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Moral: intenção, eufemismo e contexto


Moral: intention, euphemism and context
Moral: intención, eufemismo y contexto

Sírio Possenti
Universidade Estadual de Campinas (CNPq / FEsTA)

Resumo
Este trabalho explora, um pouco lateralmente, questões de linguagem e moral. Aborda
três temas, analisando alguns dados: a questão da relevância da intenção em casos de
ofensa ou agressão, a questão do eufemismo, que tornaria certas palavras menos
agressivas, e a questão do contexto, invocado em situações nas quais alguém considera
que seu discurso foi mal interpretado. Não se trata nem de aplicação das teses de Paveau
sobre linguagem e moral, nem de sua contestação: comentam-se alguns casos que
podem ser associados aos temas propostos por sua obra e que, eventualmente,
demandam mais explicitação.
PALAVRAS-CHAVE: moral, intenção, contexto, eufemismo.
Abstract

This paper explores, somewhat laterally, questions of language and morality. It


addresses three issues, analyzing some data: the question of the relevance of intention in
cases of offense or aggression, the question of euphemism, which would make certain
words less aggressive, and the question of context, invoked in situations in which one
considers that his speech was misunderstood. It is not a question of applying Paveau's
theses on language and moral, nor is it a refutation: some cases that may be associated
with the themes proposed by her work are commented; eventually, they demand more
explicitness.

Polifonia, Cuiabá-MT, v. 26, n.43, p. 01-357, jul.-set., 2019.


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KEYWORDS: moral, intention, context, euphemism.

Resumen
Este trabajo explora, de manera un tanto lateral, cuestiones de lenguaje y moralidad.
Aborda tres temas, analizando algunos datos: la cuestión de la relevancia de la intención
en los casos de ofensa o agresión, la cuestión del eufemismo, que haría que algunas
palabras sean menos agresivas, y la cuestión del contexto, invocada en situaciones en
las que un considera que su discurso fue mal entendido. No se trata de aplicar las tesis
de Paveau sobre el lenguaje y la moral, ni es una refutación: se comentan algunos casos
que pueden estar asociados con los temas propuestos por su trabajo; Con el tiempo,
exigen más explicitación.
PALABRAS CLAVE: moral, intención, contexto, eufemismo.

Introdução
Paveau (2013) trata de numerosas questões que envolvem palavras ou
enunciados a respeito das quais se pode falar de moral. Por ser obra pioneira,
compreende-se que não haja uma estrita unidade, que diversos temas sejam evocados e
tratados. Pode-se dizer que o livro considera diversas hipóteses (todas muito
interessantes). Talvez se deva dizer também um pouco mais assertivamente que as
questões morais, por serem heterogêneas (uma coisa são os tabus, outra as ofensas,
ainda outra a mentira ou a interpretação errada de uma teoria), são avaliadas
diferentemente nas sociedades, porque também estas são heterogêneas.
Neste trabalho, vou tratar de três tipos de questões, suscitadas certamente pela
leitura da obra em questão, mas sem necessariamente segui-la estritamente.
Problematizo-a, talvez. Espero não cometer com isso nenhuma imoralidade.
Trato primeiro da questão da intenção, até porque pode ser ingrediente relevante
nos casos de judicialização de certas declarações. Trato depois de termos tabu e de sua
atenuação por eufemismos, embora mesmo estes soem talvez imorais, dado o âmbito

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em que ocorrem e a falta de dúvida sobre o que é insinuado. Finalmente, abordo um


caso de interpretação “equivocada”: a questão é se ela poderia ou não ter sido evitada,
caso o leitor considerasse mais enunciados do texto. O dilema é se estamos diante de
um caso simulacro ou de um mero ataque a uma posição discursiva diferente por meio
de uma manobra “imoral”. Paralelamente, pode-se perguntar se um simulacro também
pode ser tido como imoral, mesmo que não decorra de má intenção, e sim de uma grade
semântica.

A intenção
Quando um pronunciamento discutível do ponto de vista moral é contestado,
debatido ou confrontado, duas são as defesas mais comuns apresentadas por seus
autores: a) não houve intenção (por exemplo, de ofender); b) o trecho foi citado fora do
contexto, o que lhe altera o sentido intencionado. Os casos são extremamente
numerosos, diria diários. Os já muitos exemplos dos meios de comunicação
aumentaram exponencialmente com as redes sociais. Contentemo-nos com alguns,
quase todos recentes (uns mais que outros). Antes, os relacionados à intenção.
a) Um apresentador de TV hostiliza uma cantora porque ela não teria tratado
bem suas fãs. Relembra que a cantora já foi “pobre e macaca”. Dadas as reações à
palavra “macaca”, alegaram o apresentador e seu advogado não só que não houve
“intuito” de ofender, mas também ofereceram uma interpretação não ofensiva,
especialmente de “macaca”. Invocou-se uma construção popular no Estado de Tocantins
(que, na verdade, ocorre em todo o país): tratar-se-ia da expressão “macaco velho”,

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significando ‘pessoa experiente’. Creio não ser necessário chamar atenção para o
ridículo desta defesa, dada a diferença entre as duas formulações1.
Um fato como este poderia ser alvo de apelo à Justiça, que, eventualmente,
levaria em consideração se a ofensa foi ou não intencional. Sabe-se que até mesmo no
caso de crime de morte, a Justiça estabelece uma distinção entre homicídio doloso e
culposo. Vejam-se estas breves definições:
Quando se diz que alguém cometeu um crime doloso é porque esse
alguém teve a intenção e a vontade de cometer o crime, ou seja, agiu
livremente e era consciente de que estaria praticando o crime. Portanto, o
sujeito está sabendo o que faz, como por exemplo, no caso de homicídio
em que uma pessoa compra uma arma e dá um tiro em outra pessoa,
matando-a. Diferente situação ocorre no crime culposo, pois nesse caso o
agente não tem a intenção de cometer o crime. Ele deixa de observar um
dever de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia, ou seja, o
resultado indesejado acaba ocorrendo não
(http://www.saibaseusdireitos.org/qual-diferenca-entre-crime-doloso-e-
crime-culposo/ acessado em 9.6.2017)

Independentemente das decisões da justiça, é evidente que cidadãos farão seu


próprio juízo – e é isso que importa do ponto de vista moral. Usualmente, os
comentários se multiplicam, as posições assumidas são bastante diversificadas, indo da
condenação pura e simples às diversas defesas, sendo um dos extremos a condenação do
politicamente correto, que estaria deixando tudo muito chato (não se pode mais
“brincar” com nada, “é muito mimimi”).
b) Uma ilustração talvez mais relevante da tese, por envolver altas autoridades,
foi o caso da mudança do status de Moreira Franco, tornado Ministro de uma Secretaria

1
Ver notícias sobre o caso em http://revistaquem.globo.com/quem-News/noticia/2017/01/apresentador-
chama-ludmilla-de-macaca-em-programa-de-tv.html

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(sic!), no início de 2017. Segundo nota do governo, reagindo à grita de muitos cidadãos
e de segmentos da mídia, “não houve qualquer má intenção do presidente da República
em criar obstruções ou embaraços à Operação Lava Jato” (Folha, 11/2/2017, p. A7).
Evidentemente, não é possível ter acesso à intenção do Presidente; os julgamentos se
baseiam em outros fatos similares e na análise da conjuntura política. As polêmicas são
usuais em casos assim.
c) Episódio um pouco mais recente envolvendo autoridades pode ser
considerado exemplar. No dia 08/06/2017, em audiência no Senado americano, o ex-
chefe do FBI, que fora demitido dias antes, disse que o presidente Trump tentou fazer
com que abandonasse uma investigação que envolvia assessores que teriam tido contato
com russos durante a campanha presidencial, o que teria contribuído para a derrota de
Hillary Clinton 2 . O ex-chefe do FBI “disse nesta quinta-feira (08) acreditar que o
presidente Donald Trump tentou obstruir a investigação sobre as ligações do ex-
conselheiro...” (Folha, 09//6/2017, p. A14). Trump lhe teria dito: “Ele é um cara bom.
Espero que você esteja disposto a deixar isso passar”. O ex-chefe do FBI disse que
interpretou esta fala de Trump como “orientação”. Seu argumento é que, afinal, tratava-
se da fala do presidente dos EUA, “sozinho comigo”, dizendo “eu espero que”. Toda a
questão reside em provar uma determinada intenção de Trump – implicando
eventualmente obstrução da Justiça. Os argumentos do ex-chefe do FBI podem sem
dúvida justificar sua implicatura, mas também é claro que não garantem sua
interpretação – porque não houve ordem literal por parte de Trump.
d) A defesa do locutor a quem foi imputada uma declaração imoral pode ser
reinterpretar sua própria fala. Foi o caso do ministro Luiz Roberto Barroso, que,

2
Talvez eu devesse me desculpar pelos sucessivos “teria”; pode ser influência das leituras de jornal, mas
também efeito do receio de dizer mais do que posso – e incidir assim em quebra de preceitos morais...

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homenageando o ex-ministro Joaquim Barbosa, disse que ele era um “negro de primeira
linha”, expressão que, que foi considerada eco das avaliações “comerciais” que se fazia
dos escravos. Barroso pediu desculpas, mas também disse que pretendia narrar uma
trajetória vitoriosa e fazer referência ao fato de o homenageado ter se tornado um
“acadêmico negro de primeira linha”, postulando ainda que a expressão “de primeira
linha” não se referia a “negro”, mas a “acadêmico”. A tese é de difícil sustentação, por
mais que o escopo de certas palavras possa ser uma palavra não contígua. A memória
discursiva associada à expressão dificilmente pode ser apagada; o juiz se esforça,
previsivelmente, para fazer com que suposta intenção sobrepuje a memória.
e) O youtuber Lukas foi um dos jovens pagos pelo governo para fazer propagada
da reforma do ensino. Depois que se descobriu qual fora a quantia paga pelo MEC por
seu filminho, descobriu-se também que ele, anteriormente, postara textos
preconceituosos e ofensivos em sua conta no tuíter. Segue uma pequena lista, na qual
destaco palavras ou expressões usualmente consideradas imorais, retomando a pergunta
de Paveau (2013: 18): “pode-se dizer tudo”?
- Porra, temos que foder a Dilma, mas quem tem coragem de fazer isso? Eca...
- Mulher: tem mais de 1000 amigos no face? eh PUTA
- Quem gosta de pica é viado... mulher gosta de dinheiro
- Como estragar sua noite: imagine a Dilma de quatro pra você. De nada
- Nordeste: cu do mundo
- Não sou racista. Só acho que os pretos poderiam lutar mais
- Procurando quem me roubou numa multidão de pretos.

Além de palavras a serem evitadas (questão de moral ou de etiqueta?), há juízos


ofensivos, especialmente “mulher gosta de dinheiro”, “quem me roubou numa multidão
de pretos?”, “nordeste: cu do mundo”. Eventualmente, “os pretos poderiam lutar mais”.
Agora, veja-se sua defesa: “Sobre meus tweets antigos, eu peço desculpas. Não é
como eu penso e me arrependo de ter postado. Nunca tive a intenção de ofender
ninguém”. Os poucos casos citados incluem palavras cujo sentido literal, pode-se dizer,

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impede que a ele se sobrepuje uma intenção que não se materializa nem mesmo
indiretamente.
Há claramente dois momentos nesta publicação: um pedido de desculpas e uma
declaração de que não concorda (mais) com o que significam os enunciados que
publicou. A reação mais imediata parece ser a de considerar seu autor mentiroso e/ou
covarde, incapaz de assumir seus pontos de vista diante de uma denúncia. Em eventual
ação judicial, só seria inocentado se fosse julgado incapaz, ou seja, não responsável pelo
que escreveu.

Creio não ser o lugar para discutir se a intenção é um elemento importante (ou o
mais importante) para a determinação do sentido. Parece, no entanto, que é bastante
claro para muitos leitores que não se trata de atos inocentes ou humorísticos, e que seu
efeito, provavelmente não desconhecido dos autores, é o de agredir (ou de se resguardar
de problemas, como nos casos Moreira Franco, Trump e Barroso).
Vale a pena distinguir, talvez, os efeitos propriamente judiciais (condenação ou
absolvição) dos efeitos morais. Ressalte-se, no entanto, que, também no que se refere
aos últimos, a unanimidade é rara, porque as sociedades são heterogêneas. Nos casos
considerados, a imoralidade consiste ora em ofender, ora em mentir, ora em ofender e
depois mentir para defender-se de uma acusação.

Os eufemismos
Um dos pontos de partida do trabalho de Paveau (2013) é que as questões morais
nunca fizeram parte da linguística dos lingüistas (talvez apenas da dos leigos), mas que,
de alguma forma, questões como as palavras tabu surgem sem aviso prévio (p.20);
assim, de alguma forma, questões morais acabam sendo tratadas, mesmo que
marginalmente.

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Uma definição ligeira e intuitiva de palavras tabu é que são palavras proibidas.
Mas talvez fosse melhor dizer “de enunciação controlada”, considerando contextos e
interlocutores. É o que explica que continuem sendo proferidas. Elas devem sua
sobrevida a esta coragem e a uma violação controlada de regras sociais (ver, p. ex.,
Trudgill (1974) e Guérios (1979)).
No entanto, elas chocam, são consideradas imorais, ou, pelo menos,
inconvenientes. Pode-se acrescentar (sem aprofundar aqui nenhuma das questões), que
circulam preferencialmente em contextos privados ou em grupos específicos, criando
embaraços e merecendo julgamentos severos quando proferidos em outros lugares ou
por personalidades em tese consideradas incapazes de grosserias3. Relembrem-se, por
exemplo, os gritos “Dilma, vai tomar no cu”, proferidos no Maracanã quando da
abertura da Copa das Confederações, em 2013. Se houve quem achou divertido,
também não faltaram condenações (numa demonstração clara de que a sociedade é
dividida quanto aos valores morais)4.
Uma das maneiras que as sociedades encontraram para não reprimir totalmente
os desejos de enunciar palavras que se referem a temas tabu são formas eufêmicas que
substituem palavrões e outros termos “proibidos” 5 . Segue, abaixo, uma série de
enunciados que circularam nas redes sociais quando um ator revelou ser homossexual,
que demonstram esta tese6.

3
Os julgamentos das palavras são eventualmente estendidos a seus locutores: recentemente, por exemplo,
jornalistas pareceram de fato chocados com o palavreado de Aécio Neves, em conversa pouco
republicana com Joesley Batista (os palavrões parecem ter chocado mais do que os indícios de
corrupção).
4
O fato pode ser considerado, inclusive, indício de que houve muito de misoginia na oposição à
Presidenta (ver Possenti 2018).
5
A estratégia se assemelha à das piadas que dizem um discurso indiretamente.
6
Tratei destes dados mais longamente em Possenti (2019, a sair).

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- Por que só saiu do armário agora, que está em baixa e no esquecimento? Não
sabia que ele peidava camisinha.
- Só assumem quando encontram a vara perfeita, e até descobrirem, haja varas.
- Sim, da ré no kibe e dai?
- Gosta de picolé de calda e dai?
- Curte abraço apertado e dai? Cafungada no cangote e dai? Cada um vive a
vida que gosta e nada pode mudar esta linha de direito.
- Essa tábua já levou muito prego na vida.
- ...vamos curá-lo dessa doença. Mostraremos para ele como é bão uma (__Y__)
de mulher!

Um falante adulto do português brasileiro reconhece nos termos grifados substitutos de


“dar o cu” (peidar na camisinha / dar ré no kibe...), de “pênis / pau” (kibe, picolé,
prego...), etc. Alguns enunciados vão além da designação alternativa de partes da
anatomia ou da descrição de eventos sexuais. Por exemplo, “cafungando no cangote”
descreve uma posição durante ato sexual, algo como ‘penetração anal e respiração
ofegante do parceiro ativo’; “picolé de calda” refere-se ao pênis e à ejaculação etc. O
último enunciado inclui um desenho aproximado do que seria uma vulva, representada
basicamente pela letra Y, aludindo à junção das pernas / coxas.
Em todos os casos, constata-se uma eufemização, um abrandamento da
nomeação ou da descrição: em vez dos termos “crus” do cotidiano em situação
relativamente privada, formas alusivas e metafóricas, comportamento provavelmente
condicionado pelo fato de que as redes sociais são consideradas um espaço a meio
caminho entre o público e o privado.
As enunciações alternativas evitam de certa forma julgamentos de imoralidade
ou de grosseria. Aliás, parece-me que uma questão mereceria aprofundamento: em que
medida palavras consideradas grosseiras revelam um locutor de moralidade duvidosa?

Contexto

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Vejamos agora alguns casos envolvendo a questão do contexto. Não é o caso de


detalhar problemas que podem surgir em relação ao contexto quando se trata de
citações. Atenho-me à nota 7 (que é uma forma de dizer que algo do contexto sempre se
perde na citação) e à menção de uma tese de Maingueneau, a meu ver decisiva, em
especial fora do campo acadêmico: “daí seu [da aforização, isto é, da frase destacada,
citada] laço estreito com a juridicidade: quando se quer condenar alguém por suas
declarações, em geral não é um texto – sempre relativo a seu contexto – , mas uma
aforização ou um conjunto de aforizações que se condena” (Maingueneau 2007: 162).
a) Ives Gandra Filho foi, durante alguns dias, um dos candidatos mais fortes à
sucessão de Teori Zavasky no STF (se é que não se tratou apenas de manobra
diversionista). Assim que sua indicação pareceu provável, esmiuçou-se um pouco sua
vida, em especial sua obra, em duas direções: 1) sua atuação no TST, que revela um
ministro alinhado com o patronato, não com os trabalhadores, o que aumentava seu
cacife, diante dos propósitos de então de fazer um reforma da legislação trabalhista em
determinada direção; 2) alguns de seus escritos, em especial um capítulo de livro no
qual pareceram claras suas posições, sempre extremamente conservadoras, sobre
diversas questões relevantes (união civil de homossexuais, interrupção de gravidez,
direitos das mulheres etc.) e das quais o STF tipicamente trata e, portanto, interessam à
“sociedade”.
Como todas as manifestações citadas lhe eram desfavoráveis, na circunstância,
Gandra Martins Filho veio a público defender-se, o que fez de duas formas: primeiro,
justificou sua doutrina, citando partes de seu texto que tinham sido “esquecidas” 7 ;
segundo, alegando que os textos descontextualizaram sua obra jurídica: “Diante de

7
Seria a hora de dizer alguma coisa sobre como se selecionam as citações, sempre de acordo com os
interesses de quem cita, conscientes ou não, porque os posicionamentos comandam o processo; mas fazer
isso exigiria outro texto (ver Maingueneau (2012)

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notícias veiculadas pela imprensa, descontextualizando quatro parágrafos de obra


jurídica de minha autoria...” (Folha, 26/01/2017).
Evidentemente, não se trata apenas de “condenação” ou julgamento em
tribunais, embora esta situação não deva ser excluída, mas de todo e qualquer tipo de
julgamento, seja público, seja mais restrito.
b) O caso seguinte vem do universo político-policial. Um hacker teria se
apropriado de gravações do telefone de Marcela Temer; um trecho (do pouco que foi
publicado) dizia “posso jogar vosso marido na lama”. Nota da assessoria do presidente
afirma que a frase reproduzida pelo hacker que fala sobre jogar “na lama” o nome de
Temer (“de vosso marido”) está “fora do contexto” (Folha, 11/2/21087, p. A6).
Aparentemente, o caso desapareceu. O que importa aqui é o argumento: está fora do
contexto.
c) Em entrevista à Folha de S. Paulo (06/05/2019), Camile Paglia tratou assim
uma declaração sua (ela teria ridicularizado vítimas de agressões sexuais, segundo
interpretações de uma declaração em que criticara universitárias que só denunciam
estupros meses depois dos fatos ocorridos): “Isso é absurdo, eles pinçaram da internet
só uns trechos do que eu falei e tiraram do contexto” (p. A14).
d) O caso seguinte apresenta maior interesse, e por isso será tratado mais
detalhadamente. Durante a FLIP8 de 2016, uma mesa redonda com Bernardo Carvalho e
Benjamin Moser (Literatura hoje: por quê, para quê e para quem?) discutiu o mercado
literário. Um jornal resumiu assim a posição do primeiro: “o problema do mercado
literário é que a demanda – o que os leitores querem – contamina a produção – o que se
publica”.

8
Festa Literária Internacional de Paraty, evento anual cuja primeira edição ocorreu em 2003.

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Num resumo obviamente breve e “jornalístico”, a matéria (Ilustrada, Folha,


02/07) acrescenta que o “para quem” foi respondido em alto e bom som pelo autor de
“Reprodução”: “Não me interessa se o leitor lê ou não lê; eu quero que o leitor se foda”.
Há também outras declarações um pouco laterais, embora relevantes, que vou
desconsiderar aqui. Mas incluo ainda, da mesma matéria, a seguinte citação indireta:
“Ele (Carvalho) acredita que o escritor não deve se deixar pautar pela demanda”. E
ainda esta em discurso direto: “O problema do que eu chamo de alta literatura é que ela
não atende a uma demanda, ao que o mercado pede”.9

Em trabalhos sucessivos, que culminaram em Maingueneau (2012), o autor tem


tratado das frases sem texto, sejam elas os provérbios e os slogans, sejam as que são
“retiradas” de um texto com base em algumas de suas características – resumidamente,
sua pregnância tanto de significado quanto de significante e um ethos caracterizado
como solene. É característico que tais frases sejam retomadas, circulem amplamente e,
o que aqui vai ser destacado, recebam interpretações eventualmente controversas, seja
por serem ambíguas, seja por não levarem em conta nem o contexto nem o co-texto.
Privilegio aqui a última dessas questões, por duas razões básicas: a) uma interpretação
que desconsidere o co-texto e o contexto vai na direção contrária das mais recentes
“descobertas” das ciências da linguagem (e mesmo de demandas mais antigas, como as
formuladas em torno do conceito de círculo hermenêutico), permitindo problematizar,
portanto, a questão da legitimidade de tais interpretações; b) é comum que os autores de
tais frases invoquem o contexto (ou critiquem seu abandono) como um fator relevante
(e atribuam a seu abandono uma leitura equivocada), o que permite acusações de “má
fé”. Destaque-se que em nenhum dos dois casos se invoca algum tipo de incapacidade

9
Adiante, ficará mais claro que esta não é, para Carvalho, uma constatação, mas uma tese: a literatura não
deve (ou não precisa necessariamente) atender a uma demanda, ao mercado.

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do leitor, o que justifica que se pergunte – e se tente responder – em que medida a


interpretação pode ser “ensinada”, incluindo no “currículo” uma questão ética. Aqui
analiso apenas a pequena e ilustrativa polêmica entre Bernardo de Carvalho e João
Pereira Coutinho relativa ao sentido da declaração do primeiro sobre o lugar do leitor na
literatura, na FLIP de 2016, supostamente “Eu quero que se foda”.
“Eu quero que o leitor se foda” é evidentemente um enunciado destacável (e, de
fato, foi destacado): tem certa independência, um ethos10 “solene” (o da proclamação de
um princípio ético), é memorável. Não à toa, ecoou, e foi retomado11.
Aqui não vou considerar o fato de que o enunciado foi apoiado, contestado etc.
em comentários e outros tipos de texto. Vou me ater à polêmica que ele provocou (hoje,
meu problema não é o destacamento, mas uma questão de leitura à moda da “antiga”
AD). Mais concretamente, interessa-me o fato de que, para defender determinada
leitura, alguém (seu autor, aqui, mas isso não é necessário) mergulha de novo a frase
destacada no texto ou no sistema de onde ela foi destacada (este é o tema mais geral dos
textos contidos em As fórmulas filosóficas12).
Em 5/7, três dias depois, João Pereira Coutinho, um filósofo português que é
colunista da Folha de S. Paulo13, questionou a tese de Carvalho, mais especificamente
“Eu quero que o leitor se foda”, isto é, a frase destacada. Minha hipótese é que ele leu
(apenas, mas toda) a reportagem da Folha, e, como é comum, só discutiu a frase
destacada, que circulou independentemente do texto do jornal e, claro, ainda mais
independentemente da fala do escritor.

10
“Alto e bom som” diz respeito ao tom, que revela um ethos.
11
Uma consulta ao Google em 26/2/2017 informa que há 393.000 ocorrências para esta afirmação sem
aspas.
12
Cossuta e Cicurel (orgs) (2014 / 2018).
13
É de certa forma um prazer ler a coluna de um liberal como ele às terças feiras, depois de suportar Luiz
Felipe Pondé no mesmo espaço às segundas.

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É interessante considerar o texto de Coutinho, não apenas porque ele só discute


uma frase, mas principalmente porque avança em determinada direção, como se
Carvalho tivesse dito ainda mais do que disse, produzindo, assim, simulacros de seu
discurso. Vejamos alguns aspectos:
a) Como Coutinho cita Carvalho: “Disse ele: ‘Não me interessa se o leitor lê ou
não’. E acrescentou, com extrema elegância: 14 ‘Eu quero que o leitor se foda’. Para
Bernardo de Carvalho, o importante é ‘fazer minha literatura’” (como se vê, Coutinho
cita passagens da reportagem, cobrindo ao máximo o que se poderia chamar de co-texto,
incluindo outras afirmações além da “tese” de Carvalho).
b) Observe-se, o que pode ser crucial, que Coutinho sequer cita uma das
declarações – a meu ver muito relevante - de Carvalho: “que o escritor não deve se
deixar pautar pela demanda”. Convenhamos que ela poderia explicar o sentido de
“quero que o leitor se foda”: ‘sua demanda não deve pautar o escritor’ é uma paráfrase
da frase destacada.
c) Coutinho interpreta “fazer sua literatura” como se Carvalho fosse “indiferente
ao ruído e aos interesses das massas ignaras” 15 . Suas palavras são bem marcadas:
mesmo que Carvalho tivesse dito literalmente que não se interessava pelas massas (ele
disse “leitor”), traduzir o que teria dito por “indiferente ao ruído das massas ignaras” é
uma evidente hipérbole; de onde vêm “ruído” e “ignaras”, por exemplo?
d) Depois de dizer que a posição de Carvalho é solipsista, acrescenta: “Se
Bernardo Carvalho escreve apenas para o próprio umbigo, como explicar o mistério da

14
Lendo esta passagem como se fosse irônica, descobre-se que, de fato, Coutinho inverte o “tom”, que
era “alto e bom som”, no original, expressão que pode ser interpretada como ‘veementemente /
francamente / com palavras vulgares’.
15
Carvalho tinha dito a Moser que se pode assumir que as pessoas são burras; o sentido é que não é para
elas que a alta literatura é produzida (um argumento seu é que Paulo Coelho não roubou leitores da alta
literatura).

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publicação comercial?”. Mas quais são as palavras de Carvalho que poderiam ser
parafraseadas por “escrever para o próprio umbigo”? Provavelmente, a formulação
deriva de “O escritor não deve se deixar pautar pela demanda”. O percurso “gerativo”
seria: não se deixar pautar –> escrever o que se quer –> escrever (apenas) para si
próprio. Simulacros!
e) Por que, então, publicar? Ou, nos termos dele: “não seria mais coerente
reservar o produto do vício solitário para a gaveta?” De novo: onde Coutinho encontra
nas falas de Carvalho a afirmação de que ele não deseja ou acha inútil publicar (boa)
literatura? Feito isso, Coutinho retorna à história da literatura para mostrar que: a) muito
do que foi popular é hoje alta literatura (seu exemplo é Shakespeare); b) muito do que
foi recusado pela elite (eventualmente, também pelo gosto popular, mas por outras
razões), mais também tarde se revelou alta literatura (como foi o caso de À la
recherche..., de Proust, que Marc Humblot recusou-se a publicar).
Dois dias depois, no mesmo jornal, Carvalho responde a Coutinho, explicando
“o sentido” de sua declaração. O título de seu texto é “Coutinho pinçou uma frase fora
de contexto”, como dificilmente poderia deixar de ser. Cito o primeiro parágrafo:

“O colunista da Folha João Pereira Coutinho dedicou sua coluna desta terça (5)
a uma frase que a reportagem do jornal pinçou de um debate de uma hora e meia
do qual participei no sábado (2) na Flip, em Paraty, - ao qual o colunista não
assistiu. A frase foi dita em resposta a uma pergunta insistente, que eu já havia
respondido: se eu pensava no leitor na hora de escrever”.

No excerto, algumas coisas chamam a atenção, como pinçar uma frase de um


debate de uma hora e meia; o colunista não o assistiu; a pergunta tinha sido insistente.
O fundamental, diria, é a frase ter sido “pinçada” (que explica a interpretação) e a

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insistência da pergunta (que explica a resposta em “alto e bom som”). Mas a resposta
continua:
“Ao destacar a frase em detrimento do contexto, a reportagem prejudicou seu
entendimento. A questão não era entre “alta cultura” e “cultura popular”, mas
escrever para atender a uma demanda do mercado e escrever guiado por uma
convicção pessoal. São modos diversos de lidar com a escrita, que podem se
combinar ou não”.

Não é possível saber se esta explicação foi feita durante o debate ou se é


posterior, uma interpretação de Carvalho para sua frase no contexto. O que estas
citações deixam claro é que Carvalho defende que, sem a consideração do contexto, a
interpretação fica prejudicada (o que é uma tese banal, desde a pragmática até a análise
do discurso, passando pela hermenêutica e sua tese do “círculo hermenêutico”). Mais
interessante ainda é o que Carvalho faz em seguida: republica um texto que havia
publicado alguns meses antes em um blog, no qual explicava sua posição, que, na
matéria do jornal, apareceu “simplificada”. Este texto, diz ele, “esclarece a
argumentação mais geral na qual a frase se insere”. Ou seja: fornece um contexto.
Deste texto, que não vou tentar decifrar, recorto as passagens nas quais Carvalho
defende sua interpretação de “Eu quero que o leitor se foda”. Começa contando que
certa vez ganhou um livro de um autor cuja característica era “ser um provocador
implacável, um sabotador literário das posições entrincheiradas” do pós-guerra, segundo
seu prefaciador. “Surgiu para desagradar, para dizer o que não se queria ouvir” – o
inverso de hoje, afirma Carvalho.
Depois conta que, há algum tempo, participando de um debate na França, o
mediador perguntou, a certa altura, qual fora o significado da literatura francesa para
cada um dos debatedores. Carvalho conta que se lembrou na hora de uma entrevista de
Jerôme Lindon, que viria ser o editor de Minuit, que dissera querer “publicar os livros

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que ninguém quer ler”. Carvalho acrescentou que a literatura francesa tinha significado
para ele esta liberdade.
Conta um pouco mais sobre este editor, que decidira publicar Beckett quando
todos os recusavam. Ir contra o leitor, diz ainda, pode significar escrever que a Terra é
redonda para os que sempre ouviram que é plana. E que a literatura contra o leitor pode
ser também uma literatura por um novo leitor. E que este projeto civilizatório se perde
quando a literatura é sequestrada pelo gosto (do leitor, entenda-se). E que dizer que se
escreve “contra o leitor” pode ser considerado arrogância, até porque o leitor é um
cliente (mas nem por isso se deve ceder, é o sentido de seu texto).
Em suma: o que Carvalho faz, recuperando o contexto de mesa na FLIP e,
depois, evocando um texto em que esclarece sua posição, é oferecer uma interpretação
contra certas interpretações que derivaram da leitura de sua frase “fora do contexto”,
como a de Coutinho. Esta leitura, de fato, poderia ser perfeitamente sustentada pela
declaração segundo a qual “o escritor não deve se deixar pautar pela demanda”, que
constava da pequena reportagem da Folha, como mencionado acima.

Conclusão

Que conclusões tirar desta pequena amostra? Três, pelo menos: a) que locutores
tentam defender supostos sentidos de suas declarações, sendo que, às vezes,
considerados os textos e algumas circunstâncias, tal defesa parece impossível (é
especialmente o caso de algumas declarações sexistas, ofensivas, racistas, misóginas e
homofóbicas; b) que há defesas do sentido de certas declarações que invocam um
contexto e um cotexto que teriam sido desconsiderados, que se pretendem mais
“exatas”, que se fariam considerando um corpus mais extenso, eventualmente mais
extenso mesmo do que um texto em seu contexto (é o caso do último exemplo
analisado).

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Na AD, isto é o que se pretendeu desde as primeiras formulações na teoria que


deriva de Pêcheux, obviamente sem dogmatismo quanto às leituras “corretas”. É por
isso que se evoca, por exemplo, a paráfrase, o interdiscurso, a memória, as condições de
produção. As leituras feitas no calor da hora, em especial as que consideram apenas
fragmentos, notadamente os fragmentos fornecidos pela mídia, sofreriam interpretações
menos adequadas, menos “profissionais”. Eventualmente, esta leitura transborda para a
associação livre, caracteriza-se pelo exagero e pelo simulacro, típicos em discursos
polêmicos.
No que se refere ao último caso, as duas maneiras de considerar o que vai ser
lido resultam em duas interpretações de “quero que o leitor se foda”: a) o leitor não
interessa (nem mesmo interessa que me leia – ou até que compre meu livro). É a
interpretação de Coutinho; b) eu não me rendo ao gosto do leitor/do mercado;
significa que escrevo seguindo um certo projeto – e que, se isso implicar que terei
poucos leitores, pago o preço.
Que o leitor deste texto fique com a interpretação que lhe parece mais adequada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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