido e observador europeu — dizia Maurício, instigando,
apesar da suposição de neutralidade.
Acabada a alegoria, vinham fases de batalhas navais, para o que
Maurício já cortara muito papel de jornal e revista, fazendo minúsculas
esquadras. E estas agora, postas na água, rente ao pontão e atiçadas por
clamores (inclusive da molecada dum terreno baldio), levavam golpes
violentos com bambus que espadanavam água e lama pelo teatro das
operações.
Ora, certa tarde... Sim, certa tarde, estando a maré muito alta, pai e
filho, enquanto atiçavam e manobravam as esquadras que oscilavam ao
vento e que logo passaram a naufragar maciçamente sob o efeito de
pontapés, varadas e apupos, no auge do entusiasmo se atiraram ou caíram
sem querer na vasa por entre os barcos de papel que espoucavam feito peixes
voadores. A luta foi até ao fim com a fidelidade histórica que convinha,
porque Artur, no papel desesperado de Witheft, naufragou com a nau
capitânea... ou melhor, a coisa ia ficando séria, pois Carlos, no vigor da
refrega, pulou em cima dos ombros do pai, e os dois sumiram na água da
Lagoa. Maurício assustou-se, tirou os sapatos, jogou longe o paletó,
mergulhou, ficou preso naquele espadanar de cetáceos, engoliu muita água,
bracejou e, por fim, para vergonha de todos, a molecada do Jardim Botânico
— a habitual assistência — foi que desatolou os três da vasa.
Quando, com as sombras do crepúsculo, chegaram à copa, ofegantes,
molhados como pintos, com toneladas de lama nos cabelos e nas roupas,
Virgínia levou um susto tremendo e quase perdeu os sentidos depois de
atirar-se aos braços ora do marido ora do filho, ficando também toda suja e
molhada.
Após cálices de vinho do Porto, descomposturas e vexames, Artur foi
para o banheiro assoviando La Donna é móbile; Carlos foi para o tanque do
porão berrando: “Patachos! Sumacas!! Taforeias!!!”; e Maurício se esgueirou
para o chuveiro da criadagem, muito desapontado.
Uma hora depois, vestidos, penteados, afoitos, esperavam Virgínia,
sentados já em seus lugares à mesa do jantar. Mas a criada veio dizer por
duas vezes, rindo, que a patroa respondera “que se servissem”...
Por fim, cada qual foi instar com ela, do lado de fora do quarto, no
corredor:
— Virgínia, que é isso? Ficou zangada? Por causa duma brincadeira?
— Tome juízo. Nem parece que deu a volta ao mundo...
— Virgínia, seu marido e seu filho estão com fome...
— Muito bonito! Um guarda-marinha, um professor do Santo
Inácio... Pois que jantem sozinhos.
— Mamãe! Ó mamãe? Como é?
— Entenda-se com seu pai e com seu tio. Não me dou com
escafandristas.
Esmurraram a porta, cantaram com as gargantas erguidas para a
bandeira do portal, fizeram tal estardalhaço descendo pelo corrimão da
escada, que ela pôs de lado a birra, saiu do quarto, veio para a sala, sentou-se
à cabeceira, serviu-os, muito séria, mas não jantou.
— Não posso. Não insistam. Fiquei nervosa. Não façam mais isso.
Só assim, por instâncias superiores (de que o mundo tem tido tanta
falta), foi que acabaram as reconstituições apócrifas da campanha de
Mukden. E Maurício deixou de fazer barcos de papel.
Quem salvou a situação enfarruscada daquela noite na sala e na
varanda do casarão do Jardim Botânico — pois os três, Artur, Maurício e
Carlos estavam desmoralizados perante a molecada do Largo dos Leões e o
silêncio amuado de Virgínia — foi o casal Peixoto, a visita mais habitual.
A custo se desenrolou uma conversa muito desenxabida. O Peixoto
ofereceu cigarros a Artur.
— Uma nova marca. Ótimos. “Douradinhos”, e a Maurício, dizendo:
— Central. A Tabacaria Londres. Comprei-os na primeira loja que se
abriu na Avenida.
Aceitando, Maurício considerou em tom de comentário vago:
— Fui ontem ao edifício das Docas de Santos. Formidável. Mas lá de
cima, duma das sacadas, tive impressão de avenida muito desolada ainda.
Árvores pequenas. Pouco trânsito. Calçadas vazias...
Ao que o Peixoto retrucou:
— Mudará... Congestionar-se-á... Ainda há de se parecer com um dos
boulevards do velho Haussmann.
E dona Clotilde, voltando-se para Virgínia, informou, solícita e
entusiasmada:
— A seção da Gazeta, o Binóculo, já está promovendo corsos às
quartas-feiras,
— De fato — aparteou o Peixoto. — Eu até tenho dito à Clotilde: “Vai,
criatura. Para que te comprei a caleça que foi do Guerra Duval? Para que
trouxeste toilettes da Rue Castiglione?”
Mas, como sempre, embora o Peixoto dissesse no decorrer da
conversa que esperava na próxima viagem embarcar no Cais do Porto,
diretamente da doca para o navio da Mala Real, pois já estava farto das
alvarengas do Cais Pharoux, os assuntos se nacionalizaram logo. Como de
hábito, sobre Osvaldo Cruz, o prefeito Passos, o engenheiro Bicalho...
Na manhã seguinte, Virgínia, Carlos e Maurício viram Artur pela
última vez quando ele, acabadas as férias, voltou para o serviço.
II
O JAZIGO INÚTIL

O jazigo inútil...
LUZIA, a cozinheira, não entendeu aquela expressão do professor
Maurício. Mas ele sabia bem o sentido profundo da sua referência
aparentemente vaga. E, mais do que ele, a sentia em sua veracidade cruel a
mana Virgínia.
Treze anos antes do último fato narrado no capítulo anterior — e
mero aspecto da vida feliz levada na chácara do Jardim Botânico — o
coronel Aleixo, sogro de Virgínia, certa manhã convidara Maurício, que
então dispunha de tempo pois abandonara a Politécnica e cursava a Escola
Naval, para acompanhá-lo até à oficina dum marmorista italiano na rua da
Matriz, em Botafogo.
— Pode parecer uma ideia extemporânea e um convite
despropositado; mas quero que dê sua opinião sobre o jazigo perpétuo que
mandei fazer sem a aquiescência de minha mulher. Resolvi empregar nisso o
dinheiro do material de demolição dum prédio.
Quando entraram na oficina em cuja porta principal se vendiam
flores, pois o cemitério de São João Batista era ali perto, lhes veio ao
encontro o velho Tronchi, encordoado de pele e músculos como um galo de
briga (mas comparável em sua feiura esquelética a uma estátua móvel de São
Jerônimo). Foi logo dizendo para o coronel enquanto com um gesto
mostrava o jazigo:
— Oblatis, Domine, placare muneribus.
Ao que o coronel, conspícuo latinista, respondeu:
— Presta, quaesimus, ut quod temporaliter gerimus, aeternis gaudiis
consequamur.
Maurício achou aqueles dois interlocutores extravagantes, o coronel
de cartola, sobrecasaca e barba Souvarov, o escultor de melenas revoltas,
calças de veludo e avental inteiriço, dois excelentes figurões contracenando
para uma plateia invisível de fantasmas. O coronel Aleixo traduziu logo o
diálogo:
— Não se assuste. Sei que sabe muito bem matemáticas e ciências,
mas provavelmente desdenha o latim. Tronchi atirou-me com esta: “Aplacai-
vos, Senhor, com as dádivas que vos oferecemos”. E eu pespeguei-lhe:
“Esperemos que o combinado cá na terra nos proporcione conforto eterno”.
Traduzido, não era tão estrambótico.
Tronchi inseriu-se no meio dos dois como uma dobradiça de porta
dupla, levou-os por entre uma exposição de cruzes, anjos e vasos de
mármore, e mostrou com gesto declamatório o mausoléu.
O coronel Aleixo assim que viu ficou rubro, deu um safanão simétrico
nas abas da sobrecasaca e recuou, enfurecido.
— Não foi isso que lhe encomendei. Exigi e expliquei muito bem que
fazia questão duma pirâmide. Não aceito! Indefiro! Não serve! Não pago!
Mas o Tronchi, sem levar nenhum susto, explicou que tinha sido
ordem categórica de dona Maria-Amélia.
— Minha mulher não tem nada que ver com isto! Já que não permite
que eu me intrometa nas coisas deste mundo, que não se imiscua nas do
outro! Demais a mais, como foi que ela adivinhou?
— Disse-me, coronel, que descobriu os esboços e desenhos no seu
bolso; veio imediatamente me procurar, ordenou modificações e decretou
segredo! Declarou que numa pirâmide abafava. Que ela não era a rainha
Karomama nem o senhor o faraó Amenófis IV. Trouxe-me depois um álbum
do cemitério monumental de Gênova, escolheu uma graciosa composição
circular.
— Não concordo, absolutamente! Encomendei uma pirâmide por sua
síntese de incomparável sabedoria. Então você não sabe que a estrutura da
pirâmide está regulada por seu triângulo vetor?
Tronchi abaixou os olhos como um péssimo aluno de geometria,
deixou que o coronel falasse da divina proporção representada pelo símbolo
da letra grega phi; depois criou coragem e ponderou:
— Mas, coronel, não fiz o jazigo que Dona Maria-Amélia escolheu!
Um artista da minha responsabilidade não se sujeitaria, mesmo estando no
exílio em situação precária por motivos filosóficos, não se sujeitaria, digo, a
fazer um monumento de gosto burguês copiado dum catálogo. Este
sarcófago que lhe estou mostrando vai dirimir uma possível desavença
doméstica e é a cópia exata da tumba do principal discípulo de Arquimedes
em Siracusa, minha terra natal. Sua senhora me disse peremptoriamente:
“Seu Tronchi, embirro com a pirâmide de Quéops. Se Aleixo fosse solteiro
admito que quisesse descansar onde muito bem lhe desse na veneta. Mas
com a família, não! Não estou para que no dia de Finados, cada ano,
zombem do meu mausoléu, futuramente”. Vai então, coronel Aleixo,
conciliei as coisas. Agora, indago com o coração na boca: Recusa-se a aceitar
um mausoléu que é a reprodução conscienciosa da tumba grega do principal
discípulo de Arquimedes? Dum monumento que é uma joia de Siracusa?
Uma confluência de harmonias? O vão sublime do silêncio! A quietude
magnífica onde a própria eternidade se contempla? Veja! Observe! Que
paz... Que serenidade... Que vitória merecida contra o tempo! Que vaso de
imanência!...
— Seu Tronchi, olhe-me bem. Isso é mesmo dum discípulo de
Arquimedes?
— Palavra, coronel! Vou mostrar-lhe postais. Tem a reprodução no
livro de Vasari!...
— Bem. De fato, não mereço a pirâmide. E muito menos a merece a
Maria-Amélia. Não sou Amenófis IV e ela está longe de ser a rainha
Karomama. A pirâmide ficará para depois de outras desencarnações...
Tirou e repôs a cartola, encheu um cheque ali mesmo em cima do
balcão que rescendia a goivos, enquanto Maurício dava uma olhadela aos
anjos e às cruzes por mais que o estatuário procurasse demovê-lo
confessando:
— Robaccia! (Coisa ordinária.)
O coronel, agitando o cheque para que este secasse, entregou-o a
Tronchi, ordenou a compra do mármore e o início dos trabalhos, cofiou o
queixo deixado livre pela barba Souvarov, deu um repelão na aba da
sobrecasaca, foi até à porta da rua, chamou com um gesto a vitória cujo
cocheiro também encartolado tratou logo de obedecer.
Depois de olhar de relance a quantia declarada no cheque, o Tronchi
se desfez em amabilidades.
— Para que essa pressa, coronel Aleixo? Se há um caso em que o
pagamento e a realização devam ser adiados é este, non é vero?
— Concordo com o reparo — observou o coronel instalando-se na
carruagem logo seguido por Maurício. — Mas, atendamos ao que São Paulo
disse aos coríntios: “Omnes quidem resurgemus sed non omnes
immutabimur”.
A vitória seguiu para o Jardim Botânico onde o coronel, a esposa, a
nora e a filha mais o Maurício almoçaram.
— Onde esteve, Aleixo? Demorou tanto... — disse à certa altura dona
Maria-Amélia.
— No Ministério da Guerra! Dizendo umas verdades nas bochechas
do marechal Bittencourt. Fiz-lhe ver que há responsáveis e instigadores sub-
reptícios da resistência de Canudos... Sim, os monarquistas! Perfeitamente.
Esse café vem ou não vem?
Depois do almoço o coronel desceu para a cidade com o Maurício,
tendo desde o Largo dos Leões até à Lapa pespegado no irmão da nora,
durante o trajeto do bonde, uma aula quanto às vantagens do Withworth 32
sobre a bateria Krupp, uma catilinária contra Moreira César e um panegírico
ao coronel Tamarindo, assuntos estes que entrecortava com pormenores
arquitetônicos, sociais e políticos de fatos e coisas antiquíssimas, sempre que
o bonde passava diante ou perto dalgum ponto de referência que o
inflamasse. Como sempre, muito loquaz e redundante.
— Como é, Maurício! Já esteve alguma vez em Copacabana, rapaz? Já
estou beirando os cinquenta anos, mas ainda hei de ensinar-lhe um caminho
formidável para o lado de lá. Não pela Ladeira do Leme, o caminho que
Maria Graham descobriu; e nem pelo túnel aberto por meu parente Coelho
Cintra no Morro de Vila Rica, prolongamento do Morro da Saudade. Sei um
trecho, contornando Sacopenapã que, embora seja longo, é admirável como
vista e passeio até se chegar à Praia de Fora. Mas se o Governo quiser abrir
mesmo uma passagem inteligente para Copacabana, sabe o que ele deve
fazer, rapaz? É varar o Morro da Babilônia.
E, mais adiante:
— Mas ao Jardim Botânico você já tem ido, não? Merece a pena. Sim,
merece a pena. O antigo Horto Real é qualquer coisa de extraordinário.
Dizer-se que aquilo começou nos terrenos da fábrica de pólvora do Marquês
de Sabará! E começou com quê, aquele mundo quase fronteiro à minha
casa? Com uns pés de cravo-da-índia, de pimenta-do-reino, de cana de
Caiena, de noz-moscada... Depois, em 1809 recebeu a palmeira imperial...
Até chá eles plantaram, Maurício. Não entro lá faz muito tempo. Decerto
por morar quase defronte. Mas sempre tenho uma reação. O velho Horto
Real, ou o Real Jardim Botânico, foi o primeiro trecho do Brasil que se
desnacionalizou; nada tem de nosso, a não ser alguma coisinha da
Amazônia. Foi por isso que, antes de decepcionar a mim, decepcionou a
Maria Graham, a Ribeyrolles e a Gardner. No meu entender o único
elemento bem brasileiro que existiu ali dentro foi frei Leandro do
Sacramento. Mas, merece a pena ir. Merece.
Ou então, mais adiante:
— Cá estamos diante do Palacete Abrantes com a sua capelinha à
Nossa Senhora da Piedade. O Calmon melhorou-o muito. O Calmon é um
gentleman. Este palácio só teve um interesse igual ao de hoje no tempo de
Carlota Joaquina; mas decaiu quando o habitou o Barão do Catete que
depois foi Visconde de Silva.
E mais adiante:
— Este, sim; este o Governo fez muito bem de comprar. Está em
obras. Foi um grande sujeito o Antônio Clemente Pinto. Se foi! Deixou a
nossa gente de boca aberta. E não menos formidáveis e aluados foram os
herdeiros dele. O Antoninho, Barão, Visconde e Conde de São Clemente! E
o Bernardo, Barão, Visconde e Conde de Nova Friburgo.
A seguir, mostrando o palácio que um tal Martins Cornélio comprara
ao Ribeiro da Silva:
— Veja que beleza! É pena estar tão rente à rua! Consta que acabou de
ser doado à Misericórdia. Mas, espere, que já lhe mostro o palácio do
Visconde de Meriti. Aqui, meu caro, houve sangue nobre! O palacete Bahia
tem estirpe. Vem dos Lopes Pereira e dos Abrantes. Mas, bonito,
monumental mesmo, com ar de qualquer coisa europeia, é o palácio
Itamarati que o Governo comprou ao Francisco José da Rocha. Aquilo sim!
Pouco depois, antes do Passeio Público, o coronel Aleixo deu uma
risada, bateu no joelho de Maurício e exclamou:
— Não há coisa pior no mundo do que o erudito. Vê essa demolição?
Parece que o Governo vai levantar aqui na Praia da Lapa um prédio
reunindo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia de Letras
que falam em fundar, a Academia Nacional de Medicina e a Ordem dos
Advogados. Foi o que me disse o Paranhos... E me contou que embora a
planta ainda não esteja pronta (os estupores ao menos fizessem uma cópia
do Instituto de França!), o Ramiz Galvão já anda a estudar nomes para o
prédio. É claro que está emaranhado em raízes e desinências gregas,
pensando (isto vai por conta do Paranhos), em absurdos como estes:
Polilógio, Panetásio, Logossinédrio!... ah! ah! ah! Esses sujeitos são fósseis,
Maurício! Fósseis, digo-lhe eu!
Ainda ria quando saltou do bonde e foi tomar um tílburi no Largo da
Carioca a fim de seguir para o Quartel General.
Mas a verdade é que naquela tarde não andou pelo centro, como de
hábito, e apareceu em casa relativamente cedo. É que de repente, na cidade,
se lembrou duma coisa: o número de sarcófagos dentro do mausoléu. Subiu
pois mais cedo só para interpelar o Tronchi, que se assustou ao vê-lo.
— Mostre-me outra vez essa joça! Quero ver lá dentro. Não vi, esta
manhã.
Então o Tronchi se aproximou da enorme maqueta de gesso e a
descobriu como quem destampa um açucareiro. Ladeando uma espécie de
complúvio se viam duas ordens de sarcófagos; quatro de cada lado. Os da
esquerda, delicados; os da direita, pesados. E o Tronchi explicou,
especificando:
— Para homens, os da direita. Para mulheres, os da esquerda.
— Não serve! Isso de “para cavalheiros” e “para senhoras” está
parecendo coisa sanitária, seu Tronchi! Quero casais juntos. E, antes de mais
nada: só oito? Não acha pouco?
— Bem, com licença; vamos por partes; primeiro: com que então o
coronel quer homens e mulheres juntos?
— Lógico. Se em vida há eventuais separações, que pelo menos na
morte fiquem lado a lado.
— Bem. É fácil. Ó Zoroastro, ajude aqui.
E o Tronchi e o servente, bufando e se sujando de gesso, puseram na
ordem desejada pelo coronel os oito sarcófagos. Dois casais dum lado, dois
casais do outro.
— Agora, a outra questão...
— Exatamente! Por que só oito? — perguntou o coronel.
— Bem. Quatro gerações, quatro casais, em teoria. Segundo a frase
bíblica: “E que possais ver os filhos dos vossos filhos até à terceira e à quarta
geração...”
— É pouco! Tenho filho. Breve vou ter neto. Vai ser um nunca mais
parar.
— Bem. Sempre haverá espaço para mais. Tiram-se os ossos
anteriores, substituem-se pelos corpos dos pósteros... Isto, coronel, é um
jazigo, uma coisa limitada e não... um cemitério! O cemitério é em redor,
non é vero? — perguntou o Tronchi com certa desenvoltura de quem não crê
que além de quatro gerações perdurem os vínculos.
— Está bem. Está bem. Concordo. Toque esse negócio! Quero ser
patriarca!

***

Que pessoa mais formidável o coronel Aleixo!


Quando cursava em garoto a seção de internato do Colégio Pedro II
que no seu tempo funcionava em São Francisco Xavier, na Chácara da Mata,
já sobressaía tanto pela inteligência como pela índole pirracenta. Em rapaz,
ao tempo em que cursava a Escola Militar quando esta funcionava
simultaneamente com a Escola Central no edifício da Politécnica, vestia
garbosamente sua farda dando a impressão arrogante do capitão de
Bérgamo da tela de Moroni. Conquanto se dedicasse com aplicação vivaz às
matemáticas e às ciências, não se aplicava menos dedicadamente à vida
noturna, frequentando-a com o arrojo do seu temperamento. Fora assíduo
espectador (e expectador) do Eldorado e do Alcazar, passando as horas
restantes de cada noite no Renaissance ou nos Frères Provenceaux entre
música, mulheres e champanha. Quando a mesada ficava curta, tolerava, nos
dias de folga, as refeições e o bock do Stadt Coblenz ou as iscas e o vinho
verde do Labarthe. Mas nos primeiros dias de cada mês pagava rega-bofes
que principiavam no Hotel d’Europe, à rua do Carmo, e se prolongavam até
ao Palácio de Cristal e ao Hotel Ravot. De tarde fazia ponto na Deroche a
namorar moças casadoiras, ou ia para o Café de Londres discutir política e
contar anedotas.
Isso não impedia que as velhas casas hospitaleiras dos bairros o
convidassem para ajantarados aos domingos em Santa Teresa, Engenho
Novo ou Andaraí Pequeno. Já maduro, ainda falava com saudades
veementes dos serões do casal Haritoff, das festas nas casas do Barão do
Alegrete, do Visconde de Tocantins, da Baronesa de Sorocaba, dos Condes
da Estrela, onde chefes sisudos de famílias provectas se lembravam dele e de
seus triunfos em noites de gala no Recreio dos Militares e no Casino
Fluminense. Foi assistindo a concertos no Club Beethoven, na rua da Glória,
que conheceu Maria-Amélia, sua futura esposa, e venceu espetacularmente
o efeito romântico que lhe acabava de causar Luís Moreau Gottschalk, o
compositor e diretor de orquestra que num curto semestre empolgara
plateias e arrebatara corações. (Maria-Amélia, por causa dessa recordação
amarga para Aleixo Cintra, fora por este proibida de nas horas e horas em
que tocava piano no casarão do Jardim Botânico incluir a Marcha Triunfal
inspirada ao mesmo Gottschalk por acordes do Hino Nacional...).
Verdade é que para vencer o futuro sogro, cidadão rigoroso, Aleixo
Cintra estudou e realizou diversos processos convincentes de
comportamento exemplar e hábitos edificantes. Entre os quais, certos
domingos, embora tendo perdido bons dinheiros no prado do Jockey Club e
depois, à noite (quando acabava o noivado na sala de visitas) tomar às
pressas um cab para a Travessa do Senado — apelidada Travessa da Pouca
Vergonha — para dormir com a Alice Morena, não refugar em vestir a opa
de irmão da Confraria da Cruz dos Militares e pegar nas varas do pálio.
A idade, porém, e por que não dizer, Comte e influências do Templo
da Humanidade, depois dos trinta e cinco anos o modificaram em tudo,
passando a aplicar sua índole e sua facúndia em setores extramundanos.
Assim, já então professor do Colégio Militar, acabou ficando com o
apelido de major Phi ou de Professor Quéops, porque nas aulas, no recreio,
na congregação, no Café Amorim, na Confeitaria Castelões na porta do
Laemmert, nos grupos do Largo do Carceler, fardado ou à paisana (mas
sempre com botinas de elástico e cofiando a barba Souvarov) explicava de
modo muito sui generis o lema “Ordem e Progresso”, começando mais ou
menos desta forma:
— Os indivíduos cultos conhecem desde a mais remota antiguidade a
proporção que rege as harmonias dos cinco poliedros regulares, e o
desenvolvimento sem fim das formas recíprocas (isocaedro e dodecaedro)
em formas alternadas, convexas e estreladas, cada vez mais amplas,
envolvendo todas as anteriores. Ora, meus amigos, o princípio que rege a
disposição dos cinco poliedros regulares e seu desenvolvimento é uma
proporção. E a média da extrema razão, denominada em arte “divina
proporção” ou “corte de ouro”, é representada pelo símbolo da letra phi.
Este, o exórdio. A peroração era o lançamento da ideia do CPEI, ou
Congresso Permanente da Economia Internacional, não em Paris ou em Haia,
mas sim em área junto à pirâmide de Quéops, área essa que deveria ser
doada para aí se construir o centro regulador da Economia Mundial.
— Por que motivo perto da pirâmide de Quéops? Por que, senhores,
inclusive você aí, Mourão, que está rindo por ser imbecil? Porque a Ordem
que assegura o Progresso, a Ordem que organiza, o princípio dominante da
Natureza, a proporção = , a divina proporção que a ciência focaliza quando
procura sintetizar leis nas análises procedidas nas estruturas da Natureza, é a
mesma Ordem que preside à Harmonia das dimensões da pirâmide de
Quéops — o monumento mais antigo da nossa Civilização. Perfeitamente! E
isso porque esse monumento, seu Mourão, inaugura de modo espetacular a
era da Arquitetônica! E não a inaugura (está percebendo bem?) como uma
insignificância destinada a evoluir paulatinamente através dos séculos.
Absolutamente! Inaugura-a então como, seu Mourão? Dando ao futuro uma
lição de incomparável Sabedoria! E, por quê? Porque a estrutura toda da
pirâmide está regulada, senhores, por seu triângulo vetor!
Ao que o Mourão, redator do Jornal do Comércio e seu companheiro,
retrucava, já que dispunha da intimidade que os pobres alunos do Colégio
Militar não tinham:
— Aleixo amigo, mau, mau!... Veja lá! Pelo menos não debata muito
essa ideia em aulas e em rodas militares, do contrário mandam uma junta
examiná-lo e o reformam.
— Pois que me reformem! Que me prejudiquem! Que me
vilipendiem! Isso já não se deu com Sócrates? Com Galileu? Com Harvey?
Com Servet? Conforme ia dizendo, os cinco poliedros regulares...
O Governo não lhe deu ajuda de custas para ir tratar em pessoa junto
às sumidades das Ciências Sociais, economistas, filósofos, professores da
Sorbonne, membros do Instituto, etc., da questão da área junto à pirâmide de
Quéops para a sede permanente do CPEI. Não se dignaram responder-lhe às
cartas e aos esquemas Renouvier, Arréat, Globot e outros. Instou. Não foi
reformado. Pelo contrário. As autoridades do país resolveram aproveitá-lo
para certa missão de responsabilidade, já que sua tática euclidiana
convenceu afinal figurões do Quartel General — conforme adiante se verá.
III
AMOR E LITURGIA

NUMA certa quinta-feira longínqua de 1894, Aleixo Cintra, nesse


tempo ainda major, ao sair do Colégio Militar, após uma aula mirabolante,
subiu até ao Portão Vermelho e virou para o Andaraí Pequeno, pois
resolvera aproveitar a tarde para rever uma afilhada no Colégio dos Santos
Anjos. Não porque fosse assim tão meticuloso nos deveres afetivos; é que
tinha que jantar na chácara do Militão, ali no bairro, e precisava fazer tempo.
Ora, Virgínia, órfã de mãe, era aluna dos Santos Anjos e estranhou
muito ser chamada ao parlatório porque o pai, médico, estava em Paris
aperfeiçoando os estudos no Necker e na Salpêtrière; ainda na véspera
recebera dele um postal. Que visita poderia ser, já que não tinha ninguém
no Rio? Gente de Minas? Parentes?!
Passou diante da capela, fez a genuflexão ao Santíssímo, atravessou a
secretaria, abriu a porta e se viu diante dum homenzarrão de barba, cartola e
sobrecasaca. Bem, devia ser o pai dalguma colega sua. Decerto da Cacilda,
filha dum parlamentar. Ou da Lúcia, filha dum ex-ministro. Examinou a
varanda e a esplanada, desceu até à ladeira, voltou, não viu mais ninguém.
Ou seria a irmã diretora que desejava combinar com ela e algumas
outras os números de declamação e teatro da festinha de fim de ano,
conforme já conversara com as devidas reservas no recreio? Sempre, durante
quatro anos seguidos, aquela mania de armar palco no pátio e de levar dois
meses ensaiando. E ela nem sempre era escolhida para papéis edificantes.
Ainda no ano passado, ao invés de tocar piano a quatro mãos com a Lálá
Carreiro, bem que teria preferido recitar trechos do teatro clássico francês.
Mas a irmã superiora dissera com ar categórico:
— Não senhora. Nada disso. Deus nos livre!
— Por quê, Madre Catarina?
— Nada que agite a alma...
Mas agora ou Madre Catarina a deixava recitar aquele pedaço ou se
recusaria a tocar piano, dizendo: “Papai não quer. Disse que fico afetada!”
Deixou o jardim, e ao voltar para entender-se com a irmã da portaria,
esta redarguiu:
— É aquele senhor ali. Com licença, o senhor não mandou chamar a
Virgínia?
— Exatamente, irmã. Minha afilhada Virgínia.
— Virgínia de quê?
— Espere um pouco... Virgínia... Virgínia... O sobrenome não me
ocorre. É uma órfã minha afilhada. O pai, antiga ordenança, o Pulquério...
— Ahn! A Virgínia, da rouparia. Houve um engano. Vou mandar
chamá-la. Um momento. Virgínia, pode voltar para a aula. Não é com você.
O major percebeu que tinha havido um equívoco e disse:
— Chamaram-na? Bem. Por engano, não pode ter sido. Não há
enganos. Tudo segue leis que não raro ficam latentes. Da outra vez virei com
meu filho guarda-marinha, que está dando a volta ao mundo. Ambos estão
em ponto para casamento!...
A freira e Virgínia recuaram esgueirando-se, verrumadas pelo olhar
cintilante daquele senhor que dava repelões na aba de seda da sobrecasaca.

***

E tais leis deviam existir mesmo, conquanto latentes, visto como bem
menos dum ano depois Virgínia, já tendo terminado o curso, se achava no
Hotel White com o pai, lá perto das furnas da Tijuca e, certa manhã radiosa,
ao entrar correndo do jardim para a sala, resvalou num hóspede opulento
que jogava bilhar com um moço fardado.
O coronel Aleixo voltou-se, abraçou-a com estouvamento, deu-lhe
passagem, porque era a vez do filho jogar. Virgínia, reconhecendo-o, embora
ele estivesse em mangas de camisa e com o colete entreaberto, resolveu
perguntar:
— Como vai a sua afilhada minha xará?
— Hein? Como? A Virgínia? Conhece-a? Você quem é?
— Eu sou aquela aluna dos Santos Anjos, a outra Virgínia que
chamaram ao parlatório por engano.
— Ahn! Dê-me um abraço. Não garanti que não há acasos nem
enganos? E vou cumprir minha promessa. Cá está meu filho. Artur, eis um
partidão. Escute, Virgínia, você não tem sentado sempre à mesa do Gama, o
assistente do Barão de Pedro Afonso? Ah! É filha dele, do Gama?... Artur,
melhor ainda! Eis um partidão. Mais bonita, é impossível!
E contou logo ao filho, em meia dúzia de palavras, como conhecera
aquela moça.
E Virgínia viu um rapaz de menos de vinte anos perfilar-se, esticando
para um lado o taco, depois cumprimentá-la enquanto o pai dizia:
— Virgínia Gama e o guarda-marinha Artur Cintra.
— Já depois do almoço o coronel Aleixo travou uma briga ideológica
com o doutor Gama. Era um dos seus modos de fazer camaradagem. Assim,
após algumas frases sobre Paris, a ciência, etc., o coronel lhe perguntou:
— ... E que notícias me dá de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux,
prezado doutor?
— Bem, se não me falha a memória, Comte morreu em 1857,
portanto, há trinta e oito anos...
— Ora, doutor Gama, não tome as perguntas em sentido literal, pelo
amor de Deus! Refiro-me ao halo... à doutrina, à lição permanente de
harmonia. Compreende?
— Compreendo! O senhor é positivista, não? E do exército, não? Pois
consinta que lhe declare que perante Augusto Comte fico do lado de Littré,
para não dizer de Saint-Simon. Dou apreço muito relativo a Comte, cuja
influência no Brasil é paradoxal. Faz nossos militares estudarem filosofia do
bom comportamento em lugar de estudarem balística.
Claro que com tais rompantes recíprocos ficaram amigos desde
aquela temporada em diante.
Se as manhãs às vezes tinham certa névoa, as tardes eram límpidas e
belas não só nos terrenos do Hotel White com admiráveis recantos
sombreados por guarajubas, aroeiras e araribás, como nas encostas e vales
que ambos, Artur e Virgínia, percorriam a pé ou de carro até ao crepúsculo,
indo visitar locais românticos e admirar vistas surpreendentes: o Excelsior, a
gruta de Paulo e Virgínia, as Furnas, a fonte Pirauí, a Mesa do Imperador, a
Vista Chinesa, a Cascatinha. E se Virgínia durante o percurso interrompia as
tentativas de idílio de Artur perguntando o nome de certas árvores, ele, além
de explicar que eram caneleiras, cedros, angelins, imbus e ipês, dizia que na
sua chácara no Jardim Botânico, perto da Lagoa, as quaresmas, as cássias e
as buganvílias tapavam da rua para dentro a vista da casa; e que se o jardim
em redor do prédio tinha manacás, hibiscos, crótons e agapantos em
profusão, já a chácara propriamente dita era um pomar selvagem cheio de
pés de cambucá, abio, grumixama, goiaba, caju, pitanga, araçá, manga,
sapoti, fruta-pão, jaca e cajá. Árvores enormes, matriarcais. Sem contar as
amendoeiras junto à lagoa. Que no jardim, dos lados do casarão, havia
caramanchéis de tanta sombra e perfume que pareciam grutas para
aparições de santas, ou nichos para estátuas... E pequenos lagos artificiais, de
cimento, para onde a água escorria cantando e fazendo tremer avencas e
begônias, por entre arestas reluzentes de miríades de cacos de ladrilhos,
vidros, conchas e seixos embutidos. E tudo isso por entre muros em cujos
portões pinhas e hipogrifos de louça já tinham a pátina do tempo. Mas,
perguntava Artur, que lhe adiantava tudo aquilo se nos poucos dias que saía
da Escola Naval a mãe enchia a casa de velhotas tagarelas e o pai o chamava
a todo instante para discutir teorias esdrúxulas? Ah! Estava muito isolado, lá
no Jardim Botânico...
Foi um grande mês decisivo aquele no Hotel White; Virgínia sempre
muito animada por dona Maria-Amélia e pelo Coronel Aleixo que não raro
a acompanhavam com o filho até à Biquinha do Monteiro descendo o
Caminho da Fazenda, ou então indo até à Ermida Carvalhais. Sentia-se já
envolta pelo amor de Artur que naqueles trinta dias lhe mostrou tudo
quanto foi encantamento de paisagem e de vista, de horas e de passeios, de
relações e de conhecimentos, ora merendando na varanda do conselheiro
Mayrink, ora tomando chá no pavilhão da chácara do Cochrane, muitas
vezes ficando embevecidos no sossego bucólico e edênico do Açude da
Solidão e, muitas tardes a fio, contemplando em doce enlevo os vales do
Andaraí e do Engenho Novo, a baixada de Jacarepaguá; ou então, da Mesa
do Imperador, deixando que Artur lhe mostrasse rente à Lagoa Rodrigo de
Freitas certo ponto invisível dizendo: “É lá que eu moro... sozinho com meus
pais... Mas ele é um filósofo meio patusco... e mamãe só recebe visita de
matronas...”
Assim, depois de serões no Club Beethoven (onde foram com a prima
Judite, pois para Dona Maria-Amélia e para o coronel tal local poderia
trazer evocações irritantes sobre o Gottschalk), de chás cerimoniosos no
Cailteau após compras no Grão Turco e na Notre Dame, de dois bailes, um
em O Recreio dos Militares e outro na rua do Passeio no Club dos Diários,
certa noite o coronel Aleixo, vestido como um diplomata vienense, e Artur
todo garboso como o Achille do quadro de Degas, compareceram à
residência do doutor Gama no Cosme Velho, perto da Bica da Rainha, para
o pedido oficial. A seguir, a lufa-lufa de enxoval, proclamas, noivado
assíduo, idas alternadas às Laranjeiras e ao Jardim Botânico, passeios
românticos.
Ah! Petrópolis; saindo de barca da Prainha, contemplando a
Guanabara até Mauá. As ilhas. A serra dos Órgãos. O trem por entre
florestas e precipícios. A caleça por entre bastidores de hortênsias. Os
passeios a cavalo nas manhãs brumosas...

***

“— Que o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e Jacó, esteja convosco e


derrame sobre vós as suas bênçãos a fim de que possais ver os filhos dos
vossos filhos até à terceira e à quarta geração e, em seguida, gozeis pra
sempre da vida eterna, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo
Deus, vive e reina com o Padre e o Espírito Santo por todos os séculos dos
séculos. Amém.”
(— Perfeitamente! — disse consigo o coronel. — Isso já previ, tanto
que mandei fazer um mausoléu para ir engavetando um exemplar de cada
sexo, de cada geração...)
Sim. O coronel só se emocionou depois da cerimônia, porque durante
a mesma o seu espírito crítico entrava em debate com as palavras do Padre
Severino, que logo resolveu amenizar tudo com algumas noções
interessantes de Teologia Escolástica e Liturgia.
— No paganismo a mulher era considerada coisa; na sociedade
mundana, indivíduo; mas a Igreja a julga pessoa. Prefiro pois empregar neste
ato a palavra “matrimonium” em lugar de “maritagium”, porque
“matrimonium” vem de “Matris munus”, isto é, quer dizer ofício, dever de
mãe.
Ora, o coronel era pelo patriarcado, e nunca pelo matriarcado.
Começou por isso a medir sua irritação pelo compasso acelerado dum dos
pés batendo sobre o tapete. Então o oficiante considerou que a fundação
dum lar cristão constituía um acontecimento público atingindo toda a
comunidade cristã; e levou-os de chofre para o ano de 1216 quando o
Concílio de Latrão prescreveu os banhos que, com o Concílio de Trento,
passaram a ser exigidos por força de lei. Já antes, porém, o Papa Inocêncio
III em carta ao bispo de Beauvais...
(— Minucioso esse Padre Severino, hein? — pensou consigo o
coronel, dando um puxão na aba da sobrecasaca.)
— A Igreja antigamente conservava um tempo em que não era lícito
contrair-se casamento, tendo o Concílio de Trento, por exemplo, declarado
ilícitas as solenidades nupciais, isto é, a pompa externa bem como a missa
nupcial. Isso, desde o primeiro domingo do advento até à Epifania, e desde a
quarta-feira de cinzas até ao domingo in albis, por serem de penitência tais
períodos. Mas atualmente só se proíbe a bênção solene desde o primeiro
domingo do Advento até ao Natal inclusive e de quarta-feira de cinzas até à
Páscoa inclusive — exceto se houver dispensa do Ordinário.
Vendo as sobrancelhas cerradas do coronel Aleixo, que ele sabia que
era positivista, o Padre Severino continuou, fitando o majestoso antagonista:
— Louvado seja Deus, não se trata aqui dum casamento misto, isto é,
entre católico e acatólico... ou herege... ou cismático... ou hebreu... ou pagão.
O coronel Aleixo aguentou o olhar exorcizador do oficiante que
prosseguia:
— Sim, pois do contrário seria preciso seguir as instruções 1061 e
1063 do Códex. Não vos casaria diante dum altar, dum crucifixo, ou duma
imagem. Eu próprio não usaria sobrepeliz nem estola; não empregaria água
benta nem daria as bênçãos. Assim como Israel devia, sob pena de perder a
proteção divina, evitar toda relação de intimidade com os povos pagãos de
modo a não se deixar arrastar à idolatria, da mesma forma a Igreja procura
impedir os casamentos mistos por causa das consequências fatais que deles
resultam em prejuízo da parte católica.
O coronel fungou alto e o Padre Severino volveu o olhar para os
noivos.
— Sabeis o que representam o véu e a grinalda? As mulheres gregas
usavam o peplo, com o qual velavam a face. Rinaldi diz que em Esparta as
mulheres solteiras andavam de rosto descoberto para encontrar esposo e
que as casadas se velavam para não se mostrar agradáveis a outrem. Decerto
já ouvistes falar no que fez Caio Sulpício Gallo, em Roma...
Não, o coronel deu a entender com a fisionomia atenta que não, que
nunca ouvira falar. Mas o Padre Severino passou adiante:
— Em Roma as jovens usavam o flammeum nuptiale, que as cobria
como uma nuvem etérea. Pois a Igreja, por seu Sacramentário Leoniano do
século VII, no formulário da missa de casamento, intitula a função: “Incipit
velatio nuptialis”. Nos tempos romanos e durante parte da Idade Média
desdobrava-se o véu sobre os neoesposos ajoelhados diante do altar. Duas
ou quatro pessoas, clérigos ou leigos, o sustentavam. Os noivos também
usavam grinalda. São João Crisóstomo nos refere esse hábito como bem
antigo até. E o Papa Nicolau em sua resposta aos búlgaros disse que os
neoesposos devem sair da igreja levando sobre as cabeças coroas em forma
de torres. No Oriente e na Rússia elas são de prata ou de ouro. Significam a
dignidade a que os nubentes são elevados pelo sacramento. As freiras e as
monjas, por exemplo, trazem permanentemente o véu para que se lembrem
da promessa de amor exclusivo a Jesus. Os ritos são muito belos, e não
apenas poéticos para os que os satisfazem. A junção das mãos é
antiquíssima; Tertuliano já fala nisso. Significa que duas vidas se
harmonizam num acordo relembrando em gesto simbólico o que se lê no
Livro de Tobias: “E Raquel, tomando a mão de sua filha Sara, colocou-a
sobre a mão de Tobias”, dizendo o que vem no versículo VII. Quanto à
aliança, primitivamente era de ferro. O primeiro exemplo do uso de aliança
se encontra no casamento de Judite, filha de Carlos o Calvo com o rei
Edilfulv e celebrado por Hincmaro, arcebispo de Reims. O anel deve ficar
num dedo da mão esquerda porque só compete aos bispos e aos abades o
uso do anel pastoral na mão direita. E o anel nupcial é usado no quarto dedo
por causa duma suposição anatômica medieval afirmando que o quarto
dedo esquerdo se acha ligado diretamente ao coração por uma veia
especial... Vena amoris...
O coronel bocejou ostensivamente.
— Quanto às preces, não são meras formalidades litúrgicas aparentes.
São garantias. Basta prestar atenção nas palavras: “Confirma hoc, Deus”. Ou
nestas outras: “Salvos fac servos tuos”. Ou ainda nestas: “Mitte eis, Domine,
auxilium de santo”. Estas palavras e essas cerimônias trazem consigo a carga
solene da tradição de onze séculos. Atravessaram os tempos de São Leão I,
de São Gregório o Grande, e de Alcuíno. A missa que vos vou dedicar é
anterior a São Pio V. O salmo 127 que se canta no Introito até ao Communio
celebra com todo o simbolismo bíblico a grandeza do lar cristão. A epístola
de São Paulo aos Efésíos trata dos deveres do matrimônio. “Sacramentum
hoc magnum est.”
Ao almoço, uma hora depois na chácara do Jardim Botânico, o Padre
Severino confessou ao coronel Rogério que respeitava a ética de Comte
embora a achasse dita em terminologia do boticário Homais, de Flaubert...
Quase foi descomposto pelo coronel, a quem conseguiu aplacar contando o
que sucedera na casa de Caio Sulpício Gallo:
— Repudiou a esposa porque esta saíra de casa sem véu.
— Pois então, Padre Severino, esse seu cliente não era Caio Sulpício
Gallo... Era Peru!

***

Lua de mel no Internacional, num recanto umbroso de Santa Teresa,


já quase no Silvestre. Evidentemente, por ocasião de estados beatíficos de
alma e líricos do corpo, aquela nesga de mata no pendor do vale só podia ser
comparada a um ninho de clorofila e celulose, em pleno recesso de troncos,
guaimbés e tajás, ramagens, perfumes, águas, pássaros, insetos e fibrilação
de atmosfera.
Certas tardes, sempre que Artur era obrigado a ir à cidade, Virgínia
vinha esperá-lo na estaçãozinha de madeira do Cosme-Velho, e juntos
faziam depois o percurso de quase três quilômetros, sentados num dos
bancos do trem que subia em rampas e curvas através da floresta. E, de mãos
dadas, contemplavam águas murmurejantes, encostas, abismos, vãos de
pontes, surpresas minerais cobertas de musgo, gigantes de lei com
guirlandas de parasitas, borboletas multicores, tudo num cenário gradativo e
vagaroso de apogeus tropicais.
— Você gosta do mar... Mas eu gosto da floresta. Veja, espie quanta
beleza!
Colorida e estática, a floresta os deixava passar, e os deixou ir embora
para o casarão do Jardim Botânico onde dona Maria-Amélia, ao recebê-los
na varanda que agapantos e gloxínias emolduravam, logo disse:
— Agora, Virgínia, tome conta desta casa que precisadinha está de
quem embeleze velharias...
IV
O PRIMEIRO SARCÓFAGO INÚTIL

CHÁCARA antiga de arrabalde limitado à direita pela muralha de


granito e floresta da vertente marítima da Carioca, e à esquerda pela
margem ao mesmo tempo bárbara e romântica da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Residência possuindo todas as características do solar do segundo Império
onde o Tempo substitui pela vetustez pacata o fastígio já perempto.
Lar tradicional, hospitaleiro como todas as mansões, jamais
pretendera, porém, apesar das proporções dos aposentos e do terreno, imitar
sequer em sua vida social o ritmo legendário de solares como os de José
Aguiar de Macedo, Antônio Clemente Pinto, Francisco José da Rocha,
Manuel Lopes Pereira Bahia, Jerônimo de Mesquita, Rodrigues Monteiro e
Vieira Braga, por exemplo. Não porque Maria-Amélia e Aleixo Cintra não
fossem de proveniência talvez mais pura e de prosápia decerto mais briosa
do que os barões de Bela Vista, os condes de Nova Friburgo, os barões de
Itamarati, os viscondes de Meriti, os barões de Mesquita, os condes de
Estrela e os viscondes de Piratinim. Mas a vida dera muitas voltas, não se
poderia mesmo jogar a culpa sobre o Encilhamento já que muitos anos antes
só restava ao casal a residência em Jardim Botânico, um terreno (cuja casa
mandara demolir) na Praia de Fora, e o soldo militar. O pecúlio herdado por
Maria-Amélia mal dera para a última viagem a Paris e isso mesmo só se
contando as despesas discretas duma estada embevecida, já que a viagem
fora bem antes das pantomimas de Dubereau, dos cancã no Folies-Marigny e
no Moulin Rouge, e portanto quando ainda não havia nenhum music-hall
avec promenoir para as precursoras de Jeanne Avril, os mestres de Édouard
Dujardin... e as curiosidades do Aleixo Cintra.
Tal residência, ali pouco depois do Largo dos Leões, incutia naquele
fim de século uma tranquilidade comparável à que pode proporcionar um
ser de muita experiência capacitado para oferecer conselho e refrigério. O
gradil sobre baldrame de alvenaria bem como o portão precisavam de
pintura, mas as trepadeiras fartas tornavam o jardim indevassável. O muro
da frente, com cento e vinte metros dum lado e oitenta do outro, tinha com
intervalos vários lances de madressilva. A balaustrada da varanda sustentava
figuras de bronze com lanternas nas mãos ladeando os três portais, e a
fachada se expandia com oito janelas de cada lado.
Dentro, dando para a frente, três salões, a sala de visitas, o saguão e a
biblioteca. Para o corredor dando para a sala de jantar e largo que nem uma
galeria, desembocavam oito quartos. Aos fundos, dum lado a copa e do
outro os banheiros. Por fim, a cozinha ampla.
Uma segunda varanda, do lado sul da sala de jantar, dava para o
jardim. Uma terceira, rente à copa, abria-se para a chácara.
O jardim na frente e dos lados tinha três alamedas; a do centro, curta
e cimentada, indo ter aos degraus nobres, apresentava além dos jasmineiros
velhos, margens de canteiros com hortênsias e manacás. A da esquerda,
entrada para carruagens que paravam junto à escada da sala de jantar, era
um toldo de amendoeiras. A terceira, indo ter à chácara propriamente dita,
era constituída por velhas mangueiras, a que se seguiam as jabuticabeiras.
Entre essas alamedas e entre a rua e a casa, o parque estava um pouco
inculto, apenas continuando viçosas as espirradeiras e as cássias, já que as
roseiras nodosas se esgalhavam por entre crótons e hibiscos, e o gramado,
com seus centros de flores e tajás, bem que precisava de trato mais
constante.
Depois da cachoeira e dos cômodos da criadagem, começava a
chácara que se estendia até à Lagoa como um autêntico pomar desenvolto e
bravo. E ao fundo da terceira alameda, em pleno reino de pitangueiras e
amendoeiras, galpões continham trastes e cacarecos com lugar, porém, para
um barco e uma oficina náutica e apetrechos de pesca.
Disso tudo Virgínia foi tomando conta gradualmente, primeiro
acompanhada pelas explicações redundantes e eufóricas do sogro; depois,
passando horas nos caramanchões e nas redes com Artur; e, por fim,
sozinha ou com dona Maria-Amélia, já que o coronel Aleixo e o tenente
Cintra caíram de chofre na vida ativa de suas carreiras. Cintra ia para bordo,
ausentava-se durante dias ou semanas, fazia viagens, irrompia como por
acaso, tornando ansiosa a vida de Virgínia. Ainda bem que havia a sala de
visitas com o piano, as estantes de música, os álbuns de fotografias e de
postais, as almofadas e os biombos, o bric-à-brac e os espelhos. Ainda bem
que havia a biblioteca onde, ao lado de volumes técnicos do coronel, renques
e renques de livros de ciências sociais, coleções filosóficas, manuais militares
e um mundo de revistas de economia, moral, mecânica e história, ela pôde
descobrir alguns outros volumes — romances e poesias — que separou
cuidadosamente para as temporadas de solidão, livros que pareciam estar ali
incógnitos à sua espera e que depois a acompanharam pela vida inteira
como um capricho; não eram muitos, comparados com os que havia nas
estantes do doutor Gama.

***

O coronel reverteu a uma unidade em São Cristóvão depois duma


despedida ao corpo discente e docente do Colégio Militar onde pela última
vez explanou a sua teoria sobre os isocaedros; e trabalhava agora afogado até
à papada e à barba numa farda insigne, rodeado duma oficialidade garbosa
que o respeitava e atendia não obstante as divagações inflamadas e novas
cartas a Poincaré e Dromard a respeito daquela tal ideia... Mas logo
esqueceu essa predestinação sempre adiada e, mesmo em casa, às refeições,
irradiava por todos os poros comentários fogosos aos esquemas de Rocroi e
Gravelotte.
Artur e dona Maria-Amélia cedo se inteiraram da nova criatura que
viera morar sob aquele mesmo teto. Com dezessete anos incompletos,
Virgínia logo lhes deu a certeza de ter uma índole especialíssima feita de
critério e ternura. Mas sua delicadeza de alma, longe de ser submissão, era
sensibilidade contida.
Manifestava quase um desdobramento de personalidade, pois se era
solícita e prestimosa com todos, desde a cozinha até à sala de visitas
providenciando o currículo doméstico e social, sempre que Artur estava a
bordo na Guanabara ou em viagem, ela se isolava na biblioteca ou no
quarto, num caramanchão ou no fundo da chácara, às voltas com leituras
que nada tinham de fúteis. Sua bondade plácida não criticava nem mesmo
intimamente os rompantes do temperamento ora patético e ora grotesco do
sogro, nem analisava com evidência imediata os despautérios ingênuos da
sogra quanto a chapéus, vestidos, passeios, teatros, opiniões e comentários.
Artur não a decepcionou quando a vida real e cotidiana o apresentou,
não mais como o noivo do Hotel White e do Internacional, e sim como um
espécime normal e radioso de rapaz. Viu nele sempre um caráter cuja marca
mais espontânea era a alegria. Um júbilo permanente perante tudo. E isso se
manifestava nas risadas que dava ao ouvir o pai em pleno serão com
burgueses ensaiar conversas alcandoradas sobre o método positivo e a
ciência econômica; nos abraços com que amarfanhava os vestidos algo
esdrúxulos da mãe; na maneira quase de adolescente com que andava às
correrias pelas salas e jardins brincando com a esposa, mostrando-lhe
fotografias incríveis de parentes anacrônicos; no arrebatamento com que
fingia jogá-la dentro da cascata de cimento ou nas águas da Lagoa; nos
convites súbitos a passeios até à Praia de Fora, nos sustos que lhe pregava
com suas chegadas repentinas; nas conversas deliciosas com que
transformava as horas em otimismo; nos debiques com que rodeava pessoas
das relações da mãe, nos apelidos que punha nos amigos do pai; na escolha
admirável que fazia de assuntos quando estavam a sós, ele e a esposa; enfim,
na vibração fascinante da sua mocidade usufruindo de modo total a
existência.
Virgínia já dera à luz Carlos quando o coronel Aleixo (depois de no
seu quartel, nas salas do Ministério da Guerra e nos conciliábulos de Estado
Maior fazer sempre revisão crítica no histórico e na realidade das expedições
a Canudos — cujas notícias pessimistas ou otimistas o irritavam até quase à
apoplexia) — foi mandado pelo Governo à testa dum regimento, servir
junto ao general de brigada Artur Costa no teatro de operações.
Partiu com tropas, mapas e projetos bebidos em Kromayer e
Bressonnet, conceitos e determinações colhidos em Bonnal, e por longo
tempo não remeteu notícias pessoais à família, por mais que as redações dos
jornais e os grupos da rua do Ouvidor burburinhassem de boatos.
Após informes indiretos colhidos no Campo de Sant’Ana, inclusive
quanto à chegada, saúde e ação do coronel, veio sua carta — a primeira e
única.

“Artur,
“Escrevo-te não duma barraca de campanha no Alto da Favela,
mas duma choça na estrada do Canabrava, sobre uma tábua atravessada
diante de mim. Lá fora está a minha ordenança de olho vivo e de
Comblain preparada, não vá (aqui tudo é possível porque tudo é
empírico) surgir algum êmulo do Tranca-Pés ou do Raimundo Boca Torta
com um facão-jacaré ou com uma lazzarina para me dar cabo do
canastro. É que vim para cá com espírito positivo (inclusive quanto às
precauções), e não afoitamente como o Nunes Tamarindo ou o Quirino
Vilarim, pois isto aqui é Canudos e não, como decerto eles pensavam, um
campo de Vernéville onde as tropas se deslocariam segundo lances de
xadrez. Esta vai mesmo a lápis cuja ponta fiz com uma parnaíba. Por
enquanto mando um relato às pressas do que tem sucedido, porque conto
narrar-te durante noites seguidas no Jardim Botânico o que vem sendo
esta expedição e o que foram as outras, já que aí nos ministérios, no
Palácio e na rua do Ouvidor ignoram o que isto foi e está acabando de
ser. Sim, está acabando de ser porque vamos arrasar tudo, pois que não
temos meios de desviar o Vasa-Barris para dentro deste monturo. E, se
não o fizemos ontem é porque estamos à espera hoje de que um tal
Bentinho e um tal Barnabé nos tragam, conforme prometeram, os únicos
prisioneiros que ‘vamos fazer’, isto é, umas trezentas mulheres e crianças.
“A função está no fim. Pudera! Somos aqui uns cinco mil homens,
sem contar os que estão de reserva na estrada de Monte-Santo. Sim,
rapaz, onze batalhões. Tropas do Pará, do Amazonas e de São Paulo, sem
contar a polícia deste Estado. O assalto vai ser iniciado por duas brigadas,
com o Dantas Barreto e o César Sampaio. Pretendo escrever-te a próxima
carta já de dentro do arraial. Diga a Maria-Amélia e a Virgínia que não
se aflijam. Estou no meu elemento. Esta frase pode parecer ambígua.
Quero dizer ‘em operações’ e também no meu elemento quanto à terra,
aos homens, às disparidades humanas e sociais... enfim, fenômenos e
estados de coisas, sobre que, se tivesse tempo, ainda escreveria um livro
amargo. Espero que algum gênio ainda anônimo venha a fazer isso um
dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí... Como vai o
garoto? Um abraço de teu pai que se recomenda a todos.”

Lá esteve o coronel Aleixo Cintra, tratando desde o início de reduzir a


região a triângulos concêntricos, assim, de fora para dentro: litoral, São
Francisco e uma reta de Cachoeira a Boa Vista. Depois: Canabrava,
Cocorobó e Calumbi. E, no centro: Favela, Vaza-Barris e Várzea da Ema.
Lá esteve, bravo e indômito, retido por ordens superiores em Trabubu
donde a brigada Carlos Teles mandou a cavalaria explorar o terreno pelo
flanco esquerdo. Na hora em que o alferes Wanderley morria, quarenta e
oito horas depois da ordem do dia “Camaradas, amanhã nos abraçaremos
em Canudos”, o coronel Aleixo recebia um tiro no pé, coisa com que pouco
se importou contanto que disso não adviesse erisipela, conforme disse ao ver
os orifícios de entrada e saída do projétil.
Mancando, com o pé enrolado num sistema de curativo que mais
parecia um ferro de engomar, o coronel reassumiu o comando da sua gente
no dia 30 de setembro, quatro dias depois daquela carta.
O 49.º, o 39.º e o 29.º estacaram por causa das descargas vindas do
estuário. Por fim as duas brigadas se fracionaram, ao toque de cornetas,
inserindo-se pelas ruelas e por entre o casario. O 5.º, da Bahia, investiu de
baioneta calada. Aleixo viu o major Queirós e o coronel Caldas baquearem
naquele dédalo de senzalas. O 7.º hasteou numa parede o pavilhão nacional,
mas não tardou que nova reação paroxística sacudisse o reduto, e Aleixo,
ofegante, suarento, cambaio, teve que fazer sua tropa voltar para as
trincheiras, concordando com os três generais que haviam antes descido
quase até à latada.
O comando geral mandou trazer do acampamento bombas de
dinamite. E assim as paredes das igrejas tombaram, a argila seca de Canudos
se fragmentou em estilhaços, enquanto as explosões sacudiam o arraial
cujos escombros ficaram fumegando ao sol e às estrelas até à noite de 2 de
outubro. Nos dias 3 e 4 as ruínas foram submetidas a uma autópsia
macroscópica, e só no dia 5 se descobriu dentro duma choça esmolambada a
cova com o corpo do Conselheiro. Estava envolto numa esteira velha,
reduzido mais a despojo de faquir do que de profeta. O coronel Aleixo se
recusou a redigir a ata de verificação de identidade, dizendo
peremptoriamente:
— Como, se não sei se essa múmia aí, enrolada em brim e terra, é
mesmo Antônio Vicente Mendes Maciel?!

***
Após trinta e quatro dias de viagens de regresso do sertão para a
cidade do Salvador, o coronel Aleixo já estava com o pé cicatrizado de todo;
a verdade é que, ao descer na Estação da Calçada, já não trazia tão incubado
aquilo que, dias e dias antes em Queimadas, Alagoinhas e Pojuca, se
manifestava em calafrios, febre alta, dores na coluna e enxaqueca, e que ele
sintetizava com o nome de lumbago. Aquartelou a sua gente no Forte de São
Pedro e no Forte de Barbalho, ficou hospedado em casa de amigos na rua da
Mangueira, mas já então se portou de modo bem diferente do entusiasmo
galhardo daquela outra estada quando se transferira de bordo do “Espírito
Santo” para o mesmo solar.
É que logo naquela tarde notou diante do espelho que estava com o
rosto e parte do corpo cheios de manchas e botões vermelhos. Assim, desta
vez já não alvoroçou com sua facúndia singular os amigos de meses antes, o
Pethion de Villar, o Aloísio de Carvalho e o jovem Francisco Mangabeira; e
nem viu direito, tanta era a febre, o farol da Barra e a ilha Itaparica, quando
o navio partiu para a viagem de quatro dias rumo ao Rio de Janeiro, pois
aquilo que julgara uma erupção qualquer apanhada em Monte Santo ou
Serrinha, era... ele agora bem o sabia o quê! Mandou chamar o comandante,
na manhã seguinte, disse-lhe através da escotilha:
— Mande lacrar este camarote. Estou com varíola.
Examinado por dois médicos, na presença de oficiais, ele próprio com
os óculos encarapitados na ponta do nariz e de espelho na mão a verificar as
pústulas, algumas já virando abscessos, ficou evidente e explícito que sim,
que era varíola.
Na manhã do outro dia já estava com oftalmia, e delirava horas a fio,
supondo-se na latada a interrogar um prisioneiro.
— Vamos! Confesse onde está o Conselheiro!
E ele próprio imitava a voz do cafuz:
— O nosso Conselheiro partiu pro céu, seu doutor general! Morreu
duma caminheira.
— Ahnnn! Danou-se com a disenteria? Pois eu também me vou
danar. Estou com ela, com a boa, com a varíola negra. Artur, não traga aqui
a Virgínia! Chiu!... Não contem nada à Maria-Amélia, hein?
Examinava, com os olhos parecendo duas conchas entreabertas, o
camarote, os oficiais amigos, enxotava-os, ficava a ouvir o rã-rã das
máquinas.
— Esta é muito boa! Esta é de primeira! Mandar o Tronchi me fazer
um jazigo! Boa, hein? Sim, como pilhéria, é ótima! Um jazigo! Não. Não há
fugir. Somos parte inerente à formação concêntrica dos elementos. A
natureza toda segue o método análogo à evolução dos poliedros regulares.
Claro, que não há fugir, senhores... Um mausoléu. E, ainda por cima, de
Siracusa. Tronchi!!! Não te disse que me fizesses uma pirâmide? Ah! Ah! Ah!
Um jazigo perpétuo! Perpétuo, como? Perpétuo é o mar! O mar!...
Conquanto tivesse apenas cinquenta e poucos anos, a barba, a
albuminúria e a endocardite, sorrateiramente, sem demora, logo o
transformaram aos olhos do comandante e da oficialidade — que se
arriscavam todos a visitá-lo — num ancião lutando com a morte. Numa
dessas visitas, ao anoitecer do segundo dia, pediu ao comandante e ao
médico uma folha de papel. E depois lhes leu o que escrevera:
“Declaro que exijo, caso venha a morrer antes de chegar ao Rio, que
atirem meu corpo ao mar. Bem sei que tenho um jazigo no cemitério de São
João Batista. Foi a única tolice grave que cometi em toda a minha vida. Faço
esta exigência em pleno e perfeito uso de minhas faculdades mentais.”
Perguntou o dia, escreveu a data e assinou.
Durante a noite, conquanto seu corpo não parecesse uma chaga
ainda, todavia o coração estava em pandarecos (conforme ele diria, se ainda
estivesse loquaz...); e o coronel resfolegava cavernosamente, como a imitar o
difícil rãtrã das máquinas do navio lá no porão. A sua ordenança, que não
arredava os pés da porta do camarote (não podendo ficar lá dentro porque
era escorraçada ora com brandura ora com um berro), de madrugada,
vendo-o estertorar, lhe pôs nas mãos frouxas um rosário que adquirira na
feira de Alagoinhas e foi chamar um dos médicos e a oficialidade.
O coronel, hirto, guedelhudo, parecia um rei esculpido em sombras e
volumes do lado de fora dum jazigo...
E Cipriano, a ordenança, disse ao major Moura, muitas horas depois,
entre Ilhéus e Vitória:
— Louvado seja Nosso Sinhô qui o coroné num teve a sorte dos que
ficaro na Lagoa do Cipó. O mar, pelo menos é bem mais grande!
O fato de Tronchi já haver terminado o mausoléu, nada adiantou.
Mesmo porque estava escrito que aqueles oito sarcófagos jamais teriam
ocupantes.
V
IDÍLIO NA CHÁCARA

O CASARÃO pareceu enorme quando Carlos principiou a


engatinhar. Sua curiosidade viva ante a série de cômodos era tanta que
aprendeu a andar mais cedo do que se esperava, tendo até ensaiado uma
carreira vacilante dos braços da ama para os joelhos da avó Maria-Amélia
quando esta, certa manhã, desceu com dificuldade os degraus da varanda
para um carro que a deveria levar para junto do longínquo esposo. Pobre
Maria-Amélia! Mudara muito desde a morte do coronel. Qualquer coisa
maligna na vesícula biliar a fez ir emagrecendo a olhos vistos a ponto da
roupa de luto não lhe servir, obrigando-a a pôr de lado os crepes e viver
confinada no último quarto que dava para o pomar.
O Daniel de Almeida operou-a a conselho do doutor Gama, no
Hospital dos Ingleses ali na rua da Passagem, donde de fato ela se passou
para as regiões que o marido já andava a identificar.
O outro avô, o doutor Gama, pôs-se a frequentar mais assiduamente a
casa. E o tempo a operar seus prodígios de aparente rotina: fazendo um bebê
vestido de malhas e roliço como um esquimauzinho, aparecer em casa, daí a
muitíssimos dias, vestido de marinheiro, querendo contar à mãe que tio
Maurício o levara a ver o... Bem, ninguém entendia aquelas reticências
saltando dos olhos eloquentes e ficando áfonas nos beiços ensalivados. Mas
o tio explicava:
— Levei-o ao cais Pharoux, mostrei-lhe o Atlantique enquanto
esperávamos juntos com a multidão o herói do dia, Santos Dumont.
Conhecem o Atlantique... o transatlântico que da outra vez trouxe as portas
de bronze da Candelária.
— Mas você esteve no cais Pharoux com o sol que fez hoje! Pronto! É
por isso que Carlinhos está todo vermelho... Decerto é febre...
E o tempo ironizando tudo, fazendo um garotinho vestido à
marinheira mas que ainda não andava direito e que só falava cinco palavras,
daí a períodos (que relembrados depois pareciam momentos e séculos)
aparecer em casa, já de calças curtas, cabelos de pajem, tagarela como um
napolitano, a contar as proezas a que assistira com o tio Maurício. E este
mais uma vez a ter que explicar num fim de tarde de domingo plácido que
levara o sobrinho ao Casino por causa dos números do malabarista
Yamagato, do ciclista Rabbow e dos palhaços The Kiehinger... E Carlinhos a
dizer que sim, a desvirtuar de modo incrível aqueles nomes, a querer imitar
as acrobacias e as cambalhotas.
Assim, quando o pai estava de viagem pelo litoral rumo ao Norte ou
por entre as vagas ao largo do Paranaguá, tio Maurício o levou várias vezes
ao São Pedro onde a Companhia Imperial Japonesa exibia a Viagem
Fantástica à Lua.
Com a mãe, saía pouco; preferia o tio Maurício que não o levava,
como a tia Judite, àquelas bobagens de batalha de flores no Campo de
Sant’Ana com distribuição de prêmio às carruagens, às canoas e às bicicletas
de ornamentação mais interessante. Não que a tia tivesse culpa; esta era das
amigas que instavam. Sua grande impressão foi certa surpresa: a primeira
fita cinematográfica aparecida. Sim, levaram-no à Maison Moderne ver a
Gata Borrelheira, do Pathé Frères. Que coisa fantástica!
Na varanda, o pai atanazava o tio Maurício para este explicar à mana
como era o cake-walk. E o mano Maurício, de óculos, com ar de seminarista
comportado, a dançar afoitamente a ponto de cair em cima da tina de
tinhorões.
Não faltou mesmo a influência do carnaval. Não no centro, na rua do
Ouvidor nem na dos Latoeiros ou na da Vala; mas em casa mesmo, com
“estalos fulminantes”, seringas e limões de cheiro, o Carlinhos e a criadagem
firmes, horas e horas no gradil, do lado de dentro, enquanto operários da
fábrica e malandros dos morros vinham pela rua abaixo, no cordão “Os
Vulcanos da Gávea”, com estandartes. Um índio a apitar e dançar na frente,
enquanto o burro-doutor, a caveira, o Pai João, o Rajá e as baianas
desfilavam cantando em grupo. Um morcego negrejante, com um pires,
pedia moedas de cobre e tostões para a cachaça.
Certas noites esperavam, pai e mãe, que Carlos dormisse; e então se
esgueiravam pela escada dos fundos e iam à cidade assistir a coisas insossas
ou não, já que fazia calor. Toda gente tendo assistido, afinal sempre valia a
pena. E assim viram A Capital Federal, no Recreio, com Medina de Sousa e o
Brandão; o Tim-tim por tim-tim, as peças de Cinira Polônio, no Lucinda, e
até mesmo uma opereta de Artur Azevedo e a ópera Saldunes no Lírico.
Nas manhãs seguintes o filho ouvia os comentários à mesa e abria
escarcéu. Então os pais, muito líricos naquele ambiente umbroso da chácara
depois do ajantarado, faziam o tio Maurício de bobo; e ele lá ia acompanhar
o sobrinho em interminável viagem de bonde, por um domingo cáustico e
monótono, até ao Salão Paris na rua do Ouvidor. Ainda bem que a
imaginação do tio e do sobrinho obrigava a diálogos práticos diante
daquelas imagens do Panteon Ceroplástico, de Pascoal Segreto. E já foi sem
licença de Virgínia que ele levou o sobrinho ao Rocio para assistir à fita A
Vida de Jesus.
— Não disse que não o levasse! — reclamava ela dias depois, ao jantar.
— Agora anda com os moleques aí pelo quintal, só quer ser Caifaz, Herodes
e Pilatos...

***

O que hoje se lê sob a rubrica exígua e lacônica de Efemérides,


palavra já de si tão desbotada como uma data num daguerreótipo, foi coisa a
que marido e mulher assistiram, leram ou ouviram falar nas respectivas
ocasiões. Por exemplo, esparsamente: A inauguração da exposição de
Visconti na Pinacoteca da Escola de Belas-Artes. As novas instalações da
livraria Garnier na rua do Ouvidor. A inauguração do Club Militar na rua
Uruguaiana. Uma soprano brasileira no Apolo cantando no Rigoletto o papel
de Gilda.
As amigas de alta esfera, de Botafogo, de Santa Teresa, instando para
que assistissem à estreia de Antoine no Lírico com Blanchette.
— Moramos tão longe. A Lagoa é no fim do mundo!
— Mandamos o carro buscá-los, ora!
O carro... Não um landau, uma vitória. Uma sege vulgar; mas um
automóvel Pic-Pic. O pasmo de Carlinhos... O chauffeur vestido como um
habitante de Marte, com óculos, luvas, capotão, perneiras.
Como passa o tempo para as mães! Como os filhos o devoram como
um bolo de quermesse! Maria-Amélia estava enterrada no Caju, no
cemitério da Ordem Terceira do Carmo; não quisera (conforme tanto
explicou dias antes de ser operada) ficar sozinha como a rainha Karomama
no mausoléu do Tronchi! O avô Aleixo, no fundo do mar; lá onde algum rio
da Bahia entorna bem longe, como imensa cornucópia pardacenta, suas
águas grossas de minérios...
Enquanto isso, Carlinhos aprendendo com a molecada da rua
(embora preso no jardim e o portão sempre com cadeado) expressões como
esta:
— Ó ferro, ó aço... Talvez te escreva com tinta roxa...
O tempo. Esse sorvo aspirando tudo para a sua entranha... Artur
vendo Virgínia ao seu lado dizer coisas tão sensatas sobre certas telas da
exposição de Vítor Meirelles. Depois, aquela temporada em Petrópolis, no
verão onde, apesar do sossego, das hortênsias e das caleças, com tanto corso,
tanta paisagem e tanto passeio, a ideia snob das Lima e Melo (Artur
apelidara-os de Lima e Melancia) levarem Virgínia ao concerto de Chiafitelli
no Clube dos Diários; A primeira desavença... Artur querendo ficar no hotel
à vontade, lendo Eça de Queiroz, e Virgínia obrigando-o a vestir-se direito
para ouvir concerto de violino com técnica de rabeca de cigano...
O tempo, sorvo de bochechas invisíveis aspirando tudo... Pois não
parecia ainda ontem o centenário de Caxias? A parada? Carlinhos no
palanque, todo compenetrado entre as fardas e cartolas, sombrinhas e
leques, procurando discernir o pai quando passaram as tropas da Marinha.
E também as visitas. Ah! Se eram esquisitos aqueles retratos do álbum
encadernado de dona Maria-Amélia, já agora por sua vez a rememoração
das fisionomias e dos vestidos, dos coletes devant-droit, das gargantilhas, das
saias, das blusas, das botinas de abotoar de lado, das sombrinhas multicores,
dos fraques, das bengalas, das correntes de relógio, dos chapéus Chile e
coco, dos coletes trespassados, dos punhos e dos colarinhos rijos de goma,
dos alfinetes de gravata, das bolsas, dos grampos pontudos prendendo abas
de chapéus em penteados de topetes cibelinos, as mitaines, os lorgnons, os
monóculos, de toda aquela gente que no decorrer de tantos anos frequentou
com regular assiduidade a casa do Jardim Botânico devia causar espécie,
fazer aflorar um sorriso nem sempre de ironia, mas muita vez de saudade
complacente.
Que falta não fazia o coronel Aleixo para excomungar o prefeito
Passos por derrubar aquele centro onde na mocidade pompeara com sua
farda de bilontra... Ou talvez o elogiasse, quem sabe, se viesse a ver como as
ruas Assembleia, Carioca, Frei Caneca, Uruguaiana, 13 de Maio, Marechal
Floriano mudaram o aspecto da cidade, arejando-a com rasgões retos.
Decerto elogiaria a Avenida Central, aquela “artéria” da Prainha ao
Boqueirão, agora com os nomes bem menos provincianos de Praça Mauá e
Monroe. Haveria de gostar de percorrer no automóvel das Lima Castro o
trecho da Avenida Beira-Mar, onde outrora a Praia da Lapa, o Roussel e o
Flamengo eram terra suja lambida pelas ressacas. O que é certo, quanto a
isso nem se discute, é que levantaria “catilinárias” (para empregar expressões
muito dele) contra Osvaldo Cruz e o chefe do doutor Gama, o velho Afonso,
e prosélitos, por causa da vacina obrigatória! E quem sabe se não arruinaria
a sua carreira (coitado! Canudos acaso não lha arruinou junto com a vida?)
ficando do lado de Lauro Sodré e Barbosa Lima, talvez até alterando o fim
daquela sortida da Escola Militar, impedindo a debandada na rua da
Passagem!
Demolições. Alterações.
Carlinhos estudando em casa, no enorme porão. Professores: a mãe e
tio Maurício. Mania de ser escafandrista... Sabia todos os nomes dos navios
da nossa esquadra, dos transatlânticos da Mala Real, dos paquetes de Lloyd e
da Costeira, e já conhecia pelo radiador a marca dos poucos automóveis que
via.
— Aquela é uma Renault. Mas aquele ali é um Benz.
E a terminologia náutica que tio Maurício lhe ensinava! Era de
pasmar. Decididamente quando crescesse pregaria um quinau no avô Gama
que o engabelava com coisas para obter do neto a garantia de preferir a
medicina ao exército. Agora, nos domingos, os três andavam construindo
uma galeota no porão. Artur trouxera da cidade, do Freitas Couto, uma
caixa de ferramentas. Tio Maurício escolhera as madeiras na rua Frei
Caneca. Para o nome foi preciso uma reunião com dicionários de tupi-
guarani. Por fim foi escolhido: “Kuimbaé”.
O filho tratava o pai por tu numa época em que se dizia: “Sim, senhor,
papai”. Lutavam corporalmente, numa época em que os filhos não se
sentavam à mesa senão depois dos pais. E andavam inventando estratagemas
para se pregarem mutuamente peças que redundavam em surpresas
alternadas.
Dir-se-ia que o filho herdara o ar folgazão e espontâneo do pai e não a
serenidade quase circunspecta da mãe. Como trindade humana, naquela
casa viviam na harmonia mais absoluta que é possível. Artur nada tinha das
birras e pirraças do coronel Aleixo, e muito menos de suas extravagâncias
cientificistas. Era humano, perfeito, simples, sensível, sem tendências para a
introspecção, mas tendo senso intuitivo para aprender tudo, até mesmo
aquele mistério de classe intelectual da mulher que vivia lendo coisas de que
ele jamais ouvira falar. Sim, Virgínia deixara de lado o piano, quase não
pagava visitas, tratando porém as que lhe eram feitas com tamanho
“charme” individual que as amigas voltavam e não exigiam retribuição. Em
música, tinha preferências e intolerâncias. Nas palavras usava e procurava
entendimento e compreensão, mas o que dizia a certas amigas íntimas, raras,
não era o mesmo que dizia às outras vulgares e insípidas. Seus comentários
sobre Schumann e Brahms não podiam ser baralhados; eram específicos, só
serviam para cada qual, sem confusão nem analogia, pois exprimiam
sentido de conhecimento e de essência. Suas opiniões sobre romances não
englobavam elogios genéricos, mas iam fundo na índole da obra e na técnica
do autor... Suas análises em exposições não se contentavam com um
silencioso perpassar elegante e suave. Comentava, discutia, comparava. Não
era, como no caso da maioria das amigas e conhecidas, a dona de casa que
discorre a fundo sobre modas e cozinha, figurinos e guloseimas, doenças e
parentescos, notícias de falecimentos e de crimes... Não. Com aquela
serenidade tão sua, a que a voz inesquecível de timbre próprio dava uma
personalidade de criatura feita para encantar e tolerar, criava um halo de
admiração e nunca de inveja, pois seus temas não eram o próximo, e sim
fatos, no mais das vezes fatos imponderáveis, estados de alma, delicadezas
de sensibilidade, percepções excepcionais, modos e ângulos muito
particulares de acentuar e iluminar o que a outros passava despercebido.
— Virgínia, que livro devo levar para bordo, filha? — indagava Artur,
não para que ela lhe escolhesse o volume e sim para que notasse quanto ele
já se interessava por coisas a que antes não dava apreço. — Este está bem?
— Como se chama? Ah! “Génie et Talent”, de Max Nordau. Tradução.
Para que levar isso para bordo? Gênio e talento você já tem. Leve alguma
coisa em que aplicá-los.
— Servem estes dois volumes de “A Guerra e a Paz”?
— Para ler a bordo? Entre conversas, responsabilidades, distrações?
Depende... Você vai fazer a circum-navegação do Globo ou vai mesmo só
até Vitória? Leve isto, então. Stevenson.
Assim, sem o marido perceber uma intenção didática — e que de fato
não existia — o foi enfronhando em toda uma literatura universal, antiga ou
recente, a respeito do mar. Poesias, contos, novelas, romances, relatos de
viagens, que ela própria ia comprar quando de passagem para o Parc Royal
ou a Notre Dame; ou então marcava encontro no Briguiet e ambos (na
verdade ela) escolhiam qualquer volume adequado. Disso resultou uma
distração eventual para Artur e uma curiosidade ávida de Carlos, já então às
voltas com terminologia náutica.
Uma das salas de frente do porão habitável estava arrumada desde o
tempo de Maria-Amélia com recordações do Brasil e do mundo trazidas
pelo filho e pelo marido durante anos, de diversos países e Estados. Tal sala
se chamava o Consistório e dum lado havia imagens de santos velhos e
quebrados da Bahia; opas de procissão em Minas; pequenas telas de
Paquetá, do Castagnetto; pilões do tempo da Colônia e do Primeiro
Império; oratórios do Maranhão com incríveis ex-votos; peças de tecidos e
cerâmica do Nordeste; cestos e redes do São Francisco; lembranças do
Araguaia; esculturas do Alto Solimões; apetrechos de macumbas do
Recôncavo; cerâmica indígena do Pará; amostras de madeira do Espírito
Santo; diversas pilhas de revistas. Essa banda era de objetos adquiridos ou
confiscados pelo então capitão e major Aleixo quando os acasos
administrativos o tinham feito dar com os costados por aí além; o doutor
Gama, por exemplo, no começo do noivado da filha até tinha medo do
habitual convite do coronel quando lhe dizia:
— Bem, doutor Gama, não adianta azucrinar-se com os surtos da
bubônica; que é isso para quem já vem dando cabo da febre amarela e da
varíola? Vamos para o consistório lá embaixo ver umas coisinhas de
antropologia, pré-história e etnografia...
Do outro lado havia recordações que Artur trouxera da sua viagem de
circum-navegação, meses antes de conhecer Virgínia. Álbuns e caixas com
postais de tudo quanto era porto de passagem, e miudezas compradas nos
cais respectivos. O pai, voltando-se para essa banda, costumava dizer ao
doutor Gama:
— Isto aqui é a salada do Artur. Bugigangas da Patagônia, do Pacífico,
do Índico e do Mediterrâneo. Frioleiras...
Agora, porém, na mesa do centro já estava o “Kuimbaé”, feito nos
estaleiros de Sacopenapã, e o porão era local de palestras. Depois que
Maurício veio morar com eles, aquilo deixou as características de “Sapucaia”
(conforme dizia Artur referindo-se aos cômodos atulhados de cacarecos) e
passou a ser a “cellula mater” (conforme diria o coronel se ainda fosse vivo).
Numa rede do porão, ou junto à cascata dos tinhorões no jardim,
Virgínia foi aos poucos interessando Artur naquilo que ele, oficial da
marinha, homem do mar e do convés, ainda não percebera no oceano e nos
tombadilhos — intuição. Começou com poesia. Lia-lhe por exemplo “O
Homem e o Mar”. E rematava olhando-o muito, perguntando ou acentuando:
— Está ouvindo? “Homme libre, toujours tu chériras la mer!” —
Depois o abraçava, ponderando: — “La mer est ton miroir” — Fitava-o bem
nos olhos, afirmava: — “... Et ton esprit n’est pas un gouffre moins amer”.
Lia-lhe trechos de Chaucer, do “Madeleine”; de “A Rainha das Fadas”,
de Spencer; de “O Náufrago”, de Falconer; do “Royal George”, de Cowper; da
“Rainha Mah”, de Shelley.
Quando Artur teve que viajar, logo depois de promovido a capitão de
corveta, Virgínia lhe pôs na mala, sem dizer nada, uma edição pequenina de
“Os Lusíadas”.
Certa noite de verão no Jardim Botânico, Virgínia, depois de tocar um
bom trecho de Peer Gynt, o trouxe para a varanda e lhe recitou de cor em
francês, numa pronúncia grandiosa, cheia de mistérios guturais esquisitos,
uma poesia que o intrigou por ser um pouco inacessível mas, talvez por isso
mesmo, provocadora de arrebatamentos.
— Como se chama isso? De quem é?
— Um beijo, para perdoar tal pergunta. É dum adolescente prodígio.
— Belga?
— Outro beijo para perdoar esse disparate.
Deu informes estranhos sobre o autor. Tornou a recitar o poema. E
então Artur, além do conceito especial que tinha de Virgínia, a viu naquela
noite dum modo diferente, com a fisionomia abrasada, a voz quente, o gesto
solene e, principalmente, com um tal fulgor nos olhos que até parecia
confirmar aquele verso que mais o impressionou:
— “J’ai vu le soleil bas taché d’horreurs mystiques...”
VI
O SEGUNDO SARCÓFAGO INÚTIL

ARTUR sentado no peitoril largo da janela gradeada do porão e


Maurício atirado na rede, discutiam. O assunto era avaliar quem tinha sido
maior: Saldanha da Gama ou Custódio José de Melo.
Mas cada qual persistia em sua teima, e de nada adiantavam as
comprovações que um atirava sobre o outro.
— Foi agraciado com a Legião de Honra!
— Isso não interessa.
— Foi formidável na barra de Camamu por ocasião do naufrágio do
Oregon. Pintou o diabo em Curupaiti, Humaitá e Timbó. Trouxe da Europa
o Purus. Foi adido às legações de Londres, Viena e Berlim. Formou muito
guarda-marinha em instrução pela costa do Brasil a bordo da corveta
Niterói. Assistiu à construção do Aquidabã no estrangeiro e o trouxe.
Comandou o Guanabara, o Barroso e o Riachuelo. Foi ministro da Marinha.
Não teve medo das caretas de Floriano. Tomou Santa Catarina e o Rio
Grande do Sul.
— Mas se entregou às autoridades argentinas.
— E o Governo não o anistiou? E não o elogiou pelos trabalhos que
escreveu sobre torpedos?
E Carlinhos entre os dois, atiçando-os:
— Isca! Isca!
— Bem. E o Saldanha? Outro espírito! Outra bravura! — dizia
Maurício. — Vida muito mais interessante.
— Que nada! Só porque foi seu parente?
— Se o Melo andou pela Europa e frequentou cortes, meu tio-avô Luís
Filipe antes de mais nada era filho de dom José que andou pela Inglaterra,
pela França e pela Bélgica como camarista da princesa dona Maria da
Glória!...
— Ora! Camarista! O Melo foi adido de legações, se é que temos que
começar por aí.
— Então vamos para o currículo. Quando da colisão do Santo
Antônio e do Jequitaia, ele fez muito mais do que o Melo quando o Oregon
afundou. Em Curupaiti e em Angostura mostrou o que é braço. Brilhou em
Viena d’Áustria na Exposição Internacional. Comandou a corveta Parnaíba e
o encouraçado Riachuelo. Brilhou nas exposições de Filadélfia e de Buenos
Aires.
— Ora. Comissões. Mamatas...
— E a atuação que teve no congresso reunido em Washington! E é
mamata ir parar na China? Elaborar a reforma da Escola? O sistema de
defesa do Rio de Janeiro? Ir ao Extremo-Oriente, depois de diretor do Corpo
de Marinheiros e da nossa Escola? Comandar o Barroso?
— Para acabar se homiziando na Mindello!...?
— Homiziando-se? Foi brigar ao lado dos gaúchos! Isso sim! Deu
muita bordoada nas tropas do Azambuja e do Francisco Pereira! Morreu em
Artigas, lutando. Ora, pergunto, quem teve carreira mais briosa?
E Carlos a atiçá-los:
— Isca! Isca!!
— Cala a boca, menino, vá estudar. Falar nisso, Maurício, como vai o
Carlos em Santo Inácio?
— Comportamento, 5. Religião, 4. Estudos, 10. Mas há ainda outro
aspecto a não esquecer em meu tio-avô. O lado intelectual e técnico. Quer
ver? Está aqui nas suas barbas. — Voltou-se para uma das estantes, apontou
para um setor, pulou da rede, começou a retirar brochuras e volumes
encadernados enquanto dizia alto os títulos: — “Os Torpedos na Guerra do
Paraguai.” Isso, rapaz, em 1873. “Marinhas Militares do Mundo.” “O canhão,
o aríete e o torpedo.” E estas separatas aqui da Revista do Instituto Politécnico
Brasileiro, dos Anais do Imperial Observatório do Rio de Janeiro e da Revista
Marítima Brasileira.
— Natural. Parente de você. Eu, todavia, não me gabo das obras
científicas de meu pai. Veja ali os saldos das edições. Pilhas e pilhas.
Trabalhos sobre Geometria Analítica, Magnetometria, Resistência de
Materiais, Tática e Estratégia de Costa... sem contar aquela coisa sobre os
isocaedros...
E sorriu, com saudades do pai, acrescentando enquanto pulava do
peitoril para o assoalho: — E que previsão a dele! Lembra-se daquela carta
que mandou de Canudos? “Espero que algum gênio ainda anônimo venha a
fazer isso um dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí...”
Que previsão! Que pressentimento! Pois não saiu Os Sertões?
Foi trabalhar com o filho nos mastros da “Kuimbaé”, enquanto
Maurício, subindo até à biblioteca, pegou na edição que o Laemmert fizera
da obra de Euclides da Cunha, quatro anos antes; desceu com o livro,
escarrapachou-se na rede, ficou a ler até de tarde quando Artur e o filho,
como o porão já estivesse um tanto escuro, resolveram ir para as famosas
reconstituições da campanha de Mukden. Carlos descalçou os sapatos,
embrulhou-se num quimono, foi para o espelho tatuar a cara de “nipônico”.
Depois, pai e filho chamaram Maurício a quem Carlos acabou de convencer
entregando-lhe uma tesoura e uma pilha de jornais.
Até que Maurício cortasse as folhas e fizesse uns quarenta barcos de
papel, Artur, refestelado numa preguiçosa, folheava uma revista francesa
com mapas e fotografias da batalha de Porto Artur, e Carlos dava saltos
mortais nas pranchas do pontão, provando que não se esquecera das
longínquas proezas de The Kiehinger.
Virgínia, que estivera com a tarde tomada por uma visita, depois de
acompanhá-la ao portão subiu e foi para o quarto contar os dois tabuleiros
de roupa lavada que ali estavam havia dois dias à espera de confronto com o
sol.
Já escurecera quase de vez quando ela, depois de arrumar-se para o
jantar, ao descer com a toalha que pretendia deixar na copa, deu com uma
cena repentina. Três indivíduos saídos do fundo do mar e irreconhecíveis
por causa do lodo, molhados que nem frangos, tiritando que nem molas e
rindo como personagens de fita cômica do Gaumont, entravam na copa... E,
assim que a viram, recuaram. Saídos dalgum poço? Loucos? Irresponsáveis?
Ou, algum desastre? Não estariam feridos? O pontão teria afundado?
Correu para Artur, abraçou-o por entre perguntas, correu para o filho,
e, ante a explicação apalermada: “Caímos na Lagoa...”, franziu o rosto,
meneou a cabeça e, toda suja dos abraços, só soube dizer, ainda não refeita
do susto:
— Mas, pelo amor de Deus, quando é que vocês criam juízo?!
Eles fugiram em diagonais, um para o banheiro, outro para o tanque e
o terceiro para o chuveiro da criadagem. Ela foi para o quarto, mudou o
vestido, limpou o rosto, lavou as mãos, fechou-se, ficou na cama a ofegar.
Que susto! Cuidava ver três loucos... três náufragos... três fantasmas.
Daí a uma hora, se tanto, chamavam-na, batiam na porta, riam,
cantavam, desciam e subiam como espinoteados a escada que dava para o
porão.
— Virgínia, que é isso? Ficou zangada? Por causa duma brincadeira?
É verdade o que a criada disse: que jantemos sozinhos?
— Tome juízo! Nem parece que vai ser promovido a capitão de
corveta. Por muito menos tem gente posta a ferros na Ilha das Cobras.
Depois de risadas abafadas no corredor, a voz de Maurício:
— Virgínia! Seu marido e seu filho estão com fome...
— Muito bonito! Um ex-guarda-marinha... com distinção em
Mecânica Racional... Um professor do Santo Inácio... Pois que jantem
sozinhos. Estou com enxaqueca.
— Mamãe! Ó mamãe? Como é?
— Entenda-se com seu pai e com seu tio. Não me dou com
escafandristas.
E eles a insistirem através de todos os processos convincentes,
moderados, excepcionais, paroxísticos e histriônicos. Cantos, uivos, berros,
choros, pios, e até murros na porta. Enfim, tal foi o estardalhaço que ela se
levantou, ajeitou o cabelo, pôs de lado a birra, saiu do quarto, foi recebida
com abraços e beijos, hosanas e guinchos, e a trouxeram para a sala numa
cadeirinha feita de braços trançados. Sentou-se à cabeceira, serviu-os muito
séria, mas não jantou.
— Não posso. Não insistam. Fiquei nervosa. Não façam mais isso.

***

Às 10 horas da noite, depois que as visitas se retiraram, Maurício foi


para o Café Lamas ver se recebia os cobres de aulas particulares dum
paraense cujo pai bebia champanha e mandava lavar a roupa de linho na
Ilha da Madeira, mas não remetia a mesada para o filho desde que
descobrira que este a perdia no High Life. Carlos foi dormir cansado de tanta
estrepolia, e Virgínia e Artur ficaram na sala de jantar. Ela, no canapé
debaixo dum espelho de Murano; ele triturando com as unhas, conforme o
hábito, as rosas do vaso que ornava o centro da mesa. Primeiro, um silêncio
prolongado. Depois Artur achou uma boa política lembrar que tinha de sair
cedo no dia seguinte.
— Amanhã, começo vida nova.
— Já é tempo.
— Oh! Filha!? Então digo que amanhã vou para bordo, demoro, não
sei quanto tempo ficarei em Jacuecanga, e você... me diz que não é sem
tempo!?
— Não é isso. Você sabe muito bem que não é isso. Estou de acordo é
em outro assunto bem diverso. Você não disse que amanhã começa vida
nova? Já é tempo. Não é mais o guarda-marinha de 1894, recém-chegado
duma circum-navegação. Não é mais o hóspede prazenteiro do Hotel White
nem o noivo solícito do Internacional. Agora é o chefe de família desta casa.
Lembre-se que seus pais morreram, que você já tem um filho com dez anos
e tanto. Sem contar que está prestes a ser capitão de corveta.
— Acha errado eu ser alegre, folgazão, brincar com meu filho, com
você, com seu irmão?
— Nada disso. Acho errado é um oficial de marinha de longo curso se
atolar numa lagoa... Mais nada.
— Ah! Bem. Então está tudo esclarecido. Um beijo! Um pouco de
piano...?
— Não.
— Então... aqueles versos do outro dia. Se bem me lembra, há neles
umas coisas similares com o que vi hoje debaixo da água.
— Como assim? Não vejo a menor analogia.
— Recite e lhe mostrarei.
Quando chegou no trecho “Et, dès lors, je me suis baigné dans le
poème De la mer infusé d’astres et lactescente”, Artur fez um gesto e disse:
— É nesse pedaço.
Ela sorriu e continuou a recitar, enquanto Artur desfolhava rosas e as
macerava. E a voz, ora límpida ora gutural, dizia: “J’ai vu fermenter les
marais, énormes nasses Òu pourrit dans les joncs tout un Léviathan...”
Depois foram passear pelo jardim, abraçados. Os jasmineiros e as
“damas-da-noite” enchiam o jardim de olores densos e vagarosos como
névoas.

***

No dia seguinte, depois que acompanhou Artur até ao portão


enquanto Carlos e Maurício tomavam o café que haviam interrompido para
abraçar o pai e cunhado, Virgínia voltou à sala de jantar, apanhou as pétalas
maceradas pelos dedos do marido, desceu até o “consistório”, pôs em ordem
aquela espécie de Feira da Ladra, onde como num belchior havia de tudo.
Nem viu quando Carlos e Maurício saíram para São Clemente. Antes do
almoço dera instruções ao jardineiro. De vez em quando vinha ver se este as
entendera e as estava seguindo à risca. Sim, aquele jardim precisava duma
reforma em regra. Podar agora não era tempo; mas, desbastar, cortar a
grama, replantar, isso era mais do que necessário. Quanto à chácara, aos
fundos, parecia uma selva.
No dia seguinte o biscateiro ainda estava a braços com o lixo que
jogava na Lagoa, enquanto pretos do morro carregavam troncos e galhos
para lenha.
No terceiro dia, porém, Virgínia teve vontade de tocar piano. Levou
horas nisso, escrupulosamente, começando com uma série de escalas
cromáticas para desentorpecer os dedos. Mas o piano estava desafinado.
Maurício foi para a cidade no quarto dia com um recado para o afinador.
Apareceu uma alemã sardenta, quase sinistra, como uma ave pernalta;
experimentou as notas, deu apertões dentro do bojo, ficando a escutar com a
cabeça de lado; e tossia, aos repelões.
Mas no quinto dia, quando bem cedo se sentou ao piano para ver se
tocaria menos mal a Apassionata, bateram no portão cuja campainha
badalou umas quatro vezes.
Pela vidraça da porta, cujo brise-bise puxou, reconheceu o capitão de
mar e guerra Toledo. Mandou logo a criada abrir e o recebeu na escada
dizendo:
— Artur? Não está, comandante! Foi para bordo há cinco dias...
O capitão de mar e guerra Toledo ficou assim sem jeito, olhou-a,
cofiou o queixo e disse:
— Está bem. E o comandante Mesquita, que ficou de vir aqui? Já
chegou?
— O comandante Mesquita. Não? Por quê?
— ... Combinou estar aqui... — Tirou o relógio, viu as horas, aceitou o
convite para entrar.
— Mas, não faça cerimônia. Se como no mês passado quer tirar
apontamentos sobre Legislação Naval e Convenções Marítimas
Internacionais, não faça cerimônia. Enquanto o comandante Mesquita não
chega... Bem sei que é o único volume de meu tio-avô Saldanha da Gama...
mas isso não quer dizer que, caso queiram, não o levem para o Ministério...
Assim não terão tanto trabalho.
Nisto a sineta do portão badalou e alguém entrou. Ouviram passos no
cimento e na escada, foram ao encontro do comandante Mesquita que,
muito compenetrado, de farda, os cumprimentou. Ligeiramente quanto ao
colega, de modo esquisito quanto à Virgínia. E enquanto esta atendia à
criada que ao varrer o jardim acabara de apanhar o jornal jogado como
sempre na grama pelo jornaleiro, o capitão de corveta fez que não, que ainda
não, para o comandante Mesquita.
Virgínia depois de pegar o jornal voltou-se, sorriu-lhes, indicando a
entrada. E enquanto os dois muito esquisitos e cerimoniosos limpavam os
pés no capacho, ela correu os olhos pelos títulos do jornal.
Ambos ainda viram aquele corpo, do busto para cima tapado pelas
folhas abertas, oscilar antes de cair na varanda, pesadamente.
Apanharam-na, chamaram pelo nome de Carlos, e o capitão de mar e
guerra Toledo entrou com o corpo de Virgínia atravessado nos braços, foi
assim até à sala de jantar, à copa, quando a cozinheira e a copeira, vindo do
jardim, deram com aquela cena.
Deposta no seu quarto, parecia morta. Não tardou que surgisse o dr.
Gama que, entrando, explicou que saíra cedo para a clínica e levara cinco
horas com o jornal dobrado no fundo do tílburi, sem a menor desconfiança
do assunto que o dito jornal tratava em letras berrantes. Bem que estranhara
certos ajuntamentos nas bancas dos jornaleiros... Um cliente é que lhe
contara o que tinha acontecido...
Enquanto o dr. Gama e uma vizinha prestavam o necessário socorro a
Virgínia, chegaram a esposa e a cunhada do comandante Mesquita, que do
carro que parou junto à escada da sala de jantar logo entraram para a sala
onde o oficial contava à criadagem o que acontecera. Quase na hora em que
as duas senhoras entraram para o quarto, embarafustaram pela casa adentro
Carlos e Maurício. (Souberam do caso no bonde, pelos brados dos moleques
e pelos títulos dos jornais.) Carlos atirou-se para o quarto da mãe,
empurrando toda gente, e caiu de joelhos ao lado da cama que era, com
aquela criatura prostrada ali, uma prancha de naufrágio.

***

Naquela noite de 21 de janeiro, Artur subia uma das escadas de ferro


do Aquidabã, vendo na sua frente, no lance em caracol, o capitão Uchoa
cujo busto já atingia o tombadilho.
Mas de repente tropeçou no colega porque este, virando-se, desceu
um degrau e lhe pediu fogo, aproximando o rosto com o cigarro intato na
boca. Sorriam aquelas duas fisionomias bem próximas, iluminadas
simetricamente pelo diminuto círculo de fogo, quando a atmosfera se
expandiu obliquamente, um fulgor se abriu na noite e ambos subiram em
jato paralelo como rolhas de garrafas de champanha no centro exato dum
estampido sobre o qual se abateu depois, mole como fuligem, um pasmo de
sucessivos ecos.

***

A explosão do Aquidabã na baía de Jacuecanga era o assunto da


cidade inteira. A população seguia com interesse as minúcias das
reportagens, enquanto o inquérito não esclarecesse melhor as circunstâncias
da catástrofe. Em casa de Virgínia, assim como em muitos outros lares,
parentes, amigos e companheiros das vítimas, formavam grupos
acabrunhados. Ali no casarão do Jardim Botânico, as salas estavam cheias de
antigas relações do coronel Aleixo, de colegas de Artur e Maurício, de
amigos e parentes do dr. Gama. Mas Carlos acabara se refugiando no porão
onde, sentado diante da fragata “Kuimbaé”, olhava por entre lágrimas e
pensamentos a galeota armada pelo pai. E, sem querer, obedecendo a um
delírio saturante, os lábios do garoto diziam baixo, como numa oração:
— ... Trirremes, galeras, galeões... Urcas, brigues, escunas... — E
depois dum silêncio, o automatismo voltava à boca úmida e crispada: —
Patachos, sumacas, taforeias...
Lá em cima, no quarto, com as duas mãos presas em mãos amigas (a
da vizinha e da senhora do comandante Mesquita que estavam sentadas de
cada lado da cama) Virgínia parecia uma crucificada, com o madeiro ainda
por soerguer. Era como se o seu martírio tivesse começado, apenas. Aquela
boca ainda sentiria o gosto amargo do fel. Aquele coração seria lanceado.
Lançariam ainda sortes sobre o que lhe restasse.
VII
O ANJO DE FRA ANGÉLICO

APESAR do estado em que Carlos lhe chegou à casa na barata Opel


dum colega, atulhada de mais outros, Virgínia sentiu grande alívio, afinal. E
enquanto ele a rir contava cenas ferozes e violentas do trote no Realengo, ela
agradecia a Deus o fato de o filho haver escolhido a carreira do Exército, já
que o avô Gama não o convencera a matricular-se no pardieiro da Praia de
Santa Luzia. Para a Marinha não queria que o filho entrasse. Não por causa
das considerações nervosas e alarmantes da tia Judite, citando a revolta da
Ilha das Cobras e dos marinheiros da esquadra em 1910. Era que o mar,
assim tamanho, a angustiava. Chegara ao ponto de ficar com verdadeira
fobia, tendo proibido que o filho, quando ginasiano, fizesse parte de
qualquer clube de regatas, frequentasse banhos de mar ou fosse a
piqueniques em Paquetá ou no Saco de São Francisco.
— Bem sei que é mania. Mas, pelo amor de Deus! Não quero, pronto!
Há tantos outros lugares! A Cascatinha, Paineiras...
Se Carlos devia a tio Maurício e ao Colégio Santo lnácio a forma
notável com que tirara diploma de bacharel em ciências e letras em 1912 e a
relativa facilidade com que no ano seguinte afrontara exames e provas para
ser aceito na Escola Militar, não devia menos a Virgínia o aperfeiçoamento
de caráter e as vantagens de disciplina e critério que desde logo o
habilitaram a distinguir-se entre a juventude da sua geração.
Virgínia jamais se conformara com a morte do marido. Continuava a
reagir contra a traição que os havia despojado da condição lírica ao tempo
em que, inexperientes, mal começavam a embelezar a existência. Artur não
pudera sequer dizer ao mundo ao que viera. Em rapaz não se preparara para
uma luta e sim para uma usufruição; sua mocidade não chegara a ser uma
investida programada, pois apenas tivera tempo de comparticipar duma
quermesse, dum passeio e duma regata — que era como ele considerava o
amor, a existência e a profissão. Com sua índole alegre e espontânea fora
colhido à falsa fé pelo destino; e isso logo no primeiro óbice que o esperou
na noite não como tropeço mas como explosão. Num convés de plataforma
sobre o trópico fora expulso como fração dum todo, antes que o pusessem
de sobreaviso contra o panteísmo e a técnica.
Já o filho, porém, estava advertido constantemente, desde pequeno,
pela vigilância materna. Assim, ao preço alto daquele tributo e sob a guarda
quase mitológica dum pessimismo consciente, Carlos em 1913 não tinha
nada do garoto de fundo de chácara de 1906. O exemplo radioso do pai já
não o incitava mais; agora era a circunspeção serena da mãe a ensinar-lhe
que não aceitasse lances de acaso da vida e sim definisse seu temperamento
através duma opção. Durante os estudos e as tarefas, ela assistia à
estruturação daquele caráter, enervava-o com a vontade e a sanção para que
não sucedessse o inesperado desagregá-lo anarquicamente — como
sucedera ao corpo do pai.
Em 1906, Virgínia pensara em mudar de bairro. Mas o velho Gama
resolveu morar com a filha e o neto porque a necessidade de obras e reparos,
os atrasos de imposto e o tamanho do casarão dificultavam a eventual ideia
de alugá-lo a algum bom inquilino. Consequentemente, tendo cedido a
residência do Cosme Velho para a irmã Judite e como isso em nada o
prejudicasse, pois já não clinicava passando o mais do tempo a realizar sua
obra sobre Feijó, o marquês do Paraná, o marquês de Olinda, Saraiva,
Sinimbu e outros estadistas, logo se aclimatou em harmonia dócil com os
filhos e o neto ali no Jardim Botânico.
Maurício, mais moço seis anos do que a irmã, passou desde logo a ser
uma espécie de preceptor do sobrinho, e em pouco o porão mereceu o
apelido genérico de “Universidade”, e a chácara o de seu respectivo “campus”.
Isso não impedia que professor e aluno fossem duas vezes por semana ao
centro da cidade, instalados num bonde elétrico do Jardim Botânico,
saltassem na Galeria Cruzeiro e não mais no Largo da Carioca e assistissem
a algum programa cinematográfico no Parisiense, a algum concerto no salão
nobre da Associação dos Empregados no Comércio ou mesmo a qualquer
conferência no último andar do Jornal do Comércio. Ou que discutissem
política acompanhando com alvoroço, por exemplo, a campanha eleitoral
para a Presidência, não raro atiçando o velho Gama, um civilista enragé.
Passavam pela Garnier a fim de adquirir livros encomendados por Virgínia,
davam a volta clássica pelo triângulo avenida Central, rua do Ouvidor e rua
Gonçalves Dias, entravam na Colombo ou na Lallet. Maurício envergava
fraques espessos, calça listrada, polainas, chapéu-coco, e exibia sua coleção
de bengalas, alfinetes de gravata, colarinhos duros de brilho impoluto, e
coletes vistosos de traspasse.
Com o aparecimento de cinemas luxuosos, postavam-se na sala de
espera do Odeon ou do Palais, ouvindo a orquestra que dividia o salão em
1.ª e 2.ª classes a 1.000 réis e a 500 réis, empolgavam-se com a Lídia
Quaranta e a Bertini, repetiam o Quo Vadis?, apaixonavam-se pela Borelli.
Certas noites de sábado iam ao Municipal ouvir ópera lá da torrinha, e
depois ceavam “média” no Lamas. Os domingos em casa giravam em torno
de figurões que iam visitar o velho Gama; e os assuntos eram variadíssimos.
A Duse em Rosmersholm; a Després em Fedra; a Lorenzo em Gioconda. Mas
também havia debates sobre Pinheiro Machado e o Morro da Graça, o barão
do Rio Branco e o almirante Alexandrino.
Pouco depois, Carlos travou conhecimento com a vida noturna, pois
o primo Eusébio, filho de tia Judite, tinha uma Delaunay e os levava ao
Frontão e à Mère Louise, assim como aos cafés da Lapa.
Rio antigo, das conversas sobre literatura e política nas mesinhas
boêmias dos caldos de cana da Galeria Cruzeiro citando os parnasianos, as
visitas de Ferri e Blasco Ibañez, o salão da Escola de Belas-Artes, as
caricaturas do Raul e do Calixto. Ou na porta da Garnier, conhecendo
grupos solenes nas cadeiras ao pé da caixa, ou vendo passar o Barreto, o
Hasslocher, o Mariano, metidos aquele em escarpins macios e fraque
branco, o segundo em atlético jaquetão, o último com costeletas de
toureador ególatra. Ou a trindade Bevilacqua fuçando vitrinas. Ou o João do
Rio ao lado do Roberto Gomes, um espesso e rotundo, o outro diáfano e
lívido. E também a figura do Rui saltando duma sege na esquina e indo a pé
até ao Briguiet. E tomaram parte em dois ou três carnavais, rodando em
corso vagaroso desde a Praça Mauá até à Glória, ou esperando numa esquina
(onde a carro tomara lugar desde de manhã) a passagem dos préstitos.
Rio antigo do compositor Nazaré, de fraque, sorumbático, tocando
piano na sala de espera do Avenida; das matinês no Trianon; do teatro Fênix,
sempre fechado, nos fundos do imponente PalaceHotel; diante deste, o
estacionamento dos automóveis marca Pope, de descarga aberta, nos quais
turistas iam até Copacabana e o Alto da Boa Vista. Rio antigo do Teatro São
José lançando a gíria; dos belchiores da rua da Carioca; do mercado de flores
perto do Parc Royal; das missas de sétimo dia na igreja de São Francisco; do
aglomeramento de sumidades aposentadas diante do Club de Engenharia;
dos ajuntamentos defronte das entradas da Colombo; dos funcionários
públicos de Lima Barreto; dos pregões de loterias; dos camelots na esquina
da rua dos Ourives perto do Barateiro; das casas de penhores ao lado da
Politécnica e do Gabinete Português de Leitura; dos passeios no Flamengo;
das pensões do Catete; do tempo em que terrenos de areia em Copacabana
custavam muito menos do que um lote baldio na Tijuca; dos pontos de
bondes na Praça Quinze, no Largo do Rocio e no Largo de São Francisco;
Rio antigo hoje, mas naquele tempo moderno quando o Passos era tido
como o nosso Haussmann, pois já não se tomava um bote no cais Pharoux
para se ir a bordo dum navio e sim, com sol tropical, se viam transatlânticos
atracados no cais do porto rente a armazéns seriados. Rio ainda dos carros
enfeitados e alegres dos romeiros da Penha; das construções de mestres de
obras nos bairros residenciais; dos coretos com bandas nas noites
domingueiras; dos namoros em gradis; dos guardas-noturnos
desengonçados; dos comícios retóricos; das passeatas de estudantes; da vida
noturna na Lapa; das paradas e das procissões; dos carros particulares da
burguesia com motoristas fardados; das velhas Benz e Mercedes da Garagem
Batista levando famílias pacatas a Jacarepaguá e ao Leme...
Mas depois que o neto se matriculou no Realengo, o doutor Gama
aconselhou Virgínia a largar o casarão tão precisado de obras e onde as
despesas não conseguiam mais um padrão de conforto. Decidira também
fazer outra viagem à Europa; e convidou a filha a acompanhá-lo, estipulando
que Maurício e Carlos ficariam tomando conta da residência do Cosme
Velho, donde a mana Judite se mudara definitivamente.
Assim, quando pai e filha embarcaram no Avon, já um indivíduo
endinheirado da Estrada Dona Castorina alugara a chácara.
Um ano e pouco, depois, passando por lá no carro do primo Eusébio
— que entrara para a Faculdade de Medicina — Carlos foi encontrar o
antigo solar do avô transformado num pardieiro com todas as características
de promiscuidade das chamadas “cabeças de porco”. O gradil da frente, além
de todo enferrujado, tinha vãos abertos. As duas abas do portão
monumental haviam sido vendidas, de modo que a antiga alameda central
passara a ser uma espécie de beco, porque de cada lado se erguiam duas
armações de madeira onde se vendiam mudas de plantas em tinas. Os
antigos canteiros eram terra batida. Os gramados laterais, cheios de tiririca e
capim, mamona e urtiga, serviam de coradouro a lavadeiras que alugavam
cômodos no porão. As cascatas artificiais, outrora cheias de avencas
tremulantes sob filetes de água que gotejavam das penhas esverdeadas de
limo, estavam agora secas e encoscoradas de poeira, parecendo furnas em
cujos relevos exteriores uma gataria incrível dormia enrodilhada como
bichos dispostos num ex-presépio. Nas janelas da frente havia cordas
estendidas, gaiolas dependuradas, travesseiros e roupas de crianças. Onde
antes fora o saguão, se via a oficina dum sapateiro. Onde fora a sala de
visitas, tabiques formavam quatro cômodos. Na antiga sala de escritório
outros tabiques deixavam ver manequins, cabides, oratórios, violões,
folhinhas e móveis.
O porão habitável transformara-se numa série de compartimentos
superlotados onde a miséria e a proliferação se patenteavam no número de
crianças e cachorros discerníveis. Os antigos cômodos para criadagem lá
fora pareciam ter virado senzala.
— Se mamãe visse isto ficaria aborrecida. Não só por este português
estar explorando tanta gente (deve tirar aqui umas vinte vezes o aluguel que
paga), como pela interpretação especialíssima que deu ao contrato que
assinou.

***

Carlos recebeu da França — após os cartões indispensáveis da Ilha da


Madeira — várias cartas documentadas com aspectos de avenidas e
boulevards, monumentos e museus. E descrições de passeios. Meses depois
as notícias vinham em postais de São Rafael, Cannes, Nice, Mônaco,
Menton, Bordighera e Ventimiglia. Apenas uma carta de San Remo; uma
carta serena demonstrando amenidade.
Mas as grandes cartas maternas começaram em Florença. As
apreciações, os comentários, o entusiasmo, os pormenores, evidenciavam
que aquela alma plácida e recôndita se alvoroçara em misticismo e em
estética, visto como inteligência e perspicácia atiladas estavam a serviço
duma sensibilidade muito fina que ali encontrara perspectiva para seu
pendor artístico.
Ah! Que cartas brilhantes e sensíveis! Carlos lia, mostrava a Maurício,
entusiasmavam-se os dois ante aqueles trechos empolgantes e bem pessoais,
com a influência benéfica e admirável que tal estada estava exercendo em
Virgínia. Depois de reler muito tantas páginas de contemplação que a mãe
conseguia transmitir, Carlos passava em revista cautelosamente a pilha de
postais mostrando o Palazzo Vecchio, a Piazza della Signoria, a Loggia dei
Lanzi, o Bargello, a casa dos Alighieri, o Palazzo Strozzi, a igreja de São
Lourenço, a de Santa Cruz, o santuário de Santa Maria Novella, as pontes
sobre o Arno, o Piazzale Michelangelo, São Miniato, as termas etruscas, o
claustro do convento no alto de Fiésole.
Mas havia agora nessas cartas um aspecto que Carlos por falta de
idade ainda não pressentira: a eleição duma alma para os arroubos místicos
tanto quanto para os deslumbramentos plásticos. Resultou desse novo
ângulo que a alma de sua mãe lhe mostrou, haver Carlos incidentemente
passado algumas tardes na Biblioteca Nacional folheando e se detendo num
ou noutro trecho de obras ilustradas sobre arte antiga, medieval e
renascentista, coisa que de certa forma o habilitou, por alto, a comparticipar
do estado de graça e de enlevo materno. O que, aliás, se deu quando
chegaram inefáveis epístolas de Arezzo, a respeito de Piero della Francesca;
de Perúsia, a propósito do semblante severo e orgulhoso da cidade no topo
da montanha; de Assis, com transbordamentos patéticos diante de Giotto,
Cimabue e Lorenzetti; diante de Santa Clara em corpo no relicário e em
alma dourada na pintura de Simone Martini; da basílica e do Sacro
Convento; dos campos e colinas da Umbria; das igrejas de Santo Apolinário
e São Vital, em Ravena, como um verdadeiro transporte de pasmo ante os
mosaicos não só desses templos como os do mausoléu de Galla Placídia.
Ainda assim, tinha que recorrer a tio Maurício que lhe fazia preleções
mais sobre Teodósia e Justiniano do que sobre a arte bizantina.
Depois, cartas de Rímini (por causa disso tio Maurício leu uns trechos
de Dante referentes a Paolo e Francesca) de Ferrara; por fim, antes do
regresso a Paris pela Suíça, uma formidável carta de Veneza, escrita do
Albergo Cavalletto, velho de sete séculos, atrás da Praça São Marcos. E uma
fotografia entre pombos diante da Basílica, outra numa gôndola saltando no
cais particular da antiga residência do doge Orseolo. E um cinzeiro de cristal
de Murano...

***

Influência talvez daquele anjo músico de Fra Beato Angélico


mandado de Florença, Carlos certa tarde, ao passar diante do Instituto de
Música se enterneceu por uma criaturinha de ar inefável que saíra do
vestíbulo e estava parada esperando condução ali na esquina. Que bonde
iria tomar? Águas Férreas. Acompanhou-a sentado no banco de trás, vendo
apenas a caixa do violino emergir rente àquele ombro, e os cabelos louros
esvoaçarem sob a boina.
Ela só saltou bem depois da fábrica de tecidos, para lá do bairro de
Laranjeiras, no recanto mais ameno do Cosme Velho, após a estação dos
bondes para Paineiras e Corcovado. Entre muros aparando lances da floresta
fresca, havia um sobrado, depois de muitas casas e jardins burgueses. A
menina abriu um portão cuja campainha suspensa badalou pastoralmente.
Descobriu que três vezes por semana, àquela mesma hora, a aluna do
Instituto saía da aula e tomava o bonde. Deu em acompanhá-la incógnito,
sem ousar fitá-la de frente, sem coragem de sorrir, de dizer palavra,
ignorando se ela notava ou percebia que era acompanhada. Duas semanas
depois deu em adotar o estratagema de passar rente à casa quase todas as
noites, enfiando postais de Florença, Veneza, Assis, Nice, Paris (vistas de
paisagens e reproduções de obras de arte) na caixa do correio existente do
lado de dentro do gradil da vivenda sossegada.
Vigiava a casa de longe, passava transido de emoção pela calçada, não
ousava quase erguer os olhos, familiarizava-se apenas com as roseiras dos
canteiros. Transposto o primeiro acanhamento, nem assim conseguia
surpreender qualquer manifestação de vida lá dentro. Não sairia aos
domingos para a missa? Não iria tarde alguma a qualquer cinema? Não
daria passeios nem mesmo ali pela Ladeira do Ascurra? Pôs-se de sentinela.
Nada.
Acabou-se a coleção de postais. Ainda havia, porém, um fator que
talvez preponderasse vantajosamente: a farda da Escola Militar; passou a
sentar-se no mesmo banco do bonde. Mas na Glória ou no Largo do
Machado, algum sujeito ignaro se sentava no vão entre ambos...
E Carlos imaginava como seria a sua voz, que gestos faria
conversando... Nem disso se pôde certificar, porque ela viajava sempre
sozinha, não saía nunca do Instituto num bando de colegas.
No Realengo, não sentia saudades da mãe nem do avô, apesar da
ausência que durou dez meses; é que a correspondência era fluente e
constante. Contudo, sentia saudades daquele ser etéreo, quase teórico,
romantizado pelos cabelos louros e pela caixa de violino. Tanto, que aos
sábados se despejava do trem da Central, baldeava depressa de bonde na
Lapa, arrumava-se assim que chegava ao Cosme Velho, ia namorar por
hipótese junto a um lampião, hipnotizando o sobradinho do arrabalde
sereno.
Quantas noites, depois de semanas no Realengo, semanas cheias de
exercícios, marchas, aulas de trigonometria, mecânica, terrenos em vertente
e em contravertente, grupamento horizontal, curvas de densidade, dispersão
e rasância, Carlos não passou para cima e para baixo diante da vivenda
fechada, fumando seus primeiros cigarros! Nos domingos valia-se da
amizade estouvada do primo Eusébio, filho de tia Judite; apoderava-se da
barata Delaunay, percorria nos dois sentidos, de descarga aberta, aquele
trecho de curva e de subida, sem que ocasião alguma surgisse à janela a
criatura loura, de expressão quieta, sem vibratilidade. E aquele violino, para
que era? Pois não o ouvia nunca! Tocaria os exercícios de manhã?... Passou
certa manhã. Jardim plácido, com caramanchão aos fundos e estufa e
árvores na aba da encosta. Nisto, o violino... um trecho da Berceuse, do
Jocelyn...

***

Mas eis que coisas mais gerais e mais veementes surgiram com um
crime na remota Sérvia... Ameaça de guerra. Ultimato. Telegramas.
Nervosismo.
Ainda bem que o avô e a mãe chegaram pelo Astúrias.
Conflagração europeia! Opiniões ponderadas do velho Gama.
Emoção atenta de Virgínia. Conversas agradáveis às refeições, contando
coisas de França e de Itália.
O Eusébio passou a influir com sua força de boêmio. O grande
incentivo foi decerto o automóvel. Passeios vagarosos junto às calçadas do
lado par do Flamengo cheias de bandos de moças e raparigas, estudantes e
namoradas, com bancos e palmeiras, gradis e canteiros. Do outro lado, o
mar, a barra... Passeios em velocidade até ao Leme, e ao longo da Avenida
Atlântica que orlava o areial de Copacabana com uma faixa de asfalto junto
a terrenos baldios, muros, residências apalacetadas, prédios de mau gosto,
edifícios tipo Biarritz ou Cannes, diante dum mar aconcavado em jade e
alabastro.
Discussões até altas horas na Brahma ou na Americana, ali debaixo do
Hotel Avenida, na Galeria Cruzeiro, por entre a música das orquestras
vienenses e os ruídos dos bondes. A batalha do Marne. A atitude da Itália. A
senilidade de Francisco José. A juventude do príncipe de Gales. Ou, na rua
do Passeio, na rua Chile, ou então na Lapa, o conhecimento equívoco de
clubes e botequins onde uma vida noturna se arrastava até de madrugada.
Carlos esqueceu a violinista incógnita, agitou-se com as peripécias
preocupadoras do conflito mundial, até que, quando a guerra passou a ser
paradoxalmente estática nas trincheiras, ele a procurou conhecer em livros
como Le Feu e Les Croix des Bois.
VIII
IDÍLIO NAS LARANJEIRAS

CARLOS sobressaía no Realengo passando com destaque por todos


os trâmites desde 1913; sentara praça por seis meses, revelara aptidão para o
serviço; tinha conduta irrepreensível; possuía invulgar robustez física; fazia
ótimos exames; estava tirando um curso brilhante das artes da guerra. Em
breve, passou para a Escola de Aplicação de Infantaria e Cavalaria, sendo
reconhecido aspirante a oficial da arma a que se habilitara. Gradualmente se
foi adaptando à vida militar dos Cintras mas com o espírito e o
temperamento dos Gamas, isto é, com um pendor intelectual nada brilhante
como efeito mas muito profundo como pertinácia e disciplina. De fato, neto
e avô se davam bem ali no Cosme Velho por causa da identidade de
propensões, não obstante certas visitas de indivíduos conspícuos que
vinham só para conversar sobre Frei Gaspar da Madre de Deus ou Frei
Vicente do Salvador (a Brasiliana do velho Gama foi formidável). Carlos e
Eusébio Lobo logo se caceteavam e iam embora com o carro assim que
principiavam as divagações sobre etnologia e linguística dos tupinambás ou
dos tamoios, as evocações dos grandes vultos do Primeiro ou do Segundo
Reinado, as críticas à falta de ensino agrícola, de incentivos à organização de
pesquisas agronômicas, as considerações sobre cooperativismo, à análise da
crise das lavouras da cana, da borracha, do café, etc.
No temperamento é que ele era mais um Gama do que um Cintra. Se
Artur captava da vida, da natureza, do lar, da carreira, elementos de
entusiasmo, tendo sido um sensorial, já o filho, depois de órfão se adaptara,
sério e desconfiado, aos ciclos de instrução humanística e técnica. Seu feitio
taciturno, tão oposto ao que seria de esperar da influência que o pai exercera
em sua meninice no Jardim Botânico, em tudo e por tudo se exteriorizava na
absorção das coisas através do descortino e da sanção. Desde cedo mostrava
um critério sistemático para as obrigações morais, e a sua juventude se
caracterizava por uma certa soma de virtudes complexas que tinham o vinco
duma análise adstringente, espécie de elemento dialético e lógico com que
sabia diferenciar categorias. Dir-se-ia que, sob a influência do avô Gama,
nascia nele a curiosidade pelas coisas da pátria, seus fundamentos, suas
raízes, suas características; que sob a influência da mãe, seu caráter buscava
discernir o melhor acesso à superação; e que sob a influência da lembrança
do fim do pai, suas defesas instintivas e potenciais o aparelhavam para
realizações que não colimavam a usufruição da existência mas sim uma
programação quase urgente a cumprir.
Quando o Governo resolveu mandar uma Missão Médica ao teatro
das operações de guerra na Europa, tia Judite se mexeu afoitamente nos
ministérios, na Câmara e no Senado, até arrancar a nomeação do filho
Eusébio, não admitindo nem de longe a hipótese dum civil ou militar cá
destas bandas poder vir a ser vítima da hecatombe. Verdade era que o avô
deixara os ossos e os óculos em Lomas Valentina. Ora, mas nem se sabia ao
certo o nome desse avô, Rodolfo ou Pisistrato, com cavanhaque e tudo, e em
cujo retrato desbotado estava escrito atrás, apenas, com um carimbo:
“Fotografia Campinense, de Henrique Rosén, 50, rua Direita. Campinas.
Guardam-se chapas para reproduções”. Verdade era que o coronel Aleixo
morrera na campanha de Canudos... mas de varíola, e não era um parente!
Verdade era que o filho dele, marido de Virgínia, morrera num navio de
guerra... mas em consequência duma explosão.
Assim, a barata Delaunay ficou encostada na Garagem Batista perto
da Praça Saenz Peña, e o Eusébio partiu com a missão médica, pois tinha
sido assistente do Álvaro Ramos na Enfermaria 24 da Santa Casa e pelo
menos aprendera (além do curso noturno pela Lapa e pelas pensões do
Roussell) a lavar úlceras de perna desinfetando-as com permanganato e
mudando a gaze.
Mandou fotografias de Paris diante da Torre Eiffel e do Arco do
Triunfo. Tia Judite, fez promessas ao Bom Jesus de Pirapora e à Nossa
Senhora de Aparecida, até que, atendida e oportunamente avisada, foi
esperar o filho, que desembarcou com astenia e sotaque francês.
***

A gripe de 18. Que calamidade brusca, soturna, num país de tanto


sol! Vindo do Realengo onde já servia como tenente, Carlos via os subúrbios
fibrilando ao sol, os poucos trens vazios, as estações desertas, as ruas com
aspectos lúgubres de enterros. Encontrou a cidade fechada como num
feriado compulsório. Parecia uma metrópole em véspera de invasão,
esvaziada, esquisita, com o comércio sem funcionar, com filas esquálidas nas
portas das farmácias. Uma desolação sinistra.
Em casa, naquele bairro que lembrava assim agora um latifúndio
abandonado, encontrou a mãe dando colheradas de poção à tia Judite e à
criadagem, fazendo canja e mingaus, tomando nota de temperaturas,
agitando o termômetro, atendendo aos chamados pelo telefone. O velho
Gama voltou a clinicar desde o Cosme Velho até à rua Ipiranga e aos altos da
rua Alice, perto do túnel do Rio Comprido; a filha quase não o via, pois saía
de manhã, ignorava quando voltaria. Ao chegar já achava uma lista de
chamados e telefonemas.
Bom doutor Gama! Um caráter, um coração e uma cultura! Quando
clinicava, jamais teve tempo para frequentar uma estação hidromineral, um
pouso de férias; as duas viagens à Europa significavam escrúpulo de quem
queria manter-se em dia com a ciência. Depois que resolveu dedicar-se à sua
obra sobre grandes vultos da nacionalidade, levava horas e horas escrevendo
de noite; e muitas vezes almoçava às carreiras para ir consultar documentos
no Arquivo Nacional, conversar com o amigo Capistrano ou o inimigo João
Ribeiro. Quando a filha enviuvou, não teve dúvidas em deixar seu conforto
tradicional do Cosme Velho para ir fazer-lhe companhia numa chácara
decrépita. Em Paris esforçava-se por facilitar-lhe passeios, visitas, teatros,
museus, não obstante os seus horários de hospitais e cursos.
Pois bem, a gripe zombou de seus esforços já experimentados nas
campanhas contra a varíola, a bubônica e a febre amarela, roubou-lhe
muitos clientes, fê-lo subir ladeiras, descer grotões, esbofar-se em morros,
pagar remédios a famílias de casas de cômodos e estalagens. E, por fim, o
pegou também. De fato, certa noite voltou esquisito, mal-humorado, com
calafrios, deitou-se, quis mas não pôde atender a dois chamados, pois o
coração e as pernas não ajudavam. Certa manhã não se levantou. Ficou
assim quatro dias e três noites, prostrado, muito ofegante, aflito por voltar à
clínica. E morreu de colapso, meio para fora da cama, embora a filha, o filho
e o neto tivessem ficado à sua cabeceira até às duas da madrugada, sem
intuição sequer da gravidade do caso, mesmo porque o dr. Romero ao sair às
onze horas afiançara que aquela era a marcha normal...
Quase vinte e quatro horas depois, quando Botafogo e Laranjeiras
sem nenhum trânsito eram um hospital marasmado disposto em alvéolos a
domicílio, Carlos e Maurício desceram as ruas das Laranjeiras e Guanabara
e rumaram para São João Batista, sentados na boleia duma vitória ao lado
do cocheiro. Atrás, atravessado sobre o capacho, e ultrapassando os dois
degrauzinhos, se via um caixão de pinho (conseguido com muito empenho)
contendo o corpo insigne e fibrosado do dr. Gama.
Virgínia, com as lágrimas distendidas em orações, não o pôde
acompanhar porque a tia Judite parecia que ia morrer também, assim como
a cozinheira e a copeira, as três quase subindo pelas paredes do quarto dos
fundos, como três loucas...

***

Menos dum ano depois, em pleno curso de trâmites testamentários,


com a aura da vitória resplendendo utópica pelo mundo através de
congressos e delegações, com tia Judite não podendo sequer manifestar
direito seu desgosto pela morte do irmão porque o Eusébio, além de gastos e
cabeçadas incríveis teimando em se casar com uma empregadinha francesa
da casa As Bichas Monstro, e, com essa história de campanha eleitoral,
querendo candidatar-se a vereador, tendo até assinado letras e achacado
parentes de Minas (tudo isso por causa do Governo o haver desmobilizado
menosprezando um cirurgião com prática de hospital de sangue... o
Maurício respondendo que a prática do Eusébio devia ser do Rat Mort e da
Abbaye na Praça Pigalle...), se deu na vida de Carlos uma transformação que
alterou também a de Virgínia. Foi nomeado para servir como adido da
delegação brasileira ao Congresso da Paz, ulteriormente sendo aproveitado
ainda por algum tempo entre os nossos elementos na Liga das Nações.
Devia-se isso à influência de amigos do dr. Gama no Itamarati que assim o
homenageavam postumamente, já que nem ao seu enterro tinham ido
devido às circunstâncias calamitosas da ocasião.
A primeira notícia que ambos receberam em Paris foi de tia Judite
contando que a Saúde Pública havia condenado o casarão do Jardim
Botânico, obrigando o inquilino responsável ou o proprietário a fazer tais e
tais obras. (Enumerava-as.) Informava que seu Almeida passava propina nos
fiscais e contemporizava, não obstante os termos categóricos do contrato e o
estado incrível a que estava reduzida a casa. Em pós-escrito, queixava-se das
disparidades da sorte, pois se Carlos estava agora em Saint-Germain-en-
Laye, o coitado do Eusébio resolvera clinicar na Alta Mogiana, com um
contrato miserável numa fazenda... E perguntava se era verdade mesmo que
não ia haver mais guerra por causa da Liga das Nações, e se os exércitos e as
marinhas doravante passariam a meras forças morais garantindo pactos e
pesando em orçamentos...?
Virgínia acompanhava o filho por toda parte e escusado é especificar
as vantagens que sua companhia lhe acarretava em Versalhes, Paris,
Londres, Spa, San Remo, Rapalo e Genebra. Acompanhou-o até mesmo à
Alta Silésia, quando foi preciso estudar o dissídio na região reclamada por
alemães e poloneses.
Ele lucrou de todos os modos. Primeiro, porque se viu a braços com
responsabilidades referentes à esfera muitas vezes além de suas atribuições.
Segundo, porque assim inaugurou sua mocidade com obrigações de relevo,
aconselhado sempre pelo critério materno que lhe lembrava a atuação de
dois outros Gamas, o almirante legendário, em Filadélfia, Buenos Aires,
Washington e Pequim; e Dom José, pai daquele, e que tão bem
desempenhou missões na Inglaterra, na França e na Bélgica, tendo mesmo
sido ministro em Viena...
Se o filho lucrou com estadas tão marcantes em ocasiões assim
excepcionais, ficando apto a desempenhar funções com certo brilho, e
voltando da Europa com um equilíbrio absoluto em tão pouca idade,
Virgínia encontrou lá ensejos e mais ensejos que além de lenitivo para seu
luto contribuíram em muito para aperfeiçoar-lhe a personalidade e o
espírito. E isso porque a frequência a hotéis, legações, embaixadas,
congressos, e as recepções e viagens a desembaraçaram, tornando-se uma
perfeita dama quanto ao critério social e uma grande presença quanto às
virtudes que aprimorou. Não que o ambiente lhas aprimorasse, mas sim seu
descortino nato. Além disso, se fartou de percorrer museus, travou muitas
relações, conheceu rodas de interesse mundano e intelectual, leu muito,
esteve sempre atenta às coisas do espírito.

***

Ao regressar e dar conta ao Itamarati e ao Ministério da Guerra em


relatórios percucientes das atribuições que lhe competiam, Carlos encontrou
porém no exército e na imprensa uma atmosfera exacerbada. Ao
desembarcar, vindo da Conferência de Gênova presidida por Facta, se viu
compelido a firmar um critério exato sobre as contendas político-militares,
pois uma semana antes tinha havido o desfecho da revolta do Forte de
Copacabana. Emocionou-se sobremaneira com os fatos, mesmo porque
tinha amigos de sua geração ligados aos acontecimentos mais agudos.
Emocionou-se e interessou-se. Esqueceu o romantismo pragmático
de Genebra, voltou a aprofundar-se nos problemas nacionais, procurando
alhear-se de influências e místicas debatidas em jornais. E o primeiro passo
que deu para racionalizar-se deveras no ambiente e na tradição foi,
curiosamente, procurar notícias referentes àquele seu primeiro sentimento
espontâneo de amor.
Certo dia, por um influxo qualquer, subiu até às imediações da antiga
vivenda das roseiras. Não contava absolutamente recuperar o tempo lírico
perdido. Era apenas uma procura de sossego, como se subisse a Paineiras
para ver uma sombra de árvore densa ou ouvir um murmúrio de águas entre
lajes sombreadas. Contudo...
Contudo viu, na tarde serena, que dum poste (não o em que parava de
longe, mas num outro mais para diante e do outro lado) saía um fio de
telefone que entrava por um canto da esquadria da última janela, aquela
donde na última vez provinham os sons da Berceuse do Jocelyn, de Godard.
Na manhã seguinte, um domingo, quando Virgínia foi à missa, Carlos
pediu informação do número do aparelho da rua tal número tanto...
Escreveu a lápis. Ligou. Atendeu uma voz meiga.
— Como vai de violino?
— Bem. Tenho tocado muito. Quem fala?
— Aquela pessoa que há muito tempo a acompanhava desde a saída
do Instituto de Música até aqui ao Cosme Velho... Que depunha postais na
caixa do correio... — Nisto parou. E se não fosse ela? Se a resposta quanto ao
violino representasse uma brincadeira?
— Eu ainda os tenho. Estão guardados comigo. Tão bonitos... Aquele
claustro do convento de São Francisco... Aquele angelo musicante de Fra
Angélico...
— Aquele anjo é você...
— Acha? Por quê?
— Porque parece.
— Por que telefonou?
— Passei, vi o fio do telefone... resolvi saber notícias. Então tem
tocado muito?
— Agora toco quatro horas todas as manhãs.
— Escute: essas janelas não se abrem nunca? Isso aí é convento?
— Pra que abrir? Posso ver por trás das persianas e do caramanchão...
Mas, onde esteve? Continua no Exército?
— Estive na Europa. Adido às delegações da Conferência da Paz, e da
Liga das Nações.
— Por que não mandou postais de lá?
— Tenho uma porção. Posso entregar? Mas, pessoalmente. Na caixa,
não ponho mais.
— Pode entregar, sim.
— Quando?
— Quando quiser.
— Onde?
— Ora! Onde! Aqui em casa.
— Veja lá! Olhe que eu vou.
— Pode vir.
— Onde me espera? Escondida atrás do caramanchão ou da persiana?
— Não tem mais caramanchão.
— E a sua gente? Quantas pessoas vivem fechadas nessa casa?
— Só eu, papai e mamãe, como sempre.
— Como é que durante aqueles dois anos nunca vi ninguém?
— Porque papai trabalhava na Baixada e saía muito cedo. E mamãe
era professora da Escola Normal e seguia para o Estácio antes das oito.
— Provavelmente foi por isso que nunca os vi.
— Decerto. Então esteve na Europa...? Desde aquele tempo?
— Não. Depois da guerra.
— Esquisito. Não é oficial do Exército?
— Sou. Por quê?
— Nada. Estranhei...
— Mas fui tratar da paz.
— Ah! Então está bem. Chegou agora?
— Ainda não faz um mês. Uma semana depois da revolta do Forte de
Copacabana.
— Então não é um dos dezoito?
— Infelizmente não. Escute! Falando sério: onde me espera?
— Aqui na sala.
— Bato ou sacudo o portão para que aquela sineta enorme badale!
— Não tem mais sineta. Agora é um simples botão do lado.
— Mas... não vai avisar seus pais, antes?
— Mamãe já sabe do seu aparecimento.
— Como assim? Pois se ela nem me conhece!
— Conhece, sim. Ontem quando nós duas descíamos da estufa que
temos aqui no morro, eu o reconheci parado na calçada de lá. Olhei bem,
certifiquei-me, subi correndo pela escada dos fundos, fui espiá-lo por detrás
da persiana. Mamãe chegou, eu mostrei.
— E ela, que disse?
— “Emília, ele deve gostar muito de você. Reaparecer assim de
repente, depois de levar sumido tanto tempo? Quem sabe se esteve no
interior ou mesmo na guerra?”
— E que foi que você respondeu, Emília? Bonito nome...
— Gosta? Respondi: “Eu sabia que ele voltaria, mamãe”.
— Sabia como?
— O violino me dizia.

***

A Emília que lhe apareceu na noite seguinte — ele telefonou dez


minutos antes, da esquina, não obstante um tímido telefonema de manhã —
mudara muito e não mudara nada. A meiguice de criatura quase sem
feminilidade, entre anjo e adolescente, não obstante já ter quase vinte e dois
anos. Mudara no sentido de haver crescido e possuir mais desenvoltura; e
não mudara porque tinha o mesmo semblante de porcelana, os mesmos
cabelos dourados, os mesmíssimos olhos dum azul infinito.
O engenheiro Nunes, que Carlos supunha dever ser algum casmurrão
lendo jornais numa cadeira de balanço, era pessoa de muita operosidade.
Andara drenando rios do fundo da Guanabara e na bacia de Jacarepaguá,
tais como o Sarapuí e o Pontal. Tinha planos especiais para a drenagem das
margens do Pavuna. Arrependia-se profundamente segundo explicou depois
da conversa cerimoniosa, dos seus erros de mocidade enchendo a Praia
Vermelha de monstrengos arquitetônicos para a Exposição Universal de
1908; como penitência, porém, o Governo lhe dera ultimamente encargos
ainda piores nos pavilhões da Exposição de 1922 ali no aterro diante do
Calabouço. Andava interessado em edifícios do gênero do Hotel Glória,
grandes prédios de apartamentos, coisa praticamente desconhecida no Rio.
Dona Laurinda, professora da Escola Normal, demonstrou pela
conversa ter mais experiência burocrática do que didática, trabalhava na
secretaria e queixava-se de entraves que impediam a aplicação de métodos
mais funcionais.
Carlos procurou desembaraçar-se do enleio natural contando
peripécias de sua estada na Europa como adjunto às missões do Governo.
Mas o fato de haver explicado essa circunstância, à guisa de credenciais,
ainda o inibiu mais. Mesmo porque teve que atender quase simultaneamente
à curiosidade dos dois flancos, porque se dona Laurinda se interessava por
Versalhes e a pompa e a emoção do Congresso da Paz, o doutor Nunes
queria informes sobre Genebra e o Covenant da Liga das Nações.
Carlos mal conseguiu mencionar os problemas debatidos nas
comissões técnicas e fazer uma súmula de suas atribuições secundárias.
Dona Laurinda entusiasmava-se:
— Então viu Wilson? Lloyd George?
— De longe...
— Mas viu Poincaré, Barthou, Briand...
— Sim. De fato.
— Clemenceau?
— Também.
Evidentemente ela esperava pormenores, impressões, comentários.
Carlos não tinha a desenvoltura do avô nem do pai para satisfazer
com brilho àquela curiosidade. Era lacônico e sucinto como o velho Gama.
Noites de Cosme Velho! Primeiro, sob a guarda solene de dona
Laurinda, que de vez em quando queria uma minúcia sobre uma questão
internacional já fora do cartaz: Fiúme, Silésia. Depois, sob a guarda
pachorrenta do doutor Nunes que, parado diante da porta, equilibrando a
cinza do charuto, ouvia a filha tocar violino depois de muito instada.
Emília não tinha virtuosismo enérgico, mas demonstrava
sensibilidade intuitiva para interpretar principalmente os românticos.
Noites e manhãs em Cosme Velho, mãe e filho consultando-se quanto
a essa terceira criatura que parecia dever entrar na existência deles. A seguir,
a apresentação de Emília, sua presença, um domingo, outro... uma tarde,
uma noite... A impressão magnífica de Virgínia que simpatizou tanto com a
futura nora que o enxoval redundou num desafio de prodigalidades entre as
duas famílias.
Por fim, meses depois, certa tarde, quando mãe e filho chegaram com
tia Judite e o Maurício e o Eusébio — que viera de propósito da Alta
Mogiana onde criara juízo — já a outra casa do Cosme Velho estava repleta
de altos funcionários da Prefeitura, de muita oficialidade e de alguns
médicos, os convidados dos Nunes, dos Cintras e dos Gamas. O Eusébio,
metido num fraque feito na Casa Garcia e com um espetacular plastrão, não
só os conduziu na sua Hudson, como acabou ajudando a criadagem da
Colombo. Após as duas cerimônias, a civil e a religiosa, um companheiro do
doutor Nunes desde as “epopeias” do Caçambi e do Pavuna e o êxito recente
dos pavilhões da Exposição, fez um discurso na hora da champanha, indo
depois os noivos tirar retrato na saleta de música. Salas e corredores repletos
de professores, chefes de seção, rapazes fardados, moças deslumbrantes,
médicos de ar acessível, damas vistosas e crianças estouvadas. O sobrado,
antes tão esquivo, fulgurava agora de opiniões, flores, joias, plumas e elogios.
Duas fileiras de carros lá fora tornavam menos recôndita a rua em rampa e
em curva.
Virgínia, à saída dos noivos, ouviu uma senhora das relações da
família Cintra dizer a dona Laurinda: — É sim. Com três asas. Uma, de
mansidão. Outra, de beleza. A terceira, aquele violino que ainda a torna
mais extraterrena.
De fato. Mansidão, beleza e espiritualidade. Virgínia, que na Europa
sempre vira o filho cerimonioso mas atento às moças durante as recepções,
cuidando-o interessado por uma belga em Spa e por uma genovesa em
Rapallo, não estranhava absolutamente que ele, tendo tido tantas
oportunidades, logo ao regressar decidisse absorver-se pelo mistério da
vizinha reclusa. E que nas mansões do Surrey, nos castelos de Ilha de França,
nos hotéis das encostas de Villeneuve, nos jardins encantados da Riviera,
jamais vira um tom louro de cabelos e um azul infinito de olhos
comparáveis aos de Emília e concorrendo para a impressão de beleza e de
mansuetude seráfica existente no semblante aporcelanado, no sorriso meigo
e na voz cândida.
O Casal voltou ao Cosme Velho para um estágio apenas de duas
semanas porque Carlos, segundo já soubera e comunicara, foi promovido e
esperava apenas a transferência para Lorena.

***

Durante meses, dona Laurinda ao receber cartas telefonava para


Virgínia que logo as permutava com as que recebera por sua vez. Quanto
aos retratos mandados, não levantavam desavenças porque eram iguais os
remetidos para as duas residências.
No ano seguinte o casal voltou ao Rio, de licença, conforme avisos e
informações, cujo tema pressuroso era a promessa dum neto e cuja
consequência imediata fora um novo desafio para este outro enxoval menos
dispendioso porém mais alvoroçante. Após consultas médicas e provas de
laboratório, o estratagema foi tirar às sortes em qual das duas casas aguardar
o nascituro, pois o médico especificou determinada data não muito vaga.
Mas, certa noite Virgínia, atendendo ao telefone, é chamada à pressa e
acode um tanto apreensiva. Ao chegar vê uma ambulância parada no portão.
Que significava aquilo, se uma hora antes chegara à casa deixando todos
bem? Sim, todos; só Emília com uma indisposição lânguida...
Quarenta minutos depois Emília é levada para a Casa de Saúde Pedro
Ernesto, com uma espécie de contrações epileptiformes caracterizando uma
autointoxicação. Ah! Que alvoroço incrível!
Ao cabo de duas noites e um dia, atacada de eclampsia, muito
violácea, lustrosa, inchada, com ar de monstro marinho jogado à praia,
Emília morre, com um grande pasmo de interrogação na fisionomia.
Quando foi embora de vez para aquele reino de que até então tinha
sido uma simples exilada, não parecia mais, apesar do vestido branco, um
anjo franzino. Agora, assim loura e clara, crescida e rude, era uma espécie de
valquíria afogada...
Em dado momento na capela mortuária, uma senhora das relações da
família Nunes explicava ao respectivo esposo formalizado: — Pelo que o
médico disse, isso é muito raro nas estatísticas...
— Raro o quê? Morre-se de qualquer jeito. Basta estar vivo.
— Não é isso. O extraordinário é a criança ter escapado.
Contudo Virgínia, em lágrimas, assim que o filho sentou ao seu lado
no carro quando o cortejo se pôs em movimento, teve a intuição de que o
perdera de vez. Durante o percurso, conquanto estivesse com a mão na dela,
Carlos, marasmado e abstrato, parecia inteirar-se do modo de arranjar um
passaporte para onde Emília tornara a ocultar-se.
Algumas semanas depois de viver sentado junto da mãe com a cabeça
naquele ombro que era a sua última laje de refrigério e sombra, preparou
suas coisas para regressar a Lorena.
Virgínia e Laurinda dividiram entre si a roupa de Emília; Laurinda
guardou a parte que lhe coube numa arca; Virgínia, num oratório. Carlos
apartou aqueles livros que levara e trouxera. Não queria saber mais dos
volumes. Não tinham sentido nenhum. Emília os lera, logo não podia mais
vê-los. Jogou-os para dentro da fragata “Kuimbaé”, aquela miniatura dum
metro feita quase dezoito anos antes pelo pai, por ele e por tio Maurício. O
pai... Ah! Esse fora alegre, radiante, até mesmo na morte, subindo para o
mistério como uma rolha de champanha.
Olhou para a pequena fragata com aquele lastro trágico a bordo,
limpou demoradamente a boca amarga, fechou a mala.
IX
O TERCEIRO SARCÓFAGO INÚTIL

AS PRIMEIRAS cartas e os raros telefonemas interurbanos logo


convenceram Virgínia que Carlos deixara o filho no colo da avó, o enxoval
da esposa na arca e no oratório, os livros de juventude como lastro no
“Kuimbaé” — tudo como uma carga consignada a um trapiche de
recordações lacradas — e vivia agora em Lorena a envenenar-se com doses
duma filosofia amarga. No último telefonema, por exemplo, pedia que lhe
remetesse três livros. Um de Nietzsche, outro de Lubbock e outro de
Queyrat.
— Para que queres tu isso? Estão velhos, com as folhas soltas, cheios
de anotações amalucadas de teu avô!
— Mande assim mesmo...
E Carlos respondia com monossílabos às interrogações sobre a saúde
e a alma; perguntava apenas o essencial sobre o filho Fernando. Se antes já
mudara tanto desde a morte do pai, agora deixara de vez quaisquer laivos
fortuitos de alegria. Era lacônico e reservado, desdenhava manifestações
extremadas de amor filial ou paterno. Em noivo e como esposo jamais tivera
um lirismo exuberante; seus sentimentos antes de mais nada se revestiam
duma dignidade tácita. Pobre Carlos! A antiga criança radiosa das tardes à
beira da Lagoa era agora um moço taciturno, acabrunhado inexoravelmente.
Na última conversa pelo telefone Virgínia consultou-o de modo
insistente e mesmo autoritário sobre uma combinação sempre adiada: ela e o
neto viverem com ele. Ao voltar para Lorena Carlos dissera que isso seria
resolvido em cartas e telefonemas assim que se definisse sua situação,
mesmo porque precisava fazer o curso do Estado-Maior. Mas a verdade é
que evitava falar no assunto. Virgínia declarou então que ia arrumar as suas
coisas e as do neto e que embarcaria naquela semana com uma excelente
ama de confiança.
— Não, não, não!
— Carlos! Em lugar dessas encomendas de livros soturnos trata de
resolver o que é essencial.
— Fernando acha-se em ótimas mãos; logo, não podia estar melhor.
Quanto a mim, não sei se resolvo fazer o curso do Estado-Maior. Penso mais
em arranjar transferência para uma guarnição longínqua, de fronteira. Mãe,
onde é que acaba o desespero e começa a resignação?...
— Por que uma fronteira distante, e não perto de tua mãe e de teu
filho? Lembra-te daquele trecho de Homero em Ulisses: “Conservo tições
sob a cinza anegrada dentro mesmo do meu campo, para que não suceda ter
que ir buscar noutra parte a semente do fogo”. Carlos, não te acompanhei à
Europa? Que significa então não estarmos juntos aqui na pátria? Isso tem
sentido? Escuta: hoje é dia 1.º de julho. Vou dispor as coisas, arranjar quem
tome conta da casa e embarco sábado!
— Não, não, não! Irei buscar a senhora e Fernando, caso verifique a
impossibilidade de fazer o curso. Preciso arranjar casa em condições, aqui.
Telefono-lhe uma noite dessas. Adeus.
Cinco dias depois, estando Virgínia no quarto do neto, com a ama, eis
que Maurício (que nunca aparecia em casa àquelas horas) irrompe, entra
pelo quarto adentro e diz de chofre:
— Veja o que está em todos os jornais! Na cidade inteira não se fala
em outra coisa. Não sabe? Revolução em São Paulo chefiada pelo general
Isidoro. Telefonei para aqui diversas vezes, estava sempre em comunicação!
Virgínia entregou o netinho à ama, foi com Maurício para a sala de
jantar, leu A Noite bem aberta sobre a mesa, depois O Globo. Ficou
profundamente aflita, telefonou para duas ou três casas de famílias de
oficiais amigos de Carlos, mas só obteve informes demasiado sucintos. Pediu
uma ligação interurbana para Lorena. Foi-lhe dito que estavam canceladas
as ligações. Insistiu à noite. Foi informada de que o tronco continuava
interrompido.
Na manhã seguinte atende pressurosa ao telefone. Chamado de
Minas. Era tia Judite, nervosa, dizendo que o Eusébio chegara fugido da Alta
Mogiana por ser “bernardista”... Isso chocou Virgínia, criou a suposição de
que o movimento deveria alastrar-se; só então se deu conta de que
subconscientemente aceitava a hipótese de que Carlos houvesse aderido. Tia
Judite fazia votos para que Carlos tivesse juízo!
Dias e noites de intensa agitação e angústia. Virgínia ora sozinha,
fazendo cálculos, ora trocando impressões e comentários com Maurício,
dona Laurinda, o dr. Nunes, sobre o que publicavam os jornais censurados.
Saiu diversas vezes e fez determinadas visitas sensatas a ver se colhia
informes seguros sobre o paradeiro e a atitude do filho. Por fim, resolveu
providenciar um salvo-conduto para Lorena. Não através da Polícia
diretamente, mas indo ao Quartel-General, explicando a conhecidos de
Carlos o seu intento. Encontrou óbices explanados com evasivas. Estava
decidida a deixar Fernando com dona Laurinda.
Acabou tendo a comunicação (desagradável para quem lha deu e
angustiosa para ela) de que Carlos aderira antes mesmo do dia do
movimento, tendo nas vésperas seguido para a cidade de São Paulo, onde
estava em ação. Virgínia retirou-se sem que o tenente-coronel sequer se
levantasse para acompanhá-la até ao corredor...
Escusado dizer que esperou todos aqueles dias uma carta ou alguma
visita secreta por incumbência do filho.
Em dada manhã os jornais publicaram que, devido à atitude do
Governo e o início de bombardeio coercitivo da capital bandeirante, os
revoltosos a haviam abandonado. As edições da tarde contavam que eles se
tinham dirigido para Bauru.
Virgínia leu isso com o neto no colo e o apertou não por especial
emoção advinda dessa notícia em si; mas porque de súbito se lhe apresentou
o passado, o presente e até mesmo o futuro; e porque viu e sentiu que era
necessário livrar e defender Fernando duma espécie de força aspiradora e
redemoinhante que, por alguma lei de constância, parecia escolher e
destinar os varões da família para sacrifícios trágicos, elegendo-a
sinistramente como testemunha dos períodos rítmicos dessa condição. Que
destino seu era esse?

***

Assim, durante seis anos, tempo esse lento como a traslação dum
século, e todo ele estruturado em ânsia e angústia, não especificado em
informes, pelo contrário constituído só de dúvidas e apreensões, áreas
opacas de mistério e perplexidade, sem fórmulas nem métodos possíveis de
comunicação, obtendo de longe em longe apenas certezas sumárias e rudes
que no mais das vezes só lhe chegavam através de lenda difusa embora
expressassem verdade categórica — e por isso a deixando mais zonza do que
a negação empastada e lúgubre de qualquer notícia — Virgínia foi sofrendo
os juros compostos da adversidade que em dois lances, (a morte do marido e
o desaparecimento da nora) já transformara sua vida numa angústia trágica.
Maurício insinuava-se em labirintos de informações desencontradas à
cata duma notícia recente e concreta. Os pais de Emília rodeavam Virgínia
de atenções solícitas. Mas Virgínia perseguia o filho com mais ardor e com a
mesma dificuldade do que as tropas legalistas. Ela e o Governo lhe iam no
encalço, mas Carlos se livrara não em fugas e desistências, mas pela tática do
movimento. Deixara o mar, a costa, que nada tinham que lhe dar, antes lhe
haviam roubado tudo, despojando-o até mesmo daquele alforje de
recordações (o casarão do Jardim Botânico, as risadas e abraços do pai, os
carinhos e conselhos da mãe, os cenários e deslumbramentos do Surrey, da
Ilha de França, da chã de Villeneuve, dos jardins da Riviera, a placidez de
Cosme Velho, o sortilégio beatífico do “angelo musicante”, o cabelo revolto
do pimpolho) e acreditava agora, fanaticamente, só na terra, homiziando-se
nela, exilando-se na aura da ilegalidade, largando a pátria periférica para se
apoderar, sentir, percorrer, ser dono da topografia inconsútil dum chão
sempre ao seu dispor.
Bauru. A primeira sensação dum malogro provisório. Necessidade
dum reajustamento. A primeira verificação de que não existia
homogeneidade de ideias. (Ou de ideais?) Que havia duas opções sempre
em tudo... A errada e a certa. A dos outros, a oficial. E a de alguns e dele.
A seguir, as barrancas do Paraná. A pátria com suas vísceras de
cenário estático e dinâmico; mas a pátria reservada em potencial. Que eram
ali naquelas paragens os seus companheiros e ele? Glóbulos sanguíneos,
quase uma trombose no vaso popliteu da pátria?
A marcha para Iguaçu. A realidade e a mística, o ímpeto e a estratégia,
o cálculo e a pertinácia, para a formação dum campo magnético, para um
enrolamento de primário e secundário como nas bobinas de alta indução.
O malogro de Catanduvas, depois de sete meses de lutas e marchas até
Campos do Mourão...
Agora, um roteiro de formigas sobre manchas de umidade grumosa,
mas que macroscopicamente, em escala real de quilômetros, paralelos e
longitudes, não eram manchas em zarcão e clorofila, mas sim Mato Grosso,
Goiás, Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
outra vez Bahia, Minas, Goiás, Mato Grosso.

***

Virgínia fora despojada do filho no sentido de não o ter mais ali junto
de si nem de Fernando. Passara a ser paradoxalmente irreal e ausente
porque, posto em termos de filho e de pai, se tornara um mito; porque,
posto em termos de soldado e oficial, não estava em nenhum quadro da
legalidade, mas fazia parte dum grupamento tático, alhures. Como filho e
pai se desagregara do lar, e como soldado e oficial saíra dos quartéis, mas se
tornara difuso, legendarizado, núcleo de boatos e constas onde os episódios
se iam deformando em mística. Dera para estudar sociologia, marxismo,
optara pela Esquerda, vivia nos subterrâneos da clandestinidade.
Mesmo ausente, não ficara reduzido a esquema de lembranças,
porque o anuviava a apoteose, esse consenso brusco, imediato de louvor,
essa teoria amorfa de apreciação transubstanciando realidades e fatos.
Virgínia olhava para o mapa do percurso, e seu dedo traçava uma
linha de roteiro. Mas naqueles seis anos aquela linha do mapa sempre se
aproximava cada vez mais, como um fio que gradualmente viesse invadindo
e transpassando seus olhos qual diâmetro de quilômetros trazendo em sua
superfície rios, serras, chapadões, florestas, cansaços, noites, dias, percursos,
vigílias, desesperos, obstinações. E durante aqueles seis anos ela arrancava
para estudo e avaliação os componentes dessa linha tornada agora horizonte
total.
Rios. (Manhã fria junto à corredeira; uma escolta espera junto à
fogueira de hipotéticas barcas trazendo munições, víveres e remédios.)
Serras. (Relevos dum dorso eriçado de matas e pedras e que lá de
cima patenteiam vastidões.)
Chapadões. (Noção de perspectiva inexistente, já que tudo assim ao
sol é um êxtase de eterno primeiro plano.)
Florestas. (A abertura de picadas de cem, duzentos quilômetros de
recesso da selva interposta entre eles e o objetivo a empolgar.)
Cansaços. (Molambos humanos, ora mansos, ora brutais, formando
trânsitos enviesados e já agora ralos nos crepúsculos constritores ou nas
madrugadas em expansão.)
Noites. (A presença do pensamento e da saudade, do desânimo e do
cálculo, dos sons e da treva, do inseto e da fera, da ferida e da cicatriz, da
inanidade das coisas e da ronda milenar da fome, da doença e do ideal.)
Dias. (Soma das veracidades e das surpresas, das contingências e das
determinações, dos malogros e dos exemplos, das vitórias e dos desvios, das
esperas e das ações, dos embates e dos sóis.)
Percursos. (Apa. Rio Pardo, Anápolis, São Romão, Picos, Crateús,
Boqueirão, Piancó, Umburana, Tabuleiro, Tucanos, Ouricuri, Jurumenha,
Olhos d’Água, Planaltina, Campo Formoso, Córrego de Estrela, Pilões,
Colônia do Sangradouro, Rio das Mortes, Rio Manso, Pantanal...)
Vigílias. (A recordação de casa. Duma rua de Paris ou de Gênova.
Duma estátua, dum cipreste. Do jardim do Cosme Velho. Da capela
mortuária da Casa de Saúde. Daquela frase materna sobre as brasas
enterradas...)
Desesperos. (Aquela manhã no colégio... A saída da aula. Os
jornaleiros bradando a explosão do Aquidabã. Aquela tarde em que fechara
o caixão onde não mais anjo franzino, louro e azul, mas valquíria violácea,
inchada, disforme, Emília jazia, depois de ter dado à luz Fernando... Que
criança era essa, que destino, que força trazia para assim, ao irromper,
quebrar os portais do sacrário?)
Obstinações. (Sim. Seis anos de teima, não por orgulho, nem por
insensível disposição de pertinácias vãs... mas por alguma coisa que era
mensagem e ação, escondendo sob a cinza os tições no campo para que
houvesse sempre, aqui e acolá, sementes de fogo.)

***

Agora, no estrangeiro, estava ali naquele café, depois de outra


temporada em Gaiba. Durava dois anos já o autêntico exílio. E o ex-colega
de Santo Inácio, um piloto do Lloyd, que já servira duas vezes de estafeta
depois que Carlos fora localizado, ouvia com atenção, decorando e
taquigrafando as recomendações de Carlos.
Que Maurício não viesse. Que não lhe remetessem roupas nem
dinheiro. Que estava estudando propostas de próceres da Aliança, tendo até
por causa disso estado em Montevidéu. Que assim que decidisse seguir
telegrafaria em código comercial para essa firma de café por atacado da rua
São Bento dando a cotação (a data). Que Maurício ou a mãe fosse já a São
Paulo pôr-se em contato com Fulano e Beltrano.
Sete dias depois Anselmo, o piloto do Lloyd, chegava ao Rio, ia a
Cosme Velho, expunha tudo. A emoção de Virgínia, como vinte e dois dias
antes. As perguntas. O entusiasmo lacrimoso. O longo texto taquigrafado
(mas sem a menor referência aos projetos, por precaução). Os informes
verbais referentes à Revolução. Sim, os políticos se interessavam pela
rapaziada da Coluna. Esta se oferecia como um grupo técnico e
experimentado, mas exigia sinceridade na doutrina que a Aliança pregava, e
compromissos de sua aplicação.
— Como está ele?
E Anselmo a contar, minuciosamente, pormenor a pormenor, diante
daquele semblante atento:
— Carlos esfregou a ponta do cigarro na beirada do pires, fitou-me,
sorriu. Depois se recostou para trás, passou as mãos pelos cabelos, começou
a dizer, como se pensasse alto: “Eles vão fazer a Revolução. E têm vindo
procurar-nos trazendo documentação e credenciais, porque sabem que não
podemos acreditar num conglomerado heterogêneo de profissionais da
política. A alguns pergunto se já leram Marx, Engels, Fourier. E a um
membro proeminente do governo gaúcho, que me disse que iriam dos
Pampas ao Rio em tempo normal de transporte de tropas por via férrea,
respondi que estava bem, sempre era melhor porque eu, por exemplo, para
chegar não a uma capital de funcionários, mas à orla do Planalto Central,
levara algum tempinho para transpor com a minha gente a serra do Rio
Bonito tendo sido obrigado a vadear Correntes, o Verdinho, o Meia Ponte,
afluentes do Paraná. Que isso de rios por aquelas bandas era uma praga, pois
ainda tive que atravessar o rio Maranhão, o Descoberto e o Urucaia, o
Peruaçu e o Carinhanha, esbarrando porém logo a seguir na serra de São
Domingos... Para quê? Porque era preciso ir enterrando tições no campo,
debaixo da cinza, para haver sementes de fogo por aí além. Então o gaúcho
sacou e apertou o isqueiro, ofereceu-se para reacender o meu cigarro
apagado!”
***

Dias depois, o guarda-livros da firma atacadista da rua São Bento veio


entregar o telegrama cifrado. Ainda bem que Maurício já chegara de São
Paulo trazendo a certeza de que a articulação do movimento oferecia bases
sólidas. E lá partiu Maurício de novo para Santos agora, a fim de esperar
Carlos num avião...
Sempre a ilegalidade. Ainda a ilegalidade. A condição do passaporte
falso, da entrada secreta, do esconderijo predeterminado.
Ainda no mês passado Virgínia fora a Olaria, de táxi, para encontrar-
se com o tenente França, comparticipante da Coluna, que estava no Rio
escondido, estabelecendo ligações. Fora para quê, se não atuava em nada,
aguardava apenas o filho? Para receber aquela primeira carta depois de seis
anos.
De regresso, tirou de dentro do oratório o enxoval de Emília, que
arrumou nas gavetas e armários do antigo quarto do casal. Disse a Fernando
que papai ia chegar. Fernando exigiu de dentro da fragata “Kuimbaé” aquele
volume ilustrado da Saga de Frithof, porque tinha figuras de heróis.
Fernando! Moreno como o pai e com os olhos azuis da mãe! Tinha
seis anos, já lia quase tudo. Quis ler inclusive a carta do pai, escrita a
máquina. Corria pela casa, arrastava-se por baixo das mesas e do piano,
galgava a serra do Lajeado.
Quis vestir calças compridas, para esperar o pai. Sim, este chegaria.
Mas, segredo, hein? Tanto que o cadeado passou a aprisionar o portão, e ele
próprio foi submetido a censura rigorosa pela Idalina, a ama seca. Os
coleguinhas de brinquedos foram barrados no gradil. O acesso à casa dos
avós (mais adiante, onde a rua começa a subir e a fazer curva) foi impedido
por contingências de severa fiscalização.
Compreendeu. Não abriu o bico. Só se referia ao pai deitado na cama,
de noite, quando a casa já estava fechada e apagada.
— Quando é que ele chega? — sussurrava.
— Qualquer dia...
— Vem a cavalo? Fardado? Com barba?
— Trate de dormir.
Ah! Carlos ia chegar. Aleixo e Artur colhidos pelo mar, lá estavam
nesse mar por onde ela, Virgínia, passara quatro vezes, e ele, Carlos, duas
vezes. Que é o mar, com relação à pátria? Que são as águas paradoxalmente
chamadas de territoriais? A terra, sim, era a pátria. O sogro e o marido
tinham sido vítimas da traição desse mar aí. Mas o filho, apreendera
estoicamente a ciência e o engenho da superação. Se durante aqueles seis
anos alguns companheiros seus estavam usufruindo vida anônima e normal
em deveres de rotina, àquela hora da noite talvez nalgum cinema, passeio,
visita, distribuídos ao léu de injunções medíocres, o filho chegaria não para
a apoteose, mas se esgueirando ainda pelo último bastidor, depois de ter
sido fragmento de mercúrio se arrebentando pelo sertão, fulgurando ao rés
dos rios, cintilando através do quadriculado dos Estados, bolha metálica
derramada. Também não aceitara a mística de mártir confinado em
Fernando de Noronha, em Dois Rios ou na Detenção, atento talvez a anistias
acenadas ou se sujeitando à vida civil, provisória ou amorfa.
Virgínia compreendia dum certo modo que a vida de Carlos
correspondia a uma espécie de fusão da própria vida com a do pai que não
tivera tempo de realizar-se. Seu empreendimento era pessoal no ímpeto e
tinha também algo da preocupação deixada como herança. Carlos
desempenhava a missão de duas gerações.
Virgínia depois da última notícia do malogro de 24, suportou e
compreendeu por intuição aquela ausência cada vez mais distante e lendária
do filho, e jamais o esperou como um foragido noturno, porque acreditava
numa outra chegada longínqua mas propícia. E desde o desfecho de
Catanduvas, se desinteressou de vez de tudo que não fosse a sua única
atribuição permanente: criar Fernando, e acompanhar o filho.
O dr. Nunes, já não mais um alto funcionário da Prefeitura, mas
engenheiro dinâmico absorto em construções de alta monta pelo centro da
cidade e em Copacabana, cujas fisionomias meãs estava modificando,
naquele intervalo de seis anos, desde a morte da filha, recebeu e cumpriu as
procurações recebidas de dona Virgínia.
Esta, presa em casa pelos encargos de avó e pelo desinteresse total
duma vida que não fosse a que dedicava a educar o neto e dignificar o filho,
nem tempo tinha de sair. As poucas vezes que foi ao centro para assinar
coisas em tabelião, entrar nalgum Banco ou repartição pública, estranhava
as modificações do trajeto e do centro da cidade, desde as novas linhas de
ônibus, pois havia agora o bairro da Cinelândia com arranha-céus e a
Esplanada do Castelo. Esta já se ia configurando num aspecto inédito atrás
da Policlínica, do Jockey Club, da Escola de Belas-Artes e da Biblioteca
Nacional, havendo ruas e avenidas com nomes inteiramente novos. Aquele
trecho do aterro e grande parte diante do Monroe e do Passeio Público se
modificaram; os lances de ajardinamento tinham alterado o trecho de
outrora. Quanto a Copacabana, o dr. Nunes insistia sempre sobre as
transformações desde o Leme até Ipanema, fazia-lhe ver que o imenso
terreno deixado na antiga Praia de Fora pelo coronel Aleixo valia agora uma
fortuna. Assim, sua ideia era derrubar as casas existentes na avenida
Atlântica e na rua Nossa Senhora de Copacabana (e que junto com o
pardieiro de Jardim Botânico constituíam a renda módica de dona Virgínia)
e levantar ali dois arranha-céus. Não, não se incomodasse nem se afligisse!
Não seria preciso fazer empréstimo na Caixa Econômica nem hipotecar o
terreno. Com as abas que venderia, pois o lote era enorme, dando para
quatro ruas, ergueria dois blocos de apartamentos. Quanto à chácara do
Jardim Botânico, abriria ruas, venderia lotes e ainda ficaria com espaço para
um arranha-céu... Os tempos estavam mudados. Agora ele não trabalhava
mais na Baixada. Pois o próprio sertão não fora lancetado de Sul a Norte
pela Coluna, com o genro entre seus desbravadores? Outros tempos!
De fato, com a vinda de Carlos que chegaria incógnito a Santos num
avião, outros tempos iam começar. Para ela. Para a família. Para a política.
Para a pátria. Dizia “pátria” sem atitudes de arrebatamento dum “porque-
me-ufanismo” retórico, sem tolerar sequer a conceituação do sublime
teórico. Isso era para antologias. A pátria real, o chão, o povo; disso tinha
agora uma noção vera, estruturada em dialética.
Mas naquela cruz onde se viu pregada em 1906, onde em 1924 foi
posta em pé, desequilibrada no baque abrupto do penúltimo ato da sua
paixão, viu agora, depois da esponja de fel, do golpe lateral, chegar a hora
sexta da consumação.

***

Aquele mar! Esse mar aí, devia ou não odiá-lo?!


Oceano maldito, que tragava os varões da família! Aleixo atirado
como lingueta de chumbo lá ao largo da Bahia. Artur estilhaçado em jato
sem que os escafandristas lhe achassem sequer as postas na vasa de
Jacuecanga. E agora, depois da ânsia da espera, da contagem das horas, do
cálculo da chegada do filho, da imaginação radiante do primeiro encontro,
do primeiro abraço, depois da estranheza do telefonema de São Paulo
tardando horas e horas, ah!...
Sim. Essas coisas estão escritas, predeterminadas. A isso se chama o
Fado. A isso se chama a Tragédia. Dor, é isso só. Desgraça, luto, hecatombe,
catástrofe são fórmulas verbais para dizer isso de fora. Porque o que isso é, o
que foi, o que vinha sendo na sua alma, no seu corpo, ela não diria a
ninguém por mero recato. Só diria uma noite longínqua a Fernando, se esse,
crescendo, viesse a merecer essa explicação.
Sim, ali estava, de braços abertos para trás, hirta, parada, diante de
Maurício e do Anselmo. Uma de suas mãos agarrava um jornal
amarfanhado, enquanto por sua alma, por seu corpo abaixo, passava aquele
peso dum avião querendo amerissar nas águas e na noite da sua desdita...
Enquanto na noite e nas águas da sua desdita surgia um homem corroído
pelo mistério, vindo de longe, duma toca, duma furna, querendo e
precisando atirar-se na amplidão noturna e infinita da sua mágoa, e nadar,
dar braçadas, bater com os pés em hélice, agarrar-se ao penhasco do
coração, atingir o litoral do carinho materno, resfolegar, estirar-se, dormir,
banhado por espumas de beijos...
Aquela vastidão noturna e infinita era um horizonte de rajadas frias,
de ventos empastados; e aquelas águas grossas eram gelo dúctil, gelatina de
tragédias, coágulos de desvalimento... E o homem que, com o cinturão
amarrado nas ilhargas, vira o avião hesitar e pousar de leve, aquele corpo
que se desprendera, que aparecera na asa sondando a direção da praia,
esperando a vaga propícia, que sabia que naquele mar estava o avô e estava o
pai, ampliou o peito, esticou o queixo, ondulou o ombro e se jogou no mar,
com brio, com esperança, com o rumo certo, depois do noviciado de seis
anos!
Mas seu corpo sofre a câimbra da hora densa, absorve a densidade
polar daquele reino, sofre as leis de morgadio que o chamam a contas. E já
não é o nadador, agora é o náufrago. Homologa-se ao abismo de que é o
centro ao rés das águas, distende-se, flutua, fica à mercê das vagas e só
afunda depois que um sol baixo, manchado de horrores místicos, o
identifica...
SEGUNDA PARTE

“A certa altura da desgraça não se é mais capaz de suportar que ela


continue, nem que se cesse.”
Simone Weil
X
O PARQUE E AS ESTÁTUAS

O PORTÃO estava aberto, de modo que o automóvel parou a alguns


metros e o casal — que sempre se interessara por aquela residência — saltou,
deu alguns passos e tocou a campainha.
Um parque, soerguendo-se adiante num promontório cuja casa tinha
uma vista estupenda, e descendo em rampa impressionantemente bela até à
praia particular.
Ninguém atendeu. Tornaram a tocar a campainha, entraram,
detiveram-se contemplando oito estátuas de tamanho natural que
contornavam a rampa na parte onde árvores interrompiam a uniformidade
do gramado. Representariam o quê? A mulher considerou que devia ser
qualquer coisa simbólica. O homem disse que não. E como a paisagem
atraísse e empolgasse, prosseguiram até à casa, esperaram um pouco e, não
resistindo à tentação, chegaram à amurada. Que beleza! A cornija extensa da
Avenida Niemeyer à esquerda, ao longe. Depois aquele trecho do Golf Club
até à vegetação, entremostrando os telhados baixos, de São Conrado. À
direita, a orla dourada e verde até ao Joá, o resto da paisagem como que
rodando em blocos violáceos em torno do eixo da Gávea. Unindo tudo isso,
a serra, o oceano e a luz.
Voltaram e bateram diante da fachada. Por fim, resolveram descer o
primeiro lance, porque descobriram lá embaixo a sala principal; tinha até
uma parede de vidro. Residência moderna, feita talvez por algum discípulo
de Max Bill. Antes da praia se erguia um pavilhão onde brilhavam um
automóvel e uma lancha. Assim que a senhora chegou rente ao andar
inferior chamou o marido com gesto insistente; e ficaram ambos observando
uma série de coisas estranhas naquele estúdio envidraçado a que a vegetação
dava um ar de aquário. Mas eis que um indivíduo barbudo e esquisito se
levantou lá dentro e puxou a cortina inteiriça, tapando tudo.
Aquela noção de felicidade alheia vedada fez o casal retirar-se. Marido
e mulher afastaram-se, subiram desapontados a rampa, e já estavam em
cima, perto das estátuas e se dirigiam para o portão quando apareceu um
criado. E a senhora, ao menos para especificar o motivo da entrada e da
curiosidade, perguntou se os proprietários, acaso não venderiam aquela
residência. E o marido esclareceu melhor:
— Tudo. Casa e terreno. A praia também. Conforme está.
O criado, o jardineiro Inácio, fez que não com a cabeça. E como havia
uma respeitabilidade irônica naquela negativa (ele meneava o queixo dum
lado para outro em arcos de cento e oitenta graus) o casal saiu para a
estrada, logo recuando porém para um lado. É que dava a volta, para entrar,
um carro de corridas guiado por um rapaz com roupa de polo, botas,
calções, colete e sweater, tendo ao lado uma senhora grisalha. E o casal ainda
recuou mais porque, com as rédeas presas no carro, vinham atrás,
garbosamente galopando, dois cavalos com as respectivas selas vazias.
A Alfa deteve-se. A senhora grisalha saltou, e o carro, descendo a
rampa, foi parar lá embaixo, dentro do galpão.
Da estrada, o casal espiava por uma fresta da sebe. E o homem disse à
mulher depois, já no automóvel, ao engrenar em direção ao Leblon:
— Estamos perdendo tempo. Não vendem!

***

Quando Virgínia enviuvou em 1906, ela e o filho ficaram


proprietários da chácara do Jardim Botânico e do terreno (o areal!...) de
Copacabana que o coronel Aleixo adquirira ao tempo em que, atravessando
Sacopenapã, se chegava a um litoral chamado a Praia de Fora. Em 1912,
antes portanto de embarcar para a Europa, quando já morava no Cosme
Velho e a chácara do Jardim Botânico virava casa de cômodos, consentiu
que o pai, o dr. Gama, mandasse fazer uma casa na frente do terreno de
Copacabana. Sua renda, portanto, eram aqueles dois aluguéis. Seus bens: um
solar desmantelado, uma casa art nouveau feita por um mestre de obras.
Com a morte do pai, em 1918, herdou a casa do Cosme Velho e um depósito
bancário que aplicou construindo outra casa para renda nos fundos do vasto
terreno à beira-mar; sim, do lado onde passava bonde, na Rua Nossa
Senhora de Copacabana.
Tempos depois da morte de Emília, quando Carlos se metera na
revolução permanente, o dr. Nunes, engenheiro, conseguiu despejar o
inquilino fictício que explorava o casarão do Jardim Botânico. E, tempos
depois da morte do genro em 1930, botou o pardieiro abaixo, abriu quatro
ruas e passou a vender lotes. Simultaneamente, munido sempre de
procuração de Virgínia — que não queria saber de nada, tal o estado em que
andava sua alma — vendeu os lados direito e esquerdo do terreno de
Copacabana, deixando a frente e os fundos.
Assim, em 1936, com a importância total das vendas dos lotes das
quatro ruas abertas entre a Lagoa e a rua Jardim Botânico — onde já se
erguiam vivendas admiráveis — e dos dois flancos do terreno de
Copacabana, passou a construir metodicamente um arranha-céu de catorze
andares na Avenida Atlântica. Deixou, todavia, o prédio antigo, com enorme
quintal, alugado na Rua Nossa Senhora de Copacabana a uma casa de
móveis e a uma mercearia e, em cima, a um dentista e a uma pensão. Só dois
anos depois derrubou esse sobrado e levantou um arranha-céu de doze
andares, com uma galeria embaixo. Distribuiu os andares em apartamentos,
e destinou o rés do chão para um cinema e um banco, segundo já previra na
planta e na construção. E tratou de acelerar as obras dum conjunto de
apartamentos, em três blocos sucessivos, com dois pátios, na frente
(poupada para tal fim) do velho terreno de Jardim Botânico. A casa do
Cosme Velho ficava de reserva.
Não conseguiu uma só vez que Virgínia durante a primeira
construção se abalasse para ir ver as obras. Só quando o último prédio já
estava em meio, foi que ela subiu no elevador de obras por entre andaimes, e
isso mesmo para atender aos rogos do neto Fernando. E dali, em automóvel,
é que foi conhecer por dentro, direito, os dois blocos de Copacabana por
onde passara meia dúzia de vezes muito de relance. Mas, quando começou a
guerra, já morava na Ponta do Marisco havia dois anos.
A residência funcional aderida no promontório e rodeada pelo
parque panteísta não era projeto de Max Bill, ou discípulos. Foi desenho e
realização do dr. Nunes, avô de Fernando e pai de Emília; desde 1932 andava
com a sua tabuleta de engenheiro construtor em muitos andaimes da zona
bancária, das avenidas novas da Esplanada e das ruas internas de
Copacabana. O funcionário público que com trinta e poucos anos drenava o
Pontal e o Pavuna, agora estava no seu elemento vocacional. Penitenciava-se
perante a cidade dos monstrengos que se vira obrigado a erguer nos recintos
das exposições de 1908 e 1922.
Evidentemente, estando “com a mão na massa”, o dr. Nunes haveria de
querer que terrenos do neto servissem para demonstrar a capacidade
urbanística e arquitetônica do avô. E assim, por via indireta, ocasional
mesmo, Virgínia, enclausurada no Cosme Velho, se vira ironicamente rica
quando, alheada de tudo, só pensava em desviar o neto do signo fatídico dos
antepassados. E agora, nessa manhã de domingo, Fernando (ao vir do polo)
a pegara na porta da igrejinha de São Conrado. Mas como havia de supor
isso aquele casal? O que marido e mulher viram foi um rapaz e uma dama
chegando do Golf Club.

***

Quando o pai morreu num desastre de avião no estuário do Prata,


Fernando já lia e escrevia regularmente. Não tardou que Maurício,
aposentado, passasse a ser seu preceptor, logo averiguando a vivacidade do
sobrinho e aluno que tão pequeno se interessava pela Revolução
Constitucionalista e, já rapazola, discutia com os vizinhos Mílton e Lauro o
golpe de Estado de 37, debicando muito o primo Eusébio, deputado pela
Alta Mogiana, que perdera a cadeira.
Aos quinze anos achava-se capacitado para cursar qualquer
Faculdade; contudo, a avó, que sempre o trouxera na mais ampla liberdade
dentro da casa do Cosme Velho, mas com cadeado passado no portão e idas
à cidade só na companhia de tio Maurício, mal consentindo em amizades
escolhidas (apenas o Júlio, o Lauro e o Mílton, de boas famílias da
vizinhança), o fechara quando adolescente ali naquele parque à beira-mar,
como se pretendesse fazer dele um príncipe de promontório num regime de
Côte d’Azur. É que Virgínia se convencera de que deveria viver junto do mar
já que o sogro, o marido e o filho estavam mortos no Atlântico; e decidira
criar o neto numa espécie de extraterritorialidade que o livrasse do contato
com a adversidade. A primitiva ideia fora educá-lo imunizando-o, de modo
a realizar-se numa esfera excepcional de valor humano. Fernando sabia
como uma espécie de saga doméstica, o fim do bisavô Aleixo, do bisavô
Gama, a morte do avô na explosão do Aquidabã, a marcha da Coluna
revolucionária pelo Brasil, a morte do pai nas águas do Prata, e que sua avó
Virgínia, perdidas todas as amarras com a felicidade, se valia dele e o
poupava como única esperança.
As antigas camaradagens foram trazidas ali para dentro como cobaias
de experiência. Lauro, estudante e literato, trazia as contribuições do
mundo, era uma espécie de locutor e comentarista. Mílton, médico recém-
formado, o mais velho do grupo, significava a vocação científica, e seu
último projeto era a fundação dum Banco de Sangue, já dispondo de sede e
de doadores classificados. Júlio, o antigo caçador bisonho de borboletas na
Ladeira do Ascurra e no Silvestre, era o artista aloucado. Chegara duma
segunda viagem à Europa em 1938 (a primeira tendo sido feita na
adolescência), e usava agora uma barba à Marcel Gimond, seu professor de
escultura. Submetera-se a curso intensivo com Bourdelle e Maillol, os
críticos duma primeira exposição viram nele influências de Hans Arni, e
aquelas três estátuas do parque bem como as outras e as telas que o casal
visitante entreviu pelo vidro eram produção sua. Prezava Virgínia e
Fernando a ponto de instalar ali entre o parque e a praia o seu estúdio; quase
não saía, a não ser para percorrer as matas do maciço Carioca e os litorais da
Gávea e da Barra da Tijuca a fim de escolher blocos de pedra e fazê-las
transportar para o atelier; alimentava também, nediamente, uma
esquizofrenia diagnosticada numa clínica suíça, bem caracterizada pela
barba, pela cabeleira, pelos silêncios, pelos passeios rudes, pelo
comportamento e pela arte; e, principalmente, pela sujeição a Virgínia e a
Fernando, e pelo desdém a Mílton e a Lauro.
A consequência da primeira viagem à Europa, fora Júlio submeter-se
à natureza e às suas forças; plasmava uma série de formas que tinham
correlações de pesos e planos imitando exotismos de pedras, troncos e
metais; vivia folheando revistas de arte a ver o que faziam Moore, Adams e
Gonzalez: procuras de analogias poéticas com o reino vegetal e mineral.
Regressando da segunda viagem, moço feito, com aquela barba em voga em
Saint-Germain-des-Prés, vinha desapontado com a sua primitiva arte, pois
aquilo que cuidara essencial vira exposto feito adorno nas vitrinas de Colette
Alendy. Esqueceu pois Tajiri e Righetti, até mesmo Beothy e Lardera,
compenetrando-se de quanta razão tinha a sensata e lúcida Virgínia.
De fato; já naquele tempo ela lhe dissera:
— Que mania é essa? A natureza já fez isso nos rios e nas praias, nas
florestas e nas grutas. Para que enrolou tanto assim em espirais esta barra
dum quarto de polegada? Quis fazer uma bobina, sem perceber? Isso as
usinas já fazem. Neste caso, se quer ir às madres, escolha coisas mais antigas:
os mitos!
Aconteceu que Fernando, com uma inteligência aguda e uma cultura
invulgar para a sua idade, desabrochou ali como uma força dionisíaca igual
à do avô Artur, e aquele regime quase insular acabou redundando em coisa
muito outra do que Virgínia se propusera obter. Na verdade ela fora para
aquele promontório a fim de velar as memórias principalmente do pai, do
sogro, do marido e do filho e vigiar a mocidade do neto, receosa de que o
destino o escolhesse também para um fim abrupto. Mas a desenvoltura da
personalidade vivaz e excepcional de Fernando transformou aquela clausura
num reino órfico, e o que antes fora escolhido como promontório de
santuário e colônia de afastamento passou a ser para Fernando mirante e
quermesse.
Evidentemente Virgínia jamais lhe dissera que o estava apartando,
sonegando; muito menos lhe deu as razões da existência definitiva ali
naquele recanto; procurara por outros processos infiltrar-lhe
subconscientemente a percepção dum comportamento que, se parecia
panteístico, era na verdade nostálgico e complexo. Ela, a avó recalcada,
escolhera aquele ermo; mas o avô Nunes, dinâmico, o transformara num
páramo. Assim, o eleito e prisioneiro se sentiu entre a adolescência e a
mocidade, numa aura onde o mar e a terra, a inteligência e a sensibilidade
acentuavam lances das vidas supostas de Orestes e Hipólito, Zagreu e
Dionísio.
Dessa forma, ele passou também a dominar Júlio, como dominava
Lauro e Mílton. Lauro era seu informante da rotina. Mílton era a sua
enciclopédia; Júlio passou a ser seu artesão.

***

Naquela manhã, ao saltar da Alfa Romeo, assim que o Alberto segurou


as rédeas dos animais e os desajaezou (mesmo porque a falta de gasolina e as
manhas do gasogênio tinham transformado obrigatoriamente o antigo
motorista em cocheiro também), tão logo Fernando saiu do lavabo em
calção de banho, já Lauro o imitava pulando para o dorso dos alazões. E
enquanto ambos metiam os cavalos nas vagas, Lauro informava que aquele
cachorro do Laval fora nomeado chefe do governo de Vichy — fato esse que
fazia a Nanny andar chorando — que os ingleses tinham desembarcado em
Madagáscar, mas que... Corregidor caíra, o mesmo estando para se dar de
certo com Sebastopol.
Mas passou baixo um avião, espantando os animais, e os dois, como
as rãs da fábula, se atiraram n’água. Os alazões voltaram simetricamente
para os respectivos boxes, e os dois amigos acabaram daí a dez minutos
surgindo no estúdio.
Mílton, atrás do balcãozinho do bar cravado de conchas, seixos e
raízes, com uma atenção técnica de laboratório, disse:
— Desta vez não estou fazendo um Frisco ou um Between the sheets.
Prove! Beba! Fiz a fórmula do Inositol que age no crescimento dos
camundongos e do fermento. Para o Lauro adotei a fórmula do ácido
pantotético, que beneficia os frangos!
Diante duma fileira de vidrinhos de nanquim de todas as cores Júlio,
debruçado numa prancha enviesada, fazia composições abstratas lá num
ângulo todo rodeado de samambaias gigantescas, enquanto imitava o
vozeirão do Robson cantando Wagon Wheels.
Ah! Os tempos diferem e com eles as gerações e as coisas. Fernando,
escarrapachado ali na rede, não poderia ter uma ideia sequer do que fora o
porão do solar do Jardim Botânico, porque o estúdio, apesar de conter junto
do bar as antigas peças das coleções antropológicas, etnográficas e
folclóricas do porão ao tempo do bisavô, do avô e do pai — a galeota
“Kuimbaé”, imagens quebradas de santos do Recôncavo, opas de Vila Rica,
oratórios do Maranhão, ex-votos de São Francisco, figuras de proas, pilhas e
mais pilhas de revistas — dispunha de doze metros ladeados por uma
parede inteiriça de vidro com fórmulas plásticas da vida pela qual devia
optar. Sim, a inércia da existência autêntica a que o obrigara a avó, não
obstante o dinheiro, automóveis, lancha, avião, biblioteca, roupas e a
natureza.
Assim, a mentalidade de Fernando, criado e educado em moldes
especiais, reagira reflexamente contra a clausura e a extraterritorialidade,
optara pela condição humana; mas aceitava o paradigma dos mitos. Afinal,
mitos eram todos os seus. A avó, confinada ali, sofrendo o sortilégio dum
campo imantado de saudades, não era ao mesmo tempo Andrômaca,
Hécuba, Electra e Cassandra, as estátuas femininas em simetria com as
estátuas masculinas do parque? Pois Fernando não se vinha habituando à
arte de aplicar aos seus e a si as alegorias? Não só porque tio Maurício o
enfronhara em autores gregos, como também porque a avó Virgínia, tendo
falhado em sua autoridade e em seus desígnios, arranjara um estratagema
para mantê-lo de alcateia.
Qual o estratagema? Obrigar Júlio a deixar a escultura da primeira
fase, fazer-se estatuário, conformar antropologicamente os mitos. E tão bem
se houve a avó Virgínia, que ele, Fernando, passou a interessar-se, a discutir
com Júlio, a posar para esculturas, a não aceitar quaisquer soluções plásticas,
a insistir até as peças de pedra constituírem deveras significados nítidos.
Estes tinham que corresponder portanto a estados de alma, de paixão, de
virtude. Corporizar reações à contingência humana. Expor aspectos das
injunções do Fado.
Assim, enquanto Mílton, aboletado no beliche da lancha “Ibonocori”
estudava, procurando descobrir um meio de evitar que o oxigênio do ar
destruísse o ácido ascórbico existente na laranja, no limão e na pimenta, por
exemplo; enquanto Mauro deitado na grama, de short Scoops, munido de
óculos Ray-Ban, ouvia o Inácio, aparando as aglaias, lhe contar suas
“memórias” dos tempos em que fora baleiro de bonde no Matoso, engraxate
de porta de tabelião na Rua do Rosário, porteiro do consultório do dr.
Gama, jardineiro da casa do Cosme Velho, vigia das obras do dr. Nunes,
descrevendo como os fatos mais belos a que assistira na sua vida, o enterro
do barão do Rio Branco, a vitória dos Tenentes do Diabo na terça-feira gorda
do carnaval de 1912, a “função” do Circo Sarrasani e a chegada do “Jaú”;
Júlio e Fernando, no galpão envidraçado, levavam horas discutindo as
interpretações de Miguel Ângelo, Ticiano, Rubens e Moreau, quanto ao tema
Prometeu.
E era o fascínio do tema, ou talvez a alegoria do mesmo, que ao
entardecer (quando Mílton e Maurício exaltavam a genialidade do coronel
Aleixo, pois que tantos anos depois de sua morte a ciência verificava que o
hexágono é o meio mais simples de indicar o grupo benzeno de seis
carbonos e os hidrogênios ligados a ele) os levava a encher garrafas térmicas,
dispostos os dois a passar a noite no alto da pedra da Gávea. Lá iam,
Fernando e Júlio, estrada acima; depois se metiam pelo mato, escalavam a
Pedra Bonita, passavam para o outro bloco violáceo empolgando-o por
entre a chaminé adequada, grimpavam pelas arestas. Por fim, batidos de
vento, se estiravam no centro do crepúsculo.
Lá, a setecentos e cinquenta metros, o adolescente olímpico e o
escultor hirsuto aguardavam a noite, dominavam a orla apagada da cidade
em blackout, o tabuleiro fosforescente dos subúrbios, e acabavam dormindo
ao relento, traspassados de eflúvios, naquela cúspide rodeada de
constelações.
Ou sumiam uma semana, a bordo da lancha, iam até Cabo Frio
pescar no mar alto espécimes de “olho de boi” ou de “agulhões de vela”, para
o que dispunham de todos os apetrechos.
XI
“LA BELLE, SI TU VOULAIS...”

FERNANDO, dirigindo a “Ibonocori” em alta velocidade e entrando


na Guanabara como uma traça descrevendo uma curva na superfície dum
espelho, dizia a Nanny sentada ao seu lado com os cabelos ao vento:
— Visto vovó Virgínia não me deixar ser coisa alguma, avanço ao léu
do acaso a ver se as escoltas do destino me perseguem por eu estar
infringindo dispositivos. Por exemplo: esta baía tem para vingar-se da
minha autossuficiência 55 metros de profundidade aqui na barra. Achando
pouco, geralmente entro por aqui no Culver, a mil metros. Mas, Nanny, não
receie nada. A natureza só se vinga dos desacatos rasteiros. O trapezista é
respeitado por dispor de espaço; já o mineiro, abrindo um veio estreito, de
repente irrita a terra que com um solavanco de grisu o encrava no xisto
betuminoso. Também não estou escandalizando a paisagem. Aqui nesta
lancha estou apenas fazendo com amor e devotamento o que mal pôde fazer
Cardim. Se você, por exemplo, por ouvir falar e para ser-me agradável,
disser que isto é mais bonito do que a enseada de Nápoles, o Bósforo, a baía
de Sidney, o porto de Bombaim, a angra de Trincomalee, a foz do Forth etc.
está bem. Nisso estará procurando desfazer a injustiça de Gobineau, seu
patrício remoto. Mas eu estou apenas amando o pedaço mais belo do
mundo, contemplando-o nas manhãs límpidas. Logo não escandalizo a
paisagem como qualquer anglo-saxão que ancora em La Condamine apenas
para opor à beleza dos Alpes Marítimos o escárnio da sua riqueza. Logo, isto
posto, com licença! Tome conta da direção!!
E já na enseada, do lado da Urca, ficou em pé, deu um pulo de rã,
atirou-se nas águas. Nanny, acostumada às facécias panteístas de Fernando,
apenas se pôs a rodeá-lo em ampla circunferência, depois desligou o motor e
esperou que ele subisse pela ré, todo lustroso de água e sol.
— Vamos voltar para Copacabana.
Manhã radiosa. O maciço da Carioca era um esplendor de tons
violáceos nas penhas e de tons esmeraldinos nas florestas. A areia formava
uma orla em hemiciclo onde, como numa composição de De Staël, os
arranha-céus pareciam sínteses cúbicas. Mas, aproximando mais a
“Ibonocori” da praia, os postos balneários com enxames de gente davam a
impressão dum feriado periódico sob revérberos.
A proa reluzente abria a epiderme de alabastro enrugando-a em duas
bainhas de jade. Pormenores de vida, automóveis, toldos, janelas, varandas,
grupos humanos ondulavam na orla híbrida. À esquerda, rematando tudo
geometricamente, o horizonte tenso como um limite de líquido rente à
porcelana do céu.
No Posto 5 a “Ibonocori”, dirigida por Nanny, aproou para duas
figuras de celulose que acenavam e que acabaram por jogar-se na água.
Dentro em pouco escalavam seu bordo, Lauro, sardento e ofegante, e Júlio,
barbudo e esquelético. Instalaram-se na popa, e a lancha, em elegante curva,
se afastou rumo ao Forte, passou ao largo do Arpoador, tirou uma reta para
os Dois Irmãos, tornou-se mínima e volúvel debaixo da cornija da Avenida
Niemeyer, e daí a algum tempo parava junto à praia particular na Ponta do
Marisco. Lauro e Júlio desceram, como exploradores cautelosos,
informaram-se com o motorista Alberto e o jardineiro Inácio, fizeram
acenos para a lancha, foram ajudar a puxá-la entre os rolos de vagas; e, por
fim, Nanny desceu incógnita naqueles domínios que lhe eram vedados.
Sim, a avó Virgínia tinha ido passar o dia em Cosme Velho, com os
Nunes. O carro do engenheiro viera buscá-la. A Constança e a Luzia, mais o
filho, estavam de folga.
Com que então era esse o parque! E Nanny, tirando os óculos azuis,
calçando os sapatos Patakwa de feltro, subindo pela areia dourada,
integrando-se no primeiro cenário de penhascos e troncos, olhava para o
parque, para a reserva florestal, a casa, o promontório, com uma atenção
nervosa, andando vagarosamente. No pavilhão, se abeirou do bar onde o
Mílton logo caprichou um coquetel sob aqueles despojos de etnografia que
pareciam estampas para uma edição numerada. Depois, quis ver o estúdio.
Com que então era ali que Júlio, obedecendo a Dona Virgínia,
compunha em blocos os símbolos dos mitos, transformando-os em homens
e mulheres!
— Sim, laboratório! — explicou-lhe Fernando. — Isso tudo que aí
está, essas estátuas solenes, quase sinistras, são meus preceptores de
disponibilidade! Veja as caras!
De fato os rostos eram de Fernando. E Nanny ouvia com atenção
submissa as preleções rápidas de Júlio sobre aquelas alegorias.
Saíram, começando a subir a rampa. Detiveram-se diante das estátuas
que Nanny já sabia o que significavam. Examinou os rostos. Eram diferentes
em idade, mas os mesmos. Sabia que uns, os de mulheres, eram variantes
fisionômicas de dona Virgínia; e os outros variantes da fisionomia de
Fernando.
Ali no recanto em rampa perdiam seu sentido mítico, eram espécimes
de beleza neutra. Mas, examinadas de frente, a pequena distância, tinham
majestade e definição sobre-humana.
Subiram mais. Ladearam o corpo da residência, que Nanny apenas
examinou da porta de cristal, como quem olha para uma joia superposta por
uma redoma; foram para a amurada.
Com que então era dali que a avó Virgínia velava o mar alto, as ilhas
rudes, a serra violácea, o litoral agreste...
Almoçaram lá embaixo, no estúdio, servidos pelo Alberto.
Disseminaram-se pelas redes, na hora antipática do sol a pino. Nanny
observava as plantas, o jardim em declive, as estátuas, as paredes, o trecho
intato de mata. Ouvia Fernando contar como a avó Virgínia comprara
aquele barranco de pedra e mato despencado sobre o mar; como o avô
Nunes o transformara num jardim de Nice ou Menton; como aquele
recanto, destinado a retiro e fortim, sonegando-o do mundo como uma
gruta, perdera qualquer aspecto de tabernáculo soturno, era hoje admirável
residência tropical.
Mas, o que Fernando ignorava era que aquilo na verdade era a estufa,
o viveiro onde a avó, sem saber, o estava criando para, quando chegasse ao
ponto desejado pelos fados, estes mandarem as escoltas buscá-lo, assim
nédio e votivo, para o altar...
Era signo e herança. Os exemplos retrospectivos estavam no destino
dos antepassados mortos no Atlântico. De início, ela o criara incógnito, sob
cadeado, lá na aba de mato do Cosme Velho. Depois, querendo estar
simbolicamente perto dos seus, se transferira para junto do mar onde, dali
daquela atalaia, cumpria o voto de nunca se separar dos desaparecidos. E
erguera sebes e muros; criara postos legendários, os grandes mitos, como
sentinelas rente à estrada, para guardarem o neto... Ele, porém, com a alegria
panteística do avô, transformara aquela beira de esconderijo numa encosta
olímpica, procurava com a sua alegria exorcizar a avó, livrá-la da aura
nostálgica, reinseri-la na paisagem natural.

***

Fernando mandou que Inácio guardasse a “Ibonocori” na garagem,


despediu-se de Lauro e Júlio, subiu de carro para a estrada, com Nanny. Mas,
lá em cima, ela pediu que parasse um pouco, saltou, apoiou-se à sebe, esteve
longo tempo examinando, triste e humilhada, aquela vivenda...
Voltou para o carro, com os olhos cheios de lágrimas. Fernando
compreendeu, disse, disfarçando a intenção:
— Contei tudo, sim, todo o nosso caso, a tio Maurício. Quem você é,
donde veio, o que representa na minha vida, as circunstâncias que a retêm
aqui, além da aparentemente principal, que é a guerra. E sei que tio
Maurício contou à avó Virgínia, tendo ela se informado através de perguntas
que evidenciaram simpatia.
— Se você fala assim para tirar qualquer tristeza ou mágoa produzida
por esta visita clandestina, obrigada. De fato fiquei triste vendo isso aí
embaixo. Levo comigo a impressão da avó Virgínia em seus vários aspectos:
antes e depois do destino a afligir. Tão bonita aos dezessete anos, mas já
triste, por intuição. E agora, ainda bonita principalmente porque soube fazer
da sua desgraça um recato de dignidade. Assim, já não mentirei dizendo a
você que estava com os olhos cheios de água porque isso aí embaixo me fez
recordar o Cap Ferrat. Eu nasci em Villefranche, na beira não do mar, mas
duma ribeira. Sou triste de nascença, talvez por isso. O mar, para quem
nasce junto dele, lava e leva as tristezas da nossa condição. Mas as ribeiras
que descem das montanhas, são como lágrimas descendo por um rosto,
marcam os poros por onde passam... Para onde vamos? Para o Joá? Não.
Não gosto de lá aos domingos.
— Então vamos para Jacarepaguá, jogar golfe.
— Não. Acho estúpido. Gramar-se uma encosta, perfurá-la
infinitesimalmente e levar horas a dar lambadas numa bola para que ela,
assustada como um coelhinho, se esconda em buracos, acho ingenuidade de
anedota anglo-saxã. É como num grande cenário ao ar livre, se deixar que
funcione uma troupe de fantoches. Vamos para a rua Tonelero ouvir música.
Os domingos me entristecem porque vejo como as pessoas procuram em
vão esquecer o ritmo inexorável das semanas... Você e o Júlio têm dormido
na Pedra Bonita e na Gávea? Preciso ir dormir lá outra vez... Gosto da
montanha onde uma pessoa se integra às matas, às cachoeiras, aos bichos,
aos insetos. Por exemplo, na Mantiqueira, lembra-se? A barraca. Os vales.
Os cumes. Os horizontes ondulantes.
— Podemos ir de novo. Sozinhos.

***

No apartamento da rua Tonelero, abriram o pequenino bar e ligaram


a vitrola. Nanny preparou um Dubonnet com gelo moído, pôs a girar uns
discos de canções suas, de modo que os dois, estirados no divã, bebericavam
e ouviam.
— Quando me ouço cantando o repertório da Boyer, da Chanterelle
ou da Lamy, não as imito. Sinto-me eu própria, bem verídica, diferente do
que sou aparentemente, na realidade...
— Como assim?
— Porque me sinto instrumento, veio de coisas inefáveis, antigas e
eternas. A doçura feminina, que existe nas baladas antigas, não se polui,
antes se clarifica como essas águas que quanto mais se despenham mais são
cristalinas.
— Desligue a vitrola e cante você em pessoa.
— Não. Quero deixar de existir, de transmitir; quero surpreender,
analisar apenas a minha voz, sem mim. Faça o mesmo. Eu estou aqui, como
sou. E ambos, daqui, como somos, ou melhor, conforme nos sentimos hoje,
conforme a semana e o domingo nos deixaram, ouvimos aquilo que em
mim está acima e fora das semanas e dos domingos, que é minha voz só,
viva e sem mais nada, instrumento tão sincero de minha interpretação que o
que eu canto não é absolutamente uma canção popular do Delfinado, uma
composição de Lenoir ou uma berceuse de Godard, mas sim a verdade do
meu coração... a minha ternura.
— Godard!... Minha mãe tocava trechos de Godard no violino.
— Esses seus olhos azuis são dela, não?
— Nanny, outro Dubonnet! Não é paradoxal se sentir saudades de
quem nunca conhecemos? Não tenho a mínima memória de meu pai.
Minha mãe morreu ao me dar à luz. Pois bem, essa voz aí, a voz de você, ou
o estilo da música, não sei... tudo isso ligado com o que tenho ouvido vovó
Virgínia contar, me causou agora uma saudade lancinante de minha mãe e
de meu pai... Nanny, desligue essa vitrola.
E bebia, mastigava o gelo moído, convidava-a para sair.
Lá ficaram na pérgola em redor da piscina do Palace, bebericando
mais, conversando esses assuntos que são como teias envolvendo duas
pessoas.
Nanny falava-lhe de Villefranche, do Mediterrâneo, das pedras da
ribeira, das flores da Côte d’Azur, da felicidade que parece se exilar naquela
orla entre os Alpes e o mar, tal qual em ponto pequeno a avó Virgínia quis
fazer ali na Gávea.
Falava da tia Geneviève que alugava a casa a pensionistas que vinham
da Itália, da França, da Inglaterra... Ah! A tia Geneviève! Os hotéis de Cap
Ferrat viviam cheios, e todas as manhãs chegavam casais de automóvel,
querendo o sossego daquele remanso. As duas arrumavam os quartos,
serviam a mesa, não tinham um momento de folga. Um dia chegou um
senhor com uma capa de três palas, barbicha, óculos, uma pasta. Era
compositor. Viveu acolá dois anos, orquestrando composições próprias.
Servia-se de Nanny para aferir resultados, já que ela aprendera música em
Marselha. E instigara tia Geneviève, de modo que dentro dum ano estava
Nanny cantando em Nice e em San Remo, fazendo contratos. Depois, um
homem. As decepções, Paris. O mundo do disco. Do rádio. Das excursões. A
guerra. O Fernando.
— Tio Maurício falou à avó Virgínia sobre mim... O quê?
— Falou bem de você.
— Mas tive que ir incógnita, ver o promontório...
— É que a avó Virgínia ainda não ouviu sua voz. Aqueles discos,
inclusive “La Belle, si tu voulais...” só os tocamos embaixo, no estúdio. Mas,
escute, hoje vou levar aquele outro, de Godard. A música que mamãe
tocava...
Jantaram no grill room do Palace, num ambiente cosmopolita. Foram
a um cinema ver um filme dirigido por Duvivier. Assistiram-no de mãos
dadas, como noivos.
Ao retirar-se para casa, deixando Nanny na rua Tonelero e ficando de
voltar às onze horas, Fernando lhe disse:
— O disco...! Assim. Há que armar uns alçapões ao destino. Ou ele
chega abruptamente em disfarce de escolta e nos leva para seus campos de
concentração, ou nós lhe armamos uns ardis para que adie ou acelere seus
embustes.

***

Voltou às onze horas, assoviou lá de baixo, perto da árvore de sempre,


subiu, contou logo, radiante:
— Quando a avó Virgínia chegou do Cosme Velho eu, assim que vi o
carro entrar, pus o disco na vitrola. Fui aguardá-la, beijei-a, trouxe-a para
dentro. Sentou-se, dizendo: “Cansei-me... Este pleonasmo da velhice...”
Entortou a cabeça, a ouvir com atenção, pediu-me que repetisse, ficou
escutando com um sorriso complacente, depois disse: “A voz, não sei de
quem é. O violino que a acompanha me faz lembrar o de sua mãe. Pobre
violino, quieto, mudo, desde tantos anos, no seu estojo de camurça aí na
biblioteca!” Ergueu-se, tirou o chapéu e as luvas, pegou no disco,
aproximou-o da luz do abajur, quis ler, mas a vista cansada não a ajudava.
Então li pronunciando bem o nome de você.
— E então?
— Então ela comentou, antes de subir: “A Berceuse, de Godard...
Fernando, essa música é o que hoje em dia se chama um prefixo lírico para
certos anúncios de rádio. Mas, quando seu pai se apaixonou por sua mãe no
Cosme Velho, durante meses e meses esta música foi a única e estrita
comunicação de seus sentimentos recíprocos”. Aproximou o disco do rosto,
como quem quer desvendar um círculo de treva, repetiu seu nome. Ora,
para mim isso foi mais do que uma concessão. Deixei o disco lá na vitrola.
Nisto o telefone tocou. Era Lauro:
— Tudo azul?
— Sim.
— Pode-se ir até aí beber e ouvir uns discos? O pessoal de sempre.
— Venham. Assoviem embaixo para eu descer e abrir a porta do
prédio.
Daí a meia hora o apartamento parecia mesmo um atelier, pois, o
Júlio com sua barbinha em filete tipo Gimond, desenhava os grupos
sentados no divã, nas poltronas e no chão, sobre almofadas, enquanto Lauro
tocava piano e Mílton servia bebidas feitas por ele. O Telmo dançava entre a
sacada e portal, com uma garota queimadíssima do Posto 5, campeã de
natação de Copacabana. Fernando e um convidado anônimo, universitário,
debatiam a Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, a Terceira
Reunião dos Chanceleres, a hipótese do Brasil romper suas relações com a
Alemanha, o Japão e a Itália.
Por fim, como obrigassem o Lauro a largar o piano, começou a
audição dos discos de Nanny. Era interessante vê-la sentada no divã, de
pernas cruzadas, ouvindo a própria voz enquanto bebia Málaga e acariciava
a cabeça de Fernando que, livre já da dialética do universitário, prestava
atenção naquelas palavras cálidas.
O serão prolongou-se, como sempre, até de madrugada. O Telmo, em
estado de choque, reclinado no ombro da nadadora, ouvia com um feitio
patusco o visitante anônimo pespegar-lhe a doutrina de Unamuno sobre a
filosofia vitalista. Lauro, em estado de coma, depois de beber doses e mais
doses de uísque e de emendar cigarros intatos em pontas quase extintas,
repetia, já como ventríloquo, os textos fanhosos e guturais de cada disco. Os
cinzeiros, repletos, as garrafas sempre em nível decrescente, o Mílton a
mudar os discos, Nanny a enternecer-se com a própria voz que corporizava
visões de Paris... tudo isso obrigou Júlio a evocar com traços dignos de
Dignimont e Oberlé, as fachadas de La Rotonde, de Le Dôme, de La Source e
de Les Deux Magots. Acabou mesmo fazendo um croqui de Lauro bêbado e
despenteado. O desenho, mostrado de mão em mão, teve o elogio do
visitante anônimo que disse:
— Nem Bécan, pintando Dullin, faria coisa melhor.
Levou uma vaia, o que o fez ficar mais à vontade e aceitar uma dose
de gin.
Já a aurora se anunciava quando o bando saiu em dois grupos,
deixando no tapete, perto do rodapé, um monte de discos fora dos
respectivos envelopes, vários copos no peitoril da sacada e uma atmosfera
densa de tabaco e álcool. Fernando deixou que Nanny guardasse os discos,
mas não consentiu que lavasse os copos nem recolhesse as garrafas.
Contudo, a ajudou a embrulhar em vários pedaços de jornais as quantidades
absurdas de pontas de cigarros que enchiam cinzeiros e pires. Os dois
ouviram o ruído dos baques sucessivos na sarjeta.
Na manhã seguinte, ao sair relativamente cedo da rua Tonelero,
deixou Nanny imersa em profundo sono, abraçada ao travesseiro. E
embaixo, na Rua Barata Ribeiro, ao adquirir os jornais, leu os títulos
imensos: O Brasil rompe relações com o Eixo.
Tais noitadas também se faziam e continuaram a ser feitas lá no
estúdio, na Gávea, mas sem a presença de Nanny. Lauro, ao piano, e Mílton
no bar, se encarregavam de dar movimentação às horas. Mas as conversas
eram difusas, variadas, abrangiam não somente relatos da guerra como
também coisas que perduram apesar dos políticos e dos generais. Sim, o
grupo era perspicaz, nada frívolo, abordando questões as mais interessantes
em quaisquer domínios.
Certa manhã, contudo, ao vir da casa de Nanny (isso meses e meses
depois da cena que exemplificou um aspecto noturno da rua Tonelero)
quando Fernando ia entrar em casa, na Gávea, lá estava a escolta do destino,
na estrada, perto do portão. Sim. Dois indivíduos fardados, vendo o
automóvel imbicar para o parque, se aproximaram fazendo sinal e, com uma
saudação discreta, um deles indagou se se tratava de Fernando Gama e
Cintra. Ante a resposta positiva lhe foi feita entrega dum envelope de ofício
do Ministério da Guerra.
— Tem resposta?
— Não senhor. Sempre às ordens.
Deixou o carro na entrada do galpão, para o Alberto ou o Inácio o
lavarem, subiu a rampa lendo o conteúdo daquele ofício cheio de carimbos.
— Ahn! Ahn! Convocação. Tenho que me apresentar ao CA e, depois,
ao JMS. Ahn! Ahn!
Dobrou tudo, enfiou no bolso, e já ia entrando no vestíbulo quando
parou:
— A Berceuse... O disco de Nanny!
Sentada numa poltrona, a avó submetia aquela voz a um teste de
sinceridade.
Como não conviesse apresentar-se assim, chegando da rua àquelas
horas, sinal de que dormira fora, recuou, desceu, foi preparar-se para uma
desculpa. Qual? O melhor era inspirar-se nadando. Foi o que fez.
XII
A SANÇÃO

21-IX-43 — Djalma chamou-me para fora do vagão; fomos para a


plataforma onde ele me disse encolhendo um ombro e ajeitando os cabelos:
— Desta vez, rapaz, nós dois estamos tralhados; vamos para o beleléu.
Pega isto aqui, guarda bem escondido, depois lê, decora, rasga em pedacinhos e
joga na linha. É uma cópia datilografada, que o Meireles me passou em
segredo, da Portaria Ministerial no 47-44. Tirou-a do Boletim Reservado.
Repara só na data: 13 de agosto, rapaz! Não te digo mais nada... A
organização inclui o Regimento Sampaio, o nosso, rapaz!
4-X-43 — Depois de passar uma hora em “decúbito de gangorra”,
segundo sua própria expressão, o Meireles saiu da cadeira do dentista que lhe
obturou sete dentes, veio para o nosso grupo, bateu no peito fazendo estrépito,
exclamou:
— Peito bom, queixada boa, lá isso eu tenho. Mas, que sabemos nós de
guerra moderna? Não conheço o fuzil Garand, não sei como é o morteiro de
60 mm, não faço a menor ideia da metralhadora leve ponto trinta, do canhão
anticarro de 59 mm, do obus 105, da bazooca. Não pesco nada de radiofonia
nem de radiotelegrafia; para mim isso de minas, manipuladores de compressor
de ar e mortelete mecânico, é grego!
— Não se preocupe — advertiu-o o Djalma. — Nós somos da
Infantaria; esse negócio de que você está falando é e não é conosco. Isso tudo é
mais lá com o Grupo de Obuses Auto-Rebocado, com a Artilharia de Dorso,
com a Pesada Curta, com a tropa de Transmissões.
— Está certo, Gostosão! Mas nem mesmo essa gente de São Cristóvão,
de Campinho, de Quitaúna, do Grupo Escola, entende de guerra moderna!
Acho que nem a roupa que usamos serve para lá. Nem o calçado.
— Temos ou não temos o corpo? Pois chega, ora esta! A instrução não
tem sido dura? O treinamento não tem sido de cansar? Ou você acha que é
sopa fazer trinta quilômetros a pé duas vezes por semana? Aqui o Fernando
que aparentemente está na boa vida, comparado conosco, não leva até altas
horas traduzindo do inglês, com outros, uma porção de manuais de
adestramento?
23-III-44 — Hoje depois do desfile vou contar tudo à avó Virgínia. Na
noite de Natal não tive coragem. Ela está com 64 anos... E quando contarei a
Nanny?...
26-III-44 — Anteontem voltamos a pé para a Vila Militar, depois
daquelas horas de desfile pelo centro. Fiquei tão cansado que não tive ânimo
para ver a avó Virgínia. Mudei a roupa na casa do Lauro. Fugi para os braços
de Nanny, que me preparou um banho bem quente. Depois, quando lhe ia
contar minha partida próxima, dormi de cansaço... Ajoelhada no tapete, aos
pés da cama, Nanny fazia massagens nos meus pés inchados, dizendo: “—
Mon pauvre albatros...”
25-V-44 — Ontem, mais um aniversário de Tuiuti, novo desfile pela
cidade. Desta vez a v.ª DIE se apresentou em moldes norte-americanos,
caracteristicamente motorizada. Já não somos mais aqueles convocados
bisonhos que numa das Companhias do Regimento Sampaio envergonhavam
a unidade de escol parecendo baratas tontas, nas sessões de ordem unida, nas
aulas de adestramento e instrução especializada e, conforme a expressão do
sargento Elias, no “estouro da boiada” durante as marchas de treinamento.
Agora, o nosso complexo de inferioridade de paisanos já está quase
desrecalcado. Hoje, apesar do cansaço que é de supor que exista depois dum
desfile, surgiu uma novidade. Sim, pensamos até que estávamos num estúdio
cinematográfico. Começou o “faz de conta” de embarque e desembarque. Coisa
complicada. Apresentação e exame de placas de identidade; exibição das fichas
de saúde. Pior do que verificação de passaportes numa fronteira. Depois, haja
subir para invisíveis portalós galgando escadas de acesso a bordo; uma vez lá
em cima, toca a descer pelas redes do suposto tombadilho.
29-V-44 — A avó Virgínia, quando cheguei com a farda antiga, me fez
tanta festa que me vieram lágrimas aos olhos. Disse-me que parecia ter
adivinhado que eu ia aparecer pois ordenara um esplêndido jantar. Referiu-se
despreocupadamente à parada do dia 24 e perguntou se sempre era verdade
mesmo que um destacamento nacional ia para os campos de batalha. Saberia
eu dizer-lhe para onde? Para a África? Seria um efetivo grande ou, como na
guerra passada, uma coisa quase simbólica? Sim, na guerra de 14 acabáramos
mandando a missão médica. Lembrou-se e acrescentou: — “Isto é, quanto à
nossa Marinha, não foi nada simbólico. Há que ser justo.” — Achava que uma
resolução dessa natureza, uma vez tomada, devia objetivar-se em proporções
reais. Só havia um problema, uma questão difícil e complexa: se se devia ou
não tomar parte ativa na guerra.
— Sim, pois as vantagens da paz são muitas. Contudo...
E ponderou que, já que estava decidido, então se remetesse um efetivo
grande. Pedia perdão a Deus por estar dizendo coisas assim, naquela sua
idade. Imaginava que muitas mães, se a escutassem, decerto a amaldiçoariam.
— Não opino se se deve mandar ou não. Aos muitos motivos que tenho
para julgar que sim, se antepõem outros tantos. Consciência e lógica inibem-se
neste caso, que não é particular, mas universal. Contudo, já que está resolvido,
que não seja uma presença meramente simbólica só tendo de grande as
despesas.
Argumentei que seria um efetivo eficiente. Diversas remessas, com
certeza.
— Ah! Já não posso dizer que seja apenas simbólica a nossa
coparticipação. Bem, mudando de assunto: por que é que tem aparecido tão
raramente? Quase não telefona mais... Às vezes telefona para cá uma voz
estrangeira, de sotaque francês, creio eu, perguntando se você está. Amores, ou
algum amor? Um só é sempre muito maior do que vários conjuntos ou
simultâneos, não?
Respondi tangencialmente: que não aparecia por excesso de serviço.
— Já não está usufruindo as regalias de tradutor de manuais de
adestramento?
Antes de minha resposta ela se ergueu e acendeu a luz. Sentou diante de
mim, observou-me. Fitamo-nos por alguns segundos; eu, sorrindo, ela séria e
atenta. Considerou:
— Então, excesso de serviço?... Mas o trabalho impede que de vez em
quando converse comigo pelo telefone?
— Adestramento contínuo... Concentração...
— Pior do que a minha, que é de espírito?!
— Quero dizer: concentração da Primeira Divisão de Infantaria
Expedicionária. Já estamos concentrados em Grupamentos Táticos.
— Desde quando? — perguntou ela, sem entender.
— Praticamente, desde janeiro.
— Deste ano, não?
Estranhei a pergunta.
— Concentração desde janeiro de 1944, Fernando... E eu? Desde janeiro
de 1906, aprendendo a lutar contra o destino dos meus! A lutar em vão! Por
que não me contou que foi convocado para essa tal Primeira Divisão de
Infantaria Expedicionária? Por quê?!
Apanhado de supetão, redargui, zonzo:
— ... Convocado para esse fim, como? Fui convocado para o Exército,
por causa da idade...
— Fernando, não se faça de desentendido. E não disfarce nem me
engane. Achava então que era difícil me contar? Estudou, tentou, não teve
coragem, sumiu... Por que se ausentar antes da ausência real e forçosa? Não é
pior? Não é um contrassenso? E por que sumiu também de Copacabana? Essa
criatura telefona duas, três vezes, certas noites. E até altas horas.
— Vou dizer que não telefone mais.
— Não continue a disfarçar! Não responda assim! Bem sabe que não me
estou queixando de telefonemas. Estou apenas comprovando sua ausência de
locais, ausência essa que tem dado decerto margens a apreensões de natureza
muito diversa. Eu, porém, já sei de tudo, sem indagar nada. Não tive a
mínima desconfiança esta noite. De repente, fitando-o, foi como se seus olhos
me rogassem: “Disfarce, finja por enquanto que não entendeu, ajude-me,
coitado, que tenho perdido horas estudando a melhor maneira de contar”. Eu
sei há alguns minutos. Você sabe há alguns meses... Não compreende que eu já
o podia ter ajudado? Não compreende que me desfalcou, sumindo? Receio,
cautela, medo de causar-me sofrimento? A mim?! Quem mais habituada a
sofrer? Não os percalços da rotina, os desgostos domésticos, as dificuldades
mesquinhas, as intrigas das relações... Nada disso. Tal miséria me foi poupada.
Mas, algo diferente, as tragédias de vários atos.
A Constança apareceu na porta, cumprimentou-me risonha, disse que o
jantar estava servido. Erguemo-nos, fomos para a outra sala.
— Sente-se, Fernando. Está muito bem. Com que então a nossa
coparticipação não será simbólica... — E, sentando-se com altiva majestade,
para disfarçar o golpe que mais uma vez recebera do destino: — Contou a
Maurício?...
— Não, senhora.
— Não, mesmo?
— Ele soube não sei como e então me perguntou; neguei. Não adiantou.
Disse que tinha certeza e que no dia seguinte me levaria provas. Realmente.
Telefonou-me de manhã para o quartel perguntando quando era a minha
saída. Expliquei que naquela tarde e marquei a hora. Já o encontrei na porta
do quartel com vovô Nunes...
— Ah!... Então todos já sabem, menos eu. Está bem. Adiante.
— E tio Maurício me disse: “Fernando, seu Regimento vai partir
breve!... Como é que você faz uma coisa dessas, mantém sigilo, não conta
sequer a mim? Ou aqui a seu avô? Como vai ser quando sua avó Virgínia
souber?!...” Mas vovô Nunes disse: “Isso se arranja! Isso se arranja... Não está
certo. É apoio e sustentáculo duma avó. Isso se arranja...”
— Fernando, ligue já para casa de seu avô! Preciso falar com ele!
Quando foi isso? Ele ficou de providenciar? Você consentiu? Maurício
combinou? Proíbo terminantemente! Ligue para casa de seu avô, vamos!
Obedeci, aparvalhado.
— Boa noite, vovô. Bem, obrigado. Saí hoje, volto amanhã. Ainda passo
por aí. Escute, vovó quer falar com o senhor. Um momento.
— Boa noite. Como vai? E Laurinda? Está bem? Ouça. Eu sei do caso
de Fernando. Espero que vocês aí aceitem tudo com a mesma força de ânimo
com que eu aceito. E consideraria um agravo à memória de meu marido e de
meu filho qualquer tentativa visando a não partida dele. Eu sei. Eu sei bem.
Lógico que não se trataria de recursos ilícitos. Mesmo assim não consinto,
taxativamente. Bem, então obrigada. Lembranças a Laurinda. Quando
aparecem? Espero.
Sentamo-nos de novo à mesa. A avó Virgínia serviu a sopa, que
tomamos em silêncio. Quanto ao mais do jantar, quase o deixamos intato. Ela
ainda comeu uma fruta. E eu, queijo e goiabada, como quando criança, no
Cosme Velho; tão desapontado, tão infantilmente... Mas tomamos café, com
dignidade sobranceira, descendo para o estúdio cuja cortina a Constança
ampliara de ponta a ponta antes de acender o lustre.
Sentados diante das estátuas e de costas para as telas, conversamos.
Falei-lhe da organização do l.º Esquadrão de Embarque. Não só quanto
às tropas como sobre a Companhia de Manutenção, a de Intendência e de
Transmissões, o batalhão de Saúde, os altos elementos da Justiça Militar, os
capelães, os contadores, os pagadores, os correspondentes de jornais, etc. Dei-
lhe conta dos exercícios de embarque e desembarque em trens e em navios, da
obediência rija às diretivas e regulamentos, da necessidade da partida ser feita
em sigilo absoluto.
Ela não fez o mínimo comentário. Em seguida, com a sua clarividência
experimentada pela vida, começou a dar-me conselhos. Depois disso, que
durou mais de meia hora, entrou a fazer considerações gerais. Que era a
História Universal, agora ironicamente chamada História da Civilização, a
não ser relato saturante de guerras? Em todos os períodos. A bem dizer, em
todas as gerações. Disse das esperanças utópicas depois da paz de 19, do que
presenciara quando papai era adido militar à nossa delegação em Versalhes e
Genebra... Coitado! Um tenentezinho cheio de alamares fazendo séquito a
figurões com pastas, panças e calvas... Ainda bem que em 1924 largara
protocolos e se lançara num apostolado laico, dando seu exemplo de bom
entendedor de dialética!
Aí parou um pouco, emocionada, cruzou os pés, juntou as mãos ao colo,
e evocou tudo quanto ainda ontem, e na manhã de hoje, ouvira pelo rádio a
respeito do mundo. Lamentou viver para assistir a mais esta hecatombe.
Lamentou que eu não tivesse morrido com mamãe naquele mistério contra a
maternidade e a criação que é a eclampsia. Pediu perdão a Deus por estar
proferindo uma blasfêmia. Disse-me que esquecesse essa sua frase. Falou de
meu avô e de meu pai como personagens que o destino elegera para
contracenarem com ela numa tragédia tão além da capacidade humana de
sofrimento que acabara compreendendo, afinal, por que motivo Ésquilo e
Sófocles tinham procurado personagens quase mitológicos.
Levantou-se, andou pela sala, parando diante de cada estátua; e por fim
disse:
— Comprei este pedaço de terra por parecer comigo: uma montanha
desbrugada sobre o mar. Veio teu avô materno e fez deste promontório e desta
rampa um jardim do Mediterrâneo. Ainda assim, considerei isto um mirante
sobre esse túmulo imenso dos meus! E considerei isto uma clausura me
isolando do mundo e, principalmente, isolando você, Fernando, da rota das
desgraças. Aqui pretendi fazer um reinozinho menor do que um burgo místico
na Úmbria, onde pudesse poupar meu neto das escoltas do destino; onde
pudesse sonegá-lo da época; onde ele estivesse fechado enquanto uivasse a
insânia lá fora. Quis fazer de você, Fernando, o Poupado, ao menos. Mas todo
o meu empenho foi inútil. A solidão, na verdade, tem sido apenas minha. —
Sorriu com ar resignado, apontou para fora e para longe, para o mar e para o
horizonte — duas cores superpostas, bem densas. — Ouve este mar, Fernando?
Está ouvindo este mar? Devo odiá-lo? Ou não? Nele foi despejado como
lingueta de chumbo o cadáver de seu bisavô. Nele se abateu em estilhaços seu
avô. De encontro a ele caiu como um meteoro seu pai, o exilado. Nele, agora,
vai você para a guerra. Aqueles que me foram arrancados como pedaços da
alma e da carne, parecem, assim mortos, mais presentes do que nunca, porque
nessas águas estão como o sal. Odiei o mar quando fiquei viúva; execrei-o
desde que perdi meu filho. Onde estarão eles? A Eternidade, essa, não vejo
nem localizo. O mar é isso aí. Então vim para junto dele, como vigia, como
sentinela se rendendo a si própria. Que tenho sido eu nesta minha prolongada
existência senão uma carpideira? Aqui tenho que perdurar, mordendo as
pedras que as lembranças me atiram.
Sentou-se, disse baixo, como a pensar alto:
— Interessante. Lembro-me agora, olhando para aquilo ali. Uma tarde,
em Paris, descendo do Boulevard Saint-Germain para o Sena, passei por lojas
de arte, entrei numa delas por causa duma caixa. Exatamente aquele porta-
cigarros. — Levantou-se. Pegou a caixa, disse alto, como a ler. — Hécuba, de
Préault. — Virou a caixa. — Hécuba, de Bramer. — Rodou-a ainda: —
Hécuba, de Blondel. — Revirou-a ao contrário: — Hécuba, de Dorlling.
Voltou para a cadeira.
— Não se diga que romantizo a minha tragédia. Que me apego a
imagens como outros poderão apegar-se a santos. Não é isso. Por que motivo
comprei eu essa caixa acolá? Decerto para compenetrar-me um dia de que me
assemelho a Hécuba.
Ergueu-se, tocou a campainha, disse a Constança que fechasse o
estúdio, subiu comigo para o promontório, sentou-se no banco que marginava
a amurada em curva; e falou, como se eu já estivesse no mar:
— Fernando, copartícipe de todos os horrores, pois é de nossa família o
vezo do contato com a tragédia. Reservei-o sem querer para cordeiro de
holocausto. Aqui fico à espera do seu retorno. Volte com a paz, faça como
soldado o que o meu pobre filho não pôde fazer como tenentezinho adido a
delegações e congressos. Volte noivo da paz, a qualquer preço, que bem caro o
entrego ao sacrifício. E é impossível que, após os outros, desta vez não irrompa
o anjo que se interpôs entre Abraão e Isaac. — Abraçou-me e comentou: —
Para os críticos, estas imagens são literárias. Para nós que as sentimos são
verdadeiras.
Ficamos ali quietos diante do oceano para cuja percepção as estrelas
eram vãs. Mas nossos ouvidos captavam seu mistério familiar.
XIII
O ALBATROZ

1-VI-44 — Lembro-me do restante que se passou naquela grande noite.


Ao lado da avó Virgínia, sentindo a extraordinária criatura que ela era,
procurei evocar meu pai e minha mãe que eu só conhecia de retratos.
Mamãe sempre me pareceu um ser abstrato, o anjo de três asas. Jamais
a consegui englobar no mundo, no tempo. Seus olhos azuis, seus cabelos louros,
sua tez de porcelana, me parecem coisa inexistente na Criação. Contentava-me
em julgá-la de fato o “angelo musicante” de Fra Angélico. Muita vez, na
biblioteca, examinei aquele violino que suas mãos pegavam.
Como seria a sua voz? Como seriam as suas carícias? Considero que
não tomei o seu leite, que não recebi os seus beijos, que não me sentei sobre
seus joelhos, que não lhe enlacei o pescoço, que não me ensinou a rezar. E
resulta disso uma condição de desmemoriado, como se fosse impossível.
Quanto a meu pai, sempre me pareceu um ser concreto, real, de
caminhante percorrendo o chão da pátria a pé, identificando-se com ela, como
um ciclope. Quando lhe examino os retratos, de homem de botas, barbudo,
com a túnica mal-abotoada no peito, não o vejo como guerreiro e sim como
um lenhador cuja gruta fosse o mapa. Ei-lo sentado, como no Canto IX da
Odisseia, como se viesse de apascentar um rebanho e de depor um grande feixe
no chão. Tornou-se lendário, mas para mim é real, é paradigma.
Minha avó tirou-me destes pensamentos, perguntando-me de súbito:
— Quem é essa criatura que lhe telefona, que entrou na sua vida e que
o chama de Albatroz? Maurício me contou. Por que lhe pôs esse apelido?
— No carnaval passado, ao sairmos do Iate Clube, atravessamos ali
diante do antigo Hospício para tomar a barata do outro lado. Eu trazia no
ombro uma vela enrolada, além dum encerado debaixo do braço; este se
desenrolou, principiando a atrapalhar meus passos. Eu tropeçava, sungava,
procurava dar um jeito. De repente, apareceu vindo da rua da Passagem ou do
Túnel um bloco carnavalesco só de mascarados representando bichos: jacaré,
peru, elefante, pato, burro, etc. Então Claire...
— Não foi esse nome que Maurício me disse...
— ... então Nanny, ao ver aqueles homens fantasiados de bichos, riu e
disse que eu também parecia um bicho. O albatroz. Porque andava sem jeito
no chão... as asas me atrapalhavam...
— Ah! Isso não tem relação com o préstito carnavalesco! Tem relação
com o poema de Baudelaire!...
— Isto é... eu, com a vela enrolada no ombro e o encerado debaixo do
braço querendo andar, tropeçava nele; e ela parou e disse a rir: “A peine les
ont-ils déposés sur les planches, que ces rois de l’azur, maladroits et honteux,
laissent piteusement leurs grandes ailes blanches comme des avirons trainer à
coté d’eux”. Puxou-me, arremedou-me, sacudiu-me, judiou de mim, e como eu
ficasse mais desajeitado porque o boné também queria cair, ela continuou:
“L’un agace son bec avec un brûle-gueule, l’autre mime, en boitant, l’infirme
qui volait!” Ora, avó Virgínia, como brincadeira tinha nexo. De mais a mais,
ela sempre achou que eu, fora do automóvel, do Culver, do iate, recordava logo
a expressão exata dos outros versos: “Ce voyageur, ailé, comme il est gauche et
veule! Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!” Ela acha que eu, “exilé
sur le sol au milieu des huées, mes ailes de géant m’empêchent de marcher”:
— Essa criatura conhece Baudelaire? Quem é ela, afinal?
— Foi cantora de rádio. Veio da França em fevereiro de 39, contratada;
não pôde voltar (por causa da guerra) quando acabou a temporada no Rio,
em São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. Mora num apartamentozinho
mobiliado na rua Tonelero.
— ... Com telefone.
— Telefone já tinha no apartamento, sim senhora. Os móveis também.
— Não é isso que estou indagando. Pergunto que espécie de mulher é.
— Tem vários discos gravados. Baladas francesas antigas, canções...
— Vive sozinha...?
— Sim, senhora.
— Deu-lhe esse nome de Albatroz por meiguice ou, como está
parecendo, por que é uma espécie de Cassandra?... Sim, a que foi célebre por
sua beleza e arte de predizer o futuro? Acaso essa criatura quis ver em você o
malogrado, o que tropeça? Quero saber, Fernando, porque eu posso simpatizar
com ela, ou implicar.
— Pergunte a impressão de tio Maurício. Ele está bem a par de tudo.
— A par de tudo o quê?... Conhece-a? Tem ido lá?
— Não. Não é isso. Eu tenho sido franco com tio Maurício. Tenho-lhe
exposto este... meu caso.
— Não quero saber desse apelido. Acho pessimista. Você foi criado por
mim em franca liberação de complexos. Não como albatroz atraído ao convés
de qualquer equipagem. Lembre-se disso, principalmente agora.
Ficou calada algum tempo. Depois disse:
— Vai ser correto com essa criatura, não é? Contar-lhe tudo?
Providenciar dignamente a respeito de... Escute: ainda vai esta noite para a
Vila Militar?
— Estou de folga até amanhã às duas horas. Preciso levar roupa.
— Aqui está ventando. Vamos para dentro.
Mas me deixou na sala, subiu para o seu quarto, dizendo que já
voltava. Demorou mais dum quarto de hora. E eu com tentação de sair,
lembrando-me de Nanny. Voltou, sentou-se sorrindo, e dizendo:
— Esta carteira de couro, que parece tão nova, adquirimo-la, eu e seu
pai, na Rue Saint Honoré. Está novinha em folha. Veja como dispus as coisas:
nesta divisão, retratos essenciais; de sua mãe, de seu pai, meus, de Artur, daqui
do parque, etc... Deste outro lado um postal de Pádua, reproduzindo “O Lava-
pés”, de Giotto. Nesta divisãozinha para selos e estampilhas um cheque que
acabei de encher; receba amanhã na agência de Copacabana, antes de voltar
para o acantonamento. O Fernando está portanto com a papelada em dia.
Identidade, passaporte e licença da avó Virgínia. Sim... o que me magoou
naqueles tempos foi Artur e Carlos terem ido embora sem um aviso.
Sorriu, com os olhos cheios de lágrimas.
— Se quiser sair, Fernando, não faça cerimônia. Você está de folga,
então só por 24 horas? Almoça aqui amanhã ou em Cosme Velho? Aqui? Está
bem. Toque aquela campainha. Assim. Obrigada. — E para a Constança que
apareceu: — Amanhã, almoço às onze horas em ponto.
Agora ali no salão cuja grande porta de vidro tinha uma das folhas bem
inserida no metal corrediço deixando aberto o vão retangular, ouvíamos o
oceano em coro recatado e, dentro desse coro, uma variação fina de tons do
parque: o arfar dos insetos nos gramados e nas moitas. Entrava um perfume
de mato e um hálito de penhas. Estirei-me no canapé, apoiando a cabeça no
colo da avó Virgínia.
— Assim. Está cansado de tantas manobras e marchas. Descanse.
Dividamos a atenção: eu escuto o mar; você escuta os grilos. Lembra-se
daquela aia medieval que eu fingia ser quando você era pequeno, lá no Cosme
Velho? Naquele tempo eu cantava “cantigas de amigo”. Não tinha voz de velha;
não parecia avó. Só a alma já era triste. Ah! Fernando, embalei-o com toadas
de inexorável solidão.

“Chegou a tanto meu mal


Que nam sey estar sem ele...”

Não eram cantigas de embalo; eram solilóquios. Você cochilava,


acordava, ouvia, passava a mão nos meus olhos para verificar se eu estava
chorando; então eu disfarçava, cantando:

“E nesta vyda mortal


Nam ha hy prazer que dure
Nem menos tamanho mal
Que por tempo nam se cure...”

E todavia você não saiu um ser soturno. Só eu continuei carpideira,

“As voltas com meu tormento,


A minha ração de bem.
Já que com quê me contento
Não se contenta ninguém...”

Fernando! Escreva-me do mar, de terra, do acampamento, da


trincheira: Sempre! Tenha misericórdia da minha solidão.
Os grilos calaram-se, numa vigilância brusca. De fato: passos...
— Deve ser Maurício.
Era ele, sim. Sem soerguer a cabeça de cima do colo da avó Virgínia, lhe
sorri fazendo um gesto preguiçoso com a mão.
— Olá! Bravos! Boa noite, Virgínia. Como vai, Fernando? Então, de
folga... ou já foi dispensado de vez e voltou à vida civil com o seu
certificadozinho?
Redargui, ajeitando-me no canapé, sentindo as mãos da avó Virgínia
em meus cabelos:
— Que nada! Vou mas é para a guerra. Vovó já sabe e esteve aqui a
dar-me conselhos. Não foi, vovó?
Tio Maurício retrucou, aliviado:
— Você vai mas é para a parada da vitória. A guerra está a terminar.
Ergui a cabeça, o busto, sentei-me. Expliquei, endireitando-me, que
contara tudo a vovó. Fiquei de pé e discursei, declarando que se nesta vida
mortal não há prazer que dure, também em verdade não há nenhum mal que
com o tempo não se cure. — E agora, que me diz, tio Maurício, se ceássemos,
hein?
— Ótima ideia, caso concorde a nossa Virgínia.
Voltou-me o apetite; e tamanho, que me tornei loquaz. E enquanto a
avó ia à cozinha, voltava, parava na copa, abria a geladeira, reaparecia,
dispunha os pratos, dei uma aula a tio Maurício sobre escola de pelotão,
mexendo e deslocando copos e talheres, arredando o guardanapo, pondo uma
colher aqui, a argola acolá, arremedando o sargento instrutor. Falei sobre
tudo! Organização de pelotão, formações e dispositivos, prática de movimentos
e mudanças de frente, mecanismos da execução de fogo, substituição e função
de comandos, ordem unida, velocidade de marcha, deveres dos graduados
durante o embarque e desembarque.
— Está bem. Está bem, mas vá comendo.
Como os pratos eram diversos e havia intervalos, com idas e vindas de
vovó, tive tempo para mostrar vasta sabença quanto ao pelotão quando do
estacionamento; quando na segurança, em marcha; quando na defensiva, na
aproximação, no contato, no ataque, no terreno conquistado. E enquanto
esperava depois o café, falei dos elementos relativos ao tiro, ângulo de
transporte, ângulo de nível, ângulo de queda, alcance, zona rasada, zona
batida, altura de garantia, altura de segurança, rendimento, efeito útil, ceifa
horizontal, ceifa vertical, amarração de tiro...

***
À meia-noite estávamos deitados já, cada qual em seu aposento. Não
havia luzes na casa, mas eu não conseguia dormir. Não propriamente, por
causa do que se passara ali desde as sete e pouco. Pensava em Nanny, sentia
tentação irreprimível de ir vê-la. Como desculpa para sair, mesmo às
escondidas, me lembrava da concessão de vovó às nove horas: “Se você quiser
sair, Fernando, não faça cerimônia”. À meia-noite me vesti no escuro, abri a
janela, pulei devagar o peitoril, agarrei nos sapatos que antes pusera sobre ele,
atravessei o parque, saí por um vão da sebe à esquerda, para não fazer
barulho com o portão. Limpei os pés, iniciei uma rápida e ofegante marcha até
São Conrado. Foi um custo para arranjar carro. Por fim, vendo que um casal
saía do bar e tomava um Studebaker munido de gasogênio, sem a menor
cerimônia perguntei se poderiam deixar-me em Ipanema ou mesmo em
Copacabana, caso fossem para aquelas bandas. O homem prontificou-se logo,
ofereceu-me um cigarro, fez a mulher sentar-se ao seu lado junto da direção.
Golf Club, Represa do Tatu, Gávea Pequena, Gruta da Imprensa, Leblon,
Ipanema. Tudo em blackout.
Nanny custou a atender ao toque da campainha, mas daí a pouco se
atirava ao meu pescoço, quase me asfixiando. Acendeu a luz, repuxou ainda
mais a cortina que estava expandida como um velário de palco durante um
intervalo, repreendeu-me por não telefonar durante cinco dias, estranhou que
ao menos hoje, antes de vir, não houvesse telefonado. Sua voz cálida, com
algumas sílabas fanhosas e com admirável timbre de contralto tinha, falando a
minha língua, um sotaque inesquecível, de encanto quase severo.
— Nanny, tirei esta noite para pôr as coisas em pratos limpos. Venho da
casa de minha avó e...
Sem o menor pressentimento, ela atalhou:
— Achas que faço mal em telefonar para lá, às vezes? Mas, não aguento.
Compreendes...
— Vovó me disse que uma criatura estrangeira tem telefonado até
mesmo fora de horas normais...
— E ficou zangada, aborrecida?
— Não. Só não quer que me chames de Albatroz. Acha que é um
apelido crítico, significando um malogro. Enfim, acha que...
— Tua avó sabe que eu te chamo de Albatroz? Sabe que eu existo? Não
quer esse apelido? Tão bonito!
— Bonito, nada! Depreciativo.
— Como, depreciativo? Albatroz...?!
— Exatamente. Julga que com essa história estás querendo ser como
certa mulher simbólica, da mitologia, que lançava vaticínios.
Ficou pensativa, aflita.
— Como assim? Por quê?
— Mas, conforme eu ia dizendo e me interrompeste, tirei esta noite para
pôr tudo em pratos limpos. Já contei a vovó, ela se resignou.
— Perdão, um momento. Mulher vaticinadora? Eu? Como aquelas tais
representadas pelas estátuas do parque?...
— Mais ou menos.
— Ora essa! Essa tua avó, francamente!
— E se ela se resignou, tu também tens que... Escuta, Nanny, eu vou
para a guerra. O meu regimento vai partir. Pronto. Eu já disse, tu já estás
ciente. O governo resolveu e eu embarco por estes dias...
Que reação! Chorou, zangou, descompôs-me por haver guardado
segredo, abraçou-me, queixou-se do Estado Novo, dos Aliados, dos nazistas,
dos fascistas, de Churchill, de Roosevelt, de Mílton, de Júlio, de Lauro,
escondendo por fim os soluços no meu peito, com os cabelos castanhos roçando
o meu queixo.
— Tu sabias e me escondeste! Isso não se faz! Foi uma crueldade. Não
mereço isso! Devias ter sido sincero comigo. Não foste gentil.
— Juro-te que não sabia.
— Mentes. Impossível. O governo não pode tratar vós outros como des
outils. E então a dignidade humana, isso não conta entre vós outros, aqui?
— Estás pensando que vou morrer, Nanny?!...
— Não é isso. Estou chorando porque vais para longe de mim, vais
esquecer-me, não voltarás tão cedo. Que é que tens que ver com aqueles
malucos de lá? Que é que vai ser de mim?
— Ora! Vamos sair. Passear. Não adianta ficarmos aqui com tudo
fechado.
Aceitou a sugestão. Vestiu depressa o tailleur, mudou de sapatos, pôs a
boina de veludo verde, entornou perfume em si e em mim, beijou-me, foi para
o espelho acabar de arranjar-se. Seguimos a pé para o Cassino Copacabana,
assistimos a alguns lances, sentamo-nos perto da escadaria, pedimos
champanha e cigarros Abdulla, bebemos e fumamos, folheando revistas onde
havia anúncios policromos, desenhos humorísticos de Dedini, contos de guerra
por Freeman; e conversamos, até que aquele cascatear de fichas e a melopeia
dos crupiês nos tentaram difusamente.
Dirigimo-nos os dois para junto duma das mesas de bacará. Tudo
repleto. Atirei uma nota de mil cruzeiros no meio do triângulo. Um levantino
carteava; uma mulher de monóculo recebia as cartas. O crupiê trocava por
uma ficha violácea o meu dinheiro, que logo virou duas fichas. O homem
carteava de novo; um velhote calvo virou oito, impassivelmente; o muçulmano
virou nove. Outros contendores insistiram lá com ele, não porque tivessem
doestos a ajustar e sim porque eram jogadores. Quando o cigarro Abdulla
começou a queimar-me os dedos, alguns sujeitos supuseram que aquelas oito,
dezesseis, trinta e duas e por fim sessenta e quatro fichas não tinham dono. E
um crupiê olhava para o outro com sinais semafóricos nas sobrancelhas
cínicas; então pedimos a um deles que nos passasse com a pá aquelas
madrepérolas. À vista disso, o libanês deu suíte e o fiscal trocou sessenta fichas
retangulares, que pareciam uma maqueta de pagode anamita, em seis fichões
azuis de dez mil cruzeiros cada um, ficando o lote, com as outras restantes
quatro fichas de mil, como um esboço de manobras num tabuleiro de Estado-
Maior. A pá, em movimento adequado, as equilibrou donairosamente e as veio
depor diante dum grã-fino que recuou, transido, para facilitar o gesto trêmulo
com que as apanhei e enfiei nos dois bolsos do casaco de camurça. Ante a
expectativa solene, atirei uma de mil para os crupiês, gesto este que ergueu na
mesa um brado estridente e solene: “Mil cruzeiros para a caixa dos
empregados. Obrigado!”, ao que outras vozes acolitaram, solícitas e
profissionais: “Obrigado!”
Fomos logo receber na caixa, voltamos para a nossa mesa junto à
escadaria de mármore, pedimos mais champanha, outras duas caixas de
Abdulla. Nanny não dizia nada, fumando com languidez, com ar misto de
cafard e de tendresse. Às duas e meia nos retiramos por entre zumbaias dum
garção e dum gerente e a sofreguidão dum sujeito que levara a hipnotizar-me
durante meia hora lá da mesa próxima, fingindo folhear números do LIFE. Na
escadaria o tal sujeito disse com voz patética que acabara de perder todo o
dinheiro dum desfalque, perguntou gaguejando se eu não poderia fazer a
caridade de ceder-lhe duzentos cruzeiros até amanhã... Já na calçada, acedi,
dizendo-lhe com voz tonitruante que tomasse juízo; Cassandra vaticinou-lhe
processo, condenação, Caiena, a Ilha do Diabo, se continuasse naquele abismo.
Voltamos vagarosamente para o apartamento da rua Tonelero.
... Mas foi só no elevador que Nanny disse:
— Põe a mão aqui no meu coração para ver como ainda bate forte.
Cuidei que tinhas perdido de início, que aquela porção de fichas fosse do turco.
— Só acendeu a luz para entrarmos, apagou-a logo, foi escancarar a janela,
arrancou o tailleur, descalçou-se roçando um sapato no outro, subiu para o
divã, chamou-me. Estirei-me ao seu lado, expliquei que às quatro horas
desceria porque tinha que estar na Vila Militar às cinco, sem falta. Menti
assim, porque precisava voltar para casa.
— Já te despediste de tua avó?
— Sim. Quando vim para cá depois da meia-noite.
— Escuta, Fernando. Eu não te chamava de Albatroz em sentido
pejorativo, não, querido.
— Eu sei, filha.
— Era um modo de dizer que tu estás tão alto que as coisas do mundo,
cá embaixo, te atrapalhavam...
— Eu sei. Entendo, filha.
— Mas tua avó...
— Ora! Entende mais do que nós dois. O receio dela é que exatamente
agora, na guerra, eu me atrapalhe deveras tropeçando numa realidade
medonha... No íntimo, a avó Virgínia reconhece que me criou muito feito
albatroz, nas alturas, e que, de repente... Sim, ela tomou isso como um aviso
teu.
— Fernando!
— Que é, filha? Vira o rosto para cá!
— ... Vou telefonar para tua avó pedindo perdão. Posso? Deixas?
— Ela vai responder, decerto, que já agora não cabe a ela ou a ti senão
a esperança de que eu trate de anular o poema de Baudelaire.
— Et tu vas essayer de faire ça, chéri?
— Mais évidemment! Escuta: dentro duma hora tenho que partir
definitivamente, de modo que... Vira o rosto para cá. — E tirei dos dois bolsos
as duas camadas de notas.
Ante sua fisionomia perplexa e mesmo humilhada, sorri, disfarçando, e
ajuntei as duas importâncias numa só, que enfiei no bolso de trás, das calças.
— Vem mais para cá. Tira os sapatos. Assim. Agora o outro pé. Espera
que eu tiro. Arranca esse casaco de camurça. Está tão quente!... E,
sussurrando: — Chéri, vamos para a cama? Sei lá quando te verei!
— Vamos. Mas preciso sair cedo. Escuta, amanhã mando tio Maurício
vir falar contigo. Olha, tudo quanto precisares pede a ele.
Seus soluços abafados me enviavam beijos quentes nas pálpebras e na
boca, nas mãos e na alma. Só eu sei (e talvez ela, também) como me retirei
dali. E quanto nos custou nos separarmos diante do elevador cuja porta
entreaberta definia um cubículo de sentenciado.
Mas após vinte minutos telefonei para Nanny. Vali-me dum açougue
onde uma velhota protestou pensando que eu me estava antepondo ao direito
duma fila de quarenta pessoas estremunhadas. Aconselhei-lhe um regime
vegetariano, entrei e disquei para o apartamento da rua Tonelero. A mesma
voz de desespero pastoso atendeu agradecendo logo, certa de que se tratava
dum ímpeto de saudade imediata. Disse-lhe:
— Escuta. Presta bem atenção. Procura no divã, debaixo das
almofadas, uma coisa que deixei de propósito. — E desliguei.
Ó madrugada de nítidos pensamentos, durante aquele percurso tão
cheio da minha juventude e mocidade! Saltei do táxi, entrei como um ladrão.
Inclusive no modo de pular a janela e na maneira de contar as três notas de
mil cruzeiros que me restavam.
XIV
“... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO”
5-VI-44 — Na manhã de sábado, o major Aurélio, que sempre me
tratara com a maior deferência, mandou chamar-me.
— Sente-se, Fernando. Precisamos conversar, visto ter acabado o
primeiro período de instrução da l.ª DIE. Aqui a sua ficha diz, entre outras
coisas, que você é órfão de pai e mãe. Diga-me: é verdade que tem avó paterna
viva? Viúva duma das vítimas do sinistro do Aquidabã?
— É verdade, sim, major. Ela está com 64 anos.
— Mas, Fernando, nós não sabíamos! Neste caso a sua situação muda
muito de figura.
— E como veio a saber, major? Acaso porque minha avó recebe uma
pensão do Governo? — Nisto me lembrei de Maurício e de vovô Nunes, estudei
a fisionomia do major Aurélio, e acrescentei: — Ou os senhores receberam
alguma comunicação ou alguma visita? Tenho, por exemplo, um tio-avô, lente
reformado da Escola Naval... mas se ele procurou as autoridades para dar
quaisquer esclarecimentos que modifiquem ou que tenham tido o intuito de
modificar a minha situação aqui o fez por expressa vontade, sem
conhecimento nem anuência minha... E, muito menos, posso afirmar, de
minha avó.
— Bem, Fernando. Não é necessário informá-lo de que maneira
soubemos que você era o arrimo e o sustentáculo duma senhora de idade, sua
avó, dona Virgínia Gama e Cintra. A verdade é que a sua situação muda
muito de figura não devido a qualquer visita ou solicitação que acaso nos
tenha sido feita ou dirigida, (e nem você nos iria insultar com tal insinuação),
e sim, Fernando, porque seja qual tenha sido a maneira do esclarecimento —
está previsto em lei. Basta, portanto, que nos ajude a solucionar trazendo-nos
do cartório documentação a respeito.
— Lamento não poder atendê-lo, major.
— Atender-me, não! Atender aos seus interesses.
— Perdão. Seja! Mas ao vir fazer o serviço militar eu trouxe uma
papelada que me foi exigida logo no primeiro dia da minha convocação. E as
autoridades estavam a par do meu nome, do meu endereço, dos meus
antecedentes, enfim da minha existência, já que no ano exato me
convocaram...
— Perfeitamente. Estive examinando ontem esses seus papéis. Neles não
constam maiores detalhes a não ser data e local do nascimento e nomes dos
pais com a palavra “falecidos” entre parêntesis; mais nada. Ora, para o caso se
faz necessário uma certidão onde conste também (e isso deve constar no
cartório) os nomes dos avós com a especificação de que...
— Bem, que minha avó paterna está viva, isso é fácil de provar. Mas
que eu seja órfão de pai é dificílimo, pois meu pai sumiu num desastre
lendário de avião em viagem clandestina do Rio da Prata para o Brasil e nem
os destroços se acharam. Meu pai vinha incógnito, era um revolucionário.
Outra coisa: dizer-se que sou arrimo e sustentáculo de minha avó até parece
piada. Não tenho profissão, vivo da mesada que ela me dá, e é fácil verificar-se
pelo imposto de renda que ela paga qual deva ser o montante dessa mesma
renda. É proprietária de três arranha-céus...
— Fernando, consinta que lhe esclareça que arrimo, ou sustentáculo,
principalmente quanto a uma pessoa idosa, não quer apenas significar a ajuda
ou o sustento material. Ora muito bem. Isto posto, basta que você fique
doravante ao nosso dispor com a sua carteira de reservista.
— Major: que conforto imprescindível de presença precisa uma criatura
da têmpera de minha avó já que, não necessitando do meu arrimo nem do
meu sustentáculo material, tendo ficado órfã de mãe bem cedo, perdido o
sogro na campanha de Canudos, o marido na explosão do Aquidabã, o pai
durante a gripe de 18, e o filho nos pródromos da Revolução de 30, a vida
inteira tem dado provas duma resistência moral extraordinária!? Ainda
recentemente me interpelou, ressentida, por eu lhe esconder que era
expedicionário. É que nunca entrava em casa com a farda da FEB, e sim com
a antiga ou em trajes civis que trocava no meu apartamento.
— Mas sua avó sabe, então?
— Adivinhou. Já sabe. Aconselhou-me. Deu-me esta carteira com umas
lembranças. De mais a mais, major, não posso aceitar a minha exclusão. Que
diriam meus companheiros do Regimento Sampaio?
— Escute, Fernando: permite que eu fale com sua avó?
— Lógico. Mas o senhor consente num reparo? Trata-se de uma grande
criatura, e abordar-se um tal assunto perante ela... não sei... Decerto se
melindraria. Ou, no mínimo lhe diria o que eu aqui já lhe estou dizendo.
Dito e feito. Quatro dias depois o major Aurélio mandou-me chamar de
novo e disse logo, abrindo as mãos com ênfase:
— Pois é, Fernando. Sua avó é uma formidável mulher, um grande
espírito! Recebeu-me de tal modo, conversou com tamanho critério sobre a
guerra, ponderou coisas com tal acuidade e lucidez que eu apenas pude dizer
que fora consultá-la sobre a hipótese da sua partida. A resposta imediata que
deu e as considerações que explanou, me deixaram sem jeito! E agora qualquer
atitude ou decisão nossa seria um achincalhe às virtudes dessa matrona.
Desculpe o termo; não acho outro. Matrona. Assim pois, com uma tal avó, com
esse passado na sua família, você, com a soma de cultura que tem, está mais
apto de certa forma a receber com mais serenidade do que muitos dos seus
colegas a sua convocação para a 1.ª DIE.
A seguir me perguntou se eu aceitaria bem uma certa sugestão. Ser
transferido do Regimento Sampaio para o 6.º, como adido, explicando que, por
eu falar bem o inglês, o francês e o italiano, a minha transferência facilitaria
ligações do Comando com a oficialidade do transporte que algum dia nos
levasse. Sim. No 1.º havia vários rapazes que podiam fazer a função de
intérpretes, ao passo que no 6.º havia só quatro e esses mesmos...
Anuí, reflexamente deduzindo logo, cá comigo, que decerto o 6.º partiria
antes do 1.º.

***

5-VII-44 — Acertei, apesar dos estratagemas de despistamento. Na


madrugada de 29 os Grupamentos 1 e 3 invadiram composições vazias e
rumaram creio que para Santa Cruz e o Recreio dos Bandeirantes. E um terço
do nosso rumou depois para Nova Iguaçu para onde, conforme diziam, já
partira a primeira leva na madrugada de 28 e deveria partir a restante na
madrugada de 30. Mas apesar dos vagões rodarem em escuridão absoluta e de
janelas fechadas, logo começaram a correr expressões como estas: “boi na
linha” e “roupa na corda”. Houve alvoroço, nervosismo, piadas, à medida que
as estações por onde passávamos iam sendo reconhecidas. Não tardei a
averiguar que estávamos indo para a Marítima. Quando começamos a descer
no cais do porto, o local se achava ermo e tétrico, limitado à direita, além do
armazém geral, por um costado de navio negrejante cujo número, 112, tinha
um reflexo baço.
Conformei-me com a realidade aguda e inexorável. Sim, preferível à
noite e sem multidão nem flores ou aplausos. E quando começou o embarque
era como se eu não coparticipasse dele, estando apenas presenciando um
desses instantâneos do Serviço de Sinaleiros que os nossos cinemas exibiam
antes da fita principal. Passei a sentir-me peça movediça, retrátil ou
expansível, dum mecanismo que tinha que se ajustar ao interior duma
determinada base não para agir e sim para ficar em inércia e em potencial. A
vida civil anulou-se. Ficou a vida vegetativa, essa mesma reagindo ante os
compartimentos estanques, a qualidade das refeições, o ar confinado, a treva, o
cheiro de tinta e de óleo, aqueles ruídos de mercadoria consignada. Mas logo
veio uma fórmula de resignação muito genérica e quase propiciatória. Uma
espécie de paradoxo otimista.
É que os fatos imediatos referentes à minha pessoa estavam
demonstrando afinal de contas que eu pertencia a um sistema universal de
organização ora centrípeta, ora centrífuga, e que portanto minha
individualidade, embora correspondendo a um número (conforme tudo
quanto é elemento de quantidade e de problema) sofria influências e também
influenciava os fenômenos mundiais. Por exemplo: aquele navio, que afinal de
contas não era um transatlântico de recreio, mas uma espécie de arca sumária
atulhadíssima; a cidade embuçada à esquerda; a guerra me aguardando a
milhares de milhas; a possibilidade de morrer; a lembrança de cenas
cinematográficas da vida na frente de batalha; os primeiros contatos com um
mundo de horrores — eram pensamentos que punham meu espírito em
rotação centrípeta, fazendo-me confluir para o recesso mais nuclear da
angústia; ao passo que a compreensão de que eu não nascera para usufruir a
vida enquanto outros se expunham; a vontade teórica e ética de liquidar com a
barafunda do mundo e cooperar (como simples parcela, mas enfim cooperar)
para uma solução de emergência a que decerto se seguiria uma solução
coerente com a razão; o conceito de que ia viver uma fase de exceção e que
disso me adviria uma experiência rente ao absurdo e ao anômalo; a
curiosidade precavida mas insopitável de abeirar-me duma condição patética e
infernal; a resignação disfarçada em plenitude; o perigo admitido e por isso
mesmo atuando como tentação — eram pensamentos que punham meu
espírito em rotação centrífuga fazendo-me expandir para a distância, o tempo,
o espaço e a responsabilidade.
Tais estados de espírito se alternavam, ou então ficavam adiados por
horas, já que necessidades de acomodação e adaptação me anulavam a
disponibilidade, agregando minha pessoa a dispositivos e regulamentos. E
também a emoções coletivas e individuais, como quando se deu o inevitável e o
General W. A. Mann demandou a barra às seis horas da manhã do dia 2 de
julho. Para onde? Ia com carta de prego?
Principalmente quando saímos e aproamos para o norte, assim que vi a
pedra da Gávea e procurei localizar nossa casa, senti tal emoção que tive que
contrair os maxilares, pensando na pertinácia com que o destino maltratava
minha avó. Pareceu-me rever com nitidez fugaz a casa, o jardim, o parque, a
mata, a praia, estar perto de pormenores como o piano, as estantes, a escada, a
balaustrada, as estátuas, sentir nitidamente a presença da avó Virgínia,
surpreender sua existência reclusa, ouvi-la chamar-se de Hécuba.
10-VII-44 — Um sujeito canta alto no banheiro ao lado; resfolega, bufa.
E ao sair enxugando as têmporas dá de chofre comigo e diz:
— Quase esvaziei o oceano em cima da minha “inconformidade!”
Então, seu tradutor das dúzias, íamos fazer manobras na Restinga de
Marambaia, hein?
É o Djalma. E esta é a sua frase de reação quase todos os dias, repetindo
com sarcasmo explosivo o que eu lhe dissera ao sairmos do vagão para o cais
na noite do embarque.
16-VII-44 — Há três dias que estamos no Mediterrâneo. Vamos para
onde? Já sabemos. As estações de rádio ianques e inglesas irradiaram
trasanteontem, às vinte e duas horas, que o Contingente Expedicionário
Brasileiro se dirigia para Nápoles. Antes, no Atlântico, ignorávamos nosso
destino, fazíamos palpites: Orã? Marselha? Gênova?... Sicília?! O Cláudio
corrigia sempre: “De qualquer forma, vou consignado ao Folies Bergère, em
Paris”.
E eu, que sentia? Não há diferenças sensíveis, talvez, entre o Atlântico e
o Mediterrâneo. Contudo, desde Gibraltar, penhasco arrogante, desde Ceuta,
entrevista na síntese duma outra rocha abrupta, desde Tânger misteriosa, e
Biserta apenas adivinhada e pressentida, minha impressão, não obstante os
discursos do Comandante Maguire e do general Mascarenhas, era de que se
estava dando o contrário. Isto é, saímos dum lago incomensurável num navio
que era simultaneamente o de Núñez de Balboa, o de Jean Cabot e o de
Chancellor, ou que então também tanto se podia chamar Marigold, Pelican ou
Jonas e, em lugar de irmos em demanda de terras descritas no Inventio
Fortunae e alcançadas mediante o indispensável Almagesta, entrávamos numa
espécie de orla prévia de redemoinhos fatídicos cujos centros fossem Cila e
Caríbdis. Pelo menos os recifes que víamos e as comparações nefelibatas do
Djalma me obrigavam a fabricar tais analogias, quando mais não fosse para
disfarçar a emoção angustiosa.
Em que estava eu transformado, desde o dia em que fui me apresentar
ao CA, à minha circunscrição militar? A fila interminável duma mocidade que
eu não conhecia lá estava pela calçada, serpenteando docilmente ao longo de
mais de três quarteirões, ao sol, conversando, descansando, fumando... Dir-se-
ia a imediação duma fábrica onde candidatos a serviço esperassem ser
atendidos. Mas não; era qualquer coisa maior, bem real, desde os pormenores
duma promiscuidade de condições que era preciso sublimar e reduzir a um
quociente. Cada qual representava a mesma geração para a pátria e para o
tempo. O pobre e o esfarrapado; o ignorante e o desnutrido; o rico e o operário;
o estudante e o funcionário. E, afinal, que diferença havia nos corpos e nas
almas? Lá no JMS as radiografias mostravam os mesmos pulmões expandidos,
a mesma gota cardíaca suspensa como pêndula de sangue, o mesmo diafragma
separando vísceras. A percussão dava os mesmos tons claros e densos; a
auscultação, os mesmos sons enérgicos e vibrantes, ou compassados e rítmicos.
Só as mãos escreviam melhor ou pior, certo ou errado. E os lábios liam melhor
ou pior, certo ou errado. Noções cívicas, qualidades ou defeitos, senso da nova
responsabilidade, descortino da vida civil, curiosidade, compreensão... bem, lá
isso naquela nossa idade estava em função e dependência de muita coisa a
mais ou a menos. De certa forma, a pátria nos recebia dos lares conforme estes
podiam nos remeter segundo suas conjunturas sociais. Se estas não eram
iguais, se não tinham um padrão uniforme, se a culpa disso era ou não dos
indivíduos, dos lares, do Estado, da condição humana, geográfica, histórica,
econômica, etc., que podíamos nós saber, ali ao sol naquela calçada numa
idade de cinema, futebol, namoro, em que só alguns estavam aptos a cursar
uma escola superior?
Nossa aptidão dizia respeito apenas à condição física. Havia muito
tempo para o resto, a começar ali na caserna onde o preparo múltiplo
abarcaria uma propedêutica para a vida. Luta pela existência, sim. A começar
pela capacitação contra os embustes da arte da morte.
Mesmo quanto a isso, os meus companheiros teriam as mesmas
vantagens que eu, que logo daí a dias adquiri livros militares de Colin,
Barbeyrac, Laffargue, Thierry e Bouron? As mesmas vantagens que eu, que
fora propositadamente criado por minha avó longe da situação-limite para que
não se repetisse comigo o que sucedera a meu bisavô, a meu avô e a meu pai?
Sim, que a vida, o tempo, as místicas, eram inimigos coordenados,
falsos, bem depreendíamos no afã com que procuravam fazer que nos
defendêssemos não pelo empirismo reflexo, e sim pelo que durante meses
levamos aprendendo na teoria e prática da escola de pelotão. Que o espírito,
por sua vez, adotasse e absorvesse tais advertências e ensinamentos para
aplicá-los durante a existência, essa guerra dos Trinta Anos de cada indivíduo
consigo mesmo, com a vida bem mais do que com a morte. Eventualmente
porém, ali agora prestes a desembarcar, éramos uma só mocidade,
sofrivelmente adestrada contra a arte da morte, já que tal arte não seguia
mais os trâmites expostos em tratadistas de teor clássico e ortodoxo, mas sim
os estratagemas desleais duma estratégia e duma tática que deixavam a
batalha de Gravelotte como ingênuas peripécias de xadrez, conforme diria
meu bisavô Aleixo.
E mesmo essa consciência da vastidão do conflito, as diversas frentes, a
impossibilidade absoluta dum desfecho único determinar a queda do
arcabouço todo, a lentidão difusa da invasão, tudo isso não passa de
problemas que para os poucos que os compreendiam só significavam quanto o
indivíduo era parcela infinitesimal dum problema com feição de charada.
O Fontoura achava que o fato dalguns chefes terem feito estágios em
unidades e campos de treinamento nos Estados Unidos, de muitos membros do
nosso Estado-Maior ainda recentemente terem estado em comitiva na África
do Norte e na Itália, e de lá haver permanecido um “grupo de observadores”,
para ele, Fontoura, tinha o mesmo valor que um grupo de jogadores ter
visitado uma equipe em derrota num campeonato de rugby; e assim chegava
ao paradoxo de que mais valera contratar-se prisioneiros que vomitassem os
planos e táticas de seus Estados-Maiores...
Eu próprio não abrangia dum só golpe a visão global dos fatos, meus
catorze dias a bordo do General W. A. Mann tendo sido catorze estados de
alma diferentes.
Assim é que, quando nos afastamos do Cabo Frio, e apenas nos seguiam
os destróieres, mais coparticipantes técnicos da nossa sorte até quase as
Canárias do que alegorias pátrias, se as conversas, os comentários, os aspectos,
os exercícios, o estridular enérgico dos disparos antiaéreos, as náuseas e enjoos
de alguns, as piadas e a gíria de muitos, tiravam à viagem o cunho duma
aproximação metódica para a guerra, ainda assim essa sentença pairava no
ar, curtia seu hálito morno nos alojamentos, transformava a saudade difusa
em apreensão renitente. E então os trechos de diálogos eram como frestas
fugazes, esguichos experimentais de manômetros.
Lembro-me que tencionava ler muito a bordo, isolar-me, escrever
poemas, ficar senhor do histórico pormenorizado das diversas campanhas,
tirar ilações, balancear probabilidades, decifrar incógnitas, transformar minha
expectativa em noção real de gradações, valendo-me não já de compêndios do
coronel Araripe, do major Pavel, mas de hipóteses relativas à minha área de
atuação na linha de frente. Sem querer recordava passagens de Barbusse ou de
Remarque, e sempre com a esperança numa novidade de rádio, uma notícia
súbita de rendição geral, de vitória fulminante.
Mas a verdade é que a disposição sistemática de atividades mentais me
foi faltando, sempre sendo adiada ou jamais encontrando ensejo adequado, já
que éramos cinco mil pessoas e eu sofria dum modo ou de outro influências
descentralizadoras que me punham à mercê de regulamentos, episódios de
rotina, sobressaltos teóricos, contingências vulgares, anedotas, boatos,
divagações, peripécias, explosões de gíria, principalmente. Isto então, a gíria, se
me apresentou como uma habilidade tática e subconsciente para dissociar
atmosferas tensas.
Quanto à minha vida interior, bem disfarçada reconditamente, essa
passou catorze dias em exercícios de reflexos condicionados, como se eu, à
força de considerações minhas ou impregnado por fatos sucessivos da viagem,
aos poucos me despojasse irremediavelmente de atributos individuais,
descrendo ao mesmo tempo de transferências e abnegações, não conseguindo
superar nada, visto como meu rebaixamento de logaritmo a parcela inibia
qualquer esforço de sublimação.
Por consequência, a viagem e a distância cada vez me afastavam não
da pátria e da família, mas de mim mesmo, e eu me despedia de mim próprio,
dissociado em dois. Um que criticava e analisava, e outro que sentia e se
diluía; despedia-me do que tinha sido, sem conseguir supor ou imaginar sequer
o que iria ser, já que me ia tornando peça ínfima dum compound. Sim, era o
albatroz de Baudelaire e de Melville, descido no convés.
Então, quando ainda queria lutar e debater-me para subir, procurava,
por artifícios que o ambiente dificultava, homiziar-me em casa da avó
Virgínia, estirar-me no sofá, apoiar a cabeça em seu colo, ouvir aquelas
cantigas remotas, adormecer... Ou então, subir ao apartamentozinho de
Nanny, e por maldade dissociá-la também; isto é, pô-la deitada ali ao meu
lado, bem silenciosa, enquanto ao mesmo tempo a sua voz gravada num disco,
e tão parecida com a de Chanterelle, cantava “La Belle, si tu voulais”, acolá no
prato giratório da vitrola...
Hécuba e Cassandra! Sorrio sempre que me lembro dos apelidos trágicos
destas duas criaturas nascidas para a afeição absoluta e integral.
Que estará fazendo a estas horas minha avó Virgínia? Conversará com
tio Maurício esperando a hora dos comunicados da BBC? Lerá algum livro?
Refletirá muito, na circunspeção de sua reserva de alma, lá em cima no
promontório perto do Joá, vigiando o oceano? Odiará aquele mar que lhe
roubou o sogro, o marido e o filho e que me distanciou dela? Já terá mesmo
feito as pazes definitivas com o mar, como quando me ouviu declamar certa
noite de perdão genérico para com o oceano, a “Ode Marítima”?
Penso no seu destino de testemunha na carne e na alma das tragédias
do marido e do filho, já agora decerto querendo sublimar e transferir sua
aversão pelo oceano só porque sabe que o neto está nele, que vou nele, que nele
existo, que ele me está poupando vagarosamente do contato com a terra onde,
aí sim, só há vicissitudes e calamidades. “O mar... Este mar... Devo odiá-lo, ou
não?” Saberá que estou no Mediterrâneo?
Sim, estou no Mediterrâneo. Já não mais entre vagas de espuma
insofridas, entre lâminas do Atlântico, mas no Mediterrâneo, que tanto povoou
a minha imaginação... Onde está o intolerável Djalma!? Tomara que não
apareça aqui nesta amurada onde penso. Seria horrível se nesta hora de
meditação, ele surgisse boiando no ar como um anúncio do Michelin, com o
salva-vidas herniando das axilas.

***

Que nuvem longínqua acolá ao rés do oriente se levanta agora como um


fuso perpendicular? Será a imagem de Ateneia? Para que desvão afastado, mas
rico e opimo, estilhaçada em arquipélagos, está a Grécia? Se eu me atirar
nestas ondas não surgirá a ninfa Leucoteia para salvar não ao náufrago mas
ao desertor? Onde afinal essa Itália avançando como uma deiscência
paroxística? Ah! Não a bota calçando os Apeninos, mas flanco de terra que
atrai quase todos nós, cinco mil soldados, para a amurada de cá.
Tão tarde vim para a tua história, ó Mediterrâneo! Tão tarde até
mesmo para mim, ó ex-Fernando! Quisera desembocar em ti naquele primeiro
barco fluvial, dois mil e oitocentos anos antes de Cristo, saindo do Nilo lodoso,
para ir buscar cedro na Assíria. Quisera atravessar-te com os fenícios. Quisera
estar no primitivo centro simbólico, em Creta, bem antes do tempo de Homero,
quando os gregos ainda eram rudes arqueanos. Aqui estou milênios depois,
despido de minha serenidade de contemplação, pois vou em trânsito forçado,
eu, um adolescente anônimo... Sim, um anônimo agora, quando bem antes, no
ginásio, te percorri de margem a margem, e fui sucessivamente Ambron de
Mileto, Ulisses de Ítaca, e simultaneamente Agamenon, Ajax, Antíloco e
Telêmaco! Onde estás tu, adivinho Dodona, oráculo insigne, para dizeres o que
vai ser de mim? E onde estás tu, Crônida, para relatares a minha avó o que foi
de mim?...
Sim, aqui estou nesta amurada. Eu, com um número de expedicionário.
Na verdade não um civil curioso, mas vestido de guerra, realizando a meu
modo truculento, o antigo sonho de ser Alcebíades e Péricles, Platão e
Aristóteles, Heródoto e Plutarco. Não, não vim ver a Acrópole, as raparigas de
Erecteion, os frisos do Partenon, a enseada de Salamina. Não duraram para
que eu lhes visse as cãs, aqueles conhecidos de meu bisavô Aleixo: Ésquilo e
Eurípedes setuagenários; Aristófanes e Sófocles nonagenários. Também esta
atmosfera que meus pulmões respiram em haustos já não traz os cinco
elementos que eu cuidava eternos: a saúde, a paz, a glória, a beleza e a
cultura.
Decerto vou ver Roma atravessando-a de noite num caminhão.
Itália, trago aqui comigo as cartas que minha avó escreveu de teu solo
para meu pai em 1913. São oito. Duas de Florença. Uma de Arezzo. Uma de
Perúsia. Uma de Assis. Uma de Ravena. Uma de Rimini e a última do Hotel
Cavalletto em Veneza. Como se vê, não era dada glória de ti, que a
interessava. Era Orcagna, e Miguel Ângelo; era Piero della Francesca: era
Urbano da Cortona; era São Francisco, e Giotto; eram os mosaicos de San
Vitale e de Galla Placídia; era Tintoretto, e Veronese.
Isso, verei eu? Verá isso o mundo porque contribuí para salvar o que ela
especificou como valores?
Talvez, talvez, já que não sou bárbaro te invadindo periodicamente,
mas sim, na minha mocidade quase mística, um provável guarda postado
junto do Campo Santo de Pisa, ou uma sentinela passeando rente à
balaustrada onde o Davi por sobre o Arno olha para Florença lá do alto do
Piazzale.
Ah! Passou por ti, Mediterrâneo, antes de mim, tanta unidade humana,
que me vendo neste convés já nada sei de cronologia nem de história,
confundo-me com os emigrantes e imigrantes que fastos e leis jogaram pelas
abas dos mapas que te limitam e pormenorizam. Estes vultos divididos em
dois hemisférios humanos pelos salva-vidas são agora para mim apenas
bonecos simulando para os cálculos e divagações deste delírio: godos, vândalos,
francos, germanos, hunos, longobardos, árabes e não sei mais quê.
Ó minha avó Virgínia, se algum dia leres estas linhas não penses que
teu neto as escreveu na enfermaria do General W. A. Mann. Isto tudo me veio
aqui em cima no tombadilho, ao avistar terras de Itália... E ainda bem que o
entusiasmo de bordo me alvoroça também, e rente a esta amurada vejo
aproximar-se o cais de Nápoles exatamente quando eu pensava em Ticiano e
em Casanova, em Napoleão e em Nélson, em Byron e em Shelley, em Mazzini
e em Cavour, nos Dardanelos e em Suez, em Lesseps e em Disraeli, em
Venízelos e em Kemal Paxá! Arre! Chegamos... Não sou mais o aluno de
História da Civilização de meu tio-avô Maurício. Não me lembrei sequer da
pirâmide de Quéops, de meu bisavô Aleixo! Agora que quero ver Nápoles, o
porto atulhado de navios cujas proas parecem guelras de carcaças; agora que
os armazéns e o casario em hemiciclo parecem e são uma ruína ainda
sangrando e fumegando; agora que a multidão nos espera para mendigar;
agora que já sobem a bordo vários figurões autênticos e não os do meu
devaneio, enquanto uma guarda de honra presta continência; agora que
ressoam os alto-falantes e estou formado, que sou um simples ponto de
configuração geométrica no tombadilho; agora que já não sou mais nem
submúltiplo de ninguém e sim eu, com todas as veras da minha curiosidade
realística — me vou dando conta de toda essa realidade que aí está parada
diante de mim: séculos de glória e de degradação.
XVI
O INFANTE

30-IX-44 — Assim que desembarcamos fomos acantonar na cratera


dum antigo vulcão. Como não sorrir, portanto, na partida para Litória,
quando o Djalma exclamou voltado para a invisível cratera: “Também eu
quisera já estar extinto!”
Estranho e funambulesco esse Djalma! Ainda em Nápoles, enquanto nos
recebiam com as formalidades de estilo, ele deu uma palmada nas costas do
4654, que olhava embevecido para a cidade, e lhe bradou:
— Ver Nápoles, e depois morrer!
O 4654 encolheu o ombro e sorriu com seu feitio bondoso, e lá foi
conosco para Agnaro. Todavia, assim que ele, depois, se aboletou num dos
caminhões norte-americanos em Litória rumo a Tarquinia, a Morte começou
a descer incógnita do alto da Linha Gótica...
Não sei o que o 4654 pensou quando seguia conosco pela pista lúgubre
da linha eletrificada cujos trilhos retorcidos pareciam oferecer um percurso de
pesadelo aos nossos pensamentos. Não sei o que ele pensou pondo os olhos
cândidos nas locomotivas desventradas, no concreto explodido, nos postes
carbonizados, nos rombos abertos por pressões fulminantes, nas estações
centrais reduzidas a pátios desolados como telas de De Chirico.
Acho que estranhava aquele aspecto de ruína. Creio que sua mãe no
Brasil lhe explicara de outra forma as ruínas da Via Ápia ou da Via Panônia.
Mas o que os norte-americanos lhe exibiram como ruínas em Minturno e em
Fórmio, por exemplo, nada tinha dos desmoronamentos advindos dos séculos.
Não era a senilidade mutilada das cidades macróbias, não! Era a síntese lívida
do anátema: “Nem pedra sobre pedra!” Era a Antiguidade triturada pela
técnica.
Pois bem. Dias depois, o 4654 morreu ao tomar banho na praia
decrépita de Civitavècchia. A Morte, deixando tudo mais, por um desses
caprichos de megera, desceu incógnita lá do alto da Linha Gótica para afogá-lo
em condições de rotina civil...
Já depois, em Vada, o Djalma me saturava fazendo trocadilhos de
péssimo gosto, fingindo agarrar-me e aconselhando: “Não se evada! Não se
evada!” Todavia, quando mais tarde tomou parte nos exercícios reais em
Riparbella, os mugidos tonitruantes da artilharia do 2.º R. A. Au. Reb. o
fizeram evadir-se para os páramos da loucura. Fui dos que o levaram a custo
para o hospital norte-americano de Neuro Convalescence.
Em agosto, a primeira grande marcha que efetuamos me pareceu
inverossímil, porque nos ordenaram que seguíssemos para o Tirreno. Além
disso o aspecto da costa me deu a impressão nefelibata (e até então não
encontrada nem mesmo em certa literatura e nem em telas de imaginação) da
luta da terra com as ondas (e não o contrário, como seria de supor!). Se diante
de Nápoles vimos um naufrágio inerte de proas, chaminés e mastros se
liquefazendo ao sabor das ondas plácidas, memória bem recente da invasão,
aqui neste litoral vimos a terra organizada em resistência, resolvida deveras a
opor-se ao mar e ao que do mar viesse. Boiando depois diante de tal anfiteatro,
contemplei durante mais dum quarto de hora a quantidade absurda e
fantástica de rolos de arame, cavalos de frisa, fortins costeiros e embasamentos
para canhões. Estava eu no Tirreno diante do flanco da Itália, ou fiscalizava
como sentinela avançada a integridade dos penhascos da Inglaterra obturados
de metal e pólvora?
Em Vada estivemos num interregno meio pagão, pois o acampamento
viveu sempre enguirlandado de parreiras. Dir-se-ia que de fato, para não se
ver a verdade medonha, só mesmo o recurso reflexo da embriaguez. Assim, a
primeira sensação vibrátil de guerra e a primeira ânsia de vitória rápida
passaram por nós como um frisson na madrugada do dia da invasão do sul
da França. Formações e mais formações de fortalezas voadoras não cessavam
de cruzar o céu, como peças desmontadas de arsenais se deslocando no ar com
o respectivo leque de planadores.
Nanny decerto leu nos jornais e ouviu no rádio as notícias de que os
vilarejos que bordejam Cap Ferrat, e mesmo Nice, Menton, etc., caíram...
Cuidar-me-á, decerto, entre as tropas da libertação. (Já tenho duas cartas dela
mandadas ainda para a Vila Militar. Li-as armado até aos dentes, pois já
começou a distribuição de bazoocas, metralhadoras e fuzis Springfield).
A rapaziada ianque nos deu aulas de montagem, desmontagem e
utilização do armamento. Adestro-me visando um pillbox em plena praia,
depois que adquiri golpe de vista e mão mais certeira no estande de Palazzi,
na Rota 1. Vou mandar para Nanny (para vovó, não, ficaria nervosa) um
instantâneo meu cavalgando um 88.
Já somos parte integrante do V Exército. No dia das comemorações de
Caxias, o Primeiro Escalão Brasileiro foi convidado a unir-se às glórias e
tarefas da gente de Mark Clark, que pessoalmente nos dirigiu a palavra
lembrando que estava próximo o primeiro aniversário do desembarque em
Salerno e Anzio.
Depois da visita desse cabo de guerra e das cerimônias empolgantes,
começou o adestramento rijo. Assim pudemos diferenciar o que seja parada,
desfile, e o que significa a arte e a profissão do soldado, sentindo que ia
começar a coparticipação verídica.
De fato. Os estágios principiaram. Muita gente graduada foi para
Caserta. Tivemos dez horas de exercícios durante o dia; e às vezes mais três
horas de noite.
A impressão deste teste da Vada prenunciou que estávamos quase
maduros para a linha de frente. Após exercícios reais com emprego espetacular
de munição, houve conciliábulo entre os graúdos do IV Corpo e a nossa alta
oficialidade, em Staffoli. Fui designado para intérprete quanto a assuntos de
mera técnica rotineira; mas quando chegou a discussão da parte tática,
pachorrentamente agradeceram meus préstimos e me despediram, tomando o
meu lugar eventual não qualquer Mestre Pracinha, mas o major Walters.
31-X-44 — Antes, tive tempo de escrever a vovó cartas de duplo
aspecto. Reais e sinceras quanto às impressões emotivas do Mediterrâneo e dos
trajetos desde Bagnoli até aqui. E períodos de despistamento quanto às
impressões dos primeiros contatos com a guerra propriamente. Declarei-lhe
minha certeza de que em breve, com a paz e as primeiras soluções da vitória,
irei percorrer aquele périplo que ela expôs a meu pai em cartas de 1913 desde
a Riviera até Florença, desde Arezzo até Assis, desde Ravena até Veneza. E
para desmanchar qualquer atmosfera não disfarçada de todo, lhe mandei
também as minhas impressões sobre o “Buldogue”. Sim. Vi-o de perto,
atarracado, brusco, pertinaz e onímodo, com seu charuto espesso. Winston
Churchill. Não perde tempo. Esteve no sul da França assistindo ao avanço do
VII Exército.
Não lhe contei, contudo, por exemplo, que no dia 11 durante os
exercícios reais se deu a explosão duma mina ferindo diversos rapazes da 6.ª
companhia. Vendo como ficou e como morreu o Gonçalves, senti a verdade
daquela expressão de Habacuc: “Tendes os olhos puros demais para ver o mal
e enxergar a iniquidade”. Realmente. A mocidade é pura demais, ainda,
apesar de tudo, para afazer-se a isto. Existe nela assim jungida à guerra,
qualquer coisa de Prometeu e de Hipólito cujos suplícios se correspondem em
face do bem e do mal. A mocidade está ainda próxima de Deus, que é a
criação, e longe do demônio, que é a destruição. E a dor física (ou a
deformação) significa um sacrilégio à harmonia da ordem criada. Ver um
corpo humano estilhaçado é como ver um templo caído. Ver sangue banhando
a morte duma criatura, ver seus recessos expostos, é assistir à conspurcação
eucarística.
Assim, a providência imediata é inventar para uso provisório e urgente
a assimilação do absurdo, e criar uma filosofia sumária. O mundo e a
realidade estão limitados a Isto Aqui, para nós. E deixa de existir o tempo,
ficando só uma relação de espaço entre a expectativa e o pânico.
Se um pracinha morreu por não saber nadar direito no Tirreno, se o
Oliveira perdeu o pé num regato e se afogou, isso é ainda a vida em liberdade,
foi ainda um desejo de união com a natureza, como a folha nova que o vento
atira nas águas e que desce fundindo-se à correnteza. Mas se o Assunção, com
esse nome tão acima das contingências, e o Gonçalves morrem esquartejados
por explosões, parece então que não é só a guerra que é horrenda, e sim o fato
da ciência se vender ao sofrimento afoito do sobrenatural. Vender-se às cegas,
sendo instrumento afoito de subserviência. O caso, por exemplo, do jeep que
estraçalhou o Francisco que ia distraído por uma estrada. Só a mocidade pode
pensar que uma estrada em tempo anormal seja platibanda para paisagens e
não pista para escalar o Tempo através dos sucessivos Limites...
O interessante é que estamos fazendo estágios em dois Regimentos
norte-americanos cujos nomes completam a noção genérica desta limitação.
Um se chama Red Bull e o outro se chama Blue Clover. Touro Vermelho.
Trevo Azul. Perfeitamente. Neste setor de guerra breve veremos que a guerra é
isso, de fato. Um touro vermelho que marra investindo pelos corredores
lôbregos do labirinto de Minos, certo de que hão de querer aplacá-lo
oferecendo-lhe molhos de trevos...
Este mês fomos fazer por conta própria nosso primeiro teste de
capacitação. Somos um núcleo independente, o “Destacamento da FEB”.
Mexemo-nos nacionalmente, temos uma cidade nossa, espécie de distrito de
além-mar, Ospedaleto, entramos como formigas ou coelhos no que todavia eles
chamam fox holes ali em Filettole, diante duma “terra de ninguém”. Quatro
dias depois éramos libertadores rodeados pela criançada de Bozano e
Massarosa. Ainda bem. Sempre serviu como reestruturação psicológica para o
Djalma, que voltou do Neuro Convelescence.
Mas não tardou que, como cunha cravada entre a Task Force 45 e a
Primeira Divisão Blindada, víssemos e sentíssemos a guerra, o que seja
bombardeio de artilharia. A voz da guerra. A sua retórica. Não existe silêncio.
Existe esse ressoo fulminante, duma arrogância que convence e humilha. E,
saindo desse mugido cavo, como quatro coelhos, os quatro primeiros
prisioneiros alemães. Prisioneiros, ou desertores? Quatro fomes. Quatro
pânicos. Quatro misérias. Ou quatro disfarces? Foram os quatro ratos que
emergiram de Camaiore, do molhe sinistro daquele porto de lampejos
fulminantes se refletindo em Monte Prano.
A Companhia de Petrechos Pesados do 2.º Batalhão e a 9.ª Companhia
receberam estilhaços de granadas. Os morteiros mataram os nossos primeiros
colegas da FEB. Dias depois os telefonistas Morais e Lopes sumiram, até que,
vindo lá do impossível retorno surgiu o Lopes, meio apupado por si próprio...
Bem. Já estávamos sendo veteranos. Já havia feitos. A lenda já
sublimava em transferência otimista o primeiro rescaldo.
Ghirlando, Pifer e Marochi, jazeis enterrados por primeiro na terra,
cuja existência no mundo talvez ignorásseis até outubro de 1944. Lívidos
corpos entreabertos, vós me fazeis considerar: qual a diferença entre os mortos
e as sementes? E tu, João Lopes, não te desvencilhaste do destino?
Não sei o que pensa o nosso PC Avançado, de Quiesa, antes de
transferir-se para Ponte a Moriano. Sei que se recebeu a visita do Ministro da
Guerra em Bologna; que se perdeu uma patrulha dias depois; e que uma lista
enorme de cidades e aldeias, desde Massarosa até Ghivizzano, caiu em nosso
poder. A isso, em San Rossore e em Quiesa chamam “progressão à Linha
Gótica”, ou, “primeira missão do Destacamento FEB”, ou ainda: OGO n.º 12
referente à rocada para o Vale do Sérchio.
Seja como for, os correspondentes de guerra hão de ter sabido intercalar
títulos e subtítulos, com fartas descrições e abundantes pormenores. Foi através
deles, por exemplo, que obtive informes sobre o cenário diante do qual
alinhavei estas notas ainda no tempo em que as nossas patrulhas (cordões)
afundavam na “terra de ninguém”. Assim, metido no meu fox hole, longe
estava de supor que no anfiteatro misterioso estacionava a cavaleiro de nossas
posições a 42.ª DI Alemã, ao passo que os nossos II e III Escalões, quase onze
mil soldados, treinavam já em San Rossore. Não como nós em Bagnoli,
Tarquinia e Vada, mas numa quinta real, acampados em alamedas, à espera
de realizar deveras o período de Instrução da Diretiva Geral n.º 7, em Filettole.
Em compensação, os correspondentes de jornais souberam por nós o que
foi a impressão de atravessar campos minados, o fogo que suportou a 9.ª
Companhia, as peripécias heroicas da Patrulha Tenente Cabral, a maneira
pela qual morreu o Aguiar unido à sua metralhadora.
Este mês de outubro acabou de modo agourento. Já estávamos no
redemoinho mesmo. Digam-nos a 2.ª, a 3.ª e a 7.ª companhias, por exemplo. E
em seu último dia conhecemos a derrota. Ainda bem que foi um revés local.
Desde o dia 17 a cobra estava fumando oficialmente em pleno corpo do
Exército Provisional, e progredíramos cerca de quarenta quilômetros.
Vou reingressar no Regimento Sampaio, de que fui até aqui uma
representação avançada. Deixo o 6.º Regimento que não precisa de mim. Ele,
na Conferência do Passo della Futa, às 2 horas da tarde de 29 de outubro, pela
boca já não digo do Comandante da 12.ª DIE, mas dos fatos, e pelas
comprovações de Brayner e de Walters, tinha em seu ativo e passivo de
campanha: quarenta quilômetros de progressão, duzentos e tantos prisioneiros,
trezentas baixas, e uma experiência dura desse embate no Vale do Sérchio.
1-XI-44 — E eu, que foi feito de mim nesse período? E o que será de
mim, doravante? Não morri, pois morreram por mim 13 elementos da FEB até
agora. Não fui ferido. Isso coube a 87 companheiros meus. Não fui herói, não
fui nada. Cheguei até diante da Garfagnana. Agora parece que vou para o
Vale do Reno. Deduzo, porque consta que o Quartel-General Avançado da 1.ª
DIE (isto é, o que antes operou no Vale do Sérchio como Destacamento da FEB
e acrescido agora decerto dos II e III Escalões) já se transladou para a Emília,
instalando-se em Porretta Terme. Não sei se conhecerei a região imensa de
Emília. Talvez não. Da mesma forma que não cheguei a conhecer Emília
minha mãe, morta ao dar-me à luz.
Ou talvez o destino me leve a fazer essa transferência e eu conheça
deveras o chão, o corpo de Emília, cujos olhos azuis são Ravena e Rímini, cujo
coração é Ferrara e cujo cérebro é Bolonha. Tomara que eu vá para Emília e
fique lá de alcateia e de atalaia, como a avó Virgínia ficou diante do mar onde
estão meu bisavô, meu avô e meu pai.
Para alguma coisa fui criado. Mas recebi uma educação que em face da
rotina e do cotidiano me deixa como aquele albatroz de Baudelaire e de
Melville, a que se referiu Nanny. Meu tio-avô Maurício me educou para
exceção e modelo, como logaritmo.
Minha avó Virgínia reage pelo fato de viver como testemunha de
tragédias sucessivas não só da família como do mundo e do século. Assim pois,
apavorada com a marca do que seria o meu signo, andou a querer subtrair-me
dos nodos dum horóscopo fatal (não que seja dada a astrologia, creio mesmo
que ignore o que isso seja, ou desdenhe in limine), criando-me e educando-me
acima e fora do mundo, como uma abstração. Isso, nada tinha de egoísmo;
antes, era defesa, pois procurava tornar-me estanque à desgraça. Mas a minha
convocação para o exército, a verificação de que eu, não obstante tudo, existia
em contingência de unidade social, a despertou do primeiro equívoco. E então
a avó Virgínia percebeu com grande pasmo que sua missão fora educar-me à
parte, como reserva para holocausto, como o cordeiro ritual! Sentindo, coitada,
que viver era crucificação a que nem escapara o Deus feito homem, de nada
valendo como no caso de seu esposo o estado dionisíaco, nem no caso do filho
o estado dialético, resolvera insular-me da desgraça. Resultado: cá estou, na
Itália...
Avó Virgínia. Em vão o tio Maurício quis fazer de mim um logaritmo
humano. Impossível, bem sei. Mas ainda assim eu seria uma experiência em
função das realidades. Isto é, saberia haver-me em face do leão de Nemeia, da
hidra de Lerna, do monstro da Arcádia, do javali de Erimanto, lavaria os
estábulos de Aúgias, lutaria contra as aves de Estinfales, o touro de Creta, o
jumento de Diômedes, os bois de Gérion, e desceria sem complexos ao Inferno.
Assim, fui tudo no conceito da avó Virgínia, que sem querer me
transformou sucessivamente em várias reservas humanas. Agora aqui estou
nesta rocada para o Vale do Reno, um infante numerado e extraído do
Depósito de Pessoal, que é a mocidade desta época, para aquele ciclo de
guerras que banham a humanidade como marés periódicas.
Não sei se me insurja contra meu destino diante de 232.ª DI alemã ou
se me resigne a sentir-me reencarnação do eterno Infante. Fecho os olhos e não
me vejo em ação, mas sim um múltiplo dos mortos de todas as guerras. E vejo
minha avó Virgínia transformada em Malamatênia, a Carpideira.
Revestido de amianto e de estupor, estou morto na grande noite atônita.
Meus olhos que ninguém fechou são duas lentes gelatinosas registrando a cena
onde há milênios me repito. Sou sempre o mesmo, o último e o primeiro. Assim
que cresço e fico moço, morro.
Há quantos séculos, Malamatênia, ó mãe, ó viúva, ó esposa, ó noiva, ó
filha, tens chorado com timbre lancinante as minhas várias mortes sucessivas!
Tu, gárgula de prantos e clamores, dos telhados da Eurásia e do gerúndio,
despejando lamentos sobre mim!
Ah! Continua o ciclo reversível: chegas depressa, com teu xale negro, o
queixo ensalivado, as sobrancelhas altas de cinza, as unhas encardidas de lava,
e ululas, desgrenhada, os teus mirólogos de pitonisa e bruxa, carpindo a eterna
vítima das guerras.
Vi-te a primeira vez quando eu, cadáver atirado na beira da caverna
junto ao burgo lacustre, compreendi, no silêncio anterior às explosões, que tu
eras a mãe, a irmã e a noiva... E milênios depois te vejo agora rente aos
destroços dum quadrimotor.
Nas noites ocas das derrotas lúgubres, vendo-me morto embaixo da
carreta, perto da tenda, ao lado da cisterna, na paisagem da antiguidade
anônima, fizeste de teu colo catafalco chorando a minha condição primeira de
pastor, artesão, oleiro e escriba.
Diante de multidões e propileus, ao cheiro de resinas e de incensos, nas
praças de arquipélagos históricos ou nas clareiras lívidas das tribos, proferiste
lamentações rouquenhas em sânscrito, canará e telugu, em iambo, em elegia e
em latim bárbaro.
Andei com Menelau e já morri nas ilhas todas que há no mar Egeu. E vi
anões com crânios de rabichos te rodearem brandindo archotes rubros lá no
feudo mongol, em Cublai Cã, muito depois das minhas outras mortes nos
tempos de Horemheb e Hamurabi.
Cada vez que tombei no monte Halac, em Goshen, Jericó, Zama,
Farsala, os mágicos me deram vida nova para morrer de novo em Azincourt,
Verdun, Madri, Narvik e Stalingrado. Pois este é o ciclo eterno e reversível:
sempre que cresço e fico moço, morro.
Eu quero arar os campos para o trigo, quero vigiar rebanhos nas
encostas, cantar nos estaleiros e altos fornos. Mas me arrancam das aulas e dos
teares e me jogam no lodo das trincheiras.
Não adianta chorar, Malamatênia! Corta as entranhas, para que eu
não nasça!
XVI
AMARRANDO O DRAGÃO POR MIL ANOS

4-XI-44 — O Bráulio Moreira já a bordo do General W. A. Mann


armara uns rolos; e, se é violento e impulsivo, nem sempre guarda isso para as
escaladas das diversas cotas; de modo que tem tido seus aborrecimentos com a
Polícia Militar e uma vez recebeu mesmo ordem de prisão. Mas, desde o
sábado passado tinha sido quase impossível tolerá-lo, porque quis engalfinhar-
se com o sargento Silva e convidou o aspirante Costa para uma conversinha
particular, de homem para homem, por exemplo não ali, por causa dos
regulamentos, mas em Pisa ou Florença, ou mesmo em Lucca. E tudo isso
porque sua fama de valentão sofreu muito no sábado. Como?
É que, tendo sido parte duma patrulha que foi acometida
inesperadamente por um pelotão alemão (do 25 RI que domina Castelnuovo),
desceu em tal disparada, tomado de pânico, que entrou no PC do seu batalhão
numa carreira louca, tendo derrubado até um posto de rádio da Cia. de
Obuses que estava transmitindo um programa. Entrou desabaladamente,
como um touro marrando. Os companheiros do “cordão” chegaram quarenta
minutos mais tarde, com um ferido, e faltando dois. O cabo informou que se
tratava dum golpe de mão de gente do 25 RI. O Bráulio Moreira retificou que
vira um batalhão inteiro descendo para a transversal rodoviária de Roncato, e
que viera avisar... Tomadas as medidas, lançadas outras patrulhas, estas
voltaram trazendo os dois extraviados que por sua vez deram razão ao cabo:
tratava-se duma patrulha alemã. Quanto ao susto de Bráulio Moreira
achavam que fora causado por um “sopro” que o projetara longe. Sim, tinha
passado uma granada de grosso calibre que, arrebentando, produzira um jato
de ar... Risadas! E o Bráulio Moreira, zonzo, a refletir... Mas com as piadas
(aliás não era qualquer um que fazia piadas com o gaúcho), do sábado para
ontem, ele ficou fulo. E, se explicava que vira um batalhão descendo para a
ferrovia, caíam na risada o Jerônimo e o Monteiro; como eram amigos dele, e
fortes como ele, resolviam o caso com empurrões; mas com os remoques do
sargento Silva e a descompostura do aspirante Costa não se conformava,
reagia, fumando, desafiando-os... até que ontem...
Sim, ontem fui com ele e mais outros, de madrugada, substituir uma
patrulha que regressava. Era preciso verificar se na platibanda dum morro
havia forças ou se se tratava de mero ninho de metralhadora dominando a
cota. Saímos às duas da madrugada, devendo regressar às quatro, pois a
distância não era grande, apenas o acesso sendo íngreme. Escuridão total.
Seguimos espaçadamente em fila, galgamos, demos a volta, a fim de
surpreender pelo outro lado do espigão. O Peixoto resvalou, caiu, foi um custo
descobrirmos em que ponto da ribeira poderia estar ferido. Mas soubera cair,
deslizando. Assim que, às três e dez, nos abeiramos da casamata, por detrás,
uns gigantes louros calaram as baionetas, acenderam um refletor e, após luta
corporal, tiros de armas automáticas e barafunda incrível, eu, o Soares, o
Sousa e o Pinhal saímos a correr que nem o Bráulio naquela outra vez, porque
uma metralhadora cacarejava lugubremente com sua língua de fogo, caçando-
nos em rotação sistemática...
Na cota, junto à margem da ribeira, no lugar onde caíra o Peixoto,
esperamos. Como uma fúria, desceu com ressoo cavo de botas, um. Outro.
Mais outro. Só faltavam três: o aspirante Costa, o sargento Silva e o Bráulio
Moreira. Esperamos. Nisto a tal metralhadora, decerto tendo limpado a
platibanda lá em cima, virou na nossa direção e haja matracar-nos... Nova
corrida desabalada, a esmo, com as sapatorras ressoando no chão como
pilões... Paramos na ribeira, bebemos água, lavamos a cara, ofegando. Ficamos
ali a arquejar. Puxa vida!... Agora, um silêncio. Que fazer? Voltar para junto
dos nossos com a falta de três e sem poder informar nada, o que tinha sido
feito deles, se se tratava dum simples abrigo...?
Às quatro horas, tempo marcado para o regresso, decidimos recolher.
Mas, e os três? Aconselhei, sem muito entusiasmo, que voltássemos até às
imediações, ao menos para, mediante a resistência que nos oferecessem,
deduzir alguma coisa. O Peixoto na frente. Uns vinte metros atrás, eu. E assim
por diante, cautelosamente. O essencial era depreender o que teria acontecido
ao Moreira, ao Costa e ao Silva. Assim, chegamos perto, ouvimos vozes do
Moreira, nitidamente. Chamei-o, baixo, alto, de perto, rente já à seteira. O
projetor se acendeu e se apagou. Num vislumbre, vi o Moreira senhor da
situação, e três corpos encapotados de bruços no solo. Mas até chegarmos lá já
eram cinco e vinte. Clareava quando começamos a descer. E já era manhã
quando entramos no PC do nosso batalhão. O Peixoto arcado sob uma
metralhadora com os respectivos quatro canos sobressalentes. Pudera! Tinha
uma força de estivador. O sargento Silva com um saco contendo não sei
quantas granadas. O aspirante Costa vergado sob o peso duma caixa de
munição pontiaguda para fuzis. Eu com um saco de máscaras contra gases. O
Soares com oito foguetes sinalizadores. O Pinhal com três bocais para
lançamento de granadas. E o Bráulio Moreira com o único alemão vivo dos
quatro que lá estavam havia duas semanas neutralizando uma cota. Entrou
no PC com o alemão arrastado pela gola, jogou-o com um munhecaço em
cima do posto de escuta da Cia. de Obuses...
7-XI-44 — Dirigindo o jeep “Quebra-Galho”, fui ao PC em Le Corti,
com mais três companheiros, levar uma papelada. Os companheiros ficaram,
outros os substituíram, e toquei para Livorno onde entregamos outra pasta na
Pagadoria Fixa da nossa Seção de Base. Atulhamos o jeep com sacas do
Correio Regulador, tocamos para Pisa. A turma cantava sambas porque ia
descansar em Florença. Larguei-a no Depósito de Pessoal do 11 RI, aproveitei
a ausência do meu chefe, que estava em Viareggio, para ir ver os estragos do
Camposanto.
Foi então que vim a conhecer o Tancredo, do Pelotão de Sepultamento.
Tratei de rodeá-lo de gentilezas, por causa das dúvidas. E, sentados, num café
ali ao lado do Duomo, conversamos até o tenente Faria chegar de Viareggio.
O Tancredo pediu-me o postal reproduzindo o mural de Orcagna (que
os bombardeios danificaram), olhou bem para os três esquifes diante dos quais
uma comitiva apertava o nariz por causa do fétido, virou o vermute, pediu
outro, recostou-se para trás, disse:
— Fique descansado que não o deixarei chegar ao estado de qualquer
desses três defuntos aí. Assim que falta gente numa patrulha vou e, “embalado”
com os padioleiros, fuço daqui, dali, trago os corpos ainda quentinhos. Que
diabo! Por enquanto não temos tido tanto azar assim. Faltam aquele tenente e
aquele aspirante da refrega de 31. Também o sargento. Não quiseram que eu
me arriscasse. Tolice! Com um homem como o capitão Coutinho, não se tem
medo de ir buscar os companheiros extraviados.
— Você o que era lá no Brasil, Tancredo?
— Baiano, cabeça-chata, vendendo em São Paulo a Lei do Inquilinato
na esquina da rua 15 com a Praça da Sé. Aqui é melhor.
— Como assim?
— Lá não sei que caminho tomaria... Aqui faço o bem. Comovo-me,
capricho no trabalho. Parece que na Bahia andei treinando para isto aqui.
— Como? Foi coveiro em Salvador?
— Não, doutorzinho. Cantava “enigmas” na feira de Nazaré. Quer ouvir
uns e adivinhá-los? Então me abasteça com outro vermute.
E o Tancredo, numa roda de cinco, no canto do café, diante da praça
lúgubre ao crepúsculo, começou a perguntar-nos numa toada baixa,
arregalando os olhos, esperando a resposta:

“— Nasce no mato
E no mato se cria;
Quando sai de casa
É choro em demasia.”

Que é, seus moços? Vamos, puxem pelo bestunto! Que é, seu


doutorzinho? A resposta está no ar! Pau de rede de defunto, gente!
E durante meia hora o Tancredo expôs o seu repertório, por entre
risadas e discussões, atuando de mesa em mesa.
O Varela perguntou-lhe:
— Diga-me uma coisa: você pronuncia tudo tão bem, sem gramática
errada...?
— Ora, rapaz, eu fui camelô! Como se há de embasbacar gente nas
esquinas para vender coisas rematadas, não falando direito? Então, onde é que
vamos brigar agora, meninada? Como é doutorzinho? Vai passar uns dias lá
em Florença ou volta para Porretta Terme?
— Agora estou no Regimento Sampaio.
— Chi! Então saiu duma alhada e vai meter-se noutra, hein? Fique
descansado que aqui o Varela o irá buscar de padiola se o doutorzinho
demorar nalguma patrulha. E eu, já sabe, pode contar, que capricharei.
— Não está muito certo este negócio aqui — reclamou o Varela. — O
Costa veio conosco, arranjou meios e modos de passar para o Serviço Especial.
Para todos os efeitos nós dois lá do Meyer estamos aqui na guerra. Só que eu já
comi fogo em Pescaglia juntando feridos debaixo de morteiros e passei susto
que Deus me livre em Fornaci, tendo até trazido por engano um defunto
alemão dos quatro que caíram lá... Ao passo que o Costa, que trabalhava na
Assistência do Meyer como eu, há dois meses vive muito lampeiro em
Florença. Um dia entro no Albergo Nazionale, perto da Estação, quem me
atende na portaria, todo formalizado? O Costa! De noite ainda me estragou
um namoro na porta do clube dos Oficiais, em Lungarno, quando eu e uma
garota que trabalha em Fiésole ouvíamos uns sambas do tempo do onça.
Contou a ela que eu era do Pelotão de Sepultamento. Esse está marcado! Se
um dia dou com ele estirado, digo-lhe: “Vai aguentando por aí, que tenho que
tratar doutros, primeiro”. Outra vez fui procurar o Norberto, levar uns versos
do Vicente para o “Cruzeiro do Sul”; pronto, lá estava bancando o tipógrafo o
Costa! Outra vez vejo chegar um jeep com pacotes do “Zé Carioca”; quem
fazia a distribuição? O Costa! Pergunto: está direito? Lá para o pessoal do
Meyer nós dois representamos a Capital dos subúrbios na FEB. Mas se eu
arranjo uma folga e cretinamente penso que me vou distrair, dançar com as
pequenas em Lucca, levo mais chumbo do que se estivesse ainda na
Garfagnana! É como o Asdrúbal, que ficou em Nápoles, servindo de bedel na
Justiça Militar. E o Amâncio, então! Esse não é mais companheiro de violão
como no tempo de bordo: agora é da Polícia Militar. Fiscaliza o trânsito, sim
senhores! Fiscal de trânsito. Dei com ele todo perfilado em Montemagno, na
estrada de Lucca-Camaiore... mas é claro, depois que já tinha caído Monte
Prano! Não pude resistir! Saltei, dei-lhe uma cabeçada no estômago. Para quê?
Danei-me todo! Prendeu-me, assoviou, só me soltaram na Ponte Carioca,
depois que lhe pedi desculpas.
Todos riram. Então o Terêncio disse, acendendo um “destronca-peito”:
— Isso não é nada. E o Gomes da Pagadoria Fixa! Esse é autoridade
mesmo, trata a gente como se fosse Rothschild. Secamente, altivamente. Tenho
vontade de fazer-lhe cócegas.
— Como é, Noraldino, conta aquela anedota do inglês artilheiro!
— Ahn. — E o Noraldino a contar uma das suas patuscas anedotas, em
gíria. E outra. Mais outra. Uma infinidade delas. Mas chegou o tenente Faria,
tive que tocar para a guerra. A Torre Inclinada lá ficou com o Vital e o
Cláudio, alegrotes, a quererem ampará-la.
No percurso, o Noraldino ainda contou algumas facécias. O tenente
Faria achava graça. Mas do grotesco para o trágico pouco falta! A noite ia em
meio, e eu no escuro procurava guiar cautelosamente.
O Noraldino ainda contava anedotas quando parei em Fattoria para
reabastecer o jeep. Havia formalidades a preencher, soubemos que o pessoal da
Manutenção acabara de fechar o posto por falta de essência e lubrificante que
já estava aguardando de San Rossore. Fomos parar num bailarico cujos sons
de harmônica nos chegavam duma casa hermeticamente fechada.
Pares dançavam numa sala. Partigiani e brasileiros, com moças da
região. Um verdadeiro esperanto funcionava como entendimento para bebidas,
cantos e namoros. Dançava tudo. Até as candeias dependuradas no teto
fumarento. Um tenor estentórico não pôde cantar sua mandolinata porque os
pracinhas não deixavam. Mas o Adroaldo, o locutor, comentarista e tradutor
de notícias captadas no rádio da Companhia de Obuses, enquanto o
Astrogildo sozinho manobrava uma bateria de jazz, se pôs a cantar coisas do
Noel Rosa, imitando Mário Reis, com perfeição. Foi um sucesso!
Depois o Assunção fez um número imitando Mussolini na sacada do
Palácio Venezia e uma algaravia imitando Hitler, com o competente bigode e
os respectivos socos. E fez tão bem que um dos ouvintes, o cabo Aristeu, um
chocado de guerra que saíra dum hospital de restauração psicológica, teve um
acesso, danou-se a quebrar tudo quanto era garrafa, e mandar diretos nos
queixos dos partigiani, a virar cadeiras, balcão, lâmpadas e harmônicas.
Aquilo, no escuro, era grotesco, em meio à gritaria das mulheres e os
baques no chão e nas paredes dos partigiani acuados.
Resultado: de manhãzinha, já com o “Quebra-Galhos” abastecido, fui
levar o Aristeu, um estudante de filosofia barbado como um Rasputin e forte
como um mujique, até ao hospital de triagem de Pisa. O Noraldino e um tal
Garcia procuravam imobilizá-lo, enquanto eu descia em velocidade tal que
quase, numa curva, nos aconteceu cair num grotão onde uma ribeira só nos
apresentava penhas e lajes! Enquanto isso, ora caindo para um lado do jeep,
ora para o outro, o Aristeu, agarrado pelos pulsos, debatendo-se, clamava:
— “Vi um anjo em pé no sol! Vi a Besta, os reis da terra e seus exércitos
reunidos... Vi um anjo descendo do céu, tendo a chave do abismo e uma
grande cadeia na mão. E ele se apoderou de Satanás e o amarrou por mil
anos!”
— Está bem. Então vai ser ótimo! — redarguia-lhe o Noraldino. — Por
que esse escarcéu, então! Mil anos de paz, menino, que mais quer você? Quieto
aí.
E eu me lembrava de novo da expressão de Habacuc, mas sem delirar
como o bom do Aristeu: “Tendes os olhos puros demais para ver o mal e
enxergar a iniquidade”. Como é que se joga a mocidade neste absurdo? Como
não hão de estar repletos os grupos suplementares do Serviço de Saúde em suas
seções de restauração psicológica, se só o troar da artilharia já basta para
desequilibrar um cérebro?
Entregamos o Aristeu a braços que não o afastarão da hecatombe, mas
que lhe tonificarão os nervos para voltar ao teatro da catástrofe. É o que
esperam estes acidentados que vejo na enfermaria com aparelhos de gesso. Foi
o que me declarou aquele médico ianque, que sabia bem curar estados
histéricos, ansiosos, fóbicos, convulsivos, neurastênicos, debelar com arte
mágica as organo-neuroses e as neuroses traumáticas. É o que espera aquele
indivíduo que tem sobre si, como um helicóptero, uma engrenagem de fios,
pás, roldanas e carretilhas, com algarismos escritos embaixo dizendo em que
data, já submetido a massagens e exercícios, poderá voltar. Sim, somos poucos,
só três Escalões, só quinze mil homens; os outros, que serão talvez uns dez mil
e que chegarão para o inverno, ainda terão que se adestrar. Ainda bem que a
ciência colabora. Seu intuito precípuo, sabe-se, é realizar, através de
investigações, meios e modos de estabelecer o bem-estar da humanidade e o
convívio fraternal dos povos. Venda à prestação de geladeiras, rádios,
automóveis, pois não é o mesmo? O Mílton, lá no Rio, não sabe de cor os
milagres da química expostos por William Haynes? O Lauro não sabe o
romance da aviação, a conquista dos ares muito bem catalogada por um tal
Karlson? Não existe alhures um sujeito com o nome de Paul de Kruif que em
brochuras de 15 por 22 nos ensina a ler no ônibus “O Combate pela Vida”, “A
Luta contra a Morte”, “Os Vencedores da Fome”?
Bem. Vou voltar num jeep para a frente de batalha já numa outra
província italiana. Os sucessos do Vale do Sérchio me conferem o título de
“veterano”. E enquanto subo e desço montanhas vendo ruínas recentes, algum
estudante bem-comportado se vai inteirando lá no Brasil, de coisas assim:
Explosivos na Guerra e na Paz. O Combustível do Futuro. O Mundo das
Matérias Plásticas. Borracha de Laboratório. A Era dos Eletrônicos. A Usina
Atômica. O Motor a Turbojato. O Betratônio.
Minha avó Virgínia, que já sofreu no sangue, na carne, na alma e no
espírito, ensaiou apartar-me, procurou criar-me numa extraterritorialidade,
pois sabia que não só os políticos totalitários e conservadores, os Estados-
Maiores e as místicas, estavam tornando isto um matadouro da mocidade,
mas também os laboratórios de pesquisas. Hoje já não se morre, se estoura!
Bem, pois lá vou eu para o estouro!
Se a minha geração servir para liquidar um estado de coisas, bem. De
fato o que está aí não pode continuar. E está acabando uma experiência de
guignol maciço. De modo que aqui vou eu no jeep para fazer qualquer coisa
infinitesimal em bem do mundo. Se os “tais” ficarem amarrados por mil anos,
como acredita o Aristeu, ainda bem. É verdade que o Almeida, por exemplo,
colono na Alta Paulista, veio para a guerra, e o japonês para quem ele
trabalhava colhendo algodão continua indo em Marília à sessão de cinema
das sete às nove horas para ver como estão as coisas nas Ilhas Salomão... É
verdade que o Ludovico deixou a fábrica dum fascista em Santo André e sabe
de cor os lucros, não confessados por inteiro, do último balanço...
Que reação tola é essa tua, Fernando? Afinal não terás sorte bonita
como Psichari? Como Péguy? Ou mais ainda, como Apollinaire?
Olha, rapaz, que poderias estar num campo de concentração... Ou
vogando desde dias num barco de borracha no Pacífico. Ou acuado entre
lordes e condessas sardentas num subterrâneo da Crommwel Street. Ou
ouvindo Jaspers provar que o desespero é uma crise através da qual o homem
pode alcançar também a sua “existência autêntica”. Pois então! Afinal,
estiveste em Florença, percorreste santuários, embasbacado para tetos e
retábulos, cúpulas e mausoléus, adquiriste mesmo uns postais de obras-primas
da Renascença que estudaste com atenção e prazer, talvez acabes indo até
Ravena onde pegarás no chão pantanoso alguns pedacinhos de mosaico de
Santo Apolinário ou de São Vital. Quem sabe se ao vir a paz não terás um
estágio fácil em Assis?... Não lá dentro das duas igrejas; não junto ao poço de
Santa Clara. Mas ali fora, na relva, para que sejas perdoado. Talvez voltes ao
Brasil e, no fundo de tua consciência, lá no recesso mais duro, embora chegues
com a falta duma perna (para que há muletas, matérias plásticas? Hoje se faz
o diabo com o alumínio!), tenhas certeza de que cooperaste para amarrar o
inimigo por mil anos. Então, embora tua avó Virgínia ao beijar-te no rosto
disfarce para não sentires o seu horror ante tua plástica de maxilar, lhe
poderás mostrar, sorrindo um sorriso deformado por cicatriz, que lhe trouxeste
um presente. Qual?
Qualquer coisa. Por exemplo, encravada num anel de ferro, uma
lasquinha de pintura de Stefano di Giovanni. Sim: São Francisco, a Caridade,
a Pobreza e a Humildade.
Mas Fernando, isso já não está aqui nestas bandas. Já foi faz muito
para o Museu Condé, em Chantilly.
Com a breca! O quê, então?
Destino, espera um pouco. Deixa que eu mande num envelope, para
minha avó Virgínia, um pouco de terra de Siena. Deixa que eu receba de
minha avó Virgínia um pouco de terra do quintal da nossa antiga residência
no Jardim Botânico...
XVII
VIGÍLIA NO PROMONTÓRIO

NO FIM do ano, aquela comunicação do Ministério da Guerra


(levada pessoalmente pelo major Aurélio): Fernando sumira!... Virgínia
recolheu-se aos seus aposentos. Não que se isolasse pois eles davam sobre o
oceano e essa era a vastidão de que ela precisava para esperar, confiante, a
alvissareira notícia (já que a guerra devia estar no fim) do encontro de
Fernando como prisioneiro.
Conforme prometera, o major Aurélio voltou seis dias depois,
avisando antes por telefone, para entregar-lhe um mapa pormenorizado da
região Monte Castello — Castelnuovo, com anotação das variantes desde 29
de novembro até 12 de dezembro. E assegurou sua esperança de poder em
breve vir trazer uma comunicação da descoberta do paradeiro de Fernando.
Assim, munida dum informe topográfico, Virgínia de certo modo
entendia os dizeres referentes à ação de 12 de dezembro.
Dessa forma compreendia melhor certos fatos e dispositivos cuja
terminologia antes a confundia. Sabia que as expressões V Exército e IV
Corpo do Exército significavam não coisas distintas ou congêneres mas sim
um todo e um determinado pormenor deste todo. Que o V Exército (cujo
comandante era o general Mark Clark) era parte do XV Grupo dos Exércitos
Aliados (comandado pelo marechal Sir Alexander), a outra parte sendo o
VIII Exército Britânico. Que o dito V Exército contava três Corpos de
Exército, o II e o IV comandados pelos majores generais Keys e
Crittenberger, e o XII, comandado pelo tenente-general Simpson. Que a
Divisão Brasileira que fazia parte por sua vez do IV Corpo do Exército,
estava então enquadrada entre a 6.ª Divisão Sul-Africana e a Task Force 45
na presente área.
Mas tais especificações, bem como a compreensão de que o Monte
Castello constituía uma espécie de garupa do maciço Della Torraccia —
significando um baluarte mais agressivo do que só defensivo tendo a seu
dispor quase sem misericórdia longo trecho da estrada 64 — acabaram
criando no espírito de Virgínia a quase certeza de que o neto morrera.
A palavra desaparecimento era a bem dizer um eufemismo caridoso.
O major Aurélio explicara: Fernando partira no General W. A. Mann como
estagiário ou melhor, adido do 6.º Regimento por necessidade de intérpretes
a bordo; mas, bem depois da ação no Vale do Sérchio, isto é, quando da
entrada da sua primitiva unidade — o Regimento Sampaio — no campo de
operações, volvera à sua Companhia. Assim, achava-se em combate na
investida de 12 de dezembro. E o major deu mesmo informe de natureza um
tanto secreta, quanto a pormenores extraídos não só do Quartel-General.
Isto é, que o comando do IV Exército cometera à 1.ª DIE a missão de
capturar o maciço noroeste de Monte Belvedere inclusive Monte Castello
para desafogar a situação crítica da estrada 64. Que a nossa 1.ª DIE se
articulava numa frente de quase quinze quilômetros em zigue-zagues,
devido aos acidentes locais e contava com elementos ianques também na
primeira fase da investida, isto é, a 29 de novembro. Que nos baluartes a
cavaleiro do maciço se encontravam vários regimentos de infantaria alemã,
tais como o 1643, o 1644 e o 1645, enfim tropas veteranas e de escol da 232.ª
Divisão de Infantaria. Que o primeiro ataque frustrado não constituíra
propriamente uma derrota, devendo a dificuldade máxima ser atribuída ao
estado do terreno escarpado que as chuvas de dias antes haviam tornado
escorregadio. Ainda por cima a escalada para a ação se efetuara à noite, em
marcha de vinte quilômetros, que todavia tinha exigido quase oito horas de
escalada. Não, derrota, não. A artilharia do general Cordeiro de Faria atuara
de modo categórico e sistemático, operando em conjunto e colaborando
com diversos batalhões, principalmente o do major Uzeda e o do major
Cândido. Mas que este último se vira na contingência de recuar por causa
das perdas e flutuações do primeiro, submetido a implacável bombardeio.
Derrota não, pois não utilizáramos o batalhão do major Silvino nem a
reserva do 6.º; leis comezinhas de tática obrigaram ao reajustamento do
dispositivo. Mas...
E Virgínia escutava com o maior empenho.
Mas, (e isso era segredo que ele confiava a uma senhora de 65 anos, só
por achar que lhe devia uma explicação moral) que a decisão obstinada do
V Exército de retomar a ofensiva antes do rigor do inverno, obrigou nossas
forças a reconsiderar a responsabilidade confiada. Assim, no dia 10, a ordem
n.º 11 de Operações, não obstante os últimos temporais que reduziam o
retículo de acesso a um lamaçal, e não obstante o índice de visibilidade
reduzido quase a teto zero (se assim se podia dizer) impossibilitarem os
disparos certeiros da Artilharia de apoio, determinara que os batalhões do
major Franklin e do Major Syseno investissem com meia hora de intervalo
entre um e outro, devendo pois atingir os objetivos ao raiar da manhã de 12.
O III batalhão alcançou Le Roncole e Guanella (o major mostrava no mapa)
na hora aprazada, não conseguindo porém o II Batalhão chegar a não ser
com certo atraso, quando uma indiscrição incompreensível da artilharia
norte-americana (apesar do sigilo combinado), isto é, seu repentino
martelamento de Monte Belvedere, já alertara de modo enérgico o inimigo.
Assim, duas companhias foram recebidas com tiros de morteiro, sendo
obrigadas a colar-se no chão onde fogos de flancos de metralhadoras
cimentadas nas bases de Abetaia as castigaram duramente. Devido a isso
fora posta em ação uma reserva. Desta forma, enquanto parte dum batalhão
era massacrado de chofre pelas descargas ininterruptas de Abetaia, ali
mesmo em Guanella e La Ca, o batalhão que chegara mais cedo ainda pôde
transpor a barragem, procurando apoderar-se do paredão. Alguns dos seus
elementos chegaram mesmo rente ao terrapleno e, ou foram mortos, ou
aprisionados. Os mortos parece que foram trazidos todos. Parece... Para
cúmulo de ironia da sorte, o nosso Ministro da Aeronáutica estava nesse dia
no Q.G. Avançado de Porretta Terme, junto com o general Crittenberger.
— A ele, minha senhora, devo as minúcias de tal ação, minúcias estas
que pouca gente, mesmo no Quartel-General, talvez saiba ao certo. Seu neto
Fernando foi dos que não voltaram. Sem ele se desfalcou o I Batalhão do 1.º
Regimento de Infantaria dum de seus valores mais específicos. Contemos
que com a tomada de Monte Castello (acrescentou abaixando a voz) depois
das agruras deste inverno e com maior número de efetivos em frente tão
ampla e acidentada, tenhamos esclarecimentos sobre o paradeiro de
Fernando...
Mas não lhe disse que o número de baixas na primeira semana do
mês de dezembro fora de 84 mortos, 267 feridos, 146 acidentados e 22
extraviados...

***

Duas vezes por semana Virgínia telefonava para o Quartel-General a


fim de saber do major Aurélio se chegara alguma notícia. Ele respondia com
muita solicitude que... não, por enquanto, mas que confiasse. Jurava quase
que Fernando caíra prisioneiro; prometia aparecer em breve. E de fato uma
tarde apareceu, mas para dar informes que a bem dizer não interessavam
quanto a fator otimista, pois que se as tropas aliadas representavam um total
de 26 divisões na Itália, as inimigas ainda eram de 22, e comandadas por
uma raposa como o general von Vietinghoff. Mas havia uma notícia tática
de grande importância, talvez decisiva no setor em interesse: o breve
emprego da 10.ª Divisão de Montanha. Decerto tomaria de roldão o
triângulo Belvedere — Gorgolesco — Della Torraccia. Outra novidade: A
nossa aviação aniquilara a resistência inimiga em Mazzancana. Enfim: os
companheiros de Fernando — sim, a gente intrépida do 1.º Regimento e a
gente brava do II — iam em breve tomar Monte Castello.
Lá isso ele vaticinou certo. Pois daí a dias os jornais e o rádio deram a
queda de Monte Castello. 21 de fevereiro de 1945. Virgínia ouviu pelo rádio,
Constança atreveu-se a subir e a ficar ouvindo também, já que pela primeira
vez a porta ficou aberta. E depois chegou o mano Maurício, com os jornais;
e os três não saíram de perto do aparelho. A operação de Monte Castello,
narrada com a secura duma notícia telegráfica, não obstante o brio do
locutor e as manchettes enormes dos vespertinos, tinha gráfica e
acusticamente um sentido de regozijo para a nação toda, mas não
desafogava a ânsia de Virgínia.
No dia 23 telefonou para o Quartel-General como quem telefona para
a portaria duma Casa de Saúde. Sim, pois então, caíra Monte Castello! Ele
não previra, não garantira? Pormenores estariam a chegar. Dona Virgínia
seria das primeiras pessoas a receber minúcias e oxalá... alvissareiras, pois
então!
Dois dias depois, não do Quartel-General, mas de sua própria
residência, o prestimoso major Aurélio telefonou e deu uma série de notícias
consoladoras. Que a investida assumira caráter de tal importância que no
PC brasileiro de Gadelle o nosso chefe recebera as visitas dos tenentes-
generais Mac Narvey, Mark Clark e Lucian Truscott; isto é, em suma, do
chefe das Unidades ianques em Operações no Mediterrâneo, do comandante
do XV grupo de exércitos e do comandante do V Exército. Mais, ainda: do
major-general Nélson, do major-general Cannon, do major-general
Crittenberger, isto é, do chefe do EM do general Mac Narvey, do chefe da
15.ª Força Aérea, do comandante do IV Corpo de Exército. Bem como do
reputado correspondente de guerra Lawrence Taylor...
Sim, isso significava alguma coisa, apesar da ironia de tantos nomes
menos o do quase anônimo pracinha Cintra... Significava que aquele setor
não ficara abandonado sobre a neve e que os extraviados da peleja de 12 de
dezembro haveriam, de qualquer modo, de ter seu paradeiro conhecido e
determinado depois das operações de limpeza, interrogatório de
prisioneiros, etc. Se Fernando estivesse nalgum campo de concentração para
lá do Pó ou dos Alpes, enfim na Itália ou na Alemanha, mesmo enquanto
não fosse libertado, alguma notícia positiva se teria.

***

Mas um dia chegou por via aérea o Diário de Fernando; um diário


desde os tempos em que estivera como convocado no Regimento Sampaio.
Desde o tempo em que lhe escondera que fora discriminado para a FEB.
Desde os seus estados de alma íntimos até à partida. Desde a invocação ao
Mediterrâneo até à chegada a Nápoles, a estada em plena cratera entupida
do Astrônia, alimentando-se de ração tipo C e bivacando ao relento na
paisagem neutra de Bagnoli. Uma espécie de diário irregular onde os
informes locais e técnicos se alternavam com divagações líricas, saudades
densas, entusiasmos breves, ânsias de superação, relatos de batalhas, a
estreia e o batismo de fogo no Vale do Sérchio, depois das peripécias em
Tarquinia e em Vada, a transferência para o vale do Reno.
Virgínia leu tudo dum só folego; depois releu gradualmente,
inteirando-se bem. E emprestou a Maurício, exigindo porém que não levasse
lá para baixo. E telefonou para os três amigos mais íntimos de Fernando,
tomada agora duma nova esperança, quase da certeza de que ele estava
prisioneiro. Marcou encontro com os três companheiros do neto, e acolá na
sala, com os três sentados no sofá como assistência ávida e atenta, fez um
deles ler alto aquelas páginas, sorrindo, comovendo-se, empolgando-se.
Depois desceu com eles para o parque, acompanhou-os até à praia, falou,
falou, rememorou-lhes as vindas aos cômodos de Fernando, os alegres
domingos e feriados ali na areia e nos penhascos, os exercícios de natação, as
vezes em que Fernando no avião Culver passava rente da pérgola, acenando,
com um estridor de besouro, depois sumia bem alto lá para a Gávea, indo
para os campos de Sernambetiba, ou até as ilhas, depois voltava e evoluía
sobre a ponta do Marisco... Ou quando na lancha “Ibonocori” vinha lá da
Urca, beirava Copacabana e Ipanema, o Leblon e Niemeyer, tirava uma reta
para a ilha das Palmas, de lá aproava para a Ilha do Meio e por fim surgia
entre bigodes de espuma diante do promontório para finalmente descer na
praia particular (ali onde estavam agora) e subia com os amigos, cheios
todos de fome, como canibais, berrando para a Luzia, chamando a
Constança, exigindo o almoço!...
Convidou-os para o jantar, o primeiro que tomava ali embaixo na sala
desde a comunicação ambígua. Que hora de trégua, cada qual a recordar um
fato típico de Fernando! Lauro sabia dessa história de Albatroz, mas o
chamava ainda e sempre de Logaritmo, servindo-se da expressão do velho
Maurício.
À saída dos amigos de Fernando, Virgínia pediu a Mílton que ficasse,
porque desejava encarregá-lo duma certa missão... como mais velho que era.
Os outros foram embora arranjar transporte em São Conrado e Mílton ficou
na biblioteca onde dona Virgínia, sentando-se, lhe disse:
— Mílton, diga-me qual é o seu pressentimento a respeito de
Fernando... Acha que ele caiu prisioneiro?
— Menos que isso. Deve estar talvez homiziado nalguma casa aí
nessas paragens que vejo no mapa do vale do Reno. Em La Serra ou
Caselina...
— Absolutamente. Trata-se duma região provavelmente abandonada
pelos habitantes. Demais a mais, La Serra e Caselina distam muito do ponto
onde ele sumiu. O meu Fernando chegou ao topo de Monte Castello.
Pergunto-lhe apenas isto: acha que ele morreu ou que caiu prisioneiro?
— Pelo que tenho ouvido falar, o serviço de padioleiros da FEB é feito
com muito critério e escrúpulo. O Pelotão tem sempre recolhido todos os
corpos, tanto assim que em Monte Prano, em Pruno e na cota 540, em
setembro do ano passado, não ficou para trás um só ferido ou um só
morto... o mesmo se podendo dizer, como me afiançou o major Aurélio,
quanto ao primeiro revés nacional no fim de outubro em Albiano e Los Rios.
Até então só houve 13 mortos, tendo caído prisioneiros alguns, conforme se
soube. Dona Virgínia compreende, eu me tenho informado ativamente. Ora,
como nós temos feito prisioneiros (por exemplo, no Vale do Sérchio fizemos
duzentos e tantos), natural é que os nazistas façam também...
— Então, Mílton, você acha que Fernando está prisioneiro... Não seria
possível por intermédio diplomático... por exemplo, através da Suíça, de
Portugal... se fazer uma investigação nesse sentido?
— Vou cogitar disso, dona Virgínia. Ignoro a modalidade, mas vou
informar-me direito.
— Faça-me esse favor. Outra coisa: tenho receio que o Lauro procure
aquela criatura, a Claire, sim... a Nanny, e lance alarma no espírito da moça.
Minha consciência até me punge às vezes, desde que ele partiu, de não lhe
remeter informes sobre Fernando. Recebi cartas dele de Nápoles, de Agnaro
(que creio que ainda é em Nápoles ou imediações), de Litória, de Tarquinia,
depois algumas de Vada, uma de Caserta, outra do período de estágio não
sei onde que ele fez na Divisão Blue Clover. Vejamos se me lembro. Espere...
No 442.º RI da 34.ª DI... Não, não. Minto! No 349.º RI da 88.ª DI. A última
correspondência me veio através dos costumeiros elos desde a linha de
batalha até à retaguarda, pelo Serviço Postal da FEB. Mas as últimas cartas
vinham com carimbo da Estação Reguladora e com visto da Seção Postal da
1.ª DIE, mas sem a localidade de partida. Creio que de Lama di Sotto,
dedução que faço pela data, 31 de outubro. Você sabe, sou estrategista a
distância, cá ao meu modo. Bem, mas como ia falando, se recebo... se recebi
cartas, natural é que essa criatura também tenha recebido... Ainda assim,
meus escrúpulos ultimamente, com o comunicado que recebi do
desaparecimento de Fernando, se têm agravado, porque afinal de contas fico,
além das apreensões que me amarguram, com pena dessa moça... Eu soube
incidentalmente, primeiro por Maurício, depois pelo próprio Fernando, da
existência desse caso na vida de meu neto e aqui nesta sala, quando ele me
confessou que ia partir, indaguei coisas... dei mesmo ensejo a que ele me
esclarecesse quanto a qualquer responsabilidade ou compromisso com
Nanny... Sei que ele a deixou bem, na questão material. Mas, é claro que essa
mulher merece e é digna, seja como for, dum conforto moral... digamos
espiritual... Fiz-lhe ver que, se tinha na consciência algum problema sério
com referência a ela, agisse decisivamente de modo a ficar sem nenhum...
digamos... complexo... Ele entendeu o que eu quis dizer. Mas, dizia eu, não
vale a pena sobressaltar essa criatura. Você conhece-a?
— Conheço, sim senhora.
— O Lauro também, não é?
— Sim. Nós três. Ela tem recebido cartas, telegramas. A última carta
foi, conforme o carimbo do envelope, da localidade de Crociale...
— De Crociale? Então é relativamente recente. Deve ser de inícios de
novembro.
— Sim, senhora. Parece que é de começos de novembro.
— Como está essa criatura? Quem é, afinal? Que espécie de alma, de
sensibilidade? E, como vida, como origem, como sentimento...? Que idade
tem?...
— Dona Virgínia, ela me dá a impressão duma dessas criaturas que
tem as qualidades típicas da mulher francesa. Experiência humana, intuição,
apego. Creio que adora Fernando. Vive em casa, só sai para algum cinema,
para a praia, isso mesmo comigo ou o Lauro, e lá uma vez ou outra vamos os
três a algum restaurante, a algum bar... onde o assunto é Fernando... Deve
ter uns vinte e oito anos.
— Diga-me com franqueza: ela merece meu neto? Como caráter?
Como alma?
— Em tudo e por tudo. Dedicação. Inteligência. Comportamento.
Delicadeza de alma...
— Ele... vivia com ela?!
— Bem, isso...
— Diga! Não é curiosidade minha. A vida é a vida. Eu não posso
desinteressar-me por essa criatura! Entende, não?
Mílton ficou a olhar para o chão, e dona Virgínia compreendeu.
— Está bem. Não se deve afligir essa moça. Faça ver isso aos demais
amigos de Fernando, que a conhecem também. Esperemos uma notícia
certa, definitiva. Ela não tem pressentimento nenhum? Vocês não aludiram
a nada?
— Absolutamente.
— Pode-se contar com a discrição do Lauro? Acho-o precipitado...
— Esteja tranquila, dona Virgínia. Mas, afinal Fernando está
desaparecido, extraviado... Caso chegue algum informe ruim... que acha a
senhora que devamos fazer, nós, os amigos de Fernando e Nanny?
— Que é que devem fazer? Deixar tudo a meu cargo.
XVIII
O QUARTO SARCÓFAGO INÚTIL

ÀS ONZE horas da noite, o telefone tocou. Virgínia atendeu. Uma voz


disse, com a delicadeza esquisita de quem procura com impossível
neutralidade transmitir um recado.
— É dona Virgínia? Fala aqui a esposa do major Aurélio. Meu marido
pede licença para ser atendido agora.
— Pois não.
— Está bem. — E a pessoa desligou.
Muito sobressaltada, Virgínia foi bater no quarto de Maurício e, não
se contendo, depois de dizer que espécie de telefonema recebera, resolveu
ligar para a casa do major. Mas ninguém atendeu, por mais que ela insistisse
diversas vezes. Maurício veio fazer-lhe companhia. Como notasse o
nervosismo da irmã, opinou:
— Decerto quer dar informes recebidos. Tem-se mostrado tão solícito
e prestativo!
Contudo, ele próprio começou a ficar angustiado.
Como não se sentissem bem ali na sala, saíram para o parque, pondo-
se ambos a rondar as sebes de aglaias e as imediações do portão, muito
atentos aos poucos carros que passavam. Logo se afizeram à treva,
discernindo até as estátuas. Pareceu-lhes que o mar, lançando vagas cheias
de estrondo, os apupava; resolveram pois voltar para dentro, cada vez se
sentindo mais aflitos, embora disfarçassem.
E era como se a noite aos poucos fosse ficando diferente, estática,
colaborando para aquele estado de apreensões. Por fim, cada qual lutando
com seus pensamentos, ouviram nitidamente um carro parar na estrada e,
dentro de instantes, viram dois vultos se dirigindo para a escada. A verdade
é que os dois irmãos não se levantaram para recebê-los. Maurício, por
atarantamento. Virgínia, porque de chofre lhe vieram duas reminiscências
lancinantes: uma, a chegada de dois oficiais de Marinha certa manhã de
janeiro de 1906 para comunicar o sinistro do Aquidabã; outra, a entrada de
Maurício e de Anselmo, em maio de 1930, em noite assim, para participar a
queda de determinado avião no estuário do Prata.
Os dois vultos definiram-se: eram o major Aurélio e o engenheiro
Nunes, que entraram e cumprimentaram com automatismo hirto e, ante um
gesto de Maurício, se sentaram. O primeiro a falar foi o pai de Emília.
— Vim acompanhar o major Aurélio. Telefonou-me por volta das dez
horas pedindo para eu passar em sua casa. E combinamos que sua senhora
telefonasse para aqui avisando que... Enfim, trata-se duma triste missão. —
Voltou-se para o major, como a dar-lhe a palavra; e este disse, com os olhos
voltados para o chão:
— Infelizmente, recebemos comunicação oficial — e Deus sabe
quanto me custa vir transmiti-la a meus bondosos amigos — de que o
expedicionário Fernando Gama e Cintra, do Regimento Sampaio, na ação
de 12 de dezembro, quando o I Batalhão do I Regimento chegou perto de
Monte Castello, conseguiu com mais alguns companheiros atingir o topo do
baluarte inimigo, sendo metralhado e morto. Só agora, muito recentemente,
isto é, no dia 23 de fevereiro, dois dias depois da tomada desse reduto por
nossas forças, é que o corpo foi encontrado e identificado pelos padioleiros
Tancredo e Varela. — Ergueu os olhos para Virgínia, ficou tão zonzo que,
sem querer, alvarmente, como quem após uma descarga já de si fatal ainda
se alvoroça e dá o último tiro, isolado e redundante, acrescentou: — Esteve
insepulto mais de mês... — Logo se arrependeu deste pormenor lúgubre em
meio àquele marasmado silêncio, que procurou fugir de condição tão
chocante e ajuntou outro pormenor, este agora meramente protocolar: —
Foi condecorado postumamente com a Medalha de Guerra, a Medalha de
Campanha, a Cruz de Combate de 1.ª Classe... e isso não obstante as
demoras que decorrem da deficiência de legislação a respeito, a ponto de
quase lhe ter sido conferido antes a Silver Star Medal. — Calou-se, com as
mãos nos joelhos. Depois, perplexo, com a fisionomia alterada, olhando
muito para o jardim, como se sentisse falta de ar, e fazendo menção de sair,
explicou: — Vou até ao carro buscar minha mulher e dona Laurinda. Não
tiveram coragem de entrar conosco...
Saiu para a noite, cheio de angústia, quase cambaleando.
Quando voltou, após dois minutos, com a própria esposa e a avó
materna de Fernando, deu com Virgínia sentada entre o engenheiro Nunes e
Maurício. Ela estava com a cabeça apoiada no espaldar do sofá, a efígie
deformada por uma dignidade trágica, só tendo de condição humana as
lágrimas que lhe corriam pelo rosto abaixo. Pobre Virgínia! Sentia em todo o
seu ser o que já experimentara em 1906, 1918, 1923 e 1930... Com a morte
do neto, tornava a chorar as mortes do marido, do pai, da nora e do filho.
As duas mulheres pararam, sem ânimo para nada. Não disseram
palavra, não a abraçaram; apenas se ampararam uma à outra, diante daquela
criatura que quis levantar-se com as mãos viradas para cima como para
aguardar o peso amorfo e tisnado do corpo de Artur... como se fitasse a
noite preparando-se para suportar o choque dum avião cuja frente fosse o
peito de Carlos de braços abertos segurando as tochas de dois motores...
como se fosse dar um passo para inclinar-se sobre os despojos insepultos do
neto...
E, de fato, se levantou, apoiada pelos dois homens que a ladeavam.
Estes ficaram em pé, enquanto ela deu uns passos para a escada interior, que
conduzia aos seus aposentos. Então as outras duas mulheres subiram com
ela, arrimando-a. Ao invés de entrar em seu quarto, se encaminhou para a
amurada, olhou a treva reboante, sentou-se naquela atalaia e ficou vendo na
tela infinita as cenas superpostas de seus sofrimentos máximos. Quando não
pôde mais, baixou a cabeça entre os braços e chorou convulsivamente. Poder
chorar é uma espécie de misericórdia concedida. Não adianta nada. Só cria
uma solidão maior, total, onde o ser se esconde dos testemunhos.
Enquanto isso os três homens andavam lá fora, pelo parque escuro, e
conversavam compungidamente.
Maurício referiu-se ao Diário que chegara dias antes por via aérea. E o
major, cada vez mais sem jeito, se apegava a qualquer pretexto para esquecer
a acabrunhadora situação em que se sentia pessimamente:
— Ah! Nosso serviço de Tarefas da Retaguarda já se está
aperfeiçoando. Aliás, é intento do Governo consultar sempre os interesses
dos membros da FEB e de suas respectivas famílias. Pensa-se em organizar o
mais breve possível um conjunto de repartições subordinadas ao Inspetor
Geral do I Escalão. O professor não faz ideia do que seja o montante de
incumbências da retaguarda. Estabelecer ligação perfeita e fluente com
Caserta ou Livorno. Com Pisa, Florença e Nápoles. Com a MTOUSA. Com
a AFHQ. Com o PBS. Daqui, só nos lembramos da frente de batalha. É
natural. Entende-se. Mas, num caso destes, por exemplo, já agora a família
se desliga daquilo lá e passa a ansiar logo pelas coisas do expedicionário,
como lembranças queridas; espera com aflição cartas dalgum companheiro
relatando minúcias. Faz-se mister organizar deveras quanto antes em
moldes perfeitos e rápidos o OND onde os problemas da retaguarda não
fiquem congestionados. Do contrário, como se manter ligação direta e
pronta com o Medical Center, com os hospitais norte-americanos, com o
departamento de Neuro Convalescence, com a General Station, com o
Evacuation Hospital, com os acantonamentos de trânsito, com os transportes
aéreos e marítimos, com a armazenagem de material a remeter para a frente,
com o serviço postal?
O engenheiro Nunes ouvia aquela lenga-lenga, mas se preocupava
com Virgínia e Laurinda, queria subir, não tinha coragem. E o tempo
passava.
Em dado instante Maurício se lembrou de telefonar para Lauro, Júlio
e Mílton, os amigos de infância e juventude de Fernando. E, enquanto foi
tratar disso, o engenheiro Nunes ficou ouvindo o major emitir opiniões
sobre os últimos êxitos espetaculares dos Aliados. A queda de Monte
Castello, facilitando o acesso para Bolonha. A ofensiva de Youkov, os
progressos na Galícia e na Ucrânia. O efeito da libertação de Novgorod e de
Narva. A invasão da França. O assalto às Filipinas.
Quando os rapazes chegaram, não tiveram coragem de subir;
permaneceram no estúdio e nos aposentos de Fernando, como se o
velassem. O major Aurélio ficou com eles, a explicar o que sabia. Maurício e
o engenheiro Nunes subiram para perto de Virgínia, depois se instalaram na
sala. A criadagem, reunida na copa, cochichava e chorava.
Amanhecia com um livor violáceo na serra e com tonalidades de nata
no mar quando o major e a esposa se retiraram. Agora, os rapazes
conversavam a respeito de Nanny que se achava num ponto qualquer de
Itatiaia, havia já duas semanas, em companhia duma amiga. Não seria bom
se aconselharem com o velho Maurício?
Os avós maternos de Fernando faziam companhia a Virgínia,
enquanto Lauro e Mílton telefonavam para outros amigos, artistas,
universitários, poetas, companheiros do Iate Clube, relações de Copacabana,
contemporâneos da Vila Militar, jornalistas. Não tardou que alguns deles
fossem aparecendo.

***

Após o atarantamento daqueles dias e daquelas noites, os rapazes


começaram a misturar o drama de Virgínia com o de Nanny.
Compreendendo isso, Maurício reuniu-os no estúdio (de cuja ampla janela
viam Virgínia sentada junto à amurada do promontório vigiando o mar) e
lhes disse:
— Em meio à sua desdita, ela tem sempre perguntado por Nanny.
Que é que podemos fazer?
Lauro explicou:
— Tenho ido de manhã e de noite ao apartamento da rua Tonelero.
Nanny ainda não voltou. Fiz tudo para descobrir se estará nalgum hotel ou
fazenda. Mandei o Telmo, trasanteontem a Resende e Itatiaia. Telefonou-me
de lá duas vezes, sem ter conseguido localizá-la. No edifício de apartamentos
e na roda restrita de relações tanto dela como da amiga só sabem que foram
para a Mantiqueira.
Nisto a Constança veio avisar que estavam chamando ao telefone um
dos moços. Lauro foi atender. Voltou e disse:
— É o Telmo, avisando que ela chegou.
— Com ele?
— Não. Ele chegou ontem à noite. Mas agora de manhã, ao ver as
janelas abertas no apartamento, entrou e perguntou ao porteiro; este
respondeu que ela acabara de chegar, e que até lhe ajudara a subir a mala.
— Esse Telmo... e o porteiro sabem dalguma coisa? Isto é...
— Não. Não sabem de nada.
— Bem. Mílton, você aí, vá telefonar para Nanny. Arranje um meio de
dizer-lhe que venha até aqui, imediatamente. Você, não Lauro. Sua voz
poderia traí-lo.
Os quatro foram para a extensão telefônica e Mílton fez a ligação.
— Alô! Quem fala? Nanny...? Quando chegou? Então isso se faz, não
deixar endereço com ninguém?! Onde? Num acampamento nas Agulhas
Negras? Com este tempo? Escute! Gostou? Distraiu-se? Nervosa?... Por quê?
Ahn. Pois não tem sucedido receber três e quatro cartas juntas depois dum
grande intervalo? Quem? Dona Virgínia? Vai bem. Tem perguntado sempre
por você. Tem, sim. Foi ela, justamente, quem me disse para telefonar-lhe.
Chegou um registrado de Fernando, uma espécie de Diário abrangendo
todo esse tempo; coisa muito interessante. Dona Virgínia quer que você
venha buscar para ler. Sim, tem manifestado desejo de conhecê-la. Quando?
Está muito cansada da viagem? Pode ser agora. A manhã está bonita. Ouça:
dona Virgínia está aqui ao meu lado dizendo para você vir já. Como? A
selva a barbarizou? Isso é galicismo, menina. Qual cabeleireiro e manicura
coisa nenhuma! Venha assim mesmo. Que ideia postiça quer dar de si a
dona Virgínia? Está bem. Tome um carro que eu peço licença para pagar.
Como? Está rica? Ótimo, então. Eu a espero no portão. Você conhece isto
aqui! Trouxe tantas vezes o Fernando!
Sentaram-se no parque, entre as aglaias. Maurício perguntou onde
estava o Júlio. Mílton respondeu:
— Saiu de manhã para a Barra da Tijuca. Anda esquisitíssimo, estes
dias. Levou o jardineiro. Decerto aparecem na caleça transportando alguma
pedra enorme ou algum tronco descomunal.
Lauro, nervoso, se levantou.
— Não fico aqui. Não tenho coragem de assistir à entrada de Nanny.
Que é que se vai dizer a ela, meu Deus?
— Nada. Temos que não lhe dar a entender coisa nenhuma e levá-la
até dona Virgínia e fazer as apresentações. O resto...
— Vou lá para baixo me esconder na “Ibonocori”. Não tenho coragem.
Que coisa medonha! Como é que essas duas criaturas vão suportar este
encontro? Como é que dona Virgínia vai explicar o que sucedeu? Vou lá
para baixo. Aqui, não fico.
E desceu a rampa, chorando.
Maurício e Mílton ficaram ainda algum tempo no bosque, vigiando
de longe o portão, até que acharam melhor ir falar com Virgínia, lá no
promontório.
Entraram e subiram.
Lauro não suportou a solidão lá embaixo. O estúdio, o galpão, os
automóveis, a lancha, as estátuas, evocavam de tal maneira a lembrança de
Fernando, que chorando ainda, voltou, subindo vagarosamente a rampa. E
estava já perto da entrada lajeada quando, ao tirar do rosto o lenço com que
limpara as lágrimas, deu de frente com Nanny que entrava com ar
cerimonioso e atento. Logo procurou endireitar a fisionomia, dizer mesmo
qualquer coisa, mas sentiu os lábios se crisparem e novo pranto, incontido e
convulso, o acometeu outra vez. Nanny apertou um pouco as pálpebras,
examinou-o de relance e, ante a atitude vacilante, perguntou:
— Que é? Que foi que aconteceu?
Efeito daquela presença luminosa logo se turvando, ou consequência
daquela voz meio nasal, de timbre singular, Lauro deu uns passos e,
abraçando-a, escondeu o rosto em seu ombro, soluçando. Então Nanny
procurou afastá-lo, fitou-lhe a deformação em esgar, recuou, fugiu para o
portão, saiu a correr para a estrada. A uns cinquenta metros, Lauro a
alcançou.
— Largue-me! Deixe-me!... — debatia-se Nanny. A bolsa lhe caiu no
chão. Abaixou-se para apanhá-la e, quando se ergueu, seu rosto ficou rente
ao de Lauro que, vencido, fora de si, disse:
— Nanny! O nosso Fernando...
— Não me diga nada! Não fale! Pelo amor de Deus, não fale!
E eis que os dois ficaram imóveis, paralisados na estrada, junto ao
barranco, vendo chegar a caleça velha onde Júlio, com sua barba de louco,
agitava as rédeas do alto da boleia, enquanto no assento de trás o Inácio
segurava uma enorme raiz que parecia um monstro opaco em forma de
imenso tubérculo. Lá da boleia, Júlio reconheceu Nanny; puxou as rédeas,
ergueu-se, parou a caleça, disse qualquer coisa a Inácio. A caleça sumiu,
descendo a rampa em direção ao galpão; e Júlio surgiu, por encanto, junto
de Lauro e Nanny. Não disse nada. Apenas a abraçou e a levou
vagarosamente para dentro. No meio do parque os dois, seguidos por Lauro,
encontraram Maurício e Mílton. Nanny chorava com os punhos em cima
das pálpebras, andando às cegas. Emocionadíssimos, os demais viram aquele
jovem barbudo e aquela criatura em prantos passar em direção à varanda. E
os dois subiram. E entraram. Bem devagar. Já da porta os demais, se
aglomerando, os viram subir a escada interna. Em cima, uma porta à direita:
os aposentos de Virgínia; e uma porta à esquerda: a entrada para o
promontório. A atmosfera límpida parecia, vista através de lágrimas, uma
superfície de vidro recebendo na sua candura, como uma decalcomania, o
céu, o mar, as ilhas, a praia, os penhascos...
Nanny olhou para tamanha vastidão e logo tornou a esconder o rosto
porque do terraço veio para ela, na pura atitude lancinante de Hécuba, uma
criatura cuja dignidade trágica lhe deu calafrios. Quando essa mulher parou,
com o semblante emoldurado por cabelos grisalhos, as mãos leais
estendidas, Nanny se ajoelhou, escondeu o rosto naquela roupa preta e pôde
dizer por entre soluços:
— Não fale nada...
Duas mãos a soergueram por baixo dos braços. O busto de Nanny
ascendeu como um caramujo dúctil que saísse um pouco da concha; agora
os dois semblantes, bem próximos um do outro, se olhavam com nitidez
vagarosa, desde os cabelos até à alma recôndita, depois se abraçaram.
Quando os demais chegaram até à porta, sofreram a influência da vastidão
que se abria diante deles. Um oceano verde e azul arfava, sem contudo
modificar um milímetro a linha inexorável do horizonte. Avançando sobre
esse oceano como um balcão shakespeariano, aquela cúspide com sua
amurada negrejante. E em pé, juntas, de costas para a terra, as duas criaturas
das quais a mais alta, a mais velha, a mais sofrida, dizia à outra:
— Esse mar! Esse mar aí... Devo odiá-lo...?
E ambas olhavam para o oceano, abraçadas.
Só quando Nanny sentiu que na porta, atrás, os rapazes, Maurício e a
criadagem espiavam transidos de emoção, foi que se soltou de Virgínia,
empurrou Mílton e correu, descendo a escada, transpondo o vestíbulo e o
parque. Lá junto à rampa encontrou Lauro com as mãos nos cabelos, indo e
vindo, em desespero. E os dois desceram para o estúdio onde ficaram
acuados diante das estátuas.

***

Só uma hora depois foi que o velho Maurício conseguiu ser ouvido
com relativa docilidade. Expôs-lhe tudo com lentidão persuasiva, em ordem
de entendimento gradual. Satisfez-lhe as perguntas graves e lacônicas.
Relatou-lhe que tinham confiado que se tratasse apenas dum extravio,
contou os termos do primeiro e do segundo comunicado; pormenorizou as
condições em que Fernando havia morrido a 12 de dezembro do ano
passado. Depois lhe disse que, se ela quisesse, a criada Constança podia ir
fazer-lhe companhia por algum tempo na rua Tonelero; mas a aconselhava
que aceitasse o convite de Virgínia (e lhe parecia a melhor solução) vindo
morar nos aposentos de Fernando, com absoluta liberdade de decidir
quanto ao futuro.
Ela repelia tudo, meneando a cabeça.
— Quero voltar para a França... Quero ir viver com minha tia
Geneviève.
— Está bem, Nanny. Tão logo a guerra acabe.
— A Riviera já foi libertada. Assim que houver navio. Leve-me ao
consulado. — E depois pediu que a acompanhasse até ao apartamento, a fim
de pensar...
Maurício mandou telefonar para o Leblon, pedindo um carro. Daí a
quarenta minutos levou-a para a rua Tonelero.
Lá, chegando à janela, chamou-o, disse, apontando para baixo:
— Ele parava o carro embaixo daquela árvore. Assobiava, eu surgia.
Atravessava a rua rindo e fazendo sinais. Eu ia esperá-lo junto à porta do
elevador...
Atirou-se sobre o divã, ali ficou de bruços mais de hora a soluçar
tanto que aquelas estranhas sílabas amorfas cortavam o coração de Maurício
à medida que recordações pungentes iam iluminando seu rosto voltado para
o retrato de Fernando, ali entre porcelanas e coleções de campainhas. Era
como se estas perdessem seus tons e timbres metálicos, tornadas carne e
fibra, submersas em pranto.
E Maurício apertava os lábios, contraía os maxilares, cerrava as
pálpebras, sem que nada disso adiantasse. Cada soluço rouco batia em
determinada porta que logo solícita, obediente e automática, se escancarava
para a passagem de rajadas visuais e acústicas. Assim, enquanto Nanny se
desesperava na treva dum túnel de desvalimento, Maurício se via atrás de
extensa perspectiva para onde se abriam portas lançando golfadas de cenas e
de diálogos, onde ele via e ouvia: Artur e Virgínia balançando Carlinhos
numa espécie de trapézio na chácara do Jardim Botânico; Emília com o
rosto apoiado no violino do qual seus cabelos louros pareceriam infinitas
cordas de sons arquiangélicos; Carlos, barbudo e severo, no primeiro plano
dum painel ecológico; Fernando a cavalo, jogando polo, a dupla imagem
parecendo um centauro; Virgínia, com os cabelos grisalhos ao vento,
apoiada sobre a bossagem do promontório à espera de que o horizonte
túrgido lhe devolvesse seus mortos, enquanto suas próprias lágrimas, como
resinas da serra, a ligavam ao oceano...
Depois, o raciocínio lógico, sem romantismo nem apoteose: a mera
recordação quase cronológica dos fatos medonhos vindo em sentido
contrário, crescendo, como ondas de encontro a uma rocha.
Depois a realidade neutra da sala, da hora, daquela mulher deitada de
bruços, como se tudo, exausto da crispação, aturasse a trégua do marasmo.
Maurício desceu, foi chamar o zelador, voltou contando-lhe o que
acontecera. O bom homem escutava-o, lívido, exclamando:
— Mas, é impossível! É impossível!...
Sem nenhuma combinação prévia, levados os três por uma coerência
de silêncio lúcido, abriram a mala-armário, de cabina, e outra menor,
começaram a enchê-las de roupas, vestidos, sapatos, livros, quadros, discos,
bric-à-brac, e tudo quanto se achava à mão. Como ainda restassem para fora
mais de dois terços de coisas, o zelador resolveu ir buscar um caixote. De
fato, daí a um quarto de hora voltou, achando os dois arrumando as duas
malas em mútua compreensão.
Ao crepúsculo, Maurício e Nanny seguiram de carro para a Gávea, só
com a mala menor, enquanto o zelador ficou dando marteladas no caixote
fechando-o com pancadas que eram como símbolos dum fim. Lá dentro,
mudas, as campainhas recolhiam em seus bojos as camadas ocas dos tempos
como asas aquecendo pintainhos.
Depois, dum lado a serra; do outro lado o mar; mas tudo em declive,
se esbarrondando... Um portão. Riscos verticais de troncos. Um chão em
duas rampas; uma subindo para o promontório e a casa; outra descendo
para o estúdio, os cômodos de Fernando e a praia. O carro entrou, virou
para a esquerda, desceu a rampa e por fim parou. Júlio, magro e esquálido
na noite difusa, abriu a portinhola. Como um vestíbulo não dando para
nada e sim apenas para as alegorias, o estúdio, com a comprida parede de
cristal de doze metros, com as duas cortinas superpostas, uma de seda cor
de cíclame, outra de veludo “mordoré”, lá estava apenas com a presença das
estátuas. No centro, junto à parede, a mesa enorme, vazia. A mesa para uma
criatura apoiar os braços, a cabeça, pensar e compreender.
Daí a uma hora, os rapazes rodearam Constança que saía de lá com a
bandeja.
— Sempre comeu alguma coisa. Estivemos as duas arrumando
gavetas e armários.
Maurício, assim que a Luzia desceu dos aposentos de Virgínia com os
pratos intatos, resolveu subir para lá; na saleta das estantes os dois
conversaram por muito tempo. Quando ele desceu, os rapazes estavam
distribuídos da seguinte maneira: Mílton ajeitava o dial do aparelho de rádio
para ouvir a BBC, lá no bar do galpão onde entre tufos a “Ibonocori” parecia
encalhada de vez; Lauro passeava por entre as aglaias, sozinho; Júlio,
sentado diante do estúdio, num dos degraus, fumava cachimbo. Maurício
entrou. Constança, ao fundo, sentada, era a solicitude em fase de
acanhamento. Nanny com os braços estendidos sobre a mesa, a cabeça
inclinada para um dos ombros, volvia o olhar duma para outra estátua,
percorrendo-as com pensamentos vagarosos. A porta aberta à direita
mostrava a biblioteca de Fernando e da qual só se via um trecho do piano de
cauda. E a porta esquerda, também aberta, mostrava o quarto dele, com a
cama arrumada, da qual só se via um daqueles quatro cantos de que falava a
balada “La Belle, si tu voulais...”
— Nanny, experimente por uns dias. Se se der bem, fique. Se sentir o
menor constrangimento, volte para a rua Tonelero. Quando a guerra acabar,
e as notícias neste sentido são alvissareiras, você, se quiser, irá para
Villefranche. Mas também pode ficar aqui, como em sua casa.
— Quero voltar para junto de tia Geneviève...
— Está bem. A Virgínia aqui, vigiando o Atlântico. Você lá, vigiando
o Mediterrâneo.

***

Ah! Que meses de expectativa febricitante, aqueles de março e abril!


Mílton, com os nervos crispados, atento sempre aos locutores de rádio que
condimentavam rações paroxísticas. Notícias dardejadas como projeções
convergentes de relâmpagos. Os títulos vindo como tabuletas sucessivas:
“Guderian fraqueja ante os embates de Koniev”. “Rundstedt vacila aos golpes
de Eisenhower.” “Já passou o perigo da ofensiva nas Ardenas.” “Caiu
Dantzig!” “Acaba de cair Viena!” “Tomadas Gdynia e Lübeck!” “Os Aliados
transpõem o Reno e o Oder!” “Pétain regressa à França para, junto com
Laval, sofrer o julgamento e a execração!”
Meses incríveis, de sínteses fulminantes. Roosevelt morre! E Mílton
revê aqueles olhos rodeados de sombra, aquele capote civil jogado sobre os
ombros, aquela fisionomia de cardíaco, dos últimos instantâneos de
cinemas...
Mussolini é justiçado, exposto em praça pública, dependurado nos
varais dum posto de gasolina, como um javali num açougue. Aquela
mandíbula proconsular, aqueles ombros com alamares... Ó comédia
incoercível!... E Lauro escuta as notícias, lê os telegramas, rói as unhas,
enquanto Júlio, de cachimbo, estirado na grama do parque, parece ver cenas
do Apocalipse.
Hitler mata-se no subterrâneo da Chancelaria do Reich. Ah! Que
série de absurdos inéditos ainda nesse começo de maio! Como tantos
milhões de ouvintes e leitores, Mílton, Lauro e Maurício, permanecem de
ouvidos e olhos ávidos às fulgurações das Agências e das manchettes,
enquanto locutores e linotipistas descarregam toneladas de emoções maciças
que, todavia, causam alívio sinistro.
Natural pois que, nessa tarde da primeira semana de mês tão denso,
Maurício se lembrasse de responder aquele telegrama de meses antes (a que
se refere o primeiro período do princípio deste livro) e que por coincidência
chegara horas depois da notícia do desaparecimento de Fernando na linha
de frente. Ia ele, Maurício, pelo centro da cidade, andando meio apalermado
por entre a multidão das calçadas, sem querer se deixando guiar por
lembranças alternadas. Por exemplo: aquele mausoléu da família Cintra,
encomendado pelo velho Aleixo. Os jazigos vazios. Ou melhor, os
sarcófagos inúteis de quatro gerações. O velho Aleixo e dona Maria-Amélia;
ele, no fundo do mar, entre Ilhéus e Vitória, ela não querendo ser a rainha
Karomama, tendo rogado tenazmente que a enterrassem no antigo carneiro
do cemitério da Ordem Terceira do Carmo. Artur, atolado entre a Ilha
Grande e Angra dos Reis; Virgínia viva, reservada para os testemunhos
severos. Carlos a redemoinhar talvez como irmã na orla cisplatina; Emília
deposta como anjo de Fra Angélico no mausoléu onde mais tarde
dormiriam também o velho Nunes e dona Laurinda. Fernando, levado para
Pistoia, a ara, o tabernáculo distante mas sempre em hipóstase com a
pátria...
De fato, os jazigos inúteis, vazios.
E eis que Maurício se viu na rua México, atento a um número que
consultou no seu canhenho. Esplanada do Castelo. Era ali o edifício. Aquele,
o número. Entrou num dos três elevadores que o levou ao oitavo andar. Salas
833, 835. Na porta de vaivém, o nome duma firma editora. A secretária
atendeu-o, foi avisar o diretor-presidente. Bem. O senhor Cerqueira pediu-
lhe que se sentasse, pôs-se às suas ordens. Maurício apresentou-se: tio-avô
de Fernando Gama e Cintra. Pediu desculpas por somente agora vir
responder ao telegrama de meados de dezembro.
— Sensibilizou-nos muito seu telegrama solicitando à minha irmã
Virgínia que instasse com o neto, com Fernando, para mandar
correspondência referente à campanha na Itália. Honrou-nos muito sua
promessa de publicar numa cadeia de jornais do Brasil e, depois, num livro
cuja edição teria grande tiragem. Mas, não foi possível. Não é possível.
— Que pena! Ora, o Fernando! Um valor desses teimando em ser
escritor bissexto! Contava tanto com ele! Telegrafei, escrevi! Lembrei-me até
de remeter à família um despacho para que me ajudasse nesse sentido
patriótico. Também, já agora, dada a saturação dos leitores com a avalancha
de notícias sensacionais como a morte de Mussolini, de Hitler, quase não
adianta mais. Fernando onde está? Em Placência? Podia ao menos mandar-
me relatos da rendição da Itália Setentrional. Quem sabe?
— É impossível. Fernando morreu em dezembro do ano passado.
Quando seu telegrama chegou, senhor Cerqueira, ele tinha morrido três ou
quatro dias antes. Mas só soubemos direito em fins de fevereiro. Lamento ter
adiado tanto a resposta ao seu amável convite. Muito boa tarde!
— Então, pêsames à família, hein! Por aqui. Tenha a bondade. Calculo
só o desgosto. Faço ideia. Um rapagão. Prometia tanto! Meus respeitos.
Minhas condolências. O botão de baixo. Este, de cima, é para chamar o
elevador a fim de subir para os outros andares. Temos ainda oito depois
deste. Exatamente. Sempre às ordens.
Maurício entrou num café, pediu água mineral, ficou a ler a última
edição dos vespertinos. Depois, certo sobressalto coletivo na rua, e que se
estendeu ao recinto, o fez pagar e sair. Mas logo reparou que nas arcadas o
aspecto indicava uma agitação esquisita. Rumou para o ponto de ônibus ali
perto do edifício Nilomex, percebeu ajuntamentos que se exacerbavam com
os brados de jornaleiros e o estridor fanhoso de alto-falantes. Notou ainda
que lá para adiante, já na avenida Rio Branco, entre a Casa Carvalho e A
Exposição, uma onda humana de regozijo enchia aquele trecho; era mesmo
mais densa diante da Galeria Cruzeiro. Em pouco se sentiu aspirado para o
redemoinho, resistiu, abrigou-se numa casa de artigos de ótica, avaliando e
adivinhando. Agitação política, não era; tinha mais o aspecto de desfile
improvisado, de manifestação súbita. Só podia ser uma coisa, já que não se
tratava de carnaval. Trechos de conversas confirmaram sua asserção íntima.
A guerra tinha acabado. E agora, disposto a averiguar, deu de chofre com o
maior aglomerado de gente que seus olhos já haviam visto.
Aos empurrões e revoluteios, perdido em fluxos e refluxos que
tornavam a rua um cachoeirar de vozes saindo de massas compactas
tomadas de júbilo insofrido, afinal se desviou para orla ainda febricitante e
conseguiu lugar num autolotação até ao Leblon. Teve que se instalar num
ônibus rudimentar e foi nesse calhambeque que chegou a São Conrado.
Gramou o resto do trajeto a pé, num estado de alma incrível.
Em casa, já sabiam. O rádio estava ligado alto no vestíbulo. Além de
Lauro e Mílton, a criadagem ouvia, com alvoroço. A boa Laurinda, nos
aposentos de Nanny, escutava também, diante do aparelho que, no centro da
mesa, destilava comunicados.
O jantar foi esquecido. O desafogo nutria; ou melhor, desintoxicava.
Maurício subiu para ver Virgínia. Achou-a ajoelhada num genuflexório
diante de três crucifixos mutilados. As imagens não tinham braços e um dos
Cristos até estava sem cruz e seu corpo de marfim parecia suspenso na
parede. Pobre Virgínia! Desistira das analogias mitológicas?...
Abraçou-a. Ela aceitou aquele sentimento, mas continuou em seu
transe. Então Maurício desceu, atravessou o parque, foi para o estúdio.
Assim que o viu, Nanny correu para ele, abraçou-o e disse entre lágrimas:
— Não quero mais ir embora! Não quero ir para a França. Nunca
mais quero sair daqui! Não me enxotem, tenham misericórdia de mim...
Subiram a rampa, abraçados, transpuseram o vestíbulo, subiram a
escada interior. A aragem que vinha do lado esquerdo explicava que a porta
de vidro que dava para o promontório estava aberta. Terminara
imprevistamente o blackout, pois naquele instante irrompia a noite e no
litoral inteiro, desde o Joá até à curva mais distante da Gávea Pequena e da
Avenida Niemeyer, havia iluminação, ora esparsa ora em guirlanda.
Logo descobriram Virgínia sentada rente à amurada, com os braços
sobre a pedra, o rosto pousado nas mãos, os cabelos grisalhos ao vento.
Invisível, o mar expandia e retraía sua infinitude, segundo o ritmo da
lamentação com que provocava Virgínia como um coro. Nanny sentiu-se
transida ao ver aquela mulher que contemplava o oceano que lhe roubara
tudo, que não lhe devolvia nada. Maurício forçou-a a dar mais alguns
passos.
Agora as duas sentadas na escuridão, sofreavam soluços para que não
tivessem nada do aspecto lancinante das carpideiras.
— Ficarão ali sempre, de atalaia, vigiando — disse o velho Nunes a
Maurício. E, ao ouvir o pranto de ambas, acrescentou: — Não são duas
figuras mitológicas, não. São duas mulheres, mesmo. E o que as põe
perplexas e desatinadas é a verificação de que o amor não pôde salvar as
gerações que este século imolou.
Os dois desceram para o estúdio, onde encontraram Júlio hirsuto e
guedelhudo entre dois projetores, observando a raiz secular que trouxera da
mata. A certa distância das estátuas, o imenso tubérculo pardacento parecia
uma ave morta, devolvida pelas ondas. Inerte, num litoral. Um albatroz,
talvez.

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