Você está na página 1de 5

CARTA VIII

Meu amigo.

Viste que o Gaúcho não pôde pretender as honras de romance de costumes, fim que
aliás aspira, merito de que faz alardo .

Senio não se parece com John Crevecoeur, autor do Agricultor, obra, onde «
paizagens, costumes, linguagem, sentimentos, tudo é essencialmente americano; onde
não se encontram somente os objectos, mas também as sensações e as idéas de um
paiz recente. »

Não se parece com Washington Irving, que apezar de « dever seu renome á imitação
graciosa da litteratura ingleza » apezar de « só para a Inglaterra dirigir seus
pensamentos » como a critica o atacasse, peneirou nas tribus bravias, explorou e
estudou as florestas, os campos, os rios, e deu-nos o seu magestoso livro — A planície
— (The Prairie).

Menos se parece com Fenimore Cooper, como já se disse, o autor do — Ultimo dos
Mohicanos — obra para a qual debalde procurarão um parallelo em toda a bibliotheca
de romancistas. »

Menos ainda se parece com Audubon, que um critico colloca superior a Ruffon, e
com o qual « mais variado que Irving, mais colorido e puro que Fenimore Cooper se
completa o que se pôde chamar a primeira época litteraria dos Estados-Unidos. » P.
Chasles.

Transportemo-nos.

Senio também se não parece com Walter Scott, « que soube haurir nus fontes da
natureza e da verdade um gênero desconhecido ; allia á minuciosa exactidão das
chronicas a majestosa grandeza da historia, e o interesse instante do romance, gênio
poderoso e curioso que adivinha o passado, pincel verdadeiro que traça um retrato fiel
por uma sombra confusa, e nos força a reconhecer até o que não vimos ; espirito
flexível e solido que se impregna do sèllo particular de cada século e de cada paiz
como cera branda, e conserva essa marca para a posteridade, como bronze indelével.
» V. Hugo.

Não se parece com Chateaubriand » que deu ás paixões innocencia que ellas não
comporiam ou que não tem sinão uma vez. Em Atala, as paixões são cobertas por
longos véos brancos. »

Não se parece com B. de Saint-Pierre que no seu Paulo e Virgínia « sabe escolher o
que ha mais puro e opulento na lingua ; cujo estylo, se assimelha a esse famoso metal,
que, no incêndio de Corintho, se formara da mistura de todos os outros rnetaes. » J.
Joubert.

Não se parece com Balzac, que « toma corpo a corpo a sociedade moderna, arranca a
todos alguma cousa, a uns a illusão, a outros a esperança, a estes um grito, aquelles a
mascara ; que esquadrinha o vício, disseca a paixão ; que cava e sonda o homem, a
alma, o coração, as entranhas, o cérebro, o abysmo que cada um possue em si mesmo.
» V. Hugo.

Todavia de uma grande obra de Balzac — Le Dernier cies Chouans — obra que
prima « pelo pittoresco, pelo cunho dramático, pelos caracteres verdadeiros, pelo
dialogo feliz » diz Sainte Beuve que « a imitação de Walter Scott e de Cooper é
evidente. » E a Sainte Beuve chama não sei si Paulo Raynol, que agora bem me não
lembro, « eminente juiz das cousas do espirito. »

Com quem se parece, pois, Senio no seu Gaúcho — por ventura arremedo remoto,
caricato e illógico do Homo e do Ursus, do Homem que ri?

Não seria difficil dizêl-o, mas não o quero fazer, limitando-me apenas a dizer com
quem penso que Senio se não parece; e não é pouco.

0 que fica fora de toda a duvida, quanto a mim, é que o Gaúcho não passa de uma
producção cachetica, de que a litteratura brazileira pouco se deverá lisonjear.

« Ha duas maneiras de ser sublime — diz um critico francez : — pelas idéas ou pelos
sentimentos. No segundo estado tem-se palavras de fogo que penetram, que arrastam.
No primeiro não se tem sinão palavras de luz, que pouco aquecem, mas que
deslumbram. » No Gaúcho o sentimento é frouxo e frio, a idéa descorada e infeliz; é
por isso que o estylo nem deslumbra, nem arrasta.

Si estudamos o Gaúcho em seu caracter histórico, tanto peior; é tudo vago, indeciso,
maxime insignificante. Lendo-o, não se fica tendo uma idéa da revolução rio-
grandense. Não ha um traço vigoroso que se deixe demorar no animo do leitor. A
revolução apparece, em uma attitude fugaz, fungível como a sombra do quadro — a
luz pertence aos cavallos, ou aos arroubos da imaginação delirante.

Entendeu Senio que, citando taes e taes nomes, que figuraram no movimento, e
dizendo que este caminho vai ter a Jaguarão, aquelle a S. Borja, tinha, preenchido e
satisfeito a parte histórica da obra. Erro ou illusão !

O espirito do tempo, o cunho varonil e incisivo do acontecimento, sua acção moral ou


política, tudo deixa addiado para d'aqui a um século talvez « quando já os
personagens não se achem tão ligados ainda ao presente pelos vínculos das paixões e
da família. »

Que família, que paixões ? Pois tem alguma cousa que ver com isto o escriptor
profundo, consciencioso, o critico justo e severo, que não transige com espécie
alguma de interesse, e só se dirige a attingir o alvo excelso da verdade histórica?
Frivola gaze esta que não encobre os defeitos, as nodosidades do arcabouço repulsivo!

Falando de Alexandre Herculano, como romancista-historico, diz um dos bons


talentos críticos modernos da Península : « Nos romances historico-nacionaes, nunca
tanto como alli talvez, se eleva o escriptor a urna idealisação característica, pessoal,
critica e philosophica.

« Em geral fica com Walter Scott na chronica romantizada. E esplendidamente


romantizada. A historia é escrupulosamente tratada : estudam-se a época, os
costumes, as tendências, as ambições, os homens. »
Fez acaso outro tanto Senio no seu Gaúcho, para pretender com razão um logar na
ordem dos romancistas históricos? Si acaso se não acha ainda inaugurada no paiz a
escola, não ha de ser de certo a obra de Senio que servirá de modelo, tão certo é faltar-
lhe a possança e a firmeza de acção e de critica imprescindíveis em trabalhos taes de
iniciativa no gênero.

Si conchegamos o Gaúcho ás formulas geraes da plástica, aos preceitos da arte e do


bello, ao purismo da linguagem castiça, não se ressente elle de menos deslizes com
feições de defeitos que difficilmente se poderão escusar.

A neologismomania pullúla e palpita a cada pagina, infastia. A titulo de enriquecer-se


a lingua, já de si tão opulenta, inventam-se vocábulos por mero arbítrio. A prevalecer
o abuso, quem se entenderá d'aqui a pouco ? O direito, que tem Senio para introduizir
na lingua vernácula termos novos ex auctoritate qua scribit, muitos também o teem; e
onde iremos parar, si todos esses se deixarem dominar pelo mesmo erro e vaidade de
inventarem por conta própria ?

A contar da Diva para cá, justamente a obra que assignala o principal período de
decadência de Senio, não ha trabalho seu que se possa ler, de recheado, que vem, de
quanta innovação lhe occorre fazer, como si isso denunciasse grande merecimento
intellectual, e demandasse alto esforço e superioridade no escriptor ! De um verbo
deriva Senio um substantivo ; de um substantivo deriva um verbo — e eis a que se
reduz a creação philologica de Senio. Quem é que não poderia fazer outro tanto, sem,
de mais a mais, suppôr ter descoberto a pólvora, ou se julgar por isso com jus ao
respeito e á admiração de presentes e pósteros?

E que razão de necessidade poderia determinar taes innovações? Por ventura Senio
cria idéas tão sublimemente originaes, que não encontre na inexgotavel riqueza da
lingua nacional termos que lhes correspondam e que as exprimam? Serão essas idéas
creanças de septe braços para quem seja mister talhar camisas de septe mangas? Não
será difficil na verdade deparar em nossas ultimas lettras com aleijões de tal ordem.

Em um caso irremissivelmente seria preciso inventar uma lingua própria: no de querer


fazer o homem entendido em seus mais recônditos phenomenos psychicos pelos
cavallos, e de entendel-os elle egualmente; mas então inventem uma língua nova e
não queiram aviltar na infima funcção a illustre e heróica lingua dos Barros e dos
Vieiras.

Longe me levaria esta ordem de considerações, e eu tenho pressa de terminar a série,


apezar do muito que me fica ainda por dizer. Aguardarei outra occasião, em que farei
a apreciação da Diva, da Iracema como romance typico-indiano-brazíleo, e da Pata
da Gazella, se antes d'isso nos não der Senio cousa mais nova, como promettem os
arautos e passavantes.

Segundo vês, meu amigo, seja encarado o Gaúcho sob o aspecto, ethnographico, ou
seja-o sob o esthetico, ou philologico, urge que os que sinceramente se interessam
pelo lustre das pátrias lettras façam cruzada para que elle não consiga abrir escola.

Discutamol-o entretanto, e ao correr da penna, em terreno diverso, isto é considerado


como romance de phantasia, segundo te prometti em minha primeira epistola.
Não condemno este gênero da litteratura romântica. 0 Han d’Islandia é horrivelmente
bello. A Ondina, de Fouqué, é sublime. Também não deixa de ser interessante o
Diabo coxo, de Lesage, posto que plágio do Diablo cujuelo, de Guevara. E muitos
outros, que ahi fazem as delicias dos dilettanti da litteratura do impossível e do sonho
ou da fábula. Não condemno pois in limine o romance de phantasia.

Parecendo-me, porém, que o romance tem influencia civilisadora; que moralisa,


educa, forma o sentimento pelas lições e pelas advertências; que até certo ponto
accompanha o theatro em suas Vistas de conquista do ideal social—prefiro o romance
intimo, histórico, de costumes, e até o realista, ainda que este me não pareça
caracterisfico dos tempos que correm.

Em uma palavra prefiro o romance verosímil, possível, quero « o homem junto das
cousas » definição da arte por Bacon.

E é justamente por isso que o Lazarillo de Tormes, de Don Diego H. De Mendoza,


exerceu tão considerável importância não só na historia política da Hespanha, sinão
tambem na historia litteraria de toda a Europa — como diz Viardot. « 0 pequeno
Lázaro de Tormes é um engeitado, que passa de senhor em senhor, que se vinga de os
ter servido exprobrando-os desapiedadamente, e que, em cada condição nova, faz a
critica amarga de uma classe da sociedade. » E' um monumento em nove capitulos.

Mas o Gaúcho não é um romance de phantasia, nem pensa em tal, desde que localiza
sua acção n'um theatro verdadeiro, e n'ella pretende offerecer a pholographia dos
costumes de uma sociedade conhecida e contemporânea, dando ás pessoas e ás cousas
seus próprios nomes.

0 Gaúcho pretendia ser de costumes, mas depravou-se na aberração. « A pretenção de


excessiva novidade não pôde dar em resultado sinão uma triste mistura de comedia
grotesca e de grandeza phantastica que se não encontra em livro algum » diz
Philarète, apreciando as Viagens d'Herman Melville. Dir-se-hia que o profundo critico
francez talhou n'estas palavras a carapuça de Senio.

Terei sido acaso severo, meu amigo ? Não, de certo, pelo que me parece.

E' preciso dizer abertamente a Senio que poucos podem ser Dumas ou Voltaire. A
fertilidade proveitosa só é partilha dos gênios. Non omnia possumus omnes : e a
Coryntho não vai quem quer.

Os graves encargos de conselheiro de Estado, de politico, de advogado, de


parlamentar, de oppsicionista, e de muitas cousas mais, não permittem aos talentos
litterarios produzir sinão abortos, se querem dar creanças em menos de nove mezes.

Quando Senio era simples advogado, e não queria campar de philologo abalizado,
politico profundo, nem concebêra ainda a vaidade de passar espichas nos clássicos e
de arvorar-se em mestre de escola, tudo ia bem.

Chegava-lhe o tempo para applicar-se ás lettras amenas, compor seus trabalhos com
vagar, corrigil-os, á luz do gosto e do bom senso, até onde este lhe chegava também.
A prova temol-a nós no Guarany, na Viuvinha, e no Demônio Familiar. 0' têmpora !
Hoje, porém, como tudo está mudado ! Os elogios immoderados apodreceram cedo o
talento útil, fazendo-o infunar-se da presumpção de ser gênio. Prejuízo para a
litteratura natal ! porque em vez de recolher mais duas ou três producções, dos
quilates da Viuvinha ou do Guarany, temos uma bagagem de volumes, que não valem
o arroubo dos — Cinco minutos.

Metta a mão em sua consciência, e diga Senio si não temos razão.

Mas nada de desacoroçoar. E' ainda occasião de recuperar o tempo gasto em pura
perda, e reparar o mal que tem feito ao seu nome e ás lettras brazileiras.

Tenho concluido, meu amigo. Pede por mim desculpa ao publico, e a Senio que me
não queira mal.
SEMPRONIO.

Você também pode gostar