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UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO

MARCOS NOCE BAIA

RELATÓRIO – AUTO DE RESISTÊNCIA

SÃO PAULO

2022
O Rio de Janeiro tem sido palco de conflitos armados entre grupos de criminosos e policiais, sobretudo
durante as incursões destes agentes em locais dominados por facções envolvidas com o tráfico de
drogas. Isso se deve principalmente ao modelo de repressão policial adotado no combate às redes
desse mercado ilegal que estabelecem pontos comerciais fixos em territórios de moradia de baixa
renda.

Diante do caráter sedentário das empresas locais do varejo de drogas, as políticas estaduais de
segurança pública tenderam a centralizar sua estratégia no enfrentamento pontual ao tráfico, visando
a efetuar, com regularidade variável, prisões e apreensões de armas, dinheiro e material
entorpecente. Mesmo quando conduzidas investigações baseadas em informantes e escutas
telefônicas, tornam-se necessárias as operações policiais de incursão em favelas para a execução dos
mandados de busca e apreensão.

Determinadas regiões se encontram sob o domínio de facções criminosas que disputam entre si pelo
controle das chamadas bocas de fumo, sendo, portanto, vigiadas por equipes de seguranças armados
que se revezam em regime de plantão. A chegada repentina de guarnições policiais costuma ocasionar
uma reação violenta, desencadeando tiroteios, o que não impede a entrada dos policiais nestes
territórios.

Cria-se também um ambiente hostil para a manutenção dos policiais no interior da favela,
contribuindo para que as operações durem o mínimo de tempo possível. Logo que a polícia vai
embora, a normalidade do cotidiano do tráfico tende a se restabelecer, até que seja novamente
interrompida por algum outro evento desta natureza. Como se já não bastasse aos moradores de
favelas terem que se submeter ao poder arbitrário exercido pelos traficantes locais, também passaram
a ter que lidar com a interrupção frequente do fluxo regular de suas rotinas pela atuação violenta da
polícia, que os coloca num “fogo cruzado”.

Após atingir seu ápice em 2007, o número de vítimas dos "autos de resistência" passou a decrescer
ano a ano, esse movimento de queda acompanhou a tendência de queda dos homicídios dolosos, o
que pode ter relação com a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora, com o enfraquecimento
de grupos que dominam a venda de drogas em favelas e a diminuição dos confrontos armados entre
criminosos e policiais. O modelo repressivo de incursões policiais tópicas e eventuais, com altas taxas
de letalidade da ação policial, que marcava a política de confronto predominante até os anos de 2007
e 2008, vem sendo progressivamente substituído pela ocupação estável e duradoura de favelas por
uma polícia com uma proposta de policiamento comunitário de proximidade, reformulando-se a
lógica de combate à criminalidade organizada.
No entanto, o projeto das UPPs não se estendeu a grande parte das favelas e, portanto, ainda não
superou inteiramente a política do confronto. Observa-se, inclusive, a migração de confrontos
armados para outras regiões da cidade, como as Zonas Norte e Oeste, e a Baixada Fluminense.
Paralelamente à implantação das UPPs, a partir de 2009, a Secretaria de Segurança Pública criou um
programa de metas para a redução de alguns indicadores da violência, incluindo homicídios dolosos.
A partir do começo de 2011, este programa passou a incluir metas para a redução da letalidade
violento , passando a incluir não só os homicídios dolosos e latrocínios – contemplados no decreto
inicial –, mas também lesões corporais seguidas de morte e "autos de resistência", o que demonstra
o reconhecimento do governo de que há excessos no emprego deste dispositivo.

Considerando-se os altos índices de “autos de resistência” como o ponto de partida para as questões
de pesquisa, e também como efeito colateral de uma política de segurança pública, este estudo se
propôs a ultrapassar tal constatação e avançar sobre a análise do processamento legal desse tipo de
caso ao longo do Sistema de Justiça Criminal. Não se pretendeu investigar se as mortes eram ou não
legítimas, pois tal averiguação não é da competência de pesquisadores, mas sim das instituições do
poder público.

Sob uma perspectiva sociológica, como são realizados os procedimentos apuratórios e o julgamento
de casos chamados de “autos de resistência”, na cidade do Rio de Janeiro, compreendendo quais
critérios, elementos, discursos, práticas e relações permeiam este fluxo e influenciam a incriminação
ou não dos policiais. Desta forma, este estudo pretendeu ir além das discussões jurídicas acerca destas
ocorrências, entendendo como são produzidos e de que são compostos estes inquéritos e processos,
e quais informações presentes nos autos orientam as tomadas de decisão em cada etapa do Sistema
de Justiça Criminal.

A partir da análise do processamento desses casos e das narrativas orais e escritas sobre os eventos,
esta pesquisa refletiu sobre a construção da ideia de legítima defesa, compreendendo o que é
considerado – ou não –, pelos atores e instituições sociais envolvidos, como uma morte praticada com
legitimidade. Desta forma, buscou-se problematizar o que era considerado como “resistência” pela
polícia e pela Justiça, e que elementos contribuíam para que a ação policial fosse vista como dentro
da lei ou não.

Ao se pensar sobre como os conceitos de “legítima defesa” e de “resistência” são evocados e ganham
significados ao longo do Sistema de Justiça Criminal, analisou-se como a letra da lei é interpretada
cotidianamente e como os eventos acontecidos são encaixados a certos tipos penais, gerando
diferentes procedimentos, decisões e punições. Assim, a análise de casos de autos de resistência
arquivados, por exemplo, forneceu-nos dados sobre o que é rotineiramente entendido pelos
operadores da polícia e da Justiça como uma morte praticada legítima e legalmente por policiais.

Observou-se, que desde o Registro da Ocorrência, o homicídio é considerado dentro dos padrões da
legalidade, com excludente de ilicitude. Também era marcante a ausência sistemática de
testemunhas, que não os próprios policiais envolvidos no evento, a ausência de perícias no local e de
outras diligências para se apurar a dinâmica dos fatos. Por fim, verificou-se que a imensa maioria dos
registros de “autos de resistência” tinha o arquivamento como destino final. Diante do elevado
número de homicídios classificados como "auto de resistência" na cidade e no Estado do Rio e das
primeiras observações feitas naquela pesquisa sobre o inquérito policial.

O trâmite nos Tribunais do Júri é demorado, sendo muito frequente a remarcação de audiências,
devido a problemas na agenda das varas ou da ausência de testemunhas. Inúmeras vezes, as
pesquisadoras foram ao Fórum, esperaram por horas, e não assistiram a audiências, finalmente
remarcadas. Além disso, pelo fato de a maioria dos casos terem réus soltos, não são considerados
prioridade.

Por essas razões, não foi possível acompanhar todos os processos até o seu desfecho. Dos casos
acompanhados, alguns ainda estavam sem desfecho. Não chegamos a assistir a nenhuma sentença
decidida pelos jurados. O único júri assistido de casos desse tipo foi dissolvido antes de seu término,
pois a defensora pública passou mal durante a sessão. Ademais, só fomos informados de dois outros
júris de homicídios inicialmente registrados como “autos de resistência” realizados durante a
pesquisa, a que, no entanto, não pudemos comparecer.

Todos os demais foram adiados ou os processos simplesmente não chegaram a esta fase,
continuando na fase de instrução, ou sendo impronunciados ou arquivados pelos juízes, como será
explicitado adiante. Apesar das dificuldades de acesso aos casos e da demora nos julgamentos, o
estudo conseguiu atingir os seus objetivos, reunindo um vasto material sobre as diferentes etapas do
processamento dos “autos de resistência”, sendo capaz de descrevê-las em detalhes e identificando
as questões mais centrais inerentes a cada uma delas.

Foi possível analisar os processos de produção das verdades judiciais sobre esses casos, apreendendo
as regras gerais que organizam o conhecimento adquirido sobre os fatos e compreendendo as
dinâmicas discursivas envolvidas na negociação sobre a versão final e oficial.

É possível ver a baixa qualidade dos inquéritos instaurados para a apuração dos “autos de
resistência” e a decorrente falta de elementos probatórios, seja para confirmar ou refutar a versão de
legítima defesa. A tendência observada é o arquivamento da esmagadora maioria dos inquéritos e
processos instaurados para a apuração dos casos registrados sob esta rubrica, prevalecendo a
narrativa inicial apresentada pelos policiais comunicantes da ocorrência.

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